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C A P ir U L O

FILOSOFIA CONTEMPORNEA:

pensamento do sculo XX

J

Trem blindado em ao (1915) - Gino Severini. Guerra,futurismo, cubismo: marcas do sculo XX.

Questes filosficasO que existir? Como a vida? Existe liberdade na existncia humana? Qual o sentido do ser? Quais so os pressupostos lgicos da linguagem? O que a sociedade de massas? Como se origina e se organiza o poder? Qual a relao entre linguagem e dominao? Alcanamos, enfim, a ltima parada de nossa viagem por mais de 25 sculos de filosofia. Voc ver que, nos ltimos cem anos, a produo filosfica foi mltipla e variada, como j havia ocorrido no sculo anterior. S que agora muitas das certezas desmoronaram-se sucessivamente,

Conceitos-chaveexistencialismo, fenomenologia, fenmeno, ente, ser-a/estar-a, angstia, ente em-si, ente para-si, nada, no-ser, liberdade, condio humana, filosofia analtica, anlise lgica, jogos de linguagem, Escola de Frankfurt, teoria crtica, sociedade de massa, razo instrumental, indstria cultural, arte, represso, prazer, razo dia lgica, ao comunicativa, verdade intersubjetiva, ps-moderno, micropoderes, sociedade disciplinar, logocentrismo, desconstruo, hiper-realidade

levando consigo vrias esperanas contidas no projeto da modernidade. Como reagiram ou esto reagindo os filsofos de nossa poca? o que veremos a seguir.

271

I

Captulo 16 Filosofia contempornea: pensamento do sculo XX

SCULO XX

Uma era de incertezaso sculo XIX foi um perodo marcado por grandes convices. De modo geral, muitos filsofos estavam confiantes no poder da razo, os cientistas, entusiasmados com o progresso tecnologco, os capitalistas, radiantes com as vantagens da expanso industrial, os romnticos, vibrando com a valorizao da ptria e dos sentimentos nacionais, os socialistas, pregando ardorosamente a construo do socialismo, e assim por diante. Poucas dessas convices subsistiriam intactas no sculo XX, que foi, por isso, caracterizado como uma era de incertezas.A era da incerteza o ttulo de um livro do economista canadense John Kenneth Galbraith que analisa e compara as grandes certezas do pensamento econmico do sculo XIX com as incertezas com que os problemas foram enfrentados no sculo XX.

a ser tratado mais detalhadamente no captulo 19). O incerto comeava a ocupar o esprito do mundo contemporneo a partir de seu maior baluarte: a cincia.

Mundo de contrastes ,E como definir os principais acontecimentos do sculo XX? Trgicos ou maravilhosos? Gigantescos eles foram, sem dvida. Duas guerras mundiais derramaram sangue em uma escala jamais vista na histria da humanidade. A exploso da barbrie nazista aterrorizou o mundo. A Revoluo Russa impulsionou a ascenso do socialismo em vrios pases, engatilhando o surgimento de uma guerra fria que polarizou grande parte do planeta e s terminou com o fim da Unio Sovitica. Por outro lado, depois da Segunda Guerra, a tecnologia deu um salto vertiginoso. Telescpios hiperpotentes exploraram os confins do universo. Naves espaciais iniciaram a conquista do cosmo. A engenharia gentica registrou avanos antes restritos aos livros de fico. A tecnologia da informao e diversos novos aparatos chegaram vida cotidiana de milhes de usurios em todo o mundo. Em contrapartida, a tecnologa trouxe tambm a corrida armamentista, o medo da destruio atmica e a degradao ambiental. E os avanos tecnolgcos pouco contriburam para diminuir as profundas desigualdades sociais no planeta. Calcula-se que 80% da renda mundial concentram-se nas mos de 15% da populao, enquanto mais da metade da humanidade ainda enfrenta problemas de desnutrio, falta de moradia, desamparo sade e educao.

Isso comeou a verificar-se logo na passagem do sculo XIX para o XX, quando Freud fundou a psicanlise e surgiram as psicologias do inconsciente, colocando dvidas sobre a hegemonia da razo nos assuntos humanos (conforme vimos no captulo 4). Quase paralelamente, Einstein formulou a teoria da relatividade e, algum tempo depois, Heisenberg enunciou o princpio da incerteza, lanando as bases de uma progressiva mudana de paradigmas na cincia (tema estudado brevemente no captulo 5 e que voltar

Corpos empilhados em campo de concentrao nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Infelizmente, no se pode dizer que esse tipo de perseguio contra diversas minorias tenha chegado ao fim. Ainda hoje, muitas populaes so vtimas do preconceito e, eventualmente, de massacres.

Unidade 3 A filosofia na histria

1272

Impresses antagnicasPor tudo isso, as impresses dos grandes intelectuais que viveram no sculo XX so dspares e, por vezes, antagnicas. Alguns o veem como uma poca indita pela vastido dos dramas humanos, massacres e guerras. Uma estimativa das grandes violncias do sculo XX menciona 187 milhes de mortes provocadas por deciso humana, o equivalente a mais de 10% da populao mundial em 1900 (cf. HOBSBAWM, Era dos extremos, p. 21). Outros pensadores reconhecem que, apesar das violncias, o sculo XX foi tambm um perodo de progresso tecnocientfico e de importantes conquistas soc;iais, em que se destacaram, entre outras, a progressiva emancipao feminina. Se no tivesse havido - dizem alguns -, a populao mundial no teria crescido mais de trs vezes durante o sculo XX, pois saltou de, aproximadamente, 1,7 bilho de pessoas em 1900 para cerca de 6 bilhes em 2000.

Respostas filosficasDevido a essas contradies, desenvolveu-se no sculo XX - principalmente a partir de suas ltimas trs dcadas - uma mentalidade menos arrogante quanto aos benefcios infalveis da racionalidade cientfica. Percebeu-se que, destitudas de valores ticos, a cincia e a tecnologia nem sempre contribuem para o desenvolvimento humano. Em certos casos, prestam servio tirania e barbrie. Isso se refletiu na produo das diversas correntes filosficas surgidas nesse perodo, como o existencialismo, a Escola de Frankfurt e o pensamento ps-moderno (que sero estudados neste captulo). Assim, embora j estejamos no sculo XXI, com suas incertezas e contradies, o sculo XX no pode ainda ser fechado para balano. Permanece aberto para quem quiser cornpreend-lo.

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1

Anlise e entendimento1. Explique a caracterizao do sculo XX comouma "era de incertezas". -se no sculo XX - principalmente a partir de suas ltimas trs dcadas - uma mentalidade menos arrogante quanto aos benefcios infalveis da racionalidade cientfica.

2. Comente a seguinte afirmao: desenvolveu-

Conversa filosfica1. Trgico ou maravilhoso?Como voc caracterizaria o sculo XX? O que voc vivenciou de bom e de ruim dessa poca? O que ainda se mantm e o que mudou? Rena-se com colegas para compartilhar impresses e experincias pessoais e debater os pontos polmicos.

EXISTENCIALISMO A aventura e o drama da existnciaO termo existencialismo designa o conjunto de tendncias filosficas que, embora divergentes em vrios aspectos, tm na existncia humana o ponto de partida e o objeto fundamental de reflexes. Por isso, podemos design-Ias mais propriamente como filosofias da existncia, no plural.

Mas o que existir? Se refletirmos sobre o tema, veremos que existir implica a relao do ser humano consigo mesmo, com outros seres humanos, com os objetos culturais e com a natureza. So relaes mltiplas, concretas e dinmicas. E tambm relaes determinadas (aquelas, por exemplo, que resultam de leis da fsica) e indeterminadas (aquelas que resultam da nossa liberdade ou do acaso, sendo passveis ou no de acontecer). Sobre esses temas, os filsofos existencialistas elaboraram diversas interpretaes, cujo denominador comum uma certa viso dramtica da condio

273humana. O filsofo e escritor francs Albert Camus (1913-1960) ilustrava bem essa interpretao quando dizia que a nica questo filosfica sria seria o suicdio. Vejamos algumas concepes caractersticas do existencialismo: ser humano - entendido como uma realidade imperfeita, aberta e inacabada, que foi "lanada" ao mundo e vive sob riscos e ameaas; liberdade humana - no plena, mas condicionada s circunstncias histricas da existncia. Nesse sentido, querer no se identifica com poder. Homens e mulheres agem no mundo superando ou no os obstculos que se lhes apresentam; vida humana - no um caminho seguro em direo ao progresso, ao xito e ao crescimento. Ao contrrio, marca da por situaes de sofrimento, como doena, dor, injustias, luta pela sobrevivncia, fracassos, velhice e morte. Assim, no podemos ignorar o sofrimento humano, a angstia interior, a explorao social. preciso considerar esses aspectos adversos da vida e encar-los de frente.

I

Captulo 16 Filosofia contempornea: pensamento do sculo XX

As filosofias da existncia propriamente ditas surgiram no sculo XX, mas sofreram grande influncia do pensamento de alguns filsofos do perodo anterior, considerados por isso pr-existencialistas. Entre eles destacam-se Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche e Husserl. Como j estudamos os trs primeiros no captulo anterior, veremos em seguida um pouco sobre Husserl. Depois abordaremos dois grandes pensadores do existencialismo: Heidegger (embora este no aceitasse a classificao de filsofo existencialista) e Sartre.

Husserl studou matemtica, mas voltou-se para a filosofia por influncia do filsofo alemo Franz Brentano (1838-1917). Morreu aos 79 anos de idade, proibido de lecionar e perseguido pelos nazistas devido sua origem judaica.

Edmund HusserlEdmund Husserl (1859-1938) nasceu na cidade de Prossnitz, situada na Morvia, regio que pertencia ao imprio austro-hngaro (hoje Repblica Tcheca). Formulou um mtodo de investigao filosfica conhecido como fenomenologia.

Mtodo fenomeno/gicoA fenomenologia surgiu primeiramente na atmosfera rarefeita da matemtica. Depois se desenvolveu na psicologia e na filosofia e acabou desembocando nas preocupaes humanistas dos filsofos

existencialistas contemporneos. Seria, por definio, a cincia dos fenmenos. O que so os fenmenos? A palavra fenmeno vem do grego phaenomenon, que significa "coisa que aparece". Assim, o mtodo fenomenolgico consiste, basicamente, na observao e descrio rigorosa do fenmeno, isto , daquilo que aparece ou se oferece aos sentidos ou conscincia. Dessa maneira, busca-se analisar como se forma, para ns, o campo de nossa experincia, sem que o sujeito oferea resistncia ao fenmeno estudado nem se desvie dele. O sujeito deve, portanto, orientar-se para e pelo fenmeno. Sua conscincia ser sempre a conscincia de alguma coisa. Em resumo, a fenomenologia apresenta-se como a investigao das experincias conscientes (fenmenos), isto , "o mundo da vida" (Lebenswelt, em alemo) como a denomina Husserl. Conforme analisou o filsofo francs Merleau-Ponty; Husserl tentou a reabilitao ontolgica do sensvel. Isso significou, na histria da filosofia, uma volta s prprias coisas, das quais o sujeito tinha se afastado.

Unidade 3 A filosofia na histria

1274nossa existncia porque dela que, primeiramente, temos conscincia. Mas uma filosofia que colocasse apenas o ser humano como centro de preocupao seria antes uma antropologia. Por isso dizia que a questo que o preocupava no era a existncia do ser humano, e sim a questo do ser em seu conjunto e enquanto tal. Essa sua inteno, no entanto, s ficou clara a partir de 1930, quando publicou Da essncia da verdade. Heidegger criticou aquilo que considerava uma confuso entre ente e ser, ocorrida ao longo da histria da filosofia. Para ele, o ente a existncia, a manifestao dos modos de ser. O ser essncia, aquilo que fundamenta e ilumina a existncia ou os modos de ser. A partir dessa diferenciao possvel estabelecer duas fases da filosofia heideggeriana. A primeira caracteriza-se pela busca do conhecimento do ser por meio da anlise do ente humano, da existncia humana. Na segunda, o ente sai do primeiro plano e o prprio ser torna-se a chave para a compreenso da existncia.

Martin Heidegger

Despertar pela angstiaTambm fenomenologista, pensadores fundamentais Heidegger tornou-se do sculo XX. um dos

Nascido em Messkirch, na regio de Baden, Alemanha, Martin Heidegger (1889-1976) desenvolveu sua formao filosfica na Universidade de Freiburg, onde Edmund Husserl era professor. Publicou, em 1927, uma de suas mais importantes obras, Ser e tempo. Com a ascenso de Hitler ao poder, em 1933 afastou-se de seu antigo mestre e amigo Husserl, que era judeu. No muito tempo depois, porm, talvez por tomar conscincia das crescentes atrocidades nazistas, demitiu-se da Universidade de Freiburg, da qual era ento reitor, e isolou-se em sua casa nas montanhas da Floresta Negra, mantendo poucos contatos at sua morte.

Um dos objetivos bsicos de sua obra Ser e tempo investigar o sentido do ser. Para efetuar tal tarefa, Heidegger comeou pela anlise do ser que ns prprios somos. Criando uma terminologia prpria, e por vezes obscura, denominou o modo de ser do ser humano, nossa existncia, com a palavra Dasein, cujo sentido ser-a, estar-a. Analisando a vida humana, o filsofo descreveu trs etapas que marcam a existncia e que, para a maioria dos indivduos, culminam em uma existncia inautntica: fato da existncia - o ser humano "lanado" ao mundo, sem saber por qu. Ao despertar para a conscincia da vida, j est a, sem ter pedido para nascer; desenvolvimento da existncia - o ser humano estabelece relaes com o mundo (ambiente natural e social historicamente situado). Para existir, projeta sua vida e procura agir no campo de suas possibilidades. Move uma busca permanente para realizar aquilo que ainda no . Em outras palavras, existir construir um projeto; destruio do eu - tentando realizar seu projeto, o ser humano sofre a interferncia de uma srie de fatores adversos que o desviam de seu caminho existencial. Trata-se do confronto do eu com os outros, confronto no qual o indivduo

Ente e serRompendo com a tendncia dominante da filosofia moderna, que desde Descartes estava voltada para a teoria do conhecimento, Heidegger retomou a questo da ontologia, a investigao do ser. Para ele, o problema central da filosofia o ser, a existncia de tudo. O filsofo negou que fosse um existencialista. Devemos, segundo afirmava, comear investigando

275comum , geralmente, derrotado. O seu eu destrudo, arruinado, dissolve-se na banalidade do cotidiano, nas preocupaes da massa humana. Em vez de se tornar si-mesmo, torna-se o que os outros so; assim, o eu absorvido no com-a-outro e para-a-outro.

I

Captulo 16 Filosofia contempornea: pensamento do sculo XX

O sentimento profundo que faz o ser humano despertar da existncia inautntica a angstia, pois ela revela o quanto nos dissolvemos em atitudes impessoais, o quanto somos absorvidos pela banalidade do cotidiano, o quanto anulamos nosso eu para inseri-lo, alienadamente: no mundo do outro.

mundo surge diante do homem, aniquilando todas as coisas particulares que o rodeiam e, portanto, apontando para o nada. O homem sente-se, assim, como um ser-para-a-morte. A partir desse estado de angstia, abre-se para o homem, segundo Heidegger, uma alternativa: fugir de novo para o esquecimento de sua dimenso profunda, isto , o ser, e retornar ao cotidiano; ou superar a prpria angstia, manifestando seu poder de transcendncia sobre o mundo e sobre si mesmo. Aqui surge um dos temas-chave de Heidegger: o homem pode transcender, o que significa dizer que o homem est capacitado a atribuir um sentido ao ser. (CHAU, em HEIDEGGER, Conferncias e escritos filosficos, p. 10).

o

A angstia e o nada"A angstia o carter tpico e prprio da vida. A vida angustiosa. E por que angustiosa a vida? A angstia da vida tem duas facetas. De um lado, necessidade de viver, af de viver, anseio de ser, de continuar sendo, para que o futuro seja presente. Mas, de outro lado, esse anseio de ser leva dentro o temor de no ser, o temor de deixar de ser, o temor do nada. Por isso, a vida , de um lado, anseio de ser e, de outro lado, temor do nada. Essa a angstia. Pois o nada amedronta o homem."GARCA MORENTE,

Fundamentos de filosofia, p. 31 I.

CONEXES

1. Observe atentamente o indivduo na imagemao lado e descreva sua postura, sua expresso, seu gesto. Depois recorde experincias de angstia que voc viveu ou presenciou. O que elas tm em comum com a imagem e o que voc descreveu? possvel dizer que a pessoa angustiada est a meio caminho entre o ser e o nada?

Jean-Paul Sartrejean-Paul Sartre (1905-1980), nascido em Paris, Frana, recebeu significativa influncia filosfica de Heidegger. Durante os anos da Segunda Guerra Mundial, participou da luta da resistncia francesa contra o nazismo. Tambm aderiu ao marxismo, considerando-o a filosofia de sua poca, embora, diante da interveno sovitica na Hungria, em 1956, tenha rompido com o Partido Comunista, acusando-o de se desviar do sentido autntico do marxismo.

A angstia a experincia existncia humana.

do tempo, da finitude

da

Unidade 3 A filosofia na histria

1276~ ente para-si. Este se ope ao ente em-si, que repre~ senta a plenitude do ser. O ente para-si o nada. Ou seja, para Sartre, a caracterstica tipicamente huma] na o nada, um "espao aberto". Isso no significa ~ que a totalidade do ser humano - que, por exemplo, inclui seu corpo - seja nada. Esse nada nossa caracterstica tpica, singular, aquilo que faz de ns um ente no esttico, no compacto, acessvel s j possibilidades de mudana.

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