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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM SAÚDE E GESTÃO DO TRABALHO - MESTRADO PROFISSIONAL RODRIGO CECHELERO BAGATELLI INTEGRALIDADE E HISTÓRIA DE VIDA/ORAL: UMA POSSIBILIDADE PARA A COMPREENSÃO DA 'DOENÇA DOS NERVOS' NO PROCESSO SAÚDE/DOENÇA Itajaí / SC - 2011 -

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI

CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM SAÚDE E GESTÃO DO

TRABALHO - MESTRADO PROFISSIONAL

RODRIGO CECHELERO BAGATELLI

INTEGRALIDADE E HISTÓRIA DE VIDA/ORAL: UMA POSSIBILIDADE PARA

A COMPREENSÃO DA 'DOENÇA DOS NERVOS' NO PROCESSO

SAÚDE/DOENÇA

Itajaí / SC

- 2011 -

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RODRIGO CECHELERO BAGATELLI

INTEGRALIDADE E HISTÓRIA DE VIDA/ ORAL: UMA POSSIBILIDADE PARA

A COMPREENSÃO DA 'DOENÇA DOS NERVOS' NO PROCESSO

SAÚDE/DOENÇA

Itajaí / SC

- 2011 -

Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre, pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Saúde e Gestão do Trabalho – Mestrado Profissional em Saúde da Família da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, sob orientação da Profª. Drª Yolanda Flores e Silva.

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B144i Bagatelli, Rodrigo Cechelero Integralidade e história de vida/oral: uma

possibilidade para a compreensão da “doença dos nervos” / Rodrigo Cechelero Bagatelli.__Itajaí: Univali, 2011.

vi, 128 p. : il. Orientadora: Prof. Dr.ª Yolanda Flores e

Silva. Dissertação (mestrado) Universidade do

Vale do Itajaí. 1.Distúrbios nervoso. 2.Intervenção médica.

3.Sofrimento mental. 4. Mulheres –Saúde mental. 5. Violência. 6.Saúde. I. Flores e Silva, Yolanda. II. Título.

CDU 616-01

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Rodrigo Cechelero Bagatelli

Integralidade e História de vida/ oral: uma possibilidade para a compreensão da 'doença dos nervos' no

processo saúde/doença

Aprovado no dia 01 de junho de 2001.

_______________________________

Profª. Drª. Yolanda Flores e Silva

[Presidente e Orientadora]

_______________________________

Prof. Dr. Luiz Roberto Agea Cutolo

[Examinador UNIVALI]

______________________________

Profª. Drª. Eliany Nazaré Oliveira

[Membro Externo – UVA/UFC]

Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Mestre, pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Saúde e Gestão do Trabalho – Mestrado Profissional em Saúde da Família da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho à Deus, o criador

à Jesus Cristo, meu salvador

e ao Espírito Santo, meu guia e inspirador.

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AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer

... Minha esposa Thays pelo apoio constante durante todo o trabalho; seu amor, suas revisões e críticas foram de especial valor para que eu pudesse chegar até

aqui. Sem você eu teria errado o caminho... ... Minha filha Rebeca, que nasceu durante este processo e participou desta história

de vida fazendo com que eu refletisse muitas coisas que sem ser pai eu não teria condições de fazê-lo.

... Ao sujeito deste trabalho (aqui cito como Sandra Mara), que me acolheu sem restrições ao abrir sua história de vida, mesmo sabendo o quanto as lembranças

poderiam doer. ... À minha orientadora Drª. Yolanda, que deixou espaço livre para minha criatividade

e agüentou 04 mudanças de projeto, teve paciência com minhas limitações e persistiu mesmo com tantos problemas de saúde.

... Aos professores do Mestrado: cada um de vocês deixou uma marca em minha formação e espero fazer valer o conhecimento construído neste tempo. Em especial

destaco a professora Elisete e o professor Cutulo pelo apoio e incentivo que foram essenciais nas horas mais difíceis.

... Ao Francisco, companheiro de viagem, pelas conversas que tivemos durante as idas ao Mestrado (6 h por viagem!) de inestimável valor (foram ‘créditos’ do

mestrado à parte que eu ganhei), além da amizade construída neste período. ... À minha mãe, pela revisão do texto, pela confecção da ficha catalográfica e pelo

incentivo tão necessário. ... Ao meu pai, pela acolhida em Itajaí e pelo incentivo ao estudo e à reflexão, uma

herança familiar. ... Aos meus sogros, Geisa e Tibiriçá, que cuidaram da minha família na minha

ausência e na doença da Thays. As madrugadas nas férias de verão em Pontal do Sul – momento em que escrevi a maior parte deste trabalho – só foram possíveis por

causa de vocês. Muito obrigado. ... À Drª. Tânia, minha ‘chefe’ e incentivadora, que leu meu primeiro projeto e fez

muito para que eu pudesse realizar o mestrado. Muito obrigado por ter aberto o caminho para mim e para outros médicos de família e comunidade. Com certeza

você é nossa inspiração. ... À secretaria de saúde de São José dos Pinhais, representada aqui pela Giseli, Dr. Adolfo e Jussara, que gentilmente me acolheram e proporcionaram o campo que eu

precisava para trabalhar. ... e ao chimarrão (especialmente a Tertúlia®), companheiro das madrugadas infinitas que não me deixou dormir até escrever as últimas linhas deste trabalho. Só Deus poderia ter criado uma coisa boa assim...

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BAGATELLI, R. C.; Integralidade e História de Vida/ Oral: uma possibilidade para a compreensão da 'doença dos nervos' no processo saúde/doença. Orientação: Profª. Drª. Yolanda Flores e Silva.

R E S U M O

A subjetividade do processo saúde/doença tem sido amplamente discutida como nó crítico no desenvolvimento de uma atenção qualificada e sensível às especificidades culturais e sociais do adoecimento. A utilização de instrumentos que possam resgatar esta subjetividade fornece substrato para a orientação de atitudes, raciocínios e uso de tecnologias que possam ser adequadas neste sentido. O presente estudo foi construído com a intenção de compreender os fenômenos envolvidos na produção da ‘doença dos nervos’ dentro da proposta da Integralidade usada como perspectiva do processo saúde/ doença. Para isso, fizemos um ensaio sobre a utilização da Integralidade como conceito de saúde/ doença que permite a apreensão da subjetividade da ‘doença dos nervos’. Neste entendimento, realizamos um estudo de caso de uma mulher com ‘doença dos nervos’ que era atendida em uma Unidade de Saúde da Estratégia Saúde da Família. Utilizamos a História de Vida/ Oral como método de pesquisa e analisamos o material através da Análise de Conteúdo Temática. Obtivemos dois temas: “Porque eu tenho uma passado muito difícil, doutor” e “Tudo é sistema nervoso”. Concluímos que a História de Vida/ Oral é uma metodologia de grande poder para acessar a dimensão subjetiva de fenômenos como a ‘doença dos nervos’ e que o processo saúde/doença visto pela perspectiva da Integralidade proposta aqui, é capaz de alcançar a complexidade do sofrimento caracterizado como ‘doença dos nervos’ e fomenta tecnologias que sejam condizentes com o cuidado em saúde. Palavras - chave: Sofrimento Mental; Gênero; Violência; Saúde.

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ABSTRACT

The subjectivity of the health/ sickness process has been widely discussed as a critical issue in the development of a qualified and sensitive attention to specific cultural and social aspects of sickness. The use of instruments that can promote this subjectivity provides guidelines for appropriate attitudes, reasoning and use of technology in achieving this goal. From this perspective, the present study aims to understand the phenomena involved in nervous system diseases under the proposal of Integrality. Thus, the objective behind our search for deeper learning on the issue was to study the life story of a woman suffering from a nervous system disease so as to capture the subjective elements of the phenomena of the health/ sickness process, analyzing her speech to find significant elements in her memory relating to her sickening process and treatments that she has undergone in recent years. This is, therefore, a case study of a woman with a nervous system disease, who was treated in a Health Unit of the Family Health Strategy. We used the Oral History as research method and the material was analyzed using Thematic Content Analysis. The most significant contributions of this work are primarily related to the informant, who was able to reflect on and discuss her problems during her narrative, which caused a substantial improvement in her mind state, drawing attention to the fact that: even after a few months, she remained well without medication. It thus highlighted, from the therapeutic point of view, the importance of Oral History as a tool for mitigating mental health problems. Finally, it is possible to say that the Oral History methodology is a great instrument to access the subjective dimension of phenomena such as nervous system diseases and that the health/ sickness process, seen from the perspective of Integrality herein proposed, is capable of reaching the complexity of health problems resulting from nervous system diseases and promotes technologies that are consistent with health care. Key words: Psychological stress; Gender; Violence; Health

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 9

1. Considerações sobre o tema ............................................................................ 9

2. Pressuposto teórico e objetivo ........................................................................ 14

3. Percurso Metodológico ................................................................................... 14

a. Pesquisa qualitativa .................................................................................... 14

b. Universo da pesquisa e seleção do sujeito ................................................. 15

c. Princípios operativos da pesquisa: a entrevista e a composição do contexto

etnográfico ......................................................................................................... 19

4. Apresentação do conteúdo da dissertação ..................................................... 21

2 CAPÍTULO 01 - INTEGRALIDADE: UMA POSSIBILIDADE PARA A

COMPREENSÃO DA 'DOENÇA DOS NERVOS' NO PROCESSO SAÚDE E

DOENÇA ................................................................................................................... 22

1. Resumo .......................................................................................................... 22

2. Apresentando a ‘doença dos nervos’ ............................................................. 22

3. Concepções de saúde/doença ....................................................................... 28

4. Os movimentos holísticos ............................................................................... 31

5. Os determinantes de saúde ............................................................................ 32

6. A Integralidade como concepção do processo saúde/doença ........................ 37

7. Considerações finais ...................................................................................... 40

3 CAPÍTULO 02 - HISTÓRIA DE VIDA/ORAL E AS CONTRIBUIÇÕES

METODOLÓGICAS PARA A COMPREENSÃO DA 'DOENÇA DOS NERVOS' ....... 42

1. Resumo .......................................................................................................... 42

2. A ‘doença dos nervos’: algumas reflexões ..................................................... 42

3. A construção de um percurso metodológico individual: etapas e

procedimentos ....................................................................................................... 44

a. A História de Vida/Oral como metodologia para apreensão da

intersubjetividade ............................................................................................... 44

b. Análise de Conteúdo Temática ................................................................... 45

c. Percurso metodológico ............................................................................... 46

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4. Resultados ...................................................................................................... 48

a. Tema 01 - “Porque eu tenho um passado muito difícil doutor.” .................. 48

b. Tema 02 - “Tudo é sistema nervoso” .......................................................... 59

5. Discussão ....................................................................................................... 63

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 69

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 74

APÊNDICE A ............................................................................................................. 82

APÊNDICE B ............................................................................................................. 84

APÊNDICE C ............................................................................................................ 85

ANEXO 01 ............................................................................................................... 126

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1 INTRODUÇÃO

1. Considerações sobre o tema

Adoecer é uma realidade da vida. Esta simples constatação já introduz a

importância de se compreender o processo saúde/doença em sua complexidade.

Filósofos, historiadores, sociólogos e antropólogos se debruçam sobre o tema,

procurando entender a relação deste fenômeno com as construções pessoais e a

cultura.

Vivenciar uma experiência de enfermidade pode representar uma crise de

valores e conceitos. Médicos que sofreram doenças incapacitantes mudaram sua

forma de enxergar o ‘outro’ (MCWHINNEY; FREEMAN, 2010). Nesse processo, a

certeza da técnica é substituída pela incerteza do sofrimento, da dor e da restrição.

A importância que é tradicionalmente dada para alguns aspectos da abordagem da

doença, como o diagnóstico ou outros elementos da clínica, é relativizada por

valores que consideram a pessoa que sofre, com seus sentimentos, impressões e

questionamentos sobre o fato. Este fato possui dimensões que são as mesmas da

existência humana, que pode ser entendida qualitativamente em aspectos

objetivos e subjetivos.

Em relação à objetividade deste processo, parece que não há muita

discussão. As provas materiais produzidas pelas ciências naturais com o que é

sensível aos cinco sentidos acabam por satisfazer em grande parte os

questionamentos sobre esta dimensão. Ao examinar um micróbio sob a lente de

um microscópio ao comprovar o seu efeito como agente patogênico de uma

doença e se alcançar alguma eficácia com os tratamentos instituídos pelo modelo

teórico construído, pode ser que as outras causas relacionadas a esta doença

sejam consideradas de menor importância.

Na dimensão subjetiva já não se tem a mesma vantagem. Como avaliar o

pensamento e o sentimento? Pela filosofia e pela arte? E as relações de poder, os

dilemas da existência, as diferentes formas de se compreender o mundo, a cultura

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e a espiritualidade? Os métodos científicos dedutivo-analíticos parecem se calar

diante de tamanha complexidade.

Nesse sentido, em tempos de pós-modernidade (MORRIS, 2000), as

questões colocadas acima se encaixam perfeitamente com as ansiedades de um

mundo em que os limites já não são mais tão bem definidos. Assim, a construção

de conceitos que exigem um movimento interdisciplinar (SAUPE; WENDHAUSEN,

2007) começa a se fazer necessária. Como exemplo, as verdades constituídas na

antropologia dialogam com as da física, da psicologia, da sociologia e com as da

medicina, tentando completar os hiatos que cada uma acaba por criar em seu

próprio Estilo de Pensamento (CUTOLO, 2007).

Este movimento interdisciplinar não é hegemônico. Em grande parte causada

pelo modo de produção do sistema capitalista, a medicina ocidental incorporou

elementos próprios da cultura e articulou as necessidades em saúde como

mercadoria, reificando o processo saúde/doença, separando-o da pessoa e

preocupando-se mais com a dimensão objetiva. O investimento do Complexo

Médico-Industrial em avanços tecnológicos e a formação acadêmica na Saúde

acaba por defender necessidades mercantilistas e auxiliaram na conformação de

sistemas de saúde que mantiveram e muitas vezes estimularam a iniquidade social

(KOIFMAN, 2001).

Percebe-se então, que discutir o processo saúde/doença é mais do que um

cuidado epistemológico: é um princípio que construído socialmente, reflete as

forças que atuam em determinado momento (histórico, político e econômico) nas

ações em saúde. Logo, o estudo sobre este fenômeno é também um ato político

(COELHO; ALMEIDA FILHO 2002).

Adoecer é mais do que um fato lógico, linear e matemático. Entre a ‘saúde’ e

a ‘doença’ existe toda uma rede de elementos que tencionam para uma direção ou

outra. O uso da palavra ‘processo’ anuncia a participação de outros elementos, que

dependendo da orientação teórica seguida, darão ênfase a uma ou outra realidade

da vida.

Nos serviços de atenção a saúde, o cuidado tem sido muitas vezes

desvalorizado (MATTOS, 2001; 2006; CECÍLIO; PUCCINI, 2004; PINHEIRO;

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VALLA, 2006) e o que é pior: trocado pelo desrespeito; Boff (2001) denomina isto

de ação negligente, descuidada, que foge ao direito de todas as pessoas

receberem um cuidado ético, respeitoso e tolerante às suas limitações e

fragilidades. A ‘doença dos nervos’ é um caso típico desta discussão.

Numa formação médica tradicional, os elementos que se destacam na busca

por conhecimento são aqueles que nos levam às certezas ou ao diagnóstico

correto. Num ato quase espiritual, ao nominar algo se têm a impressão de um

poder sobre este ‘algo’. Este poder está relacionado ao conhecimento. Enquanto

este ‘algo’ não é conhecido, ele representa um desafio a ser vencido. Então há a

necessidade de se investir todo o repertório tecnológico-científico disponível:

realizar um exame clínico completo e solicitar exames complementares. Este

último recebe especial atenção por fornecer a ‘prova cabal’ da existência da

entidade provocadora da perturbação.

Esta materialidade que pode ser teoricamente alcançada pelos exames

complementares, tem levado ao exagero na solicitação de exames, demanda

provocada tanto por médicos como por pacientes (CHEHUEN NETO, 2007). A

confiança da relação entre médicos e pacientes baseada no uso de tecnologias

duras (MERHY, 1998), leva a um distanciamento dos sujeitos e implica em

modelos de atenção incompetentes do ponto de vista técnico e afetivo. Do ponto

de vista técnico, porque o método clínico que se baseia na condição descrita

(referimo-nos ao modelo biomédico) leva muitas vezes a erros diagnósticos e

abordagens equivocadas. E do ponto de vista afetivo, porque o não

estabelecimento de vínculo entre o terapeuta e o sujeito diminui a eficácia dos

tratamentos por má-aderência, perda de seguimento e insatisfação da pessoa

atendida (MACWHINNEY; FREEMAN, 2010).

Considerando todo esse contexto, percebemos que a ‘doença dos nervos’

não possui um exame complementar para confirmação do diagnóstico. Nem existe

este diagnóstico nos livros de medicina tradicional. O que temos é uma construção

lingüística das camadas populares assimilada por pesquisadores das Ciências

Sociais e mais especificamente da Antropologia, para apresentar um fenômeno

comum em mulheres mostrando que algo de errado está ocorrendo em sua vida.

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Um termo que diz muito para a mulher e sua família, mas pouco compreendido

pela racionalidade médica.

Na minha vivência acadêmica e profissional como médico, o tema ‘nervos’

sempre esteve à minha volta e em minhas considerações. Ele apareceu sob vários

nomes: crise conversiva, distúrbio somatoforme, piti, histeria, DNV, o que muitas

vezes me fez refletir o quanto estas ‘desclassificações’ (BOURDIEU, 2007)

distanciavam os profissionais que prestavam atendimento do sujeito que sofria.

Algumas vezes presenciei este preconceito na voz de outros profissionais de

saúde que não eram médicos. Este preconceito parecia expor, entre outras coisas,

uma incompreensão em relação aos aspectos não biomédicos.

A atuação médica pautada por esse exemplo, muitas vezes é aprendida nos

ambientes acadêmicos fora da sala de aula: nos plantões e nos estágios

principalmente. Na graduação, foi possível perceber uma espécie de ‘currículo

oculto’. Este currículo não oficial, sem grade curricular ou manual explicativo,

orientava e era determinante na elaboração de uma ‘lista negra’ de pacientes

considerados inoportunos e sem diagnóstico que justificasse sua presença na

unidade de saúde. A orientação recebida era de oferecer algo rápido e paliativo e

que a partir dessa conduta ou ‘atendimento’ se tentasse ‘despachar’ esse paciente

para sua casa / família o mais rápido possível. Isto não ocorria com todos os

profissionais, mas permitia abusos de poder e desqualificações no serviço.

Situações apresentadas como ‘crise histérica’, por exemplo, viravam motivo

de piadas ou comentários desrespeitosos. A ausência de um substrato

fisiopatológico dentro da racionalidade médica, aliada à perda da dimensão

subjetiva do atendente levava a uma não-legitimação do sofrimento,

desencadeando atitudes que eram reproduzidas não somente pelo atendente, mas

por toda a equipe. Certamente nem todos se permitiam seguir este currículo,

entretanto, poucos eram os médicos que se solidarizavam com pessoas com esse

tipo de sofrimento psíquico.

Na minha experiência, como Médico de Família e Comunidade trabalhando

em Unidades da Estratégia Saúde da Família, foi comum encontrar mulheres que

se queixavam da ‘doença dos nervos’. Era visível que essas mulheres tinham um

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passado de muito sofrimento, de problemas sociais e relacionais, em alguns casos

associado inclusive a violência sexual. Esta última, em algumas ocasiões era

relatada após o desabafo de ter guardado este trauma por anos sem conseguir

expô-lo aos que lhe prestavam atendimento. Muitas destas mulheres estavam

cansadas e sem esperança e os medicamentos prescritos infelizmente pareciam

resolver apenas parte do problema.

Nestes momentos conhecer a história da vida da pessoa ajudava a entender

melhor o problema. Se não houvesse uma preocupação com isto, dificilmente estas

violências seriam expostas e não haveria uma ampliação do cuidado. Esta

percepção também contribuiu para que escolhêssemos para este trabalho uma

metodologia que favorecesse acessar esta realidade: a História de Vida/Oral.

Apesar das notícias sobre prováveis mudanças nos manuais de diagnósticos

em saúde mental como a edição da 5ª versão do Manual Diagnóstico e Estatístico

de Transtornos Mentais - DSM (APA, 2011), a dimensão cultural dos transtornos

mentais ainda parece ser pouco discutida nos ambientes acadêmicos tradicionais

da saúde e muitos dilemas, principalmente relacionados com a medicalização da

saúde mental vão permanecendo.

Na antiguidade, era prática corrente realizar a retirada cirúrgica do útero da

mulher que sofria de ‘histeria’ (VIEIRA, 2002). A concepção de saúde/doença da

época fundamentava este tipo de intervenção. Segundo Helman (2008), o

desconhecimento dos processos culturais que envolvem as mulheres pode levar a

erros de interpretação dos médicos e aumentam a chance de prescrição de

medicamentos desnecessários (principalmente drogas psicotrópicas). Partindo

desses argumentos, um questionamento nos vem sobre a forma como assistimos

as mulheres com ‘doença dos nervos’: será que não estamos propondo uma

‘histerectomia’ do sofrimento, realizando recortes técnicos da expressão de

sofrimento destas mulheres e lhes propondo terapias que não são sensíveis e nem

eficazes à realidade apresentada?

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2. Pressuposto teórico e objetivo

Considerando o contexto apresentado e avaliando que ele é bastante atual, a

problemática da pesquisa que nos levou a este trabalho partiu do pressuposto de

que: “o modelo biomédico e as concepções científicas de saúde/doença que

são enunciadas para profissionais da saúde [e mais especificamente o

médico], não são capazes de alcançar satisfatoriamente a complexidade do

fenômeno ‘doença dos nervos’. Nesse sentido, consideramos necessário um

diálogo interdisciplinar para apreender e compreender a dimensão subjetiva

da ‘doença dos nervos’ no viver cotidiano das mulheres”.

Para a confirmação desse pressuposto, o ideal seria que pudéssemos ter

contato e muitos diálogos com várias mulheres que pudessem nos relatar suas

histórias e seus sofrimentos. Mas, levando em conta nosso tempo para realização

desse estudo e a necessidade de um aprofundamento teórico – científico

decidimos por uma pesquisa direcionada a um único caso. Desta maneira, o

objetivo que norteou nossa busca por um maior aprendizado sobre a questão, foi o

de “analisar a história de vida de uma mulher com a ‘doença dos nervos’ para

apreender os elementos subjetivos do fenômeno no processo saúde/doença,

verificando no discurso da mesma quais os elementos destacados nas suas

lembranças sobre seu processo de adoecimento e os tratamentos a que se

submeteu nos últimos anos”.

3. Percurso Metodológico

a. Pesquisa qualitativa

As contradições geradas pelo cientificismo positivista dos últimos séculos

geraram um movimento de resgate por uma ciência comprometida com a

subjetividade dos indivíduos e com o equilíbrio na produção e uso do

conhecimento. A pesquisa quantitativa trouxe incontáveis avanços para a ciência e

é o ‘carro-chefe’ ainda da produção do conhecimento do mundo moderno. Porém,

com o desenvolvimento das ciências humanas houve um avanço no

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questionamento das ‘verdades’ científicas e de como estas seriam usadas para

normatizar a sociedade.

Segundo Muraro (2001, p.9) “a estatística dá uma visão distorcida e

homogeiniziante da realidade”. Este aspecto não retira o valor da metodologia

quantitativa, contudo, faz-nos repensar se esta é única forma de se trabalhar em

pesquisa. Devemos à abordagem qualitativa o resgate da subjetividade na

produção do conhecimento e a possibilidade de explorarmos assuntos que outrora

na tradição positivista não seriam relevantes.

O relacionamento médico-paciente (assim como o dos outros profissionais

de saúde) é uma atividade eminentemente social e carregada de sentidos, como

relata Kleinman, Eisenberg e Good (1978).

Seguindo este entendimento, entende-se que a proposta de compreender

um elemento social é eminentemente subjetiva, imensurável em números, mas

compreendida através da linguagem. Neste sentido, o resgate da linguagem ou do

discurso como objeto de estudo fica extremamente interessante ao pesquisador.

Procura-se, no entanto, avançar no desafio de traduzir a realidade falada

através de uma metodologia científica que possa produzir conhecimento relevante

e sensível de realidades socialmente construídas através da análise do discurso. O

sujeito é a pessoa, o objeto a linguagem e o pesquisador é o interlocutor.

Todos estes elementos são entendidos dentro do seu contexto e das suas

limitações (sociais, político-históricas, econômicas e culturais) e o produto desta

relação é o material que analisado cientificamente contribui para a construção do

conhecimento.

b. Universo da pesquisa e seleção do sujeito

O município que realizamos a pesquisa é uma das maiores cidades da macro-

região de Curitiba, tendo 263.468 habitantes, com um pouco mais de 10% da

população vivendo na área rural. São José dos Pinhais é uma região em pleno

desenvolvimento populacional que teve um acréscimo de 50 mil habitantes em 10

anos e é destaque na economia por ser um dos mais importantes pólos automotivos

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do país. Sedia também o Aeroporto Internacional Afonso Pena (IBGE, 2010;

PREFEITURA MUNICIPAL..., 2011).

Na formação da cidade houve a participação de várias etnias, dentre as que

ainda têm colônias ali se destacam a polonesa, italiana e ucraniana, entre outras.

Todas elas imprimem sobre a região os traços da sua cultura, como é o caso da

tradicional Festa do Vinho comemorada anualmente. Apesar disso, o crescimento

urbano acelerado devido à imigração de mão-de-obra atraída pelas montadoras de

carros e pela proximidade com Curitiba, mudou um pouco esta característica,

passando a ser considerada como ‘cidade-dormitório’ e os traços culturais das

colônias são menos salientes nestas áreas, pois se tratam de regiões mais novas.

O município de São José dos Pinhais está dividido em 06 regionais de saúde.

O número de habitantes e a extensão geográfica obedecem à lógica demográfica /

geográfica, pois existem áreas urbanas muito densas e que geograficamente são

menores do que as rurais. A regional em que a pesquisa foi realizada contém 06

Unidades de Saúde da Estratégia Saúde da Família. Elas recebem atualmente o

apoio Matricial de um psiquiatra, um ginecologista/obstetra e três psicólogos. Este

matriciamento possibilita uma educação permanente dos profissionais que atendem

na Atenção Primária além de uma discussão de todos os casos e uma co –

responsabilidade de todos esses profissionais com a atenção no local.

O apoio matricial é o resultado da implantação do Plano Municipal de Saúde

(SÃO JOSÉ DOS PINHAIS, 2010) que prevê além de outras mudanças, a ampliação

da rede de assistência na saúde mental do município, com a implantação de mais

unidades de CAPS (Centro de Atenção Psico Social), unidades de CAPS- AD

(Centro de Atenção Psico Social de álcool e drogas) adequando a rede de

assistência aos princípios da Reforma Psiquiátrica.

A nossa pesquisa foi direcionada por orientação da Secretaria de Saúde para

uma das 06 regionais. Meu ‘contato’ foi com uma psicóloga da regional que estava

trabalhando com a população daquele local, prestando o apoio matricial e iniciando

atividades naquela unidade com grupos terapêuticos. Este é um dos reflexos da

mudança do modelo tradicional da assistência à saúde mental em nosso país,

segundo o modelo pregado pela Reforma Psiquiátrica (BRASIL, 2005): a

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descentralização do cuidado com ênfase na comunidade e a adoção de políticas não

hospitalocêntricas.

Após discutir com meu ‘contato’ nosso foco de interesse e quais os critérios

de inclusão/exclusão, ela prontamente citou o nome de uma informante [denominada

de agora em diante de S. M., que não corresponde às iniciais verdadeiras do nome

dela] e de outras duas mulheres que eram conhecidas como pessoas com ‘doença

dos nervos’. O caso da S. M. apresentava desafios para toda a equipe: a ansiedade

em ter um atendimento psiquiátrico a fim de garantir a prescrição de medicamentos

que usou quando ainda tinha direito ao plano de saúde do marido e alguns episódios

de ‘crises de nervos’ ocorridos durante sua ida a Unidade de Saúde estavam

causando certo transtorno para a equipe em relação ao manejo dos problemas

apresentados por ela.

Como S. M. se encaixava nos critérios de inclusão/exclusão definidos

inicialmente na proposta, decidimos que ela poderia fazer parte do estudo. Em

nossos critérios era importante que: a mulher tivesse no mínimo 30 anos e alguma

experiência em algumas fases do ciclo de vida; não fosse portadora de doenças

psiquiátricas e/ ou neurológicas que prejudiquem o juízo de realidade e/ ou discurso,

como esquizofrenia, retardo mental, depressão psicótica e outras doenças

incapacitantes; não apresentasse epilepsia ou transtorno neurológico documentado

que justificasse os sintomas da 'doença dos nervos'; ter história de 'doença dos

nervos', que no linguajar médico é entendida dentro dos transtornos conversivos

e/ou somatoformes (CID-10); aceitasse os termos da pesquisa e assinasse o termo

de consentimento livre e esclarecido (Apêndice A).

Importante também foi saber que a equipe da unidade de saúde em que

realizamos o estudo, não apenas aceitou que lá estivéssemos como também

contribuiu e facilitou nosso contato com S. M. A Unidade de Saúde que realizamos a

pesquisa pertence à Estratégia Saúde da Família (ESF). Conta com 04 equipes, que

recebem o apoio de outros profissionais no matriciamento e possuem como

referência o Hospital da cidade São José, uma maternidade que atende toda a

cidade, um CAPS (Centro de Atenção Psico Social), um CAPS A-D (Centro de

Atenção Psico Social de Álcool e Drogas) e CAPSi (Centro de Atenção Psico Social

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Infantil), a coordenação da Regional, unidades de referência para atenção

secundária e uma unidade pré-hospitalar.

Percebemos que estão ocorrendo mudanças importantes no sistema de

saúde público do município. Desde as primeiras visitas e os primeiros contatos com

os profissionais da gestão/assistência, foi possível notar um clima de euforia e

aceitação positiva com a filosofia da Atenção Primária à Saúde, da Estratégia Saúde

da Família e da Reforma Psiquiátrica. Essa percepção ocorreu no contato com as

pessoas da equipe e também ao ler o Plano Municipal de Saúde.

Porém, a lotação de profissionais para compor o quadro necessário para

implementação destas políticas é um desafio neste período de implantação de

algumas políticas. Outro problema é que os profissionais concursados que já estão

lotados nem sempre têm uma formação voltada para estes modelos de atenção.

Existe na prática uma luta para que a mudança aconteça: a dificuldade dos

profissionais de saúde e da população em entender as propostas não-

medicalizadoras que foram construídas na Reforma Psiquiátrica. Atividades de

grupo, uso de técnicas que usam as artes para auxiliar na recuperação de

problemas mentais e a ligação com outros equipamentos como os CRAS (Centro de

Regional de Assistência Social) estão em fase de implementação no município e já

começam a demonstrar bons resultados, mas em certa medida ainda são vistos com

desconfiança pelos profissionais de saúde formatados dentro do modelo biomédico

e pela população medicalizada.

Nossa pesquisa pode ser vista como um destes bons resultados. Não que

naquele momento eu fosse como médico, suprir as necessidades de consultas com

psiquiatra (que depois ela conseguiu através do apoio matricial), mas a possibilidade

de uma experiência de pesquisa-ação, estabelecendo um diálogo entre a academia

(pesquisador) e a assistência (psicóloga) para uma compreensão mais profunda do

problema de S. M. que pode ser a figura chave de futuras propostas de trabalhos

terapêuticos que associem as consultas a História de Vida das pessoas.

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c. Princípios operativos da pesquisa: a entrevista e a composição do

contexto etnográfico

Com base em Minayo (2008) e Meihy e Holanda (2007), desenvolvemos

alguns princípios para fundamentar a coleta e análise dos dados do nosso estudo.

Optamos por trabalhar com a História de Vida/Oral de uma mulher com 'doença dos

nervos' porque a subjetividade desse processo e a singularidade do mesmo, a nosso

ver, não possuem pretensões a uma validade externa ou generalizações.

Neste sentido nos aproximamos de uma vertente da História de Vida que se

projeta como disciplina e dá lugar à “voz dos excluídos” (MEIHY; HOLANDA, 2007,

p.79). Entendemos que para o médico ou outro profissional da saúde, ouvir uma

pessoa com uma enfermidade desprezada na racionalidade médica em seus

aspectos subjetivos, é importante para entender essa condição enquanto

enfermidade não oficial. Ao mesmo tempo é um movimento interessante de

valorização do discurso da pessoa em sofrimento.

Quando fizemos a entrevista inicial, esta foi aberta e não diretiva. Em parte

isto foi conseguido pela postura durante a gravação e pela pactuação, antes da

gravação, de que ela poderia falar o que quisesse, não existindo um ‘certo’ ou

errado e que na posição de pesquisador, seria muito importante saber a visão dela

sobre seus problemas.

No início houve certa apreensão sobre o que falar [‘falar o quê? ’]. Por isso se

fez necessário iniciar a entrevista com uma pergunta: ‘você já teve problema de

nervos?’. Esta pergunta é um exemplo de que a entrevista também é dialógica e tem

a condução do pesquisador, o que reflete a sua preocupação com o tema. Esta

postura de não-neutralidade é amparada pela História de Vida/Oral, ou seja, a

condição de interlocutor é aceita, é esperada e discutida dentro do processo de

produção do conhecimento (MEIHY; HOLANDA, 2007).

A condução do diálogo foi reflexiva, buscando entender as relações dos fatos

e sentimentos narrados com o tema da pesquisa. O número de encontros com S. M.

foi determinado pelo critério de saturação da informação (MINAYO, 2008). Esta

saturação foi percebida quando os assuntos pareciam se repetir nas narrativas e as

perguntas começaram a serem respondidas com poucas palavras ou até mesmo, na

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expressão de pistas não-verbais de que o assunto já estava esgotado para o

momento.

As entrevistas foram gravadas em um gravador de áudio digital e foram

transcritas segundo a técnica da História Vida/Oral descrita por Meihy e Holanda

(2007). Neste momento, a simples transcrição é realizada sem análise, apenas

busca-se uma fidelidade ao que foram enunciados pela informante S. M. e

interlocutor, registrando palavras, expressões verbais, silêncios, pausas e qualquer

ruído ou interferência externa que possa fornecer informações do ambiente em que

foi enunciado.

As gravações foram feitas em um consultório da Unidade de Saúde da área

de abrangência em que S. M. é atendida. Preferimos este local pela privacidade que

ele fornecia, pois em casa o marido e os filhos poderiam interromper ou influenciar

naquilo que ela gostaria de falar. Isto pode ter reforçado a minha condição de

médico/interlocutor, mas com o desenvolvimento de maior intimidade, notei que nos

últimos encontros eu era visto mais como ‘amigo’.

Para a análise dos dados, seguimos a orientação de Minayo (2008) e

realizamos uma leitura flutuante do material, com vistas ao reconhecimento e

familiarização ao texto, que é a Fase Pré-Analítica. Para seguir em frente,

respondemos a 03 perguntas: O texto contém as informações pertinentes ao tema?

Ele esgota satisfatoriamente o assunto? Ele é adequado para responder os

objetivos da pesquisa?

Aqui, percebemos a necessidade de aprofundar nossa capacidade de

percepção da realidade da S. M. e fizemos uma visita a sua residência e fomos a

um culto religioso no qual ela participa. De forma bastante sintética, consideramos

esse momento o que serviu como aporte para a nossa percepção etnográfica de

seu cotidiano e de sua história.

A próxima fase foi à exploração do material (MINAYO, 2008). Após a leitura

exaustiva do texto transcrito da entrevista, passamos a uma fase classificatória que

intenta categorizar as idéias que perpassam a fala. Para auxiliar esta fase, se usou

a técnica de Transcriação da História de Vida/Oral (MEIHY; HOLANDA, 2007).

Esta técnica possibilita a realização de um exercício hermenêutico para entender o

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texto pelo texto e ao mesmo tempo é um elemento fundamental na composição

das categorias discursivas.

Estas categorias refletem um conceito maior, diretivo, que organiza o

sentido do texto. A partir das mesmas, buscam-se as “palavras-chave” ou unidades

de registro que podem ser expressões, termos, frases ou palavras que remetem a

este conceito. Escolhidas as categorias, buscamos analisar o sentido do texto

exposto. As categorias definidas / escolhidas foram:

“Porque eu tenho um passado muito difícil doutor”

“Tudo é sistema nervoso”.

Tradicionalmente a freqüência de aparecimento de uma Unidade de Registro

dá a tendência da fala de um sujeito e é analisada estatisticamente. Como o

objetivo deste trabalho é reconhecer a diversidade de fatores envolvidos no

adoecimento, os dados foram apresentados em porcentagem simples apenas para

verificação, sem a intenção quantitativa de se estabelecer um sentido do texto.

Procuramos também ultrapassar a dicotomia Análise de Conteúdo X Análise do

Discurso. Para a interpretação foi feito num exercício dialógico de contextualização

dos elementos reconhecidos no discurso e separados em categorias que refletem a

percepção do estudo.

4. Apresentação do conteúdo da dissertação

Esta dissertação foi construída com dois artigos: um ensaio sobre a utilização

da Integralidade como princípio do processo saúde/doença tomando-se por

referência a ‘doença dos nervos’ e outro, um relato de experiência na construção da

História de Vida/Oral como forma de se apreender a dimensão subjetiva desta

enfermidade.

Ao final fazemos uma reflexão sobre os elementos encontrados e procuramos

dialogar com os instrumentos / filosofias de atenção à saúde na Medicina de Família

e Comunidade.

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2 CAPÍTULO 01 - INTEGRALIDADE: UMA POSSIBILIDADE PARA A COMPREENSÃO DA 'DOENÇA DOS NERVOS' NO PROCESSO SAÚDE E DOENÇA

1. Resumo

Este artigo é o resultado de uma reflexão sobre os conceitos de saúde/doença da 'doença dos nervos' e uma proposta de compreensão no contexto da Integralidade. Foi feita uma revisão das principais obras brasileiras que tratam do assunto 'doença dos nervos', com algumas contribuições de artigos internacionais e também sobre modelos de saúde/doença disponíveis, com o intuito de verificar as perspectivas mais atuais de saúde/doença. Ao final do artigo comentamos sobre os caminhos possíveis e apresentamos uma proposta dentro do princípio da Integralidade para apreensão do fenômeno saúde/doença.

Palavras – chaves: Doença dos Nervos; Processo Saúde/Doença; Integralidade.

2. Apresentando a ‘doença dos nervos’

A 'doença dos nervos' é um termo cunhado na Antropologia Médica brasileira

por pesquisadores que se propuseram a compreender este fenômeno encontrado

nas classes populares. É também considerado como polissêmico, por possuir

diferentes sentidos e representações, dependendo da região em que se inscreve.

Seus diferentes correlatos podem ser encontrados no Brasil como: "nervos",

"nelvos", "crise de nervos", "sistema nervoso", "crise nervosa", dentre outros

(DUARTE, 1986, HITA, 1998; MEDEIROS; TRAVERSO-YÉPEZ, 2004; SILVEIRA,

2000).

Na literatura internacional temos o nervios na Costa Rica e nevra entre

imigrantes gregos em Montreal/ Canadá, que apesar da semelhança entre os

sintomas, possuem diferentes significados (HELMAN, 2008; SILVEIRA, 2000).

No âmbito da Saúde podem-se encontrar diversas nomenclaturas, algumas

oficiais como o Transtorno Dissociativo/ Somatoforme no CID 10 (OMS, 1983) e

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DSM IV (APA, 1995) e outras não oficiais. A histeria, por exemplo, é o conceito mais

antigo do fenômeno, datado da época de Hipócrates (400 a. C.) e foi sendo

abandonado no século XIII pelas teorias de Charcot, Pierre Janet e Freud que

"separaram a histeria do útero" e atribuíram ao fenômeno um substrato neurológico

e psicanalítico (MATOS et al, 2005). A neurose histérica foi o termo utilizado por

Freud e que perdurou até a hegemonia da Psiquiatria e Psicologia modernas.

O DNV (distúrbio neuro-vegetativo) não é um termo técnico na medicina e é

utilizado na maioria das vezes com conotação de fundo moral ou, como atualmente

na histeria, sexista. Ainda outros termos são utilizados de forma pejorativa para

nominar a pessoa com este problema de saúde como poliqueixoso, somatizador,

psicossomático, funcional, psicofuncional ou pitiático (FONSECA; GUIMARÃES;

VASCONCELOS, 2008; MATOS et al, 2005; OKUN, 2003; VEITH, 1966).

O uso dos termos acima é denominado por Bourdieu (2007) de

‘desclassificação’ das falas e discursos de leigos, algo que para esse autor nasce

dos condicionamentos sociais construídos que podem se apresentar como algo

relacionado à classe social, às lutas por poder, às deformações e discriminações

de gênero e às representações de ordem moral e de julgamento.

O descompasso desta manifestação de sofrimento em contraste com a

racionalidade médica vigente levou alguns estudiosos, principalmente da área da

antropologia, a pesquisar sobre este fenômeno. Os primeiros trabalhos sobre o tema

apareceram na década de 70 e 80 e foram inspirados pela etno-psiquiatria e pela

psiquiatria transcultural.

Duarte (1986) descreve historicamente a ‘desfisicalização’ (perda da

corporalidade) do ‘nervoso’ através de 03 configurações: a melancolia, o ‘nervoso’ e

a psicológica. A melancolia, oriunda da tradição hipocrática, representava uma

concepção físico-moral do fenômeno. Não havia distinção entre subjetividade e

fisicalidade, que eram mantidas num plano relacional. Já na configuração ‘nervoso’ o

olhar era fisiológico, construído pelas teorias da comunicação interna no corpo

através de humores, espíritos, fibras e eletricidade (algo próximo das teorias

miasmáticas) o qual explicava desta forma como os sintomas aconteciam na pessoa

enferma. A configuração psicológica é estabelecida, segundo o autor, na teoria de

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Freud, que passa a descrever o ‘nervoso’ na forma de histeria e em termos

fisiopatológicos mentais, se caracterizando como ‘desfisicalização’.

Em sua etnografia, Duarte (1986) fez um estudo profundo da percepção do

que as classes trabalhadoras denominavam ‘nervoso’ e os dividiu em três temas

principais: perspectiva intrapessoal (“nódulos”), interpessoal (“planos”) e na

construção diferencial de pessoa (“prismas”). Estes temas englobam um amplo

espectro que tendem ao sentido físico (obstrução da menstruação, masturbação,

sensibilidade pessoal, vermes, pancadas na cabeça, poluição) e ao moral

(possessão demoníaca/encosto e outras causas religiosas, problemas de caráter/

maldade, modo de produção e condições de trabalho, loucura, violência doméstica,

problemas de relacionamento).

A divisão em categorias temáticas serviu ao propósito do desenvolvimento da

teoria da perturbação físico-moral que Duarte (1986; 1994) defende. Nesta

concepção, o ‘nervoso’ é uma perturbação físico-moral, uma categoria fluída entre

os planos físico e moral. O exemplo: as “pancadas na cabeça” citadas acima, podem

atribuir uma certa fisicalidade à doença, porém a relação com violência doméstica

leva a uma questão eminentemente moral. Da mesma forma, a obstrução da

menstruação (menopausa na linguagem médica), pode ser vista como física – o

sangue sobe para a cabeça-, porém é despontada uma questão de gênero pela

perda da capacidade reprodutiva ou do papel social de ser mulher, reforçando o

caráter relacional entre estas duas dimensões (físico-moral).

Em outro trabalho, este autor responsabiliza a resistência à concepção

moderna de pessoa individualizada nas classes populares que manteve a utilização

deste código “puro”, não afetado pela psicologização e pelo cientificismo da cultura

ocidental (DUARTE, 1994).

Outros estudos etnográficos e narrativos (RABELO; ALVES; SOUZA, 1999;

HITA, 1998; MEDEIROS, TRAVERZO-YEPÉZ, 2004; SILVEIRA, 2000) corroboram

os achados de Duarte e levantam questões sociais, de gênero, problemas de

relacionamento familiar e violências.

A questão de gênero é flagrante na ‘doença dos nervos’. A atribuição do papel

social das mulheres em relação ao cuidado dos familiares, as limitações da vida

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privada (em contraste com a vida pública dos homens), o papel mais relacional que

lhe é atribuído e atualmente a sobreposição de papéis com a participação na vida

pública, são apontados como fatores importantes na maior prevalência de casos em

mulheres (DUARTE, 1986; LUDERMIR, 2000; SILVEIRA, 2000).

Pobreza, baixa escolaridade, exclusão do mercado formal de trabalho

(LUDERMIR; MELO FILHO, 2002), violência física, psicológica e sexual (RUIZ-

PEREZ; PLAZAOLA-CASTAÑO, 2005), falta de apoio social (COSTA; LUDERMIR,

2005) e desigualdades no mercado de trabalho são apontados pelas mulheres como

importantes fatores de relevância para o adoecimento mental (LUDERMIR, 2008), e

neste sentido também para a ‘doença dos nervos’. Outro fator apontado pelas

mulheres é a culpa pelo abandono dos seus papéis sociais em função de assumir a

vida pública, que nem sempre oferece uma situação favorável de condições de

trabalho (SILVEIRA, 2000).

Uma importante discussão é levantada por Alves (1993) sobre a concepção

de saúde/doença dentro da perspectiva antropológica. A doença é entendida por ele

como ‘experiência de enfermidade’, que é a sensação de que algo não vai bem

(‘estou mal’). Esta experiência é subjetiva em essência. A legitimação social desta

experiência em doença é intersubjetiva, pois se refere à no mínimo ‘duas

subjetividades’.

Criticando os estudos de Representação Social, Alves e Rabelo (1999)

colocam que a doença é experiencial em primeira instância, ficando antes da

Representação Social, momento que definiu como pré-reflexivo. Este momento é

essencialmente subjetivo (a aflição é sentida, a sensação de que algo não vai bem é

percebida, antes de tudo) e a legitimação/objetivação da experiência é reflexiva. Ela

é um processo intersubjetivo, pois depende da subjetividade do “outro” (cultura,

sistema de saúde, etc., mesmo que este “outro” seja o “eu” interior). Conclui-se com

isso que para a compreensão da experiência da enfermidade é necessário acessar

essa intersubjetividade.

Internacionalmente, o Modelo Explicativo e os conceitos de illness, sickness e

disease são as contribuições mais expressivas da etno-psiquiatria e da psiquiatria

transcultural americana, propostos por Eisemberg, Good e Kleinman (1978). O

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Modelo Explicativo serviu para evidenciar que cada pessoa tem a sua ‘explicação’

para um evento de adoecimento, que é influenciado pelo contexto cultural e a

medicina é relativizada como um sistema cultural que produz Modelos Explicativos

próprios.

Neste entendimento, illness representa os aspectos subjetivos do processo

saúde/doença, que tem forte correlação com a cultura do sujeito, pois abrange

concepções pessoais, interpessoais e sociais do fato. Aqui, se relaciona com o que

Alves (1993) coloca como experiência da enfermidade. Já o termo disease encerra

a maneira como a medicina nomina o problema e seu sentido é influenciado

diretamente pelo método clínico utilizado. O último termo se refere a compreensão

de “mal estar” e se relaciona com a compreensão cultural da doença em sua

relevância na comunidade, o que se aproximaria da concepção que traçamos aqui

da ‘doença dos nervos’.

A localização dos sintomas no ‘nervo’ (estrutura neurológica com significado

específica dentro da racionalidade médica) parece uma tentativa de ressignificar o

fenômeno numa linguagem médica. Este paradigma pode ser resultado da

medicalização que a própria pessoa faz, buscando coerência para seus sintomas

(MEDEIROS; TRAVERSO-YEPEZ, 2004). Este relato é coerente com o

entendimento de Helman (2009) de que a medicalização em si geralmente não é

mal vista pelas mulheres.

Estas mulheres na maioria das vezes se utilizam de meios artificiais e

paliativos para permanecer na luta cotidiana, contudo não são desistentes da luta

buscando algo mais definitivo e não apenas momentâneo para os muitos

problemas que parecem sem soluções. Muitas estão cansadas e sem esperança e

os medicamentos prescritos infelizmente apenas resolvem parte do problema

(CARVALHO, DIMENSTEIN, 2003; SILVEIRA, 2000).

A 'doença dos nervos', enquanto constelação de sintomas e linguagem de

mal-estar tem sido percebida dentro de 03 conceitos que, em sua maioria,

representam o entendimento de linhas de pesquisa interdisciplinar (antropologia,

sociologia, psicologia, psiquiatria, epidemiologia, etc.) sobre o fenômeno:

Transtornos Mentais Comuns (TMC), Sofrimento Difuso e o ‘estresse’.

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Os Transtornos Mentais Comuns (TMC) foram sistematizados por estudos

epidemiológicos na psiquiatria em busca de um modelo que pudesse acessar o

sofrimento das pessoas que não ‘obedeceriam’ às categorias psiquiátricas (como

depressão, ansiedade, etc.). Os TMC representam um modelo dimensional dos

sintomas, que captam várias formas de sofrimento e que na linguagem biomédica

não se traduziriam em categorias (ou ‘doenças’) específicas, muitas vezes

classificados como expressões menores das doenças mentais (LUDERMIR; MELO

FILHO, 2002; FONSECA, 2007; KLEINMAN; PATEL, 2003; LIMA et al, 2008). Assim,

é uma forma mais fluída de compreensão do sofrimento e compatível com a

realidade da Atenção Primária a Saúde (FONSECA; GUIMARÃES;

VASCONCELOS, 2008).

O Sofrimento Difuso proposto por Valla (2001) foi construído a partir da

percepção que as queixas referentes ao sofrimento de ordem relacional, sócio-

econômica e laborativa não são adequadamente apreendidas pelas classificações

da psiquiatria, necessitando de um conceito que captasse esta dimensão

(FONSECA; GUIMARÃES; VASCONCELOS, 2008).

O ‘estresse’ é encontrado também como correlato à 'doença dos nervos',

porém é uma categoria tipicamente descrita nos discursos das camadas sociais mais

abastadas e traduz a idéia de que o motivo principal é o excesso de trabalho,

ganhando um status diferenciado em relação às camadas populares (MEDEIROS,

2003; SILVEIRA, 2000).

Com isto, não queremos inferir que os TMC, o Sofrimento Difuso e o

‘estresse’ são a mesma ‘coisa’. Concordamos com o entendimento de Fonseca

(2007, p. 29) que são posições paradigmáticas distintas e que a 'doença dos nervos'

se distinguiria delas por pertencer à uma matriz antropológica. No entanto, a

expressão do sofrimento por manifestações somáticas e/ou subjetivas pode ser

apreendida por qualquer uma das matrizes ao qual nos referimos e estas contribuem

por salientar uma ou outra faceta do fenômeno.

A subjetividade no adoecimento é uma discussão central na questão do

modelo de processo saúde/doença quando se procura alcançar a humanização do

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atendimento na doença dos nervos' (KLEINMAN, 1978; MEDEIROS 2003;

TRAVERSO-YEPEZ; MORAIS, 2004; SILVEIRA, 2000).

A compreensão deste fenômeno, desvinculada de uma concepção

suficientemente abrangente de processo saúde/doença, desvia os sistemas de

saúde e as suas práticas do alvo principal, que é o cuidado (FRANCO;

MAGALHÃES JR, 2004).

Existe então, a necessidade de se buscar matrizes coerentes que possam

embasar a formulação de sistemas de cuidado, sejam elas ao nível de políticas de

saúde, de concepções ou de suas práticas.

Assim, faremos um resgate das concepções de saúde, com ênfase nas que

trouxeram – e ainda trazem - impactos no Brasil e buscaremos fazer uma reflexão

sobre o conceito da Integralidade e sua importância no entendimento da ‘doença dos

nervos’.

3. Concepções de saúde/doença

A falta de uma avaliação crítica dos conceitos e da prática na saúde serve aos

propósitos de perpetuar as relações de poder que equilibram o sistema e acabam

por reproduzir inconsistências, iniquidades e discriminações (NARVAZ; KOLLER,

2007).

O conceito de saúde é resultado das relações políticas, sociais, econômicas

da cultura em um determinado momento histórico (SCLIAR, 2007), mas também é

fruto das experiências individuais que dialogam com todo este contexto. Dentro

desta perspectiva, os fenômenos biológicos do processo de adoecimento,

desvalidos da subjetividade, como a cultura, as emoções, os sentidos, o momento

histórico-político-econômico de uma pessoa/ comunidade com suas lutas de classe

e dominação, perdem a coerência e muitas vezes levam a equívocos. (TRAVERSO-

YEPEZ; MORAIS, 2004).

Não é de se estranhar que a formação médica, ainda na maioria das vezes,

persiste em manter o modelo biomédico (BONET, 2004), fazendo eco às outras

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disciplinas da saúde e desconhecendo os sujeitos a que se propõe tratar: as

pessoas.

Os avanços da ciência na modernidade, fundamentada em conhecimentos

experimentais que pudessem comprovar a ‘verdade’ pela metodologia científica,

culminaram em um modelo institucional-cultural de saúde. Esse modelo tem em

seus alicerces o capitalismo, a objetivação da dor/sofrimento, a relação positivista

com a ciência e um mercado voltado a ‘consumir saúde’. Assim se constituiu o

modelo biomédico (CAPRA, 1992). Desta maneira, o que é aceito pela sociedade

como doença deve passar pelo crivo da instituição - a medicina- e passa a adotar o

discurso/concepção médica de referência, fenômeno conhecido como medicalização

(ILICH, 1977).

Este processo é evidenciado pelos investimentos econômico-culturais que

são realizados através da indústria, do comércio, da mídia, das instituições de

ensino e pesquisa para regimentar o que é saudável e formar um mercado de

consumo e serviço. Esta forma de organização, da qual o modelo biomédico é

hegemônico, chamamos de Complexo Médico-Industrial (CAMARGO JR., 2007).

No ensino das disciplinas de saúde, este modelo utiliza as ciências naturais

como única fonte de conhecimento da realidade, promove o uso máximo de

tecnologia para os procedimentos diagnósticos e terapêuticos, dá ênfase à super-

especialização, enseja um modelo de assistência médico-centrado em que o

hospital é o centro de excelência da atenção a saúde e da aprendizagem. A

concepção de saúde, neste caso, é a simples ausência de doença e esta é

explicada na perspectiva homem-máquina-defeito (mecanicismo), defeito-corpo/

defeito-mente (dualismo) e para que se possa entender fenômenos complexos como

o adoecimento, basta separar seus componentes básicos até o ‘nível’ físico-químico

(reducionismo). Este é o paradigma flexneriano, apontado como marco inicial do

modelo biomédico nas faculdades de medicina (CAPRA, 1992; CUTOLO, 2006;

FRANCO; MERHY, 2003; KOIFMAN, 2004; MATTOS, 2001; MARQUES; LIMA,

2004).

Contudo os avanços técnico-científicos não puderam dar conta de dilemas

que se constituíram no processo. McWhinney & Freeman (2009, p.72-74) apontam

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04 elementos de contrariedade no modelo biomédico: a anomalia ilness/ disease

(que pode ser traduzido como experiência da doença X doença) que expõe a

limitação diagnóstica da medicina em enquadrar as queixas das pessoas em

doenças bem delimitadas, ficando uma porção razoável de diagnósticos

indeterminados ao se utilizar as classificações tradicionais da medicina; a anomalia

etiológica específica argumentando que as doenças não se expressam

homogeneamente mesmo em comunidades homogêneas, denotando múltiplos

fatores para o adoecimento e não somente os genéticos, infecciosos, físicos e etc.; a

anomalia mente/ corpo, demonstrada pelo efeito placebo, que mesmo em

experiências controladas cientificamente, existe um efeito mensurável na resposta

do indivíduo a um determinado tratamento que não é ocasionado pela medicação

testada.

No contexto social, o modelo biomédico favorece a iniquidade social,

deflagrada por sistemas de saúde excludentes, de alto custo que geram limitados

impactos nos níveis de saúde da população (STARFIELD, 2002 cap. 01). A

sociedade foi se desgastando também pela desumanização das ações em saúde

(MATTOS, 2001), o que levanta críticas sobre as políticas, as instituições e as

práticas na Saúde.

Tomando-se por princípio a concepção saúde/doença, as críticas ao modelo

biomédico podem ser sistematizadas por duas correntes de pensamento: a dos

movimentos holísticos (bio-psico-social, medicina integral, psicossomática e

práticas complementares) e a dos determinantes de saúde. Não que esta divisão

represente a ausência de conceitos holísticos numa, ou determinantes de saúde na

outra, mas serve apenas para salientar uma construção histórica destes

movimentos. No Brasil, estes movimentos tiveram ênfases diferentes em relação ao

processo saúde/doença e resultaram em diferentes políticas públicas.

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4. Os movimentos holísticos

Os movimentos holísticos têm em sua raiz, as medicinas tradicionais de

outros povos (chinesa, por exemplo) e a Teoria Sistêmica. O processo de

adoecimento é resumidamente um desequilíbrio entre o indivíduo e o universo. A

inserção das questões espirituais/religiosas, psicológicas/relacionais e das

político/sociais teriam maior ou menor ênfase de acordo com a corrente, parecendo

que quanto mais antiga a medicina (povos sem escrita), mais relacionada com o

‘mágico’ ela estaria vinculada. Em muitos casos as questões individuais/psicológicas

nem fazem parte da concepção de adoecimento, sendo ‘reduzidas’ à problemas

coletivos ou cósmicos. Estes movimentos questionam o dualismo e o mecanicismo e

compuseram as principais contribuições para a reflexão crítica do modelo biomédico

(CAPRA, 1982).

A medicina psicossomática e o modelo bio-psico-social de Engel foram duas

tentativas sistematizadas de romper com a biomedicina. As descobertas da

influência da psique no corpo fundamentaram as abordagens psicossomáticas,

ainda que não tenham rompido com o reducionismo, representam uma resposta

importante à fragmentação do cuidado (CAPRA, 1982).

Engel (1980), médico psiquiatra norte-americano, propôs um novo modelo

que se contrapunha com o modelo biomédico, buscando resgatar a subjetividade

dos sujeitos, integrando questões biomédicas, psicológicas e sócio-culturais, que é o

modelo bio-psico-social. Este foi um avanço importante na questão da perspectiva

que os médicos tinham e valorizavam da experiência da doença (illness), tendo se

contraposto ao dualismo e ao reducionismo.

A crítica a este modelo é levantada por Morris (2000) que percebe a mudança

no discurso dos profissionais de saúde e na academia, porém este discurso não

levou a mudanças conceituais nem estruturais nas práticas de saúde, sendo um

termo vulgarizado com o passar do tempo. A parte psico-social do termo pode ter

ficado restrita a uma soma de distúrbios psicológicos ou problemas sociais, sem uma

sistematização crítica destes fatores. Manteve-se assim uma superficialidade

alienada de questões mais importantes, exploradas por exemplo, com a discussão

sobre gênero, iniquidades sociais, políticas públicas de saúde e cultura .

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Duarte (1994) também concorda com esta análise, criticando a psiquiatria

norte-americana que entende o social dentro de um plano de relacionamento entre

as pessoas, e o ‘psico’ numa perspectiva psico-analítica.

Assim, o movimento holístico foi uma aspiração à uma medicina mais integral,

uma crítica influenciada pelas outras medicinas tradicionais e pelo questionamento

da hegemonia cientificista no ocidente. No Brasil, iniciou-se uma ampla discussão do

papel das ‘outras medicinas’, tanto no contexto dos movimentos sociais a partir da

década de 60 (com o ápice na década de 80) quanto o relacionado à academia,

motivada por experiências da psiquiatria transcultural e contribuições de

pesquisadores da saúde que tinham formação em ciências humanas (principalmente

na sociologia e antropologia) e na saúde coletiva. A inclusão da homeopatia, da

acupuntura e o apoio à medicina popular no SUS (Sistema Único de Saúde) foi um

dos resultados deste movimento (BARROS, 2000).

5. Os determinantes de saúde

A busca por um entendimento que considerasse as desigualdades sociais e a

relevância dos modelos econômicos-políticos que produzem saúde ou doença

mobilizam a construção do conceito de determinantes sociais. Segundo Scliar

(2002), a construção desta concepção ocorre inicialmente na formação do Estado e

na formulação de políticas públicas de saúde em sua busca do estado de bem-estar

social (wellfare state).

Mas não permanece ali. A identificação de elementos da sociedade e do

modelo de produção que proporcionavam o adoecimento ou a resistência a ele,

motivaram o desenvolvimento de políticas públicas que melhorassem as condições

de vida da população. No Brasil, o desenvolvimento do termo mistura-se com a

formação da disciplina da Saúde Coletiva (SCLIAR, 2002). No entanto, este

movimento, amplamente influenciado pelo materialismo histórico, pode ter

tensionado a concepção dos determinantes de saúde para uma um viés socializante,

dando a entender que existia um predomínio absoluto dos aspectos sociais sobre os

outros determinantes (CAMPOS; AMARAL, 2007; PAIM, 2008).

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Atualmente, a sistematização do conhecimento destes determinantes e as

propostas geradas por eles estão sendo desenvolvidas no Brasil pela Comissão

Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS) (BUSS, 2007) e compõe

um esforço político-científico para agir nestes determinantes.

O termo determinantes de saúde vem de uma concepção positiva de saúde,

que se contrapõe com a idéia da ausência de doença do modelo biomédico

(COELHO; ALMEIDA FILHO, 2002). A mudança de olhar para a saúde em vez da

doença auxiliou a mudanças de paradigmas nas instituições e na academia,

favorecendo o diálogo interdisciplinar. A construção histórica deste conceito se deu

pelos esforços em busca de modelos que pudessem privilegiar áreas de atuação

que foram esquecidas pela ênfase nos fatores biológicos ou puramente

preventivistas, o que perpetuava as iniquidades sociais que causavam o

adoecimento.

Dois modelos de determinantes de saúde foram propostos: o de Starfield

(1990) (FIGURA 01) e o de Dahlgren e Whitehead (1991) (FIGURA 02).

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Figura 01: Os determinantes de saúde. Fonte: Starfield (1990).

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Figura 02: Os determinantes de saúde. Fonte: Dahlgren e Whitehead (1991).

Os dois modelos são semelhantes na complexidade e abrangência do tema.

São representações do dinamismo do processo saúde/doença, numa perspectiva

sistêmica do fenômeno. Foram construídos num momento de urgentes

necessidades no campo político para reduzir as distorções produzidas por sistemas

de saúde que não conseguiram se desvencilhar das iniquidades sociais e

precisavam induzir mudanças principalmente de cunho político para a saúde,

avançando na concepção de saúde e possibilitando uma agenda diferenciada para

os sistemas de saúde.

A necessidade de uma mudança substancial no sistema de saúde brasileiro

ocorreu em meio à luta por uma Constituição democrática e das eleições diretas. Foi

intensificado pela crise econômica mundial, décadas de modelos sócio-econômicos

iníquos que promoveram desigualdade social e a precarização da assistência a

saúde pública no Brasil. A carta de Alma-Ata (OMS/UNICEF, 1978) foi um

documento seminal para o movimento que estava por vir na reformulação dos

sistemas de saúde de vários países. No bojo do seu discurso amplia o conceito de

saúde da OMS, colocando-o como direito humano fundamental de responsabilidade

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governamental e conceitua os Cuidados Primários de Saúde que desencadearam a

construção da Atenção Primária a Saúde.

No Brasil, as articulações promovidas por instituições como o CEBES (Centro

Brasileiro de Estudos de Saúde) e a ABRASCO (Associação Brasileira de Saúde

Coletiva) agregaram diversos setores da sociedade, incluindo intelectuais

(principalmente da Saúde Coletiva), movimentos populares, políticos, religiosos e

empresários. Este movimento é conhecido como Reforma Sanitária Brasileira e está

sistematizado no relatório final da VIII Conferência Nacional de Saúde e legalmente

materializado pela Constituição Brasileira e na construção do SUS (PAIM, 2008).

Este relatório é dividido em três temas, que propõe mudanças filosóficas e

institucionais necessárias para que se concretizassem as expectativas da sociedade

em relação à Saúde: saúde como direito do cidadão, reformulação do sistema

nacional de saúde e o financiamento do setor saúde (BRASIL, 1986). No tema

‘saúde como direito’ estão as contribuições para as mudanças filosóficas do conceito

de saúde, afastando do ilusório ‘completo bem-estar’ da OMS e das armadilhas do

Estado mínimo neoliberais, amparando então a construção do conceito ampliado de

saúde.

Os desdobramentos da VIII Conferência estão na Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988 e na promulgação do SUS pela lei 8080. Nestes

documentos não existe -até porque fugiria do propósito- a presença de um termo

definidor para o processo saúde/doença, mas apresenta o ‘elemento’ saúde como

direito do cidadão e dever do Estado, mantendo a ampliação do conceito citando

alguns fatores determinantes e condicionantes de saúde (ambientais, trabalhistas,

condições de saneamento básico, etc.) sem se aprofundar no tema.

Até aqui temos duas posições antagônicas em relação à presença ou não de

uma concepção de saúde/doença na Reforma Sanitária Brasileira. A primeira seria

apoiada por Paim (2008) que entende haver uma concepção própria deste momento

histórico-científico na Reforma Sanitário Brasileiro sintetizado pelo ‘conceito

ampliado de saúde’. Influenciado pelo materialismo histórico marxista, este conceito

foi passível de críticas por certo reducionismo sócio-econômico, deixando para

segundo plano as questões psicológicas e subjetivas do processo. Outra posição é

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sustentada por Scliar (2007), que prefere não atribuir ao disposto na Constituição

Federal no artigo 196 (que seria o resultado da Reforma Sanitária Brasileira) uma

concepção de saúde, limitando apenas a dispor princípios de organização e práticas.

Campos (2007), ao propor o método Paidéia de co-produção de saúde

através da Clínica Ampliada, também não procura defender um conceito de

saúde/doença ampliado, antes, busca na articulação da concepção de ‘co-produção

do processo saúde/doença’ em que o campo Particular (imanência do sujeito com

seus fatores biológicos e subjetividades - intenção e desejos), o campo Singular

(sujeito enquanto ente dialógico e reflexivo à sua cosmovisão) e o campo Universal

(o que transcende o sujeito, cultura, economia, ambiente, etc.) levam a co-produção

de saúde.

A vantagem deste método é sua fluidez e aplicabilidade em diversas

realidades, por constituir princípios de ações e não excluir ou hierarquizar as várias

dimensões da produção de saúde. Porém, também não há uma dedicação ao tema

conceito de saúde, fazendo assim uma aproximação, lingüística ao nosso entender,

ao conceito ampliado da Reforma Sanitária Brasileira.

6. A Integralidade como concepção do processo saúde/doença

A complexidade do processo saúde/doença evoca a busca por modelos que

não sejam reducionistas e que possam abranger uma ‘totalidade’ que só consegue

ser atingida no campo da teoria. Porém, ao propor um termo que contenha uma

matriz própria, busca-se embasar elementos que se considerem apropriados para

construir ferramentas, sistemas e políticas que lhes sejam consonantes.

A busca pela construção de um termo que conceitue o processo

saúde/doença não vem de um esforço simplista ou reducionista de recortar a

realidade em palavras vazias: é uma busca por princípios históricos que brotam do

diálogo entre os que se envolvem no campo da saúde. Ao propor a Integralidade,

princípio normativo do SUS, está se falando em processo, em práxis, em um diálogo

entre áreas distintas da ciência, mas que se mesclam interdisciplinarmente na

produção de saúde. O termo é tão complexo quanto a natureza do seu objeto. Se as

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práticas em saúde são ‘ações integradas’, se o sistema deve ser integral, pensamos

que o processo saúde/doença deve ser visto da mesma maneira.

A Integralidade, princípio normativo do SUS, é um termo polissêmico

(MATTOS, 2001). Este autor relaciona 03 sentidos que têm sido dados ao termo:

traço de boa medicina, modo de organizar as práticas e princípio de políticas saúde.

Este termo aparece na legislação do SUS relacionado com o atendimento às

necessidades das pessoas, que perpassam vários níveis de complexidade e assim,

demandam um sistema de saúde hierarquizado em ações assistenciais e

preventivas (Lei 8080). O termo tem sido relacionado à humanização do

atendimento (BRASIL, 2000), ações em saúde culturalmente sensíveis (OLIVEIRA,

2002; PUCCINI, 2004), práticas intersubjetivas (MATTOS, 2004), missão ética/

social do agente de cura (TESSER; LUZ, 2008), cuidado/relação entre sujeitos

(FRANCO; MAGALHÃES JR, 2004), oposição ao dualismo (PINHEIRO, VALLA;

2006) e práticas de outras racionalidades médicas como acupuntura e homeopatia

(PINHEIRO; GUIZARDI, 2006).

Apesar de o termo Integralidade ter seu uso mais comum para descrever as

ações em saúde, Cutolo (2006) extrapola este conceito desenvolvendo um modelo

de processo saúde/doença baseado nas conquistas da Reforma Sanitária

Brasileira.

Este modelo abrange os determinantes sociais, os condicionantes

ambientais e os desencadeadores etiológicos. Os determinantes sociais

compreenderiam a organização da sociedade (instituições de atenção a saúde,

modelo econômico/ político, educação/ informação, moradia e saneamento, etc.), o

seu modo de acesso e os aspectos culturais. Já os condicionantes ambientais

contidos na concepção da Integralidade estariam relacionados à exposição aos

agentes biológicos e aos fatores concernentes à insalubridade. Os

desencadeadores etiológicos são entendidos como os agentes causadores

biológicos (genética, vírus, bactérias, etc.) e/ ou psicológicos (personalidade,

temperamento) da enfermidade e nisto se aproximaria do entendimento biomédico

(CUTOLO, 2006).

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Concordamos com Cutolo (2006) e nos apropriaremos da Integralidade como

conceito de saúde, na medida em que as práticas do SUS são baseadas neste

princípio (FIGURA 03).

Integralidade no processo saúde/doença

Figura 03: Conceito de Integralidade do processo saúde/doença Fonte: modificado de Cutolo (2006)

Aproveitando a questão da 'doença dos nervos', poderíamos teorizar

argumentando com o que já foi exposto, que os desencadeantes etiológicos

poderiam ser estruturas de personalidade tipificadas pela psicologia. Os

condicionantes ambientais poderiam ser as condições insalubres de moradia, a

poluição ambiental (ruídos, ar, etc.), o tempo gasto para se deslocar nas grandes

cidades, o risco de violência, condições de trabalho precarizadas e os determinantes

sociais abrangeriam a cultura local de nominar a enfermidade de 'doença dos

nervos', a produção de iniquidade social que, pelo capitalismo, favoreceria as

desigualdades sociais que acarretam na precarização das condições de vida e

acesso à saúde, por exemplo.

Com isto, não queremos inferir que chegamos a um conceito universal ou

total. Como na crítica de Camargo Jr. (2007) sobre os perigos de se incorrer no

mesmo erro de medicalizar a vida e tornar a saúde como meio para intervir em todas

as áreas da existência humana levando o conceito positivo de saúde às últimas

instâncias, entende-se que os limites do conceito exposto se referem eticamente ao

contexto da disciplina saúde e das suas limitações práticas.

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Tentamos aqui passar a idéia de um processo dinâmico em movimento que

segue a linha da vida, que não é totalmente ‘saúde’ ou totalmente ‘doença’, mas

uma relação de múltiplos fatores.

Neste modelo, procuramos transmitir a idéia de que a relevância de um

determinante em relação ao outro é apenas uma construção situacional: um Médico

de Família atendendo uma criança com diarréia, no momento da consulta, vai se

preocupar com os desencadeantes etiológicos e utilizará a Medicina Baseada em

Evidências e outras ferramentas da consulta clínica para estabelecer a gravidade do

processo e o melhor tratamento para a ocasião.

Contudo, em outros momentos, quando numa visita domiciliar de rotina ou

quando alguém da equipe da ESF (Estratégia Saúde da Família) trouxer a

informação de que a avó é a responsável por cuidar da criança a maior parte do dia

e faz uso de ‘purgantes’ para que as crianças sejam mais saudáveis, questões como

cosmovisão ou cultura ficam muito mais salientes. Se a família mora em área de

ocupação irregular e vive um ciclo de pobreza onde todas as tentativas de ajuda à

recuperação da saúde esbarram neste fator, acessar outras instâncias (associação

de moradores, Estado, igrejas, centros de assistência social, etc.) se torna muito

necessário para entender e agir no processo.

Com este exemplo tentamos trazer à discussão que até na visão de uma

mesma pessoa sobre o mesmo caso, os determinantes de produção de saúde e a

ação consecutiva podem variar de ênfase dependendo do momento.

7. Considerações finais

A complexidade do processo saúde/doença desafia a uma reflexão

permanente e profunda. Nos estudos que pudemos resgatar, percebemos a

presença constante da tônica da intersubjetividade na forma de demandas culturais,

sociais (de gênero principalmente), emocionais, políticas, econômicas e espirituais

na enfermidade ‘doença dos nervos’.

Uma realidade de iniqüidade social, violências, relações de poder

assimétricas e desamparo, redes de suporte social esgarçadas, auto estima

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degradada e a dependência de medidas paliativas aparecem nas narrativas de

doenças em geral. Desta maneira, a ‘doença dos nervos’ traz consigo uma

complicada rede de determinantes do processo saúde/doença que não poderiam

cair em reducionismos já delatados.

Existe uma tentação acadêmica de procurarmos definir qual seria o melhor

parâmetro para entender e atender a ‘doença dos nervos’. Porém, notando o perigo

de se entrar em definições totalizantes ou reduzidas denunciada por alguns autores

(CAMARGO JR., 2007; MATTOS, 2001), parece-nos que o enfoque da

Integralidade, em sua flexibilidade e abrangência processual, permite compreender

esta enfermidade e apoiar as ações fundamentais através de um princípio simples,

mas de grande complexidade prática: o cuidado.

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3 CAPÍTULO 02 - HISTÓRIA DE VIDA/ORAL E AS CONTRIBUIÇÕES METODOLÓGICAS PARA A COMPREENSÃO DA 'DOENÇA DOS NERVOS'

1. Resumo

Este artigo foi elaborado a partir da análise da História de Vida/Oral de uma mulher que se reconhecia como ‘doente dos nervos’ e recebia tratamento em uma unidade de saúde de um município do Paraná. O estudo teve como caminho metodológico a pesquisa qualitativa num modelo de estudo de caso com o uso de instrumentos de coleta de dados da História de Vida/Oral. Os resultados demonstram a dimensão subjetiva, histórica e contextual da vida de uma pessoa que precisa conter suas crises de nervos com medicação a fim de continuar vivendo e construindo um cotidiano ao lado família. Na perspectiva de uma vida, elaboramos uma proposta e uma discussão sobre como seria possível assistir esta informante e outras pessoas com problemas semelhantes, seguindo as premissas da integralidade.

Palavras – chaves: História de Vida/Oral; Doença dos Nervos; Processo Saúde e Doença; Integralidade.

2. A ‘doença dos nervos’: algumas reflexões

A 'doença dos nervos' é um fenômeno muito peculiar quando se busca a

compreensão do processo saúde/doença. Este termo enseja um referencial popular

de sofrimento, não encontrado na literatura médica tradicional. A construção deste

fenômeno nas camadas populares é entendida por Duarte (1986) como uma

persistência de uma racionalidade antiga, hipocrática, em que não se separavam as

dimensões objetivas das subjetivas na produção da enfermidade. Segundo ele, a

resistência à concepção individualizada e psicologizante de pessoa neste extrato

social levou a persistência do uso desta linguagem (Duarte, 1994).

Este termo varia de acordo com a região e a cultura. Em alguns locais pode

ser encontrado como ‘nervos’, ‘crise de nervos’, ‘sistema nervoso’, ‘nelvos’ ou

estresse, entre outros. Já na medicina, a reprodução de termos ‘desclassificatórios’

como denomina Bourdieu (2007) no uso de palavras como histeria, DNV (distúrbio

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neuro-vegetativo), crise histérica, somatização entre outros, pode refletir esquemas

de julgamento sexistas ou de cunho moral (FONSECA; GUIMARÃES;

VASCONCELOS, 2008; SILVEIRA, 2000).

O uso da palavra ‘nervos’ é compreendia por alguns autores como uma

tentativa de significação no corpo de uma aflição de outra ordem: os conflitos

sociais, traumas, violências (física, psicologia ou sexual), desemprego ou

informalidade e a ausência de uma rede social de suporte que acabam por serem

manifestadas pela pessoa em uma linguagem que é aceita socialmente pelo grupo

como doença (DUARTE, 1986; HITA, 1998; MEDEIROS; TRAVERSO-YÉPEZ, 2004;

SILVEIRA, 2000).

Desta maneira, ao utilizar a expressão ‘doença’ e ‘nervo’, existe uma ação

social de atribuir um sentido ao sofrimento através da linguagem, pois de nada

adiantaria as palavras ficarem expostas em termos de sintomas físicos ou mentais, o

que ocorre muitas vezes nas categorizações psicopatológicas/psiquiátricas. Logo,

'[...] enfermidade não é um fato, mas uma interpretação e julgamento de informações

heterogêneas vindas do corpo humano' (ALVES, 1994, p. 96).

Alves (1993) defende a intersubjetividade como escopo para entender a

enfermidade. Na sua compreensão, enfermidade é a ‘experiência’ da doença, que

vai desde a sensação de que algo não vai bem até a elaboração com o ‘outro’

(mesmo que este ‘outro’ represente a cultura do indivíduo, por exemplo) do

significado desta experiência.

Esta problematização é importante para salientar a necessidade de se

conhecer o contexto em que a 'doença dos nervos' e outras formas de sofrimento se

constroem como fenômenos sociais. Assim, esta compreensão dos fenômenos

culturais que permeiam o processo saúde/doença é destacada pela relevância que

tem ao favorecer o desenvolvimento de uma atenção em saúde mais qualificada e

sensível à pessoa (OLIVEIRA, 2002), que é o cuidado integral (MATTOS, 2001).

Para conhecê-las, precisamos de ferramentas que possam capturar aquilo

que a linguagem tenta expressar: a experiência de doença e nesta proposta, a

narrativa da doença é uma das formas encontradas para isso.

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Alguns pesquisadores defendem a utilização das narrativas de doença como

forma de se apreender os elementos intersubjetivos da enfermidade (RABELO;

ALVES; SOUZA, 1999). Seguindo este entendimento, podemos escapar das

limitações de enxergar a 'doença dos nervos' na perspectiva de modelos cognitivos

estereotipados. Assim, compreendendo-a na perspectiva da ‘experiência’, temos um

caminho para perceber como os fatores sociais são assimilados pela pessoa,

produzindo uma interpretação e julgamento que produzirá por fim a própria narrativa.

3. A construção de um percurso metodológico individual: etapas

e procedimentos

a. A História de Vida/Oral como metodologia para apreensão da

intersubjetividade

Alves (1993) desenvolve alguns elementos que caracterizam a ‘experiência

da doença’ como um fenômeno intersubjetivo. Em sua natureza , é “[...] um ato

discursivo, apresenta uma unidade semântica (significação) [...] refere-se a um

mundo que pretendem descrever [...] remete-se (de forma auto-referencial) a um

locutor [...] vincula-se, dentro de situações dialógicas e ‘performáticas’, a um

interlocutor.” (RABELO; ALVES, 1999, p. 192). Desta forma, entendemos que para

apreender dimensão de fenômenos desta natureza, podemos utilizar as narrativas

de doença, pois são também um ato discursivo, possuem um significado atribuído

pelo narrador e são referenciados dialogicamente ao interlocutor.

Estas características são encontradas também na História Oral. Seja como

ferramenta, técnica ou metodologia, a História Oral permite a consideração última da

narrativa, não se preocupando em atestar fatos verídicos, mas permite o

estabelecimento de um diálogo com outras fontes ou a análise do texto pelo texto,

uma postura hermenêutica. Desta maneira, permite captar a dimensão subjetiva

dentro da perspectiva do autor do discurso (MEIHY, HOLANDA, 2007).

Como disciplina, ela busca a ‘contra-história’ ou a percepção singular dos

fatos, destacando um papel político-cultural de fortalecimento das minorias sociais

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(MEIHY, HOLANDA, 2007). Para estes autores, a História Oral como disciplina

implica na valorização do indivíduo, na inclusão social, na formação de argumentos

políticos e de transformação social, indo contra o silêncio provocado pela academia,

que para a saúde pode ser representado pelos aspectos negativos do modelo

biomédico.

A História de Vida/Oral nos permite ainda acessar alguns elementos que num

relato simples de doença não obteríamos (MINAYO, 2008). Como ela nos

proporciona o contexto – mesmo que limitado – ela produz um material sociológico

rico, favorecendo a apreensão desse complexo processo que é a saúde/doença. Ela

nos dá também o contexto de produção da doença, e assim podemos acessar

questões mais amplas da produção da enfermidade.

b. Análise de Conteúdo Temática

O sujeito está ligado ao seu discurso. Desvendar a mensagem implícita nele

é a tarefa do pesquisador. Esta mensagem é produzida com componentes afetivos

e cognitivos historicamente mutáveis e contêm informações do autor, a seleção

dele sobre o que é interessante expressar e uma teoria que orienta a fala e a vida

dele (FRANCO, 2007).

Diversas técnicas de análise têm sido propostas para o tratamento do

material colhido em campo. A análise de conteúdo iniciou num movimento

positivista e quantitativo com preocupações relacionadas ao comportamento dos

indivíduos e a possibilidade de vigilância e controle destes (FRANCO, 2007).

A Análise de Conteúdo Temática proposta por Minayo (2008) consiste em

transcrever o discurso dos sujeitos e após leitura exaustiva estabelecer uma

hipótese ou pressuposto inicial sobre os significados do seu conteúdo. Para isto,

busca-se no texto a ocorrência de palavras-chave ou expressões-chave que

enunciem algum conceito. Estas são as Unidades de Registro. Estas expressões

compõem uma Categoria, que é um conceito maior e que abrange um grupo

destas expressões. As Categorias – e em alguns casos com suas respectivas

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subcategorias – compõe o Tema do discurso, que é a tônica ou a ênfase percebida

pelo pesquisador.

A diferenciação em Análise de Conteúdo ou Análise do Discurso tem sido

ultrapassada atualmente. Seria muito limitante ignorar o contexto de enunciação de

um relato para se descobrir as Categorias. Por exemplo: expressões não verbais

podem destacar o contrário do que a palavra transcrita fora do contexto poderia

significar. Por outro lado, o discurso pode ser esvaziado se a análise dele se

restringir a elementos lingüísticos ou totalmente distorcido pelo pesquisador no

momento em que se ultrapassa aquilo que foi dito. Por este motivo, optamos por

seguir uma análise de conteúdo que permitisse incluir o discurso do sujeito da

pesquisa.

c. Percurso metodológico

A informante de nosso estudo é uma mulher que apresentaremos a partir

daqui como S. M1. Ela foi identificada por alguns profissionais de saúde de uma

Unidade de Saúde da Estratégia Saúde da Família como tendo a 'doença dos

nervos'. Foi feito um contato prévio com a Secretaria Municipal de Saúde do

município e o projeto foi apreciado para avaliação ética no comitê responsável. Após

a liberação pelo comitê, realizamos um primeiro encontro com a S. M. para explicar

os objetivos do projeto e discutir a metodologia que iríamos utilizar.

As entrevistas foram gravadas com aparelho digital e transcritas para Análise

de Conteúdo Temática. Para compor o contexto etnográfico da pesquisa ainda

realizamos uma visita domiciliar e também participamos de um culto numa igreja que

a S. M. freqüenta.

Para a Categorização, utilizamos a técnica de Transcriação (MEIHY;

HOLANDA, 2007). Nesta técnica, o diálogo entre o entrevistador e o sujeito é

1 As iniciais não correspondem ao nome verdadeiro da nossa informante

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transcrito com todos os detalhes da gravação: elementos verbais como pausas,

silêncios e risadas são complementados por registros de interrupções de gravação,

mensagens não-verbais, ruídos e qualquer elemento que seja relevante na audição

do encontro. Como exemplo:

“SM: Daí que sempre sofrendo desde criança, nunca fui_ não vou dizer assim pro doutor que fui uma

uma_uma menina feliz, não! Eu tive que cuidar de casa como uma dona de casa\voz embargada\

desde pequena \ inicia o choro\ senão quando ele chegasse quando ele entrasse dentro de casa era

só sofrimento... era só apanhá ...

R: huhum.

SM: \suspiro\só...\silêncio\\ruídos\ não era como as otras crianças, não...”

Depois de transcrito, procede-se a uma textualização, onde os elementos do

diálogo com as intervenções do entrevistador, os elementos verbais e não-verbais

sem significado ou com erro de sintaxe são retirados para compor um texto mais

fluído. Aqui se insere também outro elemento, organizador do texto, pois é através

dele que se dirá o que pode ou não conter na textualização: o ‘tom vital’. No nosso

estudo, nós aproveitamos este conceito para auxiliar na formação das Categorias da

Análise de Conteúdo. Exemplo:

Categoria/ Tom vital: Violência na infância/adolescência

“Sempre sofrendo desde criança. Não vou dizer que para o doutor que eu fui uma menina

feliz, não! Eu tive que cuidar da nossa casa como uma dona de casa... desde pequena! Senão,

quando ele chegasse em casa era só sofrimento... só apanhar... não era como as outras crianças

não...”

A última fase é a Transcriação, no qual o interlocutor coloca sua

percepção/subjetividade: o texto recebe um tratamento temático, num exercício

hermenêutico de se criar uma narrativa que signifique aquilo que o sujeito quis

relatar. Para tanto, é necessário uma compreensão profunda do texto, honestidade

por parte do pesquisador e uma postura reflexiva para se compreender os sentidos

trazidos ali (MEIHY; HOLANDA, 2007). Exemplo:

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“Sempre sofrendo desde criança, nunca fui uma menina feliz, não! Eu tive que cuidar de casa

como uma dona de casa desde pequena... Senão quando ele chegasse, quando ele entrasse dentro

de casa, era só sofrimento... era só apanhar ... Não era como as outras crianças, não!”

4. Resultados2

A seguir apresentamos a Análise de Conteúdo Temática da entrevista, que foi

categorizada segundo o sentido do texto produzido na Transcriação. Esta é uma

adaptação metodológica e nos permitiu uma compreensão mais profunda do sentido

da fala de S. M., antes do estabelecimento das Categorias. Os dois Temas foram

separados e discutidos em seguida a apresentação.

a. Tema 01 - “Porque eu tenho um passado muito difícil doutor.”

A frase escolhida para o tema veio de uma reflexão da Transcriação realizada

na técnica da História Oral de Vida. Existem dois discursos que permeiam toda a

entrevista: uma história de vida sofrida e uma história do sofrimento, que é a

concepção que a S. M. tem do seu problema de ‘sistema nervoso’. Estes dois

discursos se entrelaçam numa narrativa não-linear, movimento típico das narrativas

de vida de ‘vai-e-vem’ no tempo cronológico. O texto é uma soma de relatos,

considerações/reflexões e definições sobre sua vida e sobre a doença que também

foi construído com o interlocutor. Esta é a beleza da História Oral: não se propõe

uma objetividade positivista de análise do relato, como se o discurso não fosse

‘escolhido’ por e para alguém. Ele tem um direcionamento, um recorte e foi neste

sentido que nos propusemos a construir este tema.

2 Para uma melhor compreensão, em anexo segue o Genograma da S. M. confeccionado durante as

entrevistas (ANEXO 03)

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A primeira palavra do Tema “Porque” refere-se a um relato da doença e das

repercussões pessoais que o sofrimento lhe causava. Longe de uma descrição em

termos físicos, foram os aspectos “morais” que Duarte (1986) conceitua ou

contextuais que marcaram os primeiros minutos de relato. Havia uma ‘pressão de

fala’ que parecia insistir em delatar os algozes da sua vida que lhe causaram

sofrimento.

A constatação feita por ela “... eu tenho um passado muito difícil...” traz uma

definição interessante da História Oral: o relato não é um elemento concreto sobre a

realidade, antes, é a reflexão do passado construída num presente, que é o

momento do diálogo (MEIHY; HOLANDA, 2007).

“... doutor.” Foi a ‘terrível’ constatação da presença do interlocutor: médico,

homem e pesquisador. Aqui cabe mais um princípio da História Oral: o texto ou

objeto de pesquisa é construído pelas partes sujeito-interlocutor. O que é falado é

uma seleção influenciada pelas escolhas pessoais do sujeito da pesquisa e do que o

interlocutor e a própria pesquisa representam para ele.

No intuito de buscar os elementos que o sujeito da pesquisa relaciona da sua

história na produção da ‘doença dos nervos’, utilizamos a técnica de Análise do

Conteúdo Temática adaptada de Minayo (2008) e aplicamos à entrevista original,

sem o tratamento da História de Vida/Oral pela Transcriação. Este tratamento foi

realizado para orientar as Categorias, mas as Unidades de Registro foram criadas a

partir do material transcrito.

Foram destacadas 04 categorias com suas subcategorias respectivas que são

resumidas como segue (QUADRO 01):

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Tema 01

Categoria Sub-Categoria

Violência na Infância

/adolescência

Física

Psicológica

Relações Familiares

Sofrimento da mãe

Adultério do marido

Irmãos

Pai e esposa

Hereditariedade

Morte Luto da mãe

Morte do amigo do filho

Condições sociais e

econômicas

Problemas trabalhistas e

pobreza

Conflito no papel social

Desamparo sócio-relacional

Quadro 01: “Porque eu tenho um passado muito difícil doutor.” Fonte: Trabalho de Campo / Entrevistas

A narrativa dos eventos que produziram sofrimento para a S. M. teve como

pano de fundo a intenção da pesquisa em compreender a ‘doença dos nervos’. A

preocupação em manter o discurso livre, para que ela relatasse aquilo que fosse

relevante dentro da concepção dela sobre a história da sua vida e sobre a doença foi

discutido antes da entrevista. As perguntas foram dirigidas conforme as informações

necessitavam de algum aprofundamento.

A primeira pergunta foi “Você teve problema de nervos?”. Uma simples

verificação sobre o tema, mas que desatou relatos das agressões e do sofrimento

que ela passou na vida. Em se tratando de uma enfermidade mental, a ‘doença dos

nervos’ está obviamente vinculada ao sofrimento mental. Todas as experiências aqui

relatadas em forma de Categorias/Subcategorias produziram na vida da S. M. um

impacto psicológico, porém elas diferem em sua natureza. Assim, estas Categorias

que serão analisadas são os eventos da vida que S. M. destacou como importantes

para a produção dos seus problemas de ‘nervos’.

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Categoria Violência na infância/adolescência:

Subcategoria Física

“Ele ponhava num quarto, ponhava nóis sentado, nóis tinha sentado não cho_ ele falava assim:

“engole o choro! seis não_deixo chorá!”. Uma vez a minha irmã era muito chorona né e eu conseguia

segurá o choro né!? As lágrimas escorria mas eu não soluçava, e ela começou a soluçá! Daí ele

jogava ela pelas parede, daí eu gritei né, pra ele ver “não papai, não faça isso!” e coloquei a mão no

rosto né, daí ele me deu...tipo de um murro né e eu também fui pa parede ...”

“[...] e me bateu bastante, me deu murro... eu nunca tinha levantado a voz pro meu pai! Nunca. Aí

aquele dia ele bateu demais, pegou uma vara não contentô, pegô um cabo de vassoura não contentô

com o cabo de vassoura e me machucou todinha...”

Infância e adolescência não possuem uma separação muito clara na

entrevista. A violência e a opressão paterna permearam estas fases da vida. É

conhecido que a baixa escolaridade, problemas de relacionamento na família,

privação das necessidades básicas promovidos pela pobreza, levam as pessoas das

classes pobres a um ingresso no mercado de trabalho precoce e a adolescência

nestas classes acaba sendo abreviada por gravidez e casamento, em comparação

com as classes pertencentes às elites (HINES, 1995). No caso da S. M., a violência

paterna foi marcante para a saída de casa, como uma opção de fuga para se afastar

deste ambiente de violência.

Plazaola-Castaño (2005) realizou um estudo sobre saúde mental em

mulheres de classes populares que tinham sido agredidas pelos parceiros. Na

conclusão do estudo, houve uma correlação positiva com piores níveis de saúde

mental na combinação de três tipos de violência: física, psicológica e sexual. Estes

níveis de saúde mental eram melhores quando havia apenas um ou a combinação

de dois destes elementos.

Apesar de S. M. não ter relatado violência sexual em sua história – mesmo

quando conversamos objetivamente sobre isso – a ocorrência dos dois tipos de

violência que ela sofreu demonstram uma sintonia com o achado destes

pesquisadores. Um estudo transcultural realizado em países em desenvolvimento

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sobre Transtornos Mentais Comuns, dos quais a 'doença dos nervos' também está

inclusa, apontou também a violência como um fator importante no desencadeamento

destes distúrbios. O destaque dado na narrativa sobre os episódios de

espancamento, a falta de proteção, a opressão psicológica de “ficar quietinha” ou

“engolir o choro” reforçam a importância que o sujeito da pesquisa deu para estes

fatos.

A violência urbana como roubo, não poder sair de casa em determinados

horários, mortes no bairro e etc. não são tão destacados como participantes da

gênese dos seus problemas, mas apareceram como pano de fundo quando

realizamos a visita domiciliar.

Subcategoria Psicológica

“A gente tinha medo!”

O medo constante das agressões parece ter cerceado a infância e a

adolescência. O controle rígido do pai e a condição submissa / passiva da mãe

conformaram aquilo que ela denomina de vida sofrida: não poder dar risada, brincar,

conversar com amigos, terminar os estudos, vestir calça para ir ao trabalho (tinha

que ser saia por causa dos dogmas religiosos seguidos pelo pai), “fazer as unhas” e

ser obrigada a retirar com uma faca o esmalte e também, a partir de uma certa

idade, ser responsável dos trabalhos domésticos. Estes relatos foram seguidos de

questionamentos onde S. M. se perguntava sobre o motivo do pai foi assim. Logo

em seguida, vinham as justificativas do comportamento do pai pelo passado de

sofrimento que o ele teve, de ter tido problemas mentais e de ter sido internado, por

ser “ignorante” ou “muito antigo”.

Num episódio de revolta na escola contra as humilhações que sofria por ser

pobre, espancou uma menina que tinha xingado sua irmã de mendiga. Estas

agressões psicológicas de humilhação também compuseram a narrativa dentro

daquilo que entendemos como violência psicológica.

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Categoria Relações Familiares:

Subcategoria Sofrimento da mãe

“Ela cortou os pulso daí com a gilete daí chegou na cozinha e mostrou pra nóis.”

“Minha mãe era sempre foi doente né. Então ela... acho que aguentou mal o coração né ... e

conforme os médico passa não suporta tanta coisa né. E ela vinha sofrendo a anos, sofrendo a anos

e vendo tanta coisa né ...”

Ao relatar os internamentos psiquiátricos da mãe por tentativas de suicídio e a

situação de sofrimento que a mãe vivia, chegando a desenvolver um problema no

coração que levou a sua morte, S. M. denuncia a situação crítica de vida que a

família viveu. O pai tinha sido internado por ‘loucura’ na adolescência, já tinha

matado alguém por ser violento e tinha um suposto atestado médico que explicaria à

justiça sua condição de enfermo mental, caso cometesse algum crime. A mãe era

uma sofredora passiva, de saúde fraca demonstrada em dois relatos: um em que por

causa de um aborto quase morreu de hemorragia e outro, que por causa do aborto e

da retirada do útero como tratamento da hemorragia, desenvolveu um “problema da

cabeça” que começou a se manifestar levando-a a tentativas repetidas de suicídio.

Os filhos aqui eram espectadores desta condição e sofriam ‘engolindo o choro’.

Subcategoria adultério do marido

“Eu acho que sim, porque depois de tudo isso... a gente sei lá... a gente traída é doído demais, eu

acho assim, que se ele tivesse morrido no tempo que ele me traiu não tinha doído tanto como se ele

tivesse me traído.”

O verbo usado no passado refere-se há mais de uma década do

acontecimento. Este trauma teve quase a mesma relevância da morte da mãe. O

impacto da descoberta da traição foi uma comoção geral da rede de suporte social:

a igreja e a família ampliada, principalmente o pai. Antes o marido era tido como um

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religioso de menor responsabilidade – “crente vagabundo” nas palavras dela – e

parece que após ter sido disciplinado pela igreja, sendo destituído de algumas

atividades litúrgicas e receber orientações do sogro, o marido se torna um fiel

‘verdadeiro’ e hoje ‘trabalha’ como recepcionista dos cultos. No momento ela o

considera o como um bom pai e apoio para seus problemas.

A manutenção do casamento baseado no perdão foi a tônica daquele

momento. Contrariada, ela deu mais uma chance, porém, uma discussão conceitual

sobre o que é perdão aparece como fonte de angústia que se arrastou desde então:

perdão é esquecer ou não? É possível esquecer?! Por muito tempo, outras causas

de sofrimento, além da desconfiança e da lembrança da traição, foram as ligações

telefônicas que ela recebia de uma mulher que relatava sobre o paradeiro do marido,

as roupas e etc., reavivando a dor do conflito e da desconfiança.

Quando ela se refere à morte, existe um sentido peculiar: a morte da mãe foi

a principal causa dos seus problemas de ‘nervos’. A morte do marido seria – mesmo

que hipoteticamente – muito importante. Porém a traição, pela sua característica de

‘permanecer ali’ e de haver o convívio com o ‘traidor’, dá a entender que seria um

tipo de sofrimento especial, comparável ao evento da perda da mãe.

Subcategoria irmãos

“É a minha lida é uma tribulação! Eu aguento eles até hoje! E quando não é os otro batendo nele na

rua, tenho que entrá no meio!”

“Ah, é que quando eles briga, ela corre lá em casa né, porque esse marido da minha irmã chegô a

violentá a própria esposa né.”

A primeira citação refere-se ao irmão: um alcoólatra com ótimo emprego, mas

que desperdiça tudo com a bebida. O casamento dele com uma alcoólatra é cheio

de histórias de agressão mútua, idas para a delegacia, comportamentos de risco

como dirigir bêbado e surras que leva na rua por se meter em ‘confusão’. Como eles

moram perto dela, ainda causam preocupação, mas esta preocupação já tem sido

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mais elaborada: os médicos a aconselharam a deixar os problemas dos outros ‘para

fora do portão da casa’ e ela têm reconhecido algum efeito desta mudança de

atitude.

Uma reflexão interessante que a S. M. faz da situação do irmão é o motivo do

seu alcoolismo: o sofrimento na infância. Segundo ela, se o pai tivesse cumprido seu

papel afetivo, ele não seria do jeito que é.

A segunda citação é da irmã: um casamento sempre conturbado em que ela

foi violentada fisicamente diversas vezes com um episódio de violência sexual

cometido pelo marido. O papel de mediadora do casal lhe causou muito desgaste e

a separação atual deles é bem vista por ela.

Subcategoria pai e esposa

“... fala assim: “ah, ela dá apoio demais pros filho, que a filha entra em casa e apronta ich...! Daí eu

falo “ai meu Deus do céu, até quando eu tenho que aguentá isso!”.”

O pai, figura terrível da infância, após a morte da mãe se torna alguém

admirável: não bate mais nos filhos, ajudou nos cuidados do nascimento do segundo

filho da S. M., cozinhou para ela neste período e se casou com uma mulher com o

mesmo nome da filha: S. M.. Seu pai não tem filhos com ela, porém uma das filhas

dela mora com os netos no mesmo terreno, causando perturbação a alguém já de

idade avançada. Daí vem a reclamação do pai de S. M. citada acima.

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Subcategoria hereditariedade

“Minha mãe também já teve problema, ela ficou internada quando a gente era criança, quando tinha o

Hospital P*3 e ficou internada um ano e pouco \choro de criança no fundo\. Então eu acho que já vem

um pouco de família...”

Esta é a Sub-categoria que mais se aproxima da causalidade biológica: a

transmissão genética de uma doença. Não se percebe uma transmissão de padrão

relacional, como se por ter convivido com a mãe enferma ela teria ‘aprendido’ a ficar

enferma, mas fica a impressão de que o fato de ser ‘filha dela’ seria uma explicação

para seus ‘nervos’ e, possivelmente, para seu comportamento suicida. Interessante

contextualizar que este foi um dos primeiros parágrafos da entrevista e pode ser que

o papel do interlocutor aqui tenha sido muito relevante na construção deste relato.

Categoria Morte:

Sub-categoria luto da mãe

“... eu penso também que pode que foi pela morte da minha mãe né, \voz embargada\, que nossa! eu

amava demais ela! Achava que todo mundo morreria menos ela! E na hora que eu mais precisava

que eu achava né! Ela morreu né \voz embargada\ ela morreu dia quatro de agosto meu menino

nasceu dia sete.”

Este foi o elemento considerado por ela como o fator mais importante da

‘doença dos nervos’. Apesar de ser um dos menos citados em números absolutos de

freqüência de aparição na entrevista, o relato que seguiu a morte da mãe foi extenso

e carregado de sentimento. Lágrimas, mãos agitadas e voz acelerada. A postura de

revolta que ela assumiu durante os outros relatos, agora fica eminentemente de

3 Retirado para preservar a identidade do sujeito do estudo.

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tristeza. A perda de um apoio afetivo dias antes do nascimento do segundo filho

reforçou a sensação de desamparo e perplexidade. A mãe tinha 54 anos e faleceu

logo após um breve período de separação com o pai. O pai tinha recém assumido o

casamento e trouxe a esposa para morar perto dos filhos com o intuito de cuidar da

saúde da esposa. Dois dias depois ela morre.

Os momentos que se seguem são intensos: tinha ‘esquecido’ que estava

grávida e ficou internada até o filho nascer. Depois do parto conseguiu voltar ao

‘normal’, mas a tristeza da perda da mãe a levou a um sofrimento profundo,

traduzido nas palavras “Parecia que eu estava sufocando junto com ela na terra!”.

Sub-categoria morte do amigo do filho

“... e veio subindo atrás e o caminhão bateu na moto dele e matô ele! A médica falou que foi o susto

que eu levei. Porque quando avisaram que tinha falecido, eu perdi, eu não conseguia nem enxergá!”

A morte deste rapaz foi lembrada num contexto de ‘crise de nervos’. No

momento em que conversávamos sobre o que era uma ‘crise de nervos’, houve este

relato que exemplificou o que ela considerava crise. Longe de ser comparado com a

morte da mãe, foi o ‘susto’, ou o elemento surpresa e a tragédia que desencadearam

as reações que ela considerou como ‘crise de nervos’.

Categoria Condições sócio-econômicas:

Sub-categoria Problemas trabalhistas e pobreza

“e meu esposo ainda pra ajudar, tá afastado da firma por invalidez no braço de acidente... até falta

das minhas coisa dentro de casa eu já passei estes dias.”

A pobreza faz parte do pano de fundo de todo o relato. A pobreza na infância

gerou humilhações que em um dado momento resultou na agressão de uma menina

que chamou sua irmã de mendiga. No presente ela se demonstra na falta de um

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plano de saúde que foi cancelado quando o marido foi afastado do serviço. Isto foi

colocado enfaticamente por ela, que se sentia angustiada com a demora da

marcação da cirurgia do marido pelo SUS e na dependência do Estado para suprir

suas necessidades básicas da família com a pensão do INSS que o marido recebe.

Subcategoria conflito no papel social

“às vezes eu quero fazer alguma coisa e não posso fazê, vai me atacando os nervo e acho que vou

guardando comigo... dalí a uma semana ou depois dá aquela...”

Não conseguir realizar as tarefas de mãe na manutenção da casa também

aparece aqui colaborando para o ‘estado nervoso’. Sem a predisposição para as

obrigações de casa e também para o lazer, como tocar clarinete na orquestra da

igreja ou o trabalho da igreja com as crianças, o ‘nervo’ vai se acumulando e

acabam por desencadear as crises.

No conflito de papel está também a sobrecarga de papéis que ela percebeu

enquanto trabalhava. Cuidar da casa, dos filhos e do marido gerou também um

estresse importante.

Subcategoria desamparo sócio-relacional

“... parece que ninguém me entende. Quando eu sinto as coisa eu não tenho com quem conversá

\fala embargada acelerada\. Nem desabafá.”

Este isolamento foi referenciado em vários momentos da vida. Na infância era

causado pelo controle do pai, que não permitia o desenvolvimento de uma vida

pública. Na vida adulta, o isolamento foi considerado tanto como parte da

enfermidade como também contribuinte: em alguns momentos a falta de ter alguém

para desabafar, como quando houve a traição do marido e se sentiu sozinha e

envergonhada pela condição de traída ou na época da perda da mãe, quando

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perdeu um apoio importante da sua vida. A manifestação do isolamento como parte

da ‘doença dos nervos’ é tratada a seguir.

b. Tema 02 - “Tudo é sistema nervoso”

A frase escolhida que nomina nosso capítulo veio de uma conclusão

perturbadora: não havia distinção clara do que era ‘doença dos nervos’ no discurso.

Nem ela chama de ‘doença dos nervos’. Usou diversas vezes o termo depressão,

depressão pós-parto, ‘sistema nervoso’, ‘nervoso’ e ‘nervos’. Na literatura, ‘doença

dos nervos’ é descrito de várias formas, como já discutimos anteriormente, porém foi

necessário avançar na questão e fomos desafiados a uma nova reflexão: o que ela

entende do seu problema?

O termo “tudo” do nosso Tema é o ‘problema’ da pergunta acima. “Tudo” se

refere a todas as perturbações consideradas mentais por ela e reflete a fluidez do

conceito de enfermidade mental para ela. Os planos físico e moral do ‘nervoso’ que

Duarte (1986) descreveu para compor seu conceito de perturbação são bem

representados aqui. A ‘doença dos nervos’ é mediadora nestes planos e não

pertence a nenhum deles, onde a percepção corporal do sofrimento é indissociada

dos problemas da sua vida. “Sistema nervoso” é um nome dado a este fenômeno de

adoecimento. Abaixo segue o resultado desta Análise de Conteúdo com as

Unidades de Registro, que foram as palavras ou expressões-chave que

compuseram a Categoria.

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Tema 02 - “Tudo é sistema nervoso”

Categoria Unidades de Registro

Estado de Nervo

Não tenho vontade; vivia isolado; dô cada grito; não gosto que ninguém fale comigo; dor de cabeça; parece que some da cabeça; não lembro; não consigo dormir; não dá vontade de falar nada; vontade é só de ficar deitada, não quero sair nem comer; não tinha coragem de levantá pra tomá banho; tontura; ficá agitado; pouca coisa eu fico nervosa; qualquer coisinha irrita a gente; brigá com otras pessoas; nervoso;

Crise Desmaio; não podia falá; tentei o suicídio; tomei todos os remédios; me dá um branco na mente; tô ficando louca; fico diferente; olhos roxo; a boca fica torta; as palavra não sai; olhos fica roxo; não saio de dentro de casa; reação alérgica; ajunta com o problema de depressão; mão tudo enrolada, roxinha; não conseguia enxergá direito; depressão atacada; não consigo andá, falá, conversá; mal estar grande; tipo uma ânsia de vômito; enjôo muito grande; perdia o sentido; apagava tudo; a pessoa fica bem alterada; muita angústia; muita tristeza; parece que tá tudo negro; a pessoa fica bem alterada; Ouvi vozes, vultos, pessoas me chamando.

Medicalização Depressão pós-parto; depressão; sem remédio eu não durmo; acredito que é doença; demônio não se cura com remédio; médico não qué que eu saia; engordei, pedi pa médica daqui me dá um remédio pa esmagrecê; médico de hoje diz; tinha dito pro meu pai que ela não ia...guentá muito tempo; uma carta do médico [...] que se matasse alguém né, nem preso ele iria; e conforme os médico passa não suporta tanta coisa; os médico mandou entregar; médico passô pra mim aquele clonazepan; só paro na hora que o médico mandá!; se os médico passam os remédio eu acho que eles sabem o que tão fazendo; se o psiquiatra passô remédio pra mim pra depressão ele sabe o que tá fazendo; eu tive uma crise forte, no hospital, a médica me deu uma injeção; a médica falô que é do sentimento; médica falou que foi o susto que eu levei; médico passo remédio tudo; o médico mandou eu fazer um chá tipo calmante

Quadro 02: Tema 02 – “Tudo é sistema nervoso” Fonte: Pesquisa de campo/ Entrevistas

Vistas isoladamente, as Unidades de Registro não parecem significar

exatamente o que a Categoria descreve e ainda podem estar em todas as

Categorias. Aí vem a necessidade de analisar o contexto em que foram enunciadas

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para compreender o sentido a que elas se referem e por este motivo a técnica de

Transcriação se prestou como interessante caminho para esta elaboração.

A Categoria ‘Estado de Nervo’ foi criada a partir de uma percepção de que

existe um estado de predisposição à perda de controle, um desconforto crônico que

hora pode desencadear uma crise, hora pode ser entendida como a depressão do

linguajar médico. Os elementos que geram esta Categoria estão muito próximos da

concepção que ela faz de ‘personalidade’, o que poderíamos chamar de

‘personalidade nervosa’. Esta personalidade é marcada por uma constante irritação

e inadequação em lidar com as coisas do dia a dia. Impaciência ao ‘esperar numa

fila de banco’, irritação, angústia, reclusão social, falta de força ou concentração

para realizar as tarefas cotidianas e instabilidade emocional caracterizam este

fenômeno.

Já a ‘Crise’ é a expressão da perda total de controle. A perda parcial da

consciência (já que desmaiava e continuava ouvindo as vozes), dormir (inclusive por

efeito de medicações quando internada), romper com a ‘normalidade’ ou a total

desestabilização ocorreu em vários momentos de profundo sofrimento. Interessante

é que existe no discurso um sentido terapêutico destas crises. Algumas vezes os

relatos de desmaios ou dos internamentos (momento em que ficava sedada por

medicações) eram seguidos de muito alívio, quase como se desaparecessem os

sentimentos de angústia.

O rompimento de uma função social tão importante que é o ‘falar’ acontece

em dois momentos: numa primeira vez, após ter sido brutalmente espancada pelo

pai enquanto era noiva, ficou calada durante todo o internamento, não se

comunicando com os médicos, pois queria preservar o pai para que ele não sofresse

as conseqüências do seu ato. Nos outros momentos este silêncio era motivado pela

doença: nas ‘Crises’ como incapacidade mecânica de falar (boca torta, desmaio, por

exemplo) e no ‘Estado de Nervo’ como isolamento social ou falta de vontade para

falar.

A ‘Medicalização’ foi construída com o objetivo de selecionar na fala dela as

referências biomédicas do seu problema e as relações de poder expressas pela

medicalização do problema. Ao se referir ao diagnóstico depressão/depressão pós-

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parto, ao uso fiel das medicações na esperança da cura e à constatação máxima de

que seu problema não tinha relação com fenômenos espirituais/religiosos

(possessão demoníaca), figura-se uma postura consoante ao parecer dos médicos

que lhe atenderam.

Esta postura passiva reflete a relação de poder/submissão que ela tem com

os médicos e a medicalização do fenômeno feita por ela. As expressões utilizadas

para se referir às ‘ordens’ médicas e sua defesa contra questionamentos sobre a

natureza médica do seu problema amparam esta compreensão.

Apesar desta medicalização, em outros momentos ela contraditoriamente

expõe a não-eficiência das medicações/tratamentos:

“[...] não adianta! eu vô lá e saio do mesmo jeito!”

... e seguindo sua cosmovisão e cultura, declara:

“A gente pensa que tá sozinho mas nós não estamos sozinho, porque tem um Deus presente,

né. E eu creio que ele vai me curá. Mesmo com a ajuda médica, eu sei que é as mãos Dele. Porque

se ele não tivé no controle das coisas... o homem não pode fazê nada.”

Na tentativa de significar seu sofrimento, os diagnósticos médicos parecem

autorizar tacitamente seu comportamento de enferma: as ‘Crises’ e o ‘Estado de

Nervo’ são aceitas pelo marido, pela igreja e pela sociedade. Lembrando a

concepção parsonista de ‘papel de doente’ (COELHO; ALMEIDA FILHO, 2002). Aqui

existe um arranjo em torno deste diagnóstico que produz sentido e por fim alívio

para S. M., cumprindo seus deveres (tomar a medicação) e direitos (ser afastada

das responsabilidades sociais). Os filhos e as pessoas em volta (como as amigas do

coral da igreja) tentam lhe dar o suporte necessário para dirimir os males de uma

doença e assim reforçam estes papéis.

Porém este arranjo não é hegemônico: o pai e a irmã possivelmente

apoiando-se em outra racionalidade, reprovam o uso das medicações, nominando

estas medicações de “porcaria” e desconfiam da atribuição de ‘doença’ aos seus

problemas, o que lhe causa muita revolta.

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‘Estado de Nervo’ e ‘Crise’ são experiências fluídas que se misturaram no dia

a dia da S. M.. Estes conceitos apreendidos de uma análise das palavras com seu

contexto de enunciação serviram para os propósitos de salientar alguns elementos

da dimensão subjetiva. A distinção que propusemos aqui serve para algumas

reflexões, mas não se presta a definições exatas do problema: as duas Categorias

são indistintas para ela que sofre a experiência da doença.

5. Discussão

As categorias do primeiro Tema tiveram o propósito de revelar a experiência

da doença da S. M. e sua 'doença dos nervos'. É a relação dela com seus valores

culturais, sua história, seu meio de vida e papel social. Essa relação resultou na

constituição do segundo Tema, que é a construção dela sobre seu problema de

saúde mental.

Neste estudo de caso, percebemos a participação preponderante de

elementos de natureza sócio-cultural. Estes achados corroboram com outras

pesquisas e etnografias sobre a 'doença dos nervos' (COSTA, 1987; DUARTE,

1986; HITA, 1998; MEDEIROS; TRAVERSO-YÉPEZ, 2004; PATEL; KLEINMAN,

2003; RABELO; ALVES; SOUZA, 1999; SILVEIRA, 2000). Esta natureza pode ser

entendida na discussão do gênero, nas diversas formas de violência social, na

cosmovisão – trazendo a questão da concepção de morte –, nas condições

econômicas do extrato social e nos recursos de apoio que ali se dão.

A discussão sobre gênero certamente se alinha ao caso de S. M.. O advento

dos métodos anticoncepcionais, a democracia, o capitalismo, a Revolução Industrial

e a introdução da mulher no mercado de trabalho trouxeram algumas mudanças no

papel que a mulher vinha exercendo até então nas sociedades ocidentais (KOLLER;

NARVAZ, 2007). Entendemos por gênero o debate militante científico-cultural

originado nos anos 70 pelos movimentos feministas de questionamento da

determinação sexista do papel social e da exploração/opressão resultante disto

(COSTA, 2001). Estas novas possibilidades de emancipação para as mulheres

trouxeram também novos modos de dominação: ainda percebe-se uma continuidade

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de um sistema opressor, quando se observa que as mulheres ganham, em média,

menos do que os homens, realizando o mesmo trabalho e a permanência da divisão

sexual do trabalho, principalmente na esfera doméstica (VAITSMAN, 2001). Isso fica

claro quando S. M. relata a sobrecarga destes papéis na gênese de seus problemas.

As preocupações da manutenção do lar, expressas na limpeza e na educação dos

filhos refletem isso. Mesmo tentando se inserir no mercado de trabalho, as

obrigações de casa permaneceram sobre ela.

Medeiros e Traverso-Yépez (2004) constatam que na literatura a 'doença dos

nervos' é mais prevalente no gênero feminino. Esta predominância pode ser

explicada por vários fatores que se incluem na discussão de gênero, como por

exemplo, a atribuição do papel relacional ou cuidador na sociedade ocidental à

mulher (COSTA, 2001; KOLLER; NARVAZ, 2007; MCGOLDRICK, 1995;

MENDONÇA et al, 2008; SILVA et al, 2007). Este papel pode favorecer, como

descrito por McGoldrick (1995), à uma predisposição para que as mulheres estejam

mais sensíveis aos eventos da comunidade, como a morte de alguém. Este

fenômeno pode explicar o porquê da ‘crise de nervo’ da S. M. ao saber da morte do

amigo do filho.

Outro ponto que enfatiza a questão de gênero é descrito por Duarte (1986)

em sua etnografia. Ele expõe que nas sociedades patriarcais a mulher ocupa

tipicamente o lugar da vida privada. Ao manifestar uma ‘crise de nervos’ ela se torna

pública, ou seja, ela entra em outra dimensão do arranjo social, adquirindo outro

status. Assim, ao freqüentar as unidades de atendimento médico com as ‘crises de

nervos’, poderíamos inferir que além de outros elementos de conforto (medicações,

sono, cuidado), a exposição à vida pública estaria trazendo também um recurso

terapêutico para ela.

Outros elementos das questões sociais e de gênero encontradas em nosso

estudo são também destacados em outros trabalhos: incapacidade de sucesso

como mãe/esposa por adultério (SOUZA; RABELO, 2000); violências, abandono e

pobreza (COSTA, 1987; RABELO; ALVES; SOUZA, 1999; SOUZA; RABELO, 2000;

SILVEIRA, 2000); morte da mãe e violência na infância (HITA, 1998); baixa

escolaridade (LUDERMIR, 2008; MEDEIROS; TRAVERSO-YÉPEZ, 2004).

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A histeria (outro nome para 'doença dos nervos'), segundo Hita (1998), foi

sendo assumida por esta nova entidade nosológica, a depressão, que se tornou uma

epidemia mundial no gênero feminino. Com isso estabeleceu-se uma causa e um

tratamento para algo que foi definido como doença. Ao nosso entender, a

medicalização do sofrimento da histeria, ganhou mais força ao ser transportada para

a linguagem médica da depressão, pois se antes não haveria tratamentos capazes

de resolver os sintomas, com o desenvolvimento farmacológico e o conseqüente

aprimoramento das categorias psicopatológicas, agora existe a promessa de ‘cura’.

O título “A minha melhor amiga se chama fluoxetina” (DIEHL; MANZINI;

BECKER, 2010, p. 331) representa enfaticamente essa relação. A larga utilização de

psicotrópicos na sociedade pós-moderna (MORRIS, 2000) pode simbolizar uma

tentativa de aquietar questões mais amplas da nossa cultura ocidental como o

isolamento social pelo individualismo, as exigências cada vez maiores de ascensão

social, sem citar ainda questões do modo de produção excludente e iniquidades

sociais que já foram colocadas acima.

Esta confiança no remédio e na medicina aparece em algumas expressões

que S.M. utiliza para exaltar o poder dos médicos no ato de prescrever e curar.

Apesar de ser religiosa e ter em sua concepção o elemento da ‘cura divina’ e do

poder de Deus para controlar todos os aspectos da cura, existe ainda uma fé na

medicina como recurso último de tratamento para seu mal.

Esta situação está de acordo com o levantamento sobre o uso de

psicotrópicos e a medicalização no trabalho de Carvalho e Dimenstein (2003). Estas

autoras concordam com Dutra et al (2008) que percebem o uso das medicações

para a minimização do sofrimento. A medicalização, segundo eles, é por conta do

reducionismo que a abordagem do sistema de saúde promove ao restringir o

cuidado à prescrição de remédios.

Para Fonseca, Guimarães e Vasconcelos (2008), as representações dos

servidores de saúde estão atreladas à divisão mente/ corpo e abordam o sujeito

separadamente do seu mundo, aspecto que leva à medicalização do sofrimento e

prescrição de calmantes, o que muitas vezes apenas pioram a elaboração da

realidade e as chances de uma mudança real no contexto da pessoa.

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Mendonça et al (2008) refletem que a medicação recoloca a mulher nos seus

papéis sociais e reafirma seu papel de gênero. Também é uma resposta para as

angústias dos conflitos familiares, para a pobreza e eventos da vida (morte,

separação e etc.). Os calmantes regulam e são regulados por estes eventos,

trazendo uma resposta rápida para o problema, enquanto outras formas de alívio já

não são tão eficazes neste ponto, como conversar sobre seus problemas com outra

pessoa, as várias formas de aconselhamento terapêutico, atividades lúdicas ou

vinculadas a grupos que comportam redes sociais, por exemplo.

Aqui vai uma discussão interessante: se são as dificuldades crônicas da vida

que mais importam para a saúde mental das pessoas, quando comparadas aos

estressores agudos (LUDERMIR, 2008), nos parece um tanto ilógica a ênfase nos

meios imediatos de curto prazo para o alívio dos sintomas. Seria por causa da

gravidade do desconforto ou por uma questão da cultura pós-moderna (MORRIS,

2000) imediatista, exigindo uma resposta rápida ao problema?

Mas seria a discussão das naturezas socioculturais e de gênero, ou da

medicalização e utilização de remédios a única forma de abordar a ‘doença dos

nervos’?

Apoiados nos resultados do nosso trabalho gostaríamos de salientar dois

aspectos alcançados aqui que podem embasar algumas outras considerações

práticas. O primeiro está relacionado com os ‘microdeterminantes’ encontrados aqui.

O segundo elemento que pudemos perceber com este estudo, está de acordo com

os achados de Patel e Kleinman (2003) sobre os macrodeterminantes do processo

saúde/doença no caso dos Transtornos Mentais Comuns e conseqüentemente, na

‘doença dos nervos’.

Concordamos com Silveira (2010, p. 455) que discorre sobre os

microdeterminantes, refletindo sobre sua etnografia da 'doença dos nervos', quando

coloca que “a dimensão narrativa da doença é o primeiro passo na busca da cura e

que o trabalho terapêutico de qualquer médico começa justamente na escuta [...]”.

Com isto, enfatiza-se a capacidade tecnológica que ferramentas como a História de

Vida/Oral e as narrativas da doença em geral têm de proporcionar a compreensão

da experiência da doença. O valor desta compreensão é inestimável para se

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alcançar qualidade na relação de cuidado em saúde mental. Outro benefício que

queremos destacar, ainda discorrendo sobre o mesmo aspecto, é que as narrativas

auxiliam na ressignificação da enfermidade para quem sofre (HYDÉN, 1997; NÚBIA;

CARDOSO, 1998; RABELO, 1999; SOUZA, 1998), produzindo um efeito terapêutico.

Quando se fala dos macrodeterminantes, percebemos que as questões de

gênero, as iniquidades sociais, as condições de estudo, o trabalho, os valores

culturais sobre relações de poder (violência na infância permitida no âmbito familiar)

e outros, necessitam abordagens que somente a promoção de saúde (ARANTES et

al, 2008) poderia abranger, questionando o modo de produção de bens e suas

conseqüentes iniquidades, promovendo políticas públicas saudáveis, agindo com

outros setores da sociedade para ampliar o cuidado, influenciando a formação

acadêmica em saúde com conceitos relevantes do ponto de vista sócio-

antropológico permitindo assim o desenvolvimento de profissionais com

competência cultural (TARGA, 2010).

A desumanização, que pode ser uma das causas da precarização das ações

em saúde, pode ser atribuída a não valorização das tecnologias leves (TEIXEIRA,

2005). Merhy (1998) define como tecnologias leves de atenção à saúde, aquelas

que não pertencem a nenhuma categoria profissional específica: escuta,

acolhimento, vínculo, gestão local e rede de conversas. As tecnologias leve/duras

seriam aquelas que necessitam um conhecimento específico para serem

operacionalizadas: saberes clínicos, epidemiológicos e relacionais. As tecnologias

duras representam aspectos gerenciais em saúde ao nível de sistema (Saúde

Coletiva e Gestão), conhecimentos e técnicas relacionados ao uso de equipamentos

materiais (instrumentos, exames, insumos, etc.).

O que concluímos com isso tudo é que uma escuta ativa para colher a história

de vida de uma pessoa, dentro de uma postura dialógica que privilegia o vínculo, é

uma das características encontradas na utilização da História de Vida/Oral. Portanto,

a História de Vida/Oral se torna uma ferramenta especial de trabalho na saúde, pois

tem em seus elementos características de uma tecnologia leve, mas em sua

aplicabilidade seria caracterizada de leve/dura.

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Não propomos aqui sua utilização em larga escala, mas que seja uma opção

para agravos de saúde complexos como a ‘doença dos nervos’ ou em situações que

demandem da equipe de saúde um conhecimento mais profundo da ‘pessoa’

atendida. Nestes casos esta abordagem se torna uma proposta interessante.

Com isso, entendemos que as ações integradas propostas no SUS de

promoção, proteção e recuperação da saúde devem estar embasadas na ampliação

da perspectiva que os determinantes sociais abarcam, mas também não podem

perder o foco da singularidade dos indivíduos que pretende atender e na utilização

de práticas e filosofias de trabalho. Assim, percebemos que a utilização da História

Vida/Oral foi um instrumento adequado para a apreensão da intersubjetividade da

‘doença dos nervos’ de S. M. e pode ser utilizado como técnica para reflexão sobre

problemas de saúde complexos como ocorre na ‘doença dos nervos’, em que

diversos elementos contribuem para o adoecimento e necessitam de um olhar mais

atento às questões da subjetividade. Sem este olhar, corremos o risco de reduzir o

sofrimento a doenças e o cuidado aos remédios.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção deste trabalho se iniciou há 04 anos, enquanto ensaiava um

projeto de pesquisa para a conclusão do curso do programa de Residência Médica

de Medicina de Família e Comunidade. O projeto, ainda muito imaturo, era o produto

de reflexões sobre 02 questões que se tornaram essenciais para a prática médica:

compreender e cuidar.

Compreender é tudo o que um jovem médico recém-formado deseja ao se

deparar com as realidades do Sistema Único de Saúde no interior do Brasil. As

mazelas humanas traduzidas por doenças e o sofrimento expressado nos ‘nervos’,

constrangiam-me a uma postura mais reflexiva e dialógica na prática clínica do

então chamado “PSF” (Programa Saúde da Família). Compreender era ouvir muito.

Cuidar foi o que aprendi quase que por instinto. O conhecimento médico

adquirido na academia não era suficiente para atender às demandas, que variavam

desde a prescrição correta das medicações até situações em que o sofrimento pela

iniquidade social não tinha remédio... até certo ponto.

Foi no meio destas questões que me deparei com um assunto intrigante: as

‘crises de nervos’. Este fenômeno aparecia na maioria das vezes em mulheres, sob

nomes diferentes (estresse, convulsão, depressão, nervos) e as medicações

prescritas (antidepressivos, chás, calmantes, etc.) não eram suficientes para a ‘cura’

esperada. Assim, elas seguiam tentando o alívio em seus itinerários terapêuticos e

no caso, buscando a renovação das receitas de seus calmantes.

A resposta dentro da perspectiva de compreender era ouvir. Com algum limite,

parecia que isso bastava, porém questões mais profundas foram aparecendo

conforme o vínculo se firmava e alguns pontos cruciais começaram então a surgir.

O marido alcoólatra que agredia, o filho drogadito que estava preso,

relacionamentos marcados por traição, violência e filhos abandonados, desamparo

social, econômico e fome, um luto mal elaborado, humilhações de todos os tipos e a

que mais me chamou atenção: a violência sexual. Estes temas apareciam em

consultas que levavam mais tempo do que o corriqueiro.

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Não sei se foi pelo teor da humilhação ou pelos anos seguidos de silêncio que

se quebravam numa consulta de “Saúde Mental”, mas a atenção a esse fenômeno

foi aumentando a cada caso que era atendido como ‘problema de nervo’. Não foi

constatado que houve violência sexual em todos os casos, mas isto era muito

freqüente.

Em meio a esta problemática, surge a questão: esta manifestação tão peculiar

de sofrimento era realmente uma doença? Existiriam outras formas de se entender o

problema que ultrapassariam o diagnóstico médico de transtorno mental? Qual seria

a melhor abordagem terapêutica para esses casos.

Algumas respostas foram surgindo na discussão sobre conceitos de

saúde/doença. A resposta da Integralidade veio após tentarmos pensar uma forma

de incluir a questão de gênero e os determinantes sociais, a perspectiva da

antropologia e da sociologia na visão tradicional deste processo.

Ao salientarmos a contribuição do gênero no estudo, nos posicionamos também

contra a opressão de uma sociedade que nega a dignidade das mulheres, afetando

inclusive a produção científica e a percepção do trabalhador em saúde sobre essas

relações de poder. Esta produção científica abrange também a formação médica. A

ausência de uma discussão mais profunda sobre os aspectos do processo

saúde/doença e a concepção biomédica da formação ainda deturpam as práticas em

saúde, levando a uma atenção preconceituosa e desqualificada dentro do ponto de

vista ético. Ao não questionar a origem dos conhecimentos adquiridos e nem sua

aplicabilidade sociocultural, corre-se o risco de favorecer esquemas traiçoeiros de

captação de renda pelo Complexo Médico-Industrial e precarizar as relações sociais

no contexto da saúde desde a formação.

Em relação aos ‘nervos’, não faltam exemplos sobre esta abordagem deturpada

na trajetória de quem trabalha em saúde. O preconceito aparece sob diversas

formas. Uma delas aparece na idéia de realizar injeções de água destilada para as

crises conversivas, numa tentativa de punir a pessoa com dor por não apresentar

uma ‘doença verdadeira’ e ‘ocupar’ o tempo de atendimento de quem está num

serviço de pronto-socorro. Aí se percebe uma reação típica do sistema de valores

desta instituição (aqui me refiro ao sistema de saúde de uma forma geral que está

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baseada numa degradação do modelo biomédico). Da mesma forma, ao

diagnosticar um transtorno mental sem levar em consideração o entorno do

problema, reduz a abordagem aos critérios psicopatológicos, perdendo o contato

com a pessoa, que é tão caro para a recuperação da saúde em geral.

Exemplo disto é a ‘conversão’ da histeria em depressão. Hoje a depressão é um

termo corriqueiro na mídia e nos assuntos de saúde em geral. Esta grande epidemia

da pós-modernidade abrange quase que todo tipo de sofrimento que cause tristeza.

Não só no discurso do leigo, mas com o papel medicalizador da sociedade, a

resposta com antidepressivos e calmantes a todo sofrimento reforça este conceito e

gera uma expectativa de cura de uma entidade tratável, que é a depressão.

Tecnicamente a histeria não tinha tratamento eficaz, mas a depressão tem.

Estudando o caso da S. M. ousamos nos questionar: a expressão do sofrimento

humano causado por tantas violências e realidades muitas vez tão iníquas podem

ser chamadas de doença?

Considerar a pessoa no processo saúde/doença é um grande avanço conceitual.

Os maiores questionamentos que o modelo tradicional das práticas em saúde

recebem, são provenientes da perda da dimensão subjetiva que ocorreu no

desenvolvimento da medicina. Desta maneira, quando a Reforma Sanitária Brasileira

propõe a Integralidade como conceito norteador das práticas em saúde, ela

direciona o sistema de saúde para um olhar amplo sobre a saúde/doença e inclui a

(inter)subjetividade neste olhar.

A Integralidade nos parece um conceito adequado a este olhar, pois outros

termos já desenvolvidos se tornaram esvaziados de suas propostas iniciais, em

grande parte pelo seu emprego descontextualizado. A vantagem da Integralidade é

que já existe um contexto e uma prática (ações integradas de promoção proteção e

recuperação) e estão sendo implementadas cada vez mais no âmbito do Sistema

Único de Saúde e na Medicina de Família e Comunidade.

Utilizamos a ‘doença dos nervos’ justamente pela sua característica contraditória

em relação ao modelo tradicional de categorização. Como sua construção é cultural

e não se alinha aos substratos fisiopatológicos da biomedicina, foi um elemento

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interessante de exemplo para se verificar a possibilidade da utilização da

Integralidade como conceito de saúde/doença.

A metodologia escolhida para abordar com Integralidade a ‘doença dos

nervos’ foi a História de Vida/Oral. Este uso foi evocado principalmente da

percepção de que os relatos que ouvi nos consultórios sobre os ‘nervos’ em grande

parte foram histórias de vida. Os que deram ‘mais certo’ eram aqueles em que

pudemos acessar com certa profundidade o problema e o seu entorno e a

expectativa que tínhamos era o quão profundo poderíamos chegar no

desenvolvimento deste trabalho. Por este motivo, não nos sentimos compelidos a

fazer uma pesquisa com mais de uma pessoa, pois a singularidade do caso era o

que nos interessava. Dependendo da qualidade do material e da preparação teórica

prévia, poderíamos acessar os elementos da Integralidade do processo

satisfatoriamente.

Em grande parte pelas limitações de tempo, não pudemos realizar uma

etnografia, o que poderia ter dado ainda mais profundidade a discussão. No entanto,

as visitas na casa, no bairro e na igreja enriqueceram o material e ajudaram a

constituir um contexto etnográfico. A profundidade almejada veio com as entrevistas

e o preparo teórico/metodológico do trabalho. A leitura exaustiva do material e a

confecção da Transcriação possibilitaram conclusões interessantes sobre a

perspectiva da S. M. sobre o que influenciou a desenvolver o seu problema de

‘nervos’.

Acredito que as contribuições mais expressivas do trabalho para S. M. foi o tempo

que ela pôde receber de reflexão sobre seus problemas durante a narrativa

dialógica. Durante o nosso estudo e a gravação das entrevistas, podemos perceber

uma melhora substancial dos seus ‘nervos’ e fato que chama atenção: mesmo após

alguns meses, continuava bem e sem remédios.

Aqui, destaco a importância da História de Vida/Oral como um instrumento

também terapêutico dentro do ponto de vista da saúde mental. Não que apenas

ouvir como foi a vida de uma pessoa possa em si levar à cura ou conforto, mas

como já colocamos no Capítulo 02, em casos complexos em que se precise de uma

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compreensão mais profunda da ‘pessoa’, a História de Vida/Oral se mostrou eficaz

em nosso caso e poderia ser usado em outras situações semelhantes.

Como médico de família e comunidade, fui treinado a realizar genogramas, fazer

abordagens familiares incluindo elementos de terapia familiar, montar grupos

terapêuticos e tive experiência com ‘rodas de conversa’/terapia comunitária para

trabalhar questões de saúde mental. Porém, o que enriqueceu minha experiência

como médico neste estudo, foi a capacidade que a Transcriação da História Oral

teve de me levar a uma auto-reflexão sobre minha postura durante o diálogo. Em

todas as ferramentas que citei acima, a crítica geralmente vem de outra pessoa

(quando há um instrutor), mas ao escrever o que se fala e objetivar o diálogo,

analisando-o minuciosamente, obtêm-se um rico material para (auto)reflexão.

Este exercício de analisar a fala (incluindo a minha) produziu algumas mudanças

no meu dia-a-dia como preceptor da residência de medicina de família e

comunidade e como médico. Pela sutileza das mudanças, elas podem ter ficado ao

nível da postura/atitude, mas provavelmente impactaram também o cuidado que eu

presto.

Conhecer o outro ‘pelo outro’ é um exercício também muito rico que ocorre na

História Oral como disciplina. Retirar a voz da ‘academia’ e a minha própria voz da

análise em alguns momentos, possibilitou ampliar a minha percepção sobre a

natureza do fenômeno da doença e valorizar os instrumentos que a Medicina de

Família e Comunidade possui com este tipo de abordagem. A Clínica Ampliada, o

Método Clínico Centrado na Pessoa e as diversas formas de Abordagem Familiar e

Comunitária podem ser enriquecidas com médicos treinados para esta postura

dialógica e sensível à intersubjetividade.

Não como método, mas como exercício, a História de Vida/Oral pode ser utilizada

na formação médica ou de Médicos de Família e Comunidade como tecnologia leve-

dura. Assim, poderíamos aumentar a capacidade autocrítica destes profissionais e

também promover uma reflexão mais profunda sobre o processo saúde/doença,

‘desmedicalizando’ o sofrimento da pessoas que atendemos e fortalecendo a

proposta básica de qualquer ato em saúde: o cuidado.

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84 p. (Colec ão Antropologia e Saúde).

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APÊNDICE A

UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM SAÚDE DA FAMÍLIA MESTRADO PROFISSIONAL EM SAÚDE E GESTÃO DO TRABALHO

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Você está sendo convidada a participar, como voluntária, em uma pesquisa de

mestrado. Após ser esclarecida sobre as informações a seguir, no caso de aceitar

fazer parte do estudo, assine ao final este documento, que está em duas vias. Uma

delas é sua e a outra é do entrevistador responsável. Em caso de recusa você não

será penalizada de forma alguma.

PESQUISA: HISTÓRIA DE VIDA E SOFRIMENTO FEMININO: UM RELATO AUTOBIOGRÁFICO DA DOENÇA DOS NERVOS.

Pesquisadora responsável: Profa. Dra. Yolanda Flores e Silva (orientadora).

Contato: [email protected] / fone: (47) 3341 7932

Pesquisador co-responsável: Rodrigo Cechelero Bagatelli (mestrando)

Contato: [email protected] fone: (41) 99622572

A presente pesquisa pretende fornecer informações para elaboração da

dissertação de Mestrado Profissional em Saúde e Gestão do Trabalho de Rodrigo

Cechelero Bagatelli. Ela será realizada no município de Curitiba, Estado do Paraná e

tem como objetivo analisar a história de vida de uma mulher com o sofrimento

feminino caracterizado como ‘doença dos nervos’ para melhorar a compreensão e o

cuidado das pessoas que sofrem deste problema.

A pesquisa será realizada conforme a sua conveniência com encontros individuais,

onde serão gravadas as entrevistas. Sua identidade será preservada e sua

participação é voluntária e caso não deseje participar não haverá qualquer prejuízo a

sua pessoa. Fica registrado que a participação voluntária não implica em pagamento

de qualquer espécie [remuneração ou indenização]. Também não haverá

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ressarcimento para quaisquer outras ações judiciais movidas pelo entrevistado a

exemplo de desconforto e danos morais.

Espera-se com o resultado da pesquisa, a construção de abordagens mais

humanas que possam ajudar no cuidado de pacientes que sofrem desta

enfermidade. Esta pesquisa não causa nenhum risco à sua saúde.

Fica acordado que o resultado da pesquisa será informado ao participante.

Durante o período de participação e término da entrevista e mesmo após o término

da pesquisa, fica garantido o sigilo dos seus dados pessoais, dando o direito de

você retirar o consentimento de participar a qualquer tempo.

Nome:

RG:

CPF:

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APÊNDICE B

UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM SAÚDE DA FAMÍLIA MESTRADO PROFISSIONAL EM SAÚDE E GESTÃO DO TRABALHO

TERMO DE ACEITE DE ORIENTAÇÃO

Eu, Yolanda Flores e Silva, Professora Drª da Universidade do Vale do Itajaí

– UNIVALI concordo em orientar a pesquisa para a dissertação de mestrado do

aluno Rodrigo Cechelero Bagatelli, tendo como tema: HISTÓRIA DE VIDA E

SOFRIMENTO FEMININO: UM RELATO AUTOBIOGRÁFICO DA DOENÇA DOS

NERVOS.

O mestrando está ciente das Normas para Elaboração do Projeto de

Mestrado, bem como do Calendário de Atividades apresentado.

Itajaí-SC, 10 de maio de 2010.

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APÊNDICE C

UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM SAÚDE DA FAMÍLIA MESTRADO PROFISSIONAL EM SAÚDE E GESTÃO DO TRABALHO

HISTÓRIA DE VIDA/ORAL DE S. M.4

1. Genograma5 da S. M. realizado em out/Nov 2010

Legendas utilizadas:

Homem Mulher

Casados Divórcio Vivendo Juntos Separados

Vivendo na mesma casa Informante Etilismo Doença Mental Recuperando Dça Mental Relação entre as pessoas:

Distante Amizade/apoio Conflituosa Manipulação Violência

Relação reatada Melhores amigas Relação hostil

4 Todos os nomes das pessoas citadas neste relato foram trocados para preservara identidade da

informante.

5 O Genograma é uma representação gráfica da estrutura e das relações familiares, utilizado em

Medicina de Família e Comunidade para auxiliar na abordagem familiar e entre outros objetivos,

produzir insights para a pessoa que informa sobre seu contexto de enfermidade (MCGOLDRICK,

1995; MCWHINNEY; FREEMAN, 2010)

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2. Ecoma

pa da Sra. S.

M.6

6 O Ecomapa é uma representação gráfica das relações do informante com a rede de apoio social e

foi construído junto com S. M. (MCWHINNEY; FREEMAN, 2010).

Gen

og

ram

a d

a S

ra. S

. M. re

aliz

ad

o e

ntre

ou

tub

ro e

no

vem

bro

de 2

010

Filhos

Pai

Pastor

Psiquiatra

Mãe (falecida) Marido

Hospital

Unidade de Saúde

Sara (igreja) Rafaela (igreja)

Polícia

Queila (filha)

Tio João e tia Tânia

Irmã

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3. Um nascimento cheio de alegria7

Eu nasci em P8 às dez horas da manhã, no dia quatro de julho de 1966.

Dizem que no dia que eu nasci, meu pai, que era meio bravo, ficou muito feliz! Ele

não saía de volta de mim! Ele estava tocando a lavoura no sítio onde trabalhava.

Veio pra casa e não deixava ninguém chegar perto. Queria ficar o tempo todo

comigo no colo, diz que minha avó brigava com ele porque estava com a camisa

suja...

4. Minha Mãe

Minha mãe morreu com cinqüenta e cinco anos. Ela morreu no dia quatro de

agosto e no dia sete meu segundo filho nasceu... Eu aguentei até o dia sete. Morreu

há vinte anos atrás, no dia quatro de agosto, logo quando mudamos para cá. Ela

tinha sido operada do coração em novembro do ano anterior. O médico tinha dito pro

meu pai que ela não ia aguentar muito tempo, só que ele não contou pra gente. Ele

só contou no dia que ela faleceu. O médico veio e nem precisou levar pro IML. Só

veio pra dar o atestado de óbito.

Acho que o coração dela aguentou mal, conforme os médicos falam, ele não

suportou tanta coisa, não é? Ela vinha sofrendo há anos e vendo tanta coisa... Meu

pai tinha se separado dela naqueles dias, não tinha mulher e estava morando

comigo. Aí ele falou “quer saber de uma coisa, vou buscar sua mãe pra viver com

ela, eu tenho que cuidar dela! Eu casei com ela, eu tenho que cuidar dela!”. Aí

arrumou uma casa aqui perto e foi buscar ela. Dalí a dois dias ela faleceu... Eu

penso que se ele não tivesse buscado ela e tivesse vivido longe, acho que ele tinha

7 Este apêndice é o produto final da Transcriação, parte final da metodologia da História Oral que

ocorre após a transcrição da entrevista. Aqui o texto recebe um tratamento pelo autor, que é a

correção dos elementos lingüísticos e textuais para um relato mais fluído e também é colocado em

ordem cronológica (no caso da História de Vida).

8 Retirado para manter a privacidade do sujeito da pesquisa.

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ficado doente. Tinha sido pior pra ele. Porque eu sempre converso com a minha

irmã e falo assim “eu acho que o pai se arrepende muito, não é?”. A sorte dele é

que ele a buscou dois dias antes dela falecer.

A minha mãe era muito doente. Ela trabalhava muito quando a gente era

pequeno. Nós vivíamos mais na casa dos vizinhos ou da minha avó, porque ela era

muito doente. Uma vez ela teve uma hemorragia muito grande. Eu era criança, mas

eu lembro. Tiraram ela enrolada num saco plástico, ela nem se mexia... Eu achava

que ela estava morta. Meu tio teve que levá-la num caminhão para a cidade. Ela

estava grávida e abortou o nenê. E com trinta e três anos tiraram o útero dela, por

causa da hemorragia. Ela era muito nova quando teve esta hemorragia e foi a partir

daí que ela começou a ter as crises, porque na época da menstruação o sangue não

tinha como descer e subia para a cabeça, foi o que os médicos disseram para o meu

pai. Eu acho que isso não faz muito sentido...

Aí ela foi internada no Hospital por um ano e pouco quando a gente era

criança e passou a ser internada por problema mental. Por isso eu acho que esses

problemas já vêm um pouco de família, não é?! Uma vez minha mãe mandou eu e a

minha irmã para São José para passear, mas ela queria era se matar! Aí, quando

cheguei em casa ela tinha tomado remédio de rato! Gritei para os vizinhos e

acudimos ela a tempo e daí ela ficou internada no Hospital Pinheiros de novo. Uma

outra vez eu peguei ela com os pulsos cortados com gilete. Ela se cortou e foi na

cozinha mostrar para nós... era um domingo e estava eu e a minha irmã sozinhas

em casa. Foi aquele pânico de novo! Meu pai chegou correndo e levou ela para o

hospital.

Daí ela ficou fraca da cabeça. Tinha dia que ela fazia meu pai levá-la para P9,

porque minha tia precisava dela. Meu pai viajou com ela e chegando lá, ela quis

voltar imediatamente para Curitiba porque nós estávamos precisando dela...!

Também diz que via coisas, via gente dentro de casa... assim, bem perturbada!

9 Retirado o nome da cidade para preservar a identidade do sujeito do estudo.

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Tinha um poço no fundo da casa onde a gente morava e ela tentava ir pra

dentro, teve até que fazer uma tampa de cimento, pra ela não se jogar. Eu não sei

de nenhum motivo para ela tentar se matar, eu acho que era fraca da cabeça

mesmo. O pai não ficava em casa muito tempo porque trabalhava viajando e ela

ficava sozinha conosco. Depois ela melhorou com uns tratamentos que os médicos

começaram e ficou boa.

Aí logo a gente veio para cá. Com vinte e quatro anos eu estava grávida do

meu segundo filho e a minha mãe faleceu três dias antes dele nascer... Eu estava

nos dias de ganhar e tinha feito todo o enxoval dele. No último dia ela foi lá em casa,

pediu pra eu tirar todo o enxoval do guarda-roupa por cima da cama pra ela ver. Ela

pegou peça por peça das roupas e disse “você está judiando da tua mãe, não é

menino? Eu vou te dar umas palmadas! Quem vai cuidar de você? O primeiro banho

é a avó quem vai dar!”.

Estes foram os dias mais longos da minha vida, mais tristes... porque eu não

dormia, passava sentada na porta de casa. Sentia a dor dele nascer e não queria ir

pro hospital porque não lembrava que estava grávida. Quando minha mãe estava

sendo velada na igreja, eu não saía de volta dela nem um minuto. Até a hora de

sepultar! Eu sabia que não ia ver ela mais, não é? Ela era uma mãe especial, pra

mim foi. Eu sei que todos ajudaram ela da melhor forma possível. Ela tinha o cabelo

bem longo e a mexa do cabelo dela caía por cima, parecia que ela estava sorrindo.

Eu não queria deixar ela nem um pouco. Fui até o cemitério no estado que eu

estava. Não podia andar. Dentro da igreja rompeu a bolsa e quis nascer, mas eu não

fui pro hospital! Fiquei até as últimas horas. Não conseguia lembrar que estava

grávida. Aí me levaram para o hospital e mesmo assim eu não lembrava que estava

grávida.

Lá os médicos tinham me deixado num quarto sozinha. Eu não queria ver

ninguém e quando as outras mães diziam “a vovó veio te ver filha...”, nossa! Aquilo

me dava um desespero tão grande que parecia que eu ia morrer! Eu tinha que sair

do quarto e entrar no banheiro pra não ver! Eu lembro que o médico chegou pra mim

e falou “o fruto não cai da árvore se não está maduro! Você não pode ir embora

agora, você tem que ficar aqui até nascer o bebê!”. Eu só queria ir pra casa.

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Fiquei vários dias internada, porque eu fiquei doente também...sentia muitas

dores no corpo, doía toda as juntas do meu corpo, doía tudo. Não conseguia pegar

nem o neném no colo pra dar de mamar. Precisava da enfermeira pra dar de mamar.

Depois eu nunca mais tive isso. Eu fiquei sete dias lá, tinha febre, mas acho que

tudo era por causa dos nervos que eu estava passando.

Depois que ele nasceu é que eu fui cair em si que eu estava grávida! Que eu

tinha um nenê... Daí eu lembrava da minha mãe direto. Eu estava no pré-parto

quando a enfermeira entrou, depois que ele tinha nascido, para tirar a pressão. Eu

pensei que era minha mãe que estava entrando. Aí ela entrou e disse pra mim, não

sei se estava sonhando ou o quê que era, sei que ela disse pra mim “já nasceu o

nenê? O quê que é?” e eu falei, abri o olho e era a enfermeira. Aí eu entrei em

pânico na hora! Daí eles me sedaram e no hospital eles me deixavam sedada. Eu

dormia o tempo todo quando ele nasceu. Fiquei quase louca da cabeça quando ela

faleceu! Eu não achei que perder a mãe ia ser tão difícil!

Achava que minha mãe tinha fome, sede... Toda noite quando eu achava que

o sol ia se pôr, nossa! Parecia que eu estava sufocando junto com ela na terra! Fiz

várias vezes meu marido me levar no cemitério. Queria entrar no caixão por força.

Sei lá, me dava uma aflição muito grande! Não sei se por causa da gravidez que eu

estava. Sei que foi muito triste quando ela morreu.

Após a alta do hospital, o médico passou os remédios e fui pra Curitiba, na

casa da minha tia. Fiquei lá até melhorar e depois fui embora. Lá eu melhorei bem,

porque ela ia dar aula e deixava uma pessoa para cuidar de mim em casa. Uma vez

passei mal e era noite. Ela ligou para o médico e ele mandou fazer um chá tipo

calmante para eu tomar e daí eu dormi bastante e melhorei. Quando fui para casa já

estava cuidando da família, do meu pai, do meu irmão, de tudo...

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5. Infância em P10

Eu não lembro muito antes dos seis anos de idade... Hoje em dia as crianças

com seis anos parecem mais espertas, não é? Só lembro que minha mãe já avisava

quando o pai estava vindo da roça: “ó, teu pai está vindo! não vão fazer bagunça

senão papai vai bater! Não corra dentro de casa!” ela dizia pra nós, “não vai dar

risada senão vocês apanham!”. Meu irmão era pequenininho. Então a gente já...

ficava dentro do quarto. Minha mãe era acostumada a dar a janta pra nós mais cedo

e a gente ficava dentro do quarto, porque ele era bem nervoso.

6. Infância e adolescência em São José dos Pinhais

Eu não lembro muito de antes dos seis anos, só sei que nós chegamos em

São José e fomos morar na casa da minha avó por parte de mãe, porque ela já

morava aqui. Por parte do meu pai eu não conheço, eles moram em Aracaju-

Sergipe.

A gente veio porque lá diz que teve a geada preta que queimou todos os

cafezais. Não tinha serviço, pois meu pai mexia com café. Ele não tinha terra,

trabalhava pra alguém... Não tinha solução, daí tivemos que vir embora. Daí a gente

ficou com eles até meu pai arrumar um emprego. Aí ele arrumou um emprego,

alugou a casa e fomos pra casa da gente. Então eu comecei a estudar. Eu estudava

no Silveira da Mota. Essa é a parte que eu mais lembro da minha infância.

Na escola, como a gente era mais humilde, mexiam muito com a gente... Eu

não levava desaforo pra casa! Os outros podiam até falar qualquer coisa comigo, eu

aceitava. Mas se mexessem com minha irmã, que ela era bem quietinha...! Ficavam

chamando ela de mendiga. Uma vez eu quase matei uma menina! Passei a mão

numa vara, numa vara de cerca que tinha perto e o prego estava junto... Era uma

ripada e o sangue descia... Porque eu vi a minha irmã chorar e ser humilhada! Eu

10

Retirado o nome da cidade para preservar a identidade do sujeito do estudo.

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não acho direito a pessoa humilhar ninguém! Não que eu não sou mais do que o

outro. Pode ser em estudo e em dinheiro, mas eu acho que no caráter e na

dignidade nós somos iguais! Aí eu lembro que meu pai também dizia que se nós

apanhássemos no colégio, apanhava em casa. Então não podia apanhar no colégio.

A gente estudava e não era de provocar ninguém, mas sempre tinha alguém que

gostava de... assim... cutucar a gente! Sempre tem um ou outro que gostava.

Comigo não mexiam, mas a minha irmã, como era bem quietinha, menor, eles

empurravam, derrubavam, batiam, daí eu não aceitava, não deixava.

Eu lutava por ela e pelo meu irmão. Eu ia na escola defender ele dos

meninos! Eu levava tapa dos piá, mas eles levavam também! Eu ia bater neles no

colégio! Eu ia buscar e não deixava... Eu achava que era a irmã mais velha e não

podia deixar espancar os meus irmãos! Eu tinha os dois, os dois irmãos que era a

Marcela e o Mauro. Eu sou mais velha que a Marcela dois anos e do que o Mauro eu

sou quatro anos.

Quando era criança o Mauro apanhava porque vindo da escola, passava no

rio, tomava banho, chegava em casa e todo dia levava uma surra. Mesmo assim, a

gente falava: “Mauro, você não cria vergonha na cara! o pai quase mata você e você

ainda...”. Pior que se batesse só nele! Mas meu pai era meio ignorante, se ele fosse

bater em um ele pegava nós três! Apanhava todo mundo junto! Fizesse ou não

fizesse errado apanhava! Porque apanhava eu e com a minha irmã que entrava no

meio daí, não é? Daí era aquele sufoco quando meu irmão estava indo pra escola, a

gente ficava com o coração na mão e falava: “Ah meu Deus! o Mauro vai passar no

rio e vai demorar! Papai chega e ele não está em casa... vamos apanhar todo

mundo!”. A nossa sorte é que a avó corria para acudir! Um dia ela pegou com ele: “O

dia que você for bater no que estiver errado, você bate naquele que estiver errado,

não naquele que não fez nada errado!”. E ele considerava bastante a minha avó

porque ele a chamava de mãe. Daí ele parou.

Ele parou de fazer isso quando eu tinha mais ou menos quinze anos pra cima.

Só que daí a gente ficava preocupada com meu irmão, não é? Porque daí meu Deus

do céu... meu irmão era teimoso! A gente dizia “Mauro, não vai no rio! Mauro, chega

na hora certa senão o pai vai bater em você!”. A gente escutava aqueles barulhos

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batendo, como num cavalo e não podia nem chorar! Não escutava choro! Escutava

os barulhos...

Para bater ele colocava a gente num quarto, fazia ficar sentado e ele falava

assim: “Engole o choro! Não deixo chorar!”. Batia em nós com aquele negócio do

facão, a bainha, e não deixava nós chorar. Se nós chorássemos ele jogava a gente

pelas paredes. Nós tínhamos que engolir o choro! Apanhava de ficar mancha deste

tamanho nas costas inteirinha! O meu irmão uma vez estava vendendo sorvete. Só

porque estava na frente do bar sentado, esperando para encher a caixinha de

sorvete, ele trouxe meu irmão em casa e quase matou meu irmão. Deixou ele com

as costas toda preta! Toda preta... Ele batia com a bainha do facão ou com a cinta.

Quando eu tinha dez anos, ele nos surrou tanto com a cinta que a fivela pegou no

meu umbigo e fez uma ferida enorme. Ele bateu e puxou... Nossa, foi feio!

Outra vez... a minha irmã era muito chorona, mas eu conseguia segurar o

choro. As lágrimas escorriam, mas eu não soluçava... Só que ela começou a

soluçar! Daí ele jogava ela pelas paredes. Daí eu gritei, pra ele “não papai, não faça

isso!” e coloquei a mão no rosto. Daí ele me deu ...tipo de um murro e eu também fui

pra parede que ele jogava. Daí minha mãe entrou junto, ele viu e acho que com

medo de ter matado minha irmã, saiu. Minha mãe nos pegou e saiu de dentro de

casa. Foi pra casa da avó, mas de noite ele veio buscar. Só que era assim: ele batia

agora e depois chegava como se nada tivesse acontecido! Não falava nada! Ele

chegava na casa da minha avó, pegava minha mãe e falava “eu vim buscar você

com as crianças”. Minha mãe voltava... Ela pegava a gente pra ele não bater mais e

íamos pra casa da avó... aí a gente voltava pra casa!

Eu tinha medo de dormir. Meu pai dizia que se nós não ficássemos quietos

ele matava a mãe. Nós íamos dormir de noite com medo dele matar ela, não é? A

gente ficava com aquela coisa na cabeça e nem dormia. Daí de passo em passo, eu

levantava devagarzinho e ia lá no quarto pra ver se estava tudo bem. Eu chamava

“mamãe!” - sempre chamamos de mamãe e papai-. Daí ela respondia assim “Está...!

Vai dormir menina!”. Mas a gente ficava com aquele negócio na cabeça... Que tal

que ele matasse ela?! Mas ele só falava, não fazia...

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Sempre sofrendo desde criança, nunca fui uma menina feliz, não! Eu tive que

cuidar de casa como uma dona de casa desde pequena... Senão quando ele

chegasse, quando ele entrasse dentro de casa, era só sofrimento... era só apanhar

... Não era como as outras crianças, não! Minha mãe não podia falar nada, se ela

falasse ela também apanhava. Ela tinha que ficar quieta, só assistindo...

Trabalhava assim na lavoura eu nunca trabalhei não. Quando a gente foi

embora pra Curitiba, eu comecei trabalhar, mas daí fiquei com um problema sério

nos rins, fiquei internada dezesseis dias entre a vida e a morte na Nova Clínica e daí

não aguentava trabalhar. Trabalhei pouco tempo a partir daí. Trabalhava na casa de

doméstica, mas não aguentava trabalhar. Ele nunca obrigou nem o meu irmão a

trabalhar pra fora, ajudar em casa. Ele nunca obrigou a ter que trabalhar e dar tanto

de dinheiro em casa! Minha mãe nessa parte ela já era mais... crica. Ela queria que

nós arrumássemos serviço pra trabalhar. Aí meu pai dizia: “Não adianta trabalhar,

ela tem problema nos rins e é melhor ficar em casa. Enquanto ele estivesse ciente

de que a gente estava doente ele tratava bem. Sarou e ele achava que precisava

apanhar, ele batia mesmo! Isso era mais ou menos quando eu tinha catorze anos.

Desde que meu pai começou a trabalhar viajando eu tinha que fazer o serviço

de casa... Pra isso eu servia. Ele chegava em casa e dizia “ah, vem pra cá fazer

isso” ou “segunda feira, eu vou viajar , aí você vai pra casa da tua tia. Final de

semana você vem pra casa e limpa a casa”. Eu era tipo uma empregada! Tinha que

fazer o serviço de casa! Aí quando ele saía pra viajar, eu tinha que ficar na casa com

a minha tia... A minha tia me tratava bem... É que em casa eu não prestava. Mas pra

trabalhar eu servia! Estudar que eu tanto quis, eles não deixavam. Eu estudei só até

a sétima série.

Meu tio... Eu amo ele como um pai. Até hoje se eu precisar de alguma coisa é

só ligar. Tudo o que eu precisar é só ligar para eles. Tanto que meu pai às vezes

fala: “tudo pra você é sua tia, tudo pra você é...”. Mas realmente é mesmo! Na outra

vez que eu fiquei internada, no Hospital psiquiátrico, eles sempre estavam lá. Meu

tio chegava fora do horário de visita e mesmo assim eles deixaram ele entrar. Ele é

como um pai pra mim. Tenho por ele um carinho, um amor como de um pai.

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Para ter um namorado, Deus o livre?! Se arrumasse um namorado, para ele

tinha que casar. Então eu tinha que namorar escondido dele... e ele não podia nem

perceber porque se ele percebesse...! Eu namorei várias vezes escondido! Eu acho

que quando um pai proíbe, todo mundo namora escondido! Quando um rapaz vinha

pro meu lado, no começo eu tinha medo! “Se o meu pai pegar a gente ele vai matar

nós dois!”. Ele dizia pra mim “se um dia você aparecer em casa grávida... eu mato

você!”. Tanto que quando minha irmã engravidou, eu falei “E agora? O senhor vai

matar ela?!”. Ele respondeu “Ah, os tempo mudaram...!”. Eu disse “Ah, eu podia

morrer então, não é?”! Eu acho que ele era muito antigo!

Ele não sabia conversar com a gente. Quando a gente vê que os pais brincam

e sorriem... Meu pai não era assim! Nunca foi. Eu dava graças quando ele ia pro

serviço e ficava triste quando era hora dele chegar. Por que ele era desse jeito. Já

pensei... quando eu era criança, pensava que se ele morresse seria bom. Hoje eu

fico triste de pensar isto. Mas é que ele era muito bravo!

A gente não contava pra ninguém, porque se nós contássemos seria pior!

Nós tínhamos que voltar pra dentro de casa... Não tinha pra onde mais ir. Nós

tínhamos que apanhar e ficar quietos dentro de casa. Hoje eu vejo muitas crianças,

só por causa de uma tapa, os pais vão parar no Conselho Tutelar. E o que eu e os

meus irmão passamos, não é? Nunca ninguém fez nada. A gente aguentou calado

todas as coisas. E estamos aqui, mas com catorze anos comecei a tomar remédio

pra nervo. Tomava o diazepan®.

7. Dos internamentos

Quando eu tinha dezesseis, dezessete anos meu pai quase me matou. Eu

estava noiva do meu esposo e ele me bateu tanto que eu fiquei vários dias internada

na Santa Casa. Os médicos perguntavam e eu não falei com ninguém! Não abri a

boca para médico nenhum! Não tinha vontade de conversar com ninguém, senão

teria que entregar ele e eu não queria, pois tinha medo.

Aconteceu que eu estava conversando com uns amigos e o meu esposo.

Chegamos da igreja em casa e ele disse “aquilo não é coisa de moça decente! Ficar

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conversando na esquina...! E me bateu bastante, me deu murro... eu nunca tinha

levantado a voz pro meu pai! Nunca. Aí aquele dia ele bateu demais, pegou uma

vara e não contente, pegou um cabo de vassoura e não contente com o cabo de

vassoura me machucou todinha.

Aí eu peguei uns livros que estavam em cima da estante e joguei nas costas

dele! Aí ele me deu um murro na cara, me jogou em cima da cama e foi sangue pra

tudo era lado. Isso aqui ficou tudo preto! As costas, as pernas, tudo! Aí minha mãe

gritava pra eu parar. Gritava para não avançar nele, aí eu avançava, porque eu já

estava apanhando demais! Aí quanto mais eu avançava, mais ele surrava! Porque

ele não aceitava! Meus dedos, minhas mãos, ficaram toda inchada, toda

machucada! Até sangue eu cuspia! Aí ele deitou, dormiu a noite inteira... Eu não

dormi. Eu não conseguia dormir de dor e via meus irmãos chorando de medo. Minha

irmã dizia “é melhor você não voltar, porque ele vai bater de novo!”.

Mas eu não conseguia dormir! Levantei de manhã. Ele era crente e ia pra

igreja, eu passei pra minha mãe e fiz de propósito: dei benção pra ela, mas não dei

pra ele! Aquele dia eu estava disposta, eu já tinha apanhado muito dele não ia

aceitar mais. Se ele ia me matar de vez mesmo... Daí ele falou pra minha mãe:

“Essa menina é muito ruim, nem pra me dar a benção!”. Daí ela falou assim:

“Depois de tudo que você fez com ela, com a cara toda roxa, você quer que ela te dê

benção?!”

Aí ele chegou pra mim e falou: “Você vai na igreja?!”. Eu falei: “O senhor tem

coragem de perguntar se eu vou sair na situação que eu estou?!”. Porque eu fiquei

toda inchada! Meu rosto ficou todo preto! Aí eu levantei o vestido, mostrei minhas

pernas e minhas coxas como estavam. Daí ele ficou quieto. Eu vi ele chorando. Ele

chorou. Aí me deu acho que um desmaio e quando acordei eu estava na Santa

Casa de Curitiba. Eu fiquei vários dias internada lá, oito dias em coma. Eu tinha

tentado o suicídio tomando todos os remédios de nervo que eu tinha, pra me matar

mesmo! Mas infelizmente não morri. Tomei pra me matar mesmo... Não deu certo.

Eu fiz com a consciência, sabendo o que eu estava fazendo. Eu queria sair daquela

vida. Eu queria me livrar daquela vida que eu não podia ser feliz! Não podia ter, sair,

nem conversar com amigos nem nada!

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Esta foi a primeira vez que fiquei internada por esses problemas. O médico

vinha e perguntava o que é que foi aquilo, o que aconteceu e eu não falava com

ninguém! Eu não abria a boca pra dizer o que foi ou o que não foi. O tempo todo que

eu estava lá eu não conversava. Não tinha vontade de falar nada. Se eu fosse abrir

a boca eu teria que falar a verdade. Eu não queria machucar meu pai. Eu só sei que

ele chegou ao hospital e eu mandei tirar ele pra fora do quarto. Isso eu mandei! Ele

foi junto com o pastor e eu pedi pra enfermeira que tirasse ele “tira meu pai pra fora

que se não eu vou chamar os médicos e vou contar tudo”... O pastor ficou no quarto

e ele saiu chorando. Ah, por que ele foi lá me ver se ele tinha me machucado?!

Acho que ele não aceitava, porque eu nunca tinha reagido! Toda a vida eu

apanhei e ficava quieta, apanhava quietinha! E quando ele me deu o soco na cara, a

dor foi tão grande que eu voei nos livros e joguei nele sem pensar, nem pensei!

Taquei nas costas dele! Aí ele voltou e não se contentou, não é? Era vara, era cabo

de vassoura, o que ele pegava ele mandava... Foi a última vez que eu reagi.

O pessoal da igreja aconselhou bastante o pai, falaram que o que ele fez era

muito errado, que aquilo podia dar cadeia pra ele. Eles falaram que ele não deveria

agir desse jeito. O pastor ainda falou para ele “você tem uma filha que canta na

igreja... como é que você tem coragem de fazer uma coisa dessas?! Se fosse uma

moça que não parasse em casa...”. Eu ia cantar para fora, já cantei em São Paulo

uma vez com minha irmã. Acho que se eu fosse uma pessoa errada, talvez ele não

fizesse aquilo... Daí minha tia, que é pedagoga, não deixou eu voltar pra casa depois

da alta e então fui morar com ela e meu tio em Curitiba. Fiquei lá até casar. Nessa

época meus pais foram embora pro norte, pra P11.

Eu já tinha sido internada duas vezes por causa dos rins no hospital Nova

Clínica quando eu era solteira. Depois do casamento eu tive mais dois

internamentos nestes últimos tempos porque tomei muito remédio. No começo

desse ano fiquei quase cinqüenta dias. Deu uma crise forte de novo e... eu tornei a

11

Retirado o nome da cidade para preservar a identidade do sujeito do estudo.

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fazer bobeira, tomar os remédios... Quando eu acordei já estava na UTI do Hospital

Nova Clínica e o doutor que atendeu falou pro meu esposo que por cinco minutos eu

não teria mais chance de sobreviver.

A psiquiatra disse que eu não estava bem mesmo, que por causa da minha

cabeça eu tinha feito aquilo. Ela perguntou no hospital pra mim por que eu tinha feito

aquilo. Eu falei “eu fiz porque eu estava me sentindo muito mal, eu queria que saísse

o que eu estava sentindo! Eu não virei o vidro de remédio de uma vez e tomei. Eu fui

tomando um, depois eu ia lá e tomava mais um, quando eu vi tinha tomado todos os

remédios e daí passei mal. Deitei e meu marido achou que eu estava dormindo, se

não fosse a minha irmã chegar em casa eu já tinha morrido!”.

Nesta época do primeiro internamento por estes problemas eu ouvia vozes,

via vultos, pessoas me chamando e até minha mãe que tinha falecido. Às vezes eu

saía de casa pra ver porque eu ouvia nitidamente, como se tivesse alguém

conversando comigo. As vozes me chamando e aí fiquei meio desnorteada.

Eu não tentei me matar de propósito! Foi um dia de domingo, eu sentia muita

angústia! É uma coisa que eu não sei explicar! Quando a gente está bem... Mas

quando bate aquela angústia... É uma coisa lá de dentro! Parece que tem algo lá

dentro que a gente quer arrancar pra fora e não sai! Parece que está tudo negro, o

dia parece que está tudo... turvo, tudo escuro! É uma angústia que ninguém... Acho

que só quem passa por isso é quem sabe dizer o que é isso! Eu acho que quando

eu estou angustiada, eu acho que se os remédios são pra depressão, então vão tirar

essa angústia, não é? Eu tomo um, vejo que não passa, tomo mais dois, vejo que

não passa... e vou tomando! Quando eu vi já tomei tudo! Eu tento tirar aquilo que eu

estou sentindo.

Fiquei cinco dias internada. Tive alta, vim para casa. Daí os médicos daqui

foram em casa, acho que o hospital passou alguma coisa para eles, não sei. Aí eles

viram que eu não estava melhor. Eu tinha retorno com psiquiatra do convênio, fui lá

e ele viu que eu não estava bem e me internou de novo. Fiquei trinta dias internada.

Saí melhor.

Na segunda vez a psiquiatra disse que eu não estava boa e que eu tinha ficar

trinta dias internada. Fiquei internada no Hospital Psiquiátrico por vinte dias, só que

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daí atacou os rins e inchei todinha. Meu esposo foi me buscar e fui internada no

Nova Clínica. Fiquei mais quinze dias internada, porque meus rins não estavam

filtrando. Tiveram que passar sonda porque eu não conseguia urinar. Não sei se era

dos remédios, mas fiquei muito ruim. Depois nem voltei pra tirar os outros dez dias

daí, eu não ia querer voltar de novo!

Esses dias até pra tomar banho estava difícil. Não tinha coragem de levantar

pra tomar banho, não tinha coragem de fazer nada! Cuidar da minha casa, dos meus

filhos, como é que eu vou viver desse jeito?!

Eu penso que com os remédios, cada dia eu vou melhorar um pouco mais. Eu

tomo os remédios com esse objetivo. Estou tomando pra hoje estar melhor e

amanhã se Deus quiser melhor ainda! Acho que se os médicos passam os

remédios, eles sabem o que estão fazendo. Realmente eu penso que se o psiquiatra

passou remédio para depressão ele sabe o que está fazendo. É para tirar aquela

angústia, aquele mal-estar. Eu tomava um monte de remédio: fluoxetina®,

depakene®, carbolítio®, eram tantos comprimidos que minha família não deixava

pegar, o meu esposo é quem me dava. Era perigoso misturar tudo. Engraçado que

eu estava tomando tanto remédio, mas em vez de melhorar... no começo dos

remédios até que fiquei bem. Melhorei bastante há uns três anos. Aí quando deu

mais ou menos um ano e pouco, parece que começou a não resolver nada. Foi

quando a psiquiatra me internou da primeira vez porque eu tinha tomado remédio

demais. Se eu soubesse... É uma coisa horrível o que eles fazem com a gente no

hospital, para desintoxicar a gente. Nunca mais eu quero fazer uma coisa dessas...

Nos internamentos é assim: quando a gente não está boa a gente fica

sedada. Aí quando começa a melhorar eles põe pra fazer os artesanatos. Eles não

deixam mexer com tesoura ou agulha, essas coisas não! Quem está melhor às

vezes pode fazer um crochê, mas senão, não chega nem perto dessas coisas! Vai

fazendo biscuit, aprendendo com as pessoas que estão lá para ensinar. É gostoso

porque passa o tempo e a gente nem vê. A gente aprende a fazer caixinhas de porta

jóias, tem umas pessoas que vão lá tocar violão e a turma canta. A gente fica

ouvindo e parece que melhora!

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Por que em casa não é assim também? Não sei se é o jeito deles nos

tratarem, de fazer... Os terapeutas às vezes vêm conversar com a gente, fazem

reunião... A gente se sente bem melhor! Aí eu fico pensando: por que em casa a

gente não pode fazer a mesma coisa? Ser assim também, não é? Pode ser que eles

tenham um dom, sei lá, de mexer com a gente, de tirar aquilo que a gente está

sentindo...

Depois dos primeiros dias internada ia melhorando bastante. Uma vez eu tive

uma crise forte no hospital, a médica me deu uma injeção que eu dormi o dia inteiro!

Acordei só no outro dia. Me deu desmaio e eu não voltava! Eu ouvia a médica

falando, mas não podia falar! Às vezes eu não estou passando bem. Eu levanto,

começo a passar mal. Representa que não sou eu, parece que eu estou drogada...

É um mal-estar incontrolável!

Até que esses dias eu fui consultar com a psicóloga do Posto de Saúde e ela

não teve condições de me atender. Não dava nem para conversar! Eu não

conseguia nem falar! Parece que a boca fica toda torta, as palavras não saem... E os

olhos ficam bem fundos, roxos! Eu acho que a depressão estava muito atacada. Eu

não conseguia olhar direito firme, que os meus olhos tem que ficar fechados, se não

tiver alguém me segurando, eu não consigo nem andar. Daí ela falou “não tem

condições de consultar ela porque ela não aguenta nem falar...!” e daí eu fui

internada e fiquei um dia e uma noite no pronto-socorro de São José. Eu nem sei o

que fizeram comigo porque eu dormi o tempo todo! E saí melhor. Acordei, já estava

bem melhor. Então eles me encaminharam para um hospital psiquiátrico de Curitiba.

Chegamos lá e o médico falou pra mim que não precisava nada. Nem consultei com

o médico lá! Vim embora.

Eu não posso reclamar dos hospitais daqui, eles tratam bem a gente! Eu

chego aqui no postinho, sou bem atendida, chego no hospital sou bem atendida. Eu

não tenho do que reclamar. Eu vejo muita gente reclamar, mas eu acho que é

porque não tem paciência. Não tem como chegar no hospital e querer ser a primeira,

se já tem gente na frente. A não ser que seja grave, daí é diferente mas se não, tem

que esperar a vez da gente, não é?

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8. Meus filhos

O meu filho mais velho chama casou faz quatro meses. Ele é... como é que

eu posso dizer? Ele é bem calmo, carinhoso. Ele é aquele filho assim, que todo dia

vai me ver todo dia. Aí eu tenho o segundo filho. Esse tem vinte anos, o mais velho

tem vinte e cinco. Esse é o que não ficava longe de mim nem um dia. Aí se ajuntou

com uma moça... às vezes leva semanas sem ir em casa. É o que dizia que mais me

amava, dizia “mamãezinha eu te amo” e é o que menos vem em casa. E aí eu tenho

o terceiro, com catorze anos. Ele estuda, é trabalhador e é músico. Está no primeiro

ano e trabalha durante o dia assentando cerâmica Ele não dá trabalho nenhum. Ele

toca sax na igreja. Graças a Deus meus filhos estão sendo trabalhadores.

O mais velho toca trombone. O segundo filho também é músico, só que ele

não gosta de tocar muito, ele toca trombone de vara, mas o dele mesmo é bateria. A

menina, a caçula tem dez anos e quer fazer aula de violino e harpa. Ela gosta

bastante de violino e tocar harpa.

O segundo menino sempre foi mais espoleteado e o meu marido nunca foi

desses pais de bater, de castigar. Já comigo não! Em casa eu tinha que castigar, pôr

de castigo, ir na escola, em reunião, sempre eu que tive que corrigir. Porque o meu

marido não faz essas coisas. Eu é que sempre estava pegando ele, quando fazia

arte na escola. Quando as professora me chamavam, eu chegava em casa corrigia

ele. Colocava de castigo, chamava atenção e se às vezes era necessário, dava

umas varadas, porque eu acho que umas varadas não matam, sabendo dar, não é?

Pegava uma varinha na rua e dizia “você sabe por que você vai apanhar

agora?”, ele dizia “Não...!”, eu respondia “Você não sabe? A professora não chamou

a mãe lá, porque você fez isso e isso dentro da sala?”. Daí ele começava “Mãe, se

você me der mais uma chance...!”. Ele era tão chantagista! E comovia a gente, não

é?! Na minha igreja tem um corinho que cantam e ele cantava pra mim assim “Se tu

me amas de todo o coração, me mostra teu sorriso, me dê a tua mão...”. Aí eu tinha

dó, mas mesmo assim eu dava as varadas! Porque eu falava assim “Se a mamãe

promete um presente, você vai cobrar de mim! Então, as varadas que eu disse que

ia te dar eu tenho que dar! Eu te amo sim, de todo meu coração, te dou minha mão,

mas... você vai levar umas varadas!”.

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Aí ele vinha pra mim “você não me ama não!”, mas eu dizia “é claro que eu te

amo, você não sabe o quanto eu te amo! Se eu tiver que tirar o meu coração pra te

dar, para pôr em você meu filho, eu dou... eu te amo muito! Você é que não sabe!”.

Ele era mais peraltinha do que os outros na escola.

Se deixar, os filhos ficam do jeito que querem! Eles dizem “pai, me leva em tal

lugar?”, ele leva, “ faz isso?”, ele faz. Quando eram pequenos, ele saía com as

crianças pra tudo que é lado.

9. Meu problema de sistema nervoso

Toda a vida eu tive problema de sistema nervoso, doutor. Tem hora que eu

acho que estou ficando louca. Porque tudo o que eu faço não dá certo e não tenho

vontade! Parece que dá um branco na mente e eu não consigo... Tem coisas que eu

lembro, tem coisas que não. Esses dias eu ia levar ela no pediatra e eu não

conseguia lembrar da cara do doutor. Como é que eu vou levar ela que eu não

conheço o médico mais! Eu não sei o que é isso! Parece que representa que eu

estou ficando louca.

Conversando dentro de casa com meus meninos, eles falam: “mãe! você

lembra de tal dia, isso e isso...” e eu falo: “não, não lembro”. Então é uma coisa

estranha, tem coisas que eu converso que eu não lembro. Às vezes coisas de dois

dias eu não consigo lembrar mais.

Eu sou evangélica. Antes, eu cantava e agora não tenho vontade mais. Eu

toco clarinete na orquestra e voltei a tocar estes dias, pra ver se me ajuda. Só que

até as músicas... Parece que somem da cabeça. Eu tenho as notas ali e não

consigo, preciso que o maestro me passe separado pra eu tornar a pegar. Sempre

são as mesmas notas, como eles falam, são as mesmas notas semicolcheia... Por

que eu esqueço?! Então fica confuso, não é? Tem outras músicas que eu já vejo e já

faço, toco tranquila.

Com tudo isso eu só não quero esquecer dos meus filhos! Porque se eu

esquecer deles, que são a razão de eu viver... Se não fossem eles, eu não iria

querer viver mais. Porque eu tenho um passado muito difícil... E ainda prá ajudar,

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meu esposo está afastado da firma por invalidez no braço por causa de um

acidente... Até falta das minhas coisas de dentro de casa eu já passei estes dias.

Não consegui receber nada do INSS até agora. Entramos na justiça por causa

da minha doença, ganhei a causa e até agora nada. Tem médico perito que disse

que eu posso trabalhar, tem uns que dizem que eu não tenho condições de

trabalhar. Fui obrigada a sair da firma pra trabalhar por que é perigoso pra eu

trabalhar. Eu estava trabalhando na Barduchi, uma empresa de lavanderia industrial,

dobrando roupas em cima da esteira e ali era muito corrido. As máquinas que vão as

roupas são perigosas e que tal se eu desmaio e caio ali dentro? E tinha que

atravessar a BR para chegar lá, era muito perigoso se desse um desmaio ou coisa

assim. Conversei com eles e fui demitida.

Porque parece que ninguém me entende? Quando eu sinto as coisas eu não

tenho com quem conversar. Nem desabafar. Todo mundo fala... Minha irmã fala que

não existe este negócio depressão. Que é coisa da minha cabeça. Se fosse da

minha cabeça... eu tento tirar! Por que não sai?!Por que não sai esse, esse...?!

O desmaio às vezes eu sinto de repente. Sentia um mal-estar grande, tipo

uma ânsia de vômito muito grande, um mal estar, um enjôo muito grande, dali a

pouco... apagava tudo! Começava a suar as mãos e desmaiava. Aí depois que eu

voltava, me sentia melhor! Eu acho que isso tinha a ver com o nervoso, porque eu

trabalhava na firma, tinha que cuidar da casa, fazia as coisas e pensar em tudo.

Outras vezes dá aquela tontura e eu vou com tudo para o chão. Às vezes eu fico tipo

assim, meio apagada, mas ouvindo e às vezes eu não vejo nada. Nesta semana

deu. Caí dentro do banheiro, fiquei horas dentro do banheiro, tentava pedir socorro,

mas não podia falar. Meu esposo que estava dentro de casa não viu porque eu caí

dentro do banheiro. Eu demorei e ele nem percebeu. Domingo eu fui votar aqui na

escola e tem uma escadaria. Na hora que eu fui descer me deu uma tontura, caí,

machuquei o joelho e o braço, está tudo preto... É de repente! Se eu passar

nervoso... logo, logo dá.

Quando eu fico com bastante nervoso, já vou pra dentro do quarto em cima

da cama, porque se der lá eu não vejo nada e não vou me machucar. Uma vez me

queimei. Tenho marca aqui porque estava passando roupa. Eu caí e o ferro caiu por

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cima. A sorte é que meu filho chegou a tempo. Outra vez passei a mão na extensão,

não sei como que eu fiz isso e joguei por cima do fio da coisa. Aí eu voltei em si.

Levei um susto! Tirei a corda, a extensão e joguei do lado. Fiquei até com medo de

mim mesma.

Aí os médicos não querem que eu saia sozinha, dizem que é perigoso eu sair

sozinha... Tem dia que eu estou bem e não sinto nada, parece que não tenho nada!

Mas outros dias já passo bem mal. Esses tempos os médicos me proibiram de sair

sozinha, meu marido tinha que estar sempre comigo quando eu ia para fora.

Teve uma vez que cheguei aqui e a psicóloga do Postinho que me

acompanha não teve condições nem de me atender. Eu não conseguia nem falar.

Eu fico diferente, parece que eu fico com os olhos roxos e a minha vontade é só ficar

deitada, não quero sair nem comer!

Tomei muito antidepressivo já, estou sem os remédios agora porque estou

sem o psiquiatra. Engordei bastante e acho que o remédio faz engordar. Pesava

setenta quilos e já estava pegando cento e poucos quilos. Pedi para a médica daqui

do posto de saúde me dar um remédio para emagrecer, ela não quis me dar. Ela

disse “olha, eu não posso te dar”. Eu falei “mas doutora eu não quero continuar

neste peso doutora, porque é... é incômodo não é? E as roupas ficam tudo...”. Até

brinquei com ela “eu estou sem condições de fazer um guarda roupa novo, não é?!”

Então ela ficou responsável de conseguir um psiquiatra para conversar sobre isso.

Eu acho que agora estou emagrecendo mais, depois que eu fiquei sem os

antidepressivos... Algumas roupas eu já consigo vestir, mas tem umas que não

entram!

Acho que tudo isso é sistema nervoso, tanto que ataca depressão... É sistema

nervoso... Uma crise de nervo sim. Quando uma pessoa é muito nervosa, qualquer

coisa a gente já fica agitado, eu acho que é crise de nervo. Para quem é nervoso,

qualquer coisinha irrita a gente. É diferente quando é crise de nervo. Quando se está

com a crise de nervo a gente perde o controle de tudo! Daí quando vê, já fez o que

não deveria ter feito... ou bobeira, sei lá. Até brigar com outras pessoas, não é? Tem

muitas pessoas que perdem o controle, não é? Perde o controle e dá um ataque,

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uma crise de nervo... briga com quem tiver na frente! Acho que não importa o lugar,

às vezes isso acontece em firmas, em filas de banco.

A gente vê muito caso de pessoas se irritando com pouca coisa, por uma

demora. Eu não tenho paciência de ficar muito tempo esperando! Se eu tenho que ir

a algum lugar, um compromisso eu faço questão de estar no horário certo. Se eu

tenho que sair com alguma pessoa e ela não chegou naquele horário, eu não

espero! Então crise de nervo é mais ou menos isso, a pessoa se irrita por pouca

coisa. Por mais que a gente não queira! A gente tenta controlar, mas não consegue!

Quando eu fico muito nervosa... Não sei se ajunta o problema de depressão,

eu vou parar no hospital, porque eu tento me aliviar daquele nervoso que eu estou

sentindo com os remédios que eu tenho em casa. Eu tento me socorrer com aquilo!

É aonde que eu faço bobeira, tomo demais. Eu tomo tudo e é aonde que eu não vejo

mais nada e quando acordo, estou no hospital. Eu não lembro, pra ser sincera... Eu

não lembro o que eu fiz ou o que eu estou fazendo. Eu acho que naquela hora, que

estou com aquela angústia, eu tomo os remédios e dá a um branco, alivia! A gente

fica meio em estado de choque, não sente nada! Daí quando a gente acorda no

hospital, parece que acorda mais aliviada!

Então é por isso que eu mesmo nem quero que fiquem os remédios comigo,

porque eu tenho medo da hora que dá a crise. Graças a Deus tem mais de semanas

que eu estou bem melhor. Espero que não volte mais. Isso é o que eu estou pedindo

a Deus, que não volte mais, porque tenho passado bem e não tenho sentido mais

esses negócios. Estou bem melhor, então espero que não volte mais essas crises.

Eu também tive desmaios. Eles dão de repente. Às vezes eu estava fazendo

alguma coisa e quando eu via que ia me dar, corria, gritava porque podia não dar

tempo. Se eu não percebesse que ia acontecer, era perigoso me machucar, cair.

Mas quando eu percebia que ia me dar eu sentava no sofá ou ia ao quarto e se eu

estava sozinha em casa eu ficava em algum canto pra não me machucar.

Nunca percebi se os desmaios tinham relação com o problema de nervos.

Mas teve uma vez que o desmaio deu junto com uma crise que enrolou as minhas

mãos e elas ficaram tudo pretinha. Aí eu fui levada pro hospital. Isso aconteceu

porque tinha um menino, amigo de escola do meu filho mais velho que cresceu junto

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com meus filhos. Ele vinha lá em casa e ficava sexta, sábado e ia embora no

domingo. A gente viu ele crescer. Ele foi para Guaratuba e veio subindo atrás dele

um caminhão que bateu na moto dele e matou ele! A médica falou que a crise que

eu tive foi do susto que eu levei.

Quando avisaram que ele tinha falecido, eu não conseguia nem enxergar! A

minha psiquiatra também falou que foi um susto, porque ele era criado dentro de

casa. Foi depois da morte dele que começou essas crises de desmaio. Eu fazia

tratamento e não estava muito bem naqueles dias que ele faleceu. Naquele dia eu

cheguei em casa e falei pro meu marido “ eu não estou enxergando direito, está tudo

tão embaçado”, tentava enxergar , lavava o rosto e não conseguia. Aí quando foi de

noite me deu desmaio, comecei a me sentir mal, tipo uma falta de ar, daí me deu

esse desmaio. Eles me levaram pro hospital, a médica me atendeu e disse que era

pra me levarem para o psiquiatra. Daí marcou a consulta com a psiquiatra do

convênio e ela falou que era por causa do susto, do nervoso. Eu acho que tudo isso

é sistema nervoso, depressão... tudo junto.

Tive desmaios também durante a gravidez dos meninos. Da minha menina

mesmo desmaiei na rua, sorte que me acudiram. Achava que era por causa da

pressão que baixava e desmaiava.

Se eu não estou bem eu não tenho condições nem de conversar, eu só quero

ficar deitada, não saio de dentro de casa... Fico assim, ruim em casa. Às vezes vou

no postinho com os clínicos gerais, eles dão uma olhada... No postinho quase não

tenho ido mais não! Eu falei “não vou incomodar mais os médicos! Porque não

adianta! Eu vou lá e saio do mesmo jeito!”. Vou lá só para tomar o lugar do outros...

Esse problema também me dá uma reação alérgica. A médica falou que é dos

sentimentos. Inchou todo o rosto, fez ferida na cabeça, no rosto, no corpo todo! Aí

nada melhorava! Aí a médica do postinho disse que era problema de sistema

nervoso. Também tem vezes que eu não durmo! Eu vejo anoitecer e amanhecer o

dia e sem os remédios pra dormir eu não durmo. Começo a pensar nas coisas, sei

lá, tem hora que eu penso em coisas boas pra não fazer besteira. Às vezes eu

levanto, vou pra sala, pego a Bíblia pra ler e volto, deito e o sono não vem. Me dá

aquela angústia, vou no banheiro, vou pra cozinha, vou no quarto, vou ver meus dois

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filhos, chego no meu quarto e vejo meu marido dormindo e eu nada de dormi. Deito

e fico ali. Quando dão seis horas, sei e meia, sete horas, levanto, chamo os filhos

para se arrumarem para a escola e não consigo dormir...!

Um médico passou pra mim aquele clonazepan®, mas não resolveu nada!

Nesses dias eu tomei dez comprimidos e não consegui dormir! Só fiquei tonta, mas

não dormi! Tomei quatro, depois passou mais ou menos umas duas horas tomei seis

e não fez nada! Não faz nada!

Tem dia que estou boa, mas tem dia que eu estou naquele estado de nervo

que não gosto que ninguém fale. Quando falam comigo eu dou cada grito que eu

acho que... Depois me arrependo... mas eu acho que a falta de sono me deixa

irritada! Aí me arde os olhos, parece que tudo fica ressecado, dá uma dor de cabeça

que fica o dia inteiro e eu não consigo dormir. Ah, causa um desespero...!

Então quando eu estou mal eu vou pro meu quarto, fico quietinha lá dentro.

Às vezes dá mais forte, passa, eu durmo e passa... acordo melhor. Com a cabeça

mais leve... Às vezes passo dias e dias do mesmo jeito. Aí não consigo levantar nem

pra cuidar da minha casa...

Eu acho que sinto essa angústia desde que minha mãe morreu. Eu sempre

me senti sozinha, mas aí eu fiquei completamente só. Depois que meu esposo me

enganou, parece que foi pior ainda! Aí quando vem alguém na casa da gente, meu

pai ou minha irmã, que a gente pensa que vai receber uma palavra de carinho e não

recebe...! Eu fico doida da vida quando alguém vem pra mim dizer “depressão é

coisa do demônio!”, aí eu fico louca da vida! Então eu estou endemoninhada! Esse

povo... a minha irmã fala desse jeito! Eu digo “não é verdade! É só ler a Bíblia,

porque se fosse verdade Davi esteve endemoninhado e Elias também! Porque eles

tiveram depressão! Por que eu sou diferente dos outros?”.

Na primeira vez que eu fui consultar com a psiquiatra que me acompanhava,

ela disse pra mim “eu sei que você é evangélica e muitos crentes não acreditam que

depressão é doença. Você tem que acreditar que é doença!”. Eu falei “não doutora,

se eu estou aqui é porque eu acredito que é doença... porque demônio não se cura

com médico! E eu sei que eu preciso de ajuda!”. Mas pra minha irmã não! Ela fala

que não é para eu tomar os remédios, que é para parar, que é tudo porcaria, que eu

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fico mais doente ainda com eles. Meu pai também fala assim “você tem que largar

isso, é muito remédio, é muita droga, é muita porcaria!”. Mas eu falo “só paro na

hora que o médico mandar! Eu conheço gente que andava bem doente e hoje está

bem. Os médicos foram retirando os remédios aos poucos. Por que comigo não

pode ser assim também e eu conseguir melhorar?”.

Nunca procurei chás, ervas para tratar disso. Ultimamente, na hora que

começa a bater um desânimo, eu saio, eu tento fazer alguma coisa, ouvir algum CD!

Não fico mais parada como antes... Antes quando eu estava meio abatida já me

trancava dentro do quarto, ficava deitada, não abria a porta prá ninguém. Agora não

tenho feito isso. Eu trancava toda a casa e os vizinhos achavam que não tinha

ninguém em casa. Ficava só trancada!

Eu não tenho tomado nenhum remédio nesses tempos. Faz uns dois meses

que eu estou sem remédio nenhum. Eu sinceramente não sei o que está

acontecendo. Eu converso bastante com psicóloga do Postinho, ela é muito bacana

pra conversar com a gente. Tenho pedido muito a Deus também. A conversa com

você ajudou bastante. Força de vontade da gente também tem que ter, porque não

adianta outras pessoas quererem ajudar se a gente não tem força de vontade. Tem

que tentar se ajudar. Eu acho que tudo isso está contribuindo, me ajudando

bastante.

10. Meu pai

Meu pai tem uma história bem difícil de vida. Foi criado sozinho em Sergipe

porque os pais dele morreram muito cedo. Veio de lá com dez anos de idade,

pegando um ônibus com os peões pra esses lados de cá. No caminho teve um

homem que parece que matou quinze pessoas e ele viu tudo! Ele foi obrigado a fugir

com esse homem, porque ele era uma criança e podia morrer... ele teve que vir

junto. Não tinha como reagir. Depois eles chegaram numa cidade do estado de São

Paulo. Ele ficou trabalhando num sítio que esse homem deixou lá e depois esse

homem sumiu. Meu pai diz que nunca mais viu ele. Deixou ele lá trabalhando e foi

embora.

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Sempre sofrendo, vivendo na casa dos outros, trabalhando pros outros pra ter

o que comer, até pegar a maioridade. Trabalhando feito um louco e ganhando a

metade do que ele fazia. As pessoas exploravam porque ele era criança. Aí, depois

que ele pegou uma idade, as coisas melhoraram. Ele começou a trabalhar bastante

com cantores de samba como o Duduque e Galvão, tocando pandeiro. Ele sempre

está citando as músicas que ele tocava. Ele é um músico baterista de mão cheia, ele

toca muito bem!

Ele veio para cá trabalhando batendo estaca em uma empresa grande. Eles

foram embora para os Estados Unidos, mas mesmo sendo chamado por eles, não

quis ir. Depois foi trabalhar de guardião noturno. Também trabalhou uns tempos

vendendo fita cassete. Nessa época ele viajava bastante. Ficava fora de casa

durante a semana.

Quando ele era adolescente ele ficou vários tempos internado. Ele fala que

eles tomavam choque, davam choque de insulina porque ele tinha problema na

cabeça. Depois eles eram jogados num pátio e deles saía um monte de sangue pela

boca. Na hora daquele choque ele diz que vinha um monte de gente correndo,

gritando e não tinha como escapar. Eles colocavam em cima de uma cama, tipo uma

maca de rodinha, que na hora do choque dava aquele soco que eles iam longe...

Depois jogavam num pátio que é aonde eles vinham e jogavam aquele monte de

sangue pela boca.

Ele tinha até uma carta de um médico dum hospital do Estado de São Paulo,

não me lembro do lugar que ele ficou internado. Que se matasse alguém, nem preso

ele iria. Porque ele ficava louco mesmo. Minha mãe diz que uma vez, no norte, ele

era recém-casado. Diz que tinha um capim que chamava colonhão. Dizem que se

entrar no meio se corta todo. Ele ficou louco, arrebentou os arames que tinham

entrou no meio do mato. Juntou uns dez homens para pegá-lo e não conseguiam

pegar! E teve que ser pegado, amarrado e levado pro hospital. Ele ficava bem fora

de si.

Minha mãe não aceitava ele ir para os bailes. Ele disse que minha mãe não

deixava ele ir mais no baile tocar, aí ele teve que parar. Ele disse que teve que parar

senão não dava certo. Daí quando ele foi para a igreja ele parou de tocar tudo.

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Na igreja todo mundo gosta dele. Não tem quem não goste. Todo mundo

gosta dele. Ele é uma pessoa excelente... ele era brabo pra nós! E outra assim, se

alguém mexesse com a família dele... Por que quando ele era rapaz, solteiro, ele foi

bem violento! Eu acho até o ponto de tirar a vida de alguém! Ele fala que ele deu

umas... ele não fala ‘faca’, porque ele é sergipano, falou que deu uma chunchada

boa de faca nuns cara que ... a barrigada veio tudo pra fora! Porque atiraram nele!

Ele falou que, se atiraram, não souberam atirar! Então o cabra que não sabe atirar,

morre! Tem que saber! Se não sabe usar uma arma tem que morrer. Hoje ele... é

diferente, mas quando ele era mais novo... era impossível!

Ele não era de arranjar confusão! As pessoas que conheciam ele, dizem que

ele não era de confusão. Ele é trabalhador, honesto, nunca pegou nada de ninguém,

administrava a fazenda das pessoas e tinha muitos amigos. Tinha vezes que alguém

se dizia amigo, mas por trás falava dele e ele não aceita as pessoas falarem pelas

costas dele. Porque se tiverem alguma coisa pra falar pra ele, não pelas costas! É

aonde era a confusão dele. E ele não aceitava, diz que o homem tem que ser

homem, em todos os sentidos. Ele pode não ter leitura nem nada, se tiver que falar

pra alguém alguma coisa chega e fala na cara, não pelas costas! Assim ele nos

ensinou, ensinou a não falar dos outros nas costas. E ele tem um costume de dizer:

“a pessoa que não encara os outros dentro dos olhos é falsa! Você tome cuidado,

que uma pessoa assim é falsa. Eu vivi pelo mundo e eu sei como que é o mundo!”.

Ele é querido por todo mundo. Ele é até hoje. Em São José as pessoas bem

ricas do Boticário gostam demais dele! Às vezes batem lá e chamam ele “entra

aqui!” e ganha um perfume. Eu falo “ô pai, porque você não traz um pra mim

então?!”. Ele é muito querido com as pessoas. Acho que tudo foi alguma coisa que

ele teve na infância. Às vezes um nervoso que ele passava no serviço, mas ele

descontava na gente, que era criança não é? Só que na minha mãe nunca ele

bateu. Graças a Deus não! Ele ameaçava, dizia pra ela: “você não vem tirar se eu

estiver batendo nos menino e nas meninas. Você não entra no meio! Que se você

entrar... você apanha!”.

Nunca bebeu, nunca fumou e nunca foi preso. Ele é um pai e uma mãe. Ele

fica horrorizado quando houve essas coisas de abuso, ele diz que por ele uma

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pessoa assim tinha que ser linchada! Deixada pros outros. Nesta parte nunca houve

nada! Ele também nunca bateu na minha mãe, mas tinha muita discussão e

xingamentos em casa, que parece que não terminava nunca. Começavam a brigar e

não paravam mais!

Meu pai era um bom pai, mas era aqueles pais... como eu posso dizer...

aqueles pais rígidos, que quando chegava em casa a gente não podia brincar, não

podia sorrir alto dentro de casa e tudo para ele era motivo de surra. Não era para ele

uma varinha não, aquele lá ele era brabo! Ele batia em mim, na minha irmã e no

meu irmão com aquela bainha de facão, não é... de deixar sangue vertendo

Ele era violento, só que não deixava faltar o que comer nem nada pra gente.

Mas quando eu tinha uma idade, ele me tirou da escola porque não podia estudar a

noite porque pra ele eu seria vagabunda. Eu era moça de família e não pude me

formar como minha irmã se formou. Eu não pude...

Ah, eu não sei por que ele batia, eu acho que era porque ele tinha problema

da cabeça. A gente não dava motivo! Se a gente desse motivo pra ele, não é? Mas

se ele pedisse pra nós assim ó “me traz agora o chinelo!”, nós tínhamos que dar

tudo e se demorasse uns cinco minutinhos nós apanhávamos! Tinha que saber onde

estava e entregar pra ele! Se demorasse... era surra na certa! Nós tínhamos que dar

bem rápido as coisas na mão dele! Mamãe dizia “deixa o chinelo do teu pai no lugar!

Não tira de lá, não perca, que se seu pai estiver pedindo e você não levar lá você

apanha! E com certeza apanhava mesmo!

Eu acho que tudo vai na base da conversa, não é?! Uma vez eu passei uma

base na unha ele fez eu tirar com uma faca! E que eu não tirasse que apanhava!

Nossa, minha tia ficou horrorizada com ele! Não podia fazer nada! Eu tinha o cabelo

comprido e não deixava aparar as pontas, não deixava a gente fazer nada! Eu

trabalhava. Ia pro serviço de calça comprida e uma vez ele invocou e disse “a partir

de hoje você não usa mais calça comprida!”. Eu falei “pai, mas eu tenho que

trabalhar assim!”, ele respondeu “mas de calça comprida você não vai!”, e se

teimasse apanhava!

Mas ele cuidou da minha mãe quando ela ficou muito doente e quando era

mais novo sempre cuidou também, não é? Ele é uma pessoa muito boa pra ajudar

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os outros, o que ele tem não é dele... Se ele puder ajudar ele ajuda, só também não

tire ele do sério! Apesar de que hoje ele está com setenta anos. Hoje ele vai lá em

casa quando não estou boa, ele é diferente com o tempo que passou... Às vezes,

quando a gente vai bater nas crianças ele diz: “ó, não é pra bater no fulano!” e a

gente dizia: “e como é que você batia em nós? Por que eu não posso bater e o

senhor quase matava a gente?!”. Diz ele “é , mas as coisas mudam...”

Ele mudou a partir do momento que minha mãe faleceu. Sei lá... ficou

sozinho. Acho que é remédio pra gente a solidão. Às vezes estando sozinha a gente

pensa nas coisas que a gente fez de ruim para os outros, não é? Eu acho assim,

que quem tira a vida de uma pessoa, acho nunca mais tem paz. Por mais que a

pessoa seja absolvida pela lei. Se deitar, vai dormir, vai sonhar, a coisa sempre vai

estar na consciência. Acho que tudo de mal que a gente faz para uma pessoa a

gente não esquece. Acho que fica na consciência da gente. Não que eu ache que

ele tenha matado minha mãe...

Quando minha mãe faleceu, ele chegou pra mim, no dia que eu saí da

maternidade com meus dois filhos e disse pra mim: “tua mãe não está mais aqui,

mas a partir de agora sou mãe e pai de vocês!”. Tentou dar banho no nenê e não

conseguiu! Ele queria fazer a parte dela, tadinho! É que ela prometeu que o primeiro

banho seria dela! Cuidou de mim... eu não comia nada. Meu esposo foi mexer com

os papéis, essas coisas e ele ficou cuidando. Todo dia ele vinha em casa, pra

cozinhar. Ele tem uma mão, que nossa! É um cozinheiro de mão cheia! Ele cuidou

de mim na dieta...

Ele nunca pediu desculpas pra mim. Só o dia que eu estava internada porque

eu tomei os remédios. O médico falou que eu estava entrando em óbito, meu esposo

chegou no hospital e perguntou “tem perigo doutor, é grave o estado dela, assim,

que remédio ela tomou?”, ele mostrou os frascos e disse “nós temos cinco minutos

pra tentar trazer ela de volta!”. Daí meu pai chegou perto de mim e dizia: “ah minha

filha, não morra! O pai te ama tanto minha filha!”. Eu escutei... Ele dizia chorando

desesperado...

Às vezes a gente começa a falar alguma coisa sobre o passado: “o senhor me

bateu tanto, não é?... que me mandou pro hospital...”, mas ele fala assim “eu não te

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machuquei!”, e eu falo “então eu é que me machuquei sozinha!”... Sei lá, acho que

ele não quer receber a culpa, não é? Sentir... remorso pelo que ele fez! Eu acho

que ele se sente culpado, mas ele nunca falou isso pra mim. Eu acho que apesar de

tudo o que ele fez ele me amava, do jeito dele, não é? Do jeito que ele conhecia de

amar e por tudo que o meu pai fez comigo, não quero que aconteça nada de ruim

pra ele. Porque se eu acho que acontecesse aí eu não agüento, apesar de todas as

coisas que ele fez, eu amo muito meu pai! A gente não falava as coisas porque a

gente vai com dó dele, não é? Lembrava do que ele passou quando era criança, não

é?

Logo em seguida da morte da minha mãe, ele começou a namorar bastante e

a gente brigava com ele! Eu fiquei brava com ele, perguntei se ele não tinha

educação, se ele não respeitava a mamãe que tinha falecido há uns quatro meses.

Ele dizia “mas tua mãe já morreu! Não volta mais...”. Mas tem que respeitar, porque

se fosse ela garanto que ela não ia namorar de volta. Daí ele ficou bravo comigo,

bem emburrado, porque uma mulher passou lá em casa, chamou ele e eu meti a

boca na mulher! Ele não gostou! Falei “ah, aqui em casa eu não quero!” Daí ele fico

meio bravo comigo...

Meu pai agora é bem diferente. Mudou bastante depois que ficou velho! Ele

está casado com uma mulher que tem o mesmo nome que o meu! Não agride ela,

só discute... Quando está tudo bem com a família dele, não aparece, mas quando

não está... vai lá em casa reclamar! Ele fala assim: “Ah, ela apóia demais os filhos!”,

que a filha dela entra em casa e apronta... Daí eu falo “ai meu Deus do céu, até

quando eu tenho que aguentar isso!”.

A mulher dele deve ter uns cinquenta e poucos anos, não tem filhos com ele –

graças a Deus!-, mas tem um casal, o mais velho com uns trinta e oito anos e a

caçula com trinta e cinco. Ela não é casada e tem dois filhos que moram nos fundos

da casa deles. Mas ela pára mais na casa deles do que na dela. É aonde meu pai se

invoca. E ainda tem o neto. O menino é bem arterinho, meu pai diz “esse menino é

muito chato! Ele sobe em cima do sofá, ele desliga a televisão que eu estou

assistindo...!” e ele já esta de idade, então pra ele isso é difícil... mas ele não toca a

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mão! Só que ele briga. Mesmo assim ele traz o menino no prézinho, vem buscar...

falei pra ele “com nós não tinha isso não hein?!”.

O menino tem quatro anos, mas parece um adulto. Pra conversar e contar...

Uma vez ele falou pra mim: “tia, quando eu crescer eu vou cuidar de você, está

bom?!” e eu falei “tudo bem André, a tia espera você crescer!”. Outra vez ele pediu

pra ver a tia dele que era eu, não tem noção o menino. Meu pai teve que levar ele lá

em casa...

11. Casamento

Casei no cartório dia primeiro de setembro de oitenta e quatro, às nove e

meia da manhã no cartório e às sete horas na igreja. Foi um coquetel na igreja para

os padrinhos e os conhecidos. Eu não estava muito feliz porque minha avó tinha

morrido fazia três dias e não dava para adiar a festa. Mas foi bom!

Quando eu casei, nossa, foi uma maravilha para mim! Tinha me livrado do me

pai... tudo o que eu queria era me livrar do meu pai. Me livrar da onde vivia... Porque

quando eu era solteira não podia usar aquilo, não podia fazer isso, nada...

Sei que graças a Deus eu casei, pensei que ia melhorar na vida... Até certo

ponto o casamento meu foi bom. Depois meu esposo começou a me dizer palavras

pesadas, mas porque ele estava me traindo. A gente sente quando está sendo

traída. Eu não sei por que, mas a gente sabe, não é? Eu perguntava, ele dizia que

não. Chegava em casa do serviço emburrado comigo, às vezes com cara virada,

ficava de grosseria sem conversar comigo, só porque “sou ruim e não puxo

conversa”... Pra mim tanto fazia. Quando ele me enganou eu tinha o meu terceiro

filho com dois meses. Mas eu só fui descobrir depois que eu tive a menina. Só aí eu

fui saber seriamente que ele tinha me traído!

Eu descobri quando ele trabalhava na empresa. Ele era encarregado lá.

Nessa época eu não trabalhava e só cuidava dos filhos, porque eu nunca gostei de

deixar meus filhos em creche. Meu primo tinha entrado para trabalhar com ele.

Minha irmã sabia de tudo e não quis me contar! Porque ela sabe que eu sou

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nervosa, eu estava grávida do terceiro filho e eu podia fazer uma bobeira. Aí meu

primo falou assim “não, não vou deixar a minha prima enganada de jeito nenhum!

Quando eu falei com ele negou, lógico! Então eu voei com tudo nele! Eu não

cheguei a bater porque ele segurou minha mão! Daí ele soltou, fui na gaveta e

passei a mão na tesoura, encostei no pescoço dele e disse “ou você conta ou você

morre!”. Nós estávamos dentro do quarto e falei “agora você vai falar a verdade!”.

Daí ele disse que não ia falar, então eu disse “está bom, então eu me mato e você

vai carregar a culpa pro resto da vida!”. Ele achou que eu ia mesmo fazer isso

comigo! Eu não! Não ia fazer isso comigo... Daí ele me contou! Aí ele teve que

contar a verdade. Eu fiz ele contar toda a verdade! Com uma tesoura na mão ele

não tinha como...

Minha irmã disse que não queria ver bagunça... a gente separado. Eu acho

que se você trair, se não dá certo... então separa, não é? Mas trair o outro...? Mas

meu primo falou “não, e vou contar! Porque se fosse comigo e eu tivesse sendo

traído eu queria que me contassem!”.

Daí a gente ficou seis meses na mesma casa, mas eu fiz ele dormir no outro

quarto. Neste tempo teve muito conselho do meu pai pra nós darmos mais uma

chance, porque meu pai queria muito bem a ele... Dizem que quem ama perdoa. A

gente pode perdoar, mas esquecer a gente não esquece não! Uns falam “então você

não perdoou teu marido”, eu falo que se isso não é perdoar... não tem como. Eu vou

esquecer uma pessoa que me traiu? Não tem como!

Eu sou evangélica, sou pobre, mas gosto das minhas coisas todas limpinhas.

Tudo normal, as coisas dos meus filhos tudo direitinho, as roupas... Não é porque a

gente é pobre que a gente tem que ser relaxado, não é? Sempre eduquei, amei

meus filhos. Mas tudo o que não prestava da família deles e da minha caía em cima

de mim. Eu tinha que aguentar tudo.

Contei pro meu pai, contei para os pais dele. Para os pais dele era Deus no

céu e ele na terra, pra minha sogra era o único filho perfeito. Achei que a minha

sogra ia ficar contra mim. Mas não! Ela ficou a meu favor e contra ele. Só que daí

ele mudou. Pelo menos, eu não ouvi mais histórias. A gente vive bem, só que eu

não consegui esquecer, mas eu acho que perdoei, se não, não estava com ele. Uns

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falam pra mim que perdoar é esquecer, mas como é que eu vou esquecer uma

coisa? Como é que eu vou conseguir esquecer? Se eu não perdoasse eu não

estaria com ele! Eu teria me separado e cada um para o seu canto! Agora, por que

eu não esqueci quer dizer que eu não perdoei?! Então é difícil...! Então isso é

complicado, não é?!

Eu acho que isso teve influência nos meus problemas, porque depois de tudo

isso... a gente sei lá... gente traída é doído demais, eu acho que se ele tivesse

morrido no tempo que ele me traiu, não tinha doído tanto como se ele tivesse me

traído.

A partir dali já vivia isolada dentro de casa, não queria sair... Pensava “que

tipo de mulher eu sou?” Eu sentia vergonha de mim mesma, não tinha coragem de

sair, foi quando eu comecei a ficar mais dentro de casa. Também me atacou os

nervos e eu tive que tomar remédio pra dormir e acompanhar no médico porque

atacava os nervo. Tinha dias que estava tudo numa boa e eu começava a lembrar.

Me dava um ódio tão grande, tinha vontade de levantar de noite e acabar com ele,

se eu pudesse...nossa! Quantas vezes eu pensei nisso. Pensava “a gente não pode

com um homem acordado, mas dormindo... uma hora ele dorme! Todo mundo

dorme uma hora”. Depois já começava a pensar como iam ficar meus filhos? Vão

ficar jogado por aí? Não valia a pena...aqui se faz, aqui mesmo as pessoas pagam...

A minha vida era assim: tinha dia que estava bem, tinha dia que não estava,

porque as mulher que saía com ele, ficavam me atormentando, ligando lá em casa,

não sei como, não sei quem dava o número, quem não dava... e acontecia de ligar

em casa falando: “ó, teu marido vai hoje de carro, está de óculos assim e assim, de

roupa assim e assim...” Eu falava pra ele, mas ele dizia “não! É mentira!”, mas eu

respondia “mas você estava com essa roupa!”. Então tinha dia que eu tinha paz,

tinha dia que eu não tinha, nossa! O segundo filho sempre dava apoio para o pai, só

que o mais velho não! O mais velho um dia chegou nele falou “ó pai, se o senhor

trair minha mãe, eu arrumo uma casa, tiro ela daqui e o senhor nunca mais vai nos

ver!”.

Depois que a gente descobriu tudo e que passou, comecei a ter uma vida

melhor. Graças a Deus hoje ele é um homem evangélico, porque antes ele era

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destes crentes vagabundos, que vivia lá dentro e fora ao mesmo tempo, sem

compromisso.

Agora ele está afastado pelo INSS porque ele trabalhou polindo carro, moto,

essas coisas. Por último estava numa empresa que faz luminária para bancos. Até

para os Estados Unidos eles mandavam estas peças. Ele polia as peças e pintava.

Desgastou o osso do ombro, fez um buraco nessa parte do osso e daí ele não

aguenta mexer com o braço muito tempo. Está esperando pelo SUS pra fazer a

cirurgia do braço...imagine! Vai demorar muito tempo. Está até pra sair a

aposentadoria dele. Nós sobrevivemos só com o salário dele, setecentos e

pouquinho... é complicado mas a gente vive. A gente dá um jeitinho... Eu já fiz vários

cursos, mas no momento não estou fazendo nada para trazer dinheiro pra casa.

12. O meu irmão

Meu irmão também coitado... é outro que vive jogado por aí de tanto ser

espancado... eu tenho até dó da vida que meu irmão leva. Porque eu acho que se

meu pai fosse um pai melhor, meu irmão não ia virar hoje um alcoólatra. Eu acho

que ele não seria desse jeito.

Logo depois que eu tinha casado, eles voltaram pra P12 e ficaram num sítio

por uns tempos. Minha mãe escrevia sobre as coisas e a gente ficava preocupada

aqui, porque nossa...! Meu irmão gostava muito de pescar e como tinha mata, ele ia

caçar passarinho, procurar tatu e meu pai queria que ele ficasse dentro de casa! Um

rapaz de dezessete anos ficar parado dentro de casa! Não tem como segurar quieto

dentro de casa! Não era pra ele ir prá lugar nenhum. E se saísse apanhava! Uma

vez meu pai deu uma surra nele de corrente...! Passou a mão na corrente de cavalo

e como se batesse num animal deu nele. Ele tinha dezessete anos...

12

Retirado o nome da cidade para preservar a identidade do sujeito do estudo.

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Ele é um pedreiro profissional que trabalha super bem! Era pra viver em

outras condições... ele vive numas condições de miséria! Ele ganha cinco mil por

mês! Tem vez que ele recebe seiscentos reais por dia e vive na situação...! De tanto

beber! Só no baile ele gasta mil e pouco. A gente dá conselho pra ele, não adianta...

Ele é um bom homem, também não é de mexer em nada que é dos outros, só

que ele é ruim pra ele mesmo. Ele é amasiado, mora com a mulher há mais de dez

anos e ela também é alcoólatra. O nome da mulher dela é Ângela. Ela também bebe

nos bar, vive com os homens... Então através deles eu fiquei pior ainda, porque

quando eles vieram morar perto de mim, bebiam os dois e quase se matavam. E eu

grávida tinha que estar no meio prá acudir!

Eles vieram morar comigo há catorze anos! Eu estava grávida do terceiro

filho. Eles quase se matavam. Dava cacetada, paulada, facada no outro... e eu no

meio! Gritava pela polícia... Uma vez ela furou ele nas costas, aí ele pegou a faca

dela, foi lá e furou ela na mão! Os dois estavam caindo de bêbado...!

Eles têm uma menina, a Tayane. Ela nem quer morar com eles! A menina

mora com a avó! Ela tem catorze anos, ela é dois meses mais nova do que o meu

terceiro filho. E a minha cunhada quando estava grávida dela enchia a cara!

Eles moram perto de mim. É a minha lida, é uma tribulação! Eu aguento eles

até hoje! Quando não são os outros batendo nele na rua. Tenho que entrar no meio!

Eu entro no meio pra não matarem ele!

Uma vez ele estava no bar bêbado. Daí já tinha saído de outro bar bêbado.

Que bêbado quando bebe, já viu... Aí acho que começou a incomodar e a turma

também aproveitou. A turma começou a chutar ele e eu tive que me jogar em cima

dele. Levei chute nas costas, me machucaram tudo! Fiz isso pra não matarem ele!

Eu levei chute nas costas, tudo, de eu não saí de cima dele, porque ele chegou a

ficar com o rosto deste tamanho! Nossa, a gente não podia nem ver! Fiquei uns dias

sem ver ele de tanta tristeza que dava dele. Pensei que eles iam matar meu irmão,

que ele tinha morrido... Ele estava bêbado demais, porque quando ele está bêbado

demais ele fica muito pentelho! Fica chato... Aquele bêbado muito chato! Só que foi

covardia! Dez contra um bêbado!

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Acho que eles já foram parar na delegacia umas quatro vezes. Uma vez tive

que tirar os dois da delegacia: eu de dieta da minha menina, tive que correr o dia

inteiro pra soltar os dois da delegacia porque aprontaram fiasco no bar. Os caras

mexeram com a mulher dele, bêbado, o que iria fazer?! E a minha sobrinha estava

junta, menina pequena... Daí o delegado veio na igreja atrás de mim. Pra me buscar,

pegar a menina, que os dois... o casal de pombinho, iam pousar na delegacia. Aí

jogaram eles numa cela que escorria água, descalços, ela de shorts bem curtinho,

um frio que estava que dava até dó de ver! Daí no outro dia eu estava lá pra tirar

eles de lá... deu o maior trabalho, até eu conseguir.

O trabalho que ele dá agora é que a gente fica preocupada com ele. Este final

de semana ele e um amigo beberam e os dois foram dirigir bêbados! Aí meu menino

falou “mãe o tio está deitado dentro do carro caindo de bêbado”. Eu falei “o quê que

eu posso fazer?! Se Deus não cuidar eu não posso fazer nada! Como é que eu vou

sair atrás dele de carro, na rua?! Tem que deixar...”. Pegaram a BR e se mandaram,

caindo de bêbado os dois. E estão vivos, porque Deus cuidou.

É assim a minha vida, correr pra cima e pra baixo por modo dos problemas

deles. Só que os médicos que eu tenho me consultado falaram que problema de

família não entra pra dentro do portão da minha casa mais! Fica pro lado de fora,

cada um resolva os seus problemas!

13. Minha Irmã

A minha irmã com o marido dela é briga, é larga e volta, volta e separa, volta

e sobra tudo pra mim! Quando eles brigam, ela corre lá em casa, porque esse

marido da minha irmã já chegou a violentar a própria esposa!

A gente via... Uma vez encontramos ela de cara roxa e eles mentiram para o

meu pai que ela tinha caído com a cara no portão. Eu acreditei, mas meu pai já ficou

meio assim. Depois a gente descobriu que ele a surrou mesmo e falou batendo nela

que “enquanto nós morarmos debaixo do mesmo teto você vai fazer o que eu

quiser!”. Aí ela deu parte na polícia dele, mas quando foi pra ele ser preso ela foi lá e

retirou a queixa!

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Daí voltou a morar com ele. Aí brigam, separaram, esses dias voltaram e

agora estão separados de novo! Espero que não voltem mais! A família dele é

perigosa, o irmão dele matou o próprio pai. E ele está ameaçado pelos irmãos. A

gente tem medo porque, como eu falei pra minha irmã que a gente com ele não tem

sossego. Que tal que os irmãos dele passam atirando aqui?! Ela mora aqui, mas os

irmãos dele moram em Piraquara. Então eles são muito ruins, é gente muito ruim.

Aí o ex-marido dela fica me ligando lá em casa. Fica me enchendo o saco lá

em casa “tua irmã não me quer mais!” e eu falo “nem quero saber do problema de

vocês, vocês que se virem! São gente grande, que se entendam”. Quando estão

tudo bem não se lembram da gente! Mas na hora que tão na bagunça...

Ela não tem esses problemas de depressão. Já passou por vários exames,

psiquiatra e não tem não. Ela só tem umas dores de cabeça terríveis que às vezes

chega a ter que parar no hospital por causa dela. Agora, eu tenho o meu sobrinho,

filho dela, que tem transtorno bipolar! Ele não é filho do ex-marido dela, nasceu

quando ela era solteira e eles têm mais uma menina junto. Uma vez, quando ele

tinha quatro anos de idade, o ex-marido dela jogou azeite no chão e falou pro

menino: “se você não ajuntar o azeite eu mato a tua mãe!”. Diz que ele ficava

apavorado “como é que eu vou ajuntar o azeite do chão?”. E começou a gritar indo

por toda a casa... e a minha irmã com a perna cortada porque ele tinha jogado um

prato nela não tinha como sair nem nada de casa...

14. A igreja

Toda a vida eu estive trabalhando dentro da igreja, desde pequena. Abri

departamento, e agora no começo do ano entreguei o departamento. Trabalhei

nove anos no departamento infantil com as crianças. Me desliguei porque não

estava boa, não tinha condições e os médicos mandaram entregar, porque eu tenho

que. Mas sempre trabalhei nos departamentos da igreja, toda a vida.

O nosso trabalho é como a igreja católica que faz catequese. Nós fazemos

escola dominical. Todo domingo tem escola dominical, tem os livros de histórias

evangélicas pra fazer com eles. No meio do ano tem escola bíblica de férias. A

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gente sai fazendo palestra, não só com os evangélicos, mas com todo tipo de

pessoa, até aquelas que vão em centro... Nós fazemos um curso na Central de

Curitiba de “EBF” que é a escola bíblica de férias. Lá eles ensinam como trabalhar

com as crianças e até como saber quando uma criança é abusada.

Tem o coral das crianças da nossa igreja que canta muito bonito. Também

tem o coral misto, como tem na igreja católica.

Eu trabalhei nove anos nesta parte com as crianças. Através de muitas

crianças que hoje muitos pais são evangélicos, foi através desse trabalho. Tem

criança que eu trabalhei que hoje estão casados... então é muito gostoso! É muito

bom. Estes dias eu estava na igreja e não estava boa. Um menininho chegou perto

de mim e falou pra mim “tia, volta a dar aula pra nós, volta...!” e eu falei “no momento

não, na hora certa que Deus preparar pra nós eu volto... ainda não” . Porque a gente

vai trabalhando, vai passando das crianças, vai para os adolescentes, dos

adolescentes tem o grupo dos jovens e daí em diante. Então começa no

departamento infantil, começa com os pequenininhos...

Teve uma época que eu era secretária na igreja. Fazia o livro caixa da escola

dominical. O geral da igreja são outras pessoas que tomam conta. Cada

departamento às vezes faz um livro caixa, daí no final do mês presta conta com a

igreja ou com o pastor.

Este trabalho me ajudou bastante porque nas horas mais tristes é gostoso

cantar. Ou estando no meio das crianças, a gente esquece os problemas. Nas horas

de angústia, quando a gente está na igreja trabalhando com as crianças e elas

começa a cantar a gente sai aliviada... A gente colocava o CD pra elas cantar e elas

realmente cantavam! É muito gostoso! Na nossa igreja também tem curso toda

segunda-feira. Tem de crochê, tricô, de tudo que se imaginar tem. Quando eu estou

bem eu vou. Gosto de fazer bastante tricô essas coisa...

O pastor sabe que depressão é uma coisa que existe e que a pessoa fica

doente. Só que a pessoa tem tentar se ajudar, não se abater e ficar isolada. Tem

uns ignorantes que já falam que é demônio, que eu acho que daí já é ignorância. Eu

digo: “não tem nada a ver com demônio, porque se você ler a Bíblia você vai ver que

na Bíblia tem personagens que entraram em depressão... está escrito na Bíblia,

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então a Bíblia está mentindo? E não estavam endemoninhados coisíssima

nenhuma! Se você tiver tomando remédio, uns vão dizer para parar, outros não.

Os pastores da igreja entendem, eles sabem que este problema existe não só

comigo, mas tem várias pessoas com isso. Até pastores tem depressão, não é só

pessoas iguais a gente, tem pastores com depressão! O trabalho deles é muito

grande! Imagine cuidar de trezentos e poucos membros como é na nossa igreja, ele

tem que ser responsável por todos?! Então não é fácil, cuidar do problema dos

outros e eles também tem problema...

Quando houve a traição foi bem complicado. Eu acho que uma traição dói

mais do que uma morte. Porque eu até pensei que se ele tivesse morrido eu não

tinha sofrido tanto como se ele tivesse me enganado! Se o casamento não deu mais

certo, é melhor chegar um para o outro e conversar. Acho que é bem melhor! Mais

bonito também pra outra pessoa.

Meu trabalho não foi prejudicado, porque foi ele quem fez errado. Na igreja,

quem comete adultério, rouba, briga ou essas coisa aí, passa pelo processo de

disciplina. Só é disciplinado quem desce às águas, que é o batismo, e se torna

membro da igreja. Antes de fazer isso é dado um curso chamado discipulado, que a

pessoa vai aprender o que é certo e o que é errado Enquanto a pessoa não for

membro, ela não pode ser colocada em disciplina. Por mais que ela faça! A igreja

não pode.

Quando a pessoa é disciplinada ela não pode participar da comunhão na

igreja. Na igreja católica eles falam hóstia, na nossa igreja é a santa ceia. A pessoa

estando em pecado não pode participar. A pessoa é levada para o corpo de

cooperadores, pastores, obreiros, presbíteros, diáconos, evangelistas. Tem uma

reunião e a pessoa pega uns três meses não podendo participar de algumas coisas,

como ser obreiro na igreja, cantar... mas pode participar do culto. Tem que sentar no

banco e mais nada! Eu toco na banda, toco na orquestra, faço tudo na igreja, se eu

cometer uma coisa dessas eu não vou tocar. Vou ficar encostada. Todo mundo sabe

disso quando está na igreja. Cada igreja acho que é diferente, mas a nossa pelo

menos é assim. Se a pessoa mostrar um bom caráter, não praticar de novo, daí

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volta a ter comunhão. Tem muitos que fazem isso, daí saem da igreja e não voltam

nunca mais. Porque não querem ficar direito não voltam, saem fora!

Eu sempre tive duas irmãs da igreja que eu posso contar para desabafar

meus problemas, uma é a irmã Sara e a outra é a Rafaela, que é da orquestra. Não

dá para confiar em todo mundo, porque tem gente que tem a língua solta, fica dando

pitaco nas coisas...

A Sara é mãe do maestro da orquestra. Nos momentos mais difíceis em que

eu estava em casa ruim, ela vinha ficar comigo, orava comigo, chorava junto... Dava

conselhos, sempre pondo para cima. Mesmo nas horas mais difíceis. Às vez tem

pessoas que não vê uma solução, joga a gente pra baixo, não é? Elas não, elas são

diferente! Às vez ela dizia “Não esqueça que sobre tudo isso tem um Deus! Que ele

é maior do que todas as coisas, do que todos os problemas...”. Daí ela uma vez

falou para mim “Nunca mais tente contra a tua vida, porque quem tem o direito de

dar ou tirar é só Deus. A Rafaela sempre está lá em casa, são de confiança e estão

sempre juntas comigo!

Eu nem preciso eu ir atrás delas. Quando eu estou com a angústia, o rosto

parece que fica diferente, daí elas vêem que não estou bem. Nestes momentos eu

não tenho ânimo para conversar, falto nos ensaios da orquestra, porque eu não

tenho vontade de ir pra lugar nenhum. Não vou nos cultos, fico em casa e não saio

para lugar nenhum! Aí eles vêm atrás, porque eles sabem que eu não estou bem. E

se eu chegar na igreja e estiver mal, eles já percebem também, só no olhar já

sabem.

Eu também orava bastante na igreja pra melhorar, fiz campanha de oração.

Essas campanhas são assim: toda quinta-feira tem culto da vitória. Eu sei da minha

necessidade e eu faço um propósito com Deus, de vir dez quintas-feiras, quatro

quintas-feiras, então isso aí serve de um propósito com Deus que eu vou e sei que

uma hora ele vai me responder. Ele pode demorar, mas eu sei que uma hora ele vai

me responder.

O pastor sempre faz campanha de oração na igreja. No culto, ele faz uma fila

e ora com as mãos imposta sobre as pessoas também. Tem um caderno onde é

marcado o nome das pessoas que precisam, daí é feita a oração no templo pelas

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pessoas que estão marcadas ali ou na caixinha de oração, onde as pessoas

colocam os pedidos de oração.

Teve uma vez que o pastor foi em casa porque eu estava muito mal. Daí

Deus falou comigo através dele. Deus sabe todas as coisas, ele é o Deus onipotente

e sabe todas as coisas ocultas. Ele falou que vir ao mundo foi um propósito dele.

Todos nós viemos ao mundo pelo propósito de Deus. Então a nossa vida é um

propósito dele. Somente Ele que dá e pode tirar a vida e nós não podemos tirar a

vida. Eu tinha tentado tirar a minha... Porque a gente sabe que quem tirar a própria

vida não tem salvação. Quem se mata com as próprias mãos, não tem salvação

porque tirou a própria vida. Eu também não posso tirar a vida de outra pessoa. De

outro ser humano. Quem pode tirar é somente Deus. Então o pastor, foi em casa,

orou e eu me senti bem melhor, com certeza!

Sempre que a gente está doente, vai um pastor visitar. É avisado à toda

igreja. Ou se não, vai o obreiro, sempre tem uma comissão que vai visitar. Nunca a

gente fica abandonada. Sempre tem alguém que cuida do rebanho, cada um tem

seu rebanho e tem que cuidar dele.

A nossa igreja não é rezado. A reza é uma coisa decorada. A oração não. É

você falar com Deus à sua maneira! É como a gente está conversando aqui. A

oração me ajuda muito. Eu conto pra ele o que eu estou sentindo. É como se nós

estivéssemos conversando, só que daí eu estou falando com Deus. Eu desabafo,

conto pra ele o que estou sentindo, aí alivia bastante porque eu sei que ele houve. A

gente pensa que está sozinho mas nós não estamos sozinhos, porque tem um Deus

presente. E eu creio que ele vai me curar. Mesmo com a ajuda médica, eu sei que é

as mãos dele. Porque se ele não estiver no controle das coisas... o homem não

pode fazer nada.

Hoje de manhã eu estava bastante triste. Eu comecei ler a bíblia bem na parte

que fala assim “esforça-te e tenha bom ânimo, que eu te ajudarei!”, daí eu fechei a

bíblia, dobrei o joelho e orei, pedindo ao Senhor que ele me ajudasse. Se eu me

esforçar e ter bom ânimo, ele me ajudará. E eu creio que ele pode todas as coisas,

não é? Ele é o dono do mundo, dono da minha vida... eu sei que uma hora isso vai

passar.

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15. Conclusões

Quando eu penso no problema que enfrento hoje, eu acho que um pouco tem

relação com a minha infância. Não sei se toda a culpa, não é? Porque a gente não

tinha um, como se diz assim, carinho por um pai... a gente tinha medo! Eu acho que

pelo pai a gente tem que ter carinho. Tem que amar! Não ter medo! A gente tinha

medo!

Eu não sei se é sistema nervoso, eu penso também que foi pela morte da

minha mãe. Eu amava demais ela! Achava que todo mundo morreria, menos ela! E

na hora que eu mais precisava... ela morreu. ,

Os médicos de hoje dizem que um pouco da depressão foi de pós-parto.

Depois que minha mãe morreu eu nem comia! Só que como a gente naquela época

a gente não entendia direito, não procurei médico nem nada, tratei em casa. Aí há

uns três anos pra cá comecei a passar mal, desmaiar e as crises aumentaram

bastante.

Hoje eu vejo que estou melhor do meu problema. Se a gente fica sem ter uma ajuda,

não procurar ninguém que possa ajudar, não tem como saber o que está

acontecendo com a gente, não é? Quando uma pessoa que entende dessas coisas,

faz a gente voltar no passado, ver algumas feridas que ficaram abertas... às vezes a

gente não quer mexer porque acha que vai ficar complicado, mas não é nada

daquilo que a gente pensa. Se a gente começar a buscar pra trás, consegue, não é?

Dá a volta por cima. Deixar o que ficou pra trás, o que magoou o que machucou e

tentar viver a vida melhor, deixar as coisas ruins que a gente viveu pra trás e pensar

no futuro.

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ANEXO 01

DOCUMENTO DE APROVAÇÃO DO COMITÊ DE ÉTICA