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DESCRIPTION
Camaradas, as reflexões a seguir são o produto de uma análise amadurecida na observação da teoria e da prática do Partido, antes e depois do XIV Congresso Nacional. Não há nenhum emocionalismo nessas linhas, embora algumas das minhas considerações possam soar realmente duras para ouvidos políticos mais sensíveis ou olhos acostumados a leituras aguadas e complacentes sobre as políticas do Partido. Não as escrevi para provocar nenhum movimento (seria uma pretensão tola e descabida, pois sei que fui mais um no coletivo partidário e nunca pretendi nada além de contribuir para fazer crescer o Partido). Hoje, dia 8 de outubro, também anuncio oficialmente minha renúncia à militância institucional, saindo dos três cargos de dirigente (já havia comunicado internamente ao Partido essa decisão, no começo de agosto).TRANSCRIPT
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O Culto da Ilusão das Formas
R. Numeriano
“Quereis criar uma sociedade nova e temeis a dificuldade de criar uma boa fração parlamentar de comunistas convictos, abnegados e heróicos num parlamento reacionário! Não é isso, por acaso, uma infantilidade?” (Lênin, in Os Comunistas e as Eleições)
INTRODUÇÃO
Camaradas, as reflexões a seguir são o produto de uma análise
amadurecida na observação da teoria e da prática do Partido, antes e depois
do XIV Congresso Nacional. Não há nenhum emocionalismo nessas linhas,
embora algumas das minhas considerações possam soar realmente duras para
ouvidos políticos mais sensíveis ou olhos acostumados a leituras aguadas e
complacentes sobre as políticas do Partido. Não as escrevi para provocar
nenhum movimento (seria uma pretensão tola e descabida, pois sei que fui
mais um no coletivo partidário e nunca pretendi nada além de contribuir para
fazer crescer o Partido). Hoje, dia 8 de outubro, também anuncio oficialmente
minha renúncia à militância institucional, saindo dos três cargos de dirigente (já
havia comunicado internamente ao Partido essa decisão, no começo de
agosto).
Escrevemos essa crítica para provocar uma reflexão dos militantes
desses dois coletivos, caso julguem necessário fazê-la. Vale, no mínimo, como
memória militante de um ex-quadro dirigente do Partido. Na verdade, foi a
última tarefa à qual me senti obrigado a cumprir na condição de militante
institucional.1 O fato é que decidi combater pelo socialismo em outros espaços.
Continuarei, com muito orgulho e honra, filiado ao Partido de Gregório e
1 É possível amar uma pessoa, e deixá-la, assim como amar uma instituição, e dela sair. Em ambos os casos, não significará que o amor pela pessoa ou pela causa deixou de existir ou se perderam no nosso ser as razões e emoções que constituem a perenidade de nossas crenças.
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Prestes (se é que não me expulsem em função de minhas críticas. Sempre há
quem queira ser mais radical do que o ultra-radicalismo)2.
Se me permitem, vou começar minhas reflexões contando uma história.
Em uma noite escura, numa estrada, seguia um homem sozinho. Tinha
medo, mas era preciso seguir, avançar. Havia obrigações a cumprir na jornada.
A certa altura, esse homem vê ao longe dois outros homens. A má-fama da
estrada é antiga: é ambiente de salteadores, bandidos de toda espécie. É, no
entanto, o único caminho disponível, naquelas condições. Os dois homens vêm
em sua direção, acelerando o passo. O que fazer, se não há meio nem
possibilidade de recuar? No meio do desespero, nosso homem vê agora
surgirem ao seu lado dois homens que ele já vira antes, também notórios
salteadores. Estranhamente, embora não possa se sentir seguro, ele sente que
a companhia daqueles dois pode significar uma possibilidade de sobrevivência
naquela jornada. Sabe que os dois homens que agora estão próximos,
seguindo no mesmo sentido, em nenhuma condição podem ser considerados
aliados, companheiros de jornada. Sabe até que, mais adiante, podem se voltar
contra ele, assaltá-lo ou até matá-lo. No entanto, esse cálculo não é para
agora, porque agora o que resta é seguir a jornada e tentar passar a salvo
pelos dois que se aproximam em sentido contrário, com passos ainda mais
acelerados. São agora três contra dois. Ainda que nosso homem se considere
apenas um entre os outros, ele sabe que os dois ao seu lado lhe conhecem,
mas desconhecem quem são e o que querem os outros dois. Talvez suponham
que sejam, igualmente, bandidos de estrada. Seu instinto de sobrevivência,
diante do medo, obriga-o a lutar a luta naqueles termos, sob aquelas
condições. Nosso homem tem medo, mas não tem medo de ter medo. Acaso
tivesse, correria adiante, em direção aos dois que significam ameaça, ou
retrocederia, sem enfrentar a jornada e suas obrigações, com a possibilidade
2 Como já sabem, a expulsão veio bem antes, no dia 7 de outubro de 2012. A Nota Pública do Partido e a minha resposta estão no Posfácio. À exceção deste Posfácio, redigido no dia 09/10, esta crítica e análise do PCB (e também, em menor medida, do PSOL e do PSTU), foi escrita nos meses de agosto e setembro, e, em outubro, até o dia 02. Esclareço estas datas porque alguém poderia estranhar declarações como a de que vou me manter no Partido etc. Isso ocorre porque, é claro, o texto original se mantém. E não poderia ser diferente.
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de, sozinho, ser igualmente alcançado pelos dois que se aproximam. Então, ele
decide seguir. A rigor, está, como desde o início da jornada, sozinho. Poderá
igualmente ser assaltado e morto adiante pelos ocasionais companheiros de
jornada. Jamais saberá. Sente e sabe, apenas, que é necessário arriscar
diante das condições, aqui e agora. O seu instinto, comum a todo homem,
impõe que viva o máximo possível. O seu cálculo, racional, decidiu o melhor
meio de fazê-lo.
O Partido não é esse homem. O Partido, hoje, tem medo de ter medo.
Recusa o teste prático da dialética: se o critério da verdade é mesmo a
prática, por que recusamos, fundados numa interpretação refém de um
perigoso puritanismo político pequeno-burguês (interpretação integrista que
cheira a um jacobinismo tardio, arrogante e auto-referente), testar nossas
resoluções no embate das idéias no movimento político e social do processo
eleitoral? O teste só deve ser feito nas arenas de luta em que o nosso
oponente não vai nos "sujar" em termos político-ideológicos, com a sua
proximidade?
Soube que meus comentários ao relatório do Partido em Paulista,
apoiando os encaminhamentos dos camaradas, foi objeto de "cara feia" na
CPN. Seria estranho se fosse o contrário, pois a proposta de resolução, da
lavra do secretário-geral, que possui uma detestável arrogância de terror
jacobino, tratou de espaços ideais onde estamos nos "agigantando": mundo
sindical e juventude. Seremos eternos gigantes para nós mesmos? Não
estamos vendo a nós mesmos distorcidamente? Ou nos achamos "gigantes"
medindo-nos em face dessa realidade burguesa mesquinha, material e
espiritualmente? Estamos realmente nos "agigantando", palavra tão superlativa
quanto suspeita quando vemos que uma parte significativa de jovens militantes
da UJC não cria unidade de ação orgânica com as políticas do Partido, agindo
quase sempre sob um ativismo pontual.
Muitos dos núcleos da UJC são apenas comunistas para si mesmos. A
maioria desses jovens pouco se integra nas lutas político-eleitorais, se o
espaço do debate e do embate não estiver previamente purificado. E, mesmo
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purificado, participam antes festivamente do que como um coletivo orgânico e
proativo. Muitos dos seus militantes começam a caminhada negando a
condição real (empírica e ontológica) do espaço político-eleitoral burguês.3
Resistem às eleições burguesas, mesmo em "chapas vermelhas", como foi o
caso da Frente de Esquerda PCB-PSOL, no Recife, a qual contou com a
participação de apenas um camarada, que por iniciativa própria se incorporou
em algumas das tarefas. No máximo, nelas participam furtivamente quando no
entorno não há perigo de “contaminação”. Muitos acondicionam-se nos
facebooks e outras redes, espaço confortável onde todos são revolucionários e
3 O Relatório de nove páginas do Encontro Nacional da direção da UJC, realizado em setembro de 2012 (em plena campanha eleitoral), não faz qualquer referência à luta eleitoral empreendida pelo Partido (tarefa obrigatória e definida no Congresso e nas Resoluções). Esse dado, em si mesmo, é sintomático do que somos concretamente, para além da retórica do "Ousar lutar, ousar vencer", uma bela palavra de ordem que cai no vazio se não há relação de causa e efeito no seu pronunciamento. E para ilustrar esse comportamento evasivo da militância, no dia 24 de setembro, a 13 dias da eleição, recebi um email de dirigente da UJC propondo duas datas para realização de panfletagem nos portões de duas universidades. Omitindo, é claro, a autoria, divulgo os trechos sob aspas, os quais falam por si mesmos: "Camaradas, a campanha eleitoral está chegando a (sic) reta final e só agora a camarada (...) conseguiu material para divulgar sua candidatura. Aproveitamos a reunião da UJC no sábado e planejamos rapidamente algumas ações". "A ideia não é ser algo isolado da candidata (...), mas sim de todos os candidatos do partido. Por isso, é importante a presença de Délio e Numeriano em ambas as atividades. Afinal, a campanha é do partido, não de indivíduos". Vejam que o autor está afirmando que a iniciativa foi tomada a partir de um fato condicionante: a impressão de material da candidata, o qual "só agora" conseguiu. Mas havia há quase três meses uma campanha do Partido nas ruas, com os candidatos Numeriano e Délio, sempre sozinhos, pedindo a presença da militância para acompanhá-los e ajudarem nas ações. Apenas o camarada Henrique, sob iniciativa individual, organizou um evento ao qual compareceram três militantes da UJC (houve até fotos para provar que se "engajaram"). A frase seguinte é a mais emblemática para demonstrar que a UJC parece incorporar (acredito que "inconscientemente"), um espírito de tendência: "A idéia não é ser algo isolado da camarada (...) (...)" Ora, foi preciso "propor" uma "idéia" de que o evento seria dos demais candidatos talvez para convencer os demais militantes que eventualmente resistissem a divulgar material junto com outros candidatos, ao que parece, "não homologados". A frase final, pelo que posso deduzir, indica justamente uma resistência não declarada (e nem precisaria, pois fiz várias instâncias junto a um dirigente da UJC, (...), pedindo que a entidade organizasse eventos para discutir o socialismo, a agenda do PCB etc, e o mesmo sempre sorria cinicamente aos meus pedidos). A frase: "Afinal, a campanha é do partido, não de indivíduos", é a prova mais forte de que se fossem outros candidatos, talvez a UJC estivesse nas ruas cumprindo com o seu dever para com o Partido. Provavelmente, se fossem nomes de pessoas que são omissas nas tarefas do Partido, mas adoram ir às reuniões para opinar do alfinete ao foguete (e depois se recolherem), alguns se engajassem, mesmo que afirmem que “a campanha é do Partido, e não de indivíduos”. Mas devo dizer que a entidade apenas continuou a praticar o mesmo comportamento das eleições anteriores: desprezo na essência e encenação militante.
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amam a causa socialista pela emancipação do homem do jugo do capital.
Amam o grande Guevara, mas a maioria pouco faz além de estampá-lo no
peito. Parecem possuir, antes mesmo de iniciar a militância, um perfil
conformável ao "padrão" político-institucional hoje dominante no Partido:
agregam-se às lutas em geral como se fossem jovens burocratas num rito de
iniciação política. Poucos possuem uma identidade de classe comunista e
revolucionária; daí não surpreender que muitos, uma vez vencida a fase jovem
da militância, aburguesam-se na teoria e na prática por dentro do Partido. Uma
vez burocratizados / institucionalizados, reatualizam velhos vícios e desvios
político-ideológicos. Ao fim do processo, essa parte está envelhecida
politicamente de modo precoce, e é a mesma mentalidade política pequeno-
burguesa que tempos depois vai fazê-la cultivar, nostalgicamente, os tempos
de "jovem rebelde" que "foi à luta".
O Comitê Central (CC) do Partido crê ser possível, com esse
jacobinismo presunçoso, trazer a sociedade para dentro do Partido por meio de
sindicatos e dos jovens? Sim, se em essência esses jovens forem jacobinos e
esses sindicatos encarnarem o mal do vanguardismo. Num caso e noutro, em
si já não seriam "da sociedade", mas produtos particulares dentre outros da
esquizofrenia social e política dos nossos tempos de crise ideológica. Os
senhores estão superestimando a cabeça dos trabalhadores e dessa
juventude. Num dos comentários de membro do CC a favor dessa lamentável,
ultra-radical e irrealista proposta de resolução (comentário quase tonitruante
em sua verborragia diletante), li trechos como “um verdadeiro comunista não se
encanta com o parlamento burguês”. Essas palavras pomposas, sempre
levadas pela vida viva das ruas, já encheram toneladas de papel com rios de
tinta. Para onde nos levaram? Para onde nos levarão? Sempre para o mesmo
ponto de partida de sua pregação pretensamente revolucionária. É quase
possível ouvir o seu autor falar para si mesmo, diante do espelho, e depois dar
aquele sorrizinho satisfeito antes de sair para a rua.
De qual proletário estamos falando? Não é, decerto, do trabalhador que
está nas ruas e nos guetos, nos estádios de futebol, nos botecos, no chão da
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fábrica, nas escolas e universidades, nos escritórios, nos puteiros, nos
estaleiros, nas filas de ônibus. Essa verborragia, em essência, fala para um
trabalhador abstrato; é um fetiche discursivo esvaziado de significação porque
o seu objeto, o trabalhador / homem concreto, ama ou chora, sorri ou adoece,
morre ou vive, para além desse universo que o entende ou sente
mistificadamente.
O que temos visto historicamente é um movimento político auto-
centrado, que pode lembrar um círculo fechado em si mesmo, em que saímos
de um ponto, giramos e chegamos ao mesmo ponto, depois de anos de
embates menos dialéticos do que supõe nossa vã filosofia política. Nunca
giramos nessa luta num movimento que deveria ser de espiral, crescente, uma
curva sempre tangenciando a curva anterior, num movimento dialético
abarcando sempre mais idéias e grupos, pessoas e conceitos, universal e
universalizante a partir da classe trabalhadora, sim, mas nunca engessando
essa mesma universalidade / diversidade (bloqueando seu ascenso intelectual
e político como classe em si e para si), a pretexto de nos mostramos como
paladinos e vanguarda da mesma. (Sim, é isso que o nosso inconsciente
político mascara com esse jacobinismo tardio enfeixado numa interpretação
estreita da tática). A classe trabalhadora quase sempre é mais avançada
política e ideologicamente do que podemos supor na nossa visão
preconceituosa e paternalista.
Esse movimento, porque circular, é fechado à dialética. É entrópico; é
essencialmente autofágico: não por acaso, temos visto contínuos "estouros" de
crises políticas cíclicas nos Estados (São Paulo, Rio Grande do Sul e, agora,
Pernambuco, são exemplos fortes desse grave problema de visão engessada
de processos políticos. Não por acaso, estouram em locais onde há mais
militantes que teorizam e fazem continuamente a crítica da prática).4 Sem força
política para terçar armas contra a burguesia, sem lastro para, a partir dos
movimentos sociais e populares, guerrear o reacionarismo político de grande
4 Faço o registro de que o fato de aludir às crises de São Paulo e do Rio Grande do Sul não significa que concordo, necessariamente, com as razões formuladas por dados militantes e / ou coletivos em divergência. Apenas cito-os para demonstrar algo para mim sintomático.
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parte da classe média, das mídias em geral e dos políticos em particular,
voltamo-nos sistematicamente para disputas difusas ou explícitas entre nós
mesmos. Temos, muitas vezes, avançado dois passos e retrocedido três.
É um movimento que em essência não inscreve no seu giro a questão
do poder (político, social e econômico) no processo da luta entre as classes (e
inscreve, sim, mas como algo idealizado nos termos de um embate entre
burguesia e proletariado numa arena onde veremos todos cada inimigo
apontando para nós sua arma). Parece-nos que esse movimento sonha uma
luta aberta, uma guerra de movimento do tipo da Grande Revolução Russa, no
período de fevereiro a outubro. Sonha o assalto aos céus. Um Armagedom.
Resta apenas que os operários de salários míseros, o camponês espezinhado
e sem terra, o desempregado sem rumo, venham conosco terçar armas contra
essa burguesia, espécie de Babilônia cheia de pecados. E não giramos num
movimento de espiral porque formulamos uma tática que está
operacionalmente fechada ao teste dialético das ruas e das lutas.
O juízo que fazemos aqui, ao lembrar os dois casos, é necessariamente
político. Queremos demonstrar, ao citá-los, porque o PCB (e, a rigor, a
esquerda socialista brasileira em geral) vive nesse eterno círculo, espécie de
útero seguro a partir do qual, alimentando-se apenas da teoria, recusa o teste
da prática. Por que recusamos vir à luz? Por que nos assombram as eleições
burguesas? Por que nos tensionam ideologicamente e abalam tanto? E daí que
é um processo degenerado, podre? Queremos conquistar o poder de Estado
apenas no espaço seguro e exclusivo de grandes frentes políticas para fazer o
assalto aos céus e fundar a nova ordem? Essas são as condições dadas,
objetivas e subjetivas? Quem tem medo de quem, aqui? Nós temos medo de
quê? Só vamos dar a devida importância ao processo político-eleitoral quando
a nova ordem for instituída, pretensamente asséptica e imunizada? De fato,
temos sido revolucionários em teoria, pois somos antiquados no enfrentamento
e reacionários à compreensão desse processo, seja em sua formalidade
jurídica, seja como ele concretamente se institui social e politicamente. De fato,
embora revolucionários, negamos na prática o valor político e ideológico desse
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processo, que mobiliza, para o bem e para o mal, o debate sobre a cidade, o
país, o trabalho, as condições de vida do povo e da classe trabalhadora, ainda
que, neste caso, em aspectos pontuais.
Participamos em Pernambuco de três campanhas majoritárias (as duas
últimas, a rigor, sozinho). Não registramos isso para dar exemplo, mas para
dizer que em nenhum desses momentos o Partido se mobilizou organicamente
com os demais camaradas, a não ser para dizer que estava vivo e "na luta". É
como se fizéssemos campanhas para mero "efeito demonstrativo",
repercutindo algumas agendas e discursos. Isso é gravíssimo. E isso é assim
em todo o Brasil, conforme os relatórios que li sobre o desempenho do Partido
em 2008 e 2010.5 As eleições, burguesas ou não, bem como as campanhas
em termos práticos, são espaços privilegiados para o diálogo político-ideológico
com as pessoas de carne e osso, reacionárias ou não, socialistas ou alienadas.
O nosso rótulo e (falso) desprezo não vai mudar sua natureza e essa realidade.
Na ordem burguesa, jamais serão espaços ideais para nossa intervenção. Do
mesmo modo, não podem ser objeto de intervenção apenas formal para nós,
que é o que vemos em quase todo o país, mesmo saindo com candidatos em
chapas puras ou em coligação com o PSOL e o PSTU. Nunca entramos (salvo
raras exceções) para valer nessa luta. E, no entanto, vejo sempre a cara
coletiva da decepção quando os dados saem das urnas e nosso eterno
desempenho pífio e ridículo ganha a luz do Sol. Por acaso esses resultados
não são efeito também da nossa absoluta falta de seriedade política para
enfrentar essa debilidade monstruosa?
5 No país, nesse período, o desempenho político-eleitoral do PSTU e do PCB é emblemático e fala por si mesmo: votações em geral pífias, que revelam menos as condicionantes das disputas do que a cristalização de nossa fraqueza, ingenuidade e irracionalismo no enfrentamento realista a esses bloqueios.
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O Culto da Ilusão das Formas
Alguma mente farisaica talvez esteja imaginando, aqui, que defendemos
alianças com a direita em processos eleitorais (como a resolução jacobina deu
a entender sub-repticiamente), "porque é preciso ganhar eleições". Não,
camaradas, não imaginem, aqui, a defesa de qualquer taticismo de PCdoB,
que topa tudo pelo poder no seu comunismo de consumo. Tampouco nos
"encantamos" com todo esse lixo que, produzido e sob controle do capital
privado, degenera até o equilíbrio da representação parlamentar nos termos do
próprio jogo de poder burguês. Não há nem houve nenhum perigo de ter sido
seduzido por essa ficção democrática, que a mídia, os tribunais eleitorais, os
profissionais da política etc., emulam com propaganda institucional, discursos e
editoriais tão eloquentes quanto mentirosos sobre o que realmente está
ocorrendo. O que denunciamos aqui é o que chamamos de culto da ilusão
das formas no Partido, mas fenômeno já antigo e comum na esquerda
socialista em geral. Estamos praticando, com esse desvio, o que pode ser
observado nos movimentos sociais refratários aos partidos políticos.
Os trechos seguintes, aspeados e em itálico, foram divulgados em
recente artigo sobre os movimentos sociais (publicado em agosto), bem antes
de imaginarmos que poderiam servir para reforçar os nossos argumentos sobre
os partidos em geral, e os de esquerda socialista, em particular. Assim, com
algumas adaptações, eu os repito neste breve ensaio. Leiam e comparem se a
carapuça serve ou não para nós mesmos.
"Todos sabemos que a luta política é essencialmente ideológica. Não
quero dizer com essa premissa que tudo é ideologia, naqueles termos do que
chamamos de "falsa consciência" sobre o real e suas expressões materiais
traduzidas nos conflitos entre ideias e nas ideias em si. Quero dizer que esses
conflitos, na sua expressão política, traduzem sempre uma visão de mundo
ideologicamente conformada. Por isso é sempre tão atual e sábio aquele alerta
de Brecht sobre o analfabeto político. O grande autor de teatro e comunista
alemão trata sobretudo da alienação política em termos ideológicos.
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E um dos fatos que as campanhas políticas afirmam, para além da
disputa em si pelo voto, é a alienação dos movimentos sociais diante dos
partidos, os atores fundamentais nos quais deságuam, num formato mais
institucionalizado, os conflitos e contradições entre e nas diversas classes e
seus interesses. Essa alienação é em essência ideológica. O seu pressuposto
é que os movimentos devem guardar distância dos partidos em função do
perigo que este representariam como instituições que buscam o poder, à
esquerda e direita do espectro ideológico. Tal crítica vê os partidos numa
dimensão puramente instrumental, como operadores de demandas sociais
numa perspectiva reducionista (o famoso fim em si mesmo), sem incorporar
uma razão centrada numa concepção por assim dizer holística como
mediadores de interesses".
Ora, o mesmo também pode ocorrer com os Partidos, pois não estamos
imunes a olhar o outro sem os preconceitos desse próprio outro em nós. Por
isso, temos visto um "diálogo de surdos" entre Partidos e movimentos sociais.
E não nos surpreende que a crítica seguinte, feita por nós sobre os
movimentos sociais, sirva, em certo sentido político (com sinais trocados) para
os partidos da esquerda comunista ou socialista, como o PCB.
"De fato, há, por parte dos movimentos sociais, uma crítica conservadora
que tem uma "razão de ser" política, mas não ideológica. De fato, alguns
partidos instrumentalizaram, em época política já remota, sindicatos, a exemplo
do PCB, que ainda na clandestinidade dos anos 70 fez sua autocrítica. De fato,
temos hoje alguns partidos de esquerda, direita e centro que agem de modo
oportunista e instrumental junto às entidades, sobretudo sindicais, com o
discurso socialista e/ou assistencialista na ponta da língua. Esse arrivismo
político provocou, já a partir dos anos 90, quando a redemocratização permitiu
a abertura e a ascensão de milhares de entidades sociais, a resistência dos
militantes sociais aos partidos e suas táticas políticas. Ao mesmo tempo, e
aqui temos o nó da questão, essa resistência concebeu ideologicamente (sem
perceber) a crítica aos partidos, tratando-os, a priori, como potenciais (ou
mesmo intencionais) manipuladores das entidades por meio de sua militância".
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Não temos visto essa mesma resistência em nós, em relação à política e
seus processos, eleitorais ou não? Não temos visto um preconceito que nos faz
torcer o nariz para as disputas eleitorais e revelar enfado quando, nas ruas e
nas praças, no portão da fábrica e de universidades, nossos panfletos são
amassados nas nossas caras ou simplesmente recusam pegá-los e fazem
piadas grosseiras?
"Trata-se de uma prevenção que revela, em seu absolutismo puritano,
um preconceito ideológico perigosamente inspirado numa visão de mundo que
não deixa de ser classista, ainda que revestido ou travestido de uma pretensa
universalidade isenta e neutra de ideologias, políticas ou não. Qual é o
resultado ideológico e prático dessa crítica conservadora e genérica aos
partidos, em certo sentido já deslocada no tempo?
Em primeiro lugar, a auto-suficiência que muitos movimentos incorporam
no seu ativismo. Agem como se bastassem a si próprios, como se
encarnassem, na sua diversidade de visões e interesses de ativistas, uma
compreensão superior e mais universal dos eventos sociais, políticos,
econômicos, culturais etc. Ou seja, muitos praticam aquilo que acusam no
oportunismo dos partidos, quando estes se supõem vanguarda e estuário de
verdades. Esse comportamento isolacionista é o primeiro passo para instituir
uma visão alienada do real, dado que os ativistas discursam a partir de cima,
autocraticamente. Muitas dessas entidades gostam da palavra diálogo, mas
desde que o interlocutor concorde, prima facie, com o que está sendo discutido
internamente ao grupo. Dialogam entre si, mas para fora de suas entidades
discursam".
Não é curioso constatar que essa mesma crítica cabe a nós? Temos
dialogado entre nós, mas para a massa trabalhadora lançamos discursos
perfeitos e ainda nos damos ao luxo de excluir da luta trabalhadores /
militantes com grande chance de serem eleitos e estamparem numa Câmara a
gloriosa foice e martelo do PCB (como o carteiro Edvalmir, de Timbaúba). Ah,
não! Afastai de mim esse cálice, porque esse mandato seria concebido em
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pecado! Não é confortável enxergar ao nosso lado um camarada genuíno
somente porque, em essência, ele concorda conosco?
"Onde estaria a classe inspirando esse autoritarismo, se,
aparentemente, tais entidades de movimentos são constituídas por gente de
diversas classes sociais, ainda que predominem os de origem pequeno-
burguesa? Essa classe ou grupo social seria de um novo tipo, afeito ao
ativismo que pretende ajustar o mundo de misérias e contradições a uma
pretensa racionalidade legal e moral nos marcos do capitalismo. Vamos dar as
mãos e curar as feridas da cidade num só canto (desde que esse canto não
derrube as muralhas da Jericó capitalista). São quase os antigos socialistas
fabianos. Não por acaso lemos nos seus projetos um viés judicialista e
moralista que se supõe universal no seu holismo. Instituem uma ideologia que
se pretende asséptica de eventuais contaminações político-partidárias. Essa
ideologia conservadora quer distância dos partidos e de seus militantes, mas
ao mesmo gosta do apoio partidário às suas demandas.
Em segundo lugar, temos como elemento central dessa crítica
conservadora aos partidos o que chamo de culto da ilusão das formas,
encarnado pelos movimentos no instante exato em que formulam seus
discursos e delineiam suas diretrizes de ação. O culto da ilusão das formas
significa instituir uma prática política auto-referente, que desenha os cenários
de intervenção sem problematizá-lo ideologicamente. São grandes cenários da
forma do agir público, mas concretamente ocos, emasculados em termos
ideológicos. Daí o discurso do movimento ser avesso àquilo que é a questão
fundamental numa sociedade de classes: quem tem a hegemonia e exerce o
poder real? Não é por acaso que muitas entidades repudiam os partidos de um
modo geral, pois nenhum deles é alienado dessa condição ontológica de sua
existência. Em outras palavras, o fato de um partido pretender o poder parece
ser um pecado original, um anátema político. Ocorre que nenhuma dessas
entidades existe sem esse mesmo fim, que não precisa estar inscrito em um
estatuto para ser reconhecido como tal. As entidades querem conquistar o que
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podemos chamar de poder social, que nada mais é do que uma forma
particular de poder político não instituído.
No entanto, o culto da ilusão das formas inscreve esse objetivo das
entidades de modo muito mais ideológico do que podemos supor. De fato,
ainda que se suponham acima das classes, considerem-se holísticas,
universais ou qualquer outra palavra charmosa que o valha, tais entidades
pretendem, essencialmente, instituir uma identidade supra-classista que, ao fim
e ao cabo, é a mais perniciosa forma classista e conservadora de ativismo, pois
se isolam e ao mesmo tempo pretendem mediar os problemas sociais,
políticos, econômicos etc a partir dos seus focos absolutos e auto-referentes,
segmentando uma visão de mundo restrita, em termos político-ideológicos.
(Assemelham-se, a rigor, com o pensamento conservador e até reacionário no
mundo acadêmico de mestres e doutores que habitam torres de marfim).
Muitas dessas entidades olham as desgraças do mundo a partir de suas ilhas
fabianas, e em suas ilhas recusam estrangeiros (ideias ou programas de
partido) que possam contaminar a boa ordem. Esse narcisismo político quer a
todos nós espelhos para refletir sua auto-suficiência. Porém, ideologicamente,
essa visão está alienada do real, pois a vida viva das ruas não reflete Narcisos,
mas sim uma brutal e vil degradação de seres humanos e de suas cidades. E
essa condição inscreve o desafio da conquista do poder pelos partidos e
entidades do movimento como algo concreto e perene. Ninguém pode se
emancipar dessa condição de degradado do e no coletivo se cultiva a ilusão de
se emancipar em grupos abertos apenas na forma de agir, mas fechados ao
diálogo político e ideológico junto aos partidos. O espelho, faz tempo, cansou
de Narcisos".
Percebem, enfim, como o Partido se encaixa, em essência, nessa crítica
que fizemos aos movimentos sociais em relação aos partidos, em geral?
Percebem como ambos, partidos e instituições do movimento, anulam-se na
teoria e prática militantes? Mas voltemos à crítica.
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É muito estranho esse movimento atual no Partido, que cultua com toda
razão grandes heróis da classe trabalhadora na história partidária, mas ao
mesmo tempo, sob uma interpretação integrista da tática na Reconstrução
Revolucionária, devora seus filhos, condena-os sumariamente em autos
inquisitoriais ou isola-os em ritos de purificação para que, caso não façam mea
culpa, fiquem em silêncio obsequioso até o próximo congresso. O que a
Reconstrução quer significar, para além do rótulo? Está à procura de uma
identidade tentando forçar a realidade das ruas a entrar na tática? Foi
exatamente isso o que vimos com o caso Paulista, que até ontem era a
"menina dos olhos revolucionários" do Comitê Central e, como num passe de
mágica mistificador, seus militantes ficaram sob suspeição até moral, além de
política, conforme podemos ler nas entrelinhas da resolução integrista. (Segue
em nota uma apreciação do então assistente Numeriano, a respeito dessa
resolução).6 E também foi o que vimos com o caso Timbaúba (pouco
6 "Considero que, em essência, algumas condicionantes da CPN são a expressão de um zelo antes de caráter político pequeno-burguês (inspirado talvez num certo puritanismo ideológico) do que de um cuidado objetivo e racional em face do que a realidade nos impõe, praticamente. Tal expressão radicalizada não está muito distante daquilo que combatemos em certa esquerda que condena a corrupção nos termos do próprio sistema, como se não fosse imanente ao sistema capitalista ser corrupto - e, por esse viés, começamos a combater / negar (até ontologicamente, talvez sem sentir ou perceber) a necessidade de lutar a luta (que não é jogar o jogo nos termos da sujeira do politicismo burguês), e nos refugiamos sob algumas máscaras que podem até servir para aplacar nossos medos e desconfianças políticos e ideológicos, mas que, em termos práticos e racionais, nos isolam da compreensão do movimento real e das lutas concretas. Em outras palavras, percebe-se, embutidas em algumas condicionantes, como exclusiva categoria determinante (e num sentido único), a dimensão da forma como elemento funcional ao conteúdo. No entanto, a contradição, em qualquer processo político, implica a necessidade de reconhecer que o conteúdo também é, necessariamente, funcional à forma. Se assim não entender e sentir esse processo político-ideológico, em breve vamos nos sentir puros, intocáveis, acima do bem e do mal, radicais da boa nova socialista; quase um PSTU atual ou PT das origens. E daí será um pequeno passo para imaginar, mistificadamente, que ganharemos a guerra num assalto aos céus que não exigirá de nós nenhum combate na arena suja. Em geral, essa leitura enviesada do real, inspirada pelo puritanismo, idealiza os processos concretos e condiciona as formas / meios de luta numa camisa de força. Começamos e então a inventar / sonhar a realidade circundante para caber nas nossas teorias – e numa única mão. O pragmatismo político não é necessariamente ideológico (ele é um dado da realidade do jogo político, instituído pelos lances táticos dos candidatos e partidos), embora saibamos que ele pode resultar no oportunismo político mais descarado, se um partido / militante não agir mediante princípios. É preciso compreender que "lutar a luta" sob alguns dos termos e dados limites (não ideais) que esse real nos impõe, não significa que estaremos contemplando o abismo da perdição político-ideológica. Não me admira que, embora todos sejamos marxistas sinceros e com um grau maior ou menor de leitura e reflexão, muitos de nós
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conhecido do Partido porque não houve resistência em Pernambuco), onde o
relatório, redigido por quadros dirigentes, foi tratado como um "contorcionismo
verbal" (palavras do próprio secretário-geral), como se seus autores fossem
enrrolões ou embusteiros. E o que nos estarreceu foi um integrante do Comitê
Central agindo como espião ou informante desse coletivo, como se os
dirigentes estaduais não merecessem confiança. Que prática é essa num
partido que deve ser de camaradas? Como o secretário-geral permitiu e
estimulou essa coisa deletéria e asquerosa de um dirigente sair à cata de
notícias para, de modo descontextualizado, expor camaradas que
supostamente necessitassem ser vigiados? Em qual coletivo esse senhor foi
autorizado a espionar os assuntos do PCB nas regionais e informar ao
secretário-geral sem que ao menos houvessem esclarecimentos prévios junto
aos dirigentes regionais? Somos já um gigante político à deriva que precisa de
espiões para cuidar, supostamente, de nossa integridade política e ideológica?
No máximo, esse senhor poderia informar ao secretário-geral, que
imediatamente trataria do assunto caso a caso, em comunicação direta e
restrita com os dirigentes das instâncias inferiores do Partido, sem necessidade
de expor os camaradas na rede do CC. Assim, evitaria a rede de fofocas e
dubiedades criada, com muitos julgando levianamente sem conhecer as
questões em profundidade. É espantoso que tenhamos permitido isso entre
camaradas. Já estamos assim tão obcecados como pregadores de ônibus com
a Bíblia em riste para achar natural esse comportamento imoral? Esse
comportamento até ganhou um adepto em Pernambuco, com um militante da
UJC (que jamais se integrou em qualquer campanha político-eleitoral do
Partido, coisa típica desde que o Partido decidiu disputar, até isoladamente, a
partir de 2008), pesquisando o caso de Gameleira e nos questionando, via
guardam uma resistência antidialética em face dos processos e campanhas eleitorais: talvez imaginemos uma Sierra Maestra e a instituição de um conteúdo e forma novos para fazer a política. Mas, na prática, toda vez que somos derrotados nas eleições (o nosso secreto objeto de desejo?), ficamos publicamente decepcionados, e voltamos a renegar, sem auto-crítica, a importância tática desse espaço de intervenção político-ideológica. Nos preparamos sempre para mudar o mundo no cotidiano de nossas lutas particulares e gerais, mas sempre temos uma atitude de desprezo diante dessa arena de luta política".
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email, se o Partido em Pernambuco tinha conhecimento.7 Sobre a onda de ódio
que a resolução fez explodir em Paulista, até em nome do Centralismo
Democrático, fiz um último apelo que julgo importante os camaradas tomarem
conhecimento.8
7 Será que, no caso de Gameleira, o "espião" deixou escapar uma aliança pecaminosa? A coligação contou, nesse município pernambucano da Zona da Mata Sul, com o PSB, o PCdoB e o PSD (de Kassab). O PSB de Pernambuco é a quintessência do reacionarismo ilustrado com verniz de social-democrata. Faz um governo elitista, centrado no enriquecimento escandaloso de algumas dezenas de comensais do poder. Reprime com violência os estudantes, concentra a renda no pólo industrial de Suape, enquanto o Sertão afunda na miséria. Apoiamos o PSB, que nem estava no index das resoluções. Gameleira foi uma "exceção"? Vê como erigimos tótens e depois não conseguimos decifrar os tabus que neles vemos encarnados? Ora, deixemos de hipocrisia! Se o caso Timbaúba ou Paulista for mais problemático do que o caso Gameleira, desafio alguém da CPN a provar. E, fiquem certos, nem estamos citando aqui este caso para exigir “punição” retroativa. 8 Camaradas,
Envio um breve comentário sobre a situação do Partido em Paulista, em face da recente decisão da CPN sobre a candidatura a vereador do camarada Luciano. Pedi ao Emerson que leia esse comentário. Não irei pelo fato de estar participando de debate no Recife. Este texto é a minha última intervenção como assistente em Paulista, pois decidi, a partir do dia 8 de outubro, renunciar a todas as funções dirigentes no Estado, fato já comunicado ao José Mário (Recife), Aníbal (Pernambuco) e Comitê Central. Estou até dia 07 de outubro cumprindo a tarefa que me pediram (fui contra participar da campanha como candidato majoritário, como todos sabem). Estou me desligando da militância institucional por três motivos. Um deles tem relação direta com o "caso Paulista", mas ocorreu até antes, em Timbaúba, quando o Partido decidiu vetar a candidatura de Edvalmir Carteiro, hoje concorrendo em chapa única. Não há nenhum emocionalismo e irracionalismo político na minha decisão: apenas decidi lutar pelo socialismo em outras esferas, sobretudo a cultural. Continuo filiado ao PCB, é claro, e só retornaria à militância institucional se eu percebesse qualquer movimento ideológico com desvios de direita no Partido. Felizmente, não é caso. Preparei um texto que chamei de "O Culto da Ilusão das Formas", que é minha última contribuição, por assim dizer, teórica como militante do Partido. Esse texto será disponibilizado ao coletivo estadual no dia 8 de outubro. CARTA A PAULISTA Camaradas, Em Paulista vivemos hoje um grave conflito. E apenas na aparência é um conflito entre o militante Luciano e a direção municipal. Ele reflete em essência o conflito entre uma interpretação integrista e ultra-radical da tática e uma interpretação que chamo de dialética e realista, calcado sem idealizações na vida viva das ruas, na situação de miséria dos trabalhadores desempregados, na alienação de dezenas de milhões de brasileiros de sua condição de explorado, no quadro de dominação de uma política cada vez mais hegemonizada pela direita e sua ideologia. Sou, desde o início, favorável ao encaminhamento que esse coletivo deu ao processo de alianças com o PT. Defendi-o perante a CPN, em relatório do diretório ao qual agreguei meu parecer político. Também sou radicalmente contra a decisão aprovada pelo CC, a partir de proposta de Resolução do secretário-geral, em determinar ao camarada Luciano que renuncie à candidatura, já que o prazo legal do dia 05 de agosto esgotara-se e não seria possível intervir. Restou a determinação de: 1. Redigir um documento político com a declaração de rompimento com a aliança na proporcional e majoritária. A outra seria, concomitantemente, a renúncia jurídica do Luciano. Como o ato está fora de cogitação,
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Essa espécie de "caça às bruxas" e bruxedos provocou em Pernambuco
um episódio que jamais presenciara no Partido, e que é o retrato fiel de como o
ultra-radicalismo é um perigo para sua vida política. O camarada Luciano
continuou candidato, pois havia passado o prazo legal (05/08) para qualquer
intervenção da Estadual ou do Comitê Central (CPN), no sentido de requerer a
retirada do seu nome da coligação. Ao mesmo tempo, Luciano recusou-se (e
com razão prática e política, em minha opinião) a renunciar à mesma. Apesar
resta discutir o encaminhamento prático do processo de rompimento. E é neste ponto, camaradas, que venho pedir ao coletivo serenidade em dois sentidos: preservar o Partido e o camarada Luciano. Sei que os ânimos estão acirrados. Sei dos ataques pessoais e até moralmente ofensivos e públicos que o camarada Luciano já sofreu. Sei também que o mesmo camarada já reagiu de modo errado a alguns desses ataques. Mas nada disso está em causa, agora (tratem do assunto depois da eleição, é o meu conselho, se ainda houver condição política para tal). O fato é que o Partido está nas ruas com uma candidatura que mobiliza e envolve as pessoas, militantes ou não da causa socialista. Sim, é o Partido, queiram ou não, com a gloriosa foice e martelo no campo vermelho, com a cara do Luciano. Não é somente uma candidatura do Diretório Municipal de Paulista. E isso se deve a uma conquista de todos vocês, com grandes sacrifícios em muitos anos de vida. Não é possível um coletivo de tanta gente de coração fraterno e solidário ter gestado e parido um Partido comunista que agora se debate entre ódios, rancores e desconfianças. O que há para que uma decisão política (para mim jacobina e estreita em termos político-ideológicos), ter provocado isso? Um Partido comunista, para ser comunista, não pode estar acima do coração e da mente dos homens. Se vamos nos endurecer no coração e na razão a ponto de cultivar uma radicalização que aposta na desconstrução de nossas subjetividades, em nossa desnaturalização como ser humano e numa guerra aberta até as últimas consequências, então há algo de errado com todos nós. Por isso, venho pedir que encaminhem um documento de rompimento político interno à coligação na proporcional e majoritária (evitando a "queimação" do Partido e, como efeito, o aproveitamento pela direita local e até por fanáticos de extrema-esquerda, como o PSTU estadual, que aposta na nossa divisão e desestruturação a partir de Paulista). Peço que se abstenham de combater e desconstruir a candidatura que é do Partido "na prática e formalmente", além de extrapolar o mesmo. Peço ainda que, a esta altura, não queiram exigir que o camarada Luciano recuse o apoio material da campanha, já impresso e entregue. Seria uma grande hipocrisia política da nossa parte essa espécie de "pogrom", interna e externamente ao Partido. Assim peço porque, a despeito de falhas e erros, o camarada Luciano, como a identidade militante do PCB mais evidente na cidade, merece ser preservado. Mesmo se não fosse por isso, ele merece ser preservado como pessoa. O grande e imortal Gregório Bezerra não tinha ódio sequer dos seus algozes torturadores, por que parte dos dirigentes do Partido está cheia de ira para com o camarada? O que está havendo? Busquem analisar as questões com frieza, pesando o lado do Partido e o lado do homem. Somente partidos fascistas pretendem que o homem está abaixo da instituição. Um Partido comunista como o PCB pretende que o homem seja o Partido, e vice-versa. Sejam serenos. É o que peço. Roberto Numeriano Assistente PCB-Paulista Recife, 04 de setembro de 2012
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disso, afora o ato de desobediência (ninguém aqui iria negá-lo), a companhia
seguia defendendo as bandeiras de luta programáticas do Partido. Em finais de
agosto, durante reunião de militantes da campanha (em local público, também
com a presença de militantes institucionais), três dirigentes municipais se
aproximaram da roda que discutia as tarefas e ficaram policiando a discussão,
em atitude intimidatória, como se fossem esbirros da antiga ditadura militar.
Não falaram nada, apenas vigiavam para depois, quem sabe, punir. O que é
isso? Essa foi a primeira vez que o Partido me provocou medo (e eu nem
estava lá, pois se estivesse enxotava-os). Também jamais vi no Partido esse
afã de punir, com rigor inclemente, um dirigente até ontem exemplar. Depois
disso, impossibilitados de "detonar" a candidatura legalmente, alguns desses
se passaram para pedir, por mensagens, contatos telefônicos e pessoais, que
não votassem em Luciano, pois o mesmo iria ser expulso do Partido. Não é
possível considerar isso normal, pois no fundo é expressão de ódio. Em
essência, o nome dessa doença é patrulhamento fascistóide, o mais letal
vírus que o ultra-radicalismo inocula num organismo político. Qual é o
próximo passo? Uma polícia fardada vermelha para os períodos eleitorais?
O rigor penal periférico era, é claro, efeito de uma sanha punitiva que
jamais observara no Partido, em muitos anos de militância.9 Por isso, foi sem
surpresa que, já no fim da campanha eleitoral, exatamente no dia 01/10/12, o
zeloso "espião" do Partido copiou um post no meu facebook e informou à CPN.
O post era o compartilhamento de um evento de candidato do PT à prefeitura
do Paulista, Sérgio Leite, e veio como anexo a um email da Secretaria Nacional
do Partido, com cópia para o camarada Aníbal, criticando-me e cobrando-me
explicações, pois, a despeito de eu ter informado que, a partir do dia 08/10,
renunciaria oficialmente às minhas funções dirigentes no Partido (e solicitado
que não mais enviassem para o meu email correspondências oficiais), eu ainda
estava sob o princípio do centralismo democrático como "filiado" etc. Em
conversa telefônica com o Aníbal, no dia 02/10, informei-o que, ainda no início
da campanha, postei a informação que usaria o meu facebook pessoal para
9 Este e o parágrafo seguinte foram redigidos no dia 02/10.
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divulgar a campanha (e na ocasião pedi a compreensão daqueles meus
amigos que não gostam de política e/ou não achem correto usar o espaço para
esses fins). Assim fiz. E somente após me desligar previamente das três
instâncias do Partido é que postei o referido evento. Na verdade, eu já era, de
fato, um ex-militante do PCB (embora, de direito, ainda fosse, pois apenas no
dia 08/10 a minha carta seria enviada às três instâncias). Estava sob duas
condições: de ex-dirigente e ex-militante ainda não oficializado, e de candidato
da Frente de Esquerda. E foi sob essa dupla condição que divulguei o evento e
vinha apoiando a luta do candidato Luciano Morais em Paulista, sob o mesmo
fundamento político que me fez escrever este ensaio: defender o que considero
melhor para o Partido e a luta dos trabalhadores. Sem dúvida, feri formalmente
o centralismo democrático (definam o "delito" e decidam qual "pena" deve a
mim ser imputada), mas esse mesmo rigor, eu, como filiado, exijo sobre
todos os que, no Partido, em Pernambuco ou além, são omissos,
diletantes e desidiosos em relação às tarefas partidárias cotidianas
(eleitorais ou não), pois o centralismo não existe para ser brandido como
açoite nas costas de "filhos desobedientes". Parem com isso! Quem vocês
pensam que são e o que querem fazer com o Partido de Gregório, Prestes e
Marighella? Um ajuntamento de pobres diabos amestrados? Esse deslavado
farisaísmo, longe de "enquadrar" quem quer que seja, na verdade põe o
Partido numa puída camisa de força!
Se querem a “lei” e a “ordem” para criar o sentimento de disciplina e
hierarquia sobre pessoas e/ou coletivos, é obrigatório que os dirigentes
centralizem democraticamente tudo e todos. Na prática, tenho visto em
Pernambuco (por parte de dirigentes), a ação cínica e deletéria de quem é
militante para si mesmo. Não creio ser difícil encontrar, Brasil afora, esse tipo
de (falso) militante pecebista: se esses tipos não “perturbam” a boa ordem
ilusória, ainda que na prática vivam a descumprir suas obrigações partidárias,
não há nada a temer.10 Aliás, temos visto cobrança apenas sobre quem se
10 De um desses casos, praticado por membro do CC, fui testemunha: na ocasião em que o Comitê discutia se apoiava a candidata Dilma Roussef no segundo turno das eleições de 2010, o mesmo defendeu publicamente pelo voto na candidata do PT (posição por fim vitoriosa na
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mobiliza e afagos em parasitas políticos.11 Se querem um aggiornamento no
Partido, então comecemos pelos quadros dirigentes diletantes, livrescos,
preguiçosos, pernósticos, ególatras e omissos. Se querem fazer do PCB um
partido datado, habitando um limbo político-ideológico, então permitam que
esses tipos e seus perfis intratáveis sejam a expressão da alma do Partido.
Serão perfeitos soldados da tática suicida.
votação final, sob um canhestro argumento "político" de "apoiar Dilma nas urnas e ser contra o governo nas ruas" ), mas já no hotel esse dirigente declarou, diante de mim e de outro membro do CC, que ia votar nulo. Aliás, o PT da então candidata Dilma não é o mesmo PT do então candidato Sérgio Leite, em 2012? Mudaram os costumes ou mudei eu? Certo, alguém aqui vai lembrar das resoluções de 2011 que definiram coligações prioritárias com o PSOL e o PSTU. Certo... e passados dois anos nós, sem transigir sobre cada realidade e sem levar em conta mediações de variadas espécies no mundo concreto da luta de classes; nós, agora, vemos o PT como um todo homogêneo e essencialmente "reacionário" em qualquer rincão do país? É simples, assim? É assustador como, nos últimos anos, a nossa política prática, longe de se fortalecer coerentemente, tem sido em essência a expressão de ziguezagues táticos menos pragmáticos do que oportunistas. 11 Esse é um dos “efeitos gerenciais” típicos nas instituições engessadas e burocratizadas, partidárias ou não.
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Duas Derrotas
O que fundamenta a resolução jacobina é a alegação de que as
Resoluções do IV Congresso Nacional e a Conferência Política Nacional (de
novembro de 2011) restringem o campo de alianças com o PSOL e o PSTU,
cabendo o exame das exceções por parte de um coletivo especialmente
designado (nestes casos, sempre a CPN). Logicamente, vetou qualquer
coligação com partidos como o PSDB, DEM etc. Perfeito (não estamos aqui,
em nenhum momento, questionando o acerto dessa decisão em si, embora, no
caso do PSOL e PSTU e de qualquer partido que exista ou vá ser criado no
campo da esquerda socialista, acredito que seja precipitado decidir, como se
fossem "contratos de namoro", alianças político-eleitorais em resoluções de
conferências e / ou congressos). Em muitos casos, Brasil afora, o PSTU, por
exemplo, é o exemplo de uma "companhia" pública que nos lembra aquela
sábia sentença popular: "Antes só do que mal acompanhado", tal o perfil e a
imagem que esse partido disseminou na esquerda socialista e sociedade em
geral. Já o PSOL, por outros motivos, também merece uma análise pelo fato de
possuir grupos com a mesma arrogância político-ideológica do PT das origens -
que nos anos 80 e 90 cresceu no vácuo deixado pelo PCB fazendo uma crítica
de direita ao "socialismo real". No caso específico de alguns dos grupos
psolistas, podemos identificar elementos desse defeito genético petista que
reeditam práticas e discursos hegemonistas e vanguardistas. É até natural
esse comportamento de afirmação adolescente, pois o PSOL, acredito, ainda
está processando a morte ritual do seu "pai" político-ideológico, o PT. De todo
modo, os militantes do PSOL são fundamentais aliados na luta pela construção
de blocos sociais e populares, em termos gerais e específicos. Aliás, se a luta
de classes, nos próximos anos, reagendar as disputas político-eleitorais
também num eixo ideológico mais aberto (ainda que não necessariamente
numa perspectiva revolucionária), dependerá muito das opções táticas do PCB
e do PSOL, bem como do encaminhamento prático dessas opções, o
crescimento e fortalecimento dos dois partidos como atores fundamentais na
liderança dos trabalhadores e do povo brasileiro nesse processo. Se a tática
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não se faz revolucionária, o socialismo será sempre uma eterna miragem
estratégica.
Iniciado o processo eleitoral, a CPN arrogou a si as análises e decisões
sobre cada caso, determinando quais alianças proporcionais e majoritárias
deveriam ser homologadas ou indeferidas. No caso de Paulista, num primeiro
momento, foram elencadas, numa resolução da CPN, determinações diversas
para o CR/PE atender. Estes e outros encaminhamentos são do conhecimento
de todos (a nota pública do PSTU estadual, provocadora e desonesta, a nota
pública do CR/PE, em resposta, a resolução jacobina da CPN, proposta pelo
secretário-geral, e, a seguir, a circular da CPN, redigida pelo mesmo e dando
instruções finais para que o CR processasse o que fora aprovado pela maioria
do CC quanto à proposta de resolução, com dois votos contrários dos
camaradas Aníbal e Numeriano, e cerca de meia dúzia de abstenções).
Estaríamos no melhor dos mundos e em paz com nossa consciência política se
a política ficasse restrita ao mundo dos papéis com decisões que imaginam ser
possível formatar a luta real e formalizar as relações políticas das entidades e
militantes em si e das entidades e militantes entre si, todas as vezes que
algumas contradições e conflitos ocorressem. Bastaria, sempre, uma canetada
e, pronto, a ordem ameaçada estaria restabelecida.
Essa presunção autoritária presidiu, desde o início, o processo sobre
Paulista e Timbaúba (talvez, aqui, alguém esteja imaginando que nesses dois
casos tínhamos, em essência, o mesmo problema de outras alianças
"detonadas" em alguns Estados12, e por isso mesmo nem haveria o que discutir
- conforme ficou patente no apoio quase unânime dos membros do CC que se
pronunciaram). Mas o fato é que não estamos aqui fazendo a crítica quanto à
aplicabilidade ou não da "pena", por analogia, nos termos de uma suposta
hermenêutica legiferante da vida partidária. Isso foi o que fez o CC ao
embarcar na radical proposta de resolução ultra-radical do secretário-geral. O
que estamos a discutir e criticar é o vezo de interpretar, por um viés integrista e
12 E com que orgulho essa palavra pretensiosa, "detonadas", foi escrita em alguns emails, traduzindo nossa ilusória "potência" e "controle" da situação, bem ao estilo judicializante e formalista de tratar a política pelo viés radical.
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ultra-radical, a decisão de um coletivo que, de modo acertado, ponderado o
quadro geral e a dinâmica da luta e dos atores envolvidos na disputa político-
ideológica e eleitoral local, buscou o melhor para a luta do Partido e sua
militância no que concerne aos desafios políticos e sociais nesses municípios,
sempre em consonância com a política geral do Partido para a classe
trabalhadora. Esse todo foi percebido ou somente foram vistas algumas
árvores dessa floresta?
Até soubemos, em comentário aparentemente jocoso do secretário-
geral, feito ao camarada Aníbal, que alguns camaradas de Pernambuco
estavam pretendendo, com a resistência, imprimir ao todo nacional uma "visão
pernambucana". O camarada exagerou o nosso objetivo (apelando, para variar,
para o formalismo da resolução numa perspectiva menos política do que
jurídica), e tangenciou o que realmente estava e está em debate: a nossa
crítica a uma interpretação integrista da tática (implicitamente entendida aqui
como um objeto, estático no tempo e espaço) e a sua transformação em
dogma de fé. Na verdade, tudo somado, vimos o inverso daquilo do que
fomos "acusados": a redução de todas as partes (e suas contradições
imanentes à dialética) ao todo absoluto da forma. Nessa presunção, que
trai uma perigosa concepção política reificadora sobre a realidade política
em si contraditória, não cabem mediações político-ideológicas de
nenhuma espécie. Sob essa concepção integrista, o contraditório político,
diante do formalismo encarnado pela maioria de um CC judicializador da
política partidária, sequer tem espaço para gerar um debate antitético,
democrático e plural em sua natureza, para além da consulta que (a rigor, nos
termos desse processo e prática judicializante, nem precisava ser feita, pois
todos já sabiam / sabem o que votar, segundo esse cânone de um coletivo que
quer fazer política para além do mundo concreto; um mundo hegeliano do
grande espírito demiurgo sobrepairando o Estado, quem sabe).
Não é por acaso que parte significativa da atividade política do
secretário-geral tem sido dedicada, nos últimos anos, a apagar incêndios
políticos que costumeiramente sacodem os coletivos mais orgânicos e críticos:
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como árbitro, faz aqui e acolá arranjos políticos.13 Seriam as dores do parto de
um partido que se projeta grande, destinado à conquista do poder político? Não
é o caso, pois o que temos sofrido é a gestão política de crises internas
contínuas e sistêmicas, e que já são funcionais e orgânicas à política partidária
por dentro e para fora de suas estruturas. Por isso mesmo, aos poucos e de
modo irrecorrível vemos como que uma prática política "amestrada" e
conformada segundo a leitura integrista (sem dúvida, uma relação causal
objetiva, cuja provável síntese dialética será a configuração de um partido
engessado e reacionário à esquerda). Maldita realidade que não se encaixa
nas nossas formulações! Nessa presunção, ultra-radical e farisaica,
demarcamos um mundo ideal à esquerda, e nesse espaço estabelecemos a
arena única e possível para travar o combate político-ideológico por nossas
teses congressuais. Na prática, essa presunção, porque estreita e autoritária,
amordaça-nos e nos isola, e tendencialmente vai nos transformar numa seita
política fundamentalista, como é em essência o PSTU. É a derrota da dialética.
Vamos supor que tivéssemos, em mil municípios brasileiros, mil
Edvalmir Carteiro com chances muito fortes de serem eleitos. E ainda que
tivéssemos, em outros dois mil municípios, dois mil militantes como o
camarada Luciano, também com fortes chances de serem eleitos para a
Câmara. Mas vamos extrapolar: vamos imaginar o mesmo para cinco, trinta ou
cinquenta deputados federais, e que em todos esses casos tivesse ocorrido o
mesmo que ocorreu em Paulista e Timbaúba (o "espião" oficial teria um
trabalho gigantesco para informar a CPN). O que faríamos, então? Em nome
do culto da ilusão das formas, dessa estreiteza da dimensão formal (que
pretende formalizar / judicializar a dinâmica dos embates políticos no seio do
Partido, manietando as instâncias com altissonantes resoluções, circulares etc,
as quais parecem querer traduzir um sentimento de potência para instituir uma
ordem perfeita), em nome "disso tudo" deveríamos, obrigatoriamente, indeferir
13 Uma atividade que deve orgulhá-lo, sem dúvida, mas que em essência mostra como o Partido (apesar de estrutural e ideologicamente negar o politicismo e a forma burguesas da prática política), reproduz em sua dinâmica política o apelo à voz da autoridade e ao formalismo judicializante das relações.
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dezenas de candidaturas para nos encaixarmos no dogma da forma e escapar
do auto de fé. Perguntem à cúpula dirigente nacional do PSOL se ela faria o
mesmo. E também ao PSTU (pois nem esse partido, de caráter ideológico
mistificador), é um inexpugnável monólito político-ideológico, como tenta
parecer).14
Se a resposta à pergunta for, majoritariamente, positiva, então o Partido
corre um sério perigo, pois, para além de eleger, em "chapas puras" de
esquerda ou com legendas mequetrefes e de aluguel, alguns poucos
candidatos, estará sempre restrito ao espaço dos votos acabrestados à
esquerda (no caso em que tivéssemos nomes com clara e forte liderança na
massa para obter voto ideológico), disputando sempre até 2% do eleitorado em
cada Estado e município (que é a média consolidada da esquerda socialista).
A vida viva da luta político-ideológica não pode ser formatada por ideais
(ainda que coloquemos nele o carimbo de "revolucionário") políticos de uma
ilusória "vontade de potência". A formalização das relações políticas sob
eixos interpretativos ultra-radicais é, ontologicamente, um desvio do
organismo político comunista, que tende a operar um fechamento
progressivo do diálogo político por dentro e para fora do Partido. Em
termos práticos, esse desvio tende a isolá-lo até o limite esquizofrênico de falar
apenas consigo mesmo (e, de dentro de uma camisa de força), sair às portas
de fábricas e nos guias eleitorais com mantras politicamente estúpidos e
ideologicamente reacionários no campo da esquerda, como temos visto. É a
derrota do Partido.
14 Aliás, hoje raramente ouvimos o bordão "revolucionário" com o qual queriam fazer tremer a burguesia brasileira. Será que o PSTU está se "aburguesando"?
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Acima do Bem e do Mal
O fato de aludir ao CN e resoluções x ou y para justificar decisões
parece-nos uma saída fácil, no caso em tela. Nos dispensa do exame da
natureza do fato político ou, como parece querer a justificativa burocrático-
formal constante da resolução jacobina, quer nos convencer de que a decisão
radical é legítima em si mesma. Na verdade, tal decisão é o modelo formal de
uma percepção estreita da política real, em termos teóricos e práticos (e daí
nos parecer um "porto seguro" no qual nos refugiamos contra o mau tempo da
luta e na luta). O mundo burguês é mal, neguemos o mundo! O nosso mundo é
perfeito, façamos com que a realidade das ruas, fábricas e campo nele se
encaixe! Entre o CN, a Conferência Nacional e o período eleitoral o mundo dos
conflitos político-ideológicos parou? Não há nada a transigir? A revolução nos
espera logo ali, pura e cristalina, sem vieses e contradições? Seremos dela a
vanguarda que vai chegar ao poder sem pecado na concepção? Por mais
avançadas politicamente que tenham sido (e continuam sendo) as resoluções
da Conferência, tais decisões não podem pretender bloquear / cercar as
dinâmicas da luta de classes (em arenas político-eleitorais ou puramente
ideológicas, como objeto de debate teórico), que é o que temos visto por essa
ótica mecanicista predominante no Comitê Central.
O Partido não pode se pretender profeta acima do bem e do mal dos
tempos, erguendo-se, como se fosse possível, acima do real da luta de classes
e algumas de suas condicionantes objetivas. Isso é para instituição religiosa
fundamentalista. O Partido não pode recusar eleger lutadores sociais aos
parlamentos porque, em dados momentos e ambientes, somou-se a uma
coligação, sem que disso pudéssemos ter o controle, uma legenda que naquele
local é só um Partido cartorial, "de papel", ainda que de direita. Desde quando
uma coligação desse tipo e formada sob essas condições significa negar a
agenda político-ideológica do Partido? E desde quando uma coligação com o
PSTU e o PSOL será / seria recomendável "em si mesma"? Quem não sabe
que, em um número considerável de casos, coligações com esses partidos são
quase sempre travadas por disputas de ninharias de poder motivadas pelo
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personalismo e arrogância de quadros, vanguardismo e messianismo dos
partidos, além propriamente da irracionalidade política?15 Quantas coligações
político-eleitorais foram feitas, em nível municipal e estadual (sem falar na
péssima experiência da disputa presidencial de 2006), e que, na prática, não
passaram de "ajuntamentos" de partidos, com seus militantes, em boa parte do
tempo, cuidando de apagar ou propagar conflitos na fogueira das vaidades em
torno do nada?
A arrogância e presunção desse gesto são espantosos. É como se
quiséssemos zerar a luta de classes a priori, sob a sua forma político-eleitoral.
Talvez haja quem imagine que esse será o "preço a pagar" pelo Partido,
inicialmente, até que a boa nova do evangelho sem mácula seja ouvida pelas
massas. Talvez imaginem ser possível repetir a história, qual PT das origens
redivivo, mas seguros de que não nos desviaremos do caminho na marcha
batida até ascender ao poder máximo revolucionário. É como se existisse em
um, por assim dizer, inconsciente coletivo partidário o desejo não confesso de
seguir o modelo petista dos primeiros anos, e, em essência, reeditar, sob a
forma "comunista", a estratégia da revolução democrático-popular esgotada
pelo PT no poder, em forma e teoria. Idealizam, pois, os processos políticos
concretos, e daí conceberem a operacionalização da tática conforme a própria
concepção não dialética da mesma.
Sob essa leitura do já conhecido "esquerdismo" (esse mal perene que
sempre trai nossos complexos ideológicos burgueses ainda não debelados em
nosso ser político e social), forma e conteúdo se encaixam perfeitamente para
"traduzir o real", como se este fosse uma caixa de lego de um mundo político
infantilizado. Essa política do gueto recusa o teste dialético que exige toda
formulação tática praticada verdadeiramente, sob as pressões, armadilhas,
contradições e imposições da luta concreta no campo político, ideológico e
15 Há uma certa pretensão ingênua do PCB, a respeito dessas alianças táticas, quanto a se considerar como "estuário" de mentalidades, teorias, práticas etc., em função dos 90 anos de luta do Partido. No entanto, na luta prática, isso é apenas simbólico, pois nos arranjos pré-eleitorais e noutras lutas o que fundamenta a ação de cada partido com o qual dialogamos é obter a maior vantagem possível para a sua agenda política, ideológica e eleitoral. Pragmatismo político é irmão gêmeo do protagonismo social.
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eleitoral. A tática sob a mordaça integrista é um jogo de soma zero entre o
Partido e o mundo real da política, no qual, ilusoriamente, não perdemos nada.
Não é por acaso que sob essa interpretação da tática, vista / concebida
como um ente inerte ou estático, o efeito concreto do integrismo é
paralisar / bloquear, num primeiro momento, a atividade prática da
política (sendo a paralisia eleitoral apenas um efeito secundário), e, num
segundo momento, conformar / amestrar a formulação teórica (sendo o
amestramento do dissenso um efeito secundário do esvaziamento da
crítica). A tática só pode ser experimentada de verdade no mundo das
contradições concretas, em nós (já na nossa subjetividade de ser político e ser
humano, unidimensionalizado), no organismo partidário em si, e do mesmo
organismo em sua relação dialética conosco. O espaço de tempo entre
congressos é de transigir, essência da política per se, sob a mesma liberdade
democrática de períodos de consulta coletiva.
Fala-se muito que o materialismo dialético e histórico é um método
científico. Sem dúvida, para mim é o mais robusto método científico até hoje
concebido para apreender a realidade. Por isso mesmo, as teses concebidas
pelo coletivo comunista devem ser objetivamente (e não idealmente)
experimentadas nas ruas, pois não foram / são formuladas para aguardar o
próximo congresso e o coletivo dar outro passo, se negadas algumas
premissas das teses congressuais. Se assim imaginarmos a esfera do político,
em breve vamos ter um Partido transformado em academia de Ciência Política
(bem ao gosto de alguns "militantes" de cultura política livresca, que na prática
transformam o PCB em grêmio lítero-recreativo).16
Um aspecto que pode ser deduzido desse afã de afirmação jacobino é o
retrato que fazemos de nós mesmos. Parece-me que a grandeza do passado
revolucionário do Partido contamina esse auto-retrato, em termos político-
ideológicos. Nos erigimos como símbolos para consumo de nós mesmos. É
16 Conhecemos um "exemplar" que é a quintessência dessa militância de gabinete, pois adora ouvir a própria voz e concebe reunião como um momento de "despacho" de ofícios, circulares, comunicados, propostas de Ativo disso e daquilo etc. Terminada a reunião, é o primeiro a não se mexer no mundo real da luta.
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como se estivéssemos sempre a olhar a nossa história e os seus grandes
nomes, e daí, para além da necessária emulação dos seus feitos,
precisássemos evocá-los sistematicamente, num culto quase nostálgico.17 Ao
mesmo tempo "personalizamos" os feitos dos nossos grandes nomes (como
um Prestes ou Gregório), que tinham a exata dimensão de que compunham
uma batalha coletiva pelo socialismo, e não se enxergavam na luta
particularizados. Mas o fato é que os nossos heróis revolucionários precisam
de uma "morte" política. É preciso encarar a necessidade de "matar
ritualmente" nossos pais políticos. Eles próprios, bons revolucionários que
eram, não gostariam de um Partido no eterno retorno que significam os
mesmos paradoxos e os velhos impasses entre o que teorizamos e praticamos.
Não podemos falar em reconstrução e repetir visões / comportamentos que
mais à frente exigirão novas reconstruções. Precisamos fazer o luto político dos
nossos mortos, assim como dos elementos teóricos pequeno-burgueses ainda
aferrados no nosso ser político. Eles não devem nos pesar para além do tempo
de suas lutas.
Não é natural e normal o PCB viver a gestão de eternos conflitos que ao
fim e ao cabo transformam-nos num clube fechado em si, com bons camaradas
envelhecendo entre bons camaradas.18 Essa é a cultura política de fanáticos e
fariseus do esquerdismo de mesa de bar: projetar a grande revolução
redentora, formular a tese decisiva, definir a tática mais abrangente e depois,
sem saber pensar e agir no mundo político, econômico e social concreto, da
"insustentável leveza do ser", dar de ombros e apostrofar contra tudo e todos.
Somos "profetas" e desejamos, no íntimo, pregar sempre no deserto? É isso?
Queremos o "homem novo", quase o "homem santo" social, e sequer somos
17 Isso talvez explique porque há no Partido uma espécie de "cultura militante livresca": temos tanta riqueza teórica e acervo de lutas que essa cultura (hipervaidosa e ególatra, comum sobretudo em alguns intelectuais orgânicos) nos paralisa num "encantamento" que nos faz parecer maior do que somos. 18 De fato, estamos ficando, cada vez mais, vetustos e ensimesmados militantes: os anos passam e não temos visto um aumento qualitativo e quantitativo da militância e de sua produção / intervenção nas entidades (associações de trabalhadores, de moradores, sindicatos, movimentos sociais etc), nos órgãos públicos (em nível municipal, estadual e federal), e empresas privadas.
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capazes de entrar no templo para derrubar a ordem política burguesa, podre e
corrupta.
Esses pudores políticos (baseados, na verdade, em falsos princípios,
dado que seus "fundamentos" são apenas a forma e a aparência dos
processos políticos e sociais), não seriam a expressão politicamente mais
hipócrita e refinada de fazer o jogo do ostracismo, do isolamento? Somos um
partido comunista em abstrato, no sentido de incapaz, entre a formulação
tática e estratégica, ver o homem todo e todo homem? Seríamos cultores
inconscientes, na verdade, de uma “clandestinidade oficial”? O fato é que nos
pretendemos científicos e objetivos na análise do real, mas em geral não
conseguimos apreender as subjetividades dos próprios processos políticos e
suas condicionantes ideológicas e sociais. Por que, finalmente, não
conseguimos "materializar" a pragmática dessa política e ideologia como elas
de fato são para, a partir daí, inverter sua lógica e reverter a hegemonia
burguesa nessas duas dimensões?
Com muita honra e orgulho cultuamos nossos heróis comunistas, os
quais são, sem dúvida, heróis da classe trabalhadora brasileira. Mas, em vida,
costumamos crucificá-los. O fato é que um partido comunista revolucionário
não deve prescindir de heróis, e, sim, de homens comuns com aspirações
comuns de um mundo justo, solidário, fraterno - um mundo socialista para
todos. O camarada Aníbal, naquele dia fatídico (pelo menos para mim) em
Timbaúba, chorou quando o camarada Edvalmir Carteiro aceitou a tarefa que
lhe restara cumprir depois de ser atingido mortalmente pela onipotência e
onisciência da resolução: seguir candidato com chance quase nula de ser
eleito. Fomos, a rigor, levar a corda para o camarada se enforcar eleitoralmente
(tarefa que, prometi a mim mesmo, jamais voltar a cumprir). Não por acaso,
Aníbal chamou o gesto de heróico. Contudo, se esse heroísmo emula a luta
pelo socialismo "em geral", ele é sempre um símbolo em si e para si. Serve
para evocar a perenidade de nossa luta em eventos que em dadas situações
assumem um ar de "missa comunista", que presta um justo e belo culto à
memória dos que se foram - ainda que tenhamos, em algum momento,
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crucificado politicamente alguns desses grandes camaradas. Concretamente, a
ordem significa que, em nome de uma pretensa "moralidade dos princípios" (na
verdade, um moralismo político ou uma política moralista na essência) não
devemos eleger vereadores, deputados, senadores etc. em circunstâncias que
não sejam as "ideais". Deixemos, pois, que a máquina-mundo do sistema e
suas contradições "naturalmente" criem as condições objetivas e subjetivas
para elegermos centenas de parlamentares comunistas revolucionários. Daí
será uma questão de tempo a viragem revolucionária.
No PCB, há muitos anos, as lutas eleitorais têm significado ritos
fúnebres, com boa parte da militância passando em casa a morbidez de nossa
lenta morte eleitoral. Se isso também não for sinal de definhamento social e
político do Partido, formulem uma explicação que nos convença do contrário.
Esse quadro é, de fato, nacional, até onde pude acompanhar os dados sobre
como o Partido desempenhou-se nas eleições de 2008 e 2010.19
Não há, a rigor, efetivo empenho político-eleitoral do Partido, em termos
orgânicos. Entramos nas eleições para perder duas vezes: a eleição
“burguesa” e a eleição para nós mesmos, quando nos negamos, na prática, a
disputá-la seriamente. Quase sempre, onde há engajamento, este é efeito de
pouquíssimos abnegados. Em muitos casos, sequer organizamos, em termos
mínimos (logísticos, operacionais etc) uma campanha que mereça o nome de
comunista, no sentido que a palavra possuía nos velhos tempos, provocando
um bordão até hoje lembrado no país: “(...) é mais organizado do que o Partido
Comunista”. A cultura política hoje dominante no Partido só por exceção leva a
sério uma disputa eleitoral (mesmo quando emplacamos chapas puras), e essa
atitude já é, por assim dizer, naturalizada nos militantes.
19 Recuando mais no tempo, não foi diferente nas eleições de 2006, 2004, 2002, 2000... E isso não pode ser creditado ao já longínquo efeito do liquidacionismo da quadrilha de Freire, em 1992. Como é possível um partido político não discutir as suas graves debilidades eleitorais em pelo menos uma década e meia? Até quando sua direção ficará imputando essa fraqueza às condições objetivas e subjetivas, e, ao mesmo tempo, vai encenar um desprezo às "eleições burguesas" como se isso fosse exercer sobre a militância algum de tipo de pedagogia política revolucionária? Não somos "invisíveis", na essência, por conta das distorções do processo eleitoral, mas porque, antes de tudo, somos invisíveis para o trabalhador, a massa de estudantes, os desempregados etc. a partir de nossas próprias deficiências de organização e resistência a essa mesma "eleição burguesa".
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Ainda no período eleitoral, li, por parte de um candidato nosso a
vereador, um desabafo público resvalando em preconceito contra as
tendências eleitorais conservadoras do povo, segundo o mesmo. O desabafo é
compreensível, sem dúvida, tal o estado de alienação, embrutecimento e
reacionarismo social e político-ideológico que envolve grande parte dos
trabalhadores formais e informais, e o povo como um todo. Mas é essa gente,
justamente, que devemos buscar/conquistar para a causa, fora e dentro dos
processos políticos concretos, eleitorais ou não. Pretendemos construir uma
frente de massas gigantesca, anti-imperialista e anticapitalista, mas o nosso
puritanismo político pequeno-burguês vê, no encaminhamento tático de
algumas disputas, um pecado mortal e logo sacrifica, num auto de fé, seus
cordeiros caídos em pecado. Concebem a frente como uma onda diluviana
purificadora que vai engolfar os movimentos sociais e populares, os sindicados
e federações de trabalhadores, os parlamentos, a política e os homens como
um todo, e por isso qualquer mediação é anátema, é uma ameaça ao sonho
onde só falta a realidade se encaixar. Parece que, no fundo, além de querer
heróis, sonhamos criar santos comunistas para uma política santa.20 O povo é
o nosso objeto do desejo só nos termos e forma como ele cabe na nossa
fantasia de poder? A tática é um credo? Se assim fosse, a Grande Revolução
de Outubro jamais teria saído dos projetos, pois para a maior parte dos
bolcheviques a luta se esgotara na revolução de fevereiro. Foi a crítica
implacável da tática vista como um dogma que impulsionou uma parte do
Partido de Lênin a apontar a luta aberta pela instauração do regime socialista.
Mas o fato é que, por essa via integrista, não estará no nosso horizonte
nenhuma Grande Revolução de Outubro, senão a fase do terror jacobino da
20 E não posso deixar de comentar, aqui, algumas fotos do facebook sobre nossas campanhas, Brasil afora. Valorosos e dignos camaradas, sinceros e empenhados comunistas, aqui e ali, numa rua ou praça, com uma barraquinha, bandeiras e panfletos. Fiz o mesmo durante minha militância por 14 anos, sobretudo nos últimos quatro anos. Mas o que sinto é que nunca fomos tão solitários diante dos trabalhadores e da população em geral. Da mesma espécie de solidão desses evangélicos rouquenhos e seus megafones nas praças. E não é porque somos dois ou três panfletando nos espaços públicos, é porque o nosso contato real com o povo nem se dá nas eleições, nem se concretiza no local de trabalho, na escola ou universidade, no local de moradia. Somos anônimos nas ruas porque somos anônimos nos nossos próprios ambientes. E ser anônimo política e ideologicamente é tudo o que um comunista não pode ser.
33
Revolução Francesa, com as cabeças a rolarem aqui e ali, internamente ao
Partido, até que restem apenas os que "entenderam" a "boa nova" desse
evangelho do esquerdismo infantil.
* * *
Desde 2008, tenho lido muitos artigos e ensaios sobre a crise do
capitalismo. A maioria desses textos deixa aflorar um “sentimento de profecia”
nas entrelinhas, quanto a uma possível crise propriamente revolucionária por
dentro da crise estrutural capitalista. E o que percebo é que lemos essa crise
sob uma perspectiva política, por assim dizer, inercial. Em outras palavras, a
compreensão desse processo econômico, social, político e ideológico seria nos
termos da dinâmica de movimento de um objeto ao qual nos acoplamos para
“cavalgá-lo” (sob a ilusão de que vamos ter as rédeas do processo só porque
entendemos sua natureza). Doce ilusão revolucionária! Na história dos
povos, nenhuma viragem revolucionária se deu sem uma prática
efetivamente destrutiva / desconstrutiva (na forma e no conteúdo) de
práticas e mentalidades de direita por parte de forças de esquerda, a
partir, sobretudo e fundamentalmente, da ação política e social no ambiente de
trabalho, escola, universidade, associações, órgãos governamentais, e
naqueles clássicos locais de conflito (parlamentos, poderes Executivo e
Judiciário). E é isso o que o PCB recusa fazer, na prática, com sua pregação
apostólica que demoniza, em tudo e por tudo, as "eleições burguesas".
Não podemos imaginar a revolução como o retorno de Dom Sebastião,
tampouco idealizar o processo da crise e nos propor / impor gigantescas
tarefas (frentes anticapitalistas e anti-imperialistas), como se estas fossem dois
cavaleiros do Apocalipse para domá-lo – se não sabemos sequer nos situar,
em termos táticos, no enfrentamento objetivo de tarefas básicas na guerra de
posições que é o formato essencial da luta de classes no país. Uma dessas
tarefas é, simplesmente, saber ganhar eleições lutando, sendo necessário e
incontornável, sob os termos e regras do jogo impostos dentro dessa garganta
de dragão que é o politicismo liberal. Ao que parece, essa tarefa seria, além de
“reles” ou “menor”, política e moralmente inconcebível, até porque está logo ali
34
a revolução redentora para expurgar da face da terra todo o mal político que
nos assola. Mas aqui ficamos nós nos considerando “estuário” da luta e
tradição socialista revolucionária. No entanto, estuários também secam. E é
justamente isso que temos visto em geral no Partido: pouca vibração militante,
inexistência de um projeto de poder político e social (falo de algo factível,
calcado nas condições concretas do atual estágio da luta de classes, e não
propostas de “assalto aos céus”) e inapetência de muitos quadros dirigentes
para organizar e liderar as lutas gerais e específicas do Partido.
35
36
A Tática Como um Mecanismo
A nossa crítica à tática não se restringe à interpretação integrista pelo
CC sobre os casos referidos. Há, também, uma interpretação mecanicista da
tática no nível operacional, no modo como prioriza coligação com o PSOL e o
PSTU (atenção: não estou nem nunca estive contra essa priorização em si,
devo avisar antes que comece a lapidação pública). Aqui, a interpretação
mecanicista é, por assim dizer, funcional à idéia menos política do que
pragmática e instrumental de uma "naturalização" político-ideológica do papel
desses partidos na revolução brasileira. Essa apreensão naturalizante do papel
do PSOL e PSTU é em si uma reificação e tem por efeito condicionar sob
amarras (pois tudo é um absoluto ideológico de fundamento mecânico) a nossa
própria operacionalização da tática. E porque nossa pragmática da
revolução, sob esse molde formalista / integrista, nos leva a radicalizar a
visão do processo, a tática, sob esse esquerdismo com nuances
messiânicas, transforma-se num taticismo de esquerda (curiosamente, e
a dialética do processo explica isso, em essência semelhante ao taticismo
de direita do PCdoB). As pontas político-ideológicas ultra-radicais,
finalmente, tocam-se.
* * *
Um comunista deve ter particular cuidado sobre todas as formas de
vigiar e punir, sobretudo se tais formas e meios se travestem naturalmente em
prática de "gestão" partidária. A democracia e a transparência radical que
postulamos para a sociedade deve ser princípio na vida do Partido. Não somos
um coletivo no qual se diluem os limites de cada subjetividade e do respeito
mútuo para alguém, equivocadamente, erigindo-se em censor vigilante, aqui e
ali colocar sob suspeição a autonomia e desqualificar a iniciativa política das
instâncias. Seria ótimo se tivéssemos dezenas dessas sentinelas indormidas a
catar, Brasil afora, notícias das lutas dos trabalhadores, desempregados,
homens e mulheres do campo, e informassem a quantas anda a participação
dos comunistas do PCB como ativistas dessas lutas. Na luta de classes, a
única vigilância legítima é sobre o adversário de classe, travestido ou não em
37
político liberal. Não vamos fazer avançar a luta e fortalecer o Partido porque
estamos travestidos em duros e inflexíveis soldados da causa. Além da
interpretação integrista e mecânica da tática, seremos agora
"institucionalizados" organicamente, coisificados, emasculados; nos
transformaremos numa engrenagem que, bem lubrificada, vai ajudar no parto
de uma revolução de máquinas?
A visão estreita provocada por essa interpretação jacobina da tática faz
aflorar no Partido alguns preconceitos políticos de caráter burguês, os quais
são quase uma "reação alérgica" do organismo partidário a uma invasão ou
ameaça à sua sanidade institucional. Um desses preconceitos é clássico: trata-
se, relativamente à forma, da nossa visão quanto ao papel do parlamento na
democracia burguesa; na essência, trata-se de como concebemos a
democracia como valor em si, mesmo na sua dimensão formal. É como se a
democracia formal, uma vez dela participando, inoculasse em nós uma
incurável doença auto-imune. É sintomático que o esquerdismo interpretativo
sobre a tática determine, na prática, que nos isolemos. Essa é a questão que
não ousamos dizer o nome. (Peço perdão, mas aqui cabe, digressivamente,
uma análise do problema a partir de um caso pessoal). Ao comunicar, em
email, que renunciaria, no dia 08/10, aos cargos diretivos do Partido (no CC e
nos diretórios de Pernambuco e do Recife), pedi que não mais me enviassem
assuntos internos do Partido (pois não seria honesto politicamente continuar
conhecendo questões sobre as quais não mais queria nem deveria opinar),
nem considerações sobre minha decisão - tomadas, fiquem certos, com
serenidade e racionalmente. Ainda assim, um dirigente do CC fez a respeito
um comentário que chegou a mim (creio que pelo fato de que, àquela altura, o
responsável pela gestão do grupo do CC não ter ainda retirado o meu nome da
lista de emails). Pois bem: o comentário era exatamente a expressão do
preconceito que está embutido, sub-repticiamente ou não, na leitura integrista
da tática. E, como já ouvi e li, parece evocar algo que talvez constitua uma
"cultura política" de muitos militantes do Partido, dirigentes ou não, para além
de processos político-eleitorais. Nele, o autor afirma que o "verdadeiro
38
comunista" não se ilude com eleições e "parlamento burguês", que o
"verdadeiro revolucionário" não abandona a luta etc.
Não seria preciso ler essa arenga tão antiga e seus chavões
desgastados para saber que semelhante percepção rebaixada sobre a política
é, além de retórica, imanente à interpretação ultra-radical da tática. Não foi por
acaso que, à exceção de dois votos contrários à proposta de resolução
jacobina (e por motivos diferentes), e dos poucos membros que não votaram
(muito provavelmente votariam todos pela aprovação), o CC em peso
sancionou-a. Dura lex, sede lex, alguém deve ter se regozijado pela aparente
coesão e unidade em torno dessa "solidez de princípios" na aplicação da tática.
Muitas vezes, o radicalismo de um coletivo é a expressão inconsciente da
busca de afirmar uma força e poder que julga possuir, mas que, no fundo,
é um mascaramento de suas debilidades e inconstâncias político-
institucionais. E daí o velho ataque reiterativo contra o "parlamento burguês"
(como se precisássemos de alertas e lições sobre o que ele representa) e às
"eleições burguesas" (como se não soubéssemos o que são, em essência).
Tomara que tais ataques não sejam o alfa e o ômega dessa pregação
apostólica do dirigente.
O que temos mascarado é o fato de que nosso preconceito sobre o
universo do politicismo burguês nos faz refratário, ingênuo e reacionário à
compreensão de suas formas e meios de criar consensos político-ideológicos
para legitimar um dado regime e ordem políticas. Temos sido, a respeito disso,
essencialmente anarquistas. Não basta apenas recusar "jogar o jogo", também
é preciso recusar "lutar a luta". É curioso perceber que esse vezo de interpretar
a tática numa radicalidade de um tempo político que entre nós não é
revolucionário parece querer emular os eventos da luta de classes na Grécia.
Talvez sonhemos que o KKE esteja diante de um "tudo ou nada" da luta de
classes grega, e também queiramos ver no Brasil o Partido numa disputa
eleitoral com aquela natureza político-ideológica. Não será exagero dizer que
muitos do atual CC, caso vivêssemos aqueles embates no país, estariam
pensando já num "todos às armas".
39
Também cabe comentar, aqui, comparativamente, o caso recente da
decisão do comando das FARC-EP, que, no dia 30/08/2012, surpreendeu o
mundo político com o anúncio da abertura de uma agenda de negociações das
Frentes com o governo colombiano - como todos sabem, a quintessência da
política de direita no que ela tem de mais assassina, fascista, corrupta e
traidora. Acredito que essa iniciativa nem sequer seria cogitada pelo
jacobinismo que contaminou a tática do Partido, se o CC fosse desafiado pela
política real a discutir o assunto. Quase ouço, neste instante, gente a vociferar
que "não é a mesma coisa", que estou "forçando" com este exemplo etc. É
exatamente a mesma coisa na substância ou essência, como queiram, pois se
trata de debater a política real e encaminhar racionalmente os interesses
táticos e estratégicos dos revolucionários para além da retórica, da propaganda
política e do campo de batalha (dimensões constituintes da luta de classes que
não esgotam o que é a essência da luta político-ideológica). Imagino até que o
processo em curso deve ter "decepcionado" alguns dirigentes (não, é claro,
porque desejem a guerra e a continuação da mortandade, mas porque o
evento como que "não se encaixa" no roteiro de uma visão radical para uma
luta radical). E é justamente desse ambiente de luta revolucionária e
guerrilheira que vem um grande exemplo das FARC-EP sobre o que é fazer
política na teoria e na prática; vem de um grupo que tem todos os tipos de
argumento para ser contrário a qualquer negociação com esses criminosos
fascistas.
Apesar de tantos exemplos aqui e nas lutas revolucionárias na Europa,
no Brasil, historicamente, a esquerda revolucionária não sabe o que fazer
racionalmente com as eleições e os parlamentos, sendo este o mais importante
ambiente tático da luta de classes em toda sua dimensão contraditória,
degenerada, pervertida e sequestrada pelo capital privado.
40
Subjetivação e Unidade da Esquerda Socialista
Existiria uma "lei" ou impossibilidade teórica, fundada nas diferentes
correntes / grupos político-ideológicos dos partidos, que explicasse o forte
bloqueio para unir a esquerda socialista em torno de uma agenda tática e
estratégica coesa e operacional?
Estas dificuldades que, faz tempo, entraram para o anedotário político
nacional (“A esquerda só se une na cadeia”), seriam fáceis de explicar se a
causa fosse, em essência, político-ideológica. Não é; nunca foi. As orientações
/ filiações político-ideológicas dos diversos partidos / grupos de esquerda desde
o pós-64 como explicação causal da histórica falta de unidade política para
construir um robusto bloco tático, em períodos eleitorais ou não, é um dos
maiores mitos políticos já criados no país. Na verdade, a esquerda socialista
e revolucionária (desde o fim do PCB orgânico, em 64) não se organiza
unitariamente para a conquista do poder porque inexiste uma pragmática
da ação política que estruture uma agenda não redutível às visões
subjetivas sobre processos e lutas sociais, políticas, ideológicas etc –
visões as quais são “infiltrações” emocionais de quadros dirigentes e
militantes com suas idiossincrasias (vedetismo político e arrogância
intelectual, por exemplo).21 No fundo, é como se fôssemos,
predominantemente, poços de egos inflados que parecem se inclinar para o
universo da luta radical / socialista para sublimar menos ideais políticos do que
complexos / traumas existenciais. Sob essa hipótese, é como se quiséssemos
a revolução como um grande divã para fazer a catarse de nossas existências
sofridas / submetidas individual e coletivamente em meio a esse mundo de
misérias materiais e desumanização do ser.
É sintomático que essa subjetivação na formulação teórica e essa
subjetividade na interpretação da tática (pelo PCB, por exemplo) infiltrem as
agendas de luta e a ação prática, bem como as estruturem mediante a
21 A rigor, se for o caso, a histórica ausência de unidade não seria essa condição quase sistêmica se houvesse uma efetiva racionalidade política na composição da agenda de luta, na formulação e interpretação da tática como práxis dialética e uma sólida teoria marxiana infiltrando / capilarizando as cartas de princípios, resoluções e programas políticos.
41
necessidade da ação providencial dos atores e do líder messiânico como guia-
intérprete. Por vezes, parece-me que a unidade das esquerdas é bloqueada,
antes de tudo, pelo conflito de vontades individuais que formulam
racionalmente a política, mas intervém irracionalmente na execução das
agendas táticas, logo que a luta pela afirmação de sua idéia é também uma
luta que coloca sob ameaça / questionamento o seu poder na instituição. Um
outro aspecto desse peso da subjetivação pode ser visto num certo
romantismo / idealismo em torno de líderes partidários e candidatos nas
campanhas eleitorais, congressos etc. Talvez ainda estejamos numa era
infantil da organização da esquerda revolucionária, e as condicionantes
materiais e teóricas dessa fase pudessem explicar a dissociação clara entre o
pensar e o agir, a exemplo do que observamos na tática como uma idéia /
guia revolucionário e na tática como uma pragmática da revolução. É
nesse interstício, creio, que afloram a “voz de autoridade”, o líder mítico,
presciente etc – sempre um “grande pai” para nos por nos eixos durante os
conflitos político-ideológicos intra-partidários. Também afloram nesse espaço,
como reação às mazelas do mundo do capital e da nossa desumanização
mesma, palavras de ordem de retórica tão ingênua quanto vazia – eivadas de
chavões que conseguem atrair sobre a esquerda socialista apenas rótulos de
mau gosto humorístico.
Enfeixado nesse mundo político visto por uma ótica infantilizada, um
partido como o PCB é semelhante ao PSTU ou PSOL apenas aparentemente.
Se os três são semelhantes no entendimento de que o sistema de
produção capitalista e a ordem política liberal-burguesa constituem o
grande inimigo a ser derrubado, então é preciso explicar porque
convergem muito pouco (e jamais no essencial) na compreensão das
formas e meios de fazê-lo. Essa dificuldade parece refletir o formato mesmo,
estrutural, de cada partido per se, como se houvesse certa funcionalidade entre
o que é, estruturalmente, o partido, e a forma como ele quer instituir a
sociedade, organicamente, por meio de suas políticas. Não surpreende que, se
essa premissa / asserção for verdadeira: a) cada qual desses partidos formule
42
uma crítica da sociedade do capital que é objetiva / racional em termos teóricos
– mas, quanto à operacionalidade da tática, seja, em graus diferentes, subjetiva
/ idealista no mundo prático da política dessa sociedade; e b) o PCB, PSOL e
PSTU, estruturalmente diferentes, estruturem o pensamento de seus coletivos
nos termos de “epistemes”, “metafísicas”, “ontologias” etc. que, por assim dizer,
capturam o todo contraditório do real a fim de explicá-lo nos limites de uma
mundividência do mundo do trabalho menos dialética do que institucional-
burocrática. De fato, há, sob o crivo / controle de personas políticas com suas
subjetivações e subjetividades, uma forte cultura institucional condicionando /
demarcando limites no pensar e no agir.
Tais diferenças estruturais explicam, em parte, as opções táticas e as
leituras da realidade pelos partidos. Por exemplo, a retórica raivosa e
ressentida do PSTU, a respeito da burguesia como epítome dos malefícios do
mundo: é um discurso fechado que expressa, na substância, uma estrutura de
partido bloqueado, em termos políticos e ideológicos. É quase, essa retórica, o
choro de uma criança abandonada que em breve, na primeira chance, vai
acusar a todos pela sua dor e tiranizar o ambiente à volta. Essa evidente
relação causal não apenas explica o isolamento social e político desse partido,
mas impõe uma saída que é, na verdade, uma dissimulação: aferrar-se ainda
mais canonicamente aos “princípios” para explicar esse mundo perverso pelos
próprios “princípios” que fecham-no à compreensão desse mesmo mundo.
Dessa armadilha, uma "entropia epistemológica", nada entra ou sai: é a
impossibilidade (já teórica) do exercício da crítica dialética sobre a sociedade, o
Estado, as classes, o capital e o trabalho. E é nessa "Terra do Nunca" que o
PCB quer adentrar no seu culto ilusório das formas.
Fechado à compreensão antitética dos processos sociais e políticos, o
PSTU responde, às tarefas e desafios, sempre nos termos de sua psicologia
política rasteira e, não por acaso, segundo a forma tradicional da esquerda
socialista ultra-radical: irracionalmente, sob os velhos impulsos políticos do
esquerdismo. Não admira que, como crianças sofridas e inseguras, sejam
desconfiados e também nada confiáveis na discussão e realização de acordos
43
políticos. Como é possível uma unidade de ação orgânica com um coletivo
partidário cuja "coesão" ideológica é, em essência, derivada da estreiteza
política e de idiossincrasias militantes de quem converte a luta pelo socialismo
num credo quase religioso? Nem na cadeia seria possível unir-se com o
PSTU...
Já o PSOL institui-se no mundo da política prática de modo mais aberto,
mas não porque seja um partido novo. Na verdade, o PSOL enfrenta
problemas que, no limite, são igualmente graves numa perspectiva teórica e
política. Um dos riscos políticos que corre é a tentação de repetir a história
petista no sentido de se apresentar como protagonista / vanguarda da agenda
socialista, e daí considerar outras forças e partidos como ancilares ao seu
programa político. Esse é um problema concreto porque, integrado por
tendências, o discurso do protagonismo revolucionário-socialista é fácil e
unifica / amalgama outras bandeiras de luta não necessariamente
convergentes segundo os interesses das diversas tendências. Basta ler
algumas teses do último Congresso (2011) para saber que essa perigosa
presunção é real, para si e para os demais partidos.
Se as agendas próprias de cada tendência não são, em termos táticos,
necessariamente redutíveis ao programa político geral do Partido, o que pode
se constituir / estruturar, ao longo do tempo, são as opções e visões do real
que, embora plurais, não (também necessariamente) convergiriam no sentido
de predispor o Partido em si a uma unidade de ação nas suas lutas próprias;
nem no sentido de abri-lo a uma articulação dessas lutas com as agendas do
PCB e do PSTU - no mínimo para construir um bloco único a partir do conjunto
de interesses / intersecções programáticas entre os mesmos.
A premissa e as duas hipóteses dela derivadas implicam dizer que, em
qualquer caso, a existência dos grupos psolistas requer uma solução prévia do
Partido quanto ao limite do que é possível transigir na formulação de uma
agenda que expresse a) a unidade em si de cada tendência; b) a unidade
psolista daí resultante; e c) a unidade com os demais partidos da esquerda
socialista. Essa "engenharia política" supõe a ideia de que há a compreensão
44
dessa realidade por parte de todos em constituir uma tática que seja, a um só
tempo, robusta e flexível, racional e operativa, dialética e pragmática. Ao que
parece, os recentes resultados eleitorais do PSOL indicam que há em processo
uma articulação desses, por assim dizer, princípios táticos.
Qualquer processo de luta revolucionária pelo poder político é um
processo de objetivação da tática como guia / eixo de programas máximos e
mínimos dos partidos. E é aqui que o PSOL pode "cair em tentação", acaso
institua-se numa clave ultra-radical para se demarcar dos demais na sua
trajetória. Em outras palavras, paradoxalmente, em face do ascendente
radicalismo do PCB e do PSTU (produto, antes de tudo, de uma subjetivação
do desejo político irracional; coisa, em essência, afeta ao mundo das paixões),
o PSOL pode radicalizar-se sob uma interpretação da tática que só poderia ser
mais mecanicista e mais irracional.22
O PT correu esse risco em sua ascensão inicial, quando, não por acaso,
algumas de suas correntes (uma das quais depois fundou o PSTU), tentaram
ganhar a luta interna sob um programa máximo, revolucionário "aqui e agora".23
Para evitar cair nas duas tentações extremistas (a do PT que renunciou à
agenda socialista, mesmo a mínima; e a que se consolida no PCB e no PSTU),
o PSOL necessitará formular uma tática não redutível à subjetivação por parte
do desejo de dirigentes / coletivos, radicais e radicalizados. Uma tática
revolucionária é, necessariamente, a expressão de uma racionalidade política
do coletivo. Se é conformada / interpretada por subjetividades / subjetivações
sobre o real social e político, não passa de um trem desgovernado: em algum
ponto do trilho há de descarrilar ou de se chocar contra um objeto. E não será,
essa queda ou esse choque, contra a ordem social e política burguesa.
22 O outro extremo também existe, e o emblema maior desse perigo é o PCdoB - que se fortaleceu politicamente se descaracterizando ideologicamente, em face do seu espúrio taticismo. 23 O PSOL, é claro, vai se prevenir tática e ideologicamente para não cair no extremo oposto daquilo em que se transformou o PT para chegar ao poder: um arremedo de partido socialista.
45
"Campanhas Conceituais" como um Ilusionismo Político
Evito, o mais possível, citar frases dos grandes pensadores da luta
comunista, mas peço permissão ao leitor para registrar trecho de Lênin em
resposta aos comunistas austríacos que cogitavam não disputar as eleições
para o parlamento burguês:
“Enquanto não tivermos força para dissolver o parlamento burguês, devemos atuar contra ele de fora e de dentro. Enquanto um número considerável de trabalhadores - não só proletários, mas também semiproletários e pequenos camponeses - tenham fé nos instrumentos democrático-burgueses de que se serve a burguesia para enganar os operários, devemos denunciar esse engano precisamente da tribuna que as camadas de operários e, em particular, das massas trabalhadoras não proletárias, consideram como a tribuna mais importante e mais autorizada. Enquanto os comunistas não tiverem força para tomar o poder de Estado e fazer com que só os trabalhadores elejam os seus sovietes contra a burguesia, enquanto a burguesia, enquanto a burguesia disponha do poder estatal, convocando às eleições as diferentes classes da população, temos o dever de participar nas eleições para realizar a agitação entre todos os trabalhadores, e não exclusivamente entre os proletários. Enquanto no parlamento burguês enganem os operários, ocultando com frases sobre a ‘democracia’ as fraudes financeiras de todo o gênero de subornos (em nenhum lugar a burguesia pratica com tanta amplitude, como no parlamento burguês, o suborno demasiadamente ‘sutil’ de escritores, deputados, advogados etc), os comunistas têm o dever de desmascarar sem descanso o logro, de desmascarar toda a mudança de posição dos Renner & Cia., cada vez que se coloquem ao lado dos capitalistas contra os operários. Fazer este trabalho de desmascaramento da própria tribuna desta instituição que supostamente expressa a vontade do povo, mas que de fato serve para encobrir a burla do povo pelos ricos. É precisamente no parlamento que as relações entre os partidos e as frações burguesas assumem maior relevo e refletem as relações entre todas as classes da sociedade burguesa. Por isso, justamente no parlamento burguês, dentro dele, devem os comunistas esclarecer ao povo a verdade sobre a atitude das classes frente aos partidos, sobre a atitude dos latifundiários perante os jornaleiros, dos camponeses ricos perante os camponeses pobres, do grande capital frente aos empregados e pequenos proprietários etc”. (Lênin, in Os Comunistas e as Eleições. Grifos do autor).
Essas são as palavras, que não estão aqui à guisa de oráculo (como
temos visto, às vezes, em textos cheios de pernosticismo teórico de lavra,
supostamente, "marxista"). Novamente, alguém dirá que não tememos a luta
no parlamento, apenas não podemos validar uma “forma” de chegar lá que seja
contrária ao que dispõe a tática nas resoluções etc., etc.. É esta, exatamente, a
questão: vemos a tática como um objeto, uma abstração; vemos a tática
46
num dado formato estático e como uma categoria formal, imbricando-se,
ambos, para constituírem-se em atributos pseudo-morais que nos
impõem leituras conservadoras e reacionárias sobre a política real,
concreta. Podemos mesmo dizer que a tomamos como um “imperativo
categórico” kantiano, expressão de uma moralidade inata porque seria
tradução de uma vontade absolutamente boa em si mesma. Daí nossa inércia
político-eleitoral prática, nossa ação diletante, ainda que cheia de fervor e
abnegação sinceras pela causa socialista.
O nosso problema é semelhante ao do debate de Lênin, mas com um
agravante: idealizamos as condições da luta político-eleitoral para nós (a
partir de uma perspectiva ingênua e fantasista) e para o "nosso"
adversário de classe, imaginando, talvez, que vá existir um momento perfeito
em que ele estará num canto, isolado ou com seus apoiadores, e então iremos
todos atacá-lo; e idealizando que os trabalhadores assistirão a tudo isso com
clareza para discernir ideologicamente os programas e propostas de cada
campo em oposição recíproca. Na prática, é como se, como os comunistas
austríacos, recusássemos as eleições não em termos de disputá-la, mas em
termos de lutar concretamente para ganhar uma vaga no parlamento burguês.
Não me admira que estejamos escolados em fazer "campanhas
conceituais" a cada dois anos, a rigor falando para nós mesmos,
elaborando panfletos em geral arcaicos, nem sequer sabendo aplicar (sob as
condições do atual estágio da modernidade) a criatividade legada pelos
mestres comunistas da agitação / propaganda russa nas duas primeiras
décadas do século XX. Por que não conseguimos dialogar concretamente com
o povo e os trabalhadores em geral? Teríamos um desprezo presunçoso (e
inconsciente) por essa gente "alienada"?24
Um aspecto prático dessas "campanhas conceituais" é o ambiente que
definimos para intervir: panfletagens e comícios relâmpagos em portas de
fábrica, metrôs, praças, terminais de ônibus etc. No caso dos portões de
24 Não é por acaso que o nosso jornal, o Imprensa Popular, é o exemplo acabado de um jornalismo político que consegue comunicar pouco e mal. Não conseguimos, sequer, com todos os recursos hoje disponíveis, editar um jornal da qualidade de a Voz da Unidade.
47
fábrica, seríamos um partido operário falando para operários. De fato, esse
alvo político deve ser uma das prioridades da nossa propaganda. Mas se não
houver nessas fábricas núcleos ou células comunistas ativas, liderando ou pelo
menos sendo ouvidas pelos operários em geral, uma panfletagem conceitual
terá efeito próximo de zero ou será semelhante ao contato com as pessoas nos
terminais de ônibus e metrô: um ato com fins práticos quase vazio. Creio estar
aqui, em parte, a causa da nossa resistência às eleições burguesas: se não
ecoamos nas fábricas nossa agenda política, social e econômica, que dirá nas
ruas onde a massa de pessoas, supostamente "amorfa" em termos ideológicos,
em geral passa ao largo ou nos vê / ouve com estranheza? Não deve
surpreender o fato de que, em função disso, a nossa militância em geral não
conferir nenhum valor e importância ao processo eleitoral: somos cada vez
mais uma nulidade estatística político-eleitoral, e daí nos anulamos cada vez
mais para disputar espaço de poder político nos termos do processo burguês.25
Nosso orgulho presunçoso nos aponta uma saída sem dúvida radical...
Mas o fato é que esse processo tem "valor" e "importância", apesar de
politicamente degenerado e vil, e não há outro senão esse para nossa
intervenção concreta pelo voto dos trabalhadores em particular e do povo em
geral (devemos dar à disputa eleitoral a mesma importância tática que nós
damos à disputa por uma direção de sindicato, pois as pessoas vivem suas
contradições sociais e políticas em ambos os espaços dialéticos). Salta à vista
uma crítica moralista de essência pequeno-burguesa, que na verdade é um
escapismo: renegamos esse "mundo mal" para disfarçar nossa própria
debilidade antes, durante e depois dos desafios eleitorais. Se,
independentemente de eleições, estivéssemos fortalecendo o Partido com seus
núcleos, no dia a dia das lutas político-sociais, seríamos em breve observados
pelos eleitores à esquerda e em geral, e as próprias eleições, com o tempo,
ecoariam essa força. Mas, de fato, não estamos nos fortalecendo
concretamente, ou seja, não estamos conseguindo fazer com que sequer uns
25 Nos anulamos, é fato, mas daí não procede que o anulemos. Ao contrário: nenhum político é mais vulnerável às armadilhas desse sistema e processo do que um político comunista "puro" e "radical". Somos uma presa política fácil.
48
3% dos trabalhadores / eleitores incorporem como suas nossas demandas
específicas e gerais. Avançar aqui e acolá conquistando pontualmente direções
sindicais sem que as políticas específicas de dados segmentos sejam depois
integradas no universo das políticas gerais da classe trabalhadora em face do
capital, consistirá apenas na gestão de demandas, em essência,
economicistas, por ramo de trabalho.
Tudo isso é questão de princípio que se aplica ao nosso papel nas
eleições. Novamente, alguém aqui vai, dedo em riste, argumentar que existe
também o princípio / diretriz tática de "não se aliar", "não fazer concessões"
com os adversários de classe etc. E quem disse que numa chapa na qual
agreguem-se, de modo extemporâneo e oportunista, em condições que
estiveram fora do nosso controle formal, partidos com os quais repudiamos
aliança político-ideológica, estaremos nós ferindo um sacrossanto "princípio"?
Desde quando a presença de um desses partidos significará que
defendemos a sua agenda? Se se trata da defesa político-ideológica dos
princípios, então deveríamos, para ser "puramente coerentes", repudiar
qualquer partido, mequetrefe ou não (as famosas legendas de aluguel).
Ou querem nos convencer que "não é a mesma coisa"? Talvez queiram
argumentar que essas legendas são um "mal menor" porque são "inofensivas",
"sem projeto ideológico" etc. Pois são essas legendas que justamente formam
a cauda de sustentação desse sistema podre, pois capilarizam a penetração do
pior tipo de política e da pior espécie de político nos municípios, e os conteúdos
de seus discursos e de suas práticas podem servir da extrema-direita à
extrema-esquerda. A rigor, caso fôssemos "radicalmente" coerentes (conforme
a interpretação integrista da tática) deveríamos recusar toda e qualquer
presença de partidos em disputas eleitorais, aliando-nos apenas com o PSOL e
PSTU. Se alguém aqui achar, diante do quadro da política real, que cabem
exceções nestes e naqueles casos, será o mais grosseiro hipócrita político.
49
Uma Ilusão de Autonomia
Essa apreensão / compreensão mecânica da tática e essa resistência
moral (propriamente burguesa no seu desprezo) face à política burguesa como
ela é concretamente parece-nos derivar de uma ilusão de autonomia que
conferiríamos ao universo das práticas político-eleitorais hoje dominantes no
país. Se assim for, ainda não saímos da era da inocência ideológica no embate
contra a burguesia como classe, bem como diante de suas representações,
pensamentos e ideias. Somos inocentes porque atribuímos uma autonomia da
vontade / consciência à classe burguesa a partir de uma representação
ideologizada do seu, por assim dizer, "ser" de classe. E não há, absolutamente,
nada na burguesia como classe e no politicismo burguês como processo /
sistema que não seja produto histórico condicionado pelas relações materiais
no atual estágio do capitalismo brasileiro. Apesar disso, o modo como a
representamos para nós (um fantasma?) nos faz refém de sua política, pois é o
seu politicismo que condiciona a nossa intervenção prática no mundo real.
Queiram ou não, somos, em essência, pautados pela burguesia nos termos do
que podemos e devemos fazer no "seu" universo.
Pelo fato de não ser materialmente autônoma (tampouco
ideologicamente), a política burguesa (e suas leis, tribunais, propaganda
política etc) vale-se justamente das campanhas eleitorais para criar consensos
que fundamentem um consentimento político-social que se pretende universal,
supra-classista. E é desse ambiente concreto que nos afastamos com nosso
moralismo político pernóstico, travestido por princípios que na verdade são a
expressão de um escapismo ingênuo e purista. Naturalmente, seus políticos
pretendem conformar uma autonomia, torná-la "concreta", no exato momento
em que ela se faz / é pura ilusão na forma e conteúdo desse e para esse "ser"
de classe. E o que fazemos, iludidos ideologicamente e pervertidos em nosso
moralismo político pequeno-burguês? Renegamos transigir politicamente nesse
universo (o que não significa se submeter aos anti-valores do mesmo), e sob
essas condições, como se fôssemos as vestais do templo.
50
Paradoxalmente, esse mecanicismo tático (aliado ao integrismo da
interpretação), e essa crítica moral na prática nos anulam politicamente e
propiciam, em decorrência, um espaço livre para a autonomização da classe
burguesa e de sua política para os trabalhadores em geral. E o que é uma
ilusão ou falsa consciência começa a ser apreendida pelos trabalhadores e
eleitores como realidade inescapável da política em si, tornando-se "natural"
toda a sua podridão retórica e prática. Não é por acaso que nossa crítica é
cada vez mais moral e menos política sobre o universo do político, e se
generaliza como normal / comum a perversão da política burguesa e sua
natureza cada vez mais funcional ao capital privado dentro dos aparelhos
estatais.
Nós erigimos essa política como uma esfinge e ainda criamos o enigma
para nos desafiar. Não surpreende que a esquerda socialista viva a devorar os
seus filhos em batalhas infinitas, ideológicas e político-eleitorais, tornando sua
militância uma "mão-de-obra" de alta rotatividade. Não nos entendemos na e
para a política concreta porque não logramos desvendar esse enigma que,
malgrado seja uma fantasmagoria ideológica, parece ser por nós atribuída a
uma classe "autonomizada" que estaria acima das condicionantes materiais de
sua existência. Por isso mesmo, o eleitor, seja trabalhador assalariado ou
desempregado, o estudante, os trabalhadores informais, têm sido quase
uma abstração sob os termos dessa interpretação integrista da tática, que
é no fundo uma metafísica da revolução. Torna-se abstrato na mesma
medida em que só existe como emanação ideológica de um universo político
que renegamos moralmente. O efeito prático / concreto disso é operar uma
inversão de resto comum ao pensamento militante revolucionário:
queremos primeiro a revolução, para depois governar. Ela, a revolução
política e social, será a catarse dos oprimidos, faltando apenas combinar com
nossos adversários e inimigos que eles, até lá, necessariamente perderão as
diversas batalhas de poder.
51
Há muito daquela filosofia alemã objeto de crítica por Marx e pouca ou
nenhuma teoria e prática política leninista em nossas formulações. Somos
quase românticos nessa idealização "alemã" do real.26 No fim das contas, sob
esse ultra-radicalismo da tática, estamos na verdade amestrando a intervenção
política, ideológica e social do PCB frente àquilo que consideramos,
ilusoriamente, como autônomo: o "ser" político e social da classe burguesa e
sua política dita liberal. Daí ser um passo para sublimá-la como um universo
político monstruoso e indecifrável, só passível de "destruição" pela onda
avassaladora da revolução. Nosso esquerdismo infantil nos faz mais e mais
inocente no mundo perverso da luta de classes na arena eleitoral. Nesse
mundo, pouco ou nada importa o voto popular (mero detalhe?) se não vir com
"selo de qualidade" ideológico atestando sua pureza de origem. Queremos
revolucionar as ruas mas idealizamos as condições objetivas e subjetivas para
conquistar votos.
26 Também somos, cada vez mais, “filósofos políticos”, mas excesso de filosofia só atrai para o Partido “militantes filósofos”.
52
CONCLUSÃO
Diante desse quadro, se o esquerdismo fortalecer-se no Partido,
bastará, então, Brasil afora, a cada eleição a direita destacar candidatos-
marionetes para isolar o PCB em chapa única ou fazê-lo correr da disputa com
a retirada dos quadros onde ele possa se fortalecer. Os senhores acham que
essa gente não pensa a real politik nesses termos? Acham que essa gente
apenas pensa no dia de subir a rampa do Palácio do Planalto? Os
trabalhadores podem esperar até a próxima eleição para ouvirem uma voz
comunista no parlamento, sem pecado de concepção? Até lá as "condições
objetivas e subjetivas" estarão dadas e serão ideais, creio. É tudo muito trágico.
Já posso ouvir agora uma voz me lembrando que temos a política de
grandes frentes, anticapitalista e anti-imperialista, como a nossa resposta a
essa "maldita herança liberal". Queremos sacudir o Brasil e a sociedade
política com grandes frentes, mas recusamos (em nome desse esquerdismo
integrista) eleger vereadores se estes não estiverem ungidos pelo óleo sagrado
de uma interpretação enviesada da tática. Temos a fórmula para conquistar
o Brasil, mas sequer transigimos sobre as dimensões da luta de classes
nos municípios, com suas implicações e imposições concretas em
relação às elites locais, à economia, aos costumes etc. E saber transigir
política e ideologicamente é uma obrigação ainda mais decisiva num político
comunista. Não podemos idealizar que vamos discutir e votar projetos de leis
sempre a partir da posição de blocos "vermelhos" e "revolucionários" - e afirmo
isso porque, se elegermos alguns vereadores, vamos necessariamente, em
determinadas circunstâncias, ter que compor com legendas até da direita
(inclusive PSDB ou DEM). Blasfêmia! Blasfêmia! Alguém aqui estará pensando
do alto do catecismo da tática interpretada como um dogma. Mas é e será
assim a política prática, onde um bloco de direita pode, num dado conflito
particular com outras forças, de direita ou não, ser um aliado pontual e mais
vantajoso para a nossa luta em determinado tema e sob dadas condições. (É,
53
de fato, seria ótimo se vivêssemos os tempos de Lênin no que se refere
àqueles momentos cruciais e abertos da luta de classes...)
Política, na prática, é saber se situar entre duas escolhas racionais para
buscar e / ou se consolidar no poder: mínimo ganho provável e máximo ganho
possível. O esquerdismo do CC e da CPN provavelmente vai determinar que
os parlamentares, uma vez empossados nas Câmaras, fiquem isolados em
tudo e por tudo se os seus pares forem do PMDB, PSDB, PTB, PT e PSB - à
espera da próxima eleição em que sejam eleitos em massa candidatos do
PSTU e PSOL. Temos feito muita "ciência política" e somos pouco ou nada
racionais na política concreta. Nessa pisada, ou vamos no futuro ganhar a nota
máxima do MEC pela excelência acadêmica ou a revolução vai nos
surpreender em determinado trecho da luta de classes - e não será improvável
uma boa parte do Partido não compreender o que está ocorrendo ou mesmo
posicionar-se reacionariamente no processo. A questão é que nem se
elegêssemos metade de cada parlamento brasileiro poderíamos imaginar que
"temos a faca e o queijo nas mãos" para fazer a revolução.
Por isso, a tática deve ser tratada como o que é em essência: um guia
para a ação, em dado tempo e terreno, sob condições de luta variáveis. Assim
exigem as batalhas reais. Torná-la, por assim dizer, um "livro de horas", um
manual de auto-ajuda ideológico, é tudo o que precisamos para bloquear nossa
reflexão (e teoria) política, passo atrás fundamental para a seguir estagnar o
Partido na prática da luta política para além das arenas "assépticas" (mundo da
política sindical, meio estudantil e algumas entidades do movimento social e
popular com perfil de esquerda). É como se perguntássemos a nós
mesmos, em busca de um entendimento epistemológico do que somos:
não queremos o poder, porque precisamos de parlamentos?
Outro argumento que lemos, feito pelo secretário-geral, afirmou que a
tática foi aprovada no Congresso e na Conferência Política Nacional. (A
"lembrança" tinha como alvo alguns dirigentes de Pernambuco que postulavam
a aprovação das coligações em Paulista e Timbaúba). Já escrevemos aqui a
nossa crítica sobre o esquerdismo que infiltrou a análise das propostas de
54
coligação. O que devemos ressaltar a respeito desse argumento formalista
é que sobretudo a tática pode e deve ser objeto de crítica pelos militantes
no processo da luta em tempo real. O nosso juízo político não fica obliterado
em função do conjunto (e o Centralismo Democrático jamais dispõe assim,
muito pelo contrário): ele requer a crítica militante contínua, ainda que não
sejamos maioria política em dada situação. Muitos têm uma visão rebaixada do
Centralismo Democrático, entendendo-o sob uma perspectiva quantitativista: a
maioria dos votos foi para a proposta "x", então vamos todos apoiá-la, colocá-la
em prática. É isso, sem dúvida, na sua forma exterior, mas não se esgota
nisso. É um reducionismo estúpido e oportunista pensar esse princípio nestes
termos formais, sob a aparência das coisas. Mas o formalismo e a
judicialização para justificar o integrismo e o ultra-radicalismo sobre a tática
querem esse entendimento nosso. Basta-nos votar uma proposta de resolução
e o mundo político fica sob controle, cabendo as devidas penas da lei aos
infratores.
Será desonesto e mentiroso quem disser que em Pernambuco uma
parte dos dirigentes se insurgiu como grupo contra a decisão das instâncias
coletivas do Partido (tenho particular horror político a grupos e suas demandas
sempre na essência mesquinhas). O que esses militantes combateram (e
continuo a combater) é a interpretação integrista e ultra-radical da tática e a
formalização / judicialização do debate político em torno da mesma. Esse
universo de desvios é a negação de qualquer tática dialeticamente concebida
e praticada. Essa apreensão reificada e reificante da tática é o efeito objetivo
de quem vê o real (político, social e ideológico) por vieses idealizados e
mecânicos. Assim interpretando e praticando a tática, em breve vamos criar no
Partido consensos de mortos políticos. Será o triunfo do culto da ilusão das
formas.
Recife (PE), agosto e setembro de 2012.
R. Numeriano
55
POSFÁCIO
Este posfácio foi elaborado, como podem perceber, em outubro. A
dinâmica do conflito entre as idéias, acelerada no período eleitoral, explica em
parte a sua materialização como o maior exemplo do que formulei entre agosto
e setembro. Não precisamos esperar muito tempo quando os processos de luta
política e ideológica são acelerados por dentro dos partidos, nas classes e
entre as classes.
A causa de tudo foi a Nota Pública da Comissão Política Nacional (CPN /
PCB), expulsando o então candidato da Frente de Esquerda PCB-PSOL à
Prefeitura do Recife, mal iniciara a apuração dos votos (Anexo B). Não poderia
haver, creio, nenhum outro documento partidário que pudesse demonstrar, em
termos práticos e políticos, aquilo que critiquei em termos ideológicos e
teóricos. Essa Nota Publica é não apenas irresponsável (no seu vezo de “vigiar
e punir exemplarmente”), mas expõe uma espécie de, por assim dizer, loucura
política que, para mim, só pode ser explicada como fanatização das ideias. E,
no entanto, ela é bem a medida das formas ilusórias cultuadas por quem, sob o
domínio do desejo político (supostamente revolucionário), radicaliza-se para
tentar radicalizar no seu entorno os processos sociais, políticos, econômicos
etc.
O velho e glorioso Partidão não precisava ver nos seus anais esse
disparate de texto vingativo, essa indecência e cinismo políticos travestidos de
rigor e disciplina. A essa hora, acho que até mesmo os reacionários ideológicos
devem estar lamentando esse rebaixamento do debate político num Partido
que atraiu e formou quadros dirigentes e teóricos de relevo nacional e
internacional.
Peço que leiam e meditem a Nota e a minha resposta (Anexo A). Peço
ainda que leiam excertos do editorial do secretário-geral do PCB, publicado às
11h do dia 07 de outubro, intitulado "Passa mais uma eleição; a exploração e a
luta de classes continuam!", primor de platitudes que traduzem um rancor
político sob a forma de um discurso vingativo e de auto-engano. (Não resisti
56
fazer uma breve análise do mesmo, a título comparativo a respeito do que
expomos, até aqui). E que façam avançar o debate político, ideológico e
político por dentro e por fora dos partidos da esquerda socialista.
Anexo A: Resposta do ex-candidato Roberto Numeriano à Nota Pública.
“Recife, 08 de outubro de 2012
Caros recifenses e amigos,
Já é fato público que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) me expulsou,
mal foi aberta a apuração dos votos, no Recife. Na Nota Pública colocada no
site do Partido, registraram até o horário da postagem: 17h. A Nota segue
abaixo, para quem a desconhece. Mas é necessário que me defenda, até
porque o texto mente, em alguns pontos, e noutros escreve meias verdades
(que é uma forma requintada de mentir).
Antes de tudo, eu já havia comunicado oficialmente ao PCB, por meio de
email enviado a três dirigentes a pelo menos dois meses, que no dia 08 de
outubro renunciaria formalmente aos cargos diretivos do Partido nas três
instâncias (Secretário de Organização no Recife, Secretário Estadual de
Finanças, licenciado, e membro do Comitê Central). Na mesma ocasião, pedi
que não mais me enviassem correspondências do Comitê Central, pois não
julgava honesto, politicamente, tomar conhecimento de assuntos internos
restritos, dado o fato de ter decidido renunciar. Também registrei que
continuaria filiado ao Partido.
Assim decidi porque ocorreram fatos, nesta campanha, dos quais
discordei politicamente. Um deles é público, pois diz respeito ao meu apoio à
candidatura do ex-militante Luciano Morais, também recentemente expulso por
se manter candidato a vereador em Paulista, após o PSDB ter declarado apoio
à chapa majoritária de Sérgio Leite. Mas a causa foi anterior, embora com
substância política semelhante, e envolveu a candidatura de Edvalmir Carteiro,
em Timbaúba. Edvalmir, que tinha grande chance de ser eleito numa chapa
proporcional, foi obrigado a sair da mesma porque à ultima hora, por força da
57
legislação eleitoral que impõe a cota de mulheres nas chapas proporcionais,
uma professora aposentada, filiada ao PSDB, foi chamada para compor.
Edvalmir saiu candidato isoladamente. E perdeu.
Minha resistência a estes fatos decorreu de algo anterior, que venho
observando na cúpula dirigente do Partido: o progressivo fechamento político-
ideológico do diálogo democrático interno. E o maior exemplo disso é uma
interpretação que chamo de mecanicista e integrista (ultra-radical) da sua tática
política. Nunca defendi, é claro, alianças com partidos de direita, mas não
podemos ser vítimas desses partidos quando, numa composição eleitoral, por
motivos extemporâneos e alheios a nós, arranjos de última hora e
contingências de legislação impõem fatos como o que descrevi. Não houve
culpa dessas duas municipais do Partido, pois em ambos os casos suas
direções respaldaram o processo. A partir da decisão contrária da Comissão
Política Nacional, os dois candidatos foram obrigados a tomarem outro rumo.
Do ponto de vista formal (e segundo a legislação eleitoral) o PCB tinha
todo o direito de nos punir. E assim fez. Expulsou o Luciano por desobediência
e a mim pelo apoio ao que julgo melhor para a luta política e social do Partido.
Sabia dos riscos que corria. Exerci o direito de discordar, mas, nos últimos
tempos, o dirigismo de cúpula no Partido imagina ser possível resolver e zerar
por meio de "canetadas" em resoluções, circulares, normas etc o livre exercício
do contraditório. Alegam que descumpri princípios do "Centralismo
Democrático" (CD). Formalmente, sim, mas não politicamente, pois não existe
sequer a possibilidade da dialética sem a possibilidade de transigir. Essa
cúpula ultra-radical (CPN) e maioria do Comitê Central imagina que o debate
político-ideológico deve ser moldado por tribunas em tempos de congresso,
conferências etc. Por isso mesmo, radicalizou na aplicação do CD. Foi fiel, não
por acaso, à interpretação integrista da tática.
E agora passo a responder a essa Nota que, redigida e divulgada com a
sanha de me "desonrar" politicamente, a rigor expôs o Partido de maneira
vergonhosa. (Talvez nem fosse redigida se as intenções de voto para o
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"camarada" Numeriano apontassem a possibilidade do mesmo disputar um
segundo turno). Na prática, essa Nota comprovou o que venho sentindo.
Há tempos observo esse engessamento do Partido. Uma lenta e
progressiva estreiteza político-ideológica que aos poucos, se a militância de
base não reagir, vai transformá-lo numa seita política, a exemplo do PSTU.
Quis resistir a esse processo. Jamais recusei uma tarefa a mim delegada,
como militante. Sobretudo nos últimos quatro anos, quando, com grande
sacrifício intelectual, profissional e familiar, tratei, sobretudo com o Luciano e o
Aníbal, em recuperar a ação política e a organização política do Partido no
Estado. Disputei três eleições majoritárias consecutivas com duas ou três
pessoas ao meu lado. Nunca fiz "corpo mole", mesmo porque, como servidor
público, jamais me permitiria "fazer" de conta que sou candidato, pois meu
salário é pago com o salário do contribuinte e deve ser honrado. Levo isso
muito a sério e é por isso que, em 18 anos de serviço público, faltei ao trabalho
apenas nove vezes, por doença atestada (crise de labirintite).
A CPN mente quando afirma que o Partido teve "suficientes motivos"
para me substituir por outro camarada. Não podia, porque não havia razão
política respaldada (mesmo na "lei burguesa", a qual essa direção integrista e
ultra-radical vive tanto a destratar, mas logo quer se valer dela quando é
questionada politicamente). Apoiei publicamente o Luciano Morais e postei no
meu facebook pessoal algumas fotos da campanha de Sérgio Leite, do PT, a
prefeito do Paulista. Em essência, seria esse o motivo "suficiente" para retirar a
candidatura?
A CPN mente quando diz que não o fez para não "prejudicar as
importantes campanhas" dos militantes Délio e Elvira. Mente porque, a rigor,
não havia campanha nas ruas. Com grande sacrifício pessoal, esse grande
comunista e intelectual que tenho a honra de conhecer, meu camarada Délio
Mendes, fazia uma campanha simbólica, e a Elvira somente no final da disputa
imprimiu alguns panfletos (na campanha inteira, sequer me chamou para um
ato que tivesse organizado). Tínhamos, na verdade, duas "campanhas
conceituais" dos vereadores.
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A CPN mente com grave cinismo político quando diz que "valoriza" a
"grande possibilidade" de eleger o Edilson Silva. Se assim fosse, não deixaria o
militante Numeriano sozinho, a tocar uma campanha de três meses custeando
quase toda a despesa de material, sendo redator, repórter, assessor, motorista
etc. E eu nem queria sair candidato a prefeito (pois já havia passado pelo
mesmo nas campanhas de 2008 e 2010). Mas, por força dos entendimentos
com o PSOL e decisão da Executiva Estadual, saí candidato no sacrifício. E,
apesar de em geral solitário todo esse tempo (o Délio e o Henrique me
ajudaram na medida de suas possibilidades), fiz o máximo possível para ajudar
o camarada Edilson e honrar o compromisso com o PSOL. No entanto, devo
dizer, pois nunca me calo diante do que considero injusto, o PCB não se
empenhou, organicamente, nessa campanha. Assim o fez em 2008 e 2010,
quando muitos se reuniram para "entrar na batalha", mas ao final somente eu,
o Luciano e o Aníbal fomos sangrar de verdade nas ruas. Fiz vários
chamamentos para o Partido se integrar à campanha. Inutilmente: o PCB, há
tempos, faz apenas "campanhas conceituais". Imaginei que pudesse ser
diferente, em função da coligação. No fim das contas, a CPN é que é, em si,
uma "crise política".
A CPN mente quando diz que "traí" o Partido. Quisera que, Brasil afora,
muitos militantes estivessem "traindo" o Partido nos termos do que fiz.
Seríamos, creio, salvos dessa sanha radical, integrista e mecanicista que
imagina ser possível criar uma realidade e enfiá-la nas formulações táticas e
estratégicas do PCB. Traem o Partido os que estão transformando o seu
legado heróico em algo datado, livresco, saudosista. Traem o Partido os
dirigentes cupulistas que se imaginam acima do bem e do mal. Traem o Partido
os que querem o grande PCB transformado num PSTU, cheio de rancor
pequeno-burguês, a destilar ódio irracional sobre a luta de classes. Traem o
Partido aqueles que, do alto de suas gestões burocráticas, imaginam ser
possível transformá-lo num instrumento da ação política libertadora da classe
trabalhadora sem buscar no povo os instrumentos e motivação. O PCB não
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precisa de semelhantes paladinos, pois nossa sociedade já cansou do
socialismo retórico de alguns supostos clarividentes.
Por fim, vale registrar o uso reiterado, na Nota, do pronome possessivo:
"sua candidatura" e "sua campanha". Como assim, "sua candidatura" e "sua
campanha"? Até ontem, eram de uma coligação, pelo menos em tese. O fato é
que temos no texto um curioso ato falho que, por si mesmo, diz tudo. Foi,
realmente, uma "campanha do Numeriano", cumprida como manda a tradição
do PCB dos velhos tempos de homens como Prestes e Gregório: com
honestidade, empenho, vigor e, sobretudo, dentro do programa social, político
e ideológico do PCB e do PSOL. O resultado aí está, na forma de quase sete
mil votos que honraram a todos nós que, militantes para além da palavra,
transformam em ato a vontade de mudar a sociedade no rumo do socialismo.
Essas tradições, vocês, dirigentes de cúpula que odeiam eleições
"pequeno-burguesas", estão matando. Essas tradições, vocês, dirigentes
mecanicistas que amam a retórica socialista, apequenam quando no dia da
apuração dos votos do candidato da Frente de Esquerda, expulsam-no
sumariamente como num auto de fé. Se quiseram demonstrar "coerência de
princípios" e "unidade ideológica", peço olharem no facebook as manifestações
de crítica ao Partido. É isso o que de verdade lamento: essa inquisição tosca
atingiu em essência ao Partido.
Aquele abraço. Vamos em frente.
Roberto Numeriano
PS: Quem desejar adquirir um pequeno livro que redigi tratando dos caminhos
do PCB, PSOL e PSTU, intitulado O Culto da Ilusão das Formas, basta me
comunicar. Acredito que pode provocar uma reflexão sobre a luta da esquerda
socialista.”
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Anexo B: Nota Pública da Comissão Política Nacional (CPN / PCB),
expulsando o ainda candidato da Frente de Esquerda PCB-PSOL à Prefeitura
do Recife, Roberto Numeriano.
“Sr. Roberto Numeriano:
(7 de outubro de 2012 – 17:00 horas)
Durante sua campanha à prefeitura do Recife, pelo PCB, tivemos
suficientes motivos para retirar sua candidatura e substituí-lo por outro
camarada, como admite a lei.
Não o fizemos apenas para não prejudicar as importantes campanhas a
vereador dos nossos camaradas Délio e Elvira, mas também em respeito ao
PSOL, com o qual estamos coligados em Recife, onde tem grande
possibilidade de eleger um vereador, fato que o PCB valoriza. Se optássemos
pela retirada de sua candidatura, certamente adviria uma crise política na
campanha da Frente de Esquerda na cidade, com repercussão nacional.
Há uma semana, a Comissão Política Nacional do PCB exigiu-lhe
esclarecimentos sobre a divulgação na internet, de sua parte, de propaganda
de Sérgio Leite, candidato do PT a prefeito de Paulista (PE), afrontando
decisão de todas as instâncias de direção do Partido (CC, CR e CM) no sentido
da retirada do PCB da coligação em torno do candidato do PT nessa cidade.
Na última sexta-feira, em debate promovido pela Rede Globo com os
candidatos a prefeito de Recife, você terminou suas declarações finais pedindo
voto para um candidato a vereador em Paulista, expulso do PCB pelas citadas
instâncias partidárias, exatamente por não retirar sua candidatura na coligação
com aquele candidato a prefeito e por manter sua campanha graças a recurso
na justiça eleitoral e não em nome do PCB.
A sua atitude neste debate é uma verdadeira traição ao PCB, que
promoveu sua candidatura no pressuposto de que soubesse honrar a história
do Partido e sua coerência política.
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Diante do reiterado desrespeito às decisões partidárias e, agora, de uma
afronta pública e premeditada ao Partido, a Comissão Política Nacional do
PCB, através do presente comunicado, instaura um processo disciplinar contra
Roberto Numeriano, considerando-o expulso do Partido e consequentemente
desautorizando-o a falar em nome do PCB. Se for de seu interesse, poderá o
punido se valer do direito de defesa, previsto na legislação eleitoral, junto ao
Comitê Central do Partido, sem efeito suspensivo, conforme nosso Estatuto.
7 de outubro de 2012 (17:00 horas)
PCB – Partido Comunista Brasileiro
Comissão Política Nacional”
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Um Discurso do Culto das Ilusão das Formas
A título de exemplo do que até agora expus e analisei, decidi comentar
excertos do editorial ou artigo do secretário geral do PCB, Ivan Pinheiro,
intitulado "Passa mais uma eleição; a exploração e a luta de classes
continuam!".27
O que temos nessa peça de propaganda política é um discurso típico da
chamada "voz de autoridade", redigido para reforço a) de uma agenda de
poder antes pessoal do que institucional; e b) da própria estreiteza político-
ideológica do Partido diante de mais um desempenho nulo no processo
eleitoral "burguês".
A começar pelo título, podemos identificar, em sua obviedade, um
forçado argumento contra as eleições (é claro, são "burguesas") no momento
em que busca caracterizar uma relação de causa e efeito que, no caso, não
cabe. Esse título autoritário e preconceituoso pretende justamente conformar e
sedimentar a idéia de que, em essência, pouco ou nada vale participar dessas
eleições que "passam", mas não resolvem o problema da exploração (dos
trabalhadores), nem ("zeram"?) o da luta de classes. É bem, essa lastimável
peça de propaganda rasteira, o culto ilusório das formas de um mundo político
e social que desenhamos enquanto (já imaginando que o mesmo existe per se)
pretendemos que caiba no universo institucional partidário. Acredito que, do
cientista político mais erudito ao feirante de verduras da Feira de Caruaru, a
pergunta, diante desse título, seria: "Sim, e daí?"
Passo, a seguir, a desconstruir o discurso panfletário / demagógico a
partir da análise de alguns parágrafos, que relacionei como (a), (b), (c) e (d)
para remeter imediatamente ao texto.
No parágrafo (a) temos uma mentira, se, como afirma Lênin, "o critério
da verdade é a prática". Os comunistas do PCB, de fato, renunciam à luta no
27 Fonte: http://pcb.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=4840:passa-mais-uma-eleicao-a-exploracao-e-a-luta-de-classes-continuam&catid=123:eleicoes-2012, em 07/10/2012, às 11h.
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terreno político-eleitoral.28 Lutar nesse terreno, ao contrário do que quer nos
convencer o texto (sob um entendimento rebaixado), significa lutar
efetivamente / praticamente para conquistar o voto do eleitor. Na prática,
renunciam, pois reduzem o ativismo, nas campanhas que chamo de
"conceituais", a uma intervenção discursiva que seria natural em cursos de
formação política. As lutas do PCB, que o parágrafo pretende afirmar que são
feitas "em qualquer terreno", não são praticadas no "campo" eleitoral da
burguesia, pois o que de fato se faz é tentar enfiar a "mundividência
revolucionária" (mal traduzida desde o palavreado de sua "erudição", por conta
da baixa interlocução dos militantes com a vida viva das ruas), goela abaixo de
gente que quer, antes de tudo, saber como pode resolver seus problemas
imediatos. Daí se explicar porque, em geral, vemos a militância com "discursos
fora do lugar", o que na prática significa renunciar para valer na disputa pelo
voto. Pretendem (apenas aparentemente dentro do terreno eleitoral burguês)
ganhar a cabeça de todos, quando, em geral, sequer sabem dialogar
politicamente com os trabalhadores, os estudantes, os desempregados etc. Por
isso, não devemos nos surpreender com o fato de que, "passada mais uma
eleição", a esquerda socialista (PSTU e PCB), sempre amargue derrotas
acachapantes e não faça qualquer análise sobre onde, como e porque está
falhando (não o faz porque "naturaliza" para si mesma essas derrotas como se
fossem da ordem natural das coisas, até que um dia as massas despertem e
varram do terreno esse sistema degenerado).29
Não houve "milhares de verdadeiros militantes comunistas nas ruas",
como quer convencer, aos incautos, o parágrafo (b). Quando muito, algumas
centenas. A não ser que o texto também queira classificar como "verdadeiros"
aqueles que, Brasil afora, participaram, aqui e ali, dispersivamente, e foram a
um ou outro evento de campanha. Posso fazer essa crítica porque, conforme
pude me informar junto a militantes de outros Estados de tradição mais
28 Refiro-me, é claro, à instituição em si e, até onde tenho informações sobre o desempenho político-eleitoral do PCB nos últimos anos, à maioria dos seus militantes orgânicos. 29 O PSOL não está aqui porque, como demonstrado, começa a avançar, na prática e na teoria, junto aos trabalhadores, classe média, estudantes etc, em função, entre outras coisas, da recusa de sua maioria à estreiteza e ao radicalismo.
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orgânica no PCB (Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas
Gerais), a participação foi pequena já a partir dos poucos municípios em que o
Partido participou nas campanhas proporcionais e majoritárias. Em
Pernambuco, o PCB talvez tenha engajado 40 pessoas nas campanhas em
oito municípios, "verdadeiros" ou não militantes comunistas.
O parágrafo (c) faz novo apelo ao exagero e à mistificação. Do ponto de
vista do avanço na disputa pelo poder na arena parlamentar (é isso que está
em jogo, a rigor, numa eleição) não há como, em essência, separar o resultado
político do resultado eleitoral, e vice-versa. Esse palavreado oco quer
escamotear o fato de que o PCB, mais uma vez, foi fragorosamente derrotado
em termos políticos e eleitorais (o eufemismo "modesto" chega a doer nos
olhos). Esse é o fato. O discurso de que "coligações com partidos da ordem"
como ameaça à "coerência política" e ao "projeto de ruptura com o capital"
como explicação causal desse desempenho, mais uma vez, desastroso, é um
"mantra" político esgotado. Temos, sob essas palavras, uma forma discursiva
para nos iludir e como auto-ilusão do dirigente. E o que esse discurso na forma
de um mantra quer cultuar eternamente é a revolução como um deus que por
aí vem, para nos salvar da perdição e mostrar que éramos, todos nós, seus
filhos amados mas desprezados nesse vale de perdição e de lágrimas que é a
ordem do capital. O voto popular, sob essa mentalidade estreita, não constitui
um elemento categórico da revolução: talvez, esse discurso, imagine poder
dispensá-lo, uma vez conquistado o poder.
Por fim, no parágrafo (d), temos a forma mais perigosa do radicalismo
político que tenta se legitimar sob a ideia do terror depurativo para os "caídos
em desgraça" diante de um coletivo erigido em templo religioso sob a gestão
de um sumo-sacerdote. É aqui, camaradas e militantes da esquerda socialista,
que temos os primeiros efeitos práticos quando, de tanto desejar ardentemente
um objeto ou ordem (política, social etc), a nossa dificuldade / incapacidade de
conquistá-lo nos faz radicalizar a explicação do real e estreitar / fechar as
estruturas institucionais que nos servem de instrumento para lutar por esse
objeto ou ordem. É quase a fábula da raposa e as uvas.
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Na verdade, são as eleições ("burguesas" ou não) que revelam os
partidos, à esquerda e direita do espectro ideológico. E o que essa eleição
revelou de modo mais acentuado foi aquilo que nós, como "militante
verdadeiro", temos visto em teoria e na prática: uma radicalização das
instâncias de discussão; um bloqueio ao dissenso interno; a "voz da
autoridade" concentrando a discussão e estreitando o diálogo; o maniqueísmo
político (quem diverge é um mal político que deve ser expurgado) e a
instrumentalização do centralismo democrático como medida de pena.
Não houve "depuração" no Partido, como o texto quer fazer crer. O que
houve, em alguns casos essenciais, foi um processo de expurgo sob o
argumento de "desobediência", "traição" etc. E a radicalização desse processo
foi tão extrema que, no caso do Recife, a sanha punitiva sequer levou em conta
que o candidato compunha uma coligação com o PSOL. De fato, se o voto
popular não chega, então vamos "matar" quem, certamente, é o culpado pela
nossa solidão política. O PCB, por causa dessa mentalidade política recalcada,
irracional, saiu manchado desse episódio. Não li nem ouvi sequer uma
declaração pública e/ou particular favorável ao Partido.
Anexo C.
"(...)
(a) Mas os comunistas não renunciam a lutar em qualquer terreno.
Mesmo conhecendo suas desvantagens, enfrentam a burguesia em seu próprio
campo, desmascarando-a, denunciando o sistema político, econômico e social.
(b) O PCB mais uma vez enfrentou este desafio; mais uma vez, milhares
de verdadeiros militantes comunistas foram às ruas, aos bairros, às escolas e
aos trabalhadores, levando a mensagem do socialismo, denunciando o
capitalismo, o imperialismo.
(c) Os nossos resultados políticos foram positivos; os resultados
eleitorais serão modestos, pois o PCB se recusa a participar de coligações com
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partidos da ordem, que poderiam nos assegurar mandatos, mas que custariam
caro à nossa coerência política, ao nosso projeto de ruptura com o capital.
(d) O PCB avançou também em seu processo de reconstrução
revolucionária. Nas eleições burguesas os militantes se revelam, para o bem
ou para o mal. A regra foi a militância aguerrida, a disciplina consciente, a
defesa da linha política do Partido. As direções do PCB não vacilaram em
anular coligações espúrias, retirar candidaturas, dissolver instâncias
partidárias, expulsar os que se degeneraram. O Partido sai depurado dessas
eleições.
(...)"