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Revista Trimestral de Jurisprudência volume 216 abril a junho de 2011

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  • Revista Trimestral de Jurisprudncia

    volume 216abril a junho de 2011

  • DiretoriaGeralAlcides Diniz da Silva

    SecretariadeDocumentaoJaneth Aparecida Dias de Melo

    CoordenadoriadeDivulgaodeJurisprudnciaLeide Maria Soares Corra Cesar

    SeodePreparodePublicaesCntia Machado Gonalves Soares

    SeodePadronizaoeRevisoRochelle Quito

    SeodeDistribuiodeEdiesMaria Cristina Hilrio da Silva

    Diagramao: Eduardo Franco Dias

    Capa:Ncleo de Programao Visual

    (Supremo Tribunal Fe deral Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal)

    Revista Trimestral de Jurisprudncia / Supremo Tribunal Federal. V. 1,n. 1 (abr./jun. 1957) - . Braslia : STF, 1957- .

    v. ; 22 x 16 cm.Trimestral.Ttulo varia: RTJ.Repositrio Oficial de Jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal.Nome do editor varia: Imprensa Nacional / Supremo Tribunal Federal,

    1957 a 2001; Editora Braslia Jurdica, 2002 a 2006; Supremo TribunalFederal, 2007- .

    Disponvel tambm em formato eletrnico a partir de abr. 1957:http://www.stf.jus.br/portal/indiceRtj/pesquisarIndiceRtj.asp.

    ISSN 0035-0540.

    1. Tribunal supremo, jurisprudncia, Brasil. 2. Tribunal supremo,peridico, Brasil. I. Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF).Coordenadoria de Divulgao de Jurisprudncia. II. Ttulo: RTJ.

    CDD 340.6

    Solicita -sepermuta. Pdese canje. On demande lchange. Si richiede loscambio. We ask forexchange. Wir bitten umAustausch.

    STF/CDJU Anexo II, Cobertura Praa dos Trs Poderes 70175 -900 Braslia -DF [email protected] Fone: (0xx61)3217 -4766

  • SuPREmoTRIBuNALFEDERAL

    Mi nis tro Antonio CEZAR PELUSO (25-6-2003), PresidenteMi nis tro Carlos Augusto AyRES de Freitas BRITTO (25-6-2003), Vice-PresidenteMi nis tro Jos CELSO DE MELLO Filho (17-8-1989)Mi nis tro MARCO AURLIO Mendes de Farias Mello (13-6-1990)Mi nis tra ELLEN GRACIE Northfleet (14-12-2000)Mi nis tro GILMAR Ferreira MENDES (20-6-2002)Mi nis tro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25-6-2003)Mi nis tro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI (16-3-2006)Mi nis tra CRMEN LCIA Antunes Rocha (21-6-2006)Ministro Jos Antonio DIAS TOFFOLI (23-10-2009)Ministro LUIZ FUX (3-3-2011)

    COMPOSIO DAS TURMAS

    PRIMEIRA TURMA

    Ministra CRMEN LCIA Antunes Rocha, PresidenteMinistro MARCO AURLIO Mendes de Farias MelloMinistro Enrique RICARDO LEWANDOWSKIMinistro Jos Antonio DIAS TOFFOLIMinistro LUIZ FUX

    SEGUNDA TURMA

    Ministro GILMAR Ferreira MENDES, PresidenteMinistro Jos CELSO DE MELLO FilhoMinistra ELLEN GRACIE NorthfleetMinistro Carlos Augusto AyRES de Freitas BRITTOMinistro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes

    PROCURADOR -GERAL DA REPBLICA

    Doutor ROBERTO MONTEIRO GURGEL SANTOS

  • COMPOSIO DAS COMISSES

    COMISSO DE REGIMENTO

    Mi nis tro MARCO AURLIOMi nis tro GILMAR MENDESMi nis tro JOAQUIM BARBOSAMi nis tro DIAS TOFFOLI Suplente

    COMISSO DE JURISPRUDNCIA

    Mi nis tra ELLEN GRACIEMi nis tro AyRES BRITTOMi nis tra CRMEN LCIA

    COMISSO DE DOCUMENTAO

    Mi nis tro CELSO DE MELLOMi nis tro DIAS TOFFOLIMinistro LUIZ FUX

    COMISSO DE COORDENAO

    Mi nis tro GILMAR MENDESMi nis tro RICARDO LEWANDOWSKIMinistro LUIZ FUX

  • SumRIo

    Pg.

    ACRDOS .................................................................................................................... 9

    DECISES MONOCRTICAS ............................................................................. 555

    NDICE ALFABTICO ........................................................................................... 601

    NDICE NUMRICO .............................................................................................. 627

  • ACRDOS

  • ARGuIoDEDESCumPRImENToDEPRECEIToFuNDAmENTAL153DF

    Relator: O Sr. Ministro Eros Grau

    Arguente: Conselho Fe deral da Ordem dos Advogados do Brasil OAB Arguidos: Presidente da Repblica e Congresso Nacional Interessados: Associao Juzes para a Democracia, Centro pela Justia e o Direito Internacio-nal CEJIL, Associao Brasileira de Anistiados Polticos ABAP e Associa-o Democrtica e Nacionalista de Militares

    Lei6.683/1979,achamadaLeideAnistia.Art.5,caput,IIIeXXXIII,daConstituiodoBrasil;princpiodemocrticoeprincpiorepublicano:noviolao.Circunstnciashistricas.Dignidadedapessoahumanaetiraniadosvalores.Interpretaodo direito e distino entre texto normativo e norma jurdica.CrimesconexosdefinidospelaLei6.683/1979.Carterbilateraldaanistia,amplaegeral.JurisprudnciadoSupremoTribunalFederalnasucessodasfrequentesanistiasconcedidas,noBrasil,desdeaRepblica.Interpretaododireitoeleismedida.ConvenodasNaesunidascontraatorturaeoutrostratamentosoupenascruis,desumanosoudegradanteseLei9.455,de7deabrilde1997,quedefineocrimedetortura.Art.5,XLIII,daConstituiodoBrasil.InterpretaoerevisodaLeidaAnistia.EC26,de27denovembrode1985,poderconstituinteeautoanistia. Integrao da anistia da Lei de 1979 na nova ordemconstitucional.Acesso a documentos histricos como forma deexercciododireitofundamentalverdade.

    1.Texto normativo e norma jurdica, dimenso textual edimenso normativa do fenmeno jurdico. o intrprete produzanormaapartirdostextosedarealidade.Ainterpretao

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    dodireitotemcarterconstitutivoeconsistenaproduo,pelointrprete,apartirdetextosnormativosedarealidade,denormasjurdicasaseremaplicadassoluodedeterminadocaso,soluooperadamedianteadefiniodeumanormadedeciso.Ainterpretao/aplicaododireitooperaasuainseronarealidade;realizaamediaoentreocartergeraldotextonormativoesuaaplicaoparticular;emoutrostermos,ainda:operaasuainseronomundodavida.

    2.oargumentodescoladodadignidadedapessoahumanapara afirmar a invalidade da conexo criminal que aproveitariaaosagentespolticosquepraticaramcrimescomunscontraopositorespolticos,presosouno,duranteoregimemilitar,noprospera.

    3.Conceito edefiniodecrimepolticopelaLei6.683/1979.Socrimesconexosaoscrimespolticososcrimesdequalquernaturezarelacionadoscomoscrimespolticosoupraticadospormotivaopoltica;podemserdequalquernatureza,mas[i]hodeterestadorelacionadoscomoscrimespolticosou[ii]hodetersidopraticadospormotivaopoltica;socrimesoutrosquenopolticos;socrimescomuns,porm[i]relacionadoscomoscrimespolticosou[ii]praticadospormotivaopoltica.Aexpressocrimesconexosacrimespolticosconotasentidoasersindicadonomomentohistricodasanodalei.AchamadaLeideAnistiadizcomumaconexosui generis,prpriaaomomentohistricodatransioparaademocracia.Ignora,nocontextodaLei6.683/1979,osentidoouossentidoscorrentes,nadoutrina,dachamadaconexocriminal;refereoqueseprocurou,segundoainicial,valedizer,estenderaanistiacriminaldenaturezapolticaaosagentesdoEstadoencarregadosdarepresso.

    4.AleiestendeuaconexoaoscrimespraticadospelosagentesdoEstadocontraosquelutavamcontraoEstadodeexceo;daocarterbilateraldaanistia,amplaegeral,quesomentenofoiirrestritaporquenoabrangiaosjcondenadosecomsentenatransitadaemjulgado,qualoSupremoassentoupelaprticadecrimesdeterrorismo,assalto,sequestroeatentadopessoal.

    5.osignificadovlidodostextosvarivelnotempoenoespao,histricaeculturalmente.Ainterpretaododireitonomeradeduodele,massimprocessodecontnuaadaptaodeseustextosnormativosrealidadeeseusconflitos.masessaafirmaoaplicaseexclusivamenteinterpretaodasleisdotadasdegeneralidadeeabstrao,leisqueconstituempreceitoprimrio,nosentidodequese impemporforaprpria,autnoma.No quelas, designadas leismedida (Massnahme gesetze), quedisciplinam diretamente determinados interesses, mostrandose

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    imediataseconcretas,econsubstanciam,emsimesmas,umatoadministrativo especial. No caso das leismedida interpretase,emconjuntocomoseutexto,arealidadenoedomomentohistriconoqualelafoieditada,noarealidadeatual.arealidadehistricosocialdamigraodaditaduraparaademocraciapoltica,datransioconciliadade1979,quehdeserponderadaparaquepossamosdiscernirosignificadodaexpressocrimesconexosnaLei6.683.daanistiadeentoqueestamosacogitar,nodaanistiatalequalunseoutroshojeaconcebem,senoqualfoinapocaconquistada.Exatamenteaquelanaqual,comoafirmainicial,seprocurou(sic)estenderaanistiacriminaldenaturezapolticaaosagentesdoEstadoencarregadosdarepresso.AchamadaLeidaAnistiaveiculaumadecisopolticaassumidanaquelemomentoomomentodatransioconciliadade1979.ALei6.683umaleimedida,noumaregraparaofuturo,dotadadeabstraoegeneralidade.Hdeserinterpretadaapartirdarealidadenomomentoemquefoiconquistada.

    6.ALei6.683/1979precedeaConvenodasNaesunidas contra aTortura e outrosTratamentos ou Penas Cruis,DesumanosouDegradantesadotadapelaAssembleiaGeralem10dedezembrode1984,vigorandodesde26dejunhode1987eaLei9.455,de7deabrilde1997,quedefineocrimedetortura;eopreceitoveiculadopeloart.5,XLIII,daConstituioquedeclarainsuscetveisdegraaeanistiaaprticadatortura,entreoutroscrimesnoalcana,porimpossibilidadelgica,anistiasanteriormente a sua vigncia consumadas.A Constituio noafetaleismedidaqueatenhamprecedido.

    7.NoEstadodemocrticodedireito,oPoderJudicirionoest autorizado a alterar, a dar outra redao, diversa da nelecontemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzirdistintasnormas.masnemmesmooSupremoTribunalFederalestautorizadoareescreverleisdeanistia.

    8.Revisodeleideanistia,semudanasdotempoedasociedadeaimpuserem,haverounodeserfeitapeloPoderLegislativo,nopeloPoderJudicirio.

    9.Aanistiada leide1979 foireafirmada,no textodaEC26/1985, pelo poder constituinte da Constituio de 1988. Dano ter sentido questionarse se a anistia, tal como definidapela lei, foi ou no recebida pela Constituio de 1988; a novaConstituioa[re]instaurouemseuatooriginrio.AEC26/1985inaugura uma nova ordem constitucional, consubstanciando arupturadaordemconstitucionalquedecaiuplenamentenoadventodaConstituiode5deoutubrode1988;consubstancia,nessesentido,arevoluobrancaqueaestaconferelegitimidade.

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    Areafirmaodaanistiadaleide1979estintegradananovaordem,compesenaorigemdanovanormafundamental.Detodomodo,senotivermosopreceitodaleide1979comoabrogadopelanovaordemconstitucional,estaracoexistircomo1doart.4daEC26/1985,existirapardele(dicodo2doart.2daLeideIntroduoaoCdigoCivil).odebateaesserespeitoseria, todavia,despiciendo.Aumaporque foimera leimedida,dotadadeefeitosconcretos,jexauridos;leiapenasemsentidoformal,noosendo,contudo,emsentidomaterial.Aduasporqueotextodehierarquiaconstitucionalprevalecesobreoinfraconstitucional quando ambos coexistam.Afirmada a integrao daanistiade1979nanovaordemconstitucional,suaadequaoConstituiode1988resultainquestionvel.AnovaordemcompreendenoapenasotextodaConstituionova,mastambmanormaorigem.Nobojodessatotalidadetotalidadequeonovosistema normativo temse que [] concedida, igualmente,anistiaaosautoresdecrimespolticosouconexospraticadosnoperodocompreendidoentre2desetembrode1961e15deagostode 1979. No se pode divisar antinomia de qualquer grandezaentreopreceitoveiculadopelo1doart.4daEC26/1985eaConstituiode1988.

    10.ImpeseodesembaraodosmecanismosqueaindadificultamoconhecimentodoquantoocorreunoBrasilduranteasdcadassombriasdaditadura.

    ACRDO

    Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Su pre- mo Tribunal Fe deral, em sesso plenria, sob a Presidncia do Ministro Cezar Peluso, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigrficas, por maioria, em julgar improcedente a arguio, nos termos do voto do Relator.

    Braslia, 29 de abril de 2010 Eros Grau, Relator.

    RELATRIO

    O Sr. Ministro Eros Grau: O Conselho Fe deral da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) prope arguio de descumprimento de preceito fundamental objetivando a declarao de no recebimento, pela Constituio do Brasil de 1988, do disposto no 1 do art.1 da Lei 6.683, de 19 de dezembro de 1979. Aconcesso da anistia a todos que, em determinado perodo, cometeram crimes polticos estender -se -ia, segundo esse preceito, aos crimes conexos crimes de qualquer natureza relacionados com crimes polticos ou praticados por motiva-o poltica.

    2. Eis os textos a considerarmos:

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    Lei n. 6.683, de 19 de dezembro de 1979Art.1 concedida anistia a todos quantos, no perodo compreendido entre

    2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram, crimes polticos ou co-nexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos polticos suspensos e aos servidores da Administrao Direta e Indireta, de fundaes vinculadas ao poder pblico, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judicirio, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.

    1Consideramseconexos,paraefeitodesteartigo,oscrimesdequalquernaturezarelacionadoscomcrimespolticosoupraticadospormotivaopoltica.

    3. Oarguente alega ser notria a controvrsia constitucional a propsito do mbito de aplicao da Lei de Anistia. Sustenta que se trata de saber se houve ou no anistia dos agentes pblicos responsveis, entre outros crimes, pela pr-tica de homicdio, desaparecimento forado, abuso de autoridade, leses corpo-rais, estupro e atentado violento ao pudor contra opositores polticos ao regime militar (fl. 4).

    4. Afirma ainda que a controvrsia constitucional sobre a lei fe deral est consubstanciada na divergncia de entendimentos, notadamente do Ministrio da Justia e do Ministrio da Defesa, no que toca aplicao da lei de que se cuida. Caberia ao Poder Judicirio pr fim ao debate.

    5. Da o cabimento da arguio de descumprimento de preceito fundamen-tal, instrumento hbil a definir, com eficcia geral, se a lei fe deral guarda confor-midade com a ordem constitucional vigente.

    6. Acrescenta no ser possvel, consoante o texto da Constituio do Brasil, considerar vlida a interpretao segundo a qual a Lei 6.683 anistiaria vrios agentes pblicos responsveis, entre outras violncias, pela prtica de homic-dios, desaparecimentos forados, abuso de autoridade, leses corporais, estupro e atentado violento ao pudor. Sustenta que essa interpretao violaria frontal-mente diversos preceitos fundamentais.

    7. Aeventual declarao, por esta Corte, do recebimento do 1 do art.1 da Lei 6.683 implicaria, segundo o arguente, desrespeito [i] ao dever, do poder pblico, de no ocultar a verdade; [ii] aos princpios democrtico e republicano; [iii] ao princpio da dignidade da pessoa humana.

    8. Por fim, alega que os atos de violao da dignidade humana no se legi-timam com a reparao pecuniria (Leis 9.140 e 10.559) concedida s vtimas ou aos seus familiares, vez que os responsveis por atos violentos, ou aqueles que comandaram esses atos, restariam imunes a toda punio e at mesmo encober-tos pelo anonimato.

    9. Requer que esta Corte, dando interpretao conforme Constituio, declare que a anistia concedida pela Lei 6.683/1979 aos crimes polticos ou conexos no se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da represso, contra opositores polticos, durante o regime militar.

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    10. Solicitei informaes, em 30 de outubro de 2008, e determinei fossem os autos, posteriormente, encaminhados ao Ministrio Pblico Fe deral, nos ter-mos do disposto no art.7, pargrafo nico, da Lei 9.882/1999.

    11. ACmara dos Deputados prestou informaes s fls. 53/60. Informou apenas que a Lei 6.683/1979 foi aprovada na forma de projeto de lei do Con gres- so Na cional, conforme andamento a elas acostado.

    12. O Senado Fe deral alegou, em suas informaes, inpcia da inicial, vez que a Lei da Anistia teria exaurido seus efeitos no mesmo instante em que entrou no mundo jurdico, h trinta anos, na vigncia da ordem constitucional anterior (fls. 70/81). Sustentou ainda a impossibilidade jurdica do pedido e a ausncia do interesse de agir do arguente.

    13. AAssociao Juzes para a Democracia requereu ingresso no feito na qualidade de amicus curiae, o pedido tendo sido deferido fl. 778. Afirma o cabimento da presente arguio de descumprimento de preceito fundamental. Postula, s fls. 130/176, que esta Corte reconhea com base em seus prprios precedentes, na doutrina, e na legislao material e processual em vigor, a ine-xistncia de conexividade entre delitos praticados pelos agentes repressores do regime militar e os crimes polticos praticados no perodo, de forma a afastar a incidncia do 1 do art.1 da Lei 6.683/1979, e que as eventuais situaes con-cretas que ensejem a aplicao destes dispositivos sejam apuradas singularmente pelos Juzos competentes para a instruo penal (fl. 149). Sustenta ainda que a interpretao extensiva da Lei de Anistia caracterizaria expanso da extino de punibilidade aos agentes do regime militar e legitimaria a autoanistia (fl. 160).

    14. AAdvocacia -Geral da Unio encaminhou manifestao da qual cons-tam informaes prestadas pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), pela Subchefia de Assuntos Jurdicos da Casa Civil da Presidncia da Repblica (SAJ -CC), pelo Ministrio das Relaes Exteriores, pelo Ministrio da Justia, pelo Ministrio da Defesa e pela Consultoria -Geral da Unio.

    15. AConsultoria Jurdica do Ministrio da Justia, em manifestao de 11 de novembro de 2008, afirma que deveria ser declarada inconstitucional a interpretao que estende a anistia aos crimes comuns praticados pelos agen-tes da represso contra opositores polticos, durante o regime militar (fl. 472). ASecretaria -Geral de Contencioso da Advocacia -Geral da Unio conclui, toda-via, pelo no conhecimento da presente arguio e, no mrito, pela improcedn-cia do pedido (fl. 206).

    16. Sustenta preliminarmente a Secretaria -Geral de Contencioso da Advo-ca cia -Geral da Unio a ausncia de comprovao da controvrsia judicial e a falta de impugnao de todo o complexo normativo. Nomrito, que a abrangn-cia conferida, at ento, Lei 6.683/1979, decorre, inexoravelmente, do contexto em que fora promulgada, sendo certo que no estabeleceu esse diploma legal qualquer discriminao, para concesso do benefcio da anistia, entre oposito-res e aqueles vinculados ao regime militar. Dessa forma, desde a promulgao

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    do diploma legal prevalece a interpretao de que a anistia concedida pela Lei 6.683/1979 ampla, geral e irrestrita (fls. 192/193).

    17. Rechaando as alegaes do arguente, a Secretaria -Geral de Con ten-cio so afirma que a pretenso contida nesta arguio de descumprimento de pre-ceito fundamental de mudana de interpretao do texto normativo segundo o qual a anistia seria uma benesse ampla e irrestrita e que essa limitao con-substanciaria modificao da prpria hiptese de incidncia do preceito, o que contrariaria a inteno do legislador.

    18. Prossegue, considerando -se que entre a edio da Lei n. 6.683/79 e a promulgao da nova ordem constitucional transcorreram praticamente dez anos, certo que a anistia, tal como concedida pelo diploma legal, ou seja, de forma inegavelmente ampla, produziu todos os seus efeitos (fato consumado), consolidando a situao jurdica de todos aqueles que se viram envolvidos com o regime militar, quer em razo de oposio, quer por atos de represso. (...) Destarte, o desfazimento da situao jurdica existente quando da inaugurao da nova ordem constitucional esbarra, por certo, no princpio da segurana jur-dica, nsito ao Estado Democrtico de Direito e garantido pela prpria Carta de 1988. (Fls. 197/198). Diz que a alterao superveniente da abrangncia da anistia colidiria com o princpio da irretroatividade da lei penal, contemplado no art.5, XL, da Constituio do Brasil.

    19. A anistia conferida pela Lei 6.683/1979 teria sido ratificada pela EC26/1985. Conclui no sentido de que a pretenso, do arguente, de restringir o alcance de aplicao do preceito contido no 1 do art.1 da Lei 6.683/1979 vedada pela Constituio do Brasil em razo do postulado do Estado Demo-cr tico de Direito e do princpio da segurana jurdica. Aponta ainda o fato de o arguente ter aguardado a Lei 6.683 viger por trinta anos e vinte anos a Constituio de 1988 para manifestar irresignao em relao a ela.

    20. OProcurador -Geral da Repblica opina, no parecer de fls. 575/614, em 29 de janeiro passado, pelo conhecimento da arguio de descumprimento de preceito fundamental e, no mrito, pela improcedncia do pedido. No tocante s preliminares suscitadas pela Advocacia -Geral da Unio, sustenta que pre-liminarmente, so apontados vcios formais que impediriam o conhecimento da presente arguio. A despeito dos respeitveis argumentos desenvolvi-dos, alguns pelo menos em princpio de inegvel consistncia, parece Procuradoria -Geral da Repblica que a extrema relevncia do tema proposto recomenda afastar -se na espcie viso reducionista do instituto que inviabilize a apreciao pelo Supremo Tribunal Fe deral de questo de tamanha importncia (fls. 577/578).

    21. Afirma que a anlise da questo posta nestes autos demanda o exame do contexto histrico em que produzida a Lei da Anistia. Aanistia tem ndole objetiva, no visando a beneficiar algum especificamente, mas dirigindo -se ao crime, retirando -lhe o carter delituoso e, por consequncia, excluindo a punio dos que o cometeram.

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    22. Prossegue dizendo que [a] relevantssima questo submetida ao Supremo Tribunal Fe deral, entretanto, no comporta exame dissociado do contexto histrico em que editada a norma objeto da arguio, absolutamente decisivo para a sua adequada interpretao e para o juzo definitivo acerca das alegaes deduzidas pela Ordem, como, alis, j destacado em outros pronun-ciamentos trazidos aos autos. Aanistia, no Brasil, todos sabemos, resultou de um longo debate nacional, com a participao de diversos setores da sociedade civil, a fim de viabilizar a transio entre o regime autoritrio militar e o regime democrtico atual. Asociedade civil brasileira, para alm de uma singela parti-cipao neste processo, articulou -se e marcou na histria do Pas uma luta pela democracia e pela transio pacfica e harmnica, capaz de evitar maiores con-flitos (fls. 598/599).

    23. OCentro pela Justia e o Direito Internacional (CEJIL), a Associao Brasileira de Anistiados Polticos (ABAP) e a Associao Democrtica e Nacio-nalista de Militares (ADNAM) ingressaram neste feito como amici curiae (deci-ses de fls. 806, 807 e 854).

    24. O arguente, Conselho Fe deral da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), requereu a realizao de audincia pblica sob o fundamento da rele-vncia da matria discutida nesta arguio. Indeferi o pedido, vez que a ao foi proposta em outubro de 2008 e s em 2010 foi afirmada sua necessidade, neces-sidade de audincia pblica. Afirmei, ademais, estarem os autos instrudos de modo bastante, permitindo o perfeito entendimento da questo debatida e que o pedido suscitado longo tempo aps sua propositura redundaria em intil demora no julgamento do feito (fl. 805). Adeciso de indeferimento de audincia pblica transitou em julgado no dia 20 de abril, consoante certido de fl. 858.

    25. Nodia 16 de abril passado, a Associao Juzes para a Democracia, que figura nos autos como amicus curiae, requereu fosse a eles acostado manifesto de juristas e de abaixo -assinado contendo 16.149 assinaturas contra a anistia dos militares. Diz que os do cumen tos evidenciam a comoo social contra a anistia dos militares e seria imprescindvel a sua juntada aos autos. Determinei que a documentao fosse a eles juntada por linha.

    26. o relatrio.

    EXPLICAO

    O Sr. Ministro Cezar Peluso (Presidente): Est inscrita para falar, em nome do Congresso Nacional, a Doutora Gabrielle Tatith Pereira, mas, antes de lhe conceder a palavra, submeto Corte a questo da admissibilidade da interveno.

    que, eventualmente, ao Congresso poderia no ser reconhecido interesse institucional, mas creio que, diante da relevncia da matria, a Corte nada tem a objetar.

    Vamos ouvi -la.

  • R.T.J. 216 19

    VOTO

    O Sr. Ministro Eros Grau (Relator):

    Aspreliminares

    1. Aeste Tribunal incumbe, na arguio de descumprimento de preceito fundamental, aferir a compatibilidade entre textos normativos pr -cons ti tu cio-nais ou atos normativos municipais e a Constituio, se e quando controversa tal compatibilidade, desde que no seja possvel, a fim de que se a questione, a propositura de ao direta ou de ao declaratria. Refiro neste passo, por tudo, o acrdo lavrado na ADPF33 -MC, Rel. Min. Gilmar Mendes.

    No que concerne matria atinente s preliminares, vou me valer, em linhas gerais, para ser breve, do quanto observou Sua Excelncia o Pro cu ra dor--Ge ral da Repblica em seu parecer de fls.

    2. Quanto primeira delas, suscitada pela Advocacia -Geral da Unio ausncia de comprovao de controvrsia constitucional ou judicial quanto ao ato questionado, a norma veiculada pelo incisoI do pargrafo nico do art.1 da Lei 9.882/1999 prev o cabimento da arguio de descumprimento de preceito fundamental quando for relevante o fundamento da controvrsia constitucional sobre lei ou ato normativo fe deral, estadual ou municipal, includos os anteriores Constituio. H, a, ampliao da regra do caput do art.1, de sorte a admitir -se a arguio de descumprimento de preceito fundamental autnoma para questionar lei ou ato normativo de qualquer ente federativo em face de pre-ceito fundamental constitucional.

    Esta arguio de descumprimento de preceito fundamental amolda -se tanto hiptese do caput do art.1 da Lei 9.882/1999 (leso a preceito funda-mental por ato material, do poder pblico, de no promover investigaes e aes penais por indevida aplicao da lei), como tambm do seu pargrafo nico, incisoI (leso por produo de ato normativo fe deral que teria conferido inde-vidamente anistia a autores de crimes no passveis de receberem o benefcio).

    Aqui no se tratando de arguio de descumprimento de preceito funda-mental incidental j que no se pretende discutir, paralelamente a qualquer outro processo judicial, matria relativa validade de ato normativo, desne-cessria a comprovao da existncia de controvrsia judicial atinente aplica-o do preceito constitucional. Basta a demonstrao de controvrsia jurdica (em qualquer sede) sobre a validade da norma questionada (ou da sua interpretao).

    Est satisfatoriamente demonstrada a existncia de polmica quanto vali-dade constitucional da interpretao que reconhea a anistia aos agentes pbli-cos que praticaram delitos por conta da represso dissidncia poltica durante a ditadura militar.

    A divergncia em relao abrangncia da anistia penal de que se cogita notria mesmo no seio do Poder Executivo fe deral, tendo sido aportadas aos autos notas tcnicas que a comprovam. Esta Corte, ela mesmadiagnosticou a

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    presena de controvrsia sobre a interpretao a ser conferida anistia penal da Lei 6.683/1979. Confiram -se os votos prolatados na Ext 974 (Informativos 519 e 526 do STF). Isso suficiente para que resulte demonstrada a controvrsia ins-taurada. Rejeito a preliminar.

    3. AAdvocacia -Geral da Unio e o Senado Fe deral invocam tambm a pre-liminar de ausncia de impugnao de todo o complexo normativo relacionado ao tema. Ainicial haveria de ter questionado o 1 do art.4 da EC26, de 1985.

    Ocorre que essa preliminar confunde -se com o mrito. Ser, a seu tempo, examinada.

    Rejeito -a, pois.

    4. Mais, a arguio de descumprimento de preceito fundamental seria inca-bvel por estar voltada contra lei cujos efeitos se esgotaram na data da sua edio. Nada, porm, impede que leis temporrias sejam questionadas mediante arguio de descumprimento de preceito fundamental. Adoto, ainda neste ponto, razes expostas no parecer do Procurador -Geral da Repblica. Preliminar rejeitada.

    5. Noque tange preliminar do Ministrio da Defesa, relativa falta de indicao das autoridades responsveis pelos atos concretos de descumprimento de preceitos fundamentais, a fixao da interpretao pretendida pela arguente, se vier a ser fixada, abranger todos os agentes pblicos de uma ou outra forma relacionados persecuo penal, juzes, tribunais, membros do Ministrio Pblico e agentes da Polcia Judiciria que aplicaram, aplicam e podem vir a aplicar a Lei 6.683 em sentido incompatvel com a Constituio em aes judi-ciais e investigaes sob sua competncia.

    A observao no parecer do Procurador -Geral da Repblica , tambm neste ponto, correta: [a] ausncia de qualquer dificuldade na identificao das autoridades e rgos responsveis pela prtica dos atos questionados no impede que se advirta, todavia, que essa exigncia de identificao relativizada em relao pretensa arguio de descumprimento de preceito fundamental autnoma: nessa modalidade, realiza -se um controle objetivo da conformidade constitucional do ato normativo, sendo genricos os efeitos do pronunciamento judicial em relao ao descumprimento de preceito fundamental. (...) Vale aqui o quanto se reconhece s aes diretas de (in)constitucionalidade: que no h rus ou legitimados passivos, pois a validade constitucional de normas o que se discute. Emprecedentes, o STF, ao julgar procedente a alegao de descum-primento de preceitos fundamentais, aceitou os efeitos genricos naturais ao controle objetivo de constitucionalidade. NaADPF101/DF (Rel. Min. Crmen Lcia, julgamento em 24 -6 -2009), proposta pelo Presidente da Repblica, combatiam -se os efeitos das decises judiciais que autorizaram a importao de pneus usados. NaADPF130/DF (Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 30 -4--2009), proposta pelo Partido Democrtico Trabalhista (PDT), pedia -se a decla-rao da revogao total da Lei de Imprensa (Lei 5.250/1969). OSTF satisfez -se com tal formulao e soube reconhecer sem dificuldade as autoridades e rgos destinatrios das providncias cabveis.

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    Esta preliminar tambm rejeitada.

    6. OMinistrio da Defesa afirma por fim, contra o cabimento da arguio de descumprimento de preceito fundamental, a inutilidade de eventual deciso de procedncia. Isso porque os crimes ainda que no anistiados estariam prescritos. Caso viesse a ser julgada procedente, dela no resultaria nenhum efeito prtico.

    Sucede que a matria da prescrio no prejudica a apreciao do mrito da arguio de descumprimento de preceito fundamental, visto que somente se ultrapassada a controvrsia sobre a previso abstrata da anistia abrir -se - a opor-tunidade de apurao da prescrio. Apreliminar , destarte, rejeitada.

    Afastadas todas elas e tendo como presentes os requisitos da ao, dela tomo conhecimento.

    7. Registre -se, contudo, que o pedido constante da inicial item 5, alnea b menciona os crimes comuns praticados pelos agentes da represso contra opositores polticos, (sic) durante o regime militar (1964/1985).

    Ora, como a anistia foi concedida a todos que cometeram determinados crimes no perodo compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 19791, no alcanou crimes praticados aps 15 de agosto de 1979 (= praticados entre essa data e 1985). Demodo que o pedido resulta parcialmente impossvel: esta Corte no teria como declarar por ele no alcanado perodo de tempo ao qual o art.1 da Lei 6.683 no refere. Passo, porm, ao largo dessa circunstncia, at porque a ela nada foi oposto e o prejudicaria, o pedido, apenas parcialmente.

    Ainicial:primeirasconsideraes

    8. Ainicial compreende duas linhas de argumentao: [i] de uma banda visa contemplao de interpretao conforme Constituio, de modo a declarar -se que a anistia concedida pela lei aos crimes polticos ou conexos no se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da represso contra opo-sitores polticos, durante o regime militar; [ii] doutra, o no recebimento da Lei 6.683/1979 pela Constituio de 1988.

    Afirma inicialmente que determinada interpretao do preceito veiculado pelo 1 do seu art.1 seria com ela incompatvel, a interpretao a ele conferida no sentido de que a anistia estende -se aos crimes comuns, praticados por agen-tes pblicos contra opositores polticos, durante o regime militar.

    Por isso o pedido de interpretao conforme Constituio, de modo a declarar, luz dos seus preceitos fundamentais, que a anistia concedida pela citada lei aos crimes polticos ou conexos no se estende aos crimes comuns pra-ticados pelos agentes da represso contra opositores polticos, durante o regime militar (1964/1985).

    1 Art.1 da Lei 6.683/1979.

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    A Associao Juzes para a Democracia (AJpD) afirma, em razes aporta-das aos autos, que neles se trata de delinear o conceito de crimes polticos e cri-mes conexos com estes, previstos na Lei 6.683/1979, para que seja determinada a sua extenso.

    9. Aredao do texto seria, segundo a inicial, propositadamente obscura (a inicial menciona a redao da norma). Eassim seria porque se procurou (sic) estender a anistia criminal de natureza poltica aos agentes do Estado encarrega-dos da represso. Da por que a norma (o texto, digo eu) seria obscura e tecnica-mente inepta (fl. 13inicial). V -se bem que, nos termos da inicial, a obscuridade da norma (do texto) pretenderia esconder o que se procurou. Oque se procu-rou, segundo a inicial, foi a extenso da anistia criminal de natureza poltica aos agentes do Estado encarregados da represso.

    10. Permito -me, neste passo, deixar bem vincados dois pontos, o primeiro dizendo com o fato de que todo, todo e qualquer texto normativo obscuro at o momento da interpretao.

    Hoje temos como assentado o pensamento que distingue texto normativo e norma jurdica, a dimenso textual e a dimenso normativa do fenmeno jur-dico. Ointrprete produz a norma a partir dos textos e da realidade. Permitam--me, Senhores Ministros, uma breve digresso, que no ser v, eis que a ela voltarei na parte final deste voto, incisivamente.

    A interpretao do direito tem carter constitutivo no meramente declaratrio, pois e consiste na produo, pelo intrprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurdicas a serem aplicadas soluo de determinado caso, soluo operada mediante a definio de uma norma de deci-so. Interpretar/aplicar dar concreo (= concretizar) ao direito. Neste sentido, a interpretao/aplicao do direito opera a sua insero na realidade; realiza a mediao entre o carter geral do texto normativo e sua aplicao particular; em outros termos, ainda: a sua insero na vida.

    A interpretao/aplicao vai do universal ao particular, do transcen-dente ao contingente; opera a insero das leis (= do direito) no mundo do ser (= mundo da vida). Como ela se d no quadro de uma situao determinada, expe o enunciado semntico do texto no contexto histrico presente, no no contexto da redao do texto.

    Interpretar o direito caminhar de um ponto a outro, do universal ao sin-gular, atravs do particular, conferindo a carga de contingencialidade que faltava para tornar plenamente contingencial o singular2. Asnormas resultam da inter-pretao e podemos dizer que elas, enquanto textos, enunciados, disposies, no dizem nada: elas dizem o que os intrpretes dizem que elas dizem3.

    2 Sobre a interpretao do direito, vide meu Ensaio e discurso sobre a interpretao/aplicao do direito. 5.ed. So Paulo: Malheiros, 2009.3 Meu Ensaio e discurso sobre a interpretao/aplicao do direito, cit., p. 86.

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    11. Sefor assim e assim de fato , todo texto ser obscuro at a sua interpretao, isto , at a sua transformao em norma. Por isso mesmo afirmei, em outro contexto, que se impe observarmos que a clareza de uma lei no uma premissa, mas o resultado da interpretao, na medida em que apenas se pode afirmar que a lei clara aps ter sido ela interpretada4. Da no caber a afirmao de que o texto de que nesta ao se cuida seria, por obscuridade, tecnicamente inepto.

    Observo apenas, quanto a esse primeiro ponto, aspecto ao qual adiante retornarei. que como a interpretao do direito consiste na produo, pelo intrprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurdicas cumpre definirmos qual a realidade, qual o momento da realidade a ser tomado pelo intrprete da Lei 6.683/1979.

    12. Osegundo ponto a ser considerado est em que se o que se procu-rou, segundo a inicial, foi a extenso da anistia criminal de natureza poltica aos agentes do Estado encarregados da represso a reviso desse desgnio haveria de ser procedida por quem procurou estend -la aos agentes do Estado encarre-gados da represso, isto , pelo Poder Legislativo. No pelo Poder Judicirio. Tambm a ele adiante voltarei.

    Afrontaapreceitosfundamentais

    13. Permito -me examinar as duas linhas de argumentao compreendi-das na inicial na seguinte ordem: desde j a atinente ao no recebimento da Lei 6.683/1979 pela Constituio de 1988; aps, a que pretende uma interpretao con-forme a Constituio, de modo a declarar -se que a anistia concedida pela citada lei aos crimes polticos ou conexos no se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da represso contra opositores polticos, durante o regime militar.

    14. Aarguente afirma ser invlida a conexo criminal que aproveitaria aos agentes polticos que praticaram crimes comuns contra opositores polticos, pre-sos ou no, durante o regime militar. Essa conexo criminal, que fundamentaria a interpretao objeto da arguio de descumprimento de preceito fundamental, no seria vlida porque ofende vrios preceitos fundamentais inscritos na Constituio.

    15. Oprimeiro deles seria o da isonomia em matria de segurana, desta-cado do art.5, caput, da Constituio do Brasil.

    Sucede que a arguente inicialmente no contesta exclusivamente uma deter-minada interpretao do preceito veiculado pelo 1 do art.1 da Lei 6.683/1979, mas o prprio texto da lei. Ora, delineada a distino entre texto e norma, teremos a arguente no investe, nesse passo, contra uma determinada norma resultante da interpretao do texto do 1 do art.1 da Lei 6.683/1979. Oque, segundo ela, afrontaria a isonomia seria o prprio texto, que estende a anistia a classes abso-lutamente indefinidas de crimes e, despropositadamente diz a inicial, usa do adjetivo relacionados, cujo significado no esclarece e a doutrina ignora, alm

    4 Meu Ensaio e discurso sobre a interpretao/aplicao do direito, cit., p. 74 -75.

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    de mencionar crimes praticados por motivao poltica. A isonomia estaria sendo afrontada verdade que neste ponto a inicial menciona a interpretao questionada da Lei n. 6.683, de 1979 na medida em que nem todos so iguais perante a lei em matria de anistia criminal. Isso porque uns praticaram crimes polticos, necessariamente definidos em lei, e foram processados e condenados. Mas h, tambm, os que cometeram delitos, cuja classificao e reconhecimento no foram feitos pelo legislador, e sim deixados discrio do Poder Judicirio, conforme a orientao poltica de cada magistrado.

    Que a arguente investe neste passo contra o texto da lei, isso reafirmado na aluso ao 2 do seu art.1, que no objeto da arguio de descumprimento de preceito fundamental.

    certo, pois, que o argumento da arguente no prospera, mesmo porque h desigualdade entre a prtica de crimes polticos e crimes conexos com eles. Alei poderia, sim, sem afronta isonomia que consiste tambm em tratar desigual-mente os desiguais, anisti -los, ou no, desigualmente.

    16. Osegundo preceito fundamental malferido pela interpretao questio-nada do 1 do art.1 da Lei 6.683/1979 estaria contido no incisoXXXIII do art.5 da Constituio, que assegura a todos o direito de receber dos rgos pblicos informaes de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral.

    A Lei 6.683/1979, segundo a arguente, impediu que as vtimas dos agen-tes da represso e o povo brasileiro tomassem conhecimento da identidade dos responsveis pelos horrores perpetrados, durante dois decnios, pelos que haviam empalmado o poder. Diz ela que a lei, [a]o conceder anistia a pessoas indeterminadas, ocultas sob a expresso indefinida crimes conexos com crimes polticos, (...) impediu que as vtimas de torturas, praticadas nas masmorras policiais ou militares, ou os familiares de pessoas assassinadas por agentes das foras policiais e militares, pudessem identificar os algozes, os quais, em regra, operavam nas prises sob codinomes.

    Ocorre que o que caracteriza a anistia a sua objetividade, o que importa em que esteja referida a um ou mais delitos, no a determinadas pessoas. Liga -se a fatos, no estando direcionada a pessoas determinadas. Aanistia mesmo para ser concedida a pessoas indeterminadas.

    17. No vejo, de outra parte, como se possa afirmar que a Lei 6.683/1979 impede o acesso a informaes atinentes atuao dos agentes da represso no perodo compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.

    Permito -me neste passo reproduzir trecho do parecer do Procurador -Geral da Repblica:

    evidente que reconhecer a legitimidade da Lei da Anistia no significa apa-gar o passado.

    105. Nesse sentido, o estado democrtico de direito, para alm da discusso acerca da punibilidade, precisa posicionar -se sobre a afirmao e concretizao do direito fundamental verdade histrica.

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    106. Com a preciso habitual, o Ministro Seplveda Pertence, em entrevista antes referida, afirmou que

    viabilizar a reconstituio histrica daqueles tempos um imperativo da dignidade nacional. Para propici -la s geraes de hoje e de amanh, necessrio descobrir e escancarar os arquivos, estejam onde estiverem, seja quem for que os detenha.107. Romper com a boa -f dos atores sociais e os anseios das diversas classes

    e instituies polticas do final dos anos 70, que em conjunto pugnaram como j demonstrado por uma Lei de Anistia ampla, geral e irrestrita, significaria tambm prejudicar o acesso verdade histrica.

    108. Oque se prope, ao invs, o desembarao dos mecanismos existentes que ainda dificultam o conhecimento do ocorrido naquelas dcadas. Nesta toada, est pendente de julgamento a ADI n 4077, proposta pelo anterior Procurador -Geral da Repblica, que questiona a constitucionalidade das Leis 8.159/91 e 11.111/05.

    109. O julgamento da ADI n 4077 sensvel para resolver a controvrsia poltico -jurdica sobre o acesso a do cumen tos do regime anterior. Seesse Supremo Tribunal Fe deral reconhecer a legitimidade da Lei da Anistia e, no mesmo com-passo, afirmar a possibilidade de acesso aos do cumen tos histricos como forma de exerccio do direito fundamental verdade, o Brasil certamente estar em condies de, atento s lies do passado, prosseguir na construo madura do futurodemocrtico.

    O argumento de que se cuida, ancorado no incisoXXXIII do art.5 da Constituio, no prospera.

    18. Oterceiro preceito fundamental afrontado pela interpretao questio-nada do 1 do art.1 da Lei 6.683/1979 estaria contido nos princpios democrtico e republicano.

    A inicial diz que os que cometeram crimes comuns contra opositores polticos, durante o regime militar, exerciam funes pblicas e eram, por con-seguinte, remunerados com recursos tambm pblicos, isto , dinheiro do povo. Da retirada a seguinte concluso: Nestas condies, a interpretao ques-tionada da Lei n.6.683 representaclaraediretaofensaaoprincpiodemocrticoeaoprincpiorepublicano,queembasamtodaanossaorganizaopoltica (negritos no original).

    Mais, diz a inicial que a lei foi votada pelo Congresso Nacional napocaemqueosseusmembroserameleitossoboplacetdoscomandantesmilitares a a aluso a senadores escolhidos por via de eleio indireta (os chamados Senadores Binicos) e ela, a lei, foisancionadaporumChefedeEstadoqueeraGeneraldoExrcitoeforaguindadoaessaposio, (sic) nopelopovo,masporseuscompanheirosdefarda (negritos no original).

    Em consequncia, o mencionado diploma legal, para produzir o efeito de anistia de agentespblicosquecometeramcrimescontraopovo, deve-ria ser legitimado, aps a entrada em vigor da atual Constituio, pelo rgo legislativo oriundo de eleies livres, ou ento diretamente pelo povo soberano, mediante referendo (Constituio Fe deral, art.14). Oque no ocorreu (negritos no original).

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    Em segundo lugar, num regime autenticamente republicano e no auto-crtico os governantes no tm poder para anistiar criminalmente, quer eles prprios, quer os funcionrios que, ao delinquirem, executaram suas ordens.

    19. No vejo realmente como possam, esses argumentos, sustentar -se, menos ainda justificar a arguio de descumprimento de preceito fundamental.

    Pois certo que, a dar -se crdito a eles, no apenas o fenmeno do recebimento a recepo do direito anterior Constituio de 1988 seria afastado, mas tambm outro, este verdadeiramente um fenmeno, teria ocorrido: toda a legislao anterior Constituio de 1988 seria, porm exclusivamente por fora dela, formalmente inconstitucional. Umautntico fenmeno, a exigir legitima-o de toda essa legislao pelo rgo legislativo oriundo de eleies livres ou ento diretamente pelo povo soberano, mediante referendo.

    Os argumentos adotados na inicial vo ao ponto de negar mesmo a anis-tia concedida aos crimes polticos, aqueles de que trata o art.1 da lei, a anistia concedida aos acusados de crimes polticos, que agiram contra a ordem poltica vigente no Pas no perodo compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Acontradio , como se v, inarredvel.

    O que se pretende extremamente contraditrio: a ab -rogao da anistia em toda sua amplitude, conduzindo inclusive a tormentosas e insuportveis con-sequncias financeiras para os anistiados que receberam indenizaes do Estado, compelidos a restituir aos cofres pblicos tudo quanto receberam at hoje a ttulo de indenizao. Aprocedncia da ao levaria a este funesto resultado.

    Tambm este argumento, que diria com os princpios democrtico e republicano, no prospera.

    O outro argumento num regime autenticamente republicano e no auto-crtico os governantes no tm poder para anistiar criminalmente, quer eles pr-prios, quer os funcionrios que, ao delinquirem, executaram suas ordens ser considerado mais adiante, ao final deste voto.

    20. Oquarto preceito fundamental afrontado pela interpretao questio-nada do 1 do art.1 da Lei 6.683/1979 seria o da dignidade da pessoa humana e do povo brasileiro, que no pode ser negociada.

    A arguente diz que o derradeiro argumento dos que justificam, a todo custo, a encoberta incluso na Lei n. 6.683 dos crimes cometidos por funcion-rios do Estado contra presos polticos o de que houve, no caso, um acordo para permitir a transio do regime militar ao Estado de Direito.

    Afirma -o para inicialmente questionar a existncia desse acordo quem foram as partes nesse acordo? Indaga e em seguida afirmar que, tendo ele exis-tido, fora reconhecer que o Estado institudo com a liquidao do regime mili-tar nasceu em condies de grave desrespeito pessoa humana, contrariamente ao texto expresso da nova Constituio Fe deral: ARepblicaFederativadoBrasil(...)constituiseemEstadoDemocrticodeDireitoetemcomofundamentos:(...)adignidadedapessoahumana.(art.1,III) (negritos no original).

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    Trata -se, tambm neste ponto, de argumentao exclusivamente poltica, no jurdica, argumentao que entra em testilhas com a Histria e com o tempo. Pois a dignidade da pessoa humana precede a Constituio de 1988 e esta no poderia ter sido contrariada, em seu art.1, III, anteriormente a sua vigncia. A arguente desqualifica fatos histricos que antecederam a aprovao, pelo Congresso Nacional, da Lei 6.683/1979. Diz mesmo que no suposto acordo poltico, jamais revelado opinio pblica, a anistia aos responsveis por delitos de opinio serviu de biombo para encobrir a concesso de impunidade aos crimi-nosos oficiais, que agiam em nome do Estado, ou seja, por conta de todo o povo brasileiro e que a dignidade das pessoas e do povo foi usada como moeda de troca em um acordo poltico.

    21. Ainicial ignora o momento talvez mais importante da luta pela rede-mocratizao do Pas, o da batalha da anistia, autntica batalha. Toda a gente que conhece nossa Histria sabe que esse acordo poltico existiu, resultando no texto da Lei 6.683/1979. Aprocura dos sujeitos da Histria conduz incompreenso da Histria. expressiva de uma viso abstrata, uma viso intimista da Histria, que no se reduz a uma esttica coleo de fatos desligados uns dos outros. Oshomens no podem faz -la seno nos limites materiais da realidade. Para que a possam fazer, a Histria, ho de estar em condies de faz -la. Est l, nO 18 Brumrio de Lus Bonaparte5: Os homens fazem sua prpria histria, mas no a fazem como querem, no a fazem sob circunstncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.

    A inflexo do regime (= a ruptura da aliana entre os militares e a burgue-sia) deu -se com a crise do petrleo de 1974, mas a formidvel luta pela anistia luta que, com o respaldo da opinio pblica internacional, uniu os culpados de sempre a todos os que eram capazes de sentir e pensar as liberdades e a democracia e revelou figuras notveis como a do bravo senador Teotonio Vilela; luta encetada inicialmente por oito mulheres reunidas em torno de Terezinha Zerbini, do que resultou o CBD (Comit Brasileiro pela Anistia); pelos autnticos do MDB, pela prpria OAB, pela ABI ( frente Barbosa Lima Sobrinho), pelo IAB, pelos sindicatos e confederaes de trabalhadorese at por alguns dos que apoiaram o movimento militar, como o general Peri Bevilcqua, ex -Ministro do STM (e foram tantos os que assinaram manifestos em favor do movimento militar!) a formidvel luta pela anistia expressiva da pgina mais vibrante de resistncia e atividade democrtica da nossa Histria. Nos estertores do regime viam -se de um lado os exilados, que criaram comits pr -anistia em quase todos os pases que lhes deram refgio, a Igreja ( frente a CNBB) e presos polticos em greve de fome que a votaoda anistia (desqualificada pela inicial) salvou da morte certa pois no recuariam da greve e j muitos estavam debilitados, como os jornais da poca fartamente documentam de outro os que, em repre-slia ao acordo que os democratas esboavam com a ditadura, em torno da lei, responderam com atos terroristas contra a prpria OAB, com o sacrifcio de

    5 Karl Marx, s/ indicao de tradutor, Editorial Vitria, Rio de Janeiro, 1956, p. 17.

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    dona Lydia; na Cmara de Vereadores do Rio de Janeiro, com a mutilao do secretrio do combativo Vereador Antonio Carlos; com duas bombas na casa do ento Deputado do chamado grupo autntico do MDB Marcello Cerqueira, um dos negociadores dos termos da anistia; com atentados contra bancas de jornal, contra O Pasquim, contra a Tribuna de Imprensa e tantos mais. Reduzir a nada essa luta, inclusive nas ruas, as passeatas reprimidas duramente pelas Polcias Militares, os comcios e atos pblicos, reduzir a nada essa luta tripudiar sobre os que, com desassombro e coragem, com desassombro e coragem lutaram pela anistia, marco do fim do regime de exceo. Sem ela, no teria sido aberta a porta do Colgio Eleitoral para a eleio do Dr. Tancredo, como diziam os que pisavam o cho da Histria. Essas jornadas, inesquecveis, foram heroicas. No se as pode desprezar. Amim causaria espanto se a brava OAB sob a direo de Raimundo Faoro e de Eduardo Seabra Fagundes, denodadamente empenhada nessa luta, agora a desprezasse, em autntico venire contra factum proprium.

    22. Leio trechos de depoimento de Dalmo de Abreu Dallari6, que sofreu ele mesmo relata priso e sequestro pela ousadia de no transigir e no calar, empenhado em localizar desaparecidos, salvar torturados, libertar patriotas vti-mas de priso arbitrria, pregando sempre a restaurao democrtica. Assim, diz ele, chegou -se Lei da Anistia:

    Ns sabamos que seria inevitvel aceitar limitaes e admitir que crimi-nosos participantes do governo ou protegidos por ele escapassem da punio que mereciam por justia, mas considervamos conveniente aceitar essa distoro, pelo benefcio que resultaria aos perseguidos e s suas famlias e pela perspectiva de que teramos ao nosso lado companheiros de indiscutvel vocao democrtica e amadurecidos pela experincia. (...) A ideia inicial de anistia era muito genrica e resultou no lema anistia ampla, geral e irrestrita, mas logo se percebeu que seria necessria uma confrontao de propostas, pois os que ainda mantinham o comando poltico logo admitiram que seria impossvel ignorar a proposta dos de-mocratas, mas perceberam que uma superioridade de fora lhes dava um poder de negociao e cuidaram de usar a ideia generosa de anistia para dizer que no seria justo beneficiar somente presos polticos e exilados, devendo -se dar garantia de impunidade queles que, segundo eles, movidos por objetivos patriticos e para defender o Brasil do perigo comunista, tinham combatido a subverso, prendendo e torturando os inimigos do regime. Nasceu assim a proposta de anistia recproca. Deincio, procurou -se limitar a anistia aos perseguidos polticos, dizendo -se que no deveriam ser anistiados os que tivessem cometido crimes de sangue. Isso foi, afinal, sintetizado numa enumerao de crimes que no seriam anistiados, compre-endendo, segundo a Lei da Anistia (Lei n. 6683, de 28 de agosto de 1979), os que tivessem sido condenados pela prtica de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. Emsentido oposto, beneficiando os que abusando de uma funo pblica tivessem cometido crimes [.] [F]oram abrangidos os que tivessem cometido crimes polticos ou conexos com esses. Assim, aquele que matou algum numa sesso de tortura estaria anistiado porque seu principal objetivo era combater um adversrio poltico. Ohomicdio seria apenas conexo de outro crime, a ao arbi-trria por motivos polticos, que seria o principal. Assim se chegou Lei da Anistia.

    6 Depoimento prestado Fundao Perseu Abramo, http://www2.fpa.org.br/contedo/dalmo -dallari.

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    23. Tem razo a arguente ao afirmar que a dignidade no tem preo. Ascoi-sas tm preo, as pessoas tm dignidade. Adignidade no tem preo, vale para todos quantos participam do humano.

    Estamos, todavia, em perigo quando algum se arroga o direito de tomar o que pertence dignidade da pessoa humana como um seu valor (valor de quem se arrogue a tanto). que, ento, o valor do humano assume forma na substncia e medida de quem o afirme e o pretende impor na qualidade e quantidade em que o mensure. Ento o valor da dignidade da pessoa humana j no ser mais valor do humano, de todos quantos pertencem humanidade, porm de quem o proclame conforme o seu critrio particular. Estamos ento em perigo, submis-sos tirania dos valores. Ento, como diz Hartmann7, quando um determinado valor apodera -se de uma pessoa, tende a erigir -se em tirano nico de todo o ethos humano, ao custo de outros valores, inclusive dos que no lhe sejam, do ponto de vista material, diametralmente opostos.

    24. Sem de qualquer modo negar o que diz a arguente ao proclamar que a dignidade no tem preo (o que subscrevo), tenho que a indignidade que o come-timento de qualquer crime expressa no pode ser retribuda com a proclamao de que o instituto da anistia viola a dignidade humana. Deresto, ao acordo pol-tico que resultou no texto da Lei 6.683/1979 e cujas partes a arguente indaga quais teriam sido, retornarei linhas adiante.

    O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afirmar a invalidade da conexo criminal que aproveitaria aos agentes polticos que pra-ticaram crimes comuns contra opositores polticos, presos ou no, durante o regime militar, esse argumento no prospera.

    AinterpretaoconformeaConstituioeoscrimesconexos

    25. Noque concerne segunda linha de argumentao enunciada na ini-cial, sustenta -se que determinada interpretao do preceito veiculado pelo 1 do art.1 da Lei 6.683/1979 incompatvel com a Constituio. Essa interpretao, incompatvel com a Constituio, seria a de que a anistia estende se aos crimes comuns, praticados por agentes pblicos contra opositores polticos, durante o regime militar. Da o pedido de interpretao conforme a Constituio, de modo a declarar, luz dos seus preceitos fundamentais, que a anistia concedida pela citada lei aos crimes polticos ou conexos no se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da represso contra opositores polticos, durante o regime militar (1964/1985).

    A conexo criminal implicaria uma identidade ou comunho de propsitos ou objetivos nos vrios crimes praticados. Seo agente um s, a lei reconhece

    7 Ethik, 3. ed., Walter de Gruyter & Co., Berlin, 1949, p. 576 (Jeder Wert hat wenn er einmal Macht gewonnen hat ber eine Person die Tendenz, sich zum alleinigen Tyrannen des ganzen menschlichen Ethos aufzuwerfen, und zwar auf Kosten anderer Werte, auch solcher, die ihm nicht material entgegengesetzt sind ).

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    a ocorrncia de concurso material ou formal de crimes (Cdigo Penal, arts.69 e 70); se os agentes forem vrios, h, tendo em vista a comunho de propsitos ou objetivos, coautoria (Cdigo Penal, art.29). Etambm h conexo criminal quando os agentes criminosos atuaram uns contra os outros, embora aqui se trate de regra de unificao de competncia, de modo a evitar julgamentos contradit-rios; no h, ento, norma de direito material.

    Por isso os crimes praticados por agentes pblicos contra opositores pol-ticos durante o regime militar seriam crimes comuns. No eram crimes contra a segurana nacional e a ordem poltica e social (Decreto -Lei 314/1967, Decreto--Lei 898/1969 e Lei 6.620/1978). Arepresso a esses crimes era implementada mediante a prtica de crimes comuns, sem que houvesse comunho de propsitos e objetivos entre agentes criminosos de um e de outro lado. Deoutra banda, alm de a regra de conexo ser unicamente processual no ltimo caso, os acusados de crimes polticos diz a inicial no agiram contra os que os torturaram e mata-ram, dentro e fora das prises do regime militar, mas contra a ordem poltica vigente no Pas naquele perodo.

    A seguinte concluso parcial , destarte, extrada da inicial: a norma vei-culada pelo 1 do art.1 da Lei 6.683/1979 tem por objeto, exclusivamente, oscrimescomuns,cometidospelosmesmosautoresdoscrimespolticos.Elanoabrangeosagentespolticosquepraticaram,duranteoregimemilitar,crimescomunscontraopositorespolticos,presosouno (redao da inicial, fl. 16; negritos no original). Dizendo -o de outro modo: tem por objeto, exclusiva-mente, os crimes comuns, cometidos pelos mesmos autores dos crimes polticos; no abrange os crimes comuns praticados contra opositores polticos, presos ou no, por agentes polticos durante o regime militar.

    A Associao Juzes para a Democracia apresentou razes pelas quais pos-tula a procedncia do pedido formulado, nos termos do [art.] 6, 1, da Lei 9.882/ 1999, (sic) e no art.131, 3, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Fe deral.

    Diz que se trata de delinear o conceito de crimes polticos e crimes conexos com estes, previstos na Lei 6.683/1979, para que seja determinada a sua extenso.

    26. Observo neste passo, parenteticamente, que no exatamente isso o que ocorre, visto que o 1 do art.1 da Lei 6.683/1979 define crimes conexos aos crimes polticos: [c]onsideram -se conexos, para efeitos deste artigo, os cri-mes de qualquer natureza relacionados com os crimes polticos ou praticados por motivao poltica. No me estenderei aqui em debate acadmico a respeito da distino entre conceitos e definies, mas certo que a definio jurdica explicita o termo de um determinado conceito jurdico8. O1 do art.1 da Lei 6.683/1979 define crimes conexos aos crimes polticos para os efeitos desse art.1. So crimes conexos aos crimes polticos os crimes de qualquer natureza relacionados com os crimes polticos ou praticados por motivao poltica. Podem ser de qualquer natureza, mas [i] ho de ter estado relacionados com

    8 Vide meu Ensaio e discurso sobre a interpretao/aplicao do direito, cit., p. 237 -238.

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    os crimes polticos ou [ii] ho de ter sido praticados por motivao poltica. So crimes outros que no polticos; logo, so crimes comuns, porm [i] relacionados com os crimes polticos ou [ii] praticados por motivao poltica.

    27. Amatria h, porm, de ser examinada luz da Constituio. Por isso no me deterei no quadro da infraconstitucionalidade seno para lembrar que a aluso a crimes conexos a crimes polticos aparece j na anistia concedida, em janeiro de 1916, a civis e militares que, direta ou indiretamente, se envolveram em movimentos revolucionrios no Estado do Cear (Decreto 3.102, de 13 de janeiro de 1916, do Presidente do Senado Fe deral). Posteriormente isso se repete [i] no Decreto 3.163, de 27 de setembro de 1916, de Wenceslau Braz, Ministro da Justia Carlos Maximilano, decreto que concedeu anistia s pessoas envolvidas em fatos polticos e conexos ocorridos no Estado do Esprito Santo em virtude da sucesso presidencial estadual; [ii] no Decreto 19.395, de 6 de novembro de 1930, que concedeu anistia a todos os civis e militares envolvidos nos movimen-tos revolucionrios ocorridos no Pas; [iii] no Decreto 24.297, de 28 de maio de 1934, que concedeu anistia aos participantes do movimento revolucionrio de 1932; [iv] no Decreto -Lei 7.474, de 18 de abril de 1945, que concedeu anistia a todos quantos tenham cometido crimes polticos desde 16 de julho de 1934 at a data de sua publicao, cujo 2 do art.1 considera conexos, para os efeitos desse mesmo preceito, os crimes comuns praticados com fins polticos e que tenham sido julgados pelo Tribunal de Segurana Nacional.

    Outrossim, a expresso anistia ampla e irrestrita ter surgido no art.1 do Decreto -Legislativo 22, de 23 de maio de 1956, que a concedeu a todos os civis e militares que, direta ou indiretamente, se envolveram nos movimentos revolucionrios ocorridos no Pas a partir de 10 de novembro de 1955 at 1 de maro de 1956.

    28. Esta expresso, crimes conexos a crimes polticos, conota sentido a ser sindicado no momento histrico da sano da lei. Sempre h de ter sido assim. A chamada Lei de Anistia diz com uma conexo sui generis, prpria ao momento histrico da transio para a democracia. Tenho que a expresso ignora, no contexto da Lei 6.683/1979, o sentido ou os sentidos correntes, na doutrina, da chamada conexo criminal. Refere o que se procurou, segundo a inicial, vale dizer, estender a anistia criminal de natureza poltica aos agentes do Estado encarregados da represso.

    Esse significado, de conexo sui generis, assinalado no voto do Ministro Decio Miranda no RHC59.834: no estamos diante do conceito rigoroso de conexo, mas de um conceito mais amplo, em que o legislador considerou exis-tente esta figura processual, desde que se pudesse relacionar uma infrao a outra. Lembre -se bem o texto do preceito do 1 do art.1: Consideram -se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes polticos ou praticados por motivao poltica.

    29. Aarguente tem razo: o legislador procurou estender a conexo aos crimes praticados pelos agentes do Estado contra os que lutavam contra o Estado

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    de exceo. Da o carter bilateral da anistia, ampla e geral. Anistia que somente no foi irrestrita porque no abrangia os j condenados e com sentena transi-tada em julgado, qual o Supremo assentou, veremos logo adiante pela prtica de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.

    Parenteticamente transcrevo, neste passo, o que afirmou o Ministro Julio de S Bierrenbach quando do julgamento pelo Superior Tribunal Militar, em sesso do dia 6 de fevereiro de 1980, do Recurso Criminal 5.367, Rel. Min. Jacy Guimares Pinheiro:

    Em 28 de junho prximo passado, ao tomar conhecimento do projeto da Lei da Anistia, que me foi trazido por um jornalista, critiquei o 2 do art.1 daquele projeto tal como estava redigido. Seo Governo desejava excetuar dos benefcios da anistia os indivduos que praticaram crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, no deveria utilizar a expresso os que foram condenados pela prtica de tais crimes: melhor teria sido utilizar a palavra denunciados, abrangendo todos os processados por aqueles crimes que se constituiriam na exceo da Lei da Anistia. Como todos sabemos, condenados so aqueles cuja condenao transitou em julgado, isto , quando no mais cabe recurso deciso judicial.

    Da forma em que estava no projeto, os condenados definitivamente por crimes de assalto, sequestro, atentado pessoal e terrorismo no seriam anistiados, ao passo em que os acusados pelos mesmos crimes, mas com processos em curso, seriam contemplados com a anistia! O projeto era injusto, pois beneficiaria os revis, en-quanto poderia manter no crcere indivduos menos responsveis pelo mesmo delito, porm, j condenados. Aceleridade da Justia, to desejada por todos ns, segundo o projeto, era contra os rus. Oscondenados no seriam anistiados enquanto aqueles, cujos processos arrastavam -se na Justia Militar, receberiam o benefcio da anistia. Sem ser jurista, nem ao menos bacharel em direito, fiz esta e outras crticas construtivas ao projeto da lei na data em que o mesmo foi publicado, acentuando que o projeto ainda no havia passado no Congresso e que eu me curvaria diante da deciso que fosse sancionada. Minhas declaraes, com um nico propsito construtivo, evitar iniquidades, foram publicadas nos jornais de 1 de julho de 1979. Trs ou quatro dias depois, um dos lderes do Governo no Congresso afirmava imprensa que as injus-tias seriam corrigidas com indulto presidencial. Oprojeto ainda no era lei, pois a mesma s foi sancionada dois meses depois, em 28-8-79, e j admitia injustias (...).(Negritos e grifos no original.)

    A propsito, lembre -se ainda que o STM, no dia 21 de novembro de 1979, no julgamento do Recurso Criminal 5.341, Rel. Min. Faber Cintra, concedeu a anistia do art.1 da Lei 6.683/1979 a quem, condenado por delito dela excludo pelo seu 2, j cumprira inteiramente a pena que lhe fora imposta; isso em afir-mando que o cumprimento da pena acarreta a cessao da punibilidade, exclusi-vamente a ela dizendo respeito, ao passo que a anistia diz com o fato perdoado. Nomesmo sentido, alis, as decises tomadas nos Recursos Criminais 5.338, 5.459, 5.666 e 5.751 e na Apelao 37.808.

    A verdade que a anistia da Lei 6.683/1979 somente no foi totalmente ampla por conta do que o 2 do seu art.1 definiu: a excluso, a ela, dos conde-nados pela prtica de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. No foi ampla plenamente, mas seguramente foi bilateral.

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    AjurisprudnciadoSupremoTribunalFederal

    30. Desta Corte coleciono algumas decises que, de uma forma ou de outra, importam ao quanto estamos, nestes autos, a considerar. Fao -o sem esquecer o histrico aresto lavrado na AOE13, Rel. p/o ac. Min. Marco Aurlio, em 1992, na qual se cuidava do seguinte: um brigadeiro da Aeronutica que a memria nacio-nal h de esquecer tentou usar uma unidade da FAB, conhecida como Parasar, para a prtica de atos terroristas na cidade do Rio de Janeiro; o Capito Srgio Ribeiro Miranda de Carvalho impediu -o, contrariando ordens recebidas desse brigadeiro; foi reformado, no posto que ocupava, por haver se recusado a praticar atos de terrorismo (assassinato de polticos e outros cidados transcrevo voto do Ministro Marco Aurlio, exploso do gasmetro do Rio de Janeiro e des-truio de instalaes de fora e luz, atos que seriam atribudos aos comunistas, seguindo -se, como consectrio, a caa a estes ltimos); como fora j punido com priso de 25 dias, sobrevindo a reforma de carter punitivo, o Tribunal reconhe-ceu a duplicidade punitiva, bem assim que a segunda punio deveu -se a simples vindita, reconhecendo a existncia do vcio grave, por duplicidade de punio, mencionado no art.9 do ADCT da Constituio de 1988.

    31. Importa em especial considerarmos, no entanto, em relao ao carter amplo das anistias concedidas entre ns, os julgados que passo a rememorar, ini-cialmente os atinentes ao carter amplo das anistias.

    31.1 Para comear, entre os acrdos mais antigos desta Corte, o HC1.386, Rel. Min. Piza e Almeida, em 4 de julho de 1900, que, ao considerar a anistia concedida pelo Decreto 310, de 21 de outubro de 1895, interpretou -a de modo a aplic -la a crimes de morte praticados em 12 de outubro de 1896; diz o acrdo: consequncia do carter geral da anistia que ela se estenda aos delitos acess-rios que se prendem ao crime poltico.

    31.2 No HC34.866, Rel. Min. Luiz Galloti, em 1957, afirmou o carter amplo do Decreto Legislativo 27, de 20 de junho de 1956; a anistia nele conce-dida diz a emenda no protege apenas a participao em greve, mas tambm os crimes com ela conexos, excludo o homicdio doloso; isso porque o art.2 do decreto legislativo expressamente os exclua do benefcio.

    31.3 No RC1.019, Rel. Min. Ary Franco, em 1957, estendeu a ato ocorrido aps 1 de maro de 1956; mas, antes de sua publicao, os efeitos do Decreto Legislativo 22, de 23 maio do mesmo ano, que anistiou de modo amplo e irrestrito todos aqueles que houvessem praticado atos entre 10 de novembro de 1955 e 1 de maro de 1956, relacionados com o movimento ocorrido a 10 de novembro de 1955.

    31.4 No RC1.025, Rel. Min. Hahnemann Guimares, em 1958, afir mou--se o carter amplo da anistia concedida aos jornalistas, em relao a delitos de imprensa, pelo Decreto Legislativo 27.

    31.5 A ementa do RHC59.834, Rel. p/o ac. Min. Cordeiro Guerra, em 1982, linhas acima referido, diz: Anistia. Interpretao do art.1 e seu 1 da Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979. Crime de desero praticado contempornea

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    ou antecedentemente aos crimes polticos anistiados, (sic) considera -se conexo ou relacionado com os crimes polticos para o reconhecimento da extino da punibilidade, por fora do 1 do art.1 da Lei 6.683, de 28-8-1979.

    32. Que o Supremo Tribunal Fe deral interpreta essa matria de modo benfico, disso do conta, exemplarmente, os acrdos lavrados nos RC1.396 e RC1.400, Relatores, respectivamente, os Ministros Xavier de Albuquerque e Leito de Abreu, j em setembro de 1979, nos quais unanimemente atribuiu -se expresso condenados, no 2 do art.1 da Lei 6.683/1979, o significado de condenado por sentena passada em julgado. Nomesmo sentido, o RC1.410, Rel. Min. Decio Miranda, e o RC1.401, Rel. Min. Cordeiro Guerra, ainda em 1979.

    E, no RE165.438, Rel. Min. Carlos Velloso, em 2004, destaco voto, que tudo resume, do Ministro Cezar Peluso: em tema de anistia, a interpretao tem de ser ampla e generosa, sob pena de frustrar seus propsitos poltico -jurdicos.

    33. Outro ponto a considerarmos e isso diz imediatamente com estes autos encontra -se no RHC 28.294, Rel. Min. Philadelpho de Azevedo, de 1942, cuja ementa a seguinte: Esto includos na anistia ampla outorgada pelo Decreto 19.395 de 1930, em relao aos crimes polticos e militares e aos conexos com estes, os delitos atribudos a policiais de um Estado cometidos na perseguio de grupos sediciosos que se movimentavam no serto. Tra ta-va -se de fatos ocorridos em 1926. Cleto Campelo, tenente revoltoso, partiu de Jaboato, com um grupo de revolucionrios, pretendendo incorporar -se Coluna Prestes. EmGravat, morto em combate Cleto Campelo, seguiram os demais, sob o comando de Valdemar de Paula Lima, at que, perseguidos a partir de Limoeiro por uma fora irregular integrada por policiais da Fora Pblica do Estado de Pernambuco, caram em uma emboscada. Valdemar de Paula Lima e dois dos seus demais companheiros foram ento brutalmente assassinados, com requintes de crueldade, sangrados a punhal. Trs policiais foram denunciados por esses homicdios em janeiro de 1931. Aps longa tramitao dos autos, foi negada a aplicao da anistia do Decreto 19.395 aos acusados. Esta Corte o fez. Colho, no voto do Relator, o Ministro Philadelpho de Azevedo, o seguinte tre-cho: A medida devia, assim, alcanar aos que se envolveram direta ou indireta-mente, (sic) em movimentos revolucionrios, tanto de um lado, como de outro, sendo intil desmontar as peas de textos de largo alcance social para apurar se o mesmo fato constituiria crime poltico ou crime militar, ou ainda conexo com qualquer deles. Concedeu -se o habeas corpus por unanimidade.

    H momentos histricos em que o carter de um povo se manifesta com plena nitidez. Talvez o nosso, cordial, se desnude na sucesso das frequentes anistias concedidas entre ns.

    Ainterpretaododireitoeasleismedida

    34. Noincio deste meu voto, detive -me em digresso a respeito da interpre-tao do direito. Torno a ela, mas no me olhem assim. No pretendo promover aqui, como diria nosso Jos Paulo Seplveda Pertence, um seminrio jurdico.

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    Desejo somente relembrar o quanto anteriormente observei: a interpretao do direito tem carter constitutivo no meramente declaratrio, pois e consiste na produo, pelo intrprete, a partir de textos normativos e da realidade, de nor-mas jurdicas a serem aplicadas soluo de determinado caso. Interpretamos sempre os textos e a realidade. Da o que venho reiteradamente afirmando que o direito um dinamismo, donde a sua fora, o seu fascnio, a sua beleza. do presente, na vida real, que se tomam as foras que lhe conferem vida. Ea realidade social o presente; o presente vida e vida movimento. Assim, o significado vlido dos textos varivel no tempo e no espao, histrica e cultu-ralmente. Ainterpretao do direito no mera deduo dele, mas sim processo de contnua adaptao de seus textos normativos realidade e seus conflitos9.

    Essa afirmao aplica -se exclusivamente, contudo, interpretao das leis dotadas de generalidade e abstrao, leis que constituem preceito primrio, no sentido de que se impem por fora prpria, autnoma. No quelas que chama-mos de leis medida.

    35. Explico -me. As leis medida (Massnahme gesetze) disciplinam direta-mente determinados interesses, mostrando -se imediatas e concretas. Consubs-tanciam, em si mesmas, um ato administrativo especial. Detive -me sobre o tema em texto acadmico10, inmeras vezes tendo a elas feito aluso em votos que pro-feri nesta Corte11. OPoder Legislativo no veicula comandos abstratos e gerais quando as edita, fazendo -o na pura execuo de certas medidas. Umcomando concreto ento emitido, revestindo a forma de norma geral. As leis me di da configuram ato administrativo comple t vel por agente da Administrao, mas trazendo em si mesmas o resultado especfico pretendido, ao qual se dirigem. Da por que so leis apenas em sentido formal, no o sendo, contudo, em sentido material. Cuida -se, ento, de lei no norma12. precisamente a edio delas que a Constituio de 1988 prev no seu art.37, XIX e XX.

    Pois o que se impe deixarmos bem vincado a inarredvel necessidade de, no caso de lei -medida, interpretar -se, em conjunto com o seu texto, a reali-dade no e do momento histrico no qual ela foi editada, no a realidade atual.

    36. Recordo o que se deu no julgamento, por esta Corte, do HC29.151, Rel. Min. Laudo de Camargo, em setembro de 1945. Eduard Arnold fora conde-nado pelo Tribunal de Segurana Nacional pela prtica do delito de espionagem. Sobrevindo o Decreto 7.474, de 18 de abril de 1945, pediu fosse extinta a pena em virtude da concesso de anistia. Aordem foi negada porque o caso demandava exame de provas em torno da seguinte questo: os delitos teriam sido pratica-dos, ou no, em tempo de guerra, contra a segurana nacional, contra a segu-rana externa do Pas13. Oque importa neste momento assinalar so, contudo,

    9 Disse -o em meu Ensaio e discurso sobre a interpretao/aplicao do direito, cit., p. 59.10 O direito posto e o direito pressuposto, 7. ed. So Paulo: Malheiros, 2008, p. 254 -255.11 V.g., ADI3.573.12 V., v.g., meus votos na ADI820 e na ADI3.145.13 No voto do Relator so ainda referidas decises tomadas nos HC29.034 e 29.111.

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    ponderaes do Ministro Orozimbo Nonato no sentido de que [c]abe ao intr-prete, na aplicao da lei, verificar -lhe a finalidade, a mens legis atendendo ao momento histrico em que ela surgiu, e ao escopo a que visa, sem se deixar agri-lhoar demasiadamente sua literalidade. Emseguida, observando que naquele momento no se cogitava do perdo de crimes contra a segurana externa do Pas, de delitos contra a integridade do Brasil, quanto aos demais delitos anotou: Ora, no caso dos autos, como lembrou o Sr. Ministro Filadelfo de Azevedo, a Lei de Anistia resultou de um longo clamor de conscincia pblica, refletida na imprensa e em comcios. Era o ciclo que se abria, da redemocratizao do Brasil e todos pediam que se lanasse perptuo olvido aos delitos de opinio pblica, s manifestaes contra o regime vigente. At parece, Senhores Ministros, que Orozimbo Nonato falava das jornadas de 1979, avanando sobre o meu argu-mento de agora.

    37. Registro a existncia, no Brasil, no perodo republicano, de mais de trinta atos de anistia, veiculados pelos seguintes decretos ou leis -medidas: Decreto 8/1891 (oposio ao Governo do Marechal Deodoro no Par); Decreto 83/1892 (movimentos revolucionrios em Mato Grosso e no Rio Grande do Sul); Decreto 174/1893 (acontecimentos polticos em SC e PE); Decreto 175/1893 (movimentos de 2 -3 -1893 no Maranho); Decreto 176/1893 (movimento ocor-rido em Catalo/GO); Decreto 305/1895 (acontecimentos polticos em Alagoas e Gois); Decreto 310/1895 (movimentos revolucionrios); Decreto 406/1896 (movimento de 4 -9 -1896 em Sergipe); Lei 533/1898 (amplia a anistia conce-dida pelo Decreto 310/1895); Decreto 1.373/1905 (Revolta da Vacina); Decreto 1.599/1906 (movimentos revolucionrios de Sergipe e Mato Grosso); Decreto 2.280/1910 (Revolta da Chibata); Decreto 2.687/1912 (ampliao da anistia Revolta da Chibata); Decreto 2.740/1913 (revoltas no Acre e em Mato Grosso); Decreto 3.102/1916 (revoluo no Cear e crimes polticos no Pas); Decreto 3.163/1916 (crimes polticos no Esprito Santo em virtude da sucesso presi-dencial); Decreto 3.178/1916 (ampliao das anistias de 1895 e 1898); Decreto 3.492/1916 (eventos no Amazonas e Guerra do Contestado no Paran e em Santa Catarina); Decreto 19.395/1930 (Revoluo de 1930); Decreto 20.249/1931 (movimentos sediciosos de 28 -4 -1931 em So Paulo); Decreto 20.265/1931 (movimentos sediciosos de 20 -5 -1931 em Pernambuco); Decreto 24.297/1934 (Revoluo Constitucionalista de 1932); Decreto -Lei 7.474/1945 (Intentona Comunista de 1935); Decreto -Lei 7.769/1945 (integrantes da Fora Expedicio-nria Brasileira); Decreto -Lei 7.943/1945 (crimes de injria ao poder pblico e crimes polticos); Decreto Legislativo 18/1951 (crime de greve); Lei 1.346/1951 (crimes eleitorais de leis revogadas); Decreto Legislativo 63/1951 (crime de inj-ria ao poder pblico); Decreto Legislativo 70/1955 (conflito no jornal Tribuna Popular/RJ); Decreto Legislativo 16/1956 (crimes de imprensa); Decreto Legis-lativo 22/1956 (movimentos revolucionrios de 1955 a 1956); Decreto Legisla-tivo 27/1956 (crimes de greve, de imprensa e insubmisso nas Foras Armadas); Decreto Legislativo 18/1961 (crimes polticos, greve, militares e imprensa); Lei 6.683/1979 (crimes polticos e conexos entre 1961 e 1979); Lei 7.417/1985 (mes de famlia condenadas a at cinco anos de priso).

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    Como deveramos hoje interpretar esses textos? Tomando -se a realidade poltico -social do nosso tempo, nos dias de hoje, ou aquelas no bojo das quais cada qual dessas anistias foi concedida?

    38. Quais os crimes conexos que o 1 do art.1 do Decreto 3.102, de 13 de janeiro de 1916, anistiou? Eram crimes conexos ainda que no tenham tido ligao especial e imediata com os movimentos revolucionrios do Estado do Cear, no tempo decorrido entre 1 de janeiro de 1913 e 7 de setembro de 1915.

    Qual a abrangncia da expresso crimes conexos na anistia que o Decreto 3.163, de 27 de setembro de 1916, concedeu aos envolvidos em fatos polticos e conexos nesse mesmo ano ocorridos no Estado do Esprito Santo?

    E a anistia de 8 de novembro de 1930, concedida pelo Decreto 19.395 a todos os civis e militares que, direta ou indiretamente, se envolveram nos movi-mentos revolucionrios, (sic) ocorridos no Pas, abrangendo nos termos do 1 do seu art.1 todos os crimes polticos e militares, (sic) ou conexos com esses? Alcanou exclusivamente os revolucionrios ou ter beneficiado ainda os que os reprimiram?

    Vou alm nestas minhas indagaes, Senhores Ministros. Como poderemos apurar o significado da expresso qualquer outro crime poltico e os que lhe forem conexos no pargrafo nico do art.2 do Decreto 24.297, de 28 de maio de 1934, que concedeu anistia aos participantes do movimento revolucionrio de 1932? Deveremos considerar, para tanto, a realidade daquele momento histrico ou ousa-ramos permitir -nos faz -lo imersos na realidade do presente? A resposta evi-dente. Opreceito no teria mesmo nenhum sentido, no poderia ser compreendido por quantos ignorassem o que ocorreu neste pas na primeira metade dos anos 30.

    E chego a 1945, ao Decreto -Lei 7.474, de 18 de abril, que anistiou os cri-mes conexos com os polticos cometidos desde 16 de julho de 1934 at esta data, 18 de abril. Note -se que aqui se poderia suscitar largo debate, visto que o 2 do art.1 do Decreto -Lei teria como conexos somente os crimes comuns, prati-cados com fins polticos, que tenham sido julgados pelo Tribunal de Segurana Nacional. Como resolver essa questo com as lentes que a viso da realidade do presente instala em nossas mentes? Para faz -lo fora apreendermos a reali-dade histrico -social do momento da anistia de que se trata. Ela alcanou, ao referir crimes conexos com os polticos, exclusivamente os que tentaram contra o governo ou beneficiou ainda os que, praticando crimes comuns, os reprimiram?

    39. Pois assim h de ser tambm com a anistia de que ora cogitamos. Aqui estamos, como nas demais anistias a que venho aludindo, diante de lei medida. a realidade histrico -social da migrao da ditadura para a democracia pol-tica, da transio conciliada de 1979 que h de ser ponderada para que possamos discernir o significado da expresso crimes conexos na Lei 6.683. da anistia de ento que estamos a cogitar, no da anistia tal e qual uns e outros hoje a con-cebem, seno qual foi na poca conquistada. Exatamente aquela na qual, como afirma inicial, se procurou (sic) estender a anistia criminal de natureza poltica aos agentes do Estado encarregados da represso.

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    A chamada Lei da Anistia veicula uma deciso poltica naquele momento o momento da transio conciliada de 1979 assumida. ALei 6.683 uma leimedida, no uma regra para o futuro, dotada de abstrao e generalidade. Hde ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada. Para quem no viveu as jornadas que a antecederam ou, no as tendo vivido, no conhece a Histria, para quem assim a Lei 6.683 como se no fosse, como se no houvesse sido.

    40. Leio o que escreveu o ento Conselheiro da OAB, Jos Paulo Seplveda Pertence, em parecer pela mesma OAB encaminhado ao Presidente do Senado Fe deral em agosto de 1979:

    02. De resto, passado quase um ms da revelao da proposta, no temerrio afirmar que, falta de contestao vlida dos intrpretes do Poder, j se conscientizou a opinio pblica da procedncia das objees suscitadas pela vanguarda da socie-dade civil contra as restries que o Governo pretende impor conquista da anistia.

    03. O exame global do projeto desvela de imediato o seu pecado substancial: a sua frontal incompatibilidade com um dado elementar do prprio conceito de anistia, ou seja, o seu carter objetivo. Emoutras palavras: o que o Governo est propondo, com o nome de anistia, tem antes o esprito de um indulto coletivo que o de uma verdadeira anistia. Esta distoro bsica est subjacente aos pontos mais cri-ticveis do projeto: da odiosa e arbitrria discriminao dirigida exclusivamente aos j condenados por determinados crimes polticos (art.1, 2), ao condicionamento do retorno ou reverso dos servidores pblicos existncia de vaga e ao interesse da Administrao (art.3), e excluso desse benefcio quando o afastamento tiver sido motivado por improbidade do servidor (art.3, 4).

    04. Mais que a forma de lei (que decorre de sua essncia, mas com ela no se confunde), o que caracteriza a anistia a sua objetividade. Isso sabidamente sig-nifica, como se l, por exemplo, em Anibal Bruno (Direito Penal, III/201), que, a anistia no se destina propriamente a beneficiar algum; o que ela faz apagar o crime e, em consequncia, ficam excludos de punio os que o cometeram. Aideia j estava presente no clebre arrazoado de Rui Barbosa (in Comentrios Constitui-o, 2/441), quando se mostrava que, pela anistia, remontando -se ao delito, se lhe elimina o carter criminoso, suprimindo -se a prpria infrao. Por isso, a observa-o de Pontes de Miranda (Comentrios Const. de1946, I/343 -344), de que a fi-nalidade da anistia a mesma da lei criminal com sinais trocados; e acrescenta: com ela, olvida -se o ato criminal, com a consequncia de se lhe no poderem atribuir efeitos de direito material ou processual. Aconteceu o ato; agora, indo -se ao passado, mesmo onde ele est, acontece juridicamente desaparecer, deixar de ser, no ser. Namesma linha, Raimundo Macedo (Extino da Punibilidade,p.), a enfatizar que a anistia como a lei nova que deixou de considerar o fato como crime.

    05. Arecordao dessa verdade elementar basta para ver como no se pode sustentar a srio a legitimidade jurdica ou moral de pretender engalanar -se com a grandeza da anistia que est, por definio, na generalidade objetiva da determi-nao do seu alcance um projeto que discrimina entre autores no condenados e autores j condenados pelos mesmos crimes polticos, para excluir estes dos bene-fcios da anistia, que se estendero queles.

    06. No se desconhece que a tradio histrica fonte necessria de identi-ficao conceitual do instituto, onde, como ocorre entre ns, a Constituio no o define tem legitimado a anistia parcial, que exclua da sua incidncia discriminante

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    determinadas categorias de partcipes do fato anistiado. Mas, para que tais excluses se - jam legtimas, devem elas basear -se em fatos atribuveis s pessoas excludas da anis-tia. So exemplos frequentes a reincidncia, a recusa deposio de armas no prazo estabelecido e outras tantas circunstncias objetivas, s quais porque imputveis ao agente se tem considerado que o legislador pode atribuir a fora negativa de impe-dir que sobre sua conduta criminosa, em particular, se estenda a eficcia da anistia.

    O que ento se debatia eram essas discriminaes, em especial a que resul-tou contemplada no 2 do art.1 da lei. Noque tange, no entanto, concesso de anistia aos agentes do Estado, leio ainda em Pertence:

    17. Nem a repulsa que nos merece a tortura impede reconhecer que toda a amplitude que for emprestada ao esquecimento penal desse perodo negro de nossa Histria poder contribuir para o desarmamento geral, desejvel como passo adiante no caminho da democracia.

    18. Deoutro lado, de tal modo a violncia da represso poltica foi tolerada quando no estimulada, em certos perodos, pelos altos escales do Poder que uma eventual persecuo penal dos seus executores materiais poder vir a ganhar certo colorido de farisasmo.

    19. No preciso acentuar, de seu turno, que a extenso da anistia aos abusos da represso ter efeitos meramente penais, no elidindo a responsabilidade civil do Estado, deles decorrentes.

    41. Mais no ser necessrio dizer, Senhores Ministros. Permito -me uni-camente reproduzir, neste passo, trecho de entrevista de Jos Paulo14, grande Ministro desta Corte, duplamente cassado pela ditadura militar, como membro do Ministrio Pblico do Distrito Fe deral e Territrios e como professor da Universidade de Braslia, entrevista na qual afirma nada ter a alterar no parecer que a venho aludindo e diz, ainda mais:

    No projeto, havia um ponto inegocivel pelo Governo: o 1 do art.1, que, definindo, com amplitude heterodoxa, o que se considerariam crimes conexos aos crimes polticos, tinha o sentido indisfarvel de fazer compreender, no alcance da anistia, os delitos de qualquer natureza cometidos nos pores do regime, como ento se dizia, pelos agentes civis e militares da represso.

    Meu parecer reconheceu abertamente que esse era o significado inequvoco do dispositivo. Esem alimentar esperanas vs de que pudesse ele ser eliminado pelo Congresso, concentrava a impugnao ao projeto governamental no 2 do art. 1, que exclua da anistia os j condenados por atos de violncia contra o regime autoritrio.

    (...) expressivo recordar que, no curso de todo o processo legislativo que

    constituiu um marco incomum de intenso debate parlamentar sobre um projeto dos governos militares, nem uma voz se tenha levantado para por em dvida a inter-pretao de que o art.1, 1, se aprovado, como foi, implicava a anistia da tortura praticada e dos assassnios perpetrados por servidores pblicos, sob o manto da imunidade de fato do regime de arbtrio. Oque houve foram propostas de emenda no muitas, porque de antemo condenadas derrota sumria para excluir da anis-tia os torturados e os assassinos da represso desenfreada.

    14 Carta Maior (www.cartamaior.com.br), 18 de janeiro de 2010.

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    42. Anoto a esta altura, parenteticamente, a circunstncia de a Lei 6.683 preceder a Conveno das Naes Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruis, Desumanos ou Degradantes adotada pela Assembleia Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 e a Lei 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura. E,mais, o fato de o preceito veiculado pelo art.5, XLIII, da Constituio preceito que declara insuscet-veis de graa e anistia a prtica da tortura, entre outros crimes no alcanar, por impossibilidade lgica, anistias consumadas anteriormente a sua vigncia. A Constituio no recebe, certamente, leis em sentido material, abstratas e gerais, mas no afeta, tambm certamente, leis medida que a tenham precedido.

    Refiro -me ainda, neste passo, a texto de Nilo Batista, na Nota introdutria a obra recentemente publicada15, de Antonio Martins, Dimitri Dimoulis, Lauro Joppert Swensson Junior e Ulfrid Neumann