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Revista Trimestral de Jurisprudência volume 225 tomo II julho a setembro de 2013 páginas 817 a 1644

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  • Revista Trimestral de Jurisprudência

    volume 225 – tomo IIjulho a setembro de 2013

    páginas 817 a 1644

  • Disponível também em:

    Secretaria-Geral da PresidênciaFlávia Beatriz Eckhardt da Silva

    Secretaria de DocumentaçãoJaneth Aparecida Dias de Melo

    Coordenadoria de Divulgação de JurisprudênciaAndreia Fernandes de Siqueira

    Equipe técnica: Giovana Rodrigues da Cunha Coelho (estagiária), José Roberto da Silva, Priscila Heringer Cerqueira Pooter e Valquirio Cubo Junior

    Diagramação: Camila Penha Soares

    Revisão: Amélia Lopes Dias de Araújo, Divina Célia Duarte Pereira Brandão, Ingrid Mariana Alves Barros (estagiária), Lilian de Lima Falcão Braga, Mariana Sanmartin de Mello e Rochelle Quito

    Capa: Núcleo de Programação Visual

    (Supremo Tribunal Fe deral — Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal)

    Revista Trimestral de Jurisprudência / Supremo Tribunal Federal. – V. 1,n. 1 (abr./jun. 1957) ‑ . – Brasília : STF, 1957‑ .

    v. ; 22 x 16 cm.Trimestral.Título varia: RTJ.Repositório Oficial de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.Nome do editor varia: Imprensa Nacional / Supremo Tribunal Federal,

    1957 a 2001; Editora Brasília Jurídica, 2002 a 2006; Supremo TribunalFederal, 2007‑ .

    Disponível também em formato eletrônico a partir de abr. 1957:http://www.stf.jus.br/portal/indiceRtj/pesquisarIndiceRtj.asp.

    ISSN 0035‑0540.

    1. Tribunal supremo, jurisprudência, Brasil. 2.  Tribunal supremo,periódico, Brasil. I.  Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF).Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência. II. Título: RTJ.

    CDD 340.6

    Solicita ‑se permuta. Pídese canje. On demande l’échange. Si richiede lo scambio. We ask for exchange. Wir bitten um Austausch.

    Seção de Distribuição de Edições Maria Cristina Hilário da SilvaSupremo Tribunal FederalAnexo II ‑A, Cobertura, Sala C ‑624 Praça dos Três Poderes 70175‑900 – Brasília ‑DF [email protected] Fone: (061) 3217‑4780

  • SU PRE MO TRIBUNAL FEDERAL

    Mi nis tro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25‑6‑2003), PresidenteMi nis tro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI (16‑3‑2006), Vice ‑PresidenteMi nis tro José CELSO DE MELLO Filho (17‑8‑1989)Mi nis tro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello (13‑6‑1990)Mi nis tro GILMAR Ferreira MENDES (20‑6‑2002)Mi nis tra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha (21‑6‑2006)Ministro José Antonio DIAS TOFFOLI (23‑10‑2009)Ministro LUIZ FUX (3‑3‑2011)Ministra ROSA Maria WEBER Candiota da Rosa (19 ‑12 ‑2011)Ministro TEORI Albino ZAVASCKI (29‑11‑2012)Ministro Luís ROBERTO BARROSO (26‑6‑2013)

    COMPOSIÇÃO DAS TURMAS

    PRIMEIRA TURMA

    Ministro LUIZ FUX, PresidenteMinistro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias MelloMinistro José Antonio DIAS TOFFOLIMinistra ROSA Maria WEBER Candiota da RosaMinistro Luís ROBERTO BARROSO

    SEGUNDA TURMA

    Ministra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha, PresidenteMinistro José CELSO DE MELLO FilhoMinistro GILMAR Ferreira MENDESMinistro Enrique RICARDO LEWANDOWSKIMinistro TEORI Albino ZAVASCKI

    PROCURADOR‑GERAL DA REPÚBLICA

    Doutor ROBERTO MONTEIRO GURGEL SANTOS

  • COMPOSIÇÃO DAS COMISSÕES

    COMISSÃO DE REGIMENTO

    Mi nis tro MARCO AURÉLIOMi nis tro LUIZ FUXMinistro TEORI ZAVASCKIMinistra ROSA WEBER

    COMISSÃO DE JURISPRUDÊNCIA

    Mi nis tro GILMAR MENDESMi nis tra CÁRMEN LÚCIAMinistro DIAS TOFFOLI

    COMISSÃO DE DOCUMENTAÇÃO

    Mi nis tro CELSO DE MELLOMinistra ROSA WEBERMi nis tro ROBERTO BARROSO

    COMISSÃO DE COORDENAÇÃO

    Mi nis tro RICARDO LEWANDOWSKIMinistro DIAS TOFFOLIMinistro TEORI ZAVASCKI

  • SUMÁRIO

    Pág.

    AP 470, votos, tomo II............................................................................................... 827

  • AP 470

  • AÇÃO PENAL 470 — MG

    Relator: O sr. ministro Joaquim Barbosa

    Revisor: O sr. ministro Ricardo Lewandowski

    Autor: Ministério Público Federal — Réus: José Dirceu de Oliveira e Silva, José Genoíno Neto, Delúbio Soares de Castro, Sílvio José Pereira, Marcos Valé‑rio Fernandes de Souza, Ramon Hollerbach Cardoso, Cristiano de Mello Paz, Rogério Lanza Tolentino, Simone Reis Lobo de Vasconcelos, Geiza Dias dos Santos, Kátia Rabello, José Roberto Salgado, Vinícius Samarane, Ayanna Tenó‑rio Tôrres de Jesus, João Paulo Cunha, Luiz Gushiken, Henrique Pizzolato, Pedro da Silva Corrêa de Oliveira Andrade Neto, José Mohamed Janene, Pedro Henry Neto, João Cláudio de Carvalho Genu, Enivaldo Quadrado, Breno Fischberg, Carlos Alberto Quaglia, Valdemar Costa Neto, Jacinto de Souza Lamas, Antônio de Pádua de Souza Lamas, Carlos Alberto Rodrigues Pinto (Bispo Rodrigues), Roberto Jefferson Monteiro Francisco, Emerson Eloy Palmieri, Romeu Ferreira Queiroz, José Rodrigues Borba, Paulo Roberto Galvão da Rocha, Anita Leocá‑dia Pereira da Costa, Luiz Carlos da Silva (Professor Luizinho), João Magno de Moura, Anderson Adauto Pereira, José Luiz Alves, José Eduardo Cavalcanti de Mendonça (Duda Mendonça) e Zilmar Fernandes Silveira

    DEBATE

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Senhor Presidente, gostaria de indagar da ministra Rosa se ela votou com relação ao item referente ao Banco do Brasil. Já votou?

    A sra. ministra Rosa Weber: Sim. Procurei estabelecer as premissas teó‑ricas e me manifestar, ainda que brevemente, sobre os pontos em que Vossa Excelência e o revisor divergiram. Com relação àqueles pontos de absoluta concordância, gostaria muito de ler o meu voto, mas prefiro ouvir os votos dos

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    nossos eminentes pares, que, seguramente, vão, compondo o conjunto, traduzir a compreensão do Colegiado para efeito da definição final do processo.

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Com relação a este item 3.3.

    A sra. ministra Rosa Weber: Com relação ao Banco do Brasil, eu o acom‑panhei na íntegra. E posso acrescer: agradeço ao eminente revisor, que, especifi‑camente em relação ao bônus de volume, fez um estudo brilhante, uma exposição que veio ao encontro da minha compreensão quanto ao instituto bônus de volume pago pelas empresas de mídia às agências de publicidade. Referiu o eminente revisor, todavia, que, no caso específico do contrato com o Banco do Brasil, houve um desvirtuamento. Então, quer analise sob a ótica do eminente relator, no que diz respeito à cláusula contratual, ao se referir a bonificações, quer examine pela ótica do eminente revisor, que, para mim, está absolutamente adequada à realidade dos autos, concluo no sentido da condenação, destacando – também está muito bem provado nos autos – que as próprias agências de publicidade, no que diz respeito a outros contratos, faziam o repasse à contratante desses bônus, e não o faziam neste caso específico do contrato do Banco do Brasil.

    Senhor Presidente, é como voto.

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Senhor Presidente, eu, como relator, devo esclarecer parte em que há essa divergência com o revisor e com a ministra Rosa Weber. Por uma vez só, não pretendo repetir afirmações aqui, não.

    Sobre essa divergência trazida pelo eminente revisor e pela ministra Rosa, que é pequena em relação à parte do meu voto até agora proferida, eu gostaria de pontuar rapidamente, em dois minutos, o seguinte:

    Sobre a questão de Luiz Costa Pinto, que era o assessor que, segundo a denúncia, foi contratado em caráter pessoal pelo senhor João Paulo Cunha, mas pago com recursos públicos. O  primeiro ponto que tenho a frisar sobre esse caso: há de fato depoimentos e – digamos – “provas” segundo os quais ele teria prestado esses serviços não só para a Câmara dos Deputados, mas também em caráter pessoal. E, nesse sentido, eu citei inúmeros encontros entre o senhor João Paulo Cunha e esse seu assessor pessoal, encontros de natureza puramente polí‑tico‑partidária eleitoral, que não tinha absolutamente nada a ver com a Câmara dos Deputados. Isso consta do meu voto.

    Com relação à comprovação dos serviços, quando o senhor Luiz Costa Pinto fez a sua proposta de trabalho formal à Câmara dos Deputados, mas segundo a denúncia seria, na verdade, de caráter pessoal, ele se comprometeu a apresentar dados materiais, ou seja, fazer boletins mensais da sua atividade. Esses boletins jamais foram encontrados, e há farto material probatório nesse sentido, dizendo que ele era visto, sim, com o senhor João Paulo Cunha, por todos os cantos da Câmara, mas não há nada de concreto que possa documentar, testemunhar, da prestação de serviços por ele.

    E, por último, há dois pontos que eu gostaria de frisar para encerrar: a Câmara dos Deputados, Senhor Presidente, dispõe de uma secretária de

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    comunicação, e dispunha à época, dispunha de um assessor de imprensa, que é uma pessoa largamente conhecida em Brasília, a senhora Arlete Milhomem. Portanto, eu tiro daí a conclusão de que não havia nenhuma necessidade, para a Câmara dos Deputados, da contratação de um assessor de comunicação, porque ela já era, abundantemente, dotada desses serviços.

    E, por fim, foi feita uma comparação que me parece absolutamente imprópria pelo eminente revisor, que comparou a situação desse senhor Luiz Costa Pinto com essa situação da nossa assessora de imprensa, aqui do Supremo Tribunal Federal. Ora, são situações incomparáveis. A assessora de comunicação do Supremo Tribu‑nal Federal é nomeada da maneira a mais apropriada possível, ou seja, ela é nomea‑ da para um cargo DAS, Direção e Assessoramento Superior, para chefiar a área de comunicação do Supremo. O Supremo jamais usou, e jamais usará, dessa prática enviesada, ilícita, de contratar um alto dirigente, um assessor categorizado, através de uma empresa que presta serviços a ele próprio, o Supremo.

    São essas as considerações que eu tenho a fazer. Por essa razão, eu reafirmo o meu voto com relação a esse tópico também.

    O sr. ministro Ricardo Lewandowski (revisor): Senhor Presidente, eu peço a palavra.

    O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Com a palavra o eminente revisor, Ministro Ricardo Lewandowski.

    O sr. ministro Ricardo Lewandowski (revisor): Senhor Presidente, com o devido respeito ao eminente relator, eu disse, na sessão passada, em que proferi o voto, que o juiz é o peritus peritorum, ele avalia as várias perícias que exis‑tem nos autos. E nós temos aqui, eu distribuí a Vossas Excelências, um acórdão da mais alta Corte de Contas do País, subscrito por dois ex‑presidentes e outros eminentes ministros conselheiros, dizendo que todos os serviços contratados pela Câmara dos Deputados foram prestados, tanto aqueles que dizem respeito ao primeiro peculato, quanto os que dizem respeito ao segundo peculato, mais especificamente à subcontratação da IFT.

    Em 2008, e também está nos documentos que eu distribuí a Vossas Exce‑lências, em resposta a uma pergunta feita pelo eminente relator aos peritos da Polícia Federal, estes responderam o seguinte: Não há provas de que a IFT tenha prestado serviços. Por que não há provas? Porque, realmente, os tais dos boletins, que seriam exigíveis, não foram efetivamente apresentados, porque eles não foram objeto do contrato. Ocorre que há um documento nos autos, que Sua Excelência não considerou, datado de 2005, ou seja, três anos antes, que também distribuí a Vossas Excelências, em que a IFT faz uma prestação de contas cabal, exaustiva, enunciando inclusive testemunhas que comprovam a prestação de ser‑viços. Está nos autos, é um documento que cronologicamente é muito anterior.

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Documento feito a posteriori, Ministro.

    O sr. ministro Ricardo Lewandowski (revisor): Mas está nos autos, Exce‑lência. E não foi contraditado.

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    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Não, não! Esse documento foi feito depois da denúncia do Roberto Jefferson. É esse o problema.

    O sr. ministro Ricardo Lewandowski (revisor): Mais ainda, desculpe, eu não interrompi Vossa Excelência.

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Desculpe‑me, Ministro.

    O sr. ministro Ricardo Lewandowski (revisor): Desculpe, em quase um quarto de século de magistratura, aprendi que o contraditório está entre as partes, e não entre os juízes, Ministro.

    Agora, queria aduzir uma última observação, Senhor Presidente: se o emi‑nente relator ou qualquer outro membro desta egrégia Corte entender que as testemunhas, qualificadíssimas, que prestaram depoimento em juízo, fizeram‑no mendazmente, elas cometeram o crime de perjúrio, de falso testemunho. Então, o Plenário tem que pedir que sejam retiradas as peças correspondentes dos autos, encaminhadas ao douto procurador‑geral da República, para que este apure res‑ponsabilidade no que diz respeito ao crime previsto no art. 342 do Código Penal, crime de falso testemunho ou falsa perícia.

    Ou nós admitimos como verdadeiras essas perícias e esses testemunhos prestados em juízo, ou então esta Corte tem que ser coerente e representar ao procurador‑geral da República, para que imediatamente faça a apuração da res‑ponsabilidade. É o que eu tinha que dizer, Senhor Presidente.

    O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Obrigado a Vossa Excelência.

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Senhor Presidente, eu tinha uma outra observação a fazer, porque nós teremos que nos debruçar sobre essa ques‑tão: há, em diversas passagens, divergências entre os órgãos de apuração do Tri‑bunal de Contas da União, ou seja, a auditoria faz a sua verificação, constata um fato, documenta e apresenta isso ao TCU. O TCU ignora completamente o que é dito pelos órgãos técnicos e diz o contrário. Isso ocorreu duas vezes neste pro‑cesso: ocorreu em relação ao bônus de volume, mas, sobre isso, aparentemente, não haverá, eu espero, divergência; e ocorreu também com relação a essas pres‑tações de serviços supostamente feitas pelas empresas de Marcos Valério.

    Demonstrei largamente, no meu voto, que a empresa de Marcos Valério, neste caso da Câmara dos Deputados – e acho que contra isso não há divergên‑cia –, prestou apenas R$ 17.000,00 de serviços executados por ela própria. Não contam serviços que foram executados pela própria Secretaria de Comunicação da Câmara, como aqueles inúmeros pagamentos que foram elencados, aqui, pelo revisor. Todos aqueles serviços foram feitos, elaborados pela Secretaria de Comunicação da Câmara, então nós temos que levar em consideração. E essa dubiedade na análise feita pelo Tribunal de Contas: a auditoria diz uma coisa e os ministros dizem outra, teremos que observar isso.

    O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Obrigado a Vossa Excelência. Fei‑tos os esclarecimentos.

    O sr. ministro Cezar Peluso: Senhor Presidente, Vossa Excelência me permite?

  • R.T.J. — 225 831

    O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Pois não, Excelência, Ministro Cezar Peluso. Vossa Excelência tem a palavra.

    O sr. ministro Cezar Peluso: Senhor Presidente, eu não sei se foi equívoco meu, mas acho que o ministro relator deixou de explicitar, no seu voto, quanto a Ramon Hollerbach e Cristiano Paz.

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Não, não deixei. Qual o item?

    O sr. ministro Cezar Peluso: Em relação ao capítulo número 1.

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Em relação ao 1?

    O sr. ministro Cezar Peluso: A denúncia foi recebida, tanto pela corrupção quanto por peculato, em relação aos três.

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Vossa Excelência está se refe‑rindo ao item 1?

    O sr. ministro Cezar Peluso: É, o item 1.

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Não, 3.2.

    O sr. ministro Cezar Peluso: É só para ficar claro. Vossa Excelência pode até consultar os registros aí.

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Não, eu tenho aqui, Ministro. Deve estar na parte final do meu voto.

    O sr. ministro Cezar Peluso: Eu me recordo de que alguém suscitou uma dúvida e ouvi resposta de Vossa Excelência, que disse: “Ah, eles não foram denunciados”. Foram, sim, e a denúncia foi recebida. Eu só queria, para efeito de me orientar, que ficasse esclarecido.

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Eu respondo daqui a pouco. Eu vou localizar aqui e respondo.

    O sr. ministro Cezar Peluso: Pois não.

    O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Vossa Excelência faz a consulta, pesquisa e, depois, quando entender oportuno, pedirá o uso da palavra.

    A sra. ministra Cármen Lúcia: Presidente, queria apenas me certificar do que ouvi, também, quanto à proclamação, porque Vossa Excelência, ao procla‑mar o voto da ministra Rosa Weber, fez referência a que os réus teriam respon‑dido por corrupção ativa e passiva, e João Paulo Cunha é denunciado pelo crime de corrupção passiva, que é o voto. Os demais, Marcos Valério e Ramon Roller‑bach, seriam por corrupção ativa.

    O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Passiva, isso, perfeito, os outros de corrupção ativa.

    A sra. ministra Cármen Lúcia: Está bem, só para ficar claro, porque, como ficou no conjunto, poderia parecer que todos praticaram todos os crimes.

    O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Indistintamente.

  • R.T.J. — 225832

    A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, não quero, de forma alguma, tumultuar os trabalhos, já terminei. Disse a Vossa Excelência: “Este é o meu voto”. Mas, só para que o réu João Paulo Cunha entenda – eu acho que ele tem direito a... –, porque o meu voto é no sentido da sua condenação pelo crime de corrupção passiva, além dos fundamentos já externados, peço todas as vênias ao eminente revisor para dizer que, a meu juízo, essas notas fiscais de prestação de serviços relativas às pretensas, ou às supostas, ou às alegadas – tal‑vez seja melhor dizer assim –, pesquisas pré‑eleitorais de Osasco e Municípios limítrofes em absoluto o beneficiam. Teriam sido tais pesquisas efetuadas mais de um ano antes das eleições municipais de 2004. Fui examinar essa prova, essas notas fiscais de prestação de serviços da Datavale. O valor de R$ 50.000,00 em espécie foi recebido em 4 de setembro de 2003 pela esposa do senhor João Paulo Cunha na agência Brasília do Banco Rural, embora proveniente de cheque da empresa SMP&B da agência de Belo Horizonte. Na verdade, chegou‑se ao nome da esposa de João Paulo Cunha por meio dos documentos obtidos em medidas cautelares de busca e apreensão, só assim, porque, segundo os registros formais do Banco Rural, esses valores teriam sido pagos para fornecedores.

    Então, há todos esses aspectos – e eu me eximo de destacá‑los porque o eminente relator o fez com absoluta precisão. Com relação a esses documentos, que também auxiliaram, subsidiariamente, diga‑se de passagem, a embasar o voto do eminente revisor, destaco que a primeira nota fiscal da Datavale é de 10 de setembro de 2003 (R$ 30.000,00). A segunda nota fiscal é de R$ 11.000,00, e o pagamento teria sido feito em 30 de setembro de 2003. A terceira nota fiscal está datada de 19 de dezembro de 2003, no valor de R$ 10.000,00, totalizando R$ 51.000,00. O interessante, foi bem destacado, é que as notas de série, a des‑peito dessa segmentação no tempo, são seguidas.

    O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)

    A sra. ministra Rosa Weber: É, em ordem sequencial contínua: 151, 152 e 153 – série 1A, 1A, 1A.

    Senhor Presidente, esses elementos todos atuam como reforço para a minha convicção.

    Obrigada.

    O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Obrigado a Vossa Excelência.

    VOTO (Antecipação)

    O sr. ministro Luiz Fux: (Cancelado)

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Eu já vi inúmeras vezes, aqui, Ministro. Eu mesmo já mudei.

    O sr. ministro Luiz Fux: (Cancelado)

  • R.T.J. — 225 833

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Não. Eu disse inúmeras, inúmeras vezes. Já ocorreu isso aqui.

    O sr. ministro Luiz Fux: (Cancelado)

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Trago uma tese, o colega contra‑põe‑se a essa tese, e eu mudo de ponto de vista.

    O sr. ministro Luiz Fux: (Cancelado)

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Ministro, eu não fiz crítica. Eu trouxe ao Colegiado aspectos sobre o item sobre o qual eu já votei, que não foram abordados pela ministra Rosa.

    O sr. ministro Luiz Fux: (Cancelado)

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Só porque ela divergiu do meu voto, que eu trouxe essas achegas.

    O sr. ministro Luiz Fux: (Cancelado)

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Não fatiei, Ministro. Esse item foi apresentado na denúncia tal como está. Essa história de fatiamento, isso é ótimo para a imprensa. Foi apresentado assim.

    O sr. ministro Luiz Fux: (Cancelado)

    O sr. ministro Ayres Britto (presidente): É. Perfeito. Vossas Excelências estão convergindo.

    O sr. ministro Luiz Fux: (Cancelado)

    O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Bem explicado, Excelência.

    O sr. ministro Luiz Fux: (Cancelado)

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Não, eu gostaria de esclarecer que Ramon Hollerbach e Cristiano Paz não foram denunciados com relação a um dos peculatos.

    O sr. ministro Luiz Fux: (Cancelado)

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Vossa Excelência acabou de dizer “dois peculatos” ao pronunciar o nome deles. Eles não foram denunciados...

    O sr. ministro Luiz Fux: (Cancelado)

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Está correto no voto inicial. Nesse adendo que distribuí hoje...

    O sr. ministro Luiz Fux: (Cancelado)

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Isso.

    O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Isso.

    O sr. ministro Luiz Fux: (Cancelado)

    O sr. ministro Joaquim Barbosa (relator): Inciso V.

    O sr. ministro Luiz Fux: (Cancelado)

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    VOTO

    Item III da denúncia

    O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, Senhores Ministros, Senhor Procurador‑Geral da República, eminentes Advogados.

    Preliminarmente, incumbe‑me cumprimentar a todos pela competência demonstrada nas atuações orais e escritas, o que exacerba sobremodo a difícil função de julgar um processo materialmente complexo porquanto composto de mais de 235 volumes, centenas de apensos, mais de quinhentos depoimentos, cuja digitalização, posto não comportar num hard disk de inúmeros computado‑res, mereceu um HD à parte que contém mais de 40 GB de documentos.

    A complexidade que o caso sub judice encerra, pelo seu caráter múltiplo (37 réus), e as teses minuciosamente defendidas pelas partes e por mim anotadas uma a uma, inclusive as veiculadas nas sustentações orais brilhantemente realizadas por ambas as partes, de um lado o procurador‑geral da República competente e combativo, de outro um verdadeiro pool da inteligência jurídica da advocacia penal brasileira, atributo extensivo aos advogados dativos, impuseram‑me uma meto‑dologia expositiva que fosse aplicável à votação de cada réu no que concerne às teses jurídicas comuns. Assim, v.g., restaram constantes alegações sobre carência probatória, ausência de contraditório na coleta da prova, ausência de tipicidade por força da inexistência de ato de ofício no crime de corrupção, além das vicissitudes apontadas em relação aos delitos que compõem o mosaico penal do caso sub judice.

    Em face dessas nuances, permiti‑me, preliminarmente, traçar premissas teóricas sobre os temas acima indicados para depois, sem o vezo da repetição, analisar fatos, provas, incidência da norma penal e conclusão.

    Assim explicitado o modo como me proponho a votar a presente ação penal, inicio, então, pelas premissas teóricas para ao depois adentrar nos capítu‑los até então enfrentados, na ordem de votação.

    Origens dos recursos empregados no esquema criminoso

    Os graves fatos noticiados nestes autos foram inicialmente revelados pelo 29º denunciado (Roberto Jefferson) na CPMI dos Correios em 2005. O aprofun‑damento das investigações conduziu ao depoimento da secretária do 5º denun‑ciado (Marcos Valério), senhora Fernanda Karina Ramos Somaggio, que restou por revelar as inúmeras operações suspeitas praticadas pelo referido réu e pelas suas empresas de publicidade, em especial a SMP&B e a DNA.

    Em síntese, a tese defendida pela acusação pode ser identificada com a gênese do denominado “esquema do mensalão” nas palavras do discurso de defesa do 29º denunciado (Roberto Jefferson) na Câmara dos Deputados, ocorrido em 14‑9‑2005.

    A expressão “mensalão” foi, assim, empregada para designar a suposta mesada recebida por parlamentares da Câmara dos Deputados oriunda de pagamen‑tos feitos por uma suposta quadrilha integrada por um núcleo político, publicitário e

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    financeiro. O propósito dos pagamentos seria o de obter o apoio político ao Governo Federal e necessário, sobremaneira, para a aprovação de matérias sensíveis e delibe‑radas no Congresso Nacional no período de 2003 e 2004 a que se refere a denúncia.

    Os recursos destinados ao suposto pagamento dos congressistas volúveis à recompensa seriam, em linhas gerais, obtidos através de empréstimos contraídos pelo PT e por empresas do 5º denunciado (Marcos Valério) com o Banco Rural e Banco BMG. Os referidos empréstimos seriam, segundo a compreensão do Parquet, forja‑dos, e as aludidas instituições realizavam, na prática, a disponibilização dos recursos sem exigir a sua restituição. A acusação também sustenta que os valores necessários para o preenchimento dos objetivos do esquema eram fruto de dinheiro desviado dos cofres públicos e destinados ao pagamento de políticos e de campanhas eleitorais.

    Na apresentação dos fatos e da dinâmica dos ilícitos supostamente perpe‑trados, a denúncia partiu de uma premissa de que havia diversos núcleos, grupos de pessoas com funções específicas no suposto “mensalão”. Essa formatação em grupos de réus e de ilícitos originou um texto dividido por itens. Há, na denúncia, um total de oito itens, cada qual, com exceção do primeiro que veicula a introdu‑ção da peça inicial acusatória, correspondente a um contexto fático abrangente de diversos réus e ilícitos.

    O eminente relator optou por iniciar os trabalhos com o julgamento do item III da denúncia, que retrata, entre outros crimes, a prática de supostos ilíci‑tos pelo ex‑presidente da Câmara dos Deputados, o 15º denunciado (João Paulo Cunha), na contratação de uma agência de publicidade do 5º denunciado (Mar‑cos Valério). De acordo com o aludido item III, intitulado Desvio de Recursos Públicos, encartado às fls. 5659 e seguintes do vol. 27, o 15º denunciado (João Paulo Cunha), o 5º denunciado (Marcos Valério), o 6º denunciado (Ramon Hol‑lerbach) e o 7º denunciado (Cristiano Paz) teriam participado de diversos ilícitos envolvendo o desvio de recursos da Câmara dos Deputados para o favorecimento da agência de publicidade contratada pelo referido órgão. Os crimes imputados aos réus no item III.1 da denúncia são os de peculato, corrupção ativa, corrupção passiva e de lavagem de dinheiro.

    Em linhas gerais, de acordo com a versão do Ministério Público, o 5º denun‑ciado (Marcos Valério) possuía empresas de publicidade que já mantinham contra‑tos com o Banco do Brasil, Ministério do Trabalho e Eletronorte. Em decorrência de sua proximidade com a agremiação partidária ocupante do poder no Governo Federal, o 5º denunciado (Marcos Valério) teria, segundo a acusação, conseguido renovar essas avenças, manter um contrato com o Ministério dos Esportes e vencer uma licitação feita pelos Correios em 2003 para prestar serviços de publicidade.

    O estreito vínculo com integrantes da cúpula do Governo Federal também teria, segundo a peça vestibular, gerado resultados positivos ao conseguir a conta de publicidade da Câmara dos Deputados, órgão de estatura constitucional presi‑dido, na época dos fatos, pelo 15º denunciado (João Paulo Cunha), cuja campanha à presidência havia sido realizada por uma das empresas do 5º denunciado (Marcos Valério), do 6º denunciado (Ramon Hollerbach) e do 7º denunciado (Cristiano Paz).

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    A acusação noticia a ocorrência de diversas irregularidades na execução do contrato de publicidade com a Câmara dos Deputados, v.g., a excessiva subcontratação dos serviços e a ausência de comprovação da prestação dos serviços cobrados.

    No item III da denúncia, há relato do Parquet de que o modus operandi do des‑vio de recursos públicos ocorria pela simulação de mútuos entre empresas do grupo do 5º denunciado (Marcos Valério) e terceiros; pela ausência de contabilização de serviços e operações financeiras; pela emissão de notas fiscais falsas para justificar o pagamento de serviços sem a devida contraprestação, além de outras práticas ilícitas envolvendo, v.g., a Câmara dos Deputados, o Banco do Brasil, a DNA Propaganda Ltda. e a Companhia Brasileira de Meios de Pagamento (Visanet).

    No contexto da peça acusatória, há relato de que o 5º denunciado (Marcos Valério), em nome do 6º denunciado (Ramon Hollerbach) e do 7º denunciado (Cris‑tiano Paz), ofereceu a vantagem indevida de R$ 50.000,00 ao 15º denunciado (João Paulo Cunha), tendo em vista sua condição de presidente da Câmara dos Depu‑tados, com a finalidade de receber tratamento privilegiado para a sua agência de publicidade. A referida quantia teria sido sacada pela senhora Márcia Regina no Banco Rural, em 4 de setembro de 2003, um dia após a reunião do 15º denunciado (João Paulo Cunha) com o 5º denunciado (Marcos Valério), e, segundo o Parquet, o modo como o saque ocorreu teve o intuito de ocultar a origem dos recursos.

    O MPF também destaca que a empresa SMP&B teria participado do con‑trato de publicidade com a Câmara dos Deputados apenas para intermediar subcontratações, recebendo honorários de 5% só para fazer isso, o que caracte‑rizaria um ilícito.

    Antes de adentrarmos a análise da dinâmica dos fatos pertinentes ao item III, revela‑se necessário abordar algumas premissas teóricas concernentes aos crimes imputados aos réus. Essa análise teórica é feita com o escopo precípuo de enfrentar os principais argumentos e teses invocados pelas partes. Serão enfrenta‑dos, outrossim, temas comuns na acusação e nas defesas de diversos dos acusados na presente ação penal, sob os aspectos do direito penal e do direito processual penal, evitando‑se a cansativa repetição de fundamentos ao longo do voto.

    Premissas teóricas

    Introdução: prova da infração penal em crimes do colarinho branco

    A tônica das sustentações escritas e orais se calca na prova de delitos de sofisticada atuação delitual, nos quais nem sempre os elementos de convicção usuais do vetusto processo concebido como actus ad minus trium personarum são satisfatórios prima facie. Aliás, é dessa constatação que a história penal inau‑gura a pré‑compreensão dos denominados crimes do colarinho branco.

    Os “crimes do colarinho branco” constituem um conceito relativamente novo, que apenas alcançou reconhecimento no ano de 1939, nos Estados Uni‑dos, em um discurso do sociólogo Edwin Sutherland na American Sociological Society, que criticou criminólogos da época por atribuírem a criminalidade à

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    pobreza ou às condições psicopáticas e sociopáticas. A noção de white collar crime é particularmente importante por evidenciar a necessidade de considerar as infrações praticadas por indivíduos ocupantes de posições de poder como cri‑mes e não apenas ofensas civis. Opõe‑se aos blue-collar crimes, que são delitos perpetrados por integrantes de estratos sociais mais desfavorecidos.

    A definição de Sutherland, que enfatizava mais o sujeito que o delito pra‑ticado – sendo, por isso, mais adequada a expressão “criminosos do colarinho branco” –, foi substituída posteriormente por uma concepção voltada para o fato. Assim, o Bureau of Justice Statistics (BJS) dos Estados Unidos utiliza o seguinte conceito de white collar crime: “crime não violento dirigido ao ganho financeiro, cometido mediante fraude”. Observa‑se, portanto, que não há um rol delimitado de delitos que compõem a categoria de “crimes do colarinho branco”, o que, todavia, não impede a repressão e a punição aos autores desse tipo de infrações. Entre os delitos que podem se amoldar ao conceito, incluem‑se os crimes tri‑butários (tax crimes), as fraudes bancárias (bank fraud), os crimes de corrup‑ção (public corruption) e a lavagem de dinheiro (money laundering), todos de relevantíssimo interesse para a presente causa (PODGOR, Ellen S. White collar crime in a nutshell. Minnesota: West Publishing Co., 1993. p. 1‑4).

    Na Alemanha, utiliza‑se a denominação Wirtschaftsstrafrechts para desig‑nar o direito penal econômico, que se ocupa dos aqui cognominados crimes do colarinho branco, sendo certo que não há uma lei que regulamente o tema de maneira uniforme (KUDLICH, Hans; OGLAKCIOGLU, Mustafa Temmuz. Wirtschaftsstrafrecht. Heidelberg: Hüthig Jehle Rehm, 2011; MANSDÖRFER, Marco. Zur Theorie des Wirtschaftsstrafrechts. Heidelberg: Hüthig Jehle Rehm, 2011; HELLMANN, Uwe; BECKEMPER, Katharina. Wirtschaftsstrafrecht. Stuttgart: Kohlhammer, 2008). Klaus Tiedemann, expoente do direito penal eco‑nômico alemão, afirma que esse ramo engloba todas as infrações que atingem bens jurídicos coletivos ou supraindividuais da vida econômica (TIEDEMANN, Klaus. Poder económico y delito. Trad. Amelia Mantilla Villegas. Barcelona: Ariel, 1985. p. 16).

    Os crimes do colarinho branco, em essência, são condutas puníveis na esfera penal, e não apenas civilmente irregulares; são proibições relevantíssimas para o seio social, e não apenas restrições formais e circunstanciais. Cuida‑se, nas palavras de Abanto Vásquez, da proteção dos bens jurídicos mais importan‑tes contra as ações perigosas mais graves em uma sociedade, motivo pelo qual a tendência da legislação e da doutrina penal dominante é a de recrudescer o tra‑tamento penal conferido a condutas que afetem negativamente interesses sociais econômicos (ABANTO VÁSQUEZ, Manuel A. Derecho penal económico: con‑sideraciones jurídicas y económicas. Lima: IDEMSA, 1997. p. 37).

    O desafio na seara dos crimes do colarinho branco é alcançar a plena efetividade da tutela penal dos bens jurídicos não individuais. Tendo em conta que se trata de delitos cometidos sem violência, incruentos, não atraem para si a mesma repulsa social dos “crimes do colarinho azul” (Go directly to jail: white collar sentencing after the Sarbanes‑Oxley Act. Harvard Law Review,

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    vol. 122, 2008‑2009. p. 1742 et seq.). A inoperância das instituições causa um nefasto efeito sistêmico, que, fomentado pela impunidade, causa pobreza atrás de pobreza, para o enriquecimento indevido de alguns poucos.

    A dificuldade de repressão também se deve, conforme aponta o argentino Fernando Horacio Molinas, ao fato de que o delito econômico é, aparentemente, uma operação financeira ou mercantil, uma prática ou procedimento como outros muitos no complexo mundo dos negócios. A ilicitude não se constata diretamente, sendo necessário, não raras vezes, lançar mão de perícias complexas e interpretar normas de compreensão extremamente difícil. As manobras criminosas são reali‑zadas utilizando complexas estruturas societárias, que tornam muito difícil a indi‑vidualização correta dos diversos autores e partícipes. Além disso, é comum o apelo à chamada “moral de fronteira”, apresentando o fato criminal como uma prática inevitável, generalizada, conhecida e tacitamente tolerada por todos, de modo que o castigo seria injusto, passando‑se o autor do fato por vítima do sistema ou de ocultas manobras políticas de seus adversários (MOLINAS, Fernando Horacio. Delitos de “cuello blanco” en Argentina. Buenos Aires: Depalma, 1989. p. 22‑23 e 27).

    Essas sutilezas que marcam a identidade dos crimes do “colarinho branco” constituem razões que devem informar a lógica probatória inerente à sua persecução.

    O direito probatório em delitos econômicos

    Com efeito, a atividade probatória sempre foi tradicionalmente ligada ao conceito de verdade, como se constatava na summa divisio que por séculos sepa‑rou o processo civil e o processo penal, relacionando‑os, respectivamente, às noções de verdade formal e de verdade material. Na filosofia do conhecimento, adotava‑se a concepção de verdade como correspondência.

    Nesse contexto, a função da prova no processo era bem definida. Seu papel seria o de transportar para o processo a verdade absoluta que ocorrera na vida dos litigantes. Daí dizer‑se que a prova era concebida apenas em sua fun‑ção demonstrativa (cf. TARUFFO, Michele. Funzione della prova: la funzione dimostrativa. Rivista di Diritto Processuale, 1997).

    O apego ferrenho a essa concepção gera a compreensão de que uma con‑denação no processo só pode decorrer da verdade dita “real” e da (pretensa) certeza absoluta do juiz a respeito dos fatos. Com essa tendência, veio também o correlato desprestígio da prova indiciária, a circumstancial evidence de que falam os anglo‑americanos, embora, como será exposto a seguir, o Supremo Tri‑bunal Federal possua há décadas jurisprudência consolidada no sentido de que os indícios, como meio de provas que são, podem levar a uma condenação criminal.

    Contemporaneamente, chegou‑se à generalizada aceitação de que a verdade (indevidamente qualificada como “absoluta”, “material” ou “real”) é algo inatin‑gível pela compreensão humana, por isso que, no afã de se obter a solução jurídica concreta, o aplicador do direito deve guiar‑se pelo foco na argumentação, na per‑suasão, e nas inúmeras interações que o contraditório atual, compreendido como

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    direito de influir eficazmente no resultado final do processo, permite aos litigan‑tes, como se depreende da doutrina de Antonio do Passo Cabral (Il principio del contraddittorio come diritto d’influenza e dovere di dibattito. Rivista di Diritto Processuale, Anno LX, n. 2, aprile‑giugno, 2005, passim).

    Assim, a prova deve ser, atualmente, concebida em sua função persuasiva, de permitir, através do debate, a argumentação em torno dos elementos probató‑rios trazidos aos autos, e o incentivo a um debate franco para a formação do con‑vencimento dos sujeitos do processo. O que importa para o juízo é a denominada verdade suficiente constante dos autos; na esteira da velha parêmia quod non est in actis, non est in mundo. Resgata‑se a importância que sempre tiveram, no contexto das provas produzidas, os indícios, que podem, sim, pela argumentação das partes e do juízo em torno das circunstâncias fáticas comprovadas, apontar para uma conclusão segura e correta.

    Essa função persuasiva da prova é a que mais bem se coaduna com o sis‑tema do livre convencimento motivado ou da persuasão racional, previsto no art. 155 do CPP e no art. 93, IX, da Carta Magna, pelo qual o magistrado avalia livremente os elementos probatórios colhidos na instrução, mas tem a obrigação de fundamentar sua decisão, indicando expressamente suas razões de decidir.

    Aliás, o Código de Processo Penal prevê expressamente a prova indiciária, assim a definindo no art. 239: “Considera‑se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir‑se a exis‑tência de outra ou outras circunstâncias”.

    Sobre esse elemento de convicção, Giovanni Leone nos brinda com magis‑tral explicação:

    Presunção é a indução da existência de um fato desconhecido pela existência de um fato conhecido, supondo‑se que deva ser verdadeiro para o caso concreto aquilo que ordinariamente sói ser para a maior parte dos casos nos quais aquele fato acontece.

    (...)A presunção é legal (praesumptio iuris seu legis) se a ilação do conhecido ao

    desconhecido é feita pela lei; por outro lado, a presunção é do homem (praesumptio facti, seu hominis, seu iudicis) se a ilação é feita pelo juiz, constituindo, portanto, uma operação mental do juiz.

    (...)No Direito Processual Penal não existem, de regra, ficções e presunções le‑

    gais (...). Existe, ao contrário, a possibilidade de inclusão, no processo penal, como em qualquer outro processo, das presunções hominis.

    A expressão máxima da presunção hominis é dada pela prova indiciária.(Tradução livre do texto: Presunzione è “l’induzione della esistenza di un fatto ig-

    noto da quella di un fatto noto, sul presupposto che debba essere vero pel caso concreto ciò che ordinariamente suole essere vero per la maggior parte dei casi in cui quello rien-tra”. (...) La presunzione è legale (praesumptio iuris seu legis) se la illazione dal noto all’ignoto è fatta dalla legge; ovvero dell’uomo (praesumptio facti, seu hominis, seu iu-dicis) se la illazione è fatta dal giudice, costituendo pertanto una operazione mentale del giudice. (...) Nel diritto processuale penale nonesistono, di regola, finzioni e presunzioni legali (...). Trovano invece possibilità di inserimento nel processo penale, come in ogni

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    altro processo, le presunzioni hominis. L’espressione massima della presunzione homi-nis è data dalle prove indiziarie.) [LEONE, Giovanni. Trattato di Diritto Processuale Penale. v. II. Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1961. p. 161‑162.]

    No mesmo sentido, Nicola Malatesta, para quem, pela prova indiciária, alcança‑se determinada conclusão sobre um episódio através de um processo lógico‑construtivo; mais precisamente: “o indício é aquele argumento probatório indireto que deduz o desconhecido do conhecido por meio da relação de causa‑lidade” (MALATESTA, Nicola Framarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. Trad. J. Alves de Sá. Campinas: Servanda, 2009. p. 236).

    Assim é que, através de um fato devidamente provado que não constitui elemento do tipo penal, o julgador pode, mediante raciocínio engendrado com supedâneo nas suas experiências empíricas, concluir pela ocorrência de circuns‑tância relevante para a qualificação penal da conduta.

    Aliás, a força instrutória dos indícios é bastante para a elucidação de fatos, podendo, inclusive, por si próprios, o que não é apenas o caso dos autos, conduzir à prolação de decreto de índole condenatória. (cf. PEDROSO, Fer‑nando de Almeida. Prova penal: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 90‑91).

    Neste sentido, este egrégio Plenário, em época recente, decidiu que “indí‑cios e presunções, analisados à luz do princípio do livre convencimento, quando fortes, seguros, indutivos e não contrariados por contraindícios ou por prova direta, podem autorizar o juízo de culpa do agente” (AP  481, rel. min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 8‑9‑2011). Idêntica a orientação da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, cabendo a referência aos seguintes julgados:

    O princípio processual penal do favor rei não ilide a possibilidade de utili‑zação de presunções hominis ou facti, pelo juiz, para decidir sobre a procedência do ius puniendi, máxime porque o Código de Processo Penal prevê expressamente a prova indiciária, definindo‑a no art. 239 como “a circunstância conhecida e pro‑vada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir‑se a existência de outra ou outras circunstâncias”. Doutrina (LEONE, Giovanni. Trattato di Diritto Processuale Penale. v. II. Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1961. p. 161‑162). [HC 111.666, rel. min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 8‑5‑2012.]

    Condenação – Base. Constando do decreto condenatório dados relativos a participação em prática criminosa, descabe pretender fulminá‑lo, a partir de alega‑ção do envolvimento, na espécie, de simples indícios. [HC 96.062, rel. min. Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 6‑10‑2009.]

    Em idêntico sentido: HC 83.542, rel. min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, julgado em 9‑3‑2004; HC 83.348, rel. min. Joaquim Barbosa, Primeira Turma, jul‑gado em 21‑10‑2003.

    As digressões ora engendradas se justificam porque, nesses delitos econô‑micos e sofisticados, unem‑se as forças das provas diretas e dos indícios.

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    No direito comparado, no qual se abeberam nossos juristas, também se perfilha entendimento semelhante. Assim é que a utilização da prova indiciária para embasar a sentença penal condenatória é admitida, v.g., em Portugal, cujo Supremo Tribunal de Justiça já decidiu:

    IV – A prova nem sempre é directa, de percepção imediata, muitas vezes é baseada em indícios.

    V – Indícios são as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto; a indução parte do particular para o geral e, apesar de ser prova indirecta, tem a mesma força que a testemunhal, a documental ou outra.

    VI – A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos‑base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova directa (requisito de or‑dem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência.

    VII – O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou in‑fundado, e respeitar a lógica da experiência e da vida; dos factos‑base há‑de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência. [Portugal, Supremo Tribunal de Justiça, Processo 07P1416, n. convencional JST000, n. do documento SJ200707110014163, relator: Armindo Monteiro, data do acórdão: 11‑7‑2007.]

    Consectariamente, o quadro probatório dos autos, composto das provas orais, documentais e periciais são suficientes para lastrear uma decisão justa e atenta às garantias penais e processuais.

    Advirta‑se que a presunção de não culpabilidade somente atua como um peso em favor do acusado no momento da prolação da sentença de mérito. É dizer: se, para a sentença absolutória, existe um relaxamento na formação da convicção e na fundamen‑tação do juiz, na sentença condenatória, deve o magistrado romper esta força ou peso estabelecido pelo ordenamento em sentido contrário. Em suma: a presunção de não culpabilidade pode ser ilidida até mesmo por indícios que apontem a real probabilidade da configuração da conduta criminosa. A condenação, na esteira do quanto já exposto, não necessita basear‑se em verdades absolutas, por isso que os indícios podem ter, no conjunto probatório, robustez suficiente para que se pronuncie um juízo condenatório.

    O critério de que a condenação tenha de provir de uma convicção formada para “além da dúvida razoável” não impõe que qualquer mínima ou remota possi‑bilidade aventada pelo acusado já impeça que se chegue a um juízo condenatório. Toda vez que as dúvidas que surjam das alegações de defesa e das provas favo‑ráveis à versão dos acusados não forem razoáveis, não forem críveis diante das demais provas, pode haver condenação. Lembremos que a presunção de não cul‑pabilidade não transforma o critério da “dúvida razoável” em “certeza absoluta”.

    Nesse cenário, caberá ao magistrado criminal confrontar as versões de acusação e defesa com o contexto probatório, verificando se são verossímeis as alegações de parte a parte diante do cotejo com a prova colhida. Ao Ministério

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    Público caberá avançar nas provas ao ponto ótimo em que o conjunto probatório seja suficiente para levar a Corte a uma conclusão intensa o bastante para que não haja dúvida, ou que esta seja reduzida a um patamar baixo no qual a versão defensiva seja “irrazoável”, inacreditável ou inverossímil.

    Nesse contexto, a defesa deve trazer argumentos devidamente provados que infirmem as ilações articuladas pela acusação. A simples negativa genérica é incapaz de desconstruir o itinerário lógico que leva prima facie à condenação. Como é de sabença geral, a prova do álibi incumbe ao réu, nos termos do que dispõe o art. 156 do Código de Processo Penal (“A prova da alegação incumbirá a quem a fizer (...)”). Assim também a remansosa jurisprudência do Supremo Tri‑bunal Federal, sendo de rigor consignar os seguintes arestos:

    Ementa: Penal. Processual penal. Habeas corpus. Júri: soberania. CF, art. 5º, XXXVIII. CPP, art. 593, III, d. Álibi: ônus da prova. CPP, art. 156. I – A sobera‑nia dos veredictos do tribunal do júri não exclui a recorribilidade de suas decisões, quando manifestamente contrárias à prova dos autos (CPP, art. 593, III, d). Provido o recurso, o réu será submetido a novo julgamento pelo júri. II – Cabe à defesa a produ‑ção de prova da ocorrência de álibi que aproveite ao réu (CPP, art. 156). III – Habeas corpus indeferido. [HC 70.742, rel. min. Carlos Velloso, Segunda Turma, julgado em 16‑8‑1994, DJ de 30‑6‑2000.]

    Ementa: Habeas corpus. Álibi. Circunstância invocada após a condenação. Contradição com os demais elementos de prova. Impossibilidade de reexame dessa matéria em sede de habeas corpus. Alegação de cerceamento de defesa. Inocorrên-cia. Ordem denegada. O álibi, enquanto elemento de defesa, deve ser comprovado, no processo penal condenatório, pelo réu a quem seu reconhecimento aproveita. O ha-beas corpus não constitui sede processualmente adequada ao reconhecimento do álibi se este se revela incompatível com a prova produzida, sob o crivo do contraditório, no procedimento penal. É lícita a audiência de instrução quando, ausente o advogado constituído, que fora regularmente intimado de sua realização, vem o réu a ser assis‑tido por defensor dativo designado pelo juiz processante. [HC 68.964, rel. min. Celso de Mello, Primeira Turma, julgado em 17‑12‑1991, DJ de 22‑4‑1994.]

    A lição é idêntica em sede doutrinária. Tratando do álibi, preleciona Damá‑sio de Jesus que “[q]uem alega deve prová‑lo, sob pena de confissão” (Código de Processo Penal anotado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 187).

    Ora, se a prova deve ser compreendida em sua função persuasiva, é na argumentação do processo que se deve buscar o convencimento necessário aos magistrados para o teste probatório às alegações das partes. E um conjunto pro‑batório seguro, cuja elaboração, decorrente do debate processual, seja apta a reconstruir os fatos da vida e apontar para a ocorrência dos fatos alegados pelo Ministério Público, é o suficiente para extirpar qualquer “dúvida razoável” que as alegações de defesa tentavam impingir na convicção do julgador.

    Isso é especialmente importante em contextos associativos, no qual os crimes ou infrações administrativas são praticados por muitos indivíduos consorciados, nos quais é incomum que se assinem documentos que contenham os propósitos da

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    associação, e nem sempre se logra filmar ou gravar os acusados no ato de come‑timento do crime. Fato notório, e notoria non egent probatione, todo contexto de associação pressupõe ajustes e acordos que são realizados a portas fechadas.

    Nesse sentido, por exemplo, a doutrina norte‑americana estabeleceu a tese do “paralelismo consciente” para a prática de cartel. Isso porque normalmente não se assina um “contrato de cartel”, basta que se provem circunstâncias indiciá‑rias, como a presença simultânea dos acusados em um local e a subida simultânea de preços, v.g., para que se chegue à conclusão de que a conduta era ilícita, até porque, num ambiente econômico hígido, a subida de preços, do ponto de vista de apenas um agente econômico, seria uma conduta irracional economicamente. Portanto, a conclusão pela ilicitude e pela condenação decorre de um conjunto de indícios que apontem que a subida de preços foi fruto de uma conduta concertada.

    No mesmo diapasão é a prova dos crimes e infrações no mercado de capitais. São as circunstâncias concretas, mesmo indiciárias, que permitirão a conclusão pela condenação. Na  investigação de insider trading (uso de informação privilegiada e secreta antes da divulgação ao mercado de fato relevante): a baixa liquidez das ações; a frequência com que são negociadas; ser o acusado um neófito em operações de bolsa; as ligações de parentesco e amizade existentes entre os acusados e aqueles que tinham contato com a informação privilegiada; todas essas e outras são indícios que, em conjunto, permitem conclusão segura a respeito da ilicitude da operação.

    As provas colhidas em investigações preliminares e o contraditório

    O contraditório e a prova representam binômio inseparável, o que foi objeto de todas as sustentações. Nesse contexto, há que se enfrentar o tema da eficá‑cia das provas colhidas em procedimentos preliminares de investigação, como comissões parlamentares de inquérito e inquéritos policiais.

    As CPIs são comissões temporárias do Legislativo nacional, destinadas à apuração de dados relativos a fatos determinados e relevantes, com o fito de poste‑rior promoção da responsabilidade cível, criminal e política de eventuais envolvi‑dos. De acordo com a doutrina do insigne jurista Luís Roberto Barroso, a fórmula “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”, constante do art. 58, § 3º, da Constituição, “atribui às comissões parlamentares de inquérito competên‑cias instrutórias amplas, que incluem a possibilidade de (i) determinar diligências, (ii) convocar testemunhas (que têm o dever de dizer a verdade, sob pena de crime de falso testemunho), (iii) ouvir indiciados (quando estes não optem pelo silên‑cio), (iv) requisitar documentos públicos, (v) determinar a exibição de documen‑ tos privados, (vi) convocar ministros de Estado e outras autoridades públicas, (vii) realizar inspeções pessoais, transportando‑se aos locais necessários” (Temas de direito constitucional. São Paulo: Renovar, 2001. p. 138).

    O inquérito policial é um procedimento administrativo pré‑processual que tem por objetivo colher elementos aptos à formação da opinio delicti do órgão acusador sobre a autoria e a materialidade do crime, seja pela sua configuração,

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    seja pela sua não ocorrência. Precisamente em razão desse viés unilateral, como preleciona Bruno Bodart,

    a participação do investigado no procedimento pré‑processual não se funda‑menta no princípio do contraditório. [BODART, Bruno Vinícius da Rós. Inquérito policial, democracia e Constituição: modificando paradigmas. Revista Eletrônica de Direito Processual, Rio de Janeiro. v. III, ano 2, p. 133, jan./jul. 2009.]

    Os elementos amealhados no curso desses procedimentos preliminares, toda‑via, não ficam permanentemente alijados da apreciação judicial em futuro processo.

    A uma, porque esses elementos podem ser confirmados, sob o crivo do con‑traditório, no curso do processo penal, adquirindo, desse modo, a eficácia necessária para embasar um decreto condenatório. É o caso, deveras comum, da testemunha que ratifica em juízo todas as declarações prestadas em sede preliminar, oportunidade na qual o réu exerce em plenitude o seu direito de defesa. A prova, para todos os efeitos, passa a ser processual, na esteira da jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal (v. HC 83.348, rel. min. Joaquim Barbosa, Primeira Turma, julgado em 21‑10‑2003).

    A duas, em razão da expressa exceção contida na parte final do art. 155 do Código de Processo Penal, que autoriza que o magistrado fundamente a sua decisão nos elementos informativos colhidos na investigação quando cuidar‑se de “provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”.

    Por fim, há que se ter em mente que o mesmo art.  155 do CPP apenas proíbe que o juiz fundamente “sua decisão exclusivamente nos elementos infor‑mativos colhidos na investigação”, não impedindo a utilização de elementos pré‑processuais quando acompanhados e corroborados por provas produzidas em juízo. Esta também a pacífica jurisprudência deste Pretório Excelso, como se nota a partir dos seguintes julgados:

    Os elementos colhidos no inquérito policial podem influir na formação do livre convencimento do juiz para a decisão da causa quando complementados por outros indícios e provas obtidos na instrução judicial. Precedentes. [HC 104.669, rel. min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, julgado em 26‑10‑2010.]

    Os elementos do inquérito podem influir na formação do livre convencimento do juiz para a decisão da causa quando complementam outros indícios e provas que passam pelo crivo do contraditório em juízo. [HC 102.473, rel. min. Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 12‑4‑2011  – Assim também RE  425.734‑AgR, rel. min. Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 4‑10‑2005.]

    Superadas as questões prejudiciais probatórias, passo às premissas teóricas referentes aos delitos em espécie.

    Lavagem de dinheiro

    Incluindo as condutas narradas em seu item III, a exordial acusató‑ria imputa, no total, a prática de crimes de lavagem de dinheiro a 36 dos 40

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    denunciados. As acusações envolvem a interpretação e aplicação dos incisos V, VI e VII do art. 1º da Lei 9.613/1998.

    De proêmio, alerto que a recente alteração da Lei 9.613/1998, operada pela Lei 12.683/2012, em vigor desde o dia 10 de julho de 2012, não tem o condão de afetar este julgamento. É que se trata de legislação destinada a alargar o tipo penal da lavagem de dinheiro para abranger a ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de qualquer tipo de infração penal. Não houve alteração das penas cabíveis, de modo que as imputações lança‑das na exordial acusatória devem continuar sendo regidas pela redação pretérita.

    A lavagem de dinheiro, entendida como a prática de conversão dos provei‑tos do delito em bens que não podem ser rastreados pela sua origem criminosa, é prática combatida no mundo todo. Não se deve perder de vista que a atividade de lavagem de recursos criminosos é o grande pulmão das mais variadas maze‑las sociais, desde o tráfico de drogas, passando pelo terrorismo, até a corrupção que desfalca o erário e deixa órfãos um sem‑número de cidadãos que necessitam dos serviços públicos (v. SATOW, Joe Tadashi Montenegro. Segurança pública. Núria Fabris, 2011). Saber de onde vem o dinheiro é, muitas vezes, o único diag‑nóstico para identificar a prática de um crime e o seu autor.

    Além disso, conforme descreve Oliveira Ascensão, a respeito do direito por‑tuguês, o branqueamento de capitais (como é denominada a lavagem de dinheiro naquele país) é um mal por si, pois o seu combate previne o envenenamento de todo o sistema econômico‑financeiro (ASCENSÃO, J. Oliveira. Repressão da lavagem do dinheiro em Portugal. Revista da EMERJ, v. 6, n. 22, p. 37, 2003). Estima‑se que a lavagem de dinheiro envolva, hoje, até 5% do PIB mundial, ou seja, até dois trilhões de dólares – alguns dados chegam ao absurdo montante de 10% do PIB global (NAÍM, Moisés. Ilícito: o ataque da pirataria, da lavagem de dinheiro e do tráfico à economia global. Trad. Sérgio Lopes. Jorge Zahar Editor Ltda., 2006. p. 130). A repressão à lava‑gem de dinheiro visa a prevenir a contaminação da economia por recursos ilícitos, a concorrência desleal, o zelo pela credibilidade e pela confiança nas instituições.

    Sendo assim, a dissimulação ou ocultação da natureza, origem, localiza‑ção, disposição, movimentação ou propriedade dos proveitos criminosos desafia censura penal autônoma, para além daquela incidente sobre o delito antecedente, tal como ocorre com a ocultação do cadáver (art. 211 do Código Penal) subse‑quente a um homicídio – não se opera a consunção de um crime pelo outro.

    Em sede doutrinária, o entendimento é idêntico:

    Com relação ao concurso de crimes, o entendimento é de que há concurso material com o crime antecedente. Então, o agente que pratica o crime de lavagem de dinheiro oriundo de atividade criminosa, responde em concurso material pelo crime de lavagem e pelo crime antecedente que deu origem criminosa aos bens, valores ou direitos. Essa não seria uma hipótese de progressão criminosa, porque a autonomia dos crimes está expressa na própria lei. [BALTAZAR JR., José Paulo. Crimes federais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 594.]

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    No direito norte‑americano, a doutrina costuma distinguir três fases da lavagem de dinheiro (money laundering). A primeira fase é a da “colocação” (placement) dos recursos derivados de uma atividade ilegal em um mecanismo de dissimulação da sua origem, que pode ser realizado por instituições finan‑ceiras, casas de câmbio, leilões de obras de arte, entre outros negócios aparen‑temente lícitos. Após, inicia‑se a segunda fase, de “encobrimento”, “circulação” ou “transformação” (layering), cujo objetivo é tornar mais difícil a detecção da manobra dissimuladora e o descobrimento da lavagem. Por fim, dá‑se a “integra‑ção” (integration) dos recursos a uma economia onde pareçam legítimos (REU‑TER, Peter; TRUMAN, Edwin M. Chasing dirty money: the fight against money laundering. Washington: Peterson Institute, 2004).

    Uma vez que qualquer dessas fases tenha sido levada a efeito, resta consumado o crime do art. 1º da Lei 9.613/1998, não havendo que se cogitar da completude do ciclo para o aperfeiçoamento do delito. Suficiente, portanto, para fins de condenação, a prova da autoria e materialidade de uma das etapas da lavagem de dinheiro.

    Bem por isso, ao contrário do que sustentaram as defesas dos réus, não se pode exigir da acusação a demonstração de que os recursos retirados de um mecanismo de lavagem de dinheiro equivalem, com exata perfeição, aos bens de origem criminosa injetados na economia regular. É que o dinheiro lícito e o ilícito não reagem como água e óleo. Bens fungíveis que são, uma vez reunidos em uma mesma economia, resta impossível dissociar qual a parte advinda da atividade delituosa. Afinal, é exatamente nesta tarefa de gerar a impossibilidade de distinção que reside a atividade de lavagem.

    O elemento intencional necessário para a tipificação do delito em comento é o dolo genérico, isto é, a vontade consciente e dirigida à realização de uma ou algumas das fases da lavagem de dinheiro. Rodolfo Tigre Maia, tecendo consi‑derações sobre o art. 1º da Lei 9.613/1998, lembra que:

    [a]os moldes da lei portuguesa que inspirou o dispositivo, não se exige qualquer outro elemento subjetivo (dolo específico da doutrina tradicional) ou especial fim de agir, como requer, por exemplo, o tipo de “branqueamento” da legislação francesa (...) e, no Direito brasileiro, na receptação ou no favorecimento. [MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro (Lavagem de ativos provenientes de crime) – Anotações às dispo‑sições criminais da Lei n. 9.613/1998. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 89.]

    Não se reclama que o órgão acusador comprove o elemento anímico, sob pena de se lhe incumbir de um mister impossível, verdadeira prova diabólica. Exatamente no intuito de evitar a impunidade, a segunda das quarenta reco‑mendações do Grupo de Ação Financeira sobre a Lavagem de Dinheiro (GAFI), organismo internacional que estabelece padrões e desenvolve e promove polí‑ticas de combate a essa espécie de criminalidade, indica: “Os países deveriam assegurar que: a) A intenção e o conhecimento requeridos para provar o crime de branqueamento de capitais estão em conformidade com as normas estabelecidas nas Convenções de Viena e de Palermo, incluindo a possibilidade de o elemento intencional ser deduzido a partir de circunstâncias factuais objectivas.”

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    Deveras, basta, para o reconhecimento do dolo, ainda que na sua modali‑dade eventual, que se comprove que, pelas condições materiais em que praticado o delito, há motivos suficientes para se inferir que o agente desejava ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou proprie‑dade do numerário, em relação ao qual, também pelas circunstâncias objetivas dos fatos provados, conclua que o réu sabia ou devia saber ser proveniente, direta ou indiretamente, de crime. Conforme já decidiu esta Corte:

    O dolo eventual compreende a hipótese em que o sujeito não quer direta‑mente a realização do tipo penal, mas a aceita como possível ou provável (assume o risco da produção do resultado, na redação do art. 18, I, in fine, do CP). (...) Faz‑‑se imprescindível que o dolo eventual se extraia das circunstâncias do evento, e não da mente do autor, eis que não se exige uma declaração expressa do agente. [HC 97.252, rel. min. Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 23‑6‑2009.]

    Outra não é a lição de Klaus Tiedemann, que transcrevemos na íntegra:

    Na linha dos mais recentes acordos internacionais, que devem ter uma espe‑cial importância para o mundo anglo‑americano, há que se esclarecer, todavia, que é sim admissível deduzir dolo a partir das circunstâncias do fato. Não é que com isso se retome a teoria do dolus ex re, mas, sim, que isso se deriva da admissibilidade processual da prova indiciária.

    (Tradução livre do trecho: “en la línea de los más recientes acuerdos inter-nacionales, que han de tener una especial importancia para el mundo anglo-ame-ricano, hay que aclarar todavía que sí es admisible deducir dolo (etc) a partir de las circunstancias del hecho. No es que con ello se retome la teoría del dolus ex re, sino que esto se deriva de la admisibilidad procesal de la prueba indiciaria.” TIE‑DEMANN, Klaus. Eurodelitos: El derecho penal económico en la Unión Europea. Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilla‑La Mancha, 2004. p. 15)

    Outra objeção reiteradamente veiculada nas razões de defesa dos acusados diz respeito à eficácia do inciso VII do art. 1º da Lei 9.613/1998. Alegam os réus, em suma, que a inexistência de um crime intitulado “organização criminosa” no orde‑namento pátrio impediria a aplicabilidade desta hipótese de lavagem de dinheiro.

    O argumento, contudo, não resiste a uma análise mais atenta, pois fundado em premissas equivocadas. Ao  contrário do que sustentam os defensores, a Lei 9.613/1998 em momento algum prevê, como delito antecedente à lavagem de dinheiro, um “crime de organização criminosa”. Nem parece razoável acreditar que tenha sido a intenção do legislador fazer referência a um crime que ele mesmo não criou.

    Em verdade, pune‑se, por meio do inciso VII da referida lei, a lavagem de dinheiro que tenha como antecedente o crime “praticado por organização criminosa”, algo absolutamente distinto da figura delitiva suscitada pela defesa. Por exemplo, sabe‑se que o crime de roubo (art. 157 do CP) não era contemplado no rol de crimes antecedentes da Lei 9.613/1998, antes da sua recente alteração pela Lei 12.683/2012. Entretanto, a ocultação ou dissimulação da origem, natureza, localização, disposição ou propriedade de ativos provenientes de crimes de roubo praticados por uma organi‑zação criminosa configura, indubitavelmente, o delito de lavagem de dinheiro.

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    Por essa razão, é perfeitamente possível considerar como antecedente da lavagem o crime, seja qual for a sua natureza, praticado por uma organização criminosa. A  expressão “organização criminosa” é prevista não como objeto, ou seja, como o crime antecedente em si, tratando‑se, isso sim, do sujeito ativo responsável pela consecução do delito antecedente.

    O art. 1º, VII, da Lei 9.613/1998, no que concerne à concepção do termo orga‑nização criminosa, é complementado por duas normas, uma de maior abrangência e outra de espectro mais restrito. São elas o art. 2º da Convenção das Nações Uni‑das contra o Crime Organizado Transnacional e o art. 288 do Código Penal.

    Assim, conforme já reconhecido por este Pretório Excelso, o conceito de “organização criminosa”, para fins de complementação do tipo previsto na Lei de Lavagem de Dinheiro, pode ser extraído da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, cognominada “Convenção de Palermo”, pro‑mulgada pelo Decreto 5.015, de 12 de março de 2004 (Inq 2.786, rel. min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 17‑2‑2011). Eis o que dispõe o seu art. 2:

    Artigo 2TerminologiaPara efeitos da presente Convenção, entende‑se por:a) “Grupo criminoso organizado” – grupo estruturado de três ou mais pessoas,

    existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material;

    b) “Infração grave” – ato que constitua infração punível com uma pena de pri‑vação de liberdade, cujo máximo não seja inferior a quatro anos ou com pena superior;

    c) “Grupo estruturado” – grupo formado de maneira não fortuita para a prá‑tica imediata de uma infração, ainda que os seus membros não tenham funções formalmente definidas, que não haja continuidade na sua composição e que não disponha de uma estrutura elaborada;

    Frise‑se que este Supremo Tribunal Federal tem longeva jurisprudência no sentido de reconhecer aos tratados e convenções internacionais devidamente inter‑nalizados ao ordenamento brasileiro o mesmo status conferido às leis ordinárias (RE 80.004, rel. min. Xavier de Albuquerque, Tribunal Pleno, julgado em 1º‑6‑1977; ADI 1.480‑MC, rel. min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 4‑9‑1997).

    A integração da norma penal em branco, no caso, é feita por diploma que também tem caráter legal, não havendo que se cogitar de qualquer afronta ao princípio da legalidade. Klaus Tiedemann assevera que as normas penais em branco (Blankettstrafgesetze) são o meio típico e mais importante à disposi‑ção da técnica legislativa no direito penal econômico (TIEDEMANN, Klaus. Tecnica legislativa nel Diritto Penale Economico. Trad. Claudia Kaufmann. In: Rivista Trimestrale di Diritto Penale Dell’economia, ano XIX, n. 1‑2, jan./jun. 2006, CEDAM. p. 2). Abanto Vásquez alerta que essa técnica da norma penal “em branco” e, portanto, lex dixit quam voluit, é a adequada para conseguir o objetivo final: a proteção suficiente dos bens jurídicos que o legislador considere

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    importantes (ABANTO VÁSQUEZ, Manuel A. Derecho penal económico: con‑sideraciones jurídicas y económicas. Lima: IDEMSA, 1997. p. 24).

    Além do conceito previsto na Convenção de Palermo, o art. 1º, VII, da Lei de Lavagem de Dinheiro também é complementado pelo art.  288 do Código Penal, que prevê a quadrilha ou bando, modalidade de organização criminosa há muito conhecida no direito penal brasileiro, nos seguintes termos:

    Associarem‑se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes. [Sobre o tema, afirma Rodolfo Tigre Maia, fazendo menção ao idêntico posicionamento de Mirabete, que, para determinar‑se a presença de uma organização criminosa], bastará – tão somente – a presença dos requisitos tradicio‑nalmente exigíveis para o crime descrito no art. 288 do Código Penal, desde que associados à efetiva prática de pelo menos um crime. [MAIA, Rodolfo Tigre. Lava-gem de dinheiro. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 78.]

    Portanto, não procede a alegação de que o inciso  VII do art.  1º da Lei 9.613/1998 era desprovido de eficácia antes da internalização da Convenção de Palermo no ordenamento pátrio – a complementação da norma já era realizada, embora com espectro mais restrito, pelo art. 288 do Código Penal.

    Ao acolher, no rol de delitos originários da lavagem de dinheiro, cláu‑sula abrangente de todos os delitos perpetrados por organizações criminosas, posicionou‑se a lei brasileira na vanguarda da repressão mundial a essa sorte de ilícitos. Como é sabido, as legislações de combate à lavagem de dinheiro podem ser classificadas historicamente em três gerações. A primeira diz respeito às leis que previam somente o tráfico de drogas como delito antecedente do branquea‑mento de capitais. A geração subsequente é composta pelos diplomas que listam diversos crimes que podem figurar como antecedentes da lavagem. Por fim, na terceira geração de leis, qualquer delito é apto a constituir antecedente da prática da lavagem de dinheiro.

    Oliveira Ascensão, a respeito da evolução legislativa, ressalta manifestar‑‑se “orientação internacional no sentido de estender a incriminação ao branque‑amento de capitais com origem noutras actividades criminosas” (ASCENSÃO, JR., Oliveira. Repressão da lavagem do dinheiro em Portugal. Revista da EMERJ, v. 6, n. 22, p. 42, 2003).

    A própria Convenção de Palermo exige de todos os Estados‑partes, no seu art. 6º, n. 2, a, a extensão do crime de lavagem de dinheiro ao maior número possível de infrações subjacentes. Na Suíça, onde recentemente foi aprovado um novo Código Penal, são antecedentes da lavagem de dinheiro as infrações puni‑das com pena privativa de liberdade superior a três anos (BERNASCONI, Paolo. La criminalità economica nel nuovo codice penale svizzero. Rivista Trimestrale di Diritto Penale Dell’economia, ano XX, n. 1‑2, jan./jun. 2007, CEDAM. p. 10).

    Ressalte‑se, ainda, que a Lei 9.613/1998, conforme já indicado, foi recen‑temente alterada pela Lei 12.683/2012 para alinhar‑se às legislações de terceira geração, em um claro sinal de que a lavagem de dinheiro, seja qual for a origem dos ativos, é prática reprovável e não tolerada pela ordem jurídica brasileira.

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    Desta feita, proclamar a não incidência do inciso  VII do art.  1º da Lei 9.613/1998 é caminhar na contramão da história, restringindo indevidamente a imputação do crime de lavagem de dinheiro, quando, na realidade, a norma penal existente, devidamente complementada pela Convenção de Palermo e pelo art. 288 do Código Penal, permite a identificação de todos os elementos da sua fattispecie.

    Corrupção passiva, ato de ofício e “caixa dois”

    Ao tipificar a corrupção, em suas modalidades passiva (art. 317, CP) e ativa (art. 333, CP), a legislação infraconstitucional visa a combater condutas de inegá‑vel ultraje à moralidade e à probidade administrativas, valores encartados na Lei Magna como pedras de toque do regime republicano brasileiro (art. 37, caput e § 4º, CRFB). A censura criminal da corrupção é manifestação eloquente da into‑lerância nutrida pelo ordenamento pátrio para com comportamentos subversivos da res publica nacional. Tal repúdio é tamanho que justifica a mobilização do arsenal sancionatório do direito penal, reconhecidamente encarado como ultima ratio, para a repressão dos ilícitos praticados contra a administração pública e os interesses gerais que ela representa.

    Consoante a legislação criminal brasileira (CP, art. 317), configuram cor‑rupção passiva as condutas de “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi‑la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”. Por seu turno, tem‑se corrupção ativa no ato de “oferecer ou prometer vantagem indevida a fun‑cionário público, para determiná‑lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício” (CP, art. 333). Destaque‑se o teor dos dispositivos:

    Corrupção passivaArt. 317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente,

    ainda que fora da função ou antes de assumi‑la, mas em razão dela, vantagem inde‑vida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

    Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.§ 1º A pena é aumentada de um terço, se, em consequência da vantagem ou

    promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.

    § 2º Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem:

    Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.

    Corrupção ativaArt.  333. Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público,

    para determiná‑lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.Parágrafo único. A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem

    ou promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional.

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    Sobressai das citadas normas incriminadoras o nítido propósito de o legisla‑dor punir o tráfico da função pública, desestimulando o exercício abusivo dos pode‑res e prerrogativas estatais. Como evidente, o escopo das normas é penalizar tanto o corrupto (agente público), como o corruptor (terceiro). Daí falar‑se em crime de cor‑rupção passiva para a primeira hipótese, e crime de corrupção ativa para a segunda.

    Ainda que muitas vezes caminhem lado a lado, como aspectos simétricos de um mesmo fenômeno, os tipos penais de corrupção ativa e passiva são intrin‑secamente distintos e estruturalmente independentes, de sorte que a presença de um não implica, desde logo, a caracterização de outro. Isso fica evidente pelos próprios verbos que integram o núcleo de cada uma das condutas típicas. De um lado, a corrupção passiva pode configurar‑se por qualquer das três ações do agente público: (i) a solicitação de vantagem indevida (“solicitar”), (ii) o efetivo recebimento de vantagem indevida (“receber”) ou (iii) a aceitação de promessa de vantagem indevida (“aceitar promessa”). De  outro lado, a corrupção ativa decorre de uma dentre as seguintes condutas descritas no tipo de injusto: (i) o oferecimento de vantagem indevida a funcionário público (“oferecer”) ou (ii) a promessa de vantagem indevida a funcionário público (“prometer”).

    Assim é que, se o agente público solicita vantagem indevida em razão da função que exerce, já se configura crime de corrupção passiva, a despeito da eventual resposta que vier a ser dada pelo destinatário da solicitação. Pode haver ou não anuência do terceiro. Qualquer que seja o desfecho, o ilícito de corrupção passiva já se consumou com a mera solicitação de vantagem. De igual modo, se o agente público recebe oferta de vantagem indevida vinculada aos seus misteres funcionais, tem‑se caracterizado de imediato o crime de corrupção ativa por parte do ofertante. O agente público não precisa aceitar a proposta para que o crime se concretize. Trata‑se, portanto, de ilícitos penais independentes e autônomos.

    Essa constatação implica, ainda, outra.

    Note‑se que em ambos os casos mencionados não existe, para além da solicitação ou oferta de vantagem indevida, nenhum ato específico e ulterior por qualquer dos sujeitos envolvidos. A ordem jurídica considera bastantes em si, para fins de censura criminal, tanto a simples solicitação de vantagem indevida quanto o seu mero oferecimento a agente público. É que tais comportamentos já revelam, per se, o nítido propósito de traficar a coisa pública, cujo desvalor é intrínseco, justificando o apenamento do seu responsável.

    Um exemplo prosaico auxilia a compreensão do tema. Um  policial que, para deixar de multar um motorista infrator da legislação de trânsito, solicita‑‑lhe dinheiro, incorre, de plano, no crime de corrupção passiva. O agente público sequer necessita deixar de aplicar a sanção administrativa para que o crime de cor‑rupção se consume. Basta que solicite vantagem em razão da função que exerce. De igual sorte, se o motorista infrator é quem toma a iniciativa e oferece dinheiro ao policial, aquele comete crime de corrupção ativa. O agente público não precisa aceitar a vantagem e deixar de aplicar a multa para, só após, o crime de corrupção

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    ativa se configurar. Ele se materializa desde o momento em que houve a oferta de vantagem indevida para determiná‑lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício.

    Isso serve para demonstrar que o crime de corrupção (passiva ou ativa) independe da efetiva prática de ato de ofício. A  lei penal brasileira, tal como literalmente articulada, não exige tal elemento para fins de caracterização da corrupção. Em verdade, a efetiva prática de ato de ofício configura circunstância acidental na materialização do referido ilícito, podendo até mesmo contribuir para sua apuração, mas irrelevante para sua configuração.

    Um exame cuidadoso da legislação criminal brasileira revela que o ato de ofício representa, no tipo penal da corrupção, apenas o móvel daquele que oferece a peita, a finalidade que o anima. Em outros termos, é a prática possível e eventual de ato de ofício que explica a solicitação de vantagem indevida (por parte do agente estatal) ou o seu oferecimento (por parte de terceiro).

    E mais: não é necessário que o ato de ofício pretendido seja, desde logo, certo, preciso e determinado. O comportamento reprimido pela norma penal é a pretensão de influência indevida no exercício das funções públicas, traduzida no direcionamento do seu desempenho, comprometendo a isenção e imparcialidade que devem presidir o regime republicano.

    Não por outro motivo a legislação, ao construir linguisticamente os aludidos tipos de injusto, valeu‑se da expressão “em razão dela”, no art. 317 do Código Penal, e da preposição “para” no art. 330 do Código Penal. Trata‑se de construções linguís‑ticas com campo semântico bem‑delimitado, ligado às noções de explicação, causa ou finalidade, de modo a revelar que o ato de ofício, enquanto manifestação de potes‑tade estatal, existe na corrupção em estado potencial, i.e., como razão bastante para justificar a vantagem indevida, mas sendo dispensável para a consumação do crime.

    Voltando ao exemplo já mencionado, pode‑se dizer que é a titularidade de função pública pelo policial que explica a solicitação abusiva por ele realizada ao motorista infrator. Não fosse o seu poder de aplicar multa (ato de ofício), difi‑cilmente sua solicitação seria recebida com alguma seriedade pelo destinatário. Da mesma forma, é a simples possibilidade de deixar de sofrer a multa (ato de ofício) que explica por que o motorista infrator se dirigiu ao policial e não a qual‑quer outro sujeito. Em ambos os casos, o ato de ofício funciona como elemento atrativo ou justificador da vantagem indevida, mas jamais pressuposto para a configuração da conduta típica de corrupção.

    Não se pode perder de mira que a corrupção passiva é modalidade de crime formal, assim compreendidos aqueles delitos que prescindem de resultado natura‑lístico para sua consumação, ainda que possam, eventualmente, provocar modifi‑cação no mundo exterior, como mero exaurimento da conduta criminosa. O ato de ofício, no crime de corrupção passiva, é mero exaurimento do ilícito, cuja materia‑lização exsurge perfeita e acaba com a simples conduta descrita no tipo de injusto.

    Em síntese: o crime de corrupção passiva configura‑se com a simples soli‑citação ou o mero recebimento de vantagem indevida (ou de sua promessa), por agente público, em razão das suas funções, ou seja, pela simples possibilidade

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    de que o recebimento da propina venha a influir na prática de ato de ofício. Já o crime de corrupção ativa caracteriza‑se com o simples oferecimento de vanta‑gem indevida (ou de sua promessa) a agente público com o intuito de que este pratique, omita ou retarde ato de ofício que deva realizar. Em nenhum caso a materialização do ato de ofício integra a estrutura do tipo de injusto.

    Antes que se passe à análise das particularidades do caso sub examine, mister enfrentar uma construção muitas vezes brandida da tribuna que, não fosse analisada com cautela, poderia confundir o cidadão e embaraçar a cor‑reta compreensão do ordenamento jurídico brasileiro. Trata‑se do argumento – improcedente, já adianto – de que, fosse o ato de ofício dispensável no crime de corrupção passiva, os ministros do Supremo Tribunal Federal seriam todos criminosos por receberem com alguma frequência livros e periódicos de edi‑toras e autores do meio jurídico. Noutras palavras, a configuração do crime de corrupção passiva, tal como articulado por alguns advogados, dependeria da demonstração da ocorrência de um certo e determinado ato de ofício pelo titu‑lar do múnus público.

    A estrutura do raciocínio é típica dos argumentos ad absurdum, ampla‑mente conhecidos e estudados pela lógica formal. Assume‑se como verdadeira determinada premissa e dela se extraem consequências absurdas ou ridículas, o que sugere que a premissa inicial deva estar equivocada.

    Ocorre que, in casu, a reductio ad absurdum não tem o condão de infirmar a conclusão quanto à desnecessidade de efetiva prática de ato de ofício para con‑figuração do crime de corrupção passiva.

    Com efeito, a dispensa da efetiva prática de ato de ofício não significa que este seja irrelevante para a configuração do crime de corrupção passiva. Con‑soante consignado linhas atrás, o ato de ofício representa, no tipo penal da cor‑rupção, o móvel do criminoso, a finalidade que o anima. Daí que, em verdade, o ato de ofício não precisa se concretizar na realidade sensorial para que o crime de corrupção ocorra. É necessário, porém, que exista em potência, como futuro resultado prático pretendido, em comum, pelos sujeitos envolvidos (corruptor e corrupto). O corruptor deseja influenc