revista trimestral de jurisprudência · em 5‑6‑89: 14 anos e 2 meses de reclusão com...

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Revista Trimestral de Jurisprudência volume 220 abril a junho de 2012

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  • Revista Trimestral de Jurisprudência

    volume 220abril a junho de 2012

  • Disponível também em:

    Secretaria-Geral da Presidência Anthair Edgard de Azevedo Valente e Gonçalves

    Secretaria de Documentação Janeth Aparecida Dias de Melo

    Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência Andreia Fernandes de Siqueira

    Equipe técnica: Camila Neves Machado (estagiária), Gil Wadson Moura Júnior, José Carlos Bezerra de Siqueira Júnior (estagiário), Larissa Luiza Braga e Silva (estagiária), Priscila Heringer Cerqueira Pooter e Valquirio Cubo Junior

    Diagramação: Eduardo Franco Dias

    Revisão: Amélia Lopes Dias de Araújo, Lilian de Lima Falcão Braga, Mariana Sanmartin de Mello e Rochelle Quito

    Capa: Núcleo de Programação Visual

    (Supremo Tribunal Fe deral — Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal)

    Revista Trimestral de Jurisprudência / Supremo Tribunal Federal. – V. 1,n. 1 (abr./jun. 1957) ‑ . – Brasília : STF, 1957‑ .

    v. ; 22 x 16 cm.Trimestral.Título varia: RTJ.Repositório Oficial de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.Nome do editor varia: Imprensa Nacional / Supremo Tribunal Federal,

    1957 a 2001; Editora Brasília Jurídica, 2002 a 2006; Supremo TribunalFederal, 2007‑ .

    Disponível também em formato eletrônico a partir de abr. 1957:http://www.stf.jus.br/portal/indiceRtj/pesquisarIndiceRtj.asp.

    ISSN 0035‑0540.

    1. Tribunal supremo, jurisprudência, Brasil. 2.  Tribunal supremo,periódico, Brasil. I.  Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF).Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência. II. Título: RTJ.

    CDD 340.6

    Solicita ‑se permuta. Pídese canje. On demande l’échange. Si richiede lo scambio. We ask for exchange. Wir bitten um Austausch.

    Seção de Distribuição de Edições Maria Cristina Hilário da SilvaSupremo Tribunal FederalAnexo II ‑A, Cobertura, Sala C ‑624 Praça dos Três Poderes 70175‑900 – Brasília ‑DF [email protected] Fone: (061) 3217‑4780

  • Su PRE mo TRIBuNAL FEDERAL

    Mi nis tro Carlos Augusto AyRES de Freitas BRITTO (25‑6‑2003), PresidenteMi nis tro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25‑6‑2003), Vice ‑PresidenteMi nis tro José CELSO DE MELLO Filho (17‑8‑1989)Mi nis tro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello (13‑6‑1990)Mi nis tro GILMAR Ferreira MENDES (20‑6‑2002)Mi nis tro Antonio CEZAR PELUSO (25‑6‑2003) Mi nis tro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI (16‑3‑2006)Mi nis tra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha (21‑6‑2006)Ministro José Antonio DIAS TOFFOLI (23‑10‑2009)Ministro LUIZ FUX (3‑3‑2011)Ministra ROSA Maria WEBER Candiota da Rosa (19‑12‑2011)

    COMPOSIÇÃO DAS TURMAS

    PRIMEIRA TURMA

    Ministro José Antonio DIAS TOFFOLI, PresidenteMinistro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias MelloMinistra CÁRMEN LÚCIA Antunes RochaMinistro LUIZ FUXMinistra ROSA Maria WEBER Candiota da Rosa

    SEGUNDA TURMA

    Ministro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI, PresidenteMinistro José CELSO DE MELLO Filho Ministro GILMAR Ferreira MENDES Ministro Antonio CEZAR PELUSOMinistro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes

    PROCURADOR‑GERAL DA REPÚBLICA

    Doutor ROBERTO MONTEIRO GURGEL SANTOS

  • COMPOSIÇÃO DAS COMISSÕES

    COMISSÃO DE REGIMENTO

    Mi nis tro MARCO AURÉLIOMi nis tro JOAQUIM BARBOSAMi nis tro RICARDO LEWANDOWSKIMi nis tro LUIZ FUX – Suplente

    COMISSÃO DE JURISPRUDÊNCIA

    Mi nis tro GILMAR MENDESMi nis tra CÁRMEN LÚCIAMi nis tro LUIZ FUX

    COMISSÃO DE DOCUMENTAÇÃO

    Mi nis tro CELSO DE MELLOMinistro DIAS TOFFOLIMinistra ROSA WEBER

    COMISSÃO DE COORDENAÇÃO

    Mi nis tro CEZAR PELUSOMi nis tro GILMAR MENDESMinistro DIAS TOFFOLI

  • SumÁRIo

    Pág.

    ACÓRDÃOS .................................................................................................................... 9

    ÍNDICE ALFABÉTICO ........................................................................................... 613

    ÍNDICE NUMÉRICO .............................................................................................. 639

  • ACÓRDÃOS

  • EXTRADIÇÃo 1.140 — REPÚBLICA ITALIANA

    Relator: O Sr. Ministro Gilmar Mendes

    Requerente: Governo da Itália — Extraditando: Pierluigi Bragaglia

    Extradição executória requerida pelo Governo da Itália. 2. Tratado bilateral entre a República Federativa do Brasil e a República Italiana (Decreto 863/1993). 3. Processamento do pe-dido de acordo com a Lei 6.815/1980. Requisitos formais atendi-dos. 4.  Pedido baseado em quatro condenações transitadas em julgado impostas ao extraditando. Crimes de sequestro de pessoa, detenção e porte ilegítimo de armas, receptação, assalto e forma-ção de quadrilha armada. 5. Dupla tipicidade: correspondência do ato delituoso nas leis brasileira e italiana. 6. Sentença profe-rida pelo Tribunal de menores de Roma. Pedido inviável. Inim-putabilidade do acusado à época dos fatos. Precedentes do STF. 7. Prescrição da pretensão executória no tocante às sentenças do Tribunal Penal de Apelação de Roma (17 de junho de 1988 e 21 de janeiro de 1991) e do Tribunal Penal de Roma de 7 de outubro de 1991. 8. Extradição indeferida. Prisão preventiva revogada.

    ACÓRDÃO

    Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supre‑ mo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Cezar Peluso, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, indeferir o pedido de extradição, nos termos do voto do Relator, Ministro Gilmar Mendes.

    Brasília, 21 de outubro de 2010 — Gilmar Mendes, Relator.

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    RELATÓRIO

    O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Trata ‑se de pedido de extradição executó‑ria, formulado pelo Governo da Itália, por intermédio da Nota Verbal 192/2008.

    O pleito extradicional está baseado no art. 84 da Lei 6.815, de 19 de agosto de 1980 (Estatuto do Estrangeiro), e no Tratado de Extradição firmado entre a República Federativa do Brasil e a República Italiana em 17 de outubro de 1989.

    Segundo a referida nota verbal, em 8 de julho de 1998, foi emitida a Ordem de Execução 15/93 R. Es. Ass. 129/94 R.G pela Procuradoria da República junto ao Tribunal de Roma, em desfavor do extraditando, para cumprimento de uma pena de doze anos e onze meses de prisão, resultante das sentenças definitivas de 17 de junho de 1988, de 7 de novembro de 1990, de 21 de janeiro de 1991 e de 7 de outubro de 1991, pelos crimes de sequestro de pessoa, detenção e porte ilegí‑timo de armas, receptação, assalto e formação de quadrilha armada (fl. 4).

    Em 1º de julho de 2008, o então Relator, Ministro Cezar Peluso, decretou a prisão preventiva do extraditando (fl. 25, PPE 609).

    Em 3 de julho de 2008, o extraditando foi recolhido às dependências da Superintendência Regional da Polícia Federal em São Paulo (fl. 30, PPE 609). Posteriormente, foi delegada ao Juízo da Seção Judiciária de São Paulo a compe‑tência para a realização do interrogatório (fl. 966).

    Em 19 de novembro de 2008, os autos foram recebidos da Justiça Federal do Estado de São Paulo com o termo de interrogatório e a defesa escrita do extra‑ditando (fls. 1018‑1021 e 1037‑1048).

    No parecer de fls. 1163‑1180, a Procuradoria ‑Geral da República assim discorreu sobre o interrogatório e a defesa prévia apresentada pelo extraditando:

    Constam dos autos o interrogatório do extraditando (fls. 1018‑1021), bem como sua defesa técnica, na qual sustenta, em síntese: i) que deve ser desconside‑rado qualquer pedido fundado no cumprimento de pena igual ou inferior a 1 (um) ano de reclusão, sob o risco de violar ‑se o art. 2º do Tratado bilateral específico; ii) que o acórdão condenatório do Tribunal dos Menores de Roma proferido em 7 de novembro de 1990 diz respeito a delito praticado quando ainda era menor de idade, tornando incabível seu deferimento; iii) que ocorreu a extinção da punibili‑dade em relação aos demais acórdãos condenatórios proferidos contra a sua pessoa, haja vista a ocorrência da prescrição das pretensões executórias; iv) que o Estado requerente não instruiu de maneira adequada o processo, faltando a cópia integral das decisões condenatórias de 1ª instância, informações relativas ao quantum de pena atribuído a cada delito praticado e não há referência ao acréscimo decorrente do concurso formal ou do crime continuado; v) que o Governo da Itália não pode invocar a prática do crime de terrorismo, tendo em vista que os fatos narrados são anteriores à promulgação da Constituição Federal de 1988 e vi) que, especifica‑mente quanto ao mérito, os crimes possuem conotação política, circunstância que obstaculiza o deferimento do pedido (fls. 1037‑1048).(Fl. 1164.)

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    O parecer da Procuradoria ‑Geral da República foi no sentido do indeferi‑mento do pedido de extradição executória, nos termos da ementa transcrita:

    Extradição executória formulada pelo Governo italiano. Pedido que se las‑treia em quatro condenações transitadas em julgado impostas ao extraditando. Hipóteses que não configuram crime político. Princípio da preponderância (artigo 77, § 1º, da Lei n. 6.815/80). No mérito, ausência dos requisitos da dupla punibili‑dade e da dupla tipicidade. Parecer pelo indeferimento do pedido.(Fl. 1163.)

    Em 1º de outubro de 2010, revoguei a prisão preventiva decretada nestes autos à fl. 25 (PPE 609), determinando a expedição de alvará de soltura a ser cumprido com as cautelas legais, ou seja, caso o extraditando não se encontrasse sob a custódia do Estado por motivo diverso do retratado nesta extradição.

    É o relatório.

    VOTO

    O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Relator): O nacional italiano Pierluigi Bragaglia foi condenado à pena de doze anos e onze meses de reclusão, resul‑tante da reunião de quatro acórdãos condenatórios, pela prática dos crimes de desvio ou subtração de armas; armas clandestinas; transporte ilícito, para local público ou aberto, de armas, substâncias químicas, explosivos e engenhos; sequestro de pessoas; assalto; receptação; atentado para o fim de terrorismo ou de eversão; favorecimento pessoal; quadrilha; associação subversiva e associação para fins de terrorismo ou de eversão da ordem democrática (Ordem de Execução 15/1993 emitida pela Procuradoria da República junto ao Tribunal de Roma).

    Consta dos autos:

    Contra Bragaglia Pierluigi existem, entre outras, as seguintes condenações:1) Sentença do Tribunal Penal de Apelação de Roma de 17‑6‑88, irrevogável

    em 5‑6‑89: 14 anos e 2 meses de reclusão com interdição perpétua ao exercício de funções públicas, interdição legal pela duração da pena e liberdade vigiada por três anos; por violação dos artigos 56, 628, 3º parágrafo n. 1, 605, 648, 628, 3º parágrafo n. 1, 280, 378 C.P. e 12 e 14 da Lei 497/74; 21, 23 lei n. 110/75.

    crimes cometidos entre abril de 1981 e 5‑3‑1982;com despacho do Tribunal Penal de Apelação de Roma de 14‑12‑89, perdoa‑

    dos 5 meses de reclusão ex D.P.R. (Decreto do Presidente da República) n. 865/86;com despacho do Tribunal Penal de Apelação de Roma de 25‑3‑91, perdoa‑

    dos 2 anos de reclusão ex D.P.R. n. 394/90;2) Sentença do Tribunal de Menores de Roma de 7‑11‑90, irrevogável em

    10‑12‑1990: 11 meses de reclusão e 500.000 liras de multa, por violação dos artigos 2 e 7 da lei n. 895/1967;

    crime cometido em 25‑1‑77;com despacho do Tribunal de Menores de Roma de 27‑2‑91, perdoada toda a

    pena ex D.P.R. n. 394/90;

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    3) Sentença do Tribunal Penal de Apelação de Roma de 21‑1‑1991, irrevo‑gável em 11‑12‑91: 6 meses e 10 dias de reclusão, por violação dos artigos 12 e 14 da lei n. 497/74, pena acrescentada em continuidade delitiva à infligida na sentença indicada no item 1;

    crime cometido em 5‑12‑79;perdoados 10 dias de reclusão ex D.P.R. n. 865/86;4) Sentença do Tribunal Penal de Roma de 7‑10‑91, irrevogável em 20‑9‑93:

    1 ano de reclusão, assim subdividida:a) 8 meses de reclusão por violação do artigo 306 C.P.;b) 4 meses de reclusão por participação numa associação eversiva (artigo

    270, 3º parágrafo e 270 bis, 2º parágrafo C.P.);pena acrescentada em continuidade delitiva à infligida na sentença indicada

    no item 1;crimes cometidos até 5‑3‑82(...)Determinaa pena residual a ser expiada por Bragaglia Pierluigi, detraindo a pena ex‑

    piada, perdoada e perdoável, em 12 anos, 11 meses de reclusão, além da interdição perpétua ao exercício de funções públicas, interdição legal durante a pena e, uma vez expiada a pena, liberdade vigiada por 3 anos.(Fls. 13‑14.)

    Inicialmente, verifico que o pedido de extradição, formulado pela Repú bli‑ ca da Itália, contempla todas as formalidades legais, atendendo ao disposto nos arts. 80 da Lei 6.815/1980 e 11 do Tratado bilateral específico. Estão presentes os acórdãos condenatórios e os documentos que elucidam locais, datas, natureza e circunstância dos crimes em razão dos quais se demanda a extradição. En con tra ‑se devidamente individualizado e identificado o extraditando, e foram colacionados os textos legais pertinentes às condenações e ao procedimento que as precedeu.

    Segundo a Nota Verbal 192/2008, o pedido extradicional compõe ‑se de quatro objetos distintos: Sentença do Tribunal Penal de Apelação de Roma de 17 de junho de 1988; Sentença do Tribunal de Menores de Roma de 7 de novembro de 1990; Sentença do Tribunal Penal de Apelação de Roma de 21 de janeiro de 1991 e Sentença do Tribunal Penal de Roma de 7 de outubro de 1991.

    Passo à análise do primeiro acórdão condenatório: sentença do Tribunal Penal de Apelação de Roma de 17 de junho de 1988.

    Conforme assevera o Governo requerente, o extraditando era membro de uma associação subversiva denominada Nuclei Armati Rivoluzionari (N.A.R), agindo com finalidade de terrorismo e eversão da ordem democrática (fl. 37). As  condutas criminosas ocorreram entre os meses de dezembro de 1979 e março de 1982.

    Conforme ressaltou o Ministério Público Federal em seu parecer, o ponto mais complexo no exame do 1º objeto do presente pedido diz respeito à possível classificação desses fatos como crimes políticos puros, matéria prejudicial à aná‑lise dos requisitos da dupla punibilidade e da dupla tipicidade:

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    22. Apesar de a Nota Verbal mencionar a existência de um movimento político objetivando a alteração da própria vida do Estado italiano, na hipótese sob análise, houve mais do que a simples expressão da indignação com a política de uma época.

    23. A sentença e o acórdão condenatórios referiram ‑se a crimes graves contra a vida e a incolumidade física, contra o patrimônio, contra a fé pública, aquisição de ar‑mas e munições, atuação de um bando armado. Ou seja, a noção que sobressai é a do cometimento de atos voltados, de forma genérica, contra a própria população italiana.

    24. Dessarte, a eventual motivação política existente amesquinha ‑se, avultando a figura do crime comum. (...) o Supremo Tribunal Federal considerou que a motiva‑ção política dos fatos não autoriza, por si só, a classificação dos crimes como políticos.

    No acórdão em exame, Pierluigi Bragaglia foi condenado por homicídio de Alessandro Caravillani, por tentativa de homicídio de Dreossi e por lesões corporais infligidas aos policiais Paolo Espa e Antônio Petrillo, além das infligi‑das a três passantes, Alvaro Parlanti, Olga Ronci e Alessandra Falzetti, durante o assalto ao banco Banca Nazionale del Lavoro, agência n. 2, ocorrido em 5 de março de 1982, que, embora guardem certa motivação política, não tiveram como plano de fundo, por exemplo, uma manifestação ou rebelião, além do que ceifaram a vida de um civil que se encontrava indefeso.

    O extraditando também foi condenado pelo roubo qualificado praticado contra o Banco di Roma, agência n. 26, em 22 de março de 1982, e pelo crime de extorsão mediante sequestro de Pier Carlo Croce e outros, praticado em 28 de janeiro de 1982.

    Pela descrição mencionada, conclui ‑se que os fatos relativos ao 1º objeto do pedido de extradição executória caracterizam ‑se como crimes comuns, sendo, portanto, passíveis de extradição.

    Analiso, a seguir, a questão da dupla tipicidade.

    Com relação aos crimes de detenção e porte ilegítimo de armas, menciona o Ministério Público Federal:

    À época dos eventos criminosos relatados, o Estado brasileiro encontrava ‑se sob a égide da Emenda Constitucional n. 1/69, não havendo que se cogitar acerca da aplicação dos dispositivos da Constituição Federal de 1988, ou da Lei 10.826/03, que dispõem sobre os crimes relativos às armas de fogo e munição.

    45. Diante disso, não é possível o deferimento do pleito quanto aos crimes previstos nos artigos 10 e 12 da Lei n. 497/74, que estabeleceu Disposições para o Controle de Armas, pois, no Direito pátrio, de acordo com a legislação em vigor à época, tais delitos eram punidos à título de contravenção penal (Decreto ‑lei n. 3.688/41), não cabendo, pois, o pedido de extradição (art. 77, II, Lei n. 6.815/80).

    46. No que diz respeito à condenação pelos crimes dispostos nos artigos 21 e 23 da Lei n. 110/75, que cuida das normas para o controle das armas, munições e substâncias explosivas, a hipótese é de indeferimento do pedido, tendo em vista que tais condutas são absorvidas pelos delitos de roubo qualificado; extorsão mediante sequestro, homicídio e tentativa de homicídio qualificados.

    47. A posse das armas clandestinas constituem fatos necessariamente pre‑sentes a atingir o desideratum maior, constituindo ‑se, por conseguinte, em artefatos não puníveis.

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    48. É o chamado “delito progressivo”, isto é, quando o agente para realizar a conduta que verdadeiramente almeja, tem de fatalmente cumprir etapas que, em si, seriam ilícitos criminais, mas que, no computo final, a este sucumbem.

    Segundo os autos, o delito de atentado engloba os crimes de homicídio, ten‑tativa de homicídio e de lesão corporal praticados pelo extraditando, correspon‑dendo ao crime descrito no art. 26, parágrafo único, da Lei 6.620/1979 (crimes contra a Segurança Nacional).

    O sequestro de pessoas e o assalto qualificado também se enquadram no art. 26, caput, da Lei 6.620/1979, em razão da finalidade pela qual foram pratica‑dos (atentatória à Segurança Nacional).

    Os delitos de receptação e favorecimento pessoal equivalem aos crimes de receptação e de favorecimento pessoal, previstos nos arts. 180 e 348 do CPB.

    Assim, no que se refere aos delitos de atentado, favorecimento pessoal, sequestro de pessoas, assalto qualificado e receptação, previstos, respectiva‑mente, nos arts. 280, 378, 605, 628 e 648 do Código Penal da Itália, observa ‑se a presença do requisito da dupla tipicidade.

    Quanto à configuração da prescrição nos termos das leis brasileira e ita‑liana, observa ‑se a sua ocorrência, o que inviabiliza a extradição. É o que também indica a Procuradoria ‑Geral da República em sua manifestação (fls. 1176‑1177):

    Apesar de a pena total imposta a Pierluigi Bragaglia pelo Tribunal Penal de Apelação de Roma em 17 de junho de 1988 ser de 14 (catorze) anos e 2 (dois) meses de reclusão, o Estado requerente, por meio da Nota Verbal n. 111/2009, informou que a pena infligida pelo crime previsto no art. 280 do CP italiano foi de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de reclusão e, para os demais delitos atribuídos ao extradi‑tando, infligiu ‑se, à título de continuação, a pena de 10 (dez) meses de reclusão para cada um destes (fls. 1128‑1130).

    57. Destaca, ainda, o Governo da Itália que a quantificação de cada um dos aumentos de pena para cada crime não constam do acórdão condenatório.

    58. Evidente, portanto, a extinção da punibilidade pela consumação da pres‑crição executória.

    59. O art. 119 do Código Penal determina que “no caso de concurso de crimes, a extinção da punibilidade incidirá sobre a pena de cada um, isoladamente”. Sendo as‑sim, passa ‑se ao cálculo individualizado de cada condenação sofrida pelo extraditando.

    60. Considerando que houve o trânsito em julgado da Sentença do Tribunal Penal de Apelação de Roma em 5 de junho de 1989, a pena de 3 (três) anos e 4 (qua‑tro) meses pelo crime de atentado prescreveu em junho de 1997 (art. 109, IV, CPB).

    61. As demais condenações de 10 (dez) meses impostas ao extraditando à título de continuação prescreveram em junho de 1991 (art. 109, VI, CPB).(Fls. 1176‑1177.)

    Com relação à sentença proferida pelo Tribunal de Menores de Roma, voto pelo indeferimento da extradição.

    Na espécie, as condutas atribuídas ao extraditando foram praticadas em janeiro de 1977, quando Pierluigi Bragaglia tinha apenas 17 anos e 1 mês de

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    idade. Considerando a inimputabilidade do acusado à época dos fatos, inviável é o pedido da extradição, que pressupõe o cometimento de crime e a impu‑tabilidade penal (Cf. PPE  463, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 11‑11‑2003 e HC 72.419/SP, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 27‑10‑1995).

    Por fim, no que se refere aos dois últimos acórdãos condenatórios, ou seja, à sentença do Tribunal Penal de Apelação de Roma de 21 de janeiro de 1991 e à sentença do Tribunal Penal de Roma de 7 de outubro de 1991, também é inviável a extradição pela ocorrência da prescrição. Nesse mesmo sentido, a Procuradoria ‑Geral da República:

    68. Segundo a Nota Verbal, foram impostas ao extraditando as penas de 6 (seis) meses e 10 dias de reclusão por violação aos arts. 12 e 14 da Lei n. 497/74, referente ao 3º objeto do pedido de extradição, e de 8 (oito) meses de reclusão por violação ao art. 306 do Código Penal italiano e de 4 (quatro) meses de reclu‑são por violação ao art. 270, 3º parágrafo e 270 bis, 2º parágrafo do Código Penal italiano, relativas ao 4º objeto (fl. 14).

    69. Tendo em vista que as sentenças do Tribunal Penal de Apelação de Roma e do Tribunal Penal de Roma transitaram em julgado, respectivamente, em 11 de dezembro de 1991 e em 20 de setembro de 1993 (fls. 6; 14 e 173), patente a extinção da punibilidade (art. 109, VI, c/c 110, ambos do CPB) e a inviabilidade do pedido de extradição quanto aos 3º e 4º objetos (art. 77, VI, da Lei n. 6.815/80 e art. III, b, do Tratado bilateral específico).

    Por tudo quanto posto, meu voto acolhe o parecer do Ministério Público Federal no sentido de indeferir o pedido extradicional e, por consequência, con‑firmo a liminar concedida para revogar a prisão preventiva decretada nestes autos.

    É como voto.

    EXTRATO DA ATA

    Ext 1.140/República Italiana — Relator: Ministro Gilmar Mendes. Re que‑ren te: Governo da Itália. Extraditando: Pierluigi Bragaglia (Advogados: Tiago Peres Barbosa e outros).

    Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, indeferiu o pedido de extradição. Falou pelo extraditando o Dr. Antônio Roberto Barbosa. Presidiu o julgamento o Ministro Cezar Peluso.

    Presidência do Ministro Cezar Peluso. Presentes à sessão os Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Dias Toffoli. Pro cura‑dor ‑Ge ral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos.

    Brasília, 21 de outubro de 2010 — Luiz Tomimatsu, Secretário.

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    AÇÃo DIRETA DE INCoNSTITuCIoNALIDADE 1.856 — RJ (ADI 1.856‑MC na RtJ 175/864)

    Relator: O Sr. Ministro Celso de Mello

    Requerente: Procurador ‑Geral da República — Interessados: Governador do Estado do Rio de Janeiro e Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro

    Ação direta de inconstitucionalidade – Briga de galos (Lei fluminense 2.895/1998)  – Legislação estadual que, pertinente a exposições e a competições entre aves das raças combatentes, fa-vorece essa prática criminosa – Diploma legislativo que estimula o cometimento de atos de crueldade contra galos de briga – Crime ambiental (Lei 9.605/1998, art. 32) – meio ambiente – Direito à preservação de sua integridade (CF, art.  225)  – Prerrogativa qualificada por seu caráter de metaindividualidade – Direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão) que consagra o pos-tulado da solidariedade – Proteção constitucional da fauna (CF, art. 225, § 1º, VII) – Descaracterização da briga de galo como ma-nifestação cultural  – Reconhecimento da inconstitucionalidade da lei estadual impugnada – Ação direta procedente.

    Legislação estadual que autoriza a realização de exposi-ções e competições entre aves das raças combatentes  – Nor- ma que institucionaliza a prática de crueldade contra a fau- na – Inconstitucionalidade.

    – A promoção de briga de galos, além de caracterizar prática criminosa tipificada na legislação ambiental, configura conduta atentatória à Constituição da República, que veda a submissão de animais a atos de crueldade, cuja natureza perversa, à seme-lhança da “farra do boi” (RE  153.531/SC), não permite sejam eles qualificados como inocente manifestação cultural, de caráter meramente folclórico. Precedentes.

    – A proteção jurídico -constitucional dispensada à fauna abrange tanto os animais silvestres quanto os domésticos ou do-mesticados, nesta classe incluídos os galos utilizados em rinhas, pois o texto da Lei Fundamental vedou, em cláusula genérica, qualquer forma de submissão de animais a atos de crueldade.

    – Essa especial tutela, que tem por fundamento legitimador a autoridade da Constituição da República, é motivada pela neces-sidade de impedir a ocorrência de situações de risco que ameacem ou que façam periclitar todas as formas de vida, não só a do gênero humano, mas, também, a própria vida animal, cuja integridade restaria comprometida, não fora a vedação constitucional, por prá-ticas aviltantes, perversas e violentas contra os seres irracionais, como os galos de briga (“gallus -gallus”). magistério da doutrina.

  • R.T.J. — 220 19

    Alegação de inépcia da petição inicial.

    – Não se revela inepta a petição inicial, que, ao impugnar a validade constitucional de lei estadual, (a) indica, de forma adequada, a norma de parâmetro, cuja autoridade teria sido desrespeitada, (b) estabelece, de maneira clara, a relação de an-tagonismo entre essa legislação de menor positividade jurídica e o texto da Constituição da República, (c) fundamenta, de modo inteligível, as razões consubstanciadoras da pretensão  de in-constitucionalidade deduzida pelo autor e (d) postula, com ob-jetividade, o reconhecimento da procedência do pedido, com a consequente declaração de ilegitimidade constitucional da lei questionada em sede de controle normativo abstrato, delimi-tando, assim, o âmbito material do julgamento a ser proferido pelo Supremo Tribunal Federal. Precedentes.

    ACÓRDÃO

    Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supre‑ mo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Cezar Peluso, na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, rejeitar as preliminares arguidas e, no mérito, também por unanimidade, julgar procedente a ação direta para declarar a inconstitucio‑nalidade da Lei 2.895, de 20 de março de 1998, do Estado do Rio de Janeiro, nos termos do voto do Relator. Votou o Presidente, Ministro Cezar Peluso. Ausente, justificadamente, a Ministra Ellen Gracie.

    Brasília, 26 de maio de 2011 — Celso de Mello, Relator.

    RELATÓRIO

    O Sr. Ministro Celso de Mello: Trata -se de ação direta de inconstituciona‑lidade, que, proposta pelo Procurador ‑Geral da República, tem por finalidade questionar a validade jurídico ‑constitucional da Lei estadual 2.895, de 20 de março de 1998, do Estado do Rio de Janeiro (fls. 2/4).

    A Lei fluminense 2.895/1998 foi editada com o objetivo de legitimar a realização de exposições e de competições entre aves não pertencentes à fauna silvestre, possuindo o seguinte conteúdo normativo (fls. 5/6):

    Lei n. 2.895, de 20 de março de 1998.Autoriza a criação e a realização de exposições e competições entre aves

    das raças combatentes (fauna não silvestre) para preservar e defender o patrimô‑nio genético da espécie gallus ‑gallus.

    O Governador do Estado do Rio de Janeiro,Faço saber que a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro decreta

    e eu sanciono a seguinte Lei:

  • R.T.J. — 22020

    Art. 1º – Fica autorizada a criação e a realização de exposições e competições entre aves das Raças Combatentes em todo o território do Estado do Rio de Janeiro, cuja regulamentação fica restrita na forma da presente Lei.

    Art.  2º  – As atividades esportivas do galismo inerentes a preservação de aves das Raças Combatentes serão realizadas em recintos e/ou locais próprios nas sedes das Associações, Clubes ou Centros Esportivos denominados rinhadeiros.

    Art. 3º – Todas as Associações, Clubes ou Centros Esportivos seguirão as normas gerais da presente Lei, e, supletivamente, cabendo a Federação Esportiva e de Preservação do Galo Combatente do Estado do Rio de Janeiro, na forma esta‑tutária, elaborar regulamentos anuais desta atividade esportiva, de forma a viabili‑zar a preservação desta espécie nos campeonatos realizados anualmente nas Sedes das Associações.

    Art. 4º – A devida autorização para a realização dos eventos (exposições e competições) programadas anualmente pelas Associadas, será obtido por requeri‑mento à autoridade competente local da Guarnição e ou Agrupamento de Incêndio (Corpo de Bombeiro) sob a forma de um Alvará (Certificado de Registro) após ter sido efetuado o pagamento da(s) taxa(s) ao erário.

    Art.  5º  – Os locais onde se realizarão os eventos deverão ser vistoriados anualmente pela autoridade competente antes de fornecer o Alvará como medida preventiva de proteção e segurança dos sócios frequentadores.

    Art. 6º – Um médico veterinário e ou assistente capacitado atestará antes das competições, o estado de saúde das aves que participarão do evento.

    Art.  7º  – Em se tratando de competições internacionais com aves vindas do exterior, haverá um período mínimo de 72 horas para uma observação médica, mesmo que as aves venham acompanhadas de atestado de saúde.

    Art. 8º – Fica terminantemente vedada a prática desta atividade em locais próximos a Igreja, Escola ou Hospital, se observando a distância mínima de 80 me‑tros a fim de resguardar o silêncio, a ordem e o sossego público.

    Art. 9º – Nos locais onde se realizam as competições é vedada a permanência de menores de 18 anos, a não ser quando acompanhadas dos pais ou responsáveis diretos.

    Art. 10 – A Federação Esportiva e de Preservação do Galo Combatente do Estado do Rio de Janeiro normatizará em 30 dias, contados da vigência desta Lei, o ingresso e a autorização para funcionamento de Associações, Clubes ou Cen‑ tros Esportivos.

    Art. 11 – Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

    Rio de Janeiro, 20 de março de 1998.(Grifei.)

    o autor da presente ação direta sustenta a inconstitucionalidade de refe‑rido diploma normativo, enfatizando que tal regra – ao “autorizar a criação e a realização de exposições e competições entre aves das raças combatentes (fauna não silvestre)” (fl. 2) – ofendeu o preceito inscrito no art. 225, “caput”, c/c o seu § 1º, inciso VII, da Constituição da República.

    Eis, em síntese, os fundamentos que, invocados pelo eminente Procura‑dor ‑Geral da República, buscam justificar a pretensão de inconstitucionali-dade ora deduzida na presente sede de controle normativo abstrato (fls. 2/4):

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    (...) Com efeito, sem embargo da motivação que estaria a revestir a edição do diploma normativo cuja validade jurídico ‑constitucional é ora questionada na presente ação direta de inconstitucionalidade, o certo é que é inegável que a Lei Estadual n. 2.895/1998 possibilita a prática de competição que submete os ani‑mais a crueldade, como é cediço dizer em se tratando de rinhas de brigas de galos, em flagrante violação ao mandamento constitucional proibitivo de práticas cruéis envolvendo animais.

    Sucede que, ao contrário de buscar proteger a fauna e a flora como medida para tornar efetivo o direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, e observar a vedação, na forma da lei, das práticas que submetam os animais a crueldade, atuou o legislador estadual fluminense ao largo da norma programática constitucional.

    Revela ‑se, portanto, a antinomia entre o disposto na lei estadual e o texto constitucional, na medida em que se afastou o legislador estadual da observân‑cia ao princípio da intervenção estatal obrigatória na defesa do meio ambiente (art. 225, caput), que torna compulsória a atividade dos órgãos e agentes esta‑tais, não sendo despiciendo citar, a título de ilustração, o magistério do Ilustre Professor Jorge Bustamante Alsina, para quem “Corresponde al Estado adoptar las disposiciones o normas administrativas que regulen tales actividades en vista de la preservación del ambiente, que le corresponde en ejercicio de los poderes de polícia inherentes a la Nación y a las províncias para proteger la vida, la proprie‑dad, la seguridad la moralidad y la salud de los habitantes (...)” (“in”, DERECHO AMBIENtAL – Abeledo ‑Perrot ‑Buenos Aires, p. 61/62).(Grifei.)

    A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, ao prestar as informações que lhe foram solicitadas, manifestou -se pela improcedência da presente ação direta, propugnando, em consequência, pelo reconhecimento da plena validade constitucional da norma ora impugnada (fls. 38/41):

    Em atendimento ao Ofício n. 336/P, solicitando informações para instruir a AçãO DIREtA DE INCONStItuCIONALIDADE N. 1.856, que tem por objeto a LEI EStADuAL N. 2.895, de 20‑3‑98, encaminhamos a V. Ex.ª cópia do inteiro teor do processo legislativo que teve origem no PROJEtO DE LEI N. 1.285/1995, dando origem à lei acima referida (DOC. I).

    Além da descrição do aludido processo legislativo, oportuno se nos parece enfatizar que, “in casu”, ao se positivarem regras, em lei bem fundamentada em seus diferentes aspectos, preocupação houve, por parte desta Casa Legislativa, em regulamentar ‑se atividade que, a partir da sua promulgação, passa ‑se a con‑trolar e a fiscalizar, oficialmente, diversas associações e federações esportivas do setor, sob autorização e supervisão do Poder Público, exercida em locais apropria‑dos, assegurada a observância de regras de estrita segurança.

    É inegável que, sob o ponto de vista social, trata ‑se de um forte fator de integra‑ção de comunidades do interior deste Estado, como de resto ocorre em outros Es ta dos, a gerar, inclusive, um apreciável número de empregos, sendo que no Rio de Ja neiro há, aproximadamente, 100 (cem) rinhas e mais de 70 (setenta) centros esportivos.

    Sem prejuízo dessas primeiras considerações, cumpre ‑nos enfatizar que, no plano jurídico, ao se promover o cotejo da lei estadual, nesta via impugnada, com o preceito do art. 225, “caput” c/c § 1º, inciso VII, da lei fundamental, verifica ‑se que afronta inocorre à norma que se extrai desse texto.

  • R.T.J. — 22022

    Com efeito e segundo os ensinamentos do emérito Prof José Afonso da Silva (“in” Direito Ambiental Constitucional, Malheiros, São Paulo, 2. ed., 1995, p. 128 “usque” 129), ao tecer comentários sobre esse dispositivo constitucional, assevera que a Constituição de 1988 não mais comete competência exclusiva da união para legislar sobre caça, pesca e fauna, porém como competência concor‑rente entre ela, os Estados e o Distrito Federal (art. 24, inciso VI), limitando ‑se a legislação federal a estabelecer normas gerais sobre a matéria. Enquanto a dos Estados e Distrito Federal, a estabelecer normas suplementares daquelas.

    Objeto de proteção, observa o ilustre Professor de São Paulo, é a fauna como componente do ecossistemas.

    Em sentido lato, prossegue, a palavra fauna refere ‑se ao conjunto de todos os animais de uma região ou de um período geológico, abrangendo aí a fauna aquática, a fauna das árvores e de solo (insetos e microorganismos) e a fauna sil‑vestre (animais de pelo e de pena).

    Não é de se incluírem os animais domésticos e domesticados, nem os de cativeiro, criatórios e de zoológicos particulares, devidamente legalizados, remata o emérito constitucionalista.

    Sucede que, na hipótese “sub examen”, pretende ‑se estender o objeto da tu‑tela ambiental ao galo de briga que, consoante pronunciamento formal do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, en‑tidade vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal (DOC. II), é considerado como ave doméstica, escapando pois daquela de âmbito material de incidência do comando constitucional.

    Ainda que se admitisse, “ad argumentandum tantum”, que estivesse o galo combatente incluído na fauna silvestre, mesmo assim não há como prosperar a pre‑tensão na inicial deduzida.

    Nesse sentido, cumpre aduzir, ao se perquirir o conteúdo semântico, o sen‑tido normativo contido na expressão: “(...) vedada as práticas que (...) submetam os animais a crueldade”, destacada na peça vestibular, verifica ‑se que o seu sen‑tido é o de coibir práticas em que há ação do homem contra o animal, assim como ocorre na caça, no tiro ao pombo, na conhecida farra do boi.

    Na hipótese do chamado “galismo” as aves lutam sem qualquer interferência di‑reta do homem; brigam por seu espírito atávico, nada havendo a forçá ‑las a combater.

    Assim e sob o ponto de vista sistemático, não se vislumbra na Carta Magna qualquer regra a restringir ou mesmo vedar a atividade regulada no referido diploma legal estadual, sendo certo que, ante as circunstâncias históricas, que informaram a origem do preceito constitucional não se referem ao galismo, porém à chamada “farra do boi”, repita ‑se, este era o fim perseguido pelo legislador constituinte.

    Quer quanto à sua letra, quer quanto ao seu espírito, a “ratio” que se extrai é a conformação da lei impugnada à Constituição Federal, não se vislumbrando, sob o ponto de vista dogmático, qualquer violação.

    Não se pode olvidar, ainda, que, segundo o princípio da conservação das normas legais – princípio de interpretação das leis e atos normativos infraconstitu‑cionais –, existindo duas ou mais interpretações de um preceito legal, deve optar ‑se pelo sentido constitucionalmente admissível, que permita a conservação da norma legal. Esta não deve ser invalidada ou declarada ineficaz, enquanto puder ser in‑terpretada conforme a Constituição.

    Em síntese, inocorre qualquer mácula, sob o prisma jurídico, na Lei n. 2.895/1998, podendo ‑se, quando muito, questionar o ato legislativo no plano mera‑mente filosófico, se este fosse o plano em que debatida fosse a questão posta.

  • R.T.J. — 220 23

    Entrementes e admitindo ‑o, ainda uma vez tão só para efeito de debate, mesmo assim não há como prosperar a pretensão na inicial deduzida, pois o le‑gislador estadual deparou ‑se, no exercício de atividade discricionária polí ti co‑‑le gis la tiva, com duas opções: a)  permanecer inerte, nada regulamentando; ou b) disciplinar a atividade.

    Preferiu ‑se a segunda, posto que o controle, a finalização da atividade se constituem em atos que materializam o exercício regular do poder de polícia, na verificação da normalidade da atividade, consoante as normas legais e regulamen‑tares pertinentes.

    Em face de tais razões, esperamos e confiamos que:a) não se conceda a liminar postulada, ante a manifesta ausência, “in

    casu”, dos seus pressupostos;b) seja julgado improcedente o pedido, ante a inquestionável constitu‑

    cionalidade da Lei n. 2.895/1998.(Grifei.)

    o Senhor Governador do Estado do Rio de Janeiro, por sua vez, ao pedir a improcedência da presente ação direta, apoiou -se, em síntese, nas seguintes informações (fls. 52/55):

    Cabe enfatizar a inépcia da inicial, já que o autor, sob a sumária argumen‑tação que lhe parece ser suficiente para sustentar o pedido, não indica quais os dis‑positivos da Lei impugnada entende serem frontalmente contrários à Constituição Federal, assim como não fundamenta, de forma especificada, porque cada um dos dispositivos, do ato impugnado são inconstitucionais.

    (...)Ademais, guardando o mesmo defeito, por outro ângulo, a inépcia da exor‑

    dial emerge, também, da falha oriunda da “narração dos fatos não decorrer logi‑camente a conclusão” (art. 295, parágrafo único, inciso II do CPC).

    Ora, se é que o nódulo do pedido é lastreado na possível crueldade com animais, não se tratando de hipótese submetida à ficção legal que assim qualifique a conduta determinada, só pode ser constatada mediante a produção de prova, o que em sede de controle concentrado e “abstrato” de constitucionalidade é inadmissível.

    Com a devida vênia as deformidades do pedido recomendam o não conhe‑cimento da Ação Direta, como comandam os incisos I a III do art. 295 do Código de Processo Civil.

    (...)(...) não se enxerga na lei atacada onde ela possa agredir o meio ambiente,

    ou como ela desprotegeria a fauna, prejudicaria a função ecológica, provocaria ex‑tinção de espécies ou submeteria animais à crueldade por práticas que, de acordo com os dispositivos citados da Constituição, sejam definidas “na forma da lei”.

    A natureza limitada da eficácia do comando constitucional imprescinde da definição de quais são essas práticas que, ademais, uma vez fixadas, se transgredi‑das, ensejariam uma hipótese de “ilegalidade” e “não” de “inconstitucionalidade”.

    A indefinição deixa ao léu e sob o crivo do contexto probatório saber ‑se, por exemplo, se a prática de corridas de cavalos poderia ser enquadrada como conduta a ser programaticamente combatida, ante a falta de tipificação legal, levando à sub‑jetividade, a conceitos fluídos e pouco palpáveis, à arbitrariedade, ao abuso de poder e aí sim à flagrante contrariedade do texto constitucional onde prevê que nenhuma

  • R.T.J. — 22024

    conduta terá comando senão o da lei (art. 5º, II, da CF), assim como ao seu mais im‑portante princípio norteador de todo o resto do sistema: a democracia (art. 1º da CF).

    Não há, pois, no texto impugnado, ofensa direta ao texto constitucional, que ao contrário do alegado, traz em si regras de preservação e de poder de polícia, para a segurança de eventos que envolvem a participação de grande número de indivíduos, ordenando uma das formas de convívio social.

    (...)Espera ‑se, por fim, como consequência das informações prestadas, que esse

    Pretório Excelso não conheça da ação, por força da preliminar levantada ou, se ultrapassada, o que se cogita em honra do princípio da eventualidade, que, no mé‑rito, a julgue improcedente.(Grifei.)

    o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao deferir o pedido de medida cautelar formulado pelo autor da presente ação direta, decidiu, por unanimi‑dade de votos, “suspender, até final julgamento da ação direta, a execução e a aplicabilidade da Lei 2.895, de 20‑3‑1998, do Estado do Rio de Janeiro”, fazendo -o em acórdão assim ementado (fl. 120):

    CONSTITUCIONAL. MEIO AMBIENTE. ANIMAIS: PROTEÇÃO: CRUELDADE. “BRIGA DE GALOS”.

    I – A Lei 2.895, de 20‑3‑1998, do Estado do Rio de Janeiro, ao autorizar e disciplinar a realização de competições entre “galos combatentes”, autoriza e disciplina a submissão desses animais a tratamento cruel, o que a Constituição Federal não permite: CF, art. 225, § 1º, VII.

    II – Cautelar deferida, suspendendo ‑se a eficácia da Lei 2.895, de 20‑3‑1998, do Estado do Rio de Janeiro.

    o eminente Advogado ‑Geral da União, acolhendo as manifestações da Assembleia Legislativa e do Governador do Estado do Rio de Janeiro, opinou pela improcedência do pedido (fls. 87/95).

    o ministério Público Federal, no entanto, em pronunciamento da douta Procuradoria ‑Geral da República, opinou pela procedência do pedido, fazendo ‑o com apoio em parecer que está assim ementado (fls. 97/103):

    Ação Direta de Inconstitucionalidade. Direito Constitucional e Ambiental. Lei Fluminense n. 2.895, de 20 de março de 1998, que regulamentou a “rinha de galos” como esporte. Preliminar de inépcia rejeitada. Desnecessária a impug‑nação específica e individualizada de cada dispositivo da lei atacada. Inconsti‑tucionalidade presente em todo o texto legal e demonstrada pelo autor. Mérito. Artigo 225, § 1º, inciso VII, da Constituição Federal. A proibição de submissão de animais a práticas cruéis abrange todos exemplares da fauna, ainda que domesti‑cados e em cativeiro. Parecer pela procedência da ação.(Grifei.)

    Este é o relatório, de cujo texto a Secretaria remeterá cópia a todos os eminentes Senhores Ministros deste Egrégio Tribunal (Lei 9.868/1999, art. 9º, caput; RISTF, art. 172).

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    VOTO

    O Sr. Ministro Celso de Mello (Relator): Preliminarmente, Senhor Presi‑dente, impõe -se ressaltar que a petição inicial formulada pelo eminente Pro cura‑dor ‑Ge ral da República, diferentemente do alegado nas informações prestadas pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, não se reveste do vício da inépcia.

    Com efeito, a petição inicial em questão observa, de maneira exata, a estrutura formal que deve orientar a elaboração dessa peça processual, respei-tando, inteiramente, a exigência que hoje se contém no art. 3º da Lei 9.868, de 10 de novembro de 1999, que assim dispõe:

    Art. 3º A petição indicará:I – o dispositivo da lei ou do ato normativo impugnado e os fundamentos

    jurídicos do pedido em relação a cada uma das impugnações;II – o pedido, com suas especificações.

    (Grifei.)

    No caso, a petição inicial – com que se viabilizou a instauração do pro‑cesso de controle normativo abstrato – impugna a validade constitucional da Lei fluminense 2.895/1998, indica a norma de parâmetro por ela alegadamente transgredida (CF, art. 225, § 1º, VII), estabelece a situação de antagonismo entre o diploma normativo em questão e o texto da Constituição da República, fundamenta as razões consubstanciadoras da pretensão de inconstituciona‑lidade deduzida pelo autor, expondo -as de maneira inteligível, para, afinal, postular o reconhecimento da procedência do pedido, com a consequente declaração de ilegitimidade constitucional da legislação editada pelo Estado do Rio de Janeiro, delimitando, desse modo, o âmbito material do julgamento a ser pronunciado pelo Supremo Tribunal Federal.

    Cabe assinalar, por oportuno, que, em casos virtualmente semelhantes ao que ora se registra nestes autos (ADI 30/PR, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – ADI 2.157-mC/BA, Rel. Min. MOREIRA ALVES), o Supremo Tribunal Fe‑ deral afastou a alegada inépcia da inicial, como o evidencia julgamento con‑substanciado, no ponto, em acórdão assim ementado:

    (...) ALEGAÇÃO DE INÉPCIA DA PETIÇÃO INICIAL: INOCORRÊNCIA.– Não se revela inepta a petição inicial, que, ao impugnar a validade cons‑

    titucional de ato emanado do tribunal Superior Eleitoral, (a) indica, de forma adequada, as normas de parâmetro, cuja autoridade teria sido desrespeitada, (b) estabelece, de maneira clara, a relação de antagonismo entre esse ato es‑tatal de menor positividade jurídica e o texto da Constituição da República, (c) fundamenta, de modo inteligível, as razões consubstanciadoras da pretensão de inconstitucionalidade deduzida pelo autor e (d) postula, com objetividade, o re‑conhecimento da procedência do pedido, com a consequente declaração de ilegi‑timidade constitucional da resolução questionada em sede de controle normativo abstrato, delimitando, assim, o âmbito material do julgamento a ser proferido pelo Supremo tribunal Federal.(RTJ 195/812‑816, 814-815, Rel. Min. CELSO DE MELLO.)

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    Impende asseverar, ainda, que, diversamente do sustentado nas infor‑mações prestadas pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, o fato de a inicial estar baseada na “crueldade” não indica, só por si, que a verificação da cons‑titucionalidade (ou da inconstitucionalidade) necessite de prova, especialmente na hipótese em exame (“briga de galos”), em que as aves, todos o sabemos, sofrem ferimentos quando em combate.

    Com tais considerações, entendo que a petição inicial elaborada pelo emi‑nente Procurador ‑Geral da República não se qualifica como peça processual inepta, revelando -se, ao contrário, instrumento juridicamente idôneo e for‑malmente apto a viabilizar a instauração do processo de fiscalização abstrata de constitucionalidade.

    Inacolhível, de outro lado, a alegação de inépcia sustentada pelo Gover‑nador do Estado do Rio de Janeiro (fls. 52/55) e pelo Advogado ‑Geral da União (fls. 87/95), quando afirmam que se impunha, ao Procurador ‑Geral da Repú‑blica, impugnar a validade constitucional de cada um dos 11 (onze) artigos da lei fluminense ora em exame.

    Tenho para mim que assiste plena razão à douta Procuradoria ‑Geral da República, quando, ao refutar essa alegação de inépcia, expende a seguinte manifestação (fls. 97/103):

    Inicialmente, a preliminar aduzida pelo primeiro requerido deve ser rejeitada.

    O autor requereu a declaração da inconstitucionalidade da lei estadual n. 2.895/98, fundamentando seu pedido na contrariedade ao artigo  225, §  1º, inciso VII, da Constituição Federal. A inconstitucionalidade arguida pelo autor estaria presente em todo o diploma legal, sendo desnecessária a impugnação espe‑cífica e individualizada de cada dispositivo da lei apontada como inconstitucional, como afirma o primeiro requerido.(Grifei.)

    Com efeito, o exame do diploma normativo ora questionado evidencia que o Estado do Rio de Janeiro, com a edição de referida lei, objetivou disciplinar a “briga de galos”, estabelecendo, no texto da legislação em causa, diversas regras destinadas a viabilizar e a regular competições entre aves das Raças Combatentes em todo o território estadual, determinando os locais em que tais atividades poderão, ou não, ser realizadas, impondo, ainda, a atestação, por médico veterinário (ou assistente capacitado) do “estado de saúde das aves que participarão do evento”, com especial regulação das competições inter‑nacionais “com aves vindas do exterior”, proibida, sempre, a permanência de menores de 18 anos, quando desacompanhados dos pais ou responsáveis diretos, o que demonstra que todos esses preceitos legais foram concebidos com um só propósito: o de minudenciar a regulamentação da prática de “competições entre aves das raças combatentes (fauna não silvestre) para preservar e defender o patrimônio genético da espécie gallus ‑gallus”, que constitui a própria razão de ser da Lei fluminense 2.895/1998.

  • R.T.J. — 220 27

    o autor da presente ação direta, ao sustentar a inconstitucionalidade da “briga de galos”, porque incompatível com a cláusula constitucional que protege os animais contra a crueldade, questionou, em sua globalidade, a Lei 2.895/1998, editada pelo Estado do Rio de janeiro, pelo fato de, reconhecida a sua invalidade jurídica, não poder subsistir em sua integralidade, eis que, insista ‑se, todas as regras constantes acham ‑se instrumentalmente vinculadas e funcionalmente vocacionadas a tornar viável e operacional, naquela unidade da Federação, uma prática que o ordenamento positivo brasileiro considera ilícita e criminosa, como resulta claro do art. 32 da Lei 9.605/1998, que contém, no ponto, a seguinte cláusula de tipificação penal:

    Art. 32. Praticar ato de abuso, maus ‑tratos, ferir ou mutilar animais silves‑tres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

    Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel

    em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem re‑cursos alternativos.

    § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.(Grifei.)

    É por tal motivo que as diversas regras que compõem o diploma legislativo em causa somente se justificam se consideradas em razão da globalidade da lei estadual em questão, pois mencionadas regras sequer subsistiriam senão em face da finalidade última a que aderem e em função da qual foram concebidas: a reali-zação de “competições entre aves das raças combatentes (fauna não silvestre)...”.

    Daí a completa desnecessidade da impugnação, artigo por artigo, do diploma legislativo em referência.

    Cabe reconhecer, por isso mesmo, a inteira correção formal da impug‑nação, que, deduzida pelo eminente Procurador ‑Geral da República, dirige -se a todo o complexo normativo com que o Estado do Rio de Janeiro disciplinou, no plano local, a prática da “briga de galos”.

    Feitas tais observações, passo a julgar o fundo da presente controvérsia constitucional, instaurada em razão da evidente inconstitucionalidade da Lei 2.895/1998, editada pelo Estado do Rio de Janeiro.

    o fundamento em que se apoia a pretensão de inconstitucionalidade do diploma legislativo em referência reside na prática de atos revestidos de inques-tionável crueldade contra aves das Raças Combatentes (“gallus ‑gallus”) que são submetidas a maus ‑tratos, em competições promovidas por infratores do ordenamento constitucional e da legislação ambiental, que transgridem, com seu comportamento delinquencial, a regra constante do inciso VII do § 1º do art. 225 da Constituição da República, que contém prescrição normativa cujo teor está assim enunciado:

    Art. 225 (...)§ 1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público:

  • R.T.J. — 22028

    (...)VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que

    coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.(Grifei.)

    Vê -se, daí, que o constituinte objetivou, com a proteção da fauna e com a vedação, dentre outras, de práticas que “submetam os animais a crueldade”, assegurar a efetividade do direito fundamental à preservação da integridade do meio ambiente, que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral, consoante ressalta o magistério doutriná‑rio (CELSO ANTÔNIO PACHECO FIORILLO, “Curso de Direito Ambiental Brasileiro”, p. 20/23, item n. 4, 6. ed., 2005, Saraiva; JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Ambiental Constitucional”, p. 21/24, itens n. 2 e 3, 4. ed./2. tir., 2003, Malheiros; JOSÉ ROBERTO MARQUES, “meio Ambiente urbano”, p. 42/54, item n. 4. 2005, Forense Universitária, v.g.).

    É importante assinalar, neste ponto, que a cláusula inscrita no inciso VII do § 1º do art.  225 da Constituição da República, além de veicular con‑teú do impregnado de alto significado ético ‑jurídico, justifica -se em função de sua própria razão de ser, motivada pela necessidade de impedir a ocorrência de situações de risco que ameacem ou que façam periclitar todas as formas de vida, não só a do gênero humano, mas, também, a própria vida animal, cuja inte‑gridade restaria comprometida por práticas aviltantes, perversas e violentas contra os seres irracionais.

    Resulta, pois, da norma constitucional invocada como parâmetro de con‑fronto (CF, art. 225, § 1º, VII), o sentido revelador do vínculo que o constituinte quis estabelecer ao dispor que o respeito pela fauna em geral atua como con‑dição inafastável de subsistência e preservação do meio ambiente em que vivem os próprios seres humanos.

    Evidente, desse modo, a íntima conexão que há entre o dever éti co ‑ju rí‑dico de preservar a fauna (e de não incidir em práticas de crueldade contra animais), de um lado, e a própria subsistência do gênero humano em um meio ambiente ecologicamente equilibrado, de outro.

    Cabe reconhecer, portanto, Senhor Presidente, o impacto altamente nega‑tivo que representaria, para a incolumidade do patrimônio ambiental dos seres humanos, a prática de comportamentos predatórios e lesivos à fauna, seja colo-cando em risco a sua função ecológica, seja provocando a extinção de espécies, seja, ainda, submetendo os animais a atos de crueldade.

    Daí a enorme importância de que se revestem os preceitos inscritos no art. 225 da Carta Política que traduzem, na concreção de seu alcance, a con-sagração constitucional, em nosso sistema de direito positivo, de uma das mais expressivas prerrogativas asseguradas às formações sociais contemporâneas.

  • R.T.J. — 220 29

    Essa prerrogativa, que se qualifica por seu caráter de metaindividuali‑dade, consiste no reconhecimento de que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

    Trata -se, consoante já o proclamou o Supremo Tribunal Federal (RTJ 158/205-206, Rel. Min. CELSO DE MELLO), com apoio em douta lição expendida por CELSO LAFER (“A Reconstrução dos Direitos Humanos”, p. 131/132, 1988, Companhia das Letras), de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste, de modo subjetivamente indeterminado, a todo o gênero humano, circunstância essa que justifica a especial obrigação – que incumbe ao Estado e à própria coletividade (PAULO AFFONSO LEME MACHADO, “Direito Ambiental Brasileiro”, p. 138/141, item n. 3, 19. ed., 2011, Malheiros) – de defendê ‑lo e de preservá ‑lo em benefício das presentes e futuras gerações, evitando -se, desse modo, que irrompam, no seio da comunhão social, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade na proteção da integridade desse bem essencial, comum a todos quantos compõem o grupo social.

    Vale referir, Senhor Presidente, neste ponto, até mesmo em face da justa preocupação revelada pelos povos e pela comunidade internacional em tema de direitos humanos, que estes, em seu processo de afirmação e consolidação, com-portam diversos níveis de compreensão e abordagem, que permitem distingui ‑los em ordens, dimensões ou fases sucessivas resultantes de sua evolução histórica.

    Nesse contexto, e tal como enfatizado por esta Suprema Corte (RTJ 164/158‑161), impende destacar, na linha desse processo evolutivo, os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos), que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais, e que realçam o princípio da liberdade.

    Os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), de outro lado, identificam -se com as liberdades positivas, reais ou concretas, pondo em relevo, sob tal perspectiva, o princípio da igualdade.

    Cabe assinalar, Senhor Presidente, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atri‑buídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamen‑tos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvol‑vimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível, consoante proclama autorizado magistério doutriná‑rio (CELSO LAFER, “Desafios: Ética e Política”, p. 239, 1995, Siciliano).

    Cumpre rememorar, bem por isso, na linha do que vem de ser afirmado, a precisa lição ministrada por PAULO BONAVIDES (“Curso de Direito Constitucional”, p. 481, item n. 5, 4. ed., 1993, Malheiros), que confere par ti‑cular ênfase, dentre os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), ao direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado:

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    Com efeito, um novo polo jurídico de alforria do homem se acrescenta historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de hu‑manismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar ‑se neste fim de século enquanto direitos que não se destinam especificamente à pro‑teção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta. Os publicistas e juristas já os enumeram com familiaridade, assinalando ‑lhes o caráter fascinante de coroamento de uma evolução de trezentos anos na esteira da concretização dos direitos fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao pa‑trimônio comum da humanidade.(Grifei.)

    A preocupação com o meio ambiente  – que hoje transcende o plano das presentes gerações, para também atuar em favor das gerações futuras (PAULO AFFONSO LEME MACHADO, “Direito Ambiental Brasileiro”, p. 138/141, item n. 3, 19. ed., 2011, Malheiros) – tem constituído, por isso mesmo, objeto de regulações normativas e de proclamações jurídicas, que, ultrapas-sando a província meramente doméstica do direito nacional de cada Estado soberano, projetam -se no plano das declarações internacionais, que refletem, em sua expressão concreta, o compromisso das Nações com o indeclinável res-peito a esse direito fundamental que assiste a toda a Humanidade.

    A questão do meio ambiente, hoje, especialmente em função da Declara‑ção de Estocolmo sobre o Meio Ambiente (1972) e das conclusões da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio/92), passou a compor um dos tópicos mais expressivos da nova agenda internacional (GERALDO EULÁLIO DO NASCIMENTO E SILVA, “Direito Ambiental Internacional”, 2. ed., 2002, Thex Editora), particularmente no ponto em que se reconheceu, ao gênero humano, o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao gozo de condições de vida adequada, em ambiente que lhe permita desenvol‑ver todas as suas potencialidades em clima de dignidade e de bem ‑estar.

    Extremamente valioso, sob o aspecto ora referido, o douto magistério expendido por JOSÉ AFONSO DA SILVA (“Direito Ambiental Constitucio-nal”, p. 69/70, item n. 7, 7. ed., 2009, Malheiros):

    A “Declaração de Estocolmo” abriu caminho para que as Constituições supervenientes reconhecessem o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um “direito fundamental” entre os direitos sociais do Homem, com sua caracterís‑tica de “direitos a serem realizados” e “direitos a não serem perturbados”.

    (...)O que é importante (...) é que se tenha a consciência de que o direito à vida,

    como matriz de todos os demais direitos fundamentais do Homem, é que há de orientar todas as formas de atuação no campo da tutela do meio ambiente. Cumpre compreender que ele é um fator preponderante, que há de estar acima de quaisquer outras considerações como as de desenvolvimento, como as de respeito ao direito de propriedade, como as da iniciativa privada. também estes são garantidos no

  • R.T.J. — 220 31

    texto constitucional, mas, a toda evidência, não podem primar sobre o direito fun‑damental à vida, que está em jogo quando se discute a tutela da qualidade do meio ambiente. É que a tutela da qualidade do meio ambiente é instrumental no sentido de que, através dela, o que se protege é um valor maior: “a qualidade da vida”.(Grifei.)

    Dentro desse contexto, Senhor Presidente, emerge, com nitidez, a ideia de que o meio ambiente constitui patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido pelos organismos sociais e pelas instituições estatais, qualificando -se como encargo irrenunciável que se impõe – sempre em bene‑fício das presentes e das futuras gerações – tanto ao poder público quanto à coletividade em si mesma considerada (MARIA SyLVIA ZANELLA DI PIE‑TRO, “Polícia do meio Ambiente”, “in” Revista Forense 317/179, 181; LUÍS ROBERTO BARROSO, “A Proteção do meio Ambiente na Constituição Bra-sileira”, “in” Revista Forense 317/161, 167-168, v.g.).

    Na realidade, Senhor Presidente, o direito à integridade do meio ambiente constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significa-tiva de um poder deferido, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, atribuído à própria cole‑tividade social.

    o reconhecimento desse direito de titularidade coletiva, tal como se quali‑fica o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, constitui, portanto, uma realidade a que não mais se mostram alheios ou insensíveis, como prece-dentemente ressaltado, os ordenamentos positivos consagrados pelos sistemas jurídicos nacionais e as formulações normativas proclamadas no plano interna‑cional, como enfatizado por autores eminentes (JOSÉ FRANCISCO REZEK, “Direito Internacional Público”, p. 223/224, item n. 132, 1989, Saraiva; JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Ambiental Constitucional”, p. 46/57 e 58/70, 7. ed., 2009, Malheiros).

    O ordenamento constitucional brasileiro, para conferir efetividade e pro-teger a integridade do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, visando, com tais objetivos, neutralizar o surgimento de conflitos intergeneracionais, impôs, ao poder público, dentre outras medidas essenciais, a obrigação de proteger a fauna, vedadas, para tanto, práticas que coloquem em risco sua função ecológica ou que provoquem a extinção de espécies ou, ainda, que submetam os animais a atos de crueldade.

    Vale relembrar a precisa abordagem doutrinária sobre o tema da pro‑teção à fauna que o ilustre Procurador de Justiça do Estado de São Paulo, Dr. DANIEL R. FINK, expôs ao tratar da relação jurídica ambiental e da ques‑tão pertinente à exigência de sustentabilidade (JOSÉ ROBERTO MARQUES, “Sustentabilidade e Temas Fundamentais de Direito Ambiental”, p. 117, item n. 4.1, 2009, Millennium):

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    Proteção da fauna e flora, vedadas as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem sua extinção ou submetam os animais à crueldade (inciso VII). Fauna e flora são importantes componentes do meio ambiente na‑tural, biológico, que têm sido objeto de especial proteção de diversas normas ambientais. São, sem dúvida, o aspecto mais visível do meio ambiente e para os quais o leigo se remete quando pensa no tema. Há gradações das restrições esta‑belecidas nas leis ambientais sobre esses temas. Há proteções parciais e absolu‑tas. Proibição absoluta já vem impressa no próprio dispositivo, que não permite práticas que ameacem sua função ecológica, possam provocar sua extinção ou submetam os animais à crueldade. As proibições relativas dependerão do grau de importância que determinadas espécies ou ecossistemas têm para a vida, qualidade de vida e meio ambiente.(Grifei.)

    Cabe assinalar, por oportuno, que o Supremo Tribunal Federal, em tema de crueldade contra animais, tem advertido, em sucessivos julgamentos, que a realização de referida prática mostra ‑se frontalmente incompatível com o dis‑posto no art. 225, § 1º, inciso VII, da Constituição da República:

    COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ESTÍMULO – RAZOABI‑LIDADE – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – ANIMAIS – CRUEL‑DADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do art. 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado “farra do boi”.(RE 153.531/SC, Rel. p/ o ac. Min. MARCO AURÉLIO – Grifei.)

    AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 11.366/2000 DO ESTADO DE SANTA CATARINA. ATO NORMATIVO QUE AUTORIZA E RE‑GULAMENTA A CRIAÇÃO E A EXPOSIÇÃO DE AVES DE RAÇA E A REA‑LIZAÇÃO DE “BRIGAS DE GALO”.

    A sujeição da vida animal a experiências de crueldade não é compatível com a Constituição do Brasil. Precedentes da Corte.

    Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente.(ADI 2.514/SC, Rel. Min. EROS GRAU – Grifei.)

    INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei 7.380/1998, do Estado do Rio Grande do Norte. Atividades esportivas com aves das raças combatentes. “Rinhas” ou “Brigas de galo”. Regulamentação. Inadmissibilidade. Meio Am‑biente. Animais. Submissão a tratamento cruel. Ofensa ao art. 225, § 1º, VII, da CF. Ação julgada procedente. Precedentes. É inconstitucional a lei estadual que autorize e regulamente, sob título de práticas ou atividades esportivas com aves de raças ditas combatentes, as chamadas “rinhas” ou “brigas de galo”.(ADI 3.776/RN, Rel. Min. CEZAR PELUSO – Grifei.)

    Impende destacar que, em período que antecedeu a promulgação da vigente Constituição, esta Suprema Corte, em decisões proferidas há quase 60 (sessenta) anos, já enfatizava que as “brigas de galos”, por configurarem

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    atos de crueldade contra referidas aves, deveriam expor -se à repressão penal do Estado (RE  39.152/SP, Rel. Min. HENRIQUE D’ÁVILA  – RHC  35.762/SP, Rel. Min. AFRÂNIO COSTA, v.g.), eis que  – como então reconhecia o Supremo Tribunal Federal – “A briga galo não é um simples desporto, pois mal‑trata os animais em luta...” (RHC 34.936/SP, Rel. Min. CÂNDIDO MOTA FILHO – Grifei).

    Cumpre ressaltar que esse entendimento jurisprudencial, no sentido de que as “brigas de galos” constituem atos de crueldade contra os animais, reflete -se, por igual, no magistério doutrinário (ALEXANDRE GAETA, “Código de Direito Animal”, p. 60/61, 2003, Madras; DIOMAR ACKEL FILHO, “Direito dos Animais”, p. 84, item n. 8.5, 2001, Themis; EDNA CARDOZO DIAS, “Inconstitucionalidade e Ilegalidade das Rinhas de Galo”, “in” Fórum de Direito Urbano e Ambiental, p. 2041, ano 3, n. 8, nov./dez. 2004, Editora Fórum; EDNA CARDOZO DIAS, “A Tutela Jurídica dos Animais”, p. 182/198, item n. 5.5.1, 2000, Mandamentos; HELITA BARREIRA CUSTÓDIO, “Crueldade Contra Animais e a Proteção Destes como Relevante Questão Jurídico -Ambiental e Constitucional”, “in” Revista de Direito Ambiental, p. 60/61, item  n.  2.3, ano 2, julho ‑setembro de 1997, v.g.), valendo reprodu-zir a lição de LÍLIA MARIA VIDAL DE ABREU PINHEIRO CADAVEZ (“Crueldade Contra os Animais: uma Leitura Transdisciplinar à Luz do Sistema Jurídico Brasileiro”, “in” Revista Direito e Justiça, vol. 34, n. 1, p. 113/115, item n. 3.3.1, jan./jun., 2008, ediPUCRS):

    Destacamos, neste estudo, as denominadas “brigas de galo”, pois são de atual repercussão no meio jurídico e social (...). Há tentativas de legalizar esta prá‑tica no Brasil, sob a justificativa de ser “uma conduta que faz parte da manifestação cultural de várias regiões” e “uma realidade existente e enraizada na sociedade”.

    Nesta prática, os animais são provocados pelo homem, que os coloca na arena para uma luta até a morte de um deles. Envolve atos de crueldade. Para esse momento de luta, os galos são preparados, cortando ‑lhes cristas e barbelas sem o uso de anestesia. O bico e as esporas são reforçados com aço inoxidável, e a luta não termina enquanto um deles não morrer na rinha.

    Frente ao tema, Helita Barreira Custódio nos declara que, de acordo com o conceito constitucional de ato cruel, consideram ‑se crueldade contra animais os espetáculos violentos como lutas entre estes seres até a exaustão ou a morte, além de outras condutas referidas pela autora. Na mesma linha, Édis Milaré cita, entre outras, a briga de galo como uma prática de crueldade para com a fauna, pois nela o “con‑ceito de cruel condiz com a ideia de submeter o animal a um mal desnecessário”.

    A nossa Constituição Federal de 1988 proíbe as práticas que submetam os animais à crueldade. A vedação constitucional abrange, portanto, as “brigas de galo”, pois, nas palavras de Érika Bechara: “alguém ousará sustentar que brigas de galo são necessárias ao bem ‑estar coletivo?” Esse, inclusive, é o posiciona‑mento do Supremo tribunal Federal (...).

    (...)Para José Rubens Morato Leite, a posição do Supremo tribunal Federal,

    (...) referente às “brigas de galo”, estabelecendo a dicção correta do dispositivo constitucional que veda a crueldade contra os animais, impediu que “a integridade

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    ideológica do texto constitucional cedesse à sedutora opção que insiste em compre‑ender práticas dessa natureza como expressões legítimas do patrimônio cultural específico de algumas comunidades (...)”.

    Segundo Paulo Affonso Leme Machado, com a Lei dos Crimes Ambientais (Lei n. 9.605/1998), as atividades que fazem os animais enfrentarem ‑se em lutas ou disputas passaram a caracterizar o crime do art. 32 da Lei n. 9.605/1998, visto an‑teriormente neste trabalho. As “brigas de galo” são consideradas práticas cruéis contra os animais. Este é, também, o entendimento do tribunal Regional Federal da 4ª Região, como se pode ver abaixo:

    “EMENtA: Administrativo. Meio Ambiente. Rinha de Galos. À vista de recente jurisprudência do Pretório Excelso, é lícito considerar a briga de galos como prática de crueldade para com os animais. Competição Es‑portiva, Crueldade contra Animal. Interdição de Estabelecimento. Prática Abusiva, Prejuízo, Fauna. Licitude, Autuação, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA).”Na mesma linha, o tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em

    decisão mais recente, datada de 11 de abril de 2005, julgou, por unanimidade, in‑constitucional a Lei n. 310‑01/2001, de 27 de novembro de 2001, do Município de Fazenda Vilanova que autoriza “a criação e realização de exposição e competição de aves das raças combatentes exóticas com licenciamento do IBAMA, a fim de pre‑servação dessas espécies”. A seguir, a Ementa:

    “EMENtA: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Constitucional. Ambiental. Rinha de Galos. É  manifestamente inconstitucional, por afronta aos artigos 8º e 13, “caput” e inciso V, da CE, e arts. 22, inciso I, e 30, incisos I e II, da CF, lei municipal que permite a realização de exposi‑ções e competições entre ‘aves de raça combatentes exóticas’, seja porque compete privativamente à união legislar sobre Direito Penal, não podendo o ato normativo municipal descriminalizar conduta tipificada no art. 32 da Lei dos Crimes Ambientais, seja porque se insere também na competência dos Municípios promover a proteção ambiental, coibindo práticas que submetam os animais à crueldade. Ação direta julgada procedente. unânime.”A Relatora do Acórdão, Desembargadora Maria Berenice Dias, diz que a

    Lei n. 310‑01/2001, do Município de Fazenda Vilanova, quando autoriza competi‑ções entre “aves combatentes”, ela “autoriza e disciplina a submissão desses ani‑mais a tratamento cruel, o que as Constituições Federal e Estadual não permitem”. Refere, também, que as “brigas de galo” são punidas como crime, conforme o disposto no art. 32, da Lei n. 9.605/1998 (Lei dos Crimes Ambientais).

    Embora não tenha constituído objetivo deste trabalho o estudo da legisla‑ção Estadual e Municipal referente a proibição da crueldade em animais, cum pre‑‑nos referir a nossa recente lei municipal proibitiva das “brigas de galo” e cães, a Lei n. 9.770, de 17 de junho de 2005. Ela estabelece no seu art. 1º: “ficam proibi‑das as rinhas de galo e de cães no Município de Porto Alegre”.

    Com base no exposto, podemos concluir que as “brigas de galo” constituem práticas consideradas cruéis frente a nossa atual Constituição Federal. Não se inse‑rem, portanto, no critério das práticas absolutamente necessárias ao seres humanos visto anteriormente, pois submetem o animal a um mal completamente desnecessá‑rio. O reconhecimento da constitucionalidade e da legalidade desta prática importa em “fraude à Constituição”. Não se pode permitir tais práticas fundamentadas so‑mente no significado cultural ou recreativo que possam eventualmente representar.(Grifei.)

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    Entendo, por isso mesmo, Senhor Presidente, que a Lei  2.895, de 20‑3‑1998, editada pelo Estado do Rio de Janeiro  – de teor essencialmente idêntico ao da Lei catarinense 11.366/2000, declarada inconstitucional pelo Plenário desta Corte, no julgamento da ADI  2.514/SC, Rel. Min. EROS GRAU  –, está em situação de conflito ostensivo com a norma inscrita no art. 225, § 1º, VII, da Constituição da República, que, insista ‑se, veda a prá-tica de crueldade contra animais e que tem, na Lei 9.605/1998 (art. 32), o seu preceito incriminador, eis que pune, a título de crime ambiental, a inflição de maus ‑tratos contra animais.

    Impende assinalar que a proteção conferida aos animais pela parte final do art. 225, § 1º, inciso VII, da Constituição abrange, consoante bem ressaltou o eminente Ministro CARLOS VELLOSO, em voto proferido, em sede cautelar, neste processo, tanto os animais silvestres quanto os domésticos ou domestica‑dos, nesta classe incluídos os galos utilizados em rinhas, pois o texto constitu‑cional, em cláusula genérica, vedou qualquer forma de submissão de animais a atos de crueldade.

    Não vejo razão para modificar esse entendimento, Senhor Presidente, pois ele se ajusta, com absoluta fidelidade, à orientação jurisprudencial que esta Suprema Corte firmou a propósito do significado que resulta do art. 225, § 1º, inciso VII, da Constituição da República.

    Na realidade, e como registra a doutrina (BRUNO AURÉLIO GIACO‑MINI ROCCO, “Algumas Considerações sobre o Convívio entre o Homem e os Animais”, “in” Revista de Direitos Difusos, vol. 11/1.421, item n. 5, feve‑reiro/2002, Esplanada ‑ADCOAS; DANIELLE TETÜ RODRIGUES, “Tutela da Fauna: Reflexões sobre a Tutela Penal Brasileira”, “in” Boletim Informativo Juruá 315, p. 13, 16 a 28 de fevereiro/2002; ERIKA BECHARA, “A Proteção da Fauna sob a Ótica Constitucional”, p. 22/23, item n. 2.3, 1. ed., 2003, Jua‑rez de Oliveira; LUIZ REGIS PRADO, “Direito Penal Contemporâneo”, p. 327, item n. 4, 2007, RT, v.g.), os animais domésticos, como os galos, acham -se abrangidos pelo conceito genérico de fauna, o que permite estender, na linha da jurisprudência desta Corte, também às aves utilizadas em “briga de galos”, a proteção estabelecida no art. 225, § 1º, inciso VII, da Constituição da República.

    É relevante observar, ainda, como anteriormente mencionado, que a proibição de práticas cruéis contra os animais, notadamente as concernentes às “brigas de galos”, também encontra apoio na legislação ambiental, com especial destaque para a Lei 9.605, de 12‑2‑1998, que tipifica, como crime, as seguintes condutas:

    Art. 32. Praticar ato de abuso, maus ‑tratos, ferir ou mutilar animais silves‑tres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

    Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel

    em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem re‑cursos alternativos.

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    § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.(Grifei.)

    A “ratio” subjacente a essa orientação – que também traduz a posição dominante na jurisprudência dos Tribunais em geral – encontra apoio no pró‑prio magistério da doutrina (PAULO AFFONSO LEME MACHADO, “Direito Ambiental Brasileiro”, p. 887/888, 19.  ed., 2011, Malheiros), cuja análise, a propósito de tal matéria, põe em destaque as seguintes considerações:

    Preceitua a CF, no art. 225: “§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: (...) VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extin‑ção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.

    Os animais fazem parte da fauna; e, portanto, incumbe ao Poder Público protegê ‑los (art. 225, § 1º, VII, da CF). Essa proteção, como dever geral, inde‑pende da legislação infraconstitucional. Três tipos de práticas ficaram proibi‑dos, e essas vedações terão sua maior eficácia “na forma da lei”, ainda que a Constituição Federal já atue a partir de seu próprio texto.

    A Constituição Federal determinou que estão vedadas as práticas que sub‑metam os animais a crueldade. O STF vem decidindo, com admirável coerência, pela proteção dos animais em casos que se tornaram paradigmáticos, como a “farra do boi”, em Santa Catarina, e a decretação da inconstitucionalidade de leis estaduais que permitiam rinhas de galos.

    Uma das concepções sobre a crueldade mostra ‑a como a insensibilidade que enseja ter indiferença ou até prazer com o sofrimento alheio. A Constituição Federal, ao impedir que os animais sejam alvo de atos cruéis, supõe que esses ani‑mais tenham sua vida respeitada. O texto constitucional não disse expressamente que os animais têm direito à vida, mas é lógico interpretar que os animais a serem protegidos da crueldade devem estar vivos, e não mortos. A preservação da vida do animal é tarefa constitucional do Poder Público, não se podendo causar sua morte sem uma justificativa explicitada e aceitável.(Grifei.)

    Vale reproduzir, neste ponto, fragmento da douta manifestação, exarada nos autos da Apelação Cível 479.743/PE (TRF/5ª Região), da lavra do eminente Procurador Regional da República, Dr. WELLINGTON CABRAL SARAIVA:

    44. Em petição encaminhada, anos atrás, ao Procurador ‑Geral da Repú‑blica, pugnou a advogada Edna Cardozo Dias, membro da Câmara técnica de As‑suntos Jurídicos do CONSELHO NACIONAL DE MEIO AMBIENtE (CONAMA), pelo ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade contra a Lei n. 2.895, de 20 de março de 1998, do Rio de Janeiro, por permitir a prática ilegal e inconsti‑tucional de rinha de galo naquele Estado. Na provocação, a advogada relatou a perversidade que envolve tal competição:

    “Da Preparação à Rinha – Por volta de um ano o galo já está pre‑parado para a briga e passará por sessenta e nove dias de trato. No trato, o animal é pelinchado – o que significa ter cortadas as penas de seu pes‑coço, coxas e debaixo das asas  –, tem suas barbelas e pálpebras opera‑das. Iniciou, pois, uma vida de sofrimento, com o treinamento básico.

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    O treinador, segurando o animal com uma mão no papo e outra no rabo, ou então, segurando ‑o pelas asas, joga ‑o para cima e deixa ‑o cair no chão para fortalecer suas pernas. Outro procedimento consiste em puxá ‑lo pelo rabo, arrastando ‑o em forma de oito, entre suas pernas separadas. Depois, o galo é suspenso pelo rabo, para que fortaleça suas unhas na areia. Outro exercício consiste em empurrar o animal pelo pescoço, fazendo ‑o girar em círculo, como um pião. Em seguida, o animal é escovado para desenvolver a musculatura e avivar a cor das penas, é banhado em água fria e colocado ao sol até abrir o bico, de tanto cansaço. Isto é para aumentar a resistência.

    (...)O galo passa a vida aprisionado em gaiola pequena, é privado de

    sua vida sexual normal, só circulando em espaço maior nas épocas de trei‑namento (...)

    Chega a hora do galo ser levado às rinhas. Depois da parelha (esco‑lha dos pares), vem o topo, que é a aposta entre os dois proprietários. São, então, abertas as apostas e as lambujas. Os galos entram no rodo calçados com esporas postiças de metal e bico de prata (o bico de prata serve para machucar mais ou substituir já perdido em luta). A luta dura 1h 15min, com quatro refrescos de 5min. Se o galo é ‘tucado’ (recebe golpe mortal) ou é ‘meio ‑tucado’ (está nocaute), a plateia histérica aposta lambujas, que são apostas com vantagens para o adversário.

    Se o galo ficar caído por 1m o juiz autoriza o proprietário a ‘figurar’ o galo (tentar colocá ‑lo de pé). Se ele conseguir ficar de pé por 1m a briga continua. Se deitar é perdedor. O galo pode ficar de ‘espavorido’ quando leva uma pancada muito dolorosa e abandona a briga.

    Se a briga durar 1h15m sem um deles cair há empate e topo perde a validade. Faz[em] ‑se apostas até sobre o refresco.

    Galo carreirinha é aquele que percorre o rodo correndo até cansar o outro que está correndo atrás dele para depois abatê ‑lo. Galo canga é aquele que cruza o pescoço dele com o outro, forçando para baixo até que o adversário perca a postura de briga. O galo velhaco é aquele que, no meio da briga, entra por debaixo das pernas do adversário, quando está sendo atacado e depois o pega de emboscada.

    Tudo isto comprova que as brigas de galos são cruéis e só podem ser apreciadas por indivíduos de personalidade pervertida e sádicos.”

    (Grifei.)

    Nem se diga que a “briga de galos” qualificar -se -ia como atividade desportiva ou prática cultural ou, ainda, como expressão folclórica, numa patética tentativa de fraudar a aplicação da regra constitucional de proteção da fauna, vocacionada, dentre outros nobres objetivos, a impedir a prática crimi‑nosa de atos de crueldade contra animais.

    “A sujeição da vida animal a experiências de crueldade não é com‑patível com a Constituição do Brasil”, como enfaticamente proclamou esta Suprema Corte (ADI