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Revista Acadêmica da Faculdade 2 de Julho. Ano 1 Número 1 Fevereiro de 2007

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Page 1: Revista Independência 2007
Page 2: Revista Independência 2007

Revista Acadêmica da Faculdade 2 de Julho

Ano 1 Número 1 Fevereiro de 2007 Salvador - Bahia

Page 3: Revista Independência 2007

FACULDADE 2 DE JULHOAvenida Leovigildo Filgueiras, 81Bairro do Garcia, CEP - 40.100-000Salvador - Bahia - BrasilTel.: (71) 3114.3400www.f2j.edu.br

1981-1098

Page 4: Revista Independência 2007

Diretor GeralProf. Josué da Silva Mello

Diretor de Administração e FinançasProf. Sergio Miranda Souza

Coordenação Pedagógica e Acompanhamento AcadêmicoProfa. Tecla Dias de Oliveira Mello

Assessor de ComunicaçãoJornalista Silvio César Tudela

Secretário AcadêmicoFabiano Peixinho

Coordenadora da BibliotecaRosane Rubim

Coordenador do Curso de AdministraçãoProf. Adriano Rocha

Coordenador do Curso de Comunicação SocialProf. Derval Gramacho

Coordenador do Curso de DireitoProfa. Valnêda Cássia Carneiro

EditorDerval Cardoso Gramacho e Benito Muiños Juncal

Conselho EditorialAdriano Santos Rocha Silva

Alexandre RochaBenito Muiños Juncal

Derval Cardoso GramachoIsabella Fadul

José Henrique de Freitas SantosJuarez Duarte Bonfim

Sebastião Heber Vieira CostaTecla Dias de Oliveira Mello

Valnêda Cássia Santos Carneiro

Projeto Gráfico e DiagramaçãoVinícius Silva Carvalho

EXPE

DIEN

TE

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Revista IndependênciaAno 1, n. 1, Fevereiro de 2007

Page 6: Revista Independência 2007

Revista IndependênciaAno 1, n. 1, Fevereiro de 2007

Rádio: de meio de comunicação de massa aveículo de inclusão socialDerval Cardoso Gramacho ................... 47

Mundo tecnológico: mudanças significativasno “fluxo” de informações?José Carlos Ribeiro ........................... 43

As filigranas da dor em “Contos cruéis deguerra”, de Ibéa AtondiLívia Natália ...................................... 67

Educação e Contemporaneidade: Algunselementos para reflexãoGustavo Roque de Almeida ..................... 33

As escolas de comunicação e os novosparadigmas da comunicação de massaVerbena Córdula Almeida ........................ 11

Sílvio Romero: O pensamento mestiçoJosé Henrique de Freitas Santos ............... 55

SUM

ÁRIO01

02

03

04

05

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6 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

10

11

12

História Empresarial VividaJuarez Duarte Bomfim ...................... 145

Humor: uma estratégia comunicacional domovimento literário Padaria EspiritualJúlio Vitorino Figueroa ........................ 133

A fala e o gesto na fenomenologia deMerleau-PontyMárcia Saievicz ............................... 117

A importância da educação na formação dojovem engajado em movimentos decomunicadeSérgio Miranda ................................... 111

“O canto do negro veio lá do alto... é belocomo a íris e os olhos de Deus...”Sílvio César Tudela ............................... 75

Pedro Batista, o criador de Santa BrígidaSebastião Heber Vieira Costa .................. 101

SUMÁR

IO 07

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09

10

11

12

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Revista IndependênciaAno 1, n. 1, Fevereiro de 2007

Mundialização do conhecimento

A história da humanidade é a história da comunicação, pois ohomem é um ser comunicante. De tal modo que o racionalismo deDescartes, “penso, logo existo”, pode ser melhor entendido como:comunico, por isto existo.

Desde o instante em que nosso mais antigo ancestral encontrouum outro semelhante nasceu a necessidade de se criar mecanismos emeios de se comunicar, de se fazer entender e compreender o desejo dooutro. Daí se originaram as linguagens.

Com o passar do tempo, a comunicação – o ato de tornar a açãocomum, compartilhar as idéias –, aperfeiçoou-se e estimulou odesenvolvimento social e tecnológico do ser humano.

O advento da escrita foi, sem dúvida, um dos maiores feitos econquistas da humanidade. Inevitavelmente esta descoberta chegaria ater aproveitamento tecnológico, o que ocorre na metade do século XV,quando Johann Gensfleish Gutenberg cria a imprensa e inicia uma novafase na comunicação social.

Em 1790, 250 anos após a invenção de Gutenberg, o engenheirofrancês Claude Chappe desenvolve o primeiro sistema de telégrafo, cujasistematização é feita por Samuel Morse, em 1838.

O século XIX foi marcado por uma avalanche de descobertas naárea das comunicações. Em 1832, Joseph Plateau cria o primeiro aparelhoa produzir a ilusão de movimento em um desenho que serviu de base àspesquisas que resultaram na criação do cinema, em 1895, pelos irmãosAuguste e Louis Lumière.

Em 1876, Alexandre Graham Bell inaugura um novo meio decomunicação: o telefone.

Alicerçado nos estudos de Heinrich Rudolf Hertz, GuglielmoMarconi, nos suspiros finais do século XIX, apresenta o rádio àhumanidade.

Do rádio, evoluímos para a televisão e, na última década do séculoXX, vimos surgir a Internet e com ela o romper de todos os limites dacomunicação.

A evolução dos meios também se processa no sentido deaperfeiçoar a comunicação ao ponto de conseguir realizar a proeza de ainformação ocorrer em tempo real, não só na velocidade do som, masda luz.

EDITOR

IAL

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Revista IndependênciaAno 1, n. 1, Fevereiro de 2007

O mundo mudou. Vivemos em uma nova realidade onde a imageme o movimento fazem parte do cotidiano de cada ser vivo. Em um mundocada dia mais globalizado a mundialização do conhecimento se faznecessária. Sem isto, ele está fadado a desaparecer, a se anular.

A proposta da Faculdade 2 de Julho de criar a revista Independênciasurge desta necessidade: propiciar um espaço aberto à manifestaçãode todos os saberes de modo a contribuir para a construção de umconhecimento coletivo e nômade como é a informação em nossa época.

Assim, entregamos à sociedade o primeiro número desta obra,que se pretende semestral, e busca reunir as mais diversas correntesde pensamentos, porque o ser humano é plural.

Derval Cardoso Gramacho

Editor Chefe

Page 10: Revista Independência 2007

Revista IndependênciaAno 1, n. 1, Fevereiro de 2007

APRESENTAÇ

ÃO

A Faculdade 2 de Julho, ao publicar o primeiro número de suaREVISTA INDEPENDÊNCIA, o faz como resultado de sua caminhadaacadêmica e como sinal de seu compromisso como futuro. Por isso,INDEPENDÊNCIA é o seu nome. Emerge inspirada nos ideais maiores do2 de Julho, na perspectiva histórica de ampliação de horizontes deliberdade, de vivência democrática e de fortalecimento de cidadania.

A Revista é um marco. Assinala o amadurecimento da academia,o avanço de seu projeto pedagógico, a consolidação de seus cursos, aconsciência de que a educação superior não está circunscrita apenas àsala de aula. Urge produzir, criar, gerar novas idéias, construir e divulgaros novos conhecimentos, produzidos no processo acadêmico. É um passoeficaz para a academia atuar como instrumento de transformação.Como nos lembra Albert Einstein: a mente que se abre a uma novaidéia jamais voltará ao seu tamanho original.

A Faculdade deve ser antes um Centro de Pensamento, de buscapermanente da verdade, espaço de debate e de pesquisa, de re-elaboração e construção do conhecimento novo, com que se há deaprofundar e amadurecer um padrão e um valor. A ação acadêmicapressupõe uma responsabilidade, que se exprime no pluralismo de idéias,na convergência das divergências, no prevalência do senso crítico,investigativo, que singulariza o homem, sujeito de todo o processo.

Pretende-se uma REVISTA acadêmica, institucional, de vanguarda,aberta a todos os Cursos e a todos os campos do saber. Um veículoonde a geração de idéias, de beleza literária e de verdade esteja aserviço da liberdade, da aventura do espírito humano, da pedagogiada qualidade e da construção de esperanças na formação de uma culturada paz, da solidariedade e dos direitos da pessoa humana.

Nesse sentido, a REVISTA INDEPENDÊNCIA há de ser, para aFaculdade 2 de Julho, como semente que germina, sempre geradora deidéias, pensamentos, produções culturais e científicas e, como espelhoa refletir o processo de construção do saber, a obsessão de umaFaculdade em busca da excelência, de uma comunidade universitáriaativa, reflexiva, produtora de conhecimento novo e compromissadacom a construção de um novo futuro.

Josué da Silva MelloDiretor Geral

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Revista IndependênciaAno 1, n. 1, Fevereiro de 2007

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Ano 1, nº 0, Outubro de 2006 Revista Independência

Título

Autor

Resumo

As escolas de comunicação eos novos paradigmas dacomunicação de massa

Verbena Córdula AlmeidaDoutora em Comunicação pela Universidad Complutense de Madrid eprofessora dos cursos de Jornalismo, Propaganda e Marketing daFaculdade 2 de Julho.

E-mail: [email protected]

Os meios de comunicação de massa, majoritariamente, não refletem os anseios eperspectivas da maioria da sociedade. Imersos no contexto do sistema capitalistatendem a reproduzir o discurso dominante e, conseqüentemente, a ocultar asverdadeiras demandas sociais, reduzindo ao máximo o espaço que deveria serdestinado às discussões entre Estado e sociedade civil. P resentesincontestavelmente no cotidiano das sociedades, apresentam-se, aparentemente,como espaços democráticos, sobretudo se compararmos suas característicascontemporâneas com aquelas verificadas no período entre guerras. Mas, na verdade,em vez de se configurarem como via de expressão de idéias, valores e opiniõesdiversas, de maneira equilibrada, encontram-se voltados a propagar idéias, valorese opiniões a partir da ótica dos detentores do poder econômico. O presente trabalhopretende levantar essa discussão, partindo de uma retrospectiva histórica,buscando induzir a uma reflexão acerca do papel que devem exercer as escolas decomunicação na busca da superação desta performance dos meios, possibilitando aedificação, manutenção e consolidação de um outro modelo de comunicação, decaráter popular, priorizador da construção da cidadania e possível instrumentoimpulsionador da transformação estrutural da comunicação de massa.

Palavras-chave: comunicação, democracia, escolas, cidadania.

01

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12 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Muitos estudos têm sido realizados acerca dos meios de

comunicação de massa (MCM) mostrando a importância que estes vêm

adquirindo, ao longo dos séculos, no âmbito social. É incontestável sua

importância no contexto das sociedades contemporâneas. Já não se pode

conceber uma sociedade sem os meios de comunicação. Já não há mais

retorno. Entretanto, pensá-los no âmbito social nos remete – ou deveria

nos remeter – a um questionamento que parece imprescindível: de onde

partirá ou de que maneira se dará a mudança na práxis dos meios de

comunicação de massa?

No processo evolutivo dos estudos sobre comunicação, encontram-

se teorias sugerindo vários prismas para analisar o processo de

construção e recepção das mensagens, partindo da teoria da Agulha

Hipodérmica1 e da Teoria do Espelho2, passando por outras abordagens

que contemplam os aspectos psicológicos, históricos, antropológicos e

sociológicos, sustentando teses mais críticas e reflexivas acerca desse

processo comunicativo. Considerar os constrangimentos organizacionais,

as ideologias – tanto hegemônicas quanto não-hegemônicas – abre uma

discussão bastante interessante e, sobretudo, madura, para se tentar

compreender, com bases mais amplas, a comunicação de massa nas

sociedades contemporâneas.

Neste trabalho se pretende suscitar uma reflexão sobre o papel

dos MCM nas sociedades, sobretudo, direcionar tal reflexão para a

necessidade de se reformular a práxis dos mesmos, ressaltando a função

que deve exercer as escolas de comunicação no processo de formação

dos profissionais. Neste sentido, se partir-se-á de uma retrospectiva

histórica no intuito de conduzir a reflexão acerca do processo de evolução

da comunicação, principalmente a partir da utilização dos mesmos como

instrumentos de propaganda ideológica.

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13Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

1. O uso propagandístico da comunicação

O assentamento, no século XX, dos modernos MCM, como o

cinema, o rádio e a televisão, se completa, nas últimas décadas, com o

advento de novas tecnologias, entre as quais notadamente podemos

destacar a Internet. Na contemporaneidade, o ser humano dispõe de um

volume de informações e de uma rapidez para consultá-la, como nunca

havia acontecido.

Vale salientar, no entanto, que tal desenvolvimento veio também

acompanhado de sua utilização para mobilizar populações inteiras,

levando-as, inclusive, à guerra entre nações industrializadas3, em cujos

conflitos a comunicação foi convertida em uma frente na qual as balas e

os canhões foram substituídos por discursos, lemas, frases,

desencadeando os piores horrores ou serviram – e ainda servem – para

legitimá-los contra populações civis indefesas.

As implantações de sistemas autoritários, a manutenção de

guerras sob o exercício indiscriminado do terror se apoiaram – e continuam

se apoiando – freqüentemente no controle ferrenho e na manipulação da

informação, monopolizada por quem pretendia – e continua pretendendo

– tamanha atrocidade em nome de conceitos abstratos como fé, pátria

ou etnia, dotados normalmente de uma máxima que ocultava – e oculta

– atrás de si o sofrimento de milhões de seres humanos em todas as

partes do planeta4.

Os novos meios de comunicação como o cinema e o rádio, mais

adequados para atingir a uma massa de receptores, além de não trazerem

como pressuposto básico o domínio da leitura, acabaram servindo como

instrumentos auxiliadores de ações manipuladoras, dominadoras,

totalitárias. Exemplo claro foi o fascismo que, surgido como movimento

na Itália, não demorou em ser copiado e redimensionado com a

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14 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

competência digna de alunos aplicados como Adolf Hitler, na Alemanha.

Houve, naquela época, a combinação de ideologias reacionárias e

ultra-conservadoras do século XIX com aquelas relacionadas ao moderno

modelo baseado no automatismo próprio das sociedades de massa. Tal

combinação deu suporte à extensão do discurso fascista, que por sua

vez andou junto com o estrito controle dos meios de comunicação

tradicionais, como a imprensa, além de uma exploração inescrupulosa

desses novos meios surgidos para se dirigir às massas: o rádio e o

cinema.

Aqui no Brasil temos o exemplo do primeiro modelo de controle

dos meios massivos de comunicação como suporte à sedimentação de

uma “sociedade corporativa, com ênfase na objetividade tecnocrata e

no autoritarismo paternalístico” (JAMBEIRO, 2003, p. 11) levado a cabo

por Getúlio Vargas, sobretudo a partir do período conhecido como Estado

Novo (1937-1945).

Da mesma forma como na sociedade liberal capitalista, viu-se

também o controle e a utilização dos meios de comunicação como armas

propagandísticas, por parte do mundo comunista, que de igual forma

serviu para controlar as massas e tentar convencê-las da suposta

legitimidade da atuação – muitas vezes atroz – daqueles que estavam à

frente do dito sistema. Pode-se citar como semelhante referência as

atrocidades praticadas pelo regime stalinista perpetrado na antiga União

Soviética, onde a propaganda foi massivamente utilizada para dar

suporte àquele sistema autoritário, responsável pelo extermínio de

milhões de seres humanos, em nome da manutenção do poder

hegemônico.

Foram tempos muito difíceis, não só pelo controle desses meios

pelos dirigentes políticos dos respectivos regimes, mas de cerceamento

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15Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

das liberdades, da imposição da censura propriamente dita, que fizeram

dos MCM controlados as únicas fontes de informação disponíveis aos

cidadãos.

2. A democratização da comunicação de massa

Passado esse período, parece que os MCM vêm sofrendo freqüentes

metamorfoses e, nessa perspectiva, na sua configuração atual,

contemporânea, apresentam-se como mecanismos de fácil acessibilidade

e, sobretudo, trazem, aparentemente, um status de democráticos, de

participativos, especialmente se comparamos a performance destes nos

dias atuais em relação ao período de entre guerras. Não cabe a menor

dúvida o processamento de uma visível transformação. Entretanto, cabe-

nos ressaltar o fato de essa democratização ainda se distar das reais

necessidades das sociedades ditas democráticas.

Conforme José Marques de Melo, é necessário melhorar o nível da

comunicação que abastece a população brasileira e a capacita a tomar

decisões cotidianas. Nesta perspectiva expõe como algumas das metas

prioritárias:

Democratizar o acesso à propriedade dos meios de

comunicação. Neutralizar o monopólio hoje desfrutado pela

burguesia, que dispõe do capital necessário à sua

implantação e manutenção. Criar mecanismos jurídicos

para distribuir as concessões radiofônicas ou as facilidades

editoriais com as outras forças atuantes na sociedade:

sindicatos, movimentos sociais, sociedades culturais ou

científicas. Assim, introduzindo no mercado fatores de

competição, alternativas de qualidade, matrizes plurais

de percepção ideológica (MARQUES DE MELO, 1986, p. 82).

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16 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Ao contrário do que defende o comunicólogo, os MCM estão menos

a serviço da massa do que deveriam. Em vez de se configurarem como

via de expressão de idéias, valores e opiniões diversos, de maneira

equilibrada, estes se encontram mais voltados ao papel de

condicionadores de mentalidades, em cujas idéias, valores e opiniões

influem cada vez mais diretamente.

Não se trata de defender um frankfurtianismo dogmático, para o

qual as resoluções dos problemas referentes à democratização da

comunicação de massa se dariam a partir da introdução do pensamento

socialista em contraposição à lógica capitalista. O tema é muito mais

complexo. É necessário, porém, a garantia da heterogeneidade de

pensamento e parece que esta é a direção apontada por Marques de

Melo na sua defesa da democratização dos meios.

Vale salientar, porém, a necessidade de cautela referente às idéias

que, incondicionalmente, atribuem aos MCM o poder supremo de

“injetar” mensagens sem a possibilidade de reação consciente e ativa

por parte do receptor. Contudo, necessário se faz ressaltar um fator

importante: em uma sociedade automatizada, repleta de mazelas, como

a falta de um sistema educacional eficiente, falta de incentivo à cultura,

dentre outras, os meios acabam se configurando como formadores de

opiniões com um peso bastante considerável.

Há vários condicionantes para explicar esta afirmação e, um deles,

talvez o mais importante, seja o fato de os MCM estarem mais voltados

para o caráter mercantil do que propriamente preocupados com a função

que lhes seria primordial, qual seja a de informar e educar.

Se se retorna à atividade comunicacional de massa na sociedade

ocidental, nos séculos XVIII e XIX – neste período reduzida ao jornalismo

impresso –, por exemplo, deparar-se-á com uma atividade, na maioria

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17Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

das vezes, com a intenção direta de discutir questões políticas,

econômicas e sociais que estas sociedades enfrentavam – fosse no sentido

de questionar a ordem vigente ou de estabelecer a defesa da sua

continuidade. Apesar da diminuta abrangência da penetração destas

idéias por meio da imprensa, por motivos óbvios, não podemos desprezar

o fato de a atividade jornalística ter contribuído para a ampliação de

idéias e ideais que deram uma outra configuração às realidades vigentes.

Exemplo desse tipo de imprensa esteve presente nas colônias

hispano-americanas, onde os jornais serviram como instrumentos de

propaganda ideológica para desestabilizar a ordem vigente ou mesmo

para defender a hegemonia do poder constituído. Já no século XVII

começaram a circular jornais e folhetos com críticas referentes aos

problemas dos grandes núcleos populacionais. Embora a população em

geral não se encontrasse preparada para compreender as teorias sobre

liberdade nem os conceitos de nação, compreendia as críticas feitas à

concentração de riquezas e de cargos públicos nas mãos dos europeus

colonizadores. Por outra parte, os monarquistas também utilizaram a

imprensa tradicional para defender a legitimidade do governo colonial.

Na confusão de idéias que deram a conhecer esses escritos do século

XVII, nas colônias hispano-americanas, há um fio condutor que nos permite

observar duas tendências: uma liberal e outra anti-liberal ou realista

(NAVARRETE, 1998). Sem nenhuma dúvida, é flagrante o papel

desempenhado pelos jornais para a difusão das idéias contrárias e/ou

favoráveis ao sistema colonial.

Analisando o caso brasileiro, embora a imprensa tenha chegado

tardiamente e com o agravante de ter sido implantada para servir como

porta-voz da autoridade constituída5, também se pode observar que no

âmbito do seu processo evolutivo o jornalismo se constituiu,

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18 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

gradativamente, em importante instrumento de difusão dos ideais de

Independência, de República, de abolicionismo. Em que pesasse a censura,

as tentativas de silenciar os defensores da quebra da hegemonia do

poder constituído; em que pesasse a existência de uma sociedade

majoritariamente iletrada, não se pode negar o importante papel

desempenhado pela imprensa na divulgação dos ideais e das ideologias

que contrastavam com os ideais e ideologias hegemônicos que, por sua

vez, também faziam uso do jornalismo como veículo propaganda. Estava

claro, estava explícito o papel panfletário do jornalismo, a defesa de

bandeiras.

Seguindo uma tendência mundial, no final do século XIX a atividade

jornalística no Brasil sofre uma metamorfose, conseqüente do seu

processo evolutivo. O jornalismo deixa de ser uma atividade de cunho

artesanal e converte-se em empresa. Com essa transformação a atividade

ganha novas características e, uma delas, é a separação entre notícia e

opinião. E, gradativamente, para atender aos interesses de cunho

comercial, que em primeira e última instâncias significava ampliar cada

vez mais a abrangência na sociedade, empunhou-se a bandeira da

imparcialidade. Mas essa defesa da imparcialidade não significa afirmar

que os jornais se tornaram imparciais, pelo simples fato de que a

imparcialidade não existe. Mencionar a imparcialidade é incorrer no

erro de desprezar a historicidade dos indivíduos, o seu processo cognitivo

e, portanto, menosprezar a capacidade de interferência dos sujeitos no

processo histórico no qual estão inseridos. A defesa de dita imparcialidade

precisa ser vista sob um olhar crítico, que remete a enxergar além das

aparências.

Conforme Marques de Melo (1986, p. 39), “se a comunicação é

um processo de reprodução simbólica, evidentemente a arbitração dos

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19Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

símbolos que representam a realidade e que dão sentido à interação

humana configura uma operação ideológica”. Assim sendo, a atividade

jornalística é eminentemente ideológica, já que apreender os fatos e

relatá-los através de veículos de difusão coletiva significa projetar visões

de mundo. E qual a visão de mundo projetada pelos meios de comunicação

em nossa sociedade? É desnecessário responder a esta indagação, pela

obviedade.

Partindo deste pressuposto se encontra um conflito explicitamente

estabelecido entre o conteúdo oferecido à sociedade pelos meios de

comunicação e aquilo que seria – do ponto de vista dos que analisam as

necessidades da maioria da população – o ideal de conteúdo a ser veiculado

por estes. O que há, no âmbito dos meios de comunicação, é, senão,

uma reprodução do conflito de interesses existentes no seio da sociedade

de classes: os conflitos nas favelas, o tráfico de drogas, a violência

policial, a ocupação de terras pelos sem-terra, a discriminação social,

étnica, de gênero, etc., tudo isso sem uma maior reflexão acerca dos

porquês desses fatos ocorrerem tão cotidianamente em nossa sociedade.

Os porquês são desprezados no cotidiano da produção da notícia, como

se fossem elementos desnecessários.

Os conteúdos disseminados pela comunicação de massa, em sua

maioria, não são desenvolvidos de maneira a suscitar na sociedade

questionamentos e uma conseqüente mudança de comportamento frente

aos maiores problemas que afligem os indivíduos que compõem dita

sociedade. Não se preocupam, tampouco, em ampliar o grau de educação

dos receptores, tome-se como exemplo a esmagadora maioria da

programação televisiva, cujo objetivo primordial é promover o

merchandising desenfreado para impulsionar cada vez mais o consumo

compulsivo.

Page 21: Revista Independência 2007

2 0 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

As empresas de comunicação parecem preferir promover o

sensacionalismo desmedido a informar à sociedade e conseqüentemente

fazê-la refletir sobre os problemas que a cercam. Exemplos nítidos desta

prática foram os atentados contra as torres gêmeas nos Estados Unidos,

em 2001, o atentado contra o trem, em Madrid, em março de 2004, a

catástrofe ocorrida na Ásia no final de 2004 (Tsunami) e tantas outras

catástrofes e calamidades que são utilizadas de forma sensacionalística

nos mais variados espaços dos veículos, sejam eletrônicos ou impressos,

para atrair expectadores, ouvintes e leitores sem, contudo, promover

uma reflexão crítica acerca destes fatos.

No caso da catástrofe ocorrida no continente asiático, publicou-

se nos meios o fato de os países atingidos não possuírem mecanismos

tecnológicos capazes de diagnosticar, prever e, portanto, viabilizar ações

que reduziriam as conseqüências – sobretudo do ponto de vista humano.

Falou-se na pobreza dos países do chamado Terceiro Mundo, quando,

em realidade, se deveria falar na pobreza da maioria da população destes,

uma vez que os países não são pobres. Deixaram de ponderar que a

Índia possui um arsenal nuclear avaliado em bilhões de dólares e que,

em lugar disso poderia ter viabilizado todos os mecanismos tecnológicos

necessários e capazes de apontar a chegada de cataclismas, ou que com

o dinheiro gasto em programas nucleares se mataria a fome de milhões

de pessoas naquele país. Isto poderia induzir a sociedade a questionar,

por exemplo, os gastos do governo brasileiro, que priorizam, muitas

vezes, o supérfluo, em detrimento de investimentos em setores

essenciais à qualidade de vida da população. Os gastos com publicidade

institucional podem servir como exemplo clássico.

É flagrante a falta de interesse dos meios em aprofundar a maioria

das discussões e, ao contrário, também é nítido o interesse em chamar

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21Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

a atenção pela dimensão catastrófica de determinados acontecimentos

ao invés de, por exemplo, fazer a sociedade conhecer certos dados que

possivelmente suscitariam outros tipos de reações.

Aceitar o caráter ideológico da atividade jornalística – e

comunicacional de massa como um todo – é o primeiro passo para a

aceitação de que esta, ao assumir característica empresarial, vai

responder aos interesses únicos e exclusivos da classe social que detém

os meios para mantê-la em funcionamento.

A configuração dos MCM em nossa sociedade cada vez menos

atende a essa formatação de ideal de democracia. E para estes meios

as escolas de comunicação estão formando centenas e mesmo milhares

de jovens: estão sendo formados profissionais que, no mercado, serão

especializados em vender produtos disfarçados de notícias, de

informação. Analisando sob esta perspectiva, pode-se perguntar: é

possível trilhar por outro caminho? E qual caminho seria este?

3. Fragmentação e descontinuidade

O jornalista e professor da Universidade Fluminense, Felipe Pena,

chama a atenção para a necessidade de colocar em prática o que ele

chama de “jornalismo de resistência”. De acordo com o comunicólogo,

este jornalismo consistiria na aplicação prática de preceitos ligados à

função social da atividade, ou seja, a resistência da concepção

mercadológica de jornalismo, refutando assim a classificação da notícia

como simples mercadoria ou as limitações das rotinas produtivas (PENA,

2005). Ele defende a possibilidade de construção social da realidade

através da atividade jornalística e a profissão de jornalista como

importante nesta dinâmica.

Há quem advogue que a democratização da sociedade somente

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22 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

se viabilizaria a partir da democratização dos meios de comunicação,

mas, se damos por certo que estes reproduzem a divisão de classes e os

respectivos conflitos de interesses existentes na sociedade, seria

incoerente defender esta tese. É demasiadamente utópico pensar a

possibilidade de conciliar os interesses econômicos que o sistema

capitalista pressupõe com o bem-estar das pessoas. Se assim o fosse,

como ressalta Montoya (2004), estaríamos esperando o sistema

capitalista se autodemocratizar, ou seja, a destruição do capitalismo. O

certo é que os meios e o jornalismo vêm desempenhando o papel de

advocacy dos pressupostos básicos do sistema capitalista e não das causas

sociais. Deste modo, é imprescindível a consciência de que o caminho a

ser traçado é justamente o inverso, ou seja, partir da democratização

da sociedade à democratização dos MCM.

Os meios de comunicação pertencentes aos burgueses não

incentivarão a diversidade do pensamento, a análise e a reflexão

generalizada, mas, ao contrário, tenderão a agir cada vez mais no sentido

de contribuir para a conformação de uma sociedade pautada na

sedimentação dos valores burgueses.

Tomando como exemplos práticos as matérias jornalísticas

veiculadas diariamente nos meios – tanto eletrônicos quanto impressos

–, vemos claramente o que prevalece. Apesar de aparentemente

ultrapassada, a Teoria do Espelho parece encontrar adeptos e defensores

na esmagadora maioria das empresas de comunicação e,

conseqüentemente, de muitos jornalistas.

Na contemporaneidade a comunicação está presente em todos os

âmbitos. Desde que se levanta o homem é “bombardeado” com tal volume

de informações, notícias e mensagens, a ponto de sua capacidade

cognitiva ser obrigada a realizar um acelerado processo de seleção, um

Page 24: Revista Independência 2007

23Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

vertiginoso crivo para descartar tudo aquilo que carece de interesse de

acordo com os seus próprios critérios. Nesta perspectiva, geralmente

prevalece a visão da mídia como competente dispositivo de mediação.

São os “agentes de midiação” que têm o encargo de “dar

uma estrutura representativa” a fatos ocorridos, dotando

essa sua proposição de um sentido e a ofertando à recepção

de um público extenso, mas fragmentado e descontínuo

[...] (POLISTCHUK e TRINTA, 2003, p. 149).

Assim sendo, a implementação de um jornalismo mais próximo à

sua função social, seja ele de resistência, como defende Felipe Pena, ou

cívico; a refutação da objetividade e o conseqüente combate aos

enquadramentos viciados; bem como a atuação do jornalista como ator

político, entre outros (PENA, 2005).

Recentemente o jornalista brasileiro Ulisses Capozzoli escreveu

artigo intitulado As reflexões que o jornalismo não faz – ponderações

imprescindíveis para qualquer comunicólogo e estudantes de

Comunicação, bem como para qualquer cidadão – onde citou como

exemplos reportagens realizadas sobre massacres de indígenas no Brasil,

o tratamento dado pela imprensa na Espanha sobre o atentado de 11 de

março de 2004, entre outros, ressaltando a abordagem superficial e

distorcida que o jornalismo geralmente dispensa aos fatos. Para

Capozzoli, os jornalistas têm a obrigação de tratar a realidade com a

inteligibilidade e a ética necessárias e que é preciso haver um filtro

crítico.

Na maioria dos casos, esse filtro crítico referido por Capozzoli

atingiria frontalmente os interesses dos controladores dos meios de

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24 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

comunicação. Quando, por exemplo, o receptor se depara com matérias

jornalísticas se reportando aos acidentes automobilísticos, por acaso

ditas abordagens trazem algum aspecto crítico? São limitadas, quase

que exclusivamente, às estatísticas, a elencar o consumo de bebidas

alcoólicas, bem como o excesso de velocidade como os principias

causadores de ditos acidentes e, quando se referem à velocidade, jamais

questionam o porquê desta excessiva velocidade. Não se lê ou se assiste

nestas reportagens nenhuma menção ao fato de haver uma preocupação

cada vez maior, por parte da indústria automobilística, em aprimorar e

dotar seus veículos com motores cada vez mais potentes e velozes e

colocá-los no mercado à disposição do consumidor, fato que incide de

maneira marcante nas estatísticas de acidentes de trânsito.

Quando o receptor lê ou vê uma reportagem a respeito dos

acidentes de trânsito, a reflexão que é sugerida não é outra senão a da

irresponsabilidade dos condutores dos veículos provocadores dos ditos

acidentes, mas nunca é direcionado a questionar, por exemplo, qual a

parcela de culpabilidade de quem fabrica, comercializa e de quem permite

a comercialização de veículos capazes de desenvolver uma velocidade

completamente inadequada e incompatível com os códigos de trânsito

e, sobretudo, com a preservação da vida nas vias urbanas e rodovias do

mundo afora. Mas esse tipo de reflexão põe em xeque o sistema

capitalista, entra em choque com o que há de mais “sagrado” em dito

sistema, que é indução ao consumo sem a reflexão quanto às

conseqüências que isso pode implicar.

No tocante às questões sociais brasileiras, ocorre exatamente o

mesmo. No século XX, o Brasil foi o país que apresentou a melhor média

de crescimento no mundo e, no entanto, esse crescimento não se viu

refletido na melhoria das condições de vida da maioria da sua população.

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25Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

No último ano, o governo brasileiro vem se vangloriando do crescimento

do superávit da balança comercial. Mas, a despeito disto, continua-se

com as políticas assistencialistas, com os altos índices de desemprego,

enfim, com a concentração gritante da renda, onde as cinco mil famílias

mais ricas do País detêm 45% do PIB nacional. O raciocínio lógico remete

à conclusão de que a solução para a maioria dos problemas do Brasil

estaria na distribuição eqüitativa desses recursos, de modo a

proporcionar condições dignas de vida à população em geral. No entanto,

os meios de comunicação limitam-se apenas e tão-somente a divulgar

os números da balança comercial.

A reflexão aqui proposta – e a menção feita às matérias sobre os

acidentes e às questões político-sociais brasileiras são apenas exemplos

ilustrativos – é que os meios de comunicação, de um modo geral, não

auxiliam na ampliação da margem de reflexão da sociedade sobre os

problemas que a afligem. Ao contrário, têm-na direcionado para um

alheamento massivo, não contribuindo para o aprimoramento da

capacidade reflexiva dos cidadãos, buscando reduzir estes a meros

decodificadores de mensagens, a maioria delas transmitidas de forma

limitada, propiciando uma visão unilateral, fragmentada e descontínua

dos fatos e acontecimentos.

4. As escolas e a mudança de foco

Embora muitos já estejam identificando nos meios de comunicação

essa falta de atuação conscientizadora, incentivadora de uma práxis

reflexiva da sociedade, não se vê claramente propostas de como

solucionar dito problema. Sendo assim, fica a pergunta: de onde deve

partir essa ação de redirecionar a práxis dos meios de comunicação,

especialmente a jornalística, e quais as possibilidades de que esse

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2 6 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

redirecionamento realmente se efetive? Retomando a indagação feita

anteriormente, considerando o rumo que vêm seguindo os MCM, há saída

possível capaz de remeter a atividade comunicacional de massa à outra

direção? As gerações futuras poderão conhecer outro tipo de

direcionamento da atividade comunicacional de massa, que em vez de

priorizar o incentivo do consumo, o sensacionalismo, a superficialidade,

passe a adotar como objetivo primordial a informação, a formação, a

reflexão, o debate? Ou seria utópico imaginar a possibilidade de uma

mudança de rumo neste sentido?

Por agora, talvez o mais coerente seja afirmar quão difícil seria

alcançar mudanças – melhor dizendo, transformações –, tão significativas.

Entretanto, é importante notar que nem tudo está perdido. Exemplos

disso são algumas iniciativas acadêmicas surgidas pelo País afora, onde

diversos trabalhos, inclusive de conclusão de curso, de estudantes de

comunicação, sinalizam o desejo de mudança dessa direção assumida

pela maioria dos MCM. Essas iniciativas, ainda que bastante incipientes,

vêm demonstrando a necessidade de o estudante e o profissional da

comunicação redimensionar seus olhares e ações, direcionando seu foco

de atenção para além dos limites dos grandes grupos e conglomerados

de comunicação. Ou seja, há vida profissional – ainda no momento sem

estrutura – fora das grandes mídias, a exemplo de comunidades carentes,

de organizações não-governamentais e outras entidades, potenciais a

serem explorados no campo da comunicação, talvez os responsáveis, no

futuro, por uma mudança e/ou transformação estrutural nos MCM. Este

redirecionamento colocaria à prova a vaidade pessoal de muitos

postulantes à carreira de comunicador social, que vêem nesta a

possibilidade de terem suas imagens e/ou assinaturas estampadas nas

grandes mídias, “invadindo” os espaços de milhares ou milhões de

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27Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

receptores. Talvez fosse responsável por uma significativa redução do

número de candidatos às vagas oferecidas nas diversas escolas de

comunicação distribuídas pelo País. Mas, provavelmente, seria

responsável também pela mudança de paradigma do cenário

comunicacional de massa. A futura configuração estaria baseada na

“fórmula” menos glamour, mais compromisso social.

E é, sobretudo, importante ressaltar o papel que têm ou devem

ter os professores atuantes nas escolas de comunicação, no sentido de

incentivar e promover esse tipo de discussão, de iniciativas, deixando

clara a existência de alternativas, objetivando o rompimento desse

modelo superficial de comunicação predominante, distante do papel que

deve desempenhar.

A atuação dos docentes deve residir, sobretudo, no objetivo de

proporcionar aos estudantes de comunicação uma visão mais ampliada

acerca do papel da comunicação de massa nas sociedades, possibilitando

a aproximação dos futuros profissionais com realidades que lhes permitam

entrar em contato com a comunicação popular, não somente para estudá-

la, mas interferir, na prática, para a sua efetivação, no seu

fortalecimento e na sua constituição em uma alternativa que,

futuramente, force as grandes mídias a redimensionarem a sua atuação.

Reunir esforços para implantar rádios e TVs comunitárias,

impressos alternativos – e fazê-los funcionar obedecendo esse caráter

realmente comunitário e popular, tudo isso acompanhado da participação

efetiva das comunidades – é condição sine qua non para a construção de

uma comunicação engajada, cidadã e democrática. Sem dúvida um

grande passo rumo à construção de uma massa mais crítica, mais

exigente, consciente do papel que deve desempenhar no processo de

construção de sua própria cidadania, deixando de enxergar a realidade

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28 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

e de se comportar de acordo com a perspectiva dos detentores do poder

econômico.

Talvez as escolas de comunicação devessem se preocupar menos

em formar profissionais para ocupar espaços no mercado já demarcado

e mais em suscitar nesses futuros profissionais o desejo de construir

uma sociedade democrática, de fato, onde os meios de comunicação

possam refletir os anseios da maioria, possam discutir as reais

necessidades sociais, dando espaço e voz aos que realmente necessitam,

sem cristalizar estereótipos, preconceitos – como costuma fazer

cotidianamente –, mas sobretudo servindo como uma “tribuna

democrática” (RODRIGUES, 2002), na qual o debate público entre o Estado

e a sociedade civil possa se realizar.

A partir desse poder de transformar a realidade midiática e tendo

como base novas práticas e novos modelos de comunicação, talvez fosse

responsável pela estruturação de novo modelo baseado na cibercultura,

proposto pelo sociólogo Pierre Lévy .

[…] um mundo novo no qual o conhecimento e a informação

seriam a principal riqueza, poderíamos mesmo dizer sua

“moeda corrente”. Um mundo que, dispensando as

mediações tradicionais – sendo, nesse sentido, pós mídia –

e construído pela multiplicidade de vozes que pulsam no

campo social […] (LÉVY apud RODRIGUES, 2002, p. 213-

214).

Em uma sociedade sem democracia, de fato, os meios de

comunicação de massa tradicionais jamais refletirão os anseios da

maioria. Daí a necessidade de uma mudança na práxis das escolas de

comunicação se se quer instituir uma mudança na prática

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29Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

comunicacional, considerando que a instituição e consolidação de formas

alternativas de comunicação levadas a cabo pelos futuros profissionais

da comunicação social poderão significar uma “forçosa” transformação

na práxis da comunicação de massa como um todo. O objetivo primordial

seria deixar clara e exposta a heterogeneidade de pensamento tão

presente no contexto da sociedade, mas atualmente camuflada na visão

predominante da mediação realizada pelos MCM tradicionais. Estar-se-

ia, desta forma, garantindo o direito à expressão coletiva, o que

substancialmente concorreria para a construção e efetivação da cidadania

como expressão mais importante da vida em sociedade. Assim, o

jornalismo estaria, verdadeiramente, cumprindo com sua função social.

Referências bibliográficas:

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da Imprensa, 11 de maio de 2004. Disponível em:< http:

www.observatoriodaimprensa.com.br>. Acesso em 20 fevereiro de 2005.

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homens tristes.In: FILHO, Clóvis Barros (org). Comunicação na pólis:

ensaios sobre mídia e política. Petrópolis, Vozes, 2002.

SODRÉ, Werneck Nelson. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro:

Mauad, 1999.

Notas:

1 A Teoria da Agulha Hipodérmica punha em relevância o papel desempenhado pelafonte emissora das mensagens, relegando o receptor à condição de mero sujeitopassivo, como se os meios de comunicação de massa funcionassem como uma seringaque “injeta” informações, sem nenhuma possibilidade de resistência por parte dequem as recebe. Foi o primeiro modelo criado para explicar os efeitos causados pelasmensagens ao público receptor.2 Teoria do Espelho foi a primeira que buscou explicar o porquê de as notícias seremcomo são, baseada no pressuposto de que as notícias são o espelho fiel da realidade,

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desconsiderando, assim, a subjetividade como fator inerente à atividade jornalística.3 Sobre este tema um amplo estudo se encontra em QUINTERO, Alejandro Pizarroso:Historia de la Propaganda . Madrid: Eudema, 1993.4 Vide I e II Guerras Mundiais, a Guerra do Vietnã, a Guerra de Kosovo, a invasão doAfeganistão pelos EUA, a guerra dos EUA e aliados contra o Iraque, entre outrosconflitos.5 Sobre este tema consultar SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa do Brasil.Rio de Janeiro: Mauad, 1999.

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Ano 1, nº 0, Outubro de 2006 Revista Independência

Título

Autor

Resumo

Educação e Contemporaneidade:Alguns elementos para reflexão

Gustavo Roque de AlmeidaSociólogo Doutor em Educação pela UFBA e professor da UNEB, UFBA,

UNIFACS e 2 de Julho.

E-mail: [email protected]

O autor aponta alguns aspectos da contemporaneidade na perspectiva de que sua

apreensão pode contribuir para demarcar como a educação, notadamente aquela

patrocinada pelo Estado, tem se pautado pelas premissas do neoliberalismo vigente

no momento atual e, de resto, contribuído para propiciar a exclusão de contingentes

cada vez maiores da população dos postos de trabalho de maior remuneração.

Para tanto, aponta alguns dos pressupostos do capitalismo contemporâneo, como

contribuem para diminuir o poder do Estado e como tem ocorrido a concentração

de riqueza nas últimas décadas.

Parte integrante desse processo, a educação é tratada como elemento essencial à

consecução dos desígnios neoliberais, na medida que busca manter e ampliar as

desigualdades socioeconômicas, por um lado, e, por outro, adestrar profissionalmente

trabalhadores para atender aos interesses do grande capital.

Palavras-chave: Educação, Estado, escola, exclusão, neoliberalismo.

02

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34 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

O século XX foi pródigo em “métodos educacionais”, que prefiro

chamar de abordagens, buscando apresentar-se como a possibilidade

de não só educar com um grau de eficiência bastante elevado, como

também possibilitar sua utilização com o fim de atingir imensos

contingentes populacionais.

Durante a fase do pós-guerra, na qual vultosos investimentos

foram realizados pelos EUA e pela URSS (através do Plano Marshall e do

COMECON) em alguns países palco do conflito, perceberam estes a

importância da educação, no que se refere à preparação de trabalhadores

qualificados para operar com as tecnologias aplicadas aos setores

mecanizados da produção. O Japão e a Alemanha são exemplos marcantes

disso.

Para discutir melhor tal questão, entretanto, é preciso situá-la

historicamente para, compreendendo suas nuanças políticas e

econômicas, tentar explicar suas razões e seus erros e acertos.

A década de setenta, do século passado, trouxe para o mundo

capitalista um grande susto, que foi a crise deflagrada pelos países

árabes exportadores de petróleo, ora diminuindo a oferta do produto,

ora elevando-lhe os preços. Como se sabe, tais países são de tradição

majoritariamente muçulmana e isso os coloca, do ponto de vista cultural,

em uma outra posição em relação aos ocidentais, o que, não raro, tem

conduzido a graves conflitos envolvendo a comunidade internacional, a

exemplo do eterno “affair” entre judeus e árabes.

Essa década representa também o início de uma nova fase do

capitalismo internacional, caracterizada pela concentração cada vez maior

do capital em poucas mãos, através do processo de fusão ou compra de

grandes corporações, maior agilidade em investimentos de curto prazo

no mercado financeiro, criação de acordos de comércio visando a quebra

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35Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

de barreiras alfandegárias, passando, inclusive, pela tentativa de

unificação de moedas (o caso do euro), implantação de unidades fabris

em países onde o binômio “incentivos fiscais e mão-de-obra barata”

fosse mais atrativo; é o que se tem caracterizado como mundialização

da economia ou, globalização.

Fator importante que não se pode deixar de considerar é

representado pelo avanço das tecnologias computacionais e a rapidez

da comunicação propiciada pela rede eletrônica que ligou os países em

tempo real, a Internet. Associe-se a isso as questões de ordem

estratégico-militar que apontam para os riscos da concentração da

produção industrial em uma mesma região geográfica.

Com essas características, assiste-se a uma nova expansão da

economia mundial, mais espalhada geograficamente e que demanda um

novo perfil de trabalhador, com níveis mais elevados de escolarização, e

de um consumidor menos resistente aos apelos da mídia publicitária.

Pressionados pelo endurecimento das regras de comércio

internacional, cada vez mais ditadas pelos países mais ricos (G-7), os

“países em desenvolvimento” buscam atrair investimentos e

empréstimos que lhes permita superar não só seu imenso atraso

tecnológico como, também, garantir emprego a parcelas cada vez mais

amplas de sua população. Nesse afã, têm sido obrigados a aceitar a

implantação em seu solo de transnacionais que lhes exigem a concessão

de pesados incentivos para sua instalação. Não obstante isso, para

viabilizar sua ação administrativa, são pressionados a aceitarem

empréstimos (FMI, Banco Mundial etc.) sob a condição de adotar políticas

que interessam àqueles organismos a exemplo da diminuição da ação

estatal nos mais diversos campos de sua atuação, como saúde,

segurança, educação etc.

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36 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

O caso do Brasil é mais um dos que se deixam levar por uma

administração que, na tentativa de promover a aceleração do processo

desenvolvimentista a qualquer custo, adotou o receituário preconizado

por tais organismos e tem aberto mão, para os investidores

internacionais, de parcelas das mais significativas de sua economia, a

exemplo de setores estratégicos como siderurgia, telecomunicações,

geração e distribuição de energia elétrica, insumos agrícolas e o setor

financeiro.

À semelhança do que já havia acontecido antes, por exemplo, em

relação ao tecnicismo vigente no período da expansão industrial do pós-

guerra, a educação começa a sofrer mudanças no sentido de atender

aos ditames do mercado. Vejamos agora como isso se dá.

Com uma população que ultrapassa os 180 milhões de pessoas,

majoritariamente jovem e concentrada em centros urbanos, o País não

consegue garantir o direito ao trabalho a essa população, haja vista que

as novas tecnologias aplicadas ao setor produtivo são, quase todas,

supressoras de mão-de-obra, embora criem novos empregos no setor

de serviços. Em paralelo, a educação que até então se vinha pondo em

prática, pelas suas características de destinação no âmbito de uma

sociedade de classes era, para os filhos das classes burguesa e pequeno

burguesa, avalizadora de sua inserção nos postos superiores e médios

da hierarquia do mundo do trabalho, e, para os filhos da classe

trabalhadora, propiciadora apenas de inserção em nichos de mercado

onde os saberes escolares não fossem tão amplamente exigidos.

Isso aponta para o fato de o País ter convivido ao longo dos

últimos cinqüenta anos com um sistema educacional de dupla vertente:

uma para os ricos, propedêutica, conduzindo à universidade; outra para

os pobres, elementar e profissionalizante, direcionando ao trabalho

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subalterno. Saliente-se que, no Brasil, sempre que se utiliza o termo

profissionalizante em relação à educação invariavelmente se está

referindo à educação de nível médio que qualifica profissionais para

atuar em funções ditas técnicas, sem que isso signifique necessidade

de formação universitária. A primeira, bancada pela iniciativa privada,

a segunda, pelo Estado.

Nas duas últimas décadas do século XX, a situação educacional

do País se torna mais contundente com as políticas governamentais de

contenção de recursos e, conseqüentemente, de desvalorização dos

servidores públicos - aí incluídos os docentes - através da manutenção

de salários baixos.

Com vistas a atender as recomendações de organismos como o

Banco Mundial e, também, como meio de fazer crer à sociedade sua

preocupação com a educação do povo, o governo passa a dotar as escolas

de equipamentos eletrônicos, como televisor, videocassete, antena

parabólica e computadores, sob a alegação de que proporcionariam aos

estudantes um aprendizado mais consentâneo com a realidade tecnológica

vigente. E, em alguns casos, importam e implantam modelos educacionais

calcados em teorias cognitivas pouco conhecidas e de eficácia ainda

não suficientemente provada.

Em paralelo, depara-se a sociedade hoje com um sério problema:

as novas tecnologias de produção e armazenamento de alimentos, novos

medicamentos, melhores condições de higiene e saneamento têm

propiciado um aumento da expectativa de vida concomitante à diminuição

da taxa de mortalidade infantil, o que tem feito crescer a demanda

social pelos serviços a que constitucionalmente se obriga o Estado, entre

eles a educação.

É preciso, entretanto, que essa educação possa não só contribuir

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para a formação mais ampla do cidadão/sujeito como garantir-lhe as

habilidades necessárias à sua inserção no mercado de trabalho, posto

que é através do exercício profissional que o mesmo terá condições de

satisfazer suas necessidades existenciais por conta de sua remuneração.

Convém lembrar que, originalmente, os indivíduos primevos se

associaram objetivando garantir sua integridade e seus direitos aos

territórios de caça, pesca e coleta e, mais tarde, aos seus campos de

cultivo. Com o passar do tempo e com a prática da acumulação,

desenvolveram comportamentos consuetudinários, mais tarde

transformados em princípios e normas jurídicos que, assumidos pela

organização do Estado, passaram a garantir o direito à propriedade e a

manter a diferenciação entre os sujeitos sociais.

Desde a Revolução Francesa a afirmação do Estado burguês tem

se mantido até nossos dias, dividindo os homens a partir de suas

características de posse de bens materiais. Para tal mister, tem-se valido

tanto dos “aparelhos repressivos” quanto dos “aparelhos ideológicos”,

como bem os caracterizou Althusser (1974).

No caso desses últimos, situa-se a educação, sendo de cabal

importância considerar que esta tem dado valiosa colaboração na

manutenção do “stablishment”, mantendo vasta parcela da população

vivendo em função do que lhe permite a classe hegemônica. E isso se dá

na medida que “[...] a Escola ensina também as regras dos bons

costumes, isto é, o comportamento que todo o agente da divisão do

trabalho deve observar, segundo o lugar que está destinado a ocupar:

regras da moral, da consciência cívica e profissional, o que significa

exatamente regras de respeito pela divisão social-técnica do trabalho,

pelas regras da ordem estabelecida pela dominação de classe.”

(Althusser: 1974 – 21).

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39Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Surge então a pergunta: em que bases se deve assentar a

educação, na perspectiva de permitir uma convivência mais justa e

fraterna entre os sujeitos? É o que buscarei analisar agora, partindo de

um exercício de caracterização do sujeito contemporâneo em suas

interações com outros sujeitos no tempo e espaço.

Apesar de por conta dos avanços da ciência já se poder garantir

ao homem uma longevidade antes inimaginável, a sociedade desse início

de século se caracteriza por uma temporalidade real de momentos

fugazes, nos quais as relações entre os sujeitos têm sido mediadas por

interesses estreitos, mesquinhos mesmo, na medida que a cultura

vigente, por conta do alto nível de competitividade, tem apontado para

um perfil de sujeito cada vez mais individualista. Tal característica

encontra lastro no típico cidadão das sociedades de capitalismo avançado,

nas quais parece ser a cidadania, nada mais do que o exercício da

capacidade de escolha e aquisição de bens disponíveis no mercado.

Assim, esse tipo de mentalidade vem sendo ampliado – e assumido

– pelas sociedades em fase de desenvolvimento, na vã tentativa de

equiparar-se àquelas. Nessas circunstâncias, o sujeito passa a mediar

suas relações a partir do perfil de consumo seu e dos outros. Passa a

valer pelo que possui e não pelo que é ou poderia representar em termos

de contribuição à construção social, política e cultural da humanidade

de que é parte.

No que concerne à espacialidade onde ocorrem as interações entre

os sujeitos tem-se hoje um processo de desterritorialização, por conta

do qual os sujeitos vivem cada vez mais nos “não-lugares”, ou seja,

aqueles onde as relações se dão entre anônimos iguais, ou

aparentemente iguais, assemelhados que são por certos aspectos

identitários de condições. Observe-se, a esse respeito, os saguões dos

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aeroportos, os “shopping-centers”, as lojas de “fast-food”, os “night-

clubs”, os parques temáticos, as salas de bate-papo virtual. Verifique-

se como as relações, nesses espaços, ocorrem de modo tão superficial,

sem aquilo a que se poderia chamar de uma relação verdadeiramente

interativa, carregada de sentimentos.

Em certo sentido isso ocorre também pela falta de preparo dos

sujeitos em lidar com alteridades, quer dizer, ser capaz de apreender o

outro na plenitude de sua diferença; competência que a escola tem se

furtado a desenvolver nos seus educandos pela própria tendência que

prevalece de domesticar o outro, fazer dele um igual a nós, posto que é

mais fácil, para a maioria, conviver com a própria sombra do que com o

diferente e o divergente.

Concernente a isso, Paulo Freire, meados do século passado, já

condenava a estrutura de ensino no Brasil na medida que esta se fundava

nessa concepção. Na frase, “o professor ensina e o aluno aprende”, não

só se percebe uma idéia de tradição, de manutenção do status quo,

como se revela toda uma atitude de desrespeito para com os que não

são iguais a nós, reside todo um preconceito, toda uma segregação em

relação àqueles que, não tendo tido os mesmos privilégios – ou direitos

assegurados – são considerados sujeitos de linhagem inferior e, como

tais, tratados de modo autoritário, desrespeitoso, indigno.

Sem querer dramatizar demais essa situação, reporto-me ao artigo

de Jeffrey Jerome Cohen (2000;23-60) intitulado “A cultura dos monstros:

sete teses”, no qual baseio alguns comentários a seguir.

O ensaio trata do que tradicionalmente se convencionou chamar

de monstro, ou seja, o que é contra a ordem regular das coisas, o

inesperado. Podendo ainda significar o vocábulo aquilo que está fora da

convenção, o que não encontra respaldo na habitualidade, o diferente.

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41Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Em suas primeiras três teses o autor refere-se ao corpo do

monstro, à sua fugacidade e à sua capacidade de escape. Busco aqui

uma aproximação com a maneira com que a maioria das pessoas encara

o diferente. Esse “encarar” nada mais reflete do que uma construção

culturalmente sedimentada a partir da convivência em instituições

eivadas de tradições, entre elas a escola, cuja finalidade é reproduzir a

ordem social. Desse modo, o diferente se constitui em uma incerteza,

um deslocamento da centralidade costumeira, assombrando os que com

ele cruzam.

Concomitante a isso, e provavelmente por isso mesmo, o

diferente é impossível de ser apreendido em sua totalidade por

representar possibilidades que podem fugir ao controle e, como tal, só

permitir aproximações no campo das teias que os geram. Daí serem, os

monstra arautos da crise de categorias, ou seja, por serem únicos

escapam a qualquer enquadramento conceptual, sendo portanto, sua

geografia um território ameaçador.

Indago-me: Não tem sido assim no campo educacional, onde os

educandos têm sido tradicionalmente tratados como verdadeiros monstra?

E como tais, merecedores do exorcismo patrocinado pelos métodos e

práticas que deverão docilizá-los?

Mais adiante, Cohen, (op.cit) em suas quinta, sexta e sétima

teses aborda as questões referentes ao controle de fronteiras do

permitido e de como se situam no limiar do tornar a si.

No aparelho educacional de nossas sociedades percebe-se nichos

de inacessibilidade, salvo para aqueles que se submetem a seus ritos

iniciáticos, posto que há uma permanente vigilância no sentido de

garantir certos espaços à minoria hegemônica. Por outro lado, sendo

uma criação cultural, nossa, portanto, por mais que os expulsemos para

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42 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

longe de nossa geografia e discurso, os monstros retornam. E ao fazê-

lo, vêm prenhes de “um conhecimento humano e um discurso ainda

mais sagrado na medida que ele surge de fora”.

Seguramente, é isso que nos permite nos indagarmos a respeito

de nossa percepção do mundo e de como temos representado mal aquilo

que tentamos situar. Daí a importância de reavaliarmos tudo, sempre.

Como meio a nos permitir outras aproximações, exegeses, a respeito

da educação.

Não mais é possível continuarmos presos às tradições que,

durante tantas décadas, mantiveram alijada do processo educacional a

maioria da população brasileira. A necessidade de favorecer a

contingentes cada vez mais amplos dessa população a possibilidade de,

através do desenvolvimento de seu potencial educativo, via processo

de escolarização, uma participação política consentânea com a dignidade

humana, sem que haja distinções de qualquer natureza, é o fator

primordial que deve nortear a ação de todos aqueles que, buscando

conhecer melhor, se preparam para intervir de modo adequado nesse

politicamente perigoso terreno denominado de educação. Convém,

portanto, refletir sobre isso.

Referências bibliográficas:

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Lisboa,Editorial Presença, 1974.

COHEN, Jeffrey Jerome. Pedagogia dos monstros – Os prazeres e osperigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte, Autêntica, 2000.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 5ª ed. Rio de Janeiro, Paz e

Terra, 1978.

Page 44: Revista Independência 2007

Ano 1, nº 0, Outubro de 2006 Revista Independência

Título

Autor

Resumo

Mundo tecnológico: mudançassignificativas no “fluxo” deinformações?

José Carlos RibeiroDoutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela FACOM/UFBA.

Professor da Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC) e da

Faculdade 2 de Julho

E-mail: [email protected]

,

03

O presente texto traz reflexões sobre as possíveis mudanças na “produção” e no

“consumo” de informações proporcionadas pelas Tecnologias Contemporâneas de

Comunicação. A base dos argumentos está ancorada na premissa de que a

interatividade, potencializada pelos dispositivos digitais, viabiliza uma

transformação dos padrões tradicionais de fluxo das informações. Com isto em

vista, apresenta algumas considerações, buscando ampliar as discussões

relacionadas ao tema.

Palavras-chave: comunicação, interatividade, novas tecnologias

Page 45: Revista Independência 2007

44 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

No mundo contemporâneo, somos recheados - já há algum tempo

- de inúmeras ofertas de produtos e de serviços automatizados que

apresentam de modo efusivo as últimas novidades do mundo digital.

Desde a presença de “máquinas espertas” que dialogam com os

respectivos usuários, ensinando-os, na maioria das vezes, a seqüência

correta de determinadas funções ou tarefas, até as chamadas “casas

inteligentes” que mapeiam e gerenciam de maneira competente os

diversos comportamentos e gostos habituais dos seus habitantes, o que

se evidencia é a gradativa adoção de modos de existência que priorizam

cada vez mais um refinamento na clássica relação homem-máquina.

Nos últimos anos, entretanto, tal situação parece ter sido ampliada de

maneira significativa tanto no que se refere à diversidade de expressões

propostas, quanto no ritmo acelerado em que as mudanças se

apresentam. Neste sentido, acompanhamos uma verdadeira maratona

de inovações tecnológicas, onde buscamos nossas “atualizações”

constantes dentro desse universo mutante.

Através de uma análise mais acurada, podemos perceber que

essas diversas situações seguem uma lógica centrada essencialmente

na noção de interatividade, ou seja, no conjunto de mecanismos

proporcionados pela computação interativa capazes de promover a

intervenção (direta ou indireta) do usuário na geração ou no

desenvolvimento de produtos ou de processos. Queiramos ou não, somos

impelidos a vivenciar uma dinâmica regida pela participação, pelo

contato, pela interferência.

Por outro lado, também na atualidade, testemunhamos uma

particular profusão de estímulos sensoriais bastante expressiva, cuja

característica principal se reveste na multiplicidade e simultaneidade

na articulação de códigos lingüísticos e comunicacionais. Propagadas

Page 46: Revista Independência 2007

45Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

por complexos e interessantes sistemas hipermidiáticos, as compilações

de narrativas audiovisuais paralelas, as conjunções de mídias distintas

e as estruturas hipertextuais superpostas propiciam, em última instância,

uma liberdade maior na organização e na recepção dos conteúdos

veiculados. Todavia, ao mesmo tempo em que revelam novas

possibilidades exploratórias de “consumo” de informações, tais

configurações solicitam uma prática diferenciada por parte do leitor /

espectador / usuário neste processo, haja vista que demandam um

engajamento maior na composição dos blocos informacionais a serem

absorvidos dentro do vasto leque de opções disponíveis. Mais uma vez,

a dinâmica da participação ativa na construção e desenvolvimento dos

processos se faz presente.

Diante desse importante aspecto recorrente, evidenciado nas duas

situações apresentadas, sugerimos – como proposta reflexiva – de que

um novo perfil de “consumidor” de informações esteja se moldando.

Esta proposição se apóia nas diversas vivências experienciais cotidianas

que sugerem mudanças nas formas de constituição de sentidos e nas

articulações de conteúdos através de participações cada vez mais ativas,

principalmente naquelas constituídas pelas intervenções diretas (escolhas

de caminhos, ângulos de percepção, seleção de cenas, dentre outras).

Desta forma, o que está “em jogo” é uma participação mais efetiva do

“consumidor” na geração e na circulação das informações que ele próprio

receberá, ocasionando assim um fluxo diferenciado, onde se destaca a

presença de dados cada vez mais personalizados e circunstanciais. Não

entraremos aqui em especulações mais “ousadas” sobre eventuais

mudanças na forma de estruturação dos processos cognitivos nas

atividades de apreensão das informações; mas não há como negar que

alterações mais significativas estão se insinuando; talvez em um nível

Page 47: Revista Independência 2007

46 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

ainda não completamente perceptível, porém com vários indicativos de

sua presença, pelo menos, no que se refere aos aspectos sócio-

comportamentais envolvidos nas situações cotidianas e à capacidade

de articulação das diversas informações paralelas, comumente presentes

nestes processos. Tais constatações ficam mais evidentes quando nos

atemos a acompanhar, de modo sistemático, as gerações mais novas,

criadas dentro de ambientes essencialmente interativos e

hipermidiáticos. Em linhas gerais, as condutas observadas nos

credenciam a supor que algo está realmente em mutação; cabe-nos,

enquanto analistas dos cenários contemporâneos, detectar o grau, a

profundidade e as repercussões que tais alterações trazem.

Para finalizar esses apontamentos reflexivos, vale a pena ressaltar

que tudo indica estarmos apenas vislumbrando a ponta do iceberg das

mudanças proporcionadas pelo advento das tecnologias digitais. Vamos

acompanhá-las.

Page 48: Revista Independência 2007

Ano 1, nº 0, Outubro de 2006 Revista Independência

Título

Autor

Resumo

Rádio: de meio de comunicaçãode massa a veículo de inclusãosocial

Derval Cardoso GramachoBacharel em Comunicação (UFBA) e Especialista em Docência do

Ensino Superior pela Universidade Candido Mendes (RJ). Coordenador

dos cursos de Jornalismo e Propraganda e Marketing da Faculdade 2 Julho

E-mail: [email protected]

Desde a sua invenção o rádio mostrou forte tendência para a comunicação de

massa. Esta capacidade levou o meio a ser explorado por Hitler e Mussolini na

propagação das ideologias nazi-fascistas. No Brasil, os dois foram imitados pelo

ditador Getúlio Vargas. O advento da televisão, em 1950, tirou do rádio os seus

principais profissionais e sua grade de programas de auditório, radionovelas e

os noticiosos, como o Repórter Esso. Apesar de tudo isso, o rádio preservou a

sua característica de ser um veículo de inclusão social e o único capaz de

atingir a população do Brasil habitante de rincões aonde a TV não chega e a

mídia impressa nada significa devido ao elevado índice de analfabetismo.

Palavras-chave: Rádio, comunicação de massa, propagação, radiojornalismo,

meios de comunicação.

04

Page 49: Revista Independência 2007

48 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Nenhum outro veículo apresenta vocação tão natural quanto o

rádio em ser um meio de comunicação de massa. Desde o seu nascimento

o rádio contrariou pesquisadores e cientistas que buscavam torná-lo um

sistema de comunicação seletivo, capaz de realizar a comunicação ponto-

a-ponto, como a telefonia. Aliás, sistema de telefonia sem fio era a

forma que o denominava nos seus primórdios.

A sua natureza, no entanto, tornou infrutíferas todas as iniciativas

no sentido de inibir a sua característica abrangente. Isso inviabilizava

os interesses dos governos em conseguir o aproveitamento do rádio

para fins menos dignos e mais estratégicos, a exemplo da utilização

militar em períodos de guerra. Esta impossibilidade fez com que os

estudos se voltassem para tentar descobrir quais os meios de

aproveitamento daquela invenção que mobilizou tantos homens notáveis,

como Popov, Marconi, padre Landell de Moura e tantos outros que se

debruçaram por décadas sobre as teorias de Hertz e suas descobertas

sobre as ondas capazes de transportar, através do éter, o som.

Era finda a Primeira Grande Guerra, na segunda década do século

XX, onde o novo sistema de comunicação foi testado, quando se começou

a operar este veículo com o intuito de promover entretenimento e levar

informação às populações das áreas mais distantes. Começava assim,

neste primeiro passo, a caminhada da humanidade rumo ao que mais

tarde se chamaria de processo de globalização. O advento do rádio levou

o homem a repensar alguns conceitos de comunicação em todos os seus

sentidos, inclusive o temporal. Da mesma forma que o uso do cavalo1

(até hoje reverenciado e referenciado pela Mecânica), pelas sociedades

mais antigas fez também em relação a uma série de conceitos, a exemplo

de tempo, distância, velocidade, força etc.

O meio logo se consolidou como um veículo de longo alcance e boa

Page 50: Revista Independência 2007

49Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

aceitação e assimilação pelo público. Tal constatação levou à manutenção

das pesquisas para aprimorar o rádio, não mais como sistema de

comunicação, mas a indústria produtora dos aparelhos receptores que

corria para tornar os equipamentos mais baratos e acessíveis ao poder

da população.

Se no início as emissoras apareciam como empresas de pequeno

porte, de maneira meio tímida, logo surgiu quem percebesse o potencial

da mídia e procurasse fazer dela um instrumento de propagação de

ideologias políticas. O primeiro foi Adolf Hitler2, logo seguido por Benito

Mussolini3, imitados pelo brasileiro Getúlio Vargas, cuja vocação ditatorial

o tornava admirador dos líderes nazista alemão e fascista italiano.

Os dois – Hitler e Mussolini – foram os primeiros a tirar proveito

da potencialidade do rádio para a propagação4 das suas ideologias. Ambos

decidiram usar os recursos do rádio e fecharam jornais e emissoras de

televisão para evitar que os demais meios atrapalhassem a missão do

rádio de ampliar a base popular dos dois regimes. Tornar o nazismo e o

fascismo melhor aceitos pelas populações não só dos seus países, mas

de boa parte da Europa.

Era o ano de 1926. Os fascistas italianos perceberam que poderiam

transformar o rádio em um instrumento de propaganda. Desta maneira

se iniciou a elaboração de um projeto para levar a radiodifusão à

popularização. Nenhum esforço foi poupado no sentido de utilizar o meio

da melhor maneira possível em favor da propagação da filosofia fascista.

Essa iniciativa se fortaleceu ao se inspirar, pouco tempo depois,

na direção que os nazistas liderados por Hitler tinham imposto ao setor

de informações na Alemanha. Ali, o número dos jornais foi reduzido de

2.700 para 1.200, livros foram queimados e o rádio foi escolhido como

o instrumento para a coerção coletiva das consciências. Isto é, procurou-

Page 51: Revista Independência 2007

50 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

se impedir as pessoas de saber e de pensar uma vez que o regime pensava

por elas.

O principal articulista de todo o projeto foi Paul Joseph Goebbels5,

a quem se atribui a escolha do rádio como veículo privilegiado para tal

missão.

No Brasil, em paralelo ao crescimento do nazifascismo na Europa,

Vargas tomava a iniciativa de usar o rádio para difundir a sua teoria

sobre o Estado Novo. Assim, buscou exercer o poder do Estado sobre as

emissoras com a criação da primeira legislação que reconhecia o rádio

enquanto empreendimento – a lei regulava a quantidade de reclames

que cada emissora deveria veicular durante a programação diária, criando

desta forma, o respaldo necessário para consolidar a mídia como

integrante do sistema de veiculação de propaganda. Naquela época, as

emissoras tentavam se articular enquanto empresas economicamente

ativas e não mais as rádios clubes e sociedades pertencentes a pequenos

grupos sociais ou familiares e que, portanto, não tinham o lucro como

objetivo.

A iniciativa do governo caiu como uma luva e Vargas ganhou, com

a sua iniciativa, um forte aliado para os seus projetos políticos. Definiu

toda uma estratégia populista cujo objetivo central era atrair para si a

opinião pública. Com essa intenção, a música brasileira predominante

na época, a exemplo das marchinhas de carnaval, foram estimuladas

pelo ufanismo getulista até início dos anos 40.

Das emissoras surgidas naquele período pode-se destacar a Rádio

Nacional, a PRK-30, em 1936, que viria a se constituir no grande marco

na história do rádio no Brasil, e a Rádio Globo, em 1938.

A força de comunicação do rádio foi avaliada em diversas

pesquisas em variados momentos da história. Durante a Segunda Guerra

Page 52: Revista Independência 2007

51Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Mundial ele foi de grande importância para as Forças Aliadas que

encontrou neste meio o instrumento fundamental para sua orientação e

organização. A história registrou a importância da escuta clandestina

das emissoras de Londres durante os anos de luta contra o fascismo e o

nazismo.

Atualmente o Brasil conta com mais de quatro mil emissoras. Nos

Estados Unidos são mais de nove mil. No território brasileiro, isto

significava no final da última década do século XX, 115 milhões de

radiouvintes6, número este superior aos 85 milhões de telespectadores

e os menos de oito milhões de leitores de revistas e jornais. O meio, de

acordo com o Ibope, lidera o ranking de consumo per capita com três

horas e 45 minutos diário de audição, contra três horas e 24 minutos da

TV, 57 minutos do jornal e 54 minutos da revista 7.

Durante o período do regime militar, implantado em 1964, no

Brasil, uma grande campanha de desacreditação do veículo diante da

opinião pública foi lançada pelos generais-presidentes que consideravam

as emissoras AM como “elementos subversivos e não-simpatizantes do

novo governo”. Ao mesmo tempo, os militares distribuíram com igrejas,

políticos e empresários colaboradores e simpáticos ao sistema um número

incalculável de concessões para implantação de emissoras em FM –

Freqüência Modulada. O passo dos generais foi acompanhado pelos

governos civis que se seguiram ao processo de abertura e, logo em

seguida, a implementação do neoliberalismo orientado pelo Fundo

Monetário Internacional (FMI) e a Área de Livre Comércio da América

(Alca), além de organismos internacionais como o Banco Mundial (Bird)

e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Apesar dos reveses do setor, particularmente na faixa das AM, e

da queda do faturamento financeiro das emissoras que detêm uma parcela

Page 53: Revista Independência 2007

5 2 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

pouco superior a 4% do volume total dos recursos do mercado publicitário

e midiático, o rádio continua a ter força. Mesmo sem concretizar os

investimentos necessários para o aprimoramento da qualidade técnica

e do seu conteúdo, este meio continua a ser o mais eficiente no sentido

da propagação das idéias. Daí o interesse que desperta em instituições

como as igrejas evangélicas que se valem do seu potencial para a

“difusão da fé” e conseqüente aumento do rebanho das ovelhas dos

seus pastores.

Também os políticos revelam grande atração pelas potencialidades

oferecidas pelo rádio para garantir as suas permanências no poder. Desde

João Baptista Figueiredo, o último dos generais, nenhum Presidente da

República deixou escapar a oportunidade de ter o seu programa no rádio.

É que em muitos rincões deste País este é, até hoje, o único meio de

comunicação capaz de fazer com que milhares de famílias sem acesso à

televisão e indiferentes à mídia impressa pelo simples fato de não

saberem ler se conectem com o mundo exterior, a civilização.

Para estes, e pensando nestes, é que durante muitos anos o

governo incentivou a produção de programas educativos, a exemplo do

“Projeto Minerva”, elaborado pelo Ministério da Educação. O modelo

acabou, como uma série de outros programas, sendo copiado pela

televisão – Telecursos primeiro e segundo graus – e esvaziou a iniciativa,

vez que os analistas elaboraram pareceres com base exclusiva no público

dos centros urbanos. A suspensão de programas desta natureza no rádio

fez com que o veículo deixasse de lado o seu potencial de caráter social,

inspirado no lema “informar para formar”.

O rádio brasileiro é o meio de comunicação de massa mais

defasado em termos de tecnologia e, em muitos estados, até mesmo

em nível de conteúdo. Com o advento da televisão, perdeu os

Page 54: Revista Independência 2007

53Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

anunciantes, os programas, (que migraram para a TV), e levaram juntos

os profissionais – locutores, artistas, jornalistas e técnicos. No entanto,

manteve o carisma e o público. Embora nem sempre aproveitada da

melhor forma, preservou as suas principais características (imediatismo,

instantaneidade, interatividade etc.), ao mesmo tempo em que adaptou

a sua mensagem, ao longo de meio século de atividades, direcionando-

a para o atendimento às necessidades de informação, jornalismo

esportivo, prestação de serviços e entretenimento das classes populares

urbanas.

No Brasil, este veículo se consolidou como o medium com maior

capacidade de promover a inclusão social, através da informação, de

todos os segmentos excluídos. O instrumento que pode viabilizar a

comunicação entre todos os setores da sociedade, inclusive, os

analfabetos e os deficientes visuais, pela característica da sua linguagem

e da sua capacidade de aproximação e convencimento.

Notas

1 GRAMACHO, Derval e GRAMACHO, Victória. Tarô dos Animais. Ed. Madras. SãoPaulo, 1999. Pp. 51-52.2Adolf Hitler foi o criador da teoria e filosofia nazista que predominou na Alemanhae resultou no quase extermínio dos povos judeus e de origem não-ariana. Nasceuno dia 20 de abril de 1889, na cidade de Braunau, na Áustria, e morreu (suicidou-se) no dia 30 de abril de 1945, em Berlim, na Alemanha, após a derrota para asForças Aliadas na Segunda Guerra Mundial.3 Benito Mussolini foi chefe de governo da Itália (1922-1943), fundador do fascismo.Assumiu o governo a convite do rei Vítor Emanuel III em 28 de outubro de 1922.Consolidou o regime unipartidário e totalitário com base no poder do GrandeConselho Fascista, apoiado pelas milícias de segurança nacional. Mussolini iniciou aconquista da Etiópia (Abissínia, 1935-1936), apoiou o general Francisco Francodurante a Guerra Civil e spanhola (1936-1939), aliou-se à Alemanha nazista,através da formação do Eixo Roma-Berlim (1936) que culminou com o Pacto de Açoentre os dois e stados (1939), publicou leis contra os judeus e invadiu a Albânia

Page 55: Revista Independência 2007

54 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

(1939). O Grande Conselho Fascista destituiu e prendeu Mussolini, em julho de1943, e assinou no mês de setembro um armistício com os Aliados que tinhaminvadido o sul da Itália. Mussolini tentou fugir para a Suíça, mas foi capturado efuzilado com sua amante por membros da Resistência italiana. http://www.imn.com.br/lideres/mussolini/ acessado em 10/10/2003.4 HOUAISS, Antonio. Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa. Ediçãoespecial, março 2002. Editora Objetiva Ltda., 2001-2002. Ato ou efeito depropagar(-se); espalhar(-se); difusão; ação de fazer chegar a um grande númerode pessoas; divulgação, vulgarização < p. de uma doutrina >. etimologiapropagatì,ónis “ação de mergulhar, mergulhia; aumento do território;prolongamento”, do radical de propagátum, supino de propagáre “pôr emmergulhia; multiplicar, propagar; prolongar; estender, alargar, engrandecer,aumentar, desenvolver”.5 Paul Joseph Goebbels (1897 – 1945) foi jornalista e político nazista radical alemãonascido em Rheydt, precursor da propaganda de massa através de todos os meiosde comunicação que usou com o intuito de impor ao povo alemão uma única idéiapolítica e social, a do nazismo. Estudou literatura e filosofia nas universidades deBonn e Heidelberg, onde se graduou (1922). Orador eloqüente, aderiu ao nazismo efoi nomeado chefe do partido nazista em Elberfeld (1924). Foi encarregadopessoalmente por Hitler para implantar o nazismo, que até então tinha suas basespredominantemente na Baviera, em Berlim. Em 1928, foi nomeado chefe dapropaganda e recebeu o encargo, do próprio Hitler, de desenvolver uma açãopolítica e psicológica sobre o povo alemão. Assim, criou o mito da infalibi lidade doFührer e estabeleceu o ritual das grandes celebrações partidárias, constante demarchas noturnas e fogueiras nas quais eram queimados livros de autoresdemocratas e judeus. Com a ascensão de Hitler ao poder, tornou-se Ministro daInformação e Propaganda e, para atingir seus objetivos, se valeu mesmo da forçado regime, impedindo qualquer manifestação de independência dos setoresintelectuais. Foi o único dirigente nazista a permanecer até o fim ao lado doFührer, que o havia designado chanceler do Reich, em seu testamento. Logo após amorte de Hitler, também se suicidou, em Berlim, envenenando-se, juntamente coma mulher e os seis filhos menores.http://www.sobiografias.hpg.ig.com.br/PaulJGoe.html acessado em 01/10/2003.6 MAGNONI, Antônio Francisco e outros. O Rádio Digital Avança no Interior de SãoPaulo. In: DEL BIANCO, Nélia R. e MOREIRA, Sônia Virgínia. Rádio no Brasil,Tendências e Perspectivas. Ed. UERJ/UNB. Rio de Janeiro, 1999.7 Ibidem.

Page 56: Revista Independência 2007

Ano 1, nº 0, Outubro de 2006 Revista Independência

Título

Autor

Resumo

Sílvio Romero:O Pensamento Mestiço

José Henrique de Freitas SantosDoutorando em Teorias e Crítica da Literatura e da Cultura pela

Universidade Federal da Bahia. Professor da Faculdade 2 de Julho e da

UNEB - Universidade Estadual da Bahia.

E-mail: [email protected]

O artigo “Sílvio Romero: o pensamento mestiço”, a partir da análise da atuação do

crítico Sílvio Romero no cenário cultural brasileiro do séc. XIX, mapeia, na atuação

deste, a existência de um pensamento transdisciplinar que, mesmo tangenciado

pelas correntes científicas da época, não deixou-se aprisionar por elas, dando

origem ao que chamamos neste trabalho, apoiado nas considerações de Serge

Gruzinski, de “o pensamento mestiço”.

Palavras-chave: Sílvio Romero, mestiçagem, crítica cultural

05

Page 57: Revista Independência 2007

56 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

A compreensão da mestiçagem choca-se com hábitos

intelectuais que levam a preferir os conjuntos monolíticos

aos espaços intermediários. Com efeito, é mais fácil

identificar blocos sólidos do que interstícios sem nome.

Preferimos considerar que ‘tudo o que parece ambíguo só

o é na aparência, e que a ambigüidade não existe’. Os

enfoques dualistas e maniqueístas seduzem pela

simplicidade e, quando se revestem da retórica de

alteridade, confortam as consciências e satisfazem nossa

sede de pureza, inocência e arcaísmo.

Serge Gruzinski

Se considerarmos o problema levantado por Gruzinski no âmbito

intelectual, acerca da incompreensão da mestiçagem ante o ímpeto da

coerência apaziguadora presente neste círculo, compreenderemos a

dimensão da questão que se coloca a partir do título deste ensaio, ao

postular a existência de um pensamento mestiço em um autor

oitocentista, atravessado pelas teorias científicas de seu tempo, como

o foi Sílvio Romero1. Para além da dualidade e da dicotomia, condenadas

por Gruzinski, ao mesmo tempo em que revela uma visão étnica

hierarquizada com o branco europeu no topo da pirâmide das três raças

constitutivas do Brasil (branco, índio, negro), Romero não apenas

descreve o encontro/conflito dessas etnias no Brasil, do qual originará

as “mesclas raciais”, mas incorpora a contradição, presente na própria

idéia de mestiçagem2, como a lógica de seu pensamento crítico

indisciplinar, ao qual chamaremos de pensamento mestiço.

Sílvio Romero definitivamente não foi um autor fora do texto

conforme sugere o título do famoso ensaio de Antônio Cândido, que,

sem dúvida, foi um dos críticos mais argutos do autor oitocentista. Se

nada é a-histórico, como propõe Nietzsche, e o texto é só superfície,

como nos ensina na contemporaneidade Foucault, a polêmica concepção

Page 58: Revista Independência 2007

57Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

romeriana de obra literária, no século XIX, expressa nos seus textos

historiográficos, abre espaço para uma desconstrução da margem que

consolidava o extrínseco e o intrínseco na crítica literária vigente antes

e depois dele, daí seu violento embate com José Veríssimo.

Os críticos e historiadores literários, de Araripe Júnior a Nelson

Werneck Sodré, dentre outros, reiteram a crítica de Veríssimo e somam

a esta a problemática da contradição, ignorando que é exatamente a

contradição que constitui o recurso mais potente da escrita desse autor.

Assim, por exemplo, a História da Literatura Brasileira de Sílvio Romero

é constituída simultaneamente de um modelo fechado, unitário,

totalizante, a partir de um ímpeto monumental baseado em todas aquelas

unidades discursivas que Michel Foucault nos convida a colocar em

suspenso (origem, influência, evolução, tradição, etc. E também da

contradição que permite uma revisão dialética do texto, rasurando a

estaticidade da proposta inicial.

José Veríssimo, além, para ele, do problema das contradições,

“há 30 anos o Sr. Sílvio Romero faz a mesma coisa”. Ora, esta crítica

flagra uma regularidade no discurso de Sílvio Romero, que justamente

pelo ímpeto dialético, estrutura o próprio processo de sua historiografia

e crítica. Ademais, Sílvio Romero não nega este aspecto em suas

produções, assumindo a necessidade de retorno e da retificação de

algumas de suas reflexões, demonstrando, inclusive, uma consciência

acerca da importância da contradição no seu pensamento:

... a contradição supõe choque de dois pensamentos

contraditórios num mesmo tempo, ao passo que tudo aquilo

vem a ser apenas a normal evolução de um espírito que

caminhou, que progrediu.3

Page 59: Revista Independência 2007

58 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Voltando a Antônio Cândido, salientamos que este, utilizando-se

de um procedimento do próprio Sílvio Romero, na segunda edição de

seu O método crítico de Sílvio Romero, relativiza o ímpeto que o levara

anteriormente a tentar compreender um sistema coerente em um

pensamento que se fez indisciplinar, portanto o que antes havia sido

lido por ele, Cândido, como o problema das contradições e incoerências,

deveria ser observado como o turbilhão, a força propulsora da obra

romeriana, pois

...Primeiro: elas exprimem uma certa coragem de ir ao

cabo, que nós freqüentemente não temos... Segundo: as

suas contradições se forem tomadas em nível profundo,

constituem na projeção, no seu pensamento da

complexidade perturbadora de uma sociedade marcada

por desarmonias e discordâncias.4

A crítica romeriana seria indisciplinar por três motivos: não

obedecia aos pressupostos apolíneos para o seu desenvolvimento,

conforme a abordagem da época; reclama um rigor e uma neutralidade

científicos e apresenta-se ao mesmo tempo pessoal, demarcando o seu

lugar de fala (o que toda crítica tenta recalcar) e, por fim, é feita com

base no trânsito entre campos de saber, também, ou principalmente,

“não-literários”. Este último ponto aparece como requisito básico para

se tratar da mestiçagem, uma vez que o tema para ser compreendido

devidamente deve ser estudado a partir de campos disciplinares em

convergência:

Mas uma disciplina pode, por si só, esgotar a questão das

mestiçagens? Para tanto seriam necessárias ciências

Page 60: Revista Independência 2007

59Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

“nômades”, preparadas para circular do folclore à

antropologia, da comunicação à história da arte.5

Apesar de Gruzinski afirmar que essa fluidez disciplinar ainda

está para acontecer, o trânsito por entre estes nichos de saber realizado

por Sílvio Romero, no contexto oitocentista, uma vez que ele nos lega

inclusive uma vasta obra no campo do estudo da cultura oral popular, já

se apresenta como um sintoma da mestiçagem que, mais que uma

temática, figura como um lógica estruturante de seu pensamento

mestiço, afinal a mestiçagem relaciona-se também com o deslocamento

de fronteiras.

É notório que o discurso de Romero em diversos momentos figura

como racialmente hierarquizante, em face de uma posição que reflete

bem as correntes científicas (darwinismo, determinismo, spencerismo)

de seu tempo, e, justamente por que ao lado dessa visão figura uma

posição oposta, sem nenhum constrangimento, que o seu pensamento

adquire uma importância no contexto do século XIX. Com o arcabouço

teórico de seu tempo, ao invés de adotar uma posição “politicamente

correta”, como alguns abolicionistas que depois da “libertação dos

escravos” figuraram como os heróis libertários do negro no Brasil “ao

lado” da princesa Isabel; ou ainda adotar uma posição ortodoxa em

relação aos conceitos em que acreditava, Romero enfatiza a importância

do branco europeu na formação cultural brasileira sobre as outras etnias,

ao mesmo tempo em que rasura a historiografia oficial com a narrativa

da auto-libertação dos negrobrasileiros, recuperando Zumbi em vez dos

monumentos do discurso hegemônico:

Page 61: Revista Independência 2007

60 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

... a raça negra foi liberta, porque merecia sê-lo, e quem

a libertou foi principalmente o povo brasileiro. Não foi S.

Alteza a Regente, como dizem os monarquistas; não foi o

sr. João Alfredo, como dizem os pretendentes; não foi o sr.

Joaquim Nabuco, como dizem os liberais; não foi o sr. José

do Patrocínio, como dizem os democratas; não foi o sr.

Dantas, como dizem os despeitados... Não, nada disto, a

coisa vem um pouco mais de longe.6

O processo de desleitura dos nomes que figuravam o panteão

abolicionista do século XIX, demarca a vontade de potência e de verdade,

que são peculiares na crítica romeriana, e justamente por isso ela

apresenta-se de forma tão categórica, proporcionando em nossas leituras

contemporâneas a recuperação da multiplicidade das narrativas sobre

os eventos que ela enfoca, e, acima de tudo, descentra. Em Romero, o

instinto pessoal é posto como instrumento que conduz ao conhecimento,

daí a veemência e a seriedade de sua crítica cabal com suas postulações

incisivas:

No primeiro século da conquista e da colonização notam-

se já fortes protestos contra a escravidão. Tais protestos,

que se referiam exclusivamente à raça indígena, repetiram-

se no século seguinte ainda tendo por alvo o selvagem

tupi. Mas então a raça negra lavrava o seu primeiro e

eloquentíssimo brado de libertação. Este processo foi

duplo: de um lado, nessa famosa república dos Palmares,

mostrava ao branco que seria livre quando definitivamente

quisesse.7

Sílvio Romero, ante os “escombros” e “ruínas” culturais de um

país politicamente emancipado, mas ainda sob a sombra da dependência,

Page 62: Revista Independência 2007

61Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

não hesitará em tomar para si, no século XIX, o que ele considerará uma

missão através de suas atividades de crítica e história literária: a

construção de uma historiografia literária do/no/para o Brasil. Isto se

dará em momento em que, pelo exposto, era difícil o soerguimento de

monumentos, como requeria os modelos totalizantes da época, em face

do problema que se colocava acerca de uma autêntica brasilidade e das

representações românticas inverossímeis, criticadas ad nauseam por

Romero, além da dificuldade do método ideal a ser utilizado para a

confecção de uma historiografia literária brasileira - metonímia da uma

nação letrada.

Para a realização de tal tarefa, Sílvio Romero propõe um

modelo historiográfico para a literatura brasileira no qual possa encontrar

a força plástica necessária para não ser engolido pela história e consiga

representar a dinâmica das produções anti-românticas, através das

unidades do darwinismo e do positivismo que “traduz” para o método

historiográfico, as quais serão largamente utilizadas por ele. A obsessão

pela origem imemorial de nossa literatura; o meio e a raça como

determinantes do homem e de suas produções; a evolução como um

princípio vital que será coextensiva às nossas manifestações literárias

são algumas premissas que percorrerão toda a obra historiográfica

romeriana, uma vez que, também, ciente de seu “método inovador” no

Brasil, reitera continuamente a singularidade de sua abordagem, a qual

não se detém em concepção autônoma de obra literária.

A literatura torna-se dependente, dentro desse esquema, dos

fatores naturais e sociais, do meio e, principalmente, da raça, cujo

desenvolvimento era processado em acordo com o princípio de seleção

natural. Desta forma, por exemplo, as “grandes obras” tenderiam

naturalmente a permanecer ad infinitum, enquanto outras pelas suas

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6 2 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

fraquezas, seriam devoradas pelo tempo.

Os abalos provocados por Sílvio Romero a uma crítica literária

beletrista, através de seu ímpeto radical que terminava por cair em

inversão (priorização do conteúdo, em detrimento da forma), foram

fundamentais para que um outro olhar começasse a se lançar sobre a

literatura “reduzida” antes e também, algum tempo depois dele, aos

seus atributos estruturais:

A antiga maneira de fazer a crítica literária fundada nas

regras estruturais do bom gosto modificou-se de uma vez

e foi obrigada a aceitar a relatividade do conceito.8

A partir de Sílvio Romero, o texto literário reivindica suas

paisagens, sua intervenção social, trazendo problemas, os quais

atravessam também a literatura, mas eram recalcados. Aliás na sua

História da literatura, ao explicar a estruturação da mesma, tece as

seguintes reflexões sobre a literatura:

Cumpre declarar, por último, que a divisão proposta não

se guia pelos fatos literários, porque para mim a expressão

literatura tem a amplitude que lhe dão os críticos e

historiadores alemães. Compreende todas as

manifestações da inteligência de um povo: política,

economia, arte, criações populares, ciências... e não,

como era costume supor-se no Brasil, somente as

intituladas “belas-letras”, que afinal cifravam-se quase

que exclusivamente na poesia.9

Mais uma vez percebe-se uma posição veemente adotada por

Romero que, se por um lado apresenta uma visão míope da obra literária,

Page 64: Revista Independência 2007

63Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

por outro, justamente por não se fechar dogmaticamente no campo dos

“estudos literários”, transitando pela filosofia, direito, ciências humanas,

sociais e biológicas, em sua crítica, ele nos permitirá hoje através de

seus registros contraditórios, ambíguos, a possibilidade de construirmos

uma história a contrapelo.

Esse olhar indisciplinar permite a Romero constatar a

mestiçagem como essencial à dinâmica cultural brasileira e expressar o

seu desejo particular a uma fraternização das raças10 para uma “boa

mistura”, a fim de que o Brasil chegasse a ter um povo etnicamente

estável, que pudesse se manifestar democraticamente e exercer a

democracia.

Ora, Sílvio Romero, ao trazer uma questão deste porte para a

cena literária, tratando-a de forma ambígua, o que não deixa de ser um

avanço se pensarmos no contexto histórico dogmático em que faz suas

especulações, assume um ato que requer potência, principalmente se

somarmos a tudo o que já foi dito o fato da mestiçagem ser vista de

forma negativa no século XIX, do Brasil a essa época estar investindo

oficialmente na imigração européia para branquear o povo brasileiro. É

sem exagero, realmente, que Antônio Cândido evidencia a influência da

vasta obra romeriana em intelectuais como Mário de Andrade e,

principalmente, Gilberto Freyre, cujas reflexões sobre o patriarcado

brasileiro e sobre a democracia racial são debitárias.

Aliás podemos traçar na historiografia e crítica literárias uma

brevíssima genealogia na qual teríamos em primeiro lugar Sílvio Romero

e sua concepção de obra literária que se bate contra a imitação e

reivindica um mimetismo explícito, em seguida, Antônio Cândido que

busca um equilíbrio entre as questões intra e extra literárias (para

Cândido, ainda há em sua historiografia essa dicotomia), bem como

Page 65: Revista Independência 2007

64 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

coloca ainda o problema da dependência cultural na literatura brasileira

e, por fim, Silviano Santiago, para o qual, a obra já figura como um

todo indistinto e a questão da dependência cultural já não figura mais

como um fantasma, como para Cândido.

Desorganizando ainda mais essa “genealogia”, se Stuart Hall

quando esteve no Brasil, participando da ABRALIC, afirmou que Gilberto

Freire seria o “pai” dos Estudos Culturais, não podemos nos esquecer

não só da importância de Sílvio Romero para a formulação do pensamento

freiriano, mas que na própria produção romeriana no século XIX, ele já

demonstrava um ímpeto de uma crítica cultural com base não só na

temática da mestiçagem, mas do seu próprio pensamento mestiço:

Todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas

idéias.11

Referências bibliográficas:

CANDIDO, Antonio. Educação pela noite e outros ensaios. São Paulo:

Ática, 1987.

CANDIDO, Antonio. O método crítico de Sílvio Romero. São Paulo: Edusp,

1988.

GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. Trad. Rosa Freire D´Aguiar.

São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira.Luiz Antônio Barreto

(org). Rio de Janeiro: Imago; Aracaju: Universidade Federal de Sergipe,

2001.

Page 66: Revista Independência 2007

65Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Notas:

1 Sílvio Romero escreveu diversas obras ligadas à literatura e à cultura brasileirasendo considerado pela crítica contemporânea, a qual inclusive revisita sua obra,um importante intérprete do Brasil, por ter pensado e acima de tudo polemizadoacerca de questões cruciais como a mestiçagem.2 Gruzinki levanta uma série de impropriedades acerca do uso do conceito demestiçagem, como a idéia de mistura, como se as etnias (branca, indígena ounegra, por exemplo) não já fossem produtos de outras “hibridações”. Daí a idéiade mestiçagem não deixa de ser em si já contraditória, pois ela pressuporia ocontato de raças puras para originar o “misturado”.3 CANDIDO, Antonio. Fora do texto, dentro da vida. In:_______. Educação pelanoite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. p. 101.4 Idem. p. 103.5 GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. Trad. Rosa Freire D´Aguiar. São Paulo:Companhia das Letras, 2001. p.44.6 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira.Luiz Antônio Barreto (org). Riode Janeiro: Imago; Aracaju: Universidade Federal de Sergipe, 2001. p. 417 Idem.8 Idem.9 Idem.10 Mesmo com esse desejo Sílvio Romero não deixa de registrar as tensõesexistentes nesses contatos étnicos no Brasil, desde suas origens.11 Idem. p. 57

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Ano 1, nº 0, Outubro de 2006 Revista Independência

Título

Autor

Resumo

As filigranas da dor em“Contos cruéis de guerra”,e Ibéa Atondi

Lívia NatáliaMestre em Teorias e Crítica da Literatura e da Cultura pelo Instituto de

Letras da UFBA, Doutoranda na mesma IES. Professora de Teoria da

Literatura das Faculdades Jorge Amado.

E-mail: [email protected]

A cineasta congolesa Ibéa Atondi registra, com seu olhar arguto e sensível, o impacto

da guerra civil ocorrida no Congo Brazaville na primeira metade da década de 90 do

século XX. Os confrontos armados entre os Cobras e Ninjas deixaram atrás de si um

país destruído. Neste artigo se buscou oferecer uma leitura hermenêutica de alguns

signos expostos na narrativa fílmica levando em conta o olhar estrangeiro e feminino

da cineasta.

Palavras-chave: cinema, documentário, Congo, guerra civil

06

Page 69: Revista Independência 2007

68 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

As batidas de coração, fortes e compassadas, que iniciam o filme

Contos Cruéis de Guerra da congolesa Ibéa Atondi, soam, quando

contrastadas com a tela totalmente preta, opressoras. A insistência em

fazê-las audíveis por nós, parece querer, e, na verdade, quer, nos alertar

não para a morte, mas para a vida, apesar de sua crueza e da brutalidade.

Na verdade, Atondi faz, no retorno à sua terra natal, uma travessia,

buscando devassar a narrativa dos sobreviventes, a fim de encontrar,

ali, entre agredidos e agressores, os restos das subjetividades e da

humanidade que foram soterradas pelos escombros da violência.

A beleza do filme, posto que a obra de arte tem esta perversão,

de retirar a sua leveza da pesada realidade, talvez resida justamente

nesta peregrinação subjetiva de Ibéa Atondi que, não por acaso,

representa uma travessia do povo de Congo Brazaville em busca da

reconfiguração de sua identidade1. Freud nos ofereceu, como caminho

para a cura das feridas indeléveis da alma, a palavra. Ao oferecer voz a

todos estes sujeitos silenciados pelo horror e pelo trauma, Atondi faz

uma espécie de clínica e presta socorro a pessoas que convivem com os

fantasmas da guerra. Eles caminham pelas casas de paredes arrombadas

pelos tiros, residem nos corpos marcados pela violência, e estão diante

daquele que carrega o olhar de quem viveu entre os mortos e que precisa,

de alguma maneira, saber-se vivo, mesmo que pelo relato de sua difícil

sobrevivência.

A diretora do documentário ocupa o lugar de uma narradora

descentrada2 que, pela pluralidade dos relatos, acaba muito mais

ocupando o lugar de cerzideira das falas, de mediadora de melancolias.

O envolvimento com Jules Atondi Ikassis, o Mignon, oferece a ela a

possibilidade de não apenas filmar um documentário sobre a guerra no

Congo, mas, também, de penetrar em ínfima parte de um universo que

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69Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

não era o seu: o dos milicianos. Quando chega em sua terra natal, a

diretora buscava fazer um filme ficcional sobre os conflitos. Seus planos

envolviam a colocação de atores semi-profissionais para representar a

ação mediada por personagens de nomes hollywoodianos como Kurtz e

Sneiper. Mignon, miliciano e potencial “ator” do filme de Ibéa,

imediatamente questiona os nomes americanizados, e afirma ter

dificuldade na leitura e compreensão do roteiro trazido, o que pode ser

interpretado como sendo um descompasso entre o relato ficcional e a

experiência vivida por ele. A diretora percebe, então, a impossibilidade

de construir uma narrativa ficcional acerca dos conflitos, vez que ela

não os experimentou e o filme que ela intentava montar mostra-se como

um sintoma de que, apesar de nascida ali, não ter vivido o sofrimento

pelo qual passaram aquelas pessoas, fazia de Atondi uma estrangeira.

Ao escolher o miliciano Mignon para representar a sua própria

vida, convertida em “papel ficcionalizado” no filme, Ibéa Atondi tenta

reduzir a dinâmica das forças ambíguas que operam na experiência vivida

de um miliciano à ordem de uma narrativa linearizada e centralizada de

um filme. Sabemos que a arte explora as potencialidades do real,

entretanto, a força dos depoimentos é importante para a construção do

filme, vez que eles têm o poder de fazer audível um discurso que os

mass media e a historiografia deixam escapar.

Atondi opera, ao democratizar o lugar de fala (às vezes de maneira

até desconfortável, vez que os depoimentos são expostos a interrupções

e intromissões dos ouvintes), aquilo que Walter Benjamin chamou de

leitura a contrapelo. A imagem surge da comparação da escovação da

crina de um cavalo às avessas, retirando os pelos de sua linearidade e

homogeneidade e fazendo vir à tona as sujeiras mínimas, a poeira,

desrecalcando aquilo que foi silenciado. A historiografia tradicional tende,

Page 71: Revista Independência 2007

70 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

conforme afirma Michel Foucault, estabelecer linhagens, relações de

causalidade, homogeneidades, origens e linearidades, abandonam

novidade e a dissensão que o acontecimento pode produzir, silenciando

a sua potência discursiva, em favor dos grandes cortes e grandes períodos

históricos. Ou seja, o filme de Ibéa oferece a possibilidade de subverter

o discurso oficial com a constatação de uma outra versão sobre a história.

Em lugar de representar-se no seu filme, a fala da congolesa, agora

estrangeira, ou a visão dos mass media, dos políticos envolvidos ou dos

antropólogos, historiadores e estudiosos em geral, o que se destaca na

cena discursiva do filme é o lugar dado ao sofrimento individual, à fala

do sujeito, buscando oferecer, através de um microfone e uma câmera,

a possibilidade de fazer-se ouvir em todo o mundo. E esta é a grande

riqueza do filme.

Mas Contos Cruéis de Guerra toma este direcionamento apenas

após a violenta morte de Mignon. O miliciano é pego em emboscada e

torturado por quatro dias antes de sua morte. Com isto, a diretora

imagina poder fazer um filme onde se veja o que um “homem pode

fazer a um homem”. Podemos embasar toda a nossa interpretação do

texto fílmico a partir de uma fala de Ibéa: “E o que me espantava é que

eu sabia que ele falava a verdade”, isto ela declara sobre o seu espanto

diante das narrações de Mignon sobre o seu tempo de guerra. Podemos

imaginar que, após a morte dele, o que resta à diretora é recolher as

outras verdades silenciadas e, neste investimento, constrói-se o

documentário.

Hypokrités, esta é a tradução grega para a palavra ator, ele seria

o hipócrita que finge sofrer aflições e padecer em combate ao qual

permanece infenso, este é o sentido que pode ser atribuído também aos

atores que representariam um sofrimento que, apesar do que nos dizem

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71Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

as notícias que circulam nos jornais do mundo inteiro, ainda permanece

presente na vida dos congoleses. Hipócritas, na melhor acepção da

palavra, são os governos americano e francês que, conforme coloca o

documentário, mediados pelas sua respectivas indústrias petrolíferas,

são os patrocinadores deste conflito que se inicia em plena eleição

presidencial na qual confrontar-se-iam Pascal Lissouba, “dono” da milícia

dos Cocóias, e Denis Sassou-Nguesso, atual presidente do Congo

Brazaville e chefe dos “Cobras”.

Após a expulsão de Lissouba, Nguesso passa a confrontar-se com

Bernard Kolelas, prefeito da capital, Brazaville, e dono da milícia dos

“Ninja”. Vencedor dos combates, Nguesso chega à presidência

caminhando sobre os escombros de um Congo desolado, deixando como

marca de sua caminhada, um rastro funesto de 10.000 mortos e 800.000

desaparecidos, números que aumentaram para 25.000 mortos quando,

ao fim do conflito, em lugar de pagar a seus milicianos o presidente,

ofereceu, como recompensa a estes, dois dias de livre pilhagem nos

bairros da capital.

A ficção que, inicialmente, era pretendida por Atondi, entraria no

circuito de narrações assépticas que cercam as histórias contadas sobre

os países do continente africano. A construção ficcional da narrativa

apenas resvalaria, tocando muito de leve nas feridas daquela população.

A estrutura escolhida para o documentário favorece ao espectador que,

diante dos testemunhos, interroga a face daqueles indivíduos buscando

caçar, ali, as lágrimas dos filmes de Holywood. E a ausência de lágrimas

nos parece estranha, alguns parecem ainda mergulhados no torpor, em

anestesia que, depois compreendemos, só o sofrimento tamanho pode

oferecer.

A narrativa dos milicianos, certamente por conta da posição

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72 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

ocupada por eles no conflito, é das mais difíceis de ser aceita e

compreendida. Entretanto, se há um elemento que perpassa não apenas

as suas ações durante os confrontos, mas também o momento mesmo

da narração, é o entorpecente, seja ele o álcool, a maconha ou a heroína.

O próprio Mignon era um miliciano toxicômano. Muitos destes indivíduos

que participaram das milícias se utilizavam e se viciaram em psicotrópicos

a fim de, talvez, conviver com o trauma da morte e sofrimento que eles

não apenas promoviam, mas representavam. A consciência embotada,

esmaecida sob a força do entorpecente, evita que o sujeito pense na

sua própria humanidade e dilua a força destruidora dos seus gestos nas

drogas, que burlam a mente e oferecem às ações ares de filmes de tv.

Ao entrar na milícia muitos forjam uma identidade, um alter ego violento

no qual a crueldade e a capacidade de matar se adicionam a um novo

nome e ao entorpecente, a fim de criar este novo personagem que será

ou um “cobra” ou um “ninja”.

Ao dedicar o filme a Mignon Árabe, codinome utilizado Jules Atondi

Ikassis, Ibéa Atondi busca nos mostrar a humanidade que ainda restava

sob a máscara do miliciano. Penso que, neste investimento de revelar

esta humanidade, mediado, certamente, pelo enlace amoroso que,

conforme se mostra no documentário, uniu o miliciano e a diretora do

filme, Atondi finda por deixar escapar um grave problema de seu filme.

A excessiva subjetividade, da qual não escapa nenhuma narrativa, apesar

de dar, a esta em específico, o valor de construir-se ouvindo as histórias

contadas por vários sobreviventes, ludibriou a sua mão no momento de

colocar na balança a fala de vítimas e algozes ou, por outro lado, adotando

uma outra interpretação que ora me assalta, em Contos cruéis de guerra

os algozes não estão presentes, apenas as vítimas.

Os verdadeiros algozes são os governos dos Estados Unidos da

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73Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

América e da França, que alimentaram, com cifras milionárias, os

confrontos. Os algozes são também o FMI e a União Européia, que após

o anúncio do presidente Nguesso da adesão do Congo Brazaville à

iniciativa de transparência para as indústrias de exportação com o

objetivo de favorecer a “reestruturação da economia, promoção da

transparência e do bom governo”, retiraram todas as sanções sobre o

país. O algoz foi Jacques Chirac, presidente da França, que, em 1997,

recebe o presidente do Congo para parabenizá-lo pela bela “eleição” à

presidência. Quando finalmente descobrimos que, conforme o próprio

FMI, entre 1999 e 2002, desapareceram US$ 248 milhões da venda de

petróleo e outros US$ 150 milhões por motivos governamentais, quando

ficamos sabendo que Denis Sassou-Nguesso é um dos homens mais ricos

da África, enquanto 70% dos 3,5 milhões de congoleses vivem abaixo da

linha de pobreza, tendo uma expectativa de vida de apenas 50 anos e

que tudo isto se passa no Congo Brazaville, o país mais endividado do

mundo, compreendemos perfeitamente quem são os algozes.

Referências bibliográficas:

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1996.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva,

2002.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2005.

Page 75: Revista Independência 2007

74 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas. São Paulo: Imago, 1997.

ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2005.

Notas:

1 A travessia, referida no texto, evoca a imagem de Riobaldo, de Grande SertãoVeredas, de Guimarães Rosa, que, na obsessiva narrativa sobre a sua vida dejagunço busca, pela reconstrução mnemônica dos fatos, soerguer a sua identidadefraturada negociando, com os fantasmas do passado, a paulatina interpretação desua vida.2 Refiro-me aqui ao conceito derridiano de descentramento que, pode serpercebido na construção polifônica do documentário.

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Ano 1, nº 0, Outubro de 2006 Revista Independência

Título

Autor

Resumo

“O canto do negro veio lá do alto...é belo como a íris dos olhos de Deus...”(Daniela Mercury / Pérola Negra)

Sílvio César Tudela-VieiraJornalista, Especialista e Mestrando em Cultura e Sociedade pelaFaculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (FACOM/UFBA) eprofessor de Assessoria de Comunicação para os cursos de Jornalismo ede Produção Cultural na FACOM/UFBA.

E-mail: [email protected]

Este trabalho tem como objetivo destacar a contibuição da mestiçagemcomo elemento de integração nacional, tomando como ponto de partidaalguns aspectos apontados por Gilberto Freire em “Casa grande &senzala”. Além disso, procura interpretar o papel do negro no futebolcomo forte instrumento de democratização racial na sociedade brasileira,a partir dos anos 30 do século XX.

Palavras-chave: Identidade, Sujeito, Mestiçagem, Racismo, Futebol

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76 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Canto das três raças

(Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro)Clara Nunes

Ninguém ouviu um soluçar de dorNo canto do Brasil.

Um lamento triste sempre ecoouDesde que o índio guerreiro

Foi pro cativeiro e de lá cantou.

Negro entoou um canto de revolta pelos aresNo Quilombo dos Palmares, onde se refugiou.

Fora a luta dos InconfidentesPela quebra das correntes.

Nada adiantou.

E de guerra em paz, de paz em guerra,Todo o povo dessa terra

Quando pode cantar,Canta de dor.

Ooooooooooooooooooooooo...

E ecoa noite e dia: é ensurdecedor.Ai, mas que agonia

O canto do trabalhador...Esse canto que devia ser um canto de alegria

Soa apenas como um soluçar de dor.

Ooooooooooooooooooooooo...

Samba da benção(Vinícius de Moraes / Baden Powell)

É melhor ser alegre que ser tristeAlegria é a melhor coisa que existe

É assim como a luz no coraçãoMas pra fazer um samba com beleza

É preciso um bocado de tristezaÉ preciso um bocado de tristeza

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77Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Senão, não se faz um samba não

(Senão... é como amar uma mulher só lindaE daí? Uma mulher tem que terQualquer coisa além de beleza

Qualquer coisa de tristeQualquer coisa que chora

Qualquer coisa que sente saudadeUm molejo de amor machucadoUma beleza que vem da tristeza

De se saber mulherFeita apenas para amar

Para sofrer pelo seu amorE pra ser só perdão)

Fazer samba não é contar piadaE quem faz samba assim não é de nadaO bom samba é uma forma de oração

Porque o samba é a tristeza que balançaE a tristeza tem sempre uma esperançaA tristeza tem sempre uma esperança

De um dia não ser mais triste não

(Feito essa gente que anda por aí brincando com a vidaCuidado, companheiro

A vida é pra valerNão se engane não

É uma sóDuas mesmo que é bom ninguém vai me dizer que temSó se provar muito bem provado com certidão passada

Em cartório do Céu e assinado embaixo: Deus!E com firma reconhecida!

A vida não é de brincadeira, amigoA vida é arte do encontro

Embora haja tanto desencontro pela vidaHá sempre uma mulher à sua espera

Com os olhos cheios de carinhoe as mãos cheias de perdão

Ponha um pouco de amor na sua vida,como no seu samba)

Ponha um pouco de amor numa cadênciaE vai ver que ninguém no mundo vence

A beleza que tem um samba não

Page 79: Revista Independência 2007

78 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Porque o samba nasceu lá na BahiaE se hoje ele é branco na poesiaSe hoje ele é branco na poesiaEle é negro demais no coração

(Eu, por exemplo, o capitão do matoVinicius de MoraesPoeta e diplomata

O branco mais preto do BrasilNa linha direta de Xangô, Saravá!

À benção, SenhoraA maior ialorixá da Bahia

Terra de Caymmi e João Gilberto

À benção, PixinguinhaTu que chorastes na flauta

Todas as minhas mágoas de amorÀ benção, Sinhô, à benção Cartola,

À benção, Ismael SilvaSua benção, Heitor dos Prazeres

À benção, Nelson CavaquinhoÀ benção, Geraldo Pereira

À benção, meu bom Cyro MonteiroVocê, sobrinho de Nonô

À benção, Noel, sua benção, AryÀ benção, todos os grandes

Sambistas do meu BrasilBranco, preto, mulato

Lindo como a pele macia de OxumÀ benção, maestro Antônio Carlos Jobim

Parceiro e amigo queridoQue já viajaste tantas canções comigo

E ainda há tantas a viajar

À benção, Carlinhos LyraParceirinho cem por cento

Você que une a ação ao sentimentoE ao pensamento, à benção

À benção, à benção, Baden PowellAmigo novo, parceiro novo

Que fizeste este samba comigoÀ benção, amigo

À benção, maestro Moacir Santos

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79Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Não és um só, és tantos comoO meu Brasil de Todos os Santos

Inclusive meu São Sebastião, Saravá!À benção, que eu vou partirEu vou ter que dizer adeus)

Ponha um pouco de amor numa cadênciaE vai ver que ninguém no mundo vence

A beleza que tem um samba nãoPorque o samba nasceu lá na BahiaE se hoje ele é branco na poesiaSe hoje ele é branco na poesiaEle é negro demais no coração

O jogo do equilíbrio das diferenças

Quem é o povo brasileiro? Podemos falar de uma unidade nacional

e pressupor a existência de uma cultura brasileira? Se esse perfil de

respostas corresponde às exigências da civilização ocidental, pode o

Brasil figurar no concerto geral das nações? Estes questionamentos

levantados pela socióloga Elide Rugai Bastos são, de certa forma,

respondidos pela autora a partir da análise da obra “Casa grande e

senzala” (1933), em que o pernambucano Gilberto Freire ganha espaço

nacional ao penetrar no âmago desta discussão enfocando a formação

nacional a partir da região Nordeste, em especial Pernambuco.

O trabalho de Freire foi pioneiro por apresentar propostas que

superaram as explicações sociobiológicas como código competente para

dar conta das questões sociais, desmontando as argumentações fundadas

no determinismo geográfico e por colocar em novo patamar analítico as

interpretações do Brasil.

Sua concepção sobre a sociedade brasileira funda-se na articulação

de três elementos: o patriarcado, a interpenetração de etnias e culturas

e o trópico. Esta correlação de forças levou a uma sociedade singular,

Page 81: Revista Independência 2007

80 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

derivada do modelo econômico em que se estabelece a dominação

patriarcal, não apenas sobre a família e os escravos, mas também sobre

os agregados e os homens livres. Da escassez de mulheres brancas

resultou a possibilidade de “confraternização entre vencedores e

vencidos”, gerando-se filhos do senhor com a escrava, operando a

miscigenação como corretor social entre “a casa-grande e a mata tropical;

entre ela e a senzala”.

Para Gilberto Freire, o ambiente colonial transformou-se em

sistema de contemporização entre tendências aparentemente

conflitantes. Neste sentido, a casa-grande funciona como centro de coesão

social, representando o todo de um sistema econômico, social e político,

e age como ponto de apoio para a organização nacional.

Freire coloca, em linhas gerais, algumas características sobre o

branco português: um povo indefinido entre a Europa e a África,

bicontinentalidade esta que permite um “bambo equilíbrio de

antagonismos”, e também uma deficiência de volume humano para o

triunfo do empreendimento português na colonização de tão vasto

território como o Brasil. Com isso, pode-se dizer que a grande herança

lusitana deixada para nós é a adaptabilidade do colonizador aos indígenas

nativos e negros africanos via mestiçagem racial e cultural.

Marcada desde o inicio pela importância da família, a vida política

brasileira se equilibra entre duas místicas. De um lado, a ordem e a

autoridade decorrentes da tradição patriarcal; de outro, a liberdade e a

democracia, desafios da sociedade moderna. Esta dualidade, conforme

o autor, não deveria criar oposições, pois a formação brasileira tem

sido “um processo de equilíbrio de antagonismos”.

Com relação ao índio, Freire encaminha sua análise no sentido de

demonstrar que as relações sociais no Brasil constituíram-se

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81Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

harmonicamente, sem conflitos de caráter violento, uma espécie de

reciprocidade cultural, em que a mulher indígena foi incorporada à

sociedade cristã, tornando-se esposa e mãe de família e transmitindo

valores aos herdeiros, através de um caminho convergente entre a

degradação da “raça atrasada” e da assimilação pela “raça adiantada”

da cultura dominada – termos utilizados aqui de acordo com a

complexidade das culturas e não com aspectos de valor.

Em seu diálogo com o povo negro, Freire parte da tese que são

deles as melhores expressões de vigor ou de beleza física em nosso País

e mostra ser anticientífica a afirmação da superioridade ou da

inferioridade de uma raça sobre outra, definindo que todo brasileiro é

racial ou culturalmente negro.

Além de reverenciar a plasticidade do negro e sua grande

adaptabilidade, Freire alega que ele é o verdadeiro filho do trópico,

conservando, nesse ambiente, suas características eugênicas. O fato

de estar mais adaptado por raízes fisiológicas e psíquicas resultou em

traços psicológicos mais extrovertidos, alegres e bondosos, ao contrário

do índio, resistente ao colonizador.

O sociólogo contrapõe também afirmações racistas que vêem como

amoralidade o excesso de sexualidade dos negros como uma

característica psíquica e levanta que não há escravidão sem depravação

e, portanto, a acusação não se realiza pela condição da pele, mas pela

influência da escravidão, da estrutura social sobre a racial e o meio

físico, conforme a tese de Boas.

Em termos comportamentais, para Freire, o negro é ainda o

responsável pelo traço dionisíaco do caráter brasileiro; é ele quem

ameniza o apolíneo presente no ameríndio, marca tão patente em seus

rituais. Exemplifica que a dança negra é marcada pelo caráter sensual,

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82 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

enquanto nos segundos é puramente uma representação dramática. A

alegria do africano contrabalançou o caráter melancólico do português e

a tristeza do indígena.

Das três raças à geléia geral

Em artigo publicado no jornal Tribuna da Bahia, de Salvador, a

presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Consuelo Pondé

de Sena, explica que muitos dos selecionados para a colonização do

território brasileiro eram indivíduos sem responsabilidade familiar. Diz

a historiadora:

O fato é que, ao chegarem ao território brasileiro, logo

após 1500, os portugueses integravam contingentes de

aventureiros, náufragos, marinheiros, desertores,

degredados, banidos pela pátria por crimes, questões

políticas ou religiosas, jovens ambiciosos escolhidos pela

aptidão física e livres de laços familiares para servir na

guarnição da colônia. Vinham ainda nobres empobrecidos,

alguns funcionários, jesuítas, clero secular, judeus expulsos

pela Inquisição, ciganos, prostitutas e órfãs enviadas pela

Coroa, em número reduzido, para que se casassem com os

colonos, e alguns desses acompanhados de suas famílias,

fossem de Portugal, dos Açores ou de Cabo Verde1.

De acordo com a autora, convém mencionar que a intermistura

racial favoreceu, ainda no período colonial e imperial, um grupo

intermediário que possuía melhor condição que a de seus antepassados

negros, circunstância que lhes permitia a ascensão social através de

atividades domésticas mais delicadas e exigentes, tais como mucamas,

moleques de recados e outros serviços que os diferenciavam dos escravos.

Silvio César Tudela

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83Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Embora o mestiço brasileiro fosse considerado marginal por muitos,

alguns deles conseguiram certa notoriedade, como Gonçalves Dias, Olavo

Bilac, Tobias Barreto, Machado de Assis etc.

A miscigenação é uma articulação de processos que foram

acontecendo simultaneamente, de forma natural e progressivamente,

mesmo que lenta. Nos primeiros tempos da colonização, a índia se tornou

primeiramente amásia e, depois do extermínio da população nativa por

armas ou moléstias trazidas pelos europeus, ganhou o papel de mãe de

família, incorporando elementos da gastronomia e da farmacêutica. Já

o processo de aproximação das culturas negras e européias começou a

se construir através da religião, de uma espécie de catolicismo místico

tradicional entre as famílias cristãs e os rituais pagãos. Vivendo dentro

da casa-grande, a mucama começou a exercer forte influência na

educação das crianças.

Com isso, a língua portuguesa foi perdendo sua pureza na

interpenetração das falas e ganhou contornos das linguagens atlânticas

absorvendo, principalmente no Brasil, elementos indígenas em termos

de referência espacial (Sorocaba, Anhangabaú, Abaeté etc.) e africanos,

notadamente no âmbito da cultura (acarajé, macumba, samba etc.).

Pode-se dizer, em certa medida, que o período colonial acabou

sendo economicamente definido pela ociosidade do indivíduo branco.

Nesta fase de nossa História, os negros trabalhavam ininterruptamente

e criaram praticamente tudo o que se consumia nos quatro primeiros

séculos de nossa colonização – de alimentos, tecidos, armas a habitações,

para ficar apenas nestes exemplos. Entendida a partir do conceito da

produção de bens e mercadorias para uso e troca, é inegável reconhecer

que a cultura brasileira nasceu das mãos e do talento do negro.

A partir da leitura do autor, bem como de diversos de seus críticos,

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84 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Gilberto Freire foi muito otimista (para não dizer conivente ou ingênuo)

por acreditar que “somos duas metades confraternizantes que se vêm

mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas...”.

Poderíamos pensar, equivocadamente, a partir disso, que somos

atualmente uma democracia social porque temos como base histórica

uma “democracia racial” alicerçada em uma pacífica mestiçagem.

Por sua vez, o antropólogo Roberto DaMatta considera que os

traços de aproximação intercultural entre negros, índios e lusitanos não

são resultado de uma característica cultural portuguesa. Para ele, esta

foi uma das poucas possibilidades de enfrentar os dilemas do trabalho

escravo em um sistema hierarquizado: “Onde cada um tem um lugar

determinado, não há espaço para a igualdade”, pontuou.

As oportunidades nunca foram iguais para brancos e negros e é

fato conhecido que o indivíduo é mais aceito socialmente a partir do

momento em que se aproxima dos padrões arianos, o que vem denunciar

a falsidade do mito da “democracia racial”. Na verdade, esta tese

funciona como obstáculo ao enfrentamento da questão racial no Brasil e

de suas imensas desigualdades.

No contexto da política atual e do crescimento das ações

afirmativas, é importante levar em consideração depoimento do

sociólogo e professor Milton Moura, no qual:

... Ninguém está dizendo que a humanidade é branca...

seria ostentação afirmar continuamente o traço diferente.

Os negros não querem ser iguais? Pois então, a insistência

e a provocação de falar nisto a toda hora não seria racismo

dos negros? Não seria o caso de o negro se acostumar com

a pertença ao conjunto dos cidadãos numa sociedade

democrática? Já não acabou a escravidão? Para que, então,

acentuar a cor? Em vez de aceitar essa incorporação como

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85Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

uma dádiva ou como um reconhecimento, um número

expressivo de jovens e adolescentes negros quer não

apenas que a negritude seja reconhecida como humana,

mas também que a humanidade seja reconhecida como

negra .2

Dando razão a Freire, DaMatta e Moura, é preciso incluir nesta

reflexão, que apenas aparentemente se mostra antagônica, um relatório

da ONU, divulgado em novembro de 2005, que ataca o mito da democracia

racial no Brasil: “Quanto mais se avança rumo ao topo das hierarquias

de poder, mais a sociedade brasileira se torna branca”. Conforme o

documento, os negros representam 64,1% dos pobres brasileiros e a

taxa de desemprego é 23% maior que o índice de brancos sem emprego

entre 1992 e 2003. “Ações afirmativas, incluindo as políticas de cotas,

são necessárias no Brasil porque mulheres, negros e povos indígenas

foram deixados em secular desvantagem na sociedade brasileira... Tratar

igualmente desiguais pode, no entanto, agravar a desigualdade, em vez

de reduzi-la”, afirma o relatório.

Enfim, o mestiço como sujeito nacional

O sociólogo Florestan Fernandes, ao tratar da questão racial no

Brasil, afirmava que o brasileiro tem o preconceito de não ter

preconceito. O escritor Sílvio Romero chega a denunciar o descaso com

o negro através de sua completa ausência no plano literário até a Abolição

- o que diferencia o nosso Romantismo do europeu, que se volta para o

passado glorioso. Mas que glória esperar dos negros se eles são uma

espécie de “sujeitos ausentes” da cidadania?

Carlos Guilherme Mota, em seu livro “Ideologia da Cultura

Brasileira”, considera que os anos 30 foram decisivos na reorientação

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86 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

da historiografia brasileira ao analisar “Casa grande e senzala”, de

Gilberto Freire (1933), “Evolução política do Brasil”, de Caio Prado Jr.

(1933), e “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda (1936).

Juntas, estas obras eliminam uma série de dificuldades colocadas

anteriormente a respeito da herança atávica do mestiço ao passar do

conceito de raça para o da cultura. Mas é, principalmente, em Freire

que a temática transcende e evolui ao transformar a negatividade do

mestiço em positividade.

O mito das três raças torna-se então plausível e pode se

atualizar como ritual. A ideologia da mestiçagem, que

estava aprisionada nas ambigüidades das teorias racistas,

ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente, tornar-

se senso comum e ritualmente celebrada nas relações do

cotidiano, ou nos grandes eventos como o Carnaval e o

Futebol. O que era mestiço torna-se nacional. (ORTIZ,

1985, p. 41).

Neste sentido cabe entendermos como a continuidade do

pensamento tradicional se inscreve na descontinuidade dos anos 30,

época em que parte do povo brasileiro se debatia ainda com as

ambigüidades de sua própria definição. Ao positivar a condição do negro,

Gilberto Freire oferece ao brasileiro uma carteira de identidade, como

diz Ortiz, tornando incompatível a imagem do Ser Nacional forjada pelos

intelectuais do século XIX, que atribuíam as características que

determinam a racionalidade do espírito capitalista à raça branca. Ao

retirar do mestiço estas qualidades, acabavam negando, naquele

momento histórico, as possibilidades do desenvolvimento real do

capitalismo no Brasil.

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87Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Renato Ortiz justifica que o mesmo processo dos intelectuais dos

anos 30 pode ser identificado na ação cultural do governo Vargas através

de iniciativas como a de promover o samba ao título de música nacional,

esvaziando sua especificidade originariamente negra. Na medida em

que a sociedade se apropria das manifestações de “cor” e as integra no

discurso unívoco da nacionalidade e do desenvolvimento, elas perdem

sua essência e deixam de ser o que inicialmente eram, completa Ortiz.

Memória ancestral ou criação ideológica

Em um contexto mais amplo neste instante de “redescoberta do

Brasil”, o nacional se definiria como a conservação “daquilo que é nosso”,

isto é, a memória nacional seria o prolongamento da memória coletiva

popular, de acordo com o posicionamento de Ortiz. Ele usa como exemplo

o Candomblé, que ao definir um espaço social sagrado, o terreiro,

possibilita a encarnação da memória coletiva africana em determinados

enclaves da sociedade brasileira. Neste sentido, a origem é

recorrentemente relembrada e se atualiza através do ritual religioso.

Completa Ortiz dizendo que a memória coletiva se aproxima do mito e

se manifesta portanto ritualmente enquanto a nacional é da ordem da

ideologia, como produto de uma história social, não da ritualização da

tradição.

...Um seminário sobre a noção de identidade, coordenado

por Lévi-Strauss, afirmava nas conclusões do trabalho que

a identidade é uma entidade abstrata, sem existência real,

e que não pode ser apreendida em sua essência, muito

embora seja indispensável como ponto de referência ,

enquanto desvenda o projeto que se vincula às formas

sociais que a sustentam, o que nos leva a pensar que a

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88 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

identidade assim como a memória nacional são elementos

que derivam de uma construção de segunda ordem. (ORTIZ,

1985, p. 137)

Na história intelectual brasileira, vários autores tentaram chegar

a uma essência da cultura e definir a identidade do brasileiro em termos

de caráter: cordialidade (Sérgio Buarque de Holanda), tristeza (Paulo

Prado), bondade (Cassiano Ricardo). A “brasilidade” também foi buscada

no Carnaval ou na Malandragem.

Muitos dos componentes da “brasileirice” que nós nos imputamos

são bem mais recentes do que se acredita e nasceram no Brasil quando

o País já tinha quase quatro séculos de existência. Em artigo publicado

na Folha de S. Paulo3, o sociólogo Antônio Flávio Pierucci afirma que o

Catolicismo, por exemplo, só se estrutura entre nós depois da

Proclamação da República (1889), o samba emerge nas décadas de 10 e

20, mas se impõe nos anos 30, assim como os desfiles das escolas de

samba. A temática do negro, por sua vez, teve que esperar até 1960

para ser enredo de uma agremiação carioca, na qual o Salgueiro foi o

pioneiro.

Mas considerar o homem nacional a partir de determinados

conceitos corresponderia a atribuir-lhe um caráter imutável, à maneira

de uma substância filosófica. Essa procura, na opinião de Ortiz, torna-

se então um falso problema, pois a pergunta fundamental seria: quem é

o artífice desta identidade e desta memória que se pretendem nacionais?

A que grupos sociais elas se vinculam e a que interesses eles servem?

Idéia de construção e o sujeito da mediação

Ainda em Ortiz, se existem duas ordens de fenômenos distintos -

o popular (plural) e o nacional - é necessário um elemento exterior a

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89Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

essas duas dimensões que atue como agente intermediário. Dito de

outra forma, o processo de construção da identidade nacional se

fundamenta sempre em interpretação.

Colocar o intelectual como mediador simbólico implica

apreendermos a mediação como possibilidade de reinterpretação. E é

por meio deste mecanismo que o Estado, através de seus intelectuais,

acabou se apropriando das práticas populares para apresentá-las como

expressões da cultura nacional, como manifestação da “brasilidade”.

Foi assim com o Samba, com o Carnaval e depois com o Futebol:

ícones imbatíveis de nossa identidade e reconhecidos em qualquer parte

do mundo como tipicamente brasileiros. Qualquer um destes fenômenos

se apresenta como um palco extremamente revelador das relações raciais

estabelecidas entre nós ao longo do último século.

Futebol, um Brasil de cores na Pátria em preto e branco

Diferentemente do Candomblé que, para Ortiz, se inscreve como

a atualização de uma memória coletiva, o que dizer do futebol, um

esporte que teve suas configurações oficias na Inglaterra, mas que possui

origens ainda na China? Como dizer, a partir deste raciocínio de Ortiz,

que o futebol é brasileiro? Em que medida e de que forma a reconfiguração

deste esporte planetário conseguiu emplacar como patrimônio imaterial

brasileiro se ele não se inscreve como fruto de uma memória coletiva?

O futebol foi introduzido no Brasil através do brasileiro Charles

Miller, em 1894, quando este voltava de seus estudos na Inglaterra, e

seguiu restrito inicialmente aos grupos elitizados e próximos dos ingleses,

até os primeiros anos do século XX, quando parcelas populares, ávidas

em aprender o jogo, começaram a se organizar a fim de disputar o

esporte bretão em que as bolas e os uniformes eram importados e as

regras eram ensinadas em língua inglesa.

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90 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

A popularização do futebol se deu, de uma certa

perspectiva, através da criação de estratégias de

distinção das elites, e da apropriação do esporte elitizado

pelas classes populares.(...) O enquadramento moral desse

esporte acabou culminando na manutenção do futebol como

um dos índices expressivos de identidade nacional.

(TOLEDO, 1999, p. 146)

Nas duas primeiras décadas do século passado começam a se

formar os primeiros times de futebol, muitos deles ligados a tradicionais

clubes de elite formados por profissionais liberais, intelectuais e,

sobretudo, brancos. O esporte de público aristocrático (e considerado,

na época, pouco másculo para a população que identificava como símbolo

de virilidade as atividades ligadas ao remo e às regatas) foi se deslocando

para as periferias urbanas e ganhando contornos mestiços, fossem de

negros, mulatos ou imigrantes estrangeiros que chegavam em grande

número ao Brasil.

Mas a entrada dos negros no futebol brasileiro não se deu de

forma tranqüila... Através dos fatos levantados pelo jornalista Mário

Filho em “O negro no futebol brasileiro”, considerado um dos clássicos

da literatura sobre este esporte no País, podemos perceber como o futebol

serviu, em relevante medida, como um instrumento democratizante das

relações entre raças no Brasil.

Assim como nos círculos intelectuais que redefiniam a noção de

ser brasileiro, dois tipos de posicionamento público se confrontaram

neste movimento. Um deles louvava as características supostamente

negras e mestiças do nosso futebol, como a ginga, a malícia e a arte.

Em sentido contrário, as reacionárias idéias de inferioridade negra e da

incapacidade mulata pintavam os diálogos através da utilização de termos

como instabilidade emocional, fraqueza moral, covardia e imprestáveis,

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91Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

para ficar na terminologia do médico Nina Rodrigues. As conquistas e as

derrotas brasileiras nos campos de futebol marcavam os avanços e os

recuos deste processo.

Se o negro ou o branco ou o mulato marcassem o gol da vitória

não havia tanta diferença. Mas o inverso não era verdade. Bastava uma

derrota, uma jogada malfeita, para os mulatos e negros serem

violentamente desqualificados e se levantassem insinuações que eles

estivessem “vendidos”. Nenhuma suspeita de suborno recaía sobre os

jogadores brancos.

Trajetórias de alguns atletas servem de parâmetro para entender

o processo. O baiano Manteiga (América-RJ, anos 20) nunca pisou no

hall social do seu clube e sofreu toda série de preconceitos. Carlos Alberto

(Fluminense, 1916) passava pó-de-arroz no rosto para disfarçar o tom

de pele antes de cada partida. Miranda (América-RJ, anos 20) usava um

gorro durante os jogos para esconder os traços negros de seu cabelo.

O historiador e escritor Édison Carneiro, em 1964, em texto

publicado na 2ª edição de “O negro no futebol brasileiro”, diz que tão

deliberada era essa atitude racista dos grandes clubes ligados à elite da

capital federal (Flamengo, Fluminense e Botafogo) que nem mesmo se

importavam com o risco de derrota em partidas internacionais.

O preconceito não poupava ninguém. Primeiro grande ídolo da

Seleção Brasileira, o próprio Artur Friedenreich, filho de alemão com

uma negra, ficava horas antes de uma partida passando gomalina nos

cabelos a fim de alisá-los, com o objetivo de parecer um pouco branco.

Foi através dele que uma grande parcela de torcedores e do povo em

geral começou a perceber que o futebol não precisava ser de apenas

uma cor, nem só da elite.

Para alguns estudiosos, Friedenreich representa o ponto-chave

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9 2 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

na identificação do futebol com o ethos nacional. Com ele, o esporte e a

cultura, como um todo, começam a se entrelaçar de forma quase

inextricável em torno de uma idéia de mistura, de um país mestiço,

formado pela conjunção de múltiplas raças.

Depois de Friedenreich, ainda nos anos 20 e 30, muitos outros

negros e mulatos conseguiram brilhar no futebol graças a uma revolução

protagonizada pelo Vasco da Gama que foi campeão carioca, em 1923,

jogando de forma arrasadora com uma equipe praticamente formada

por negros e mulatos. A reação dos grandes clubes à vitória do time

suburbano foi imediata e causou uma cisão interna no futebol do Rio de

Janeiro com a fundação de uma outra entidade que reunisse os clubes

grandes e que lutava contra a profissionalização – processo que vinha

facilitando o acesso de mais negros aos clubes, uma vez que eles se

tornavam empregados e não sócios das associações esportivas.

Os clubes finos, de sociedade, como se dizia, estavam

diante de um fato consumado. Não se ganhava campeonato

só com times de brancos. Um time de brancos, mulatos e

pretos era o campeão da cidade. Contra este time, os

times de brancos não tinham podido fazer nada.

Desaparecera a vantagem de ser de boa família, de ser

estudante, de ser branco. O rapaz de boa família, o

estudante, o branco, tinha de competir, em igualdade de

condições, com o pé-rapado, quase analfabeto, o mulato e

o preto, para ver quem jogava melhor. (FERNANDES, apud

FILHO, 2003, p. 11).

Antes da profissionalização se efetivar de verdade, em meados

dos anos 30, surgiu o negro Feitiço, alçado por Mário Filho à condição de

“Imperador do Futebol” - muito antes de nosso jovem e contemporâneo

Adriano ganhar o mesmo apelido -, o que representou o fato de a Europa

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93Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

se curvar ao Brasil como noticiavam os jornais da época.

Mas é com Leônidas, o “Diamante Negro”, que a imagem de

Gilberto Freire de um futebol dionisíaco - expressando um País de

excessos, da multiplicidade, da hybris, da irracionalidade -, conseguiu

se fazer sentir mais claramente. Algo do tipo “o sangue negro

transformando em arte o que seria um simples esporte, a diferença do

futebol brasileiro com relação ao resto do mundo”.

Estas representações não eram assumidas como parte de nossa

identidade nacional somente por alguns eruditos, Freire incluso, mas

também começaram a fazer parte do senso comum, que entendia a

sociedade brasileira como fruto de uma mistura, a mesma que produzia

o clássico Domingos da Guia e o dionisíaco Leônidas, os principais

jogadores da década de 30, quando as concepções do que significaria

ser brasileiro e a noção de Brasil estavam em redescoberta.

Para além das paixões clubísticas, a democratização da

prática do futebol, materializada na ascensão de jogadores

negros e mestiços, permitiu que esse esporte viesse a

ocupar posição central na construção da identidade

nacional. Na ausência de um maior envolvimento brasileiro

em guerras – matéria-prima para a construção de fronteiras

de identidade na formação dos estados nacionais

unificados na Europa – o futebol forneceu um simulacro de

conflito bélico para o qual era possível canalizar emoções

e construir sentidos de pertencimento nacional.... Do

Estado Novo em diante... todos os regimes que governaram

o Brasil durante o seu ciclo nacional-desenvolvimentista

exploraram a chave do futebol para ajudar a construir e

consolidar nossa identidade nacional.... Em oposição ao

racismo aberto das velhas oligarquias, o novo discurso

oficial passou a valorizar a mestiçagem, associando-a aos

sucessos de uma ‘escola brasileira” de futebol que

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94 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

explicaria a nossa singular maneira de ser no mundo

(marcada pela criatividade, flexibilidade, informalidade e

sensibilidade plástica).(FERNANDES, apud FILHO, 2003, p.

13)

Este tipo de construção, reproduzida pelos novos narradores

(intelectuais e jornalistas esportivos), foi pioneiramente elaborada por

Gilberto Freire no artigo intitulado “Football mulato”4, publicado no

Diário de Pernambuco, em 17 de junho de 1938, por ocasião da

participação do Brasil na Copa da França:

Um repórter me perguntou anteontem, o que eu achava

das admiráveis performances brasileiras nos campos de

Strasburgo e Bordeaux. Respondo ao repórter... que uma

das condições de nosso triunfo, este ano, me parecia a

coragem, que afinal tivéramos completa, de mandar à

Europa um time fortemente afro-brasileiro. Brancos,

alguns, é certo; mas grande número, pretalhões bem

brasileiros e mulatos ainda mais brasileiros...

O nosso estilo de jogar futebol me parece contrastar com

o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa,

de astúcia, de ligeireza e, ao mesmo tempo, de

espontaneidade individual em que se exprime o mesmo

mulatismo de Nilo Peçanha, que foi até hoje a melhor

afirmação da arte política.

Os nossos passes, os nossos pitu’ s, os nossos

despistamentos, os nossos floreios com a bola, há alguma

coisa de dança ou capoeiragem que marca o estilo brasileiro

de jogar futebol, que arredonda e adoça o jogo inventado

pelos ingleses e por outros europeus jogado tão

angulosamente, tudo isso parece exprimir de modo

interessantíssimo para psicólogos e sociólogos o mulatismo

flamboyant e, ao mesmo tempo, o malandro que está hoje

em tudo o que é a afirmação verdadeira do Brasil. (FREIRE,

apud HELAL, 2001, pp. 30-31)

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95Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Mas o caminho trilhado pela reafirmação do negro no futebol

brasileiro reservava aspectos de dramaticidade e de tragédia nacional.

A derrota na Copa de 1950 reverteria o quadro otimista em relação à

mestiçagem, reacendendo velhos rancores racistas, em que os negros

foram culpados pela derrota e pelo fracasso da própria nação, conforme

o antropólogo Cesar Gordon Jr.

Para Mário Filho, a prova disto estaria nos bodes expiatórios,

escolhidos a dedo, e por coincidência, todos negros: Barbosa, Juvenal e

Bigode. Os brancos do escrete brasileiro não foram acusados de nada na

derrota frente ao Uruguai, no Maracanã,de acordo com o jornalista.

No fundo, o torcedor quer que o jogador seja melhor do

que ele... O jogador representa-o, representa seu clube,

sua cidade, seu Estado, sua Pátria. A derrota do jogador é

a derrota do torcedor. Quem perdeu em 50 foi o brasileiro.

Mais o brasileiro que não jogou do que o que jogou. (FILHO,

2003, p. 17)

Mas eis que viriam Pelé, Garrincha, Didi e muitos jogadores de

“cor”.

E vieram as conquistas nas Copas do Mundo e a hegemonia do

futebol brasileiro...

Para Mário Filho, nenhum negro, no mundo, contribuiu mais para

varrer barreiras raciais do que Pelé, que se tornou o ídolo do esporte

mais popular da Terra. “Quem bate palmas para ele, bate palmas para

um preto. Por isso Pelé não mandou esticar os cabelos: é preto como o

pai, como a mãe, como a avó, como o tio, como os irmãos. Para exaltá-

los, exalta o preto”.

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96 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Reflexões finais

Para ficar no tema futebol, mesmo com tantas conquistas de nossa

Seleção a partir da superação do “complexo de vira-latas”, conforme

colocava o dramaturgo e escritor Nelson Rodrigues, ainda é bastante

comum, apesar do respeito conseguido pelos negros no futebol mundial,

infelizmente, nos depararmos, na crônica esportiva e na postura

torcedora com atitudes racistas.

Vindas da torcida no caso do jogador Grafite (São Paulo), chamado

de “macaco” pela torcida argentina, ou dos próprios atletas em campo,

como recentemente demonstrou o caso envolvendo Jeovânio (Grêmio)

e Antônio Carlos (Juventude), estas notícias abrem espaço para reflexão.

Causa estranheza também que, questionado sobre estas atitudes racistas,

Ronaldo, o craque conhecido como o “Fenômeno”, declare-se triste com

isto e que se fosse negro se sentiria muito mal, quando seu genótipo é

exatamente bem outro. Mas quem somos nós para criticarmos se ele é

negro, pardo, mulato, moreno ou branco? Onde residem estas

classificações?

Muito da rivalidade entre Brasil e Argentina advém do racismo

que os hermanos sempre dedicaram aos nossos jogadores, como durante

a final da Copa Rocca, no final dos anos 40, que terminou com vários

jogadores expulsos e feridos, após a exibição de faixas que humilhavam

a nossa mestiça Seleção.

Na Europa dos dias de hoje, muitos jogadores, brasileiros ou não,

têm sofrido com manifestações racistas, o que levou o presidente da

FIFA, Joseph Blatter, a anunciar severas punições e uma nova legislação

para adotar um procedimento unificado contra o preconceito no futebol.

Racismo à parte, as características singulares do futebol brasileiro

e que, de certa forma, justificaram a criação de nossa identidade nacional

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são formadas por categorias que recebem valorações positivas como o

talento, o carisma, a visão de jogo, o oportunismo, a catimba e

principalmente o drible, uma espécie de simulação ou fingimento. Estes

elementos formadores do que internacionalmente se chama de “futebol-

arte”, mesmo positivamente, chegam a soar como racistas pelo fato de

atribuir qualidades como ginga, malandragem e catimba ao negro, pois

significaria imputar a ele, mais uma vez, características biológicas.

No Brasil, não é preciso vencer apenas, pois a torcida quer se

convencer de que está vendo o melhor futebol, digno das legítimas

tradições brasileiras. Basta lembrar as exibições da Seleção Tetracampeã,

que venceu a Copa de 1994, nos pênaltis, com um futebol frio e

pragmático adotado pelo técnico Carlos Alberto Parreira, e a Seleção

Canarinho de 1982, que o Mestre Telê Santana imortalizou mesmo na

derrota, mas que encantou o mundo nos gramados da Espanha.

Este estilo brasileiro de jogar talvez venha da “pelada”, daquilo

que o cantor e compositor Chico Buarque nos coloca como a matriz do

futebol sul-americano e, hoje em dia, mais nitidamente do africano,

praticado por moleques de pés descalços, no meio da rua, em pirambeira,

na linha de trem, dentro do ônibus, no mangue, na areia fofa, em qualquer

terreno pouco confiável. Em suma, “pelada” é uma espécie de futebol

que se joga, apesar do chão, com linhas imaginárias, onde o próprio gol

é uma coisa abstrata. “O que conta mesmo é a bola e o moleque, o

moleque e a bola”, completa Chico.

Talvez seja mais coerente atribuir que o nosso estilo de jogar

futebol é fruto de uma cobrança estética da sociedade brasileira, que

formula e transmite qual deve ser a prática ideal para os nossos padrões,

definindo quais são os valores dominantes que regem o nosso futebol,

bem como a imagem da nação por ela representada, como coloca o

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antropólogo Marcos Alves de Souza5.

“Se para fazer um samba com beleza é preciso um bocado de

tristeza”, como lembram Vinícius de Moraes e Baden Powell, e para brincar

o Carnaval é importante não perder de vista que ele é efêmero e acaba

na Quarta-Feira das Cinzas, com o futebol, a alegria de jogar é a nossa

maior marca. E de jogar bonito, como uma dança, um ritual. E se a

alegria e a beleza, a la Gilberto Freire, vêm do negro, nosso futebol é

negro e é belo, mas é também azul, branco, verde e amarelo. Somos

uma sociedade arco-íris, cromaticamente bela, brilhante e opaca, como

a íris e os olhos de Deus. E Deus, bem...

Deus é brasileiro!

Referências Bibliográficas:

FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. In: BASTOS, Elide Rugai:

Introdução ao Brasil: Um banquete no trópico. Lourenço Dantas Mota

(org). São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004.

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Mauad, 2003.

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In: MURAD, Maurício (et al.). Futebol e Cultura Brasileira. Rio de

Janeiro: UERJ, Departamento Cultural / SR 3, 1995.

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Ronaldo Helal, Antonio Jorge Soares, Hugo Luvisolo. Rio de Janeiro:

Mauad, 2001.

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ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira & Identidade Nacional. São Paulo:

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(org): Futebol: Espetáculo do século. São Paulo: Musa Editora, 1999.

Outras referências

Folha de S. Paulo, 26.02.2006 / http://www.folha.uol.com.br/fsp/mais/

fsp2602200601.htm

Notas:

1 Tribuna da Bahia, 08/06/2005, p 052 Negritude humana, humanidade negra3 Folha de S. Paulo, 26.02.2006 / http://www.folha.uol.com.br/fsp/mais/fsp2602200601.htm4 Diá rio de Pernambuco, 17.06.19385 Souza, Marcos Alves de. A Nação em chuteiras: raça e masculinidade no futebolbrasileiro. Brasília: UNB, 1996.

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Ano 1, nº 0, Outubro de 2006 Revista Independência

Título

Autor

Resumo

Pedro Batista,o Curador de Santa Brígida

Sebastião Heber Vieira CostaDoutor em Antropologia, professor da Universidade Estadual da Bahia (Uneb),

da Fundação Visconde de Cairu, da Faculdade 2 de Julho, Membro do

Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da Academia Mater Salvatoris

E-mail: [email protected]

Em 1945, aparecia em Santa Brígida, lugarejo próximo a Paulo Afonso,Bahia, a figura carismática de Pedro Batista. Ele lá se refugiou, depoisde ter passado por várias cidades do Nordeste. Em Alagoas, foiperseguido e preso, por conta de seus milagres. Mas aí ele encontraabrigo, sempre seguido dos seus adeptos. Pouco a pouco sua fama seespalha e, por conta do afluxo dos romeiros, as autoridades temem quese repita ali mais um episódio de Canudos. Ele é duramente acompanhadopelas autoridades. Mas vence a todos pela paciência. Até os políticoslocais se rendem a ele em busca de votos. Além dos atos religiosos, elese destaca pela ação social que empreende: mutirões, plantio, vendados produtos na feira. Maria Isaura P. Queiroz conheceu-o pessoalmentee o menciona na sua obra clássica sobre o Messianismo. Ele faleceu em11 de novembro de 1967.

Palavras-chave: messianismo, carisma, religião, política, social.

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INTRODUÇÃO

Quem me falou, por primeiro, sobre os acontecimentos místico-

religiosos da cidade de Santa Brígida foi o professor Edivaldo Boaventura.

Seus primeiros contatos com a cidade surgiram no tempo em que foi

Secretário da Educação do Estado da Bahia. Há duas datas que são

marcantes para a cidade: uma é a festa de São Pedro, dia onomástico

do Padrinho Pedro Batista, e a outra é o 11 de novembro, dia do aniversário

de morte do Beato, falecido em 1967.

Com Bastide, podemos dizer que o sagrado constitui “a metáfora

do social”, isto é, ele traduz o social sob a forma de imagens, e permite

aos indivíduos “captar” o social dando-lhe uma dimensão nova, sendo

ele próprio provocador de novidades1. Nesse sentido, o Padrinho Pedro

Batista preenche a tipologia dos messias populares, que surgiram no

Brasil, dentro da categoria do messianismo rústico, isto é, aquele que

está vinculado à vida rural do povo.

O PEREGRINO E SEU CARISMA

Depois de tanto peregrinar, sem ser compreendido, mas, ao

contrário, perseguido, preso, foi enxotado de um lado para o outro. Em

1945, fixou-se em Santa Brígida, povoado insignificante, no contexto do

seu tempo, pertencente a Jeremoabo. Ele encontrou um ambiente

desolador em todos os aspectos: econômico, social, moral. Claro que as

reações logo começaram, vindas de três níveis: do clero, dos médicos e

da Justiça. Pouco a pouco, as multidões acorrem em busca de alívio da

alma e do corpo. O povo vinha de onde ele já havia passado: Sergipe,

Pernambuco, Ceará e, sobretudo, Alagoas. Muitos vinham com a intenção

de visitá-lo, somente pedir a bênção, ou alguma cura, mas muitos outros

tinham a intenção de se instalar junto ao Padrinho. E logo ele teve que

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arrendar, alugar e até adquirir roças para instalar os seus seguidores.

Essa consciência dos poderes de messias em Pedro Batista, os

romeiros a têm, a ponto de uma beata, vendo os resultados das realizações

sócio-religiosas do Padrinho, suspirar dizendo: “Aqui é mesmo o céu”2.

Por tudo isso, foi muito apropriado o título de um documentário sobre a

vida do líder messiânico de Santa Brígida, realizado pelo IRDEB, em 1998,

intitulado “O Conselheiro que deu certo”.

O termo “carisma” foi introduzido na linguagem sócio-

antropológica por Max Weber para designar o poder específico de

postulação e exercício de autoridade sobre os outros. Os carismas são

muitos e diferentes, mas o tipo especificamente religioso é fundamental.3

A Madrinha Dodô, que fora copeira do Padre Cícero do Juazeiro,

após a morte dele, em 1934, volta à terra de origem, Água Branca, em

Alagoas. Lá ela conhece o Padrinho Pedro Batista. Ela é uma das primeiras

seguidoras, e que, após a morte dele, em 1967, assume uma liderança

espiritual até à sua morte, em 1998.

ALIENAÇÃO OU MELHORIA DE VIDA DOS ADEPTOS?

Hoje, a liderança espiritual do movimento está a cargo do senhor

Zezito Apóstolo da Silva, que lá chegou em 1961, convidado

insistentemente, desde 1959, pelo Padrinho, para assumir a função de

professor, atividade que já tinha em Água Branca, onde era professor

leigo. Apesar de ser analfabeto, e por isso nunca poder votar, o Padrinho

tinha uma visão ampla com relação à importância dos estudos para o

povo. Ele dizia: “Vamos rezar para Deus mandar alguém para cá”. Zezito

me contou que não queria ir, e o Padrinho soube disso, mas afirmou que

ele viria um dia. De fato, o professor se transferiu para Santa Brígida,

e, pouco a pouco, veio toda a família. E ele se tornou o braço direito do

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Padrinho.

Há uma justa crítica ao fenômeno religioso de que, determinadas

expressões, possam acarretar uma alienação do povo. Na verdade,

constata Maria Isaura que Pedro Batista “tinha como finalidade a melhoria

de vida de seus adeptos, e a religião se tornava o meio mais fácil de

atingi-la”4.

Os dons extraordinários do Beato atraíram mais e mais pessoas

ao povoado. A incessante presença dos romeiros fez o povoado ir se

multiplicando geometricamente e chegando a sua produção a ultrapassar

o município de Jeremoabo. A feira é sempre um termômetro para uma

região e a importância de um povoado se mede pela importância dela –

isso vale até hoje e até para as cidades maiores. O jornal O Estado da

Bahia, em 10 de julho de 1954, já dizia: “O progresso agrícola de Santa

Brígida, depois da chegada do velho Pedro, basta que se diga que a

produção de mandioca, de feijão e de milho, é superior ao consumo de

todo o município de Jeremoabo”.

Os progressos são visíveis. Além de lavoura, comércio e educação,

ele chegou a doar a fazenda Gameleira ao Governo Federal para que ali

fosse instalado o primeiro modelo de colonização para proporcionar aos

habitantes-romeiros os ensinamentos agrícolas, visando até a

mecanização da lavoura. Esse foi o primeiro embrião de reforma agrária

na região. Essa fazenda lhe fora cedida pelo Coronel João Sá, que a

negociou por um valor irrisório5.

UM “ESTADISTA” DO SERTÃO

A obra de Pedro Batista está configurada ao âmbito religioso, no

social, no administrativo, mas é inegável constatar que ele construiu

uma obra de engenharia política. Fez conchavos com a elite agrária do

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seu tempo. Como analfabeto não votava – era Dona Bilu quem escrevia

suas cartas, lia e respondia à sua correspondência. Fala-se que Getúlio

Vargas o considerava o maior político brasileiro do século XX e dele disse:

“Pedro Batista foi o político mais matreiro que o Brasil já teve”. No seu

Museu-Memorial, organizado na gestão da prefeita Rosália Rodrigues de

Freitas, e do seu sobrinho, vice-prefeito Antônio França, vê-se um

telegrama de Juracy Magalhães pedindo seu apoio político. Lá também

se encontra uma carta de Juscelino Kubitschek solicitando sua cooperação

para a campanha do General Lott. O Beato foi até Paulo Afonso para

recebê-lo.

A grande dúvida que paira é com relação às origens dele – ele

nunca falou e nem a revelou a ninguém. Mas Antônio França tem uma

tese que ele não nasceu em Alagoas, porque, pelo seu biótipo, ele não

era um nordestino, e teria nascido em Guaraqueceba, litoral do Paraná.6

Diz França: “Certa vez consegui contatar uma senhora de Curitiba, Elvira

Batista, que apontou Pedro Batista como um tio seu que foi para o

Nordeste e nunca mais voltou”.7

No documentário de Sérgio Muniz, “O povo do velho Pedro”,

filmado em 1967, lá o Beato deixa escapar, talvez inconscientemente,

já doente, o seu lado mandão. Apontando para a palma da mão, ele diz:

“Aqui todos têm que passar nessa mão. É rico, é pobre, é padre, tudo

tem que ter aqui”. É a sua dimensão política que, até o fim de sua vida,

esteve sempre bem presente.

O PADRINHO, UM MODELO A SEGUIR

Na verdade, Pedro Batista foi o grande provedor do seu povo.

Maria Isaura compara-o a “uma espécie de banco dos seus romeiros”8.

Ele financiava o que o povo precisava, e isso sem juros. Mas toda essa

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fortuna vinha das múltiplas doações dos seus romeiros.

Qual a base para o seu sucesso, qual o segredo para a sua

performance? A chave do seu segredo está no fato de nunca ter agido de

forma revolucionária, nunca ter invadido terras. Com muita habilidade

fez alianças com os líderes políticos da sua região, e pedia sempre licença

para morar. Em contrapartida, favorecia com votos os seus protetores,

para a perpetuação dos políticos no poder. Pode-se dizer que esse era

“voto de cabresto”, sacramentado pela fé9. Havia um acordo tácito entre

ele e o Coronel João Sá. Logo, ao chegar ao povoado, os romeiros tiravam

seus títulos de eleitor, a ponto de Santa Brígida decidir as eleições

municipais de Jeremoabo. Lindoaldo Alves de Oliveira, “Seu Lindo”, ex-

prefeito, explica: “Aqui só eram duas urnas, apelidadas de ‘bomba

atômica’, pelo poder de aniquilar os adversários. Nas eleições de 1954,

foram contados mais de 300 votos em Santa Brígida, só havia dois contra

o coronel João Sá”, conta ele10.

Há uma conseqüência nas atitudes e hábitos, na vida moral, nos

costumes dos fiéis, como resultado da pregação dos messias. Com Pedro

Batista, essa tônica foi marcante. Viver ao lado do Padrinho era segui-lo

como modelo. A maneira dos antigos romeiros se vestirem está em voga

até os dias de hoje: as mulheres de branco, com lenço e vestidos com

manga comprida. Mesmo aos homens havia essa recomendação – até

hoje Zezito Apóstolo só usa camisas de mangas compridas. Como Pedro

Batista era celibatário, muitos seguiam o mestre nesse costume, sendo

ainda hoje, na cidade, motivo de glória alguém se apresentar como

“moço ou moça velha”.

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107Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

CONCLUSÂO

A grande verdade de tudo que foi relatado, é que, nas expressões

da religião do povo, e o messianismo de Pedro Batista é um deles, essa

religiosidade ajuda os pobres a suportarem a vida – não seria criminoso

tirar-lhes essa expressão de fé sem substituir e proporcionar em troca,

de verdade, algo melhor?11

Pessoalmente, tenho me perguntado sobre a continuidade da obra

do Beato. Já perguntei a pessoas ligadas a esse interesse quem seria a

pessoa que daria continuidade a essa obra quando Zezito não puder

mais desempenhar essa função. As pessoas não vêem um nome com as

aptidões dele. Mas talvez essa seja uma preocupação por demais

racionalista, porque, diferentemente de Canudos, pelas razões que a

história mostra, há movimentos religiosos, como o do Padre Cícero, que

teve autonomia após a sua morte e nunca foi dissolvido

Não devemos fazer interpretações reducionistas. René Ribeiro,

citando Sylvia Thrupp, relata as conclusões do estudo comparativo dos

messianismos: “Em toda cultura, o pensamento em que se mantém o

sonho milenarista, tem uma lógica própria, que não é reflexo automático

das situações sociais” 12

Referências Bibliográficas:

AUGÉ, M. Não-lugares: introdução a uma antropologia da

supermodernidade. Campinas: S. Paulo,1977

CORREIO DA BAHIA. Pedro Batista – venerado em Stª Brígida, o

peregrino foi um bem-sucedido ‘estadista do sertão’. Caderno Correio

Repórter. Salvador, 18/11/2001

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HOONAERT, E. Antônio Conselheiro, negociador do sagrado. In: História

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da UFPE. 2001, p. 39-77

LEPARGNEUR, H. Religiosidade popular em questão. In: A religião do

povo. S.Paulo: Paulinas, 1978, p.95-105

QUEIROZ, Mª Isaura Pereira. O messianismo no Brasil e no Mundo.

Prefácio: Roger Bastide. 2ª ed. São Paulo: Alfa Ômega,1976

OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro. O catolicismo do povo. IN: A religião do

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RIBEIRO, R. Antropologia da religião e outros estudos. Recife:

Massangana, 1982

ROXO, Roberto M. Religião, religiosidade, secularização. In: A religião

do povo.S.Paulo: Paulinas, 1978, p. 106 - 113

STRIEDER, I. Religiões: ópio ou libertação. In: História das religiões no

Brasil. Org. Sylvana Brandão. Recife: Ed. UNiversitária da UFPE, 2002,

p.633-666

WAACH, J. Sociologia da religião. Trad. Attílio Cancian. São Paulo:

Paulinas, 1990

Page 110: Revista Independência 2007

109Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Notas:

1 BASTIDE, R. A pud QUEIROZ, Mª I. P. O messianismo no Brasil e no mundo.2. ed.S.Paulo: Alfa Ômega 1977, p.XXI2 QUEIROZ, op. cit. p. 3053 WAACH, J. Sociologia da religião.Trad. Attílio Cancian.A. Paulo:Paulinas,1990, p.404.4 QUEIROZ, op. cit.p.3085 Correio da Bahia, Pedro Beato. Caderno Correio Repórter, 11/11/2001, p.66 Informação verbal.7 Correio da Bahia, op. cit. p. 6.8 Id. p 39 Id. p 410 Id. p.411 LEPARGNEUR, H. Religiosidade popular em questão.In: A religião do povo. S. Paulo:Paulinas,1978,p. 10312 RIBEIRO, R. Antropologia da religião e outros estudos.Recife: Massangana, 1982,p.233.

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Ano 1, nº 0, Outubro de 2006 Revista Independência

Título

Autor

ResumoEste artigo comenta sobre a importância do papel conjunto da escola eda família na formação da criança e do jovem para a vida. Destaca ovalor da formação como fator muito mais importante do que ainformação massiva voltada para levar os jovens a uma faculdadedescomprometida com a formação cristã, com a ética e a cidadania.Mostra a preocupação com a necessidade de desenvolver nas crianças enos jovens os princípios de solidariedade e o reconhecimento da suaresponsabilidade social.

Palavras-chave: Formação, responsabilidade social, solidariedade,exclusão social.

A importância da educação naformação do jovem engajadoem movimentos de comunidade

Sérgio MirandaAdministrador de Empresas, especializado em Gestão Organizacional,autor do livro A Eficácia da Comunicação, professor universitário e DiretorAdministrativo da Faculdade 2 de Julho.E-mail: [email protected]

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Com o desenvolvimento tecnológico que o mundo vem

experimentando nas últimas décadas, as mudanças ocorrem cada vez

mais em menores espaços de tempo e, sob o signo da globalização, esse

desenvolvimento vem arrastando e transformando tudo que encontra

pela frente. Além da tecnologia, da economia, da política, da educação,

entre outros aspectos, os costumes também estão mudando. As pessoas

que moram nas cidades, por mais simples que sejam, não conseguem

passar ao largo sem participar, de alguma forma, da evolução dos tempos

(e aqui abrimos um parêntese para salvaguardar as pessoas simples do

campo que parecem ainda viver na idade média, longe da civilização e

de tudo que lá ocorre).

A juventude, como instrumento de transformação, vivendo em

contínuo processo de mudanças, não poderia estar fora desse contexto.

O episódio das manifestações dos estudantes secundaristas contra o

aumento das passagens de ônibus, em Salvador, parecia uma reedição

dos “caras pintadas” lutando por seus direitos. Mas, infelizmente, nem

todos estavam ali com os mesmos propósitos. Muitos queriam apenas o

ôba-ôba, a farra e a suspensão “oficial” das aulas.

O novo tempo requer um jovem engajado, participativo, cidadão,

consciente dos seus direitos e deveres, que seja coerente, posicionado

frente aos problemas políticos do nosso País e do mundo, que esteja

ligado com as questões ambientais e, sobretudo, que reconheça a sua

responsabilidade social, mantendo-se alerta diante da realidade das

pessoas que vivem às margens da sociedade e excluídos por ela.

Para desenvolver um assunto como este, é necessário que façamos

uma contextualização da educação recebida pelos nossos jovens, a

preocupação familiar e escolar com a sua formação ética e moral e o

compromisso pessoal com a realização de trabalhos sociais e solidários.

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113Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Essa realidade nos remete ao importante papel do educador e da

escola na formação do jovem para a vida, e não somente para o

vestibular. Do que vale ser um bom profissional com um excelente curso

de graduação e pós sem que exista uma preocupação com a formação

ética e moral? De que adianta ser um profissional liberal abastado ou um

grande comerciante ou empresário, se a visão está deturpada pelo lucro

excessivo ou pela gana de levar vantagem em tudo? Visões do tipo “é

necessário alguém perder para outro ganhar”, ou “meu pai paga a escola,

por isso eu faço o que quero aqui dentro” são formas altamente

combatidas pela ética, porém, alimentadas em muitas famílias da nossa

sociedade, no momento em que não impõem às suas crianças,

adolescentes e jovens os limites necessários, transformando-os em

futuros sonegadores de impostos ou em marginais, como os filhinhos de

papai de Brasília que queimaram vivo o índio Galdino.

Muitas escolas, hoje, se preocupam muito mais com a parte

estética, o luxo e instalações que mais parecem um shopping na

expectativa de atrair alunos das classes sociais mais altas, demonstrando

uma visão muito mais empresarial que educacional. Nesse viés, voltam-

se muito mais para o ensino e o preparo dos jovens para enfrentar a

concorrência do vestibular, achando que isso é suficiente e necessário

para a sua educação do que com a importância da formação global do

indivíduo. Desligam-se da importância da formação do caráter, da

disciplina, da necessidade de imposição de limites, do respeito ao

próximo e à família e da orientação religiosa, tão importante e que

tanto contribui para que o jovem possa perceber e internalizar a

necessidade de se integrar, solidarizar, se envolver e se comprometer

com movimentos sociais que visam reduzir as diferenças entre as

pessoas, desenvolvendo, assim, a sua responsabilidade social.

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114 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

A conscientização solidária do jovem deve começar dentro da

própria família, mas, infelizmente, a célula mais importante da sociedade

está cada vez mais degradada. As estatísticas revelam que, cada vez

mais, casais se separam e marido e mulher tornam-se inimigos,

promovendo verdadeiras batalhas, destruindo o pouco que restava do

espírito de integração familiar. Filhos são criados sem a presença

importante e fundamental do pai ou da mãe, gerando indivíduos muitas

vezes desequilibrados emocional, sexual e socialmente, impedindo o

desenvolvimento do espírito de agregação e unidade familiar na mente

da criança e do jovem. Como um jovem pode internalizar aquele princípio

se não o vivenciou? Dificilmente ele vai querer se engajar em movimentos

comunitários ou solidários porque a sua mente não está aberta nem

preparada para esse tipo de atividade. Muito pelo contrário, ela estará

susceptível a receber e acatar idéias que confrontem ou desafiem a

família, porque se considera vítima do que sobrou dela e então se torna

totalmente vulnerável às drogas, ao crime e a outras desgraças.

Nesses tempos de adversidade, quando os próprios pais não têm

afinidade ou nunca participam de movimentos comunitários, mesmo

porque a maioria abandona a igreja logo após a realização da “primeira

comunhão”, como, então, orientar os filhos a participarem? A maioria

dos jovens, por falta de uma formação religiosa, acha que participar de

trabalhos sociais seria, na linguagem deles, “pagar mico”. Daí a

importância do trabalho de formação feito pela escola, até para compensar

o desconhecimento religioso desses pais.

O distanciamento entre a família e a igreja e, conseqüentemente,

da formação religiosa, seja qual for o credo ou a denominação, tem sido

um ponto de vulnerabilidade para os filhos em relação às drogas e ao

crime. As pessoas que têm vivência em movimentos familiares cristãos,

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115Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

grupos de jovens, escolas bíblicas, entre outros, dificilmente enveredam

por caminhos que levam à marginalidade. Nesses ambientes, os jovens

estão muito mais preparados e disponíveis para a realização de um

trabalho solidário porque desde crianças são conscientizados da

necessidade de amar e ajudar ao próximo e cumprir a orientação do

próprio Cristo que diz, no Evangelho segundo Mateus: “Sempre que o

fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes”.

A Bíblia está recheada de citações que estimulam o trabalho

comunitário, a solidariedade e a responsabilidade social. Citaremos

apenas duas delas, que nos mostram a necessidade de uma tomada de

consciência e um questionamento pessoal: a primeira está na epístola

de Tiago que afirma: “Mostra-me o tamanho das suas obras e eu te

direi o tamanho da sua fé”; e, a outra, na carta do apóstolo Paulo aos

efésios: “A salvação não vem das obras, para que ninguém se glorie,

mas somos criados por Deus, em Cristo, para praticarmos boas obras”.

É muito cômodo e prático colocar a culpa de toda essa situação no

Governo e achar que ele tem obrigação de resolver todo o problema

social do país e ficar esperando o resultado. E a nossa consciência, onde

é que fica? Sabemos que a solução está muito distante e que o governo

não tem condições de gerar emprego e renda para uma população tão

grande e despreparada para o trabalho. Há gente pobre e necessitada

espalhada por todos os estados da Federação, principalmente na nossa

sofrida Região Nordeste, tão maltratada pela seca. O Governo Lula iniciou

a campanha do Programa Fome Zero abrindo campos de ação e espaços

para qualquer pessoa ou organização que queira ajudar os necessitados.

É necessário, porém, um envolvimento de toda a nação, não só daqueles

que têm financeiras para fazer alguma coisa, mas todos os que têm

disponibilidade no coração para ajudar uma pessoa que passa fome. E

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116 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

não é só contribuir financeiramente, mas doar um pouco de si, do seu

trabalho, seja em que área for, qualquer que seja o seu esforço será

bem vindo. É preciso arregaçar as mangas e começar já.

Muitas comunidades religiosas de várias denominações, escolas,

associações de bairros, centros espíritas, confrarias, organizações do

terceiro setor (ONG), entre outras, vêm promovendo trabalhos

comunitários em diversas áreas da sociedade, principalmente nos bairros

de periferia e junto a populações carentes das cidades e da zona rural,

atuando em diversas áreas como saúde, educação, alimentação,

abastecimento de água, saneamento, higiene, mercado de trabalho formal

e informal, moradia. Não importa a cor, o credo, o sexo, a raça ou o que

for, o importante é que o jovem e todos nós possamos estar engajados,

de alguma forma, com qualquer disponibilidade de tempo ou de recursos,

em qualquer tipo de programa ou projeto, em qualquer entidade do seu

agrado, que vise a reduzir a diferença existente entre os seres humanos

ou que possa amenizar a fome daquela parcela mais excluída da sociedade

ou a dor daqueles que sofrem qualquer tipo de discriminação, doença ou

problemas sociais.

Educadores: façamos a nossa parte preparando as nossas crianças

e nossos jovens para a vida, formando cidadãos conscientes, pacíficos

e solidários, dispostos a lutar pela igualdade social no Brasil e no Mundo.

Jovens! Adolescentes! Crianças! Homens e mulheres! Unamos as

nossas mãos por um mundo melhor, mais justo e mais igual.

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Ano 1, nº 0, Outubro de 2006 Revista Independência

Título

Autor

ResumoO artigo é de teor estritamente filosófico. Elaborado como apresentaçãode um projeto de estudo, seu objetivo é situar a questão da relaçãoentre fala e gesto na proposta fenomenológica de Merleau-Ponty. O textoapresenta uma breve introdução acerca da tríade fundamental da obrado autor; articula três noções fundamentais da sua fenomenologia –comportamento, corpo e carne; assinala nesse amálgama a emergênciade uma “ciência da expressão” que parte da descrição do gesto e dafala; destaca as idéias elementares de Merleau-Ponty acerca dalinguagem como expressão. Observa-se, na consideração final desseestudo preliminar, que a obra de Merleau-Ponty só se deixa aprender nomovimento de conjunto, fazendo valer o princípio estrutural: “cadaparte só tem sentido quando atuando em conjunto com as demais”.

Palavras-Chave: Linguagem, corpo, gesto, fala, signo.

A fala e o gesto na fenomenologiade Merleau-Ponty

Márcia SaieviczEspecialista em Educação Estética, Semiótica e Cultura.

Professora da UNEB – Campus IX, Barreiras / BA e da Faculdade 2 de Julho.

E-mail: [email protected]

10

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118 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Nossa visão sobre o homem continuará a ser superficial

enquanto não remontarmos a essa origem, enquanto não

encontrarmos, sob o ruído das falas, o silêncio primordial,

enquanto não descrevermos o gesto que rompe esse

silêncio. A fala é um gesto, e sua significação um mundo.

Merleau-Ponty, 1999

No livro A Estrutura do Comportamento (1942) se encontra exposto

o eixo temático do pensamento merleau-pontyano; os conceitos aí

examinados determinam o solo de ancoragem das significações

primordiais que opera na sua fenomenologia. Na introdução dessa

publicação, Merleau-Ponty escreve: “Nosso objetivo é compreender as

relações entre a consciência e a natureza, – orgânica, psicológica, ou

mesmo social” (Merleau-Ponty, 1975: 29). Desse modo anuncia a

preocupação fundamental do seu pensamento que será a temática central

de toda a sua obra, a saber: as relações entre homem e mundo.

Merleau-Ponty na publicação de 1942 elege a noção de

comportamento como ponto de partida de sua investigação, pois ao seu

ver essa é uma noção neutra frente à distinção do “psíquico” (alma) e

do “fisiológico” (corpo) – e, portanto, escapa às amarras do idealismo e

do empirismo. O exame do comportamento humano é feito, então, a

partir da “descrição” científica e filosófica da experiência.

Merleau-Ponty apresenta várias concepções da Psicologia –

behaviorismo, gestaltheorie, psicanálise, para demonstrar a fragilidade

de seus pressupostos epistemológicos. Sua crítica se dirige tanto às

tendências empiristas da ciência quanto ao idealismo das filosofias da

consciência. Essa é uma das marcas características da fenomenologia

merleau-pontyana: negar as polaridades do pensamento (objetivismo,

subjetivismo / idealismo, empirismo) e privilegiar os enigmas e

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119Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

paradoxos, isto é, o caráter ambíguo da experiência2.

A recusa radical às concepções do comportamento como um

processo mecanicista de causa e efeito (crítica ao behaviorismo), a

recusa à experiência científica como ponto de apoio para as teorias

psicológicas (crítica a gestaltheorie) e, juntamente, a recusa às

tendências filosóficas idealistas que pressupunham a natureza como uma

unidade objetiva constituída face à consciência, levam Merleau-Ponty a

descrever o comportamento como possuindo intenção e sentidos, e a

elaborar a noção de estrutura, a partir da qual o comportamento humano

será compreendido na complexidade de seu enraizamento na experiência

vivida.

Na sua estrutura, o comportamento humano não prevê as

minuciosidades dos seus gestos, não se orienta conforme uma

representação clara e distinta dos movimentos que o definem. O

comportamento determina-se na sua “familiaridade perceptiva” com o

mundo, pelo modo como se está “instalado nele”. Compreendido a partir

da noção de estrutura e não de uma “consciência instituinte”, o

comportamento revela a ordem da gestualidade natural, solo de onde

emerge a “gesticulação cultural”.

O exame do “comportamento” dá lugar ao exame da percepção

na obra mais célebre de Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção

(1945). No Prefácio, o autor esclarece o propósito da fenomenologia:

compreender a relação homem e mundo a partir de sua “facticidade”,

isto é, tal qual aparece no “mundo vivido” – neste, aparência e essência

não se distinguem; aliás, aí “as coisas mesmas” mostram sua essência.

Nesse sentido, a fenomenologia tal como a descreve Merleau-Ponty é

uma filosofia “para a qual o mundo já está sempre ‘ali’, antes da reflexão,

como uma presença inalienável” (Merleau-Ponty, 1999: 02). Destarte, a

Márcia Saievicz

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120 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

descrição na Fenomenologia da Percepção volta-se para a “experiência

natural e ingênua” (não mais para a experiência científica), pois seu

esforço todo consiste em reencontrar o “contato ingênuo com o mundo”.

Merleau-Ponty recorrerá ainda às teorias da psicologia, entretanto, não

mais para criticá-las e, sim, como fontes de confirmação de seu próprio

pensamento.

No capítulo da Fenomenologia da Percepção dedicado ao

tratamento do tema da linguagem, o título enuncia O Corpo como

Expressão e a Fala. O tema da linguagem é deslocado de uma compreensão

representativa intelectual e situado ao lado dos fenômenos do corpo,

colocando-o em uma dimensão existencial. A idéia sumária de Merleau-

Ponty é afirmar que as palavras são fundamentalmente um

prolongamento do corpo, assim como os gestos: “A fala é um verdadeiro

gesto e contém seu sentido, assim como o gesto contém o seu” (Merleau-

Ponty, 1999: 49).

O uso da linguagem é descrito por Merleau-Ponty do mesmo modo

que o emprego do corpo na experiência do “mundo vivido”. Do mesmo

modo como corpo é usado espontaneamente, sem necessidade de que

cada gesto venha acompanhado da explicitação de seus detalhes, assim

também são empregadas as palavras. Destarte, na gestualidade

(movimento do corpo) descobre-se a expressão originária que constitui

toda linguagem.

O importante nessa breve apresentação das duas primeiras

publicações de Merleau-Ponty é mostrar que entre ambas há uma

articulação essencial, “um reenvio de análise e fundação”. J. de A. Correa

refere-se ao pensamento nelas contido como “filosofia do corpo” que

revela “o ser-humano em sua originalidade de ser-no-mundo e o corpo

próprio como expressão desta nova realidade” (Correa, 1975: 14). O

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121Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

“corpo vivido” ou “corpo próprio” diz respeito ao modo pelo qual estamos

instalados no mundo, recebendo e doando significações. A noção de

corpo próprio, na publicação de 1945, expressa a compreensão da

“consciência perceptiva solidária com o corpo” que já aparecera na

publicação de 1942. Correa comenta que a Estrutura do Comportamento

e a Fenomenologia da Percepção elaboram “uma fenomenologia que já

contém em si o movimento que possibilitará sua releitura, sua

‘explicitação ontológica’ tal como Merleau-Ponty nota em O Visível e o

Invisível” (Correa, 1975: 14).

O livro citado, O Visível e o Invisível (1964), reúne os últimos

escritos de Merleau-Ponty e nele o autor enuncia seu objetivo nos

seguintes termos: “O que nos importa é precisamente saber o sentido

de ser do mundo” (Merleau-Ponty, 1971:18). O livro, publicado

postumamente, inicialmente se intitularia “A Origem da Verdade” e

destinava-se a ser um livro “sobre a ontologia pré-reflexiva, mundo do

ser bruto ou selvagem”. Nesse escrito, a noção de corpo dá lugar à

noção de carne entendida como “uma interioridade que não se reduz à

imanência da consciência, mas que não se explica pela exterioridade de

mecanismos físico-fisiológicos” (Chauí, 1989: XI). A carne é expressão

do fenômeno da reversibilidade “corpo–mundo” que revela a

peculiaridade das relações perceptivas: a ambigüidade. Corpo–mundo

constitui o “campo de presença” onde emergem todas as relações da

“vida perceptiva” e do “mundo sensível”. Escreve Merleau-Ponty:

Antes da ciência do corpo – que implica a relação com

outrem –, a experiência de minha carne como ganga de

minha percepção ensinou-me que a percepção não nasce

em qualquer lugar, mas emerge no recesso de um corpo

(1971: 21).

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122 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

A relação “corpo sensível – mundo sensível” constitui o campo da

expressividade. Ao entrelaçamento corpo-mundo Merleau-Ponty outorga

o “poder doador de significados”. A partir do desenvolvimento da noção

de carne, a potência de significar é descoberta no imbricamento da

expressão e do silêncio. Lê-se em “O Visível e o Invisível”: “Esta nova

reversibilidade e a emergência da carne como expressão constituem o

ponto de intersecção do falar e do pensar no mundo do silêncio” (Merleau-

Ponty, 1971: 140).

Segundo o próprio Merleau-Ponty o livro “O Visível e o Invisível”

se destinaria a “elaborar com todo o rigor” os fundamentos filosóficos

dos seus trabalhos anteriores numa “teoria concreta do espírito que o

mostrará numa relação de troca com os instrumentos de que ele se

vale” (In: Lefort, 2002: 08). Lefort ao comentar essa intenção expressa

de Merleau-Ponty indica que essa

“teoria concreta do espírito devia se organizar em torno

de uma idéia nova de expressão e da análise dos gestos ou

do uso mímico do corpo, bem como de todas as formas de

linguagem, até as mais sublimadas da linguagem

matemática” (Lefort, 2002: 08).

Merleau-Ponty pretendia elaborar uma filosofia e ciência da

expressão que começasse por tratar da dimensão gestual da linguagem;

que abordasse os signos encarnados no movimento de significação. A

linguagem é descrita por ele como “encarnação de significações”, “campo

ilimitado de possibilidades de expressão”, onde “a palavra não é a

tradução de um sentido mudo, mas criação de sentido”. O compromisso

da palavra não é com uma significação já dada e, sim, com uma que

está por se fazer.

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123Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Destarte, a tarefa da filosofia fenomenológica é perseguir o que

Merleau-Ponty denomina a “ordem da espontaneidade” do ser da qual

toda expressão busca libertar o que aí se encontra cativo e, para ele a

fenomenologia da palavra e do gesto é, entre todas as outras, a mais

apta para revelar-nos essa ordem. Em A Linguagem Indireta e az Vozes

do Silêncio o autor escreve:]

Se o próprio do gesto humano é significar para além de sua

simples existência de fato, inaugurar um sentido, daí

resulta que todo gesto é comparável a qualquer outro,

que se prendem todos a uma única sintaxe, que cada um

deles é um começo (e uma seqüência), anuncia uma

seqüência ou recomeços [...] na medida em que vale mais

do que sua mera presença, e nisso é de antemão aliado ou

cúmplice de todas as outras tentativas de expressão.

(Merleau-Ponty, 1991: 71)

A compreensão fenomenológica da linguagem como expressão está

alicerçada em três importantes idéias: 1) a idéia de que as palavras não

ganham seu sentido como elementos isolados e, sim, como atos

convergentes de expressão carregados de significação; 2) a idéia de

que a expressão nunca é total; 3) a idéia de que o ato de expressão não

é apenas uma operação secundária, ou um mero meio de comunicação,

mas é a aquisição que nós fazemos das significações.

Na exposição “Sobre a Fenomenologia da Linguagem”, publicada

em Signos, de 1960, Merleau-Ponty afirma que a fenomenologia institui

uma nova concepção do ser da linguagem, uma concepção que é “lógica

encarnada”. Com isso se compreende que a fenomenologia se ocupa

mesmo da linguagem no espaço da contingência, onde os acasos se

coadunam em um sistema orientado, como se estivesse realizando uma

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124 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

continuação do ocasional em uma totalidade que possui sentido. Na parte

do texto intitulada Quase-corporalidade do significante, Merleau-Ponty

novamente explora a idéia de que a significação veiculada por cada

signo só diz respeito a sua diferença em relação aos demais, porém não

é a simples soma deles que constituem o valor expressivo da fala.

O valor expressivo de uma língua não é dado pelo mero

encadeamento verbal dos elementos que essa língua reconhece como

seus, mas se constitui pelo modo como os signos da língua dirigem-se a

uma significação que sempre os ultrapassa. É como se as palavras

surpreendessem o sujeito mesmo que fala e lhe ensinasse o seu próprio

pensamento, na medida em que uma ponte se instaura entre a intenção

muda e a própria palavra em um domínio da significação encontrado no

vivido.

Do mesmo modo que temos uma certa “consciência significativa”

dos nossos gestos e corpos quando nos dirigimos ao mundo, ainda que

não tenhamos a representação explícita de todos os elementos que nos

circundam, a palavra também contém uma significação que é encontrada

na “própria textura do gesto lingüístico”, ou seja, a palavra está

circunscrita em um contexto que a engloba e ultrapassa (como o corpo

no mundo), bastando apenas uma hesitação na voz ou uma mudança na

sintaxe para modificar a significação que aí jaz. Escreve Merleau-Ponty:

A significação anima a palavra como o mundo anima meu

corpo: por uma surda presença que desperta minhas

intenções sem se mostrar abertamente diante delas. A

intenção significativa em mim (assim como no ouvinte que

a reencontra ao ouvir-me) não é, no momento em que

ocorre – mesmo que depois venha a frutificar em

‘pensamentos’ –, senão um vazio determinado a ser

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125Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

preenchido por palavras; o excesso daquilo que quero dizer

sobre o que é ou o que já foi dito. (Merleau-Ponty, 1991:

94).

O que se realiza no fenômeno da fala, na experiência de seu uso,

é que ao fazer uma intenção significativa ainda muda ganhar corpo em

uma palavra, revestindo-a de um sentido, a expressão mostra o

pensamento não só ao ouvinte, mas ao próprio falante, que só o conhecia

na sua mudez. Desse modo, a palavra (a fala) é compreendida como o

momento da encarnação de uma intenção de significar em uma cultura,

lembrando que é preciso “admitir a ordem da cultura ou do sentido

como uma ordem geral do advento” ((Merleau-Ponty, 1991: 71).

É em A Prosa do Mundo (1969) que o propósito de tratar dos

problemas da expressão aparece claramente. Essa coletânea de ensaios

sobre a linguagem, publicados postumamente, se destinavam a uma

obra que Merleau-Ponty deixou inacabada. Conforme Lefort, existem

razões para se acreditar que “o autor a abandonou deliberadamente e

que não desejou, em vida, levá-la a seu termo”, porém, a interrupção

desse trabalho não diminui sua importância na compreensão da obra do

autor, ao contrário, os escritos que estão aí reunidos podem lançar uma

luz sobre os problemas da linguagem e da expressão.

Merleau-Ponty declara pretender “mostrar que a linguagem jamais

é a simples vestimenta de um pensamento que se conhece a si mesmo

com toda a clareza (In: Lefort, 2002: 08). Seu estudo denuncia o “fantasma

de uma linguagem pura” como instrumento de designação e prossegue

por uma reflexão sobre a expressão e a característica indireta de toda

linguagem. A linguagem é sempre alusiva e nisso reside seu enigma:

nela a significação sempre ultrapassa o significante, e este sempre

engendra novas significações. Toda operação expressiva busca “recuperar

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126 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

o ser do mundo”, porém, “a idéia de uma expressão completa é um

contra-senso”.

O caráter indireto da linguagem é o principal tema do artigo que

Merleau-Ponty extraiu de sua obra inacaba e publicou sob o título A

Linguagem Indireta e as Vozes do Silêncio (1952). Partindo da

consideração de Saussure acerca dos signos que só adquirem um sentido

quando relacionados a outros signos, explora a idéia de que as palavras

teriam pouco ou nenhuma significação se tomadas isoladamente. A fala

aparece como uma tessitura de palavras onde se entrelaçam os “gestos

lingüísticos”, sendo que o sentido emerge apenas “na interseção e como

que nos intervalos das palavras” (Merleau-Ponty, 1991: 42). Para

apreender a linguagem é necessário deixar-se envolver por seu

“movimento de diferenciação e de articulação, por sua gesticulação

eloqüente” (Merleau-Ponty: 1991: 43).

Ao referir-se ao poder da linguagem de ir “além dos ‘signos’ rumo

ao sentido deles”, Merleau-Ponty fala de uma “opacidade da linguagem”,

porém, é a própria linguagem que “desvela seus segredos” e, nesse

sentido “é inteiramente mostração”. Para compreender as palavras basta

deixar-se envolver por sua vida, “instalando-as no entrecruzamento dos

gestos lingüísticos como aquilo que estes mostram de comum acordo”

(Cf. Merleau-Ponty, 1991, 43). Escreve Merleau-Ponty:

Muito mais do que um meio, a linguagem é algo como um

ser... O sentido é o movimento total da palavra, e é por

isso que nosso pensamento demora-se na linguagem. Por

isso também a transpõe como o gesto ultrapassa os seus

pontos de passagem. (Merleau-Ponty, 1991: 43).

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127Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

A Linguagem Indireta e as Vozes do Silêncio o fenomenólogo

apresenta uma comparação entre o modo de expressão literário e o

pictórico que faz transparecer com agudeza a gestualidade testemunha

e cúmplice de toda expressão. A palavra como o gesto, na descrição

merleau-pontyana, aparecem como “modulação de uma certa maneira

de existir, que é originariamente sensível” e como modos de expressão

(“experiências reveladoras”) da latência e da transcendência do real.

Aparece assim o enlace da percepção e da expressão que, na perspectiva

fenomenológica, constituem atos primários da instituição cultural.

Qualquer percepção, qualquer ação que a suponha, em

suma, qualquer uso humano do corpo já é expressão

primordial (...) operação primária que de início constitui

os signos em signos, faz o expresso habitar neles apenas

pela eloqüência de sua disposição e de sua configuração,

implanta um sentido naquilo que não tinha, e que assim,

longe de esgotar-se na instância em que ocorre, inaugura

uma ordem, funda uma instituição, uma tradição...

(Merleau-Ponty, 1991: 70).

Esse artigo e A Prosa do Mundo, que lhe deu origem, constituem

um importante núcleo do pensamento de Merleau-Ponty onde a linguagem

e a sua dimensão gestual figuram como o solo mesmo das descrições

fenomenológicas que buscam compreender a relação homem e o mundo

a partir da sua facticidade. A fenomenologia da percepção e da expressão

não só “reinstala” o homem no mundo sensível como “restaura” o corpo

como expressão espontânea. O segredo da ação expressiva já se mostra

nos gestos mais simples e se prolifera nas diversas expressões da cultura.

Merleau-Ponty escreve:

Page 129: Revista Independência 2007

128 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Digamos mais genericamente que a tentativa contínua da

expressão funda uma única história – como o domínio do

nosso corpo sobre todos os objetos possíveis funda um

único espaço. (Merleau-Ponty, 1991: 73)

A compreensão do fenômeno da palavra e do gesto proposta por

Merleau-Ponty implicará em importantes conseqüências tanto para a

filosofia da linguagem quanto para as ciências semiológicas. O estudo

da gestualidade da linguagem, a partir da relação “palavra” e “gesto”

mostra a peculiaridade filosófica do movimento do pensamento

fenomenológico que consiste em se instalar “na ordem da espontaneidade

ensinante” para, a partir daí, compreender as relações que se

estabelecem entre a própria presença e a presença do mundo e do outro,

respectivamente, problema para uma teoria da verdade (semiótica) e

problema para uma teoria da intersubjetividade (ética).

Conclusão

A obra do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty tem suscitado,

desde suas primeiras publicações, algumas controvérsias. As críticas

recaem ou sobre o conjunto da obra (colocando dúvidas acerca do próprio

estatuto da fenomenologia da percepção como método para o

conhecimento filosófico), ou sobre parte de seus escritos (colocando

dúvidas sobre a propriedade filosófica de alguns de seus textos, caso

específico do livro Estrutura do Comportamento e das publicações

póstumas – em especial, A prosa do Mundo e O Visível e o Invisível).

O estudo acerca da dimensão gestual da linguagem na teoria da

expressão de Merleau-Ponty mostra, de início, que uma correta

abordagem desse tema requer a compreensão da unidade essencial do

pensamento do autor, aliás, disso depende qualquer articulação conceitual

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129Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

que se pretenda em relação à sua proposta, sob pena de dar-lhe um

tratamento incompleto e/ou equívoco, e não alcançar sua “tópica”

essencialmente filosófica3.

Pode-se dizer que a fenomenologia de Merleau-Ponty mostra sua

desenvoltura metodológica na medida mesmo em seus escritos surgem

e vêm a público, revelando aí um movimento próprio do pensamento

desse autor que se desvela / se esclarece pela passagem de um conceito

a outro, uma noção à outra, um termo a outro, demonstrando que nela

“conteúdo e método, com efeito, não se encontram separados”.

Perseguindo o movimento de articulação das temáticas que compõe a

obra merleau-pontyana, visualiza-se um traço característico do seu

esforço e mérito filosófico: o poder de deixar a obra instituir-se a partir

do fluxo que ela mesma instaura em uma interrogação constante e isso

sob o crivo severo de uma auto-reflexividade.

Nesse sentido, acredita-se que a conexão dos caminhos conceituais

trilhados pela filosofia de Merleau-Ponty é passível de ser alcançada

retomando e congregando suas idéias-mestra, as quais encontram uma

exposição axial já na sua primeira obra publicada, Estrutura do

Comportamento, desenvolvem seu motivo fundamental na sua obra mais

célebre, Fenomenologia da Percepção, e adquire seu corpus ao longo de

uma intensa produção que ora se deixa vir a público, ora se guarda para

a póstuma idade – ou por opção do autor, caso dos ensaios que compõe

A Prosa do Mundo, ou da natureza, como se sabe, a morte “prematura”

de Merleau-Ponty encerra o projeto de O Visível e o Invisível.

Page 131: Revista Independência 2007

130 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Referências Bibliográficas:

MERLEAU-PONTY, M. Estrutura do Comportamento. Belo Horizonte:

Interlivros, 1975.

______. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes,

1999.

______. O Visível e o Invisível. São Paulo: Perspectiva, 1971.

______. A Prosa do Mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

______. A Linguagem Indireta e as Vozes do Silêncio. Sobre a

Fenomenologia da Linguagem In: Signos. São Paulo: Martins Fontes,

1991.

______. Elogio da Filosofia. 3 ed. Lisboa: Guimarães Editores, s/d.

CHAUÍ, M. Merleau-Ponty. Vida e Obra. In: MERLEAU-PONTY, M. Textos

Selecionados. São Paulo: Nova Cultural, 1989. (Os Pensadores)

CORREA, José de A. Prefácio. In: MERLEAU-PONTY, M. Estrutura do

Comportamento. Belo Horizonte: Interlivros, 1975.

GRANGER, Gilles-Gaston. Por um Conhecimento Filosófico. São Paulo:

Papirus, 1989.

LEFORT, C. Prefácio.. In: MERLEAU-PONTY, M. A prosa do mundo. São

Paulo: Cosac & Naify, 2002.

Page 132: Revista Independência 2007

131Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Notas:

2 O que levará Ferdinand Alquié (em 1947), e depois Alphonse de Waelhens (em1949), denominá-la “uma filosofia da ambigüidade”, expressão que Merleau-Pontynão rejeita. Ver o Elogio a Filosofia de 1952.3 A necessidade de uma ‘tópica transcendental” é apontada por G-G. Granger comocondição incontornável do exercício filosófico. Sobre essa exigência o autorescreve: “Compreendemos com isso que todo trabalho filosófico deve mais oumenos explicitamente delimitar e articular os domínios do vivido, onde se exerce oato de construir significações, e por conseguinte indicar o estudo de diferentesplanos onde cada conceito introduzido desenvolve seu sentido” (Granger, 1989, p.208).

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Ano 1, nº 0, Outubro de 2006 Revista Independência

Título

Autor

ResumoA Padaria Espiritual constituiu-se num movimento literário dos maisoriginais que sacudiu o meio intelectual da sociedade cearense no finaldo século XIX com sua verve humorística. De grande importância dentroda agremiação, o humor era o veículo pelo qual os chamados padeiroscriticavam incisivamente as estruturas sociais tradicionais da província.Esse mesmo humor foi também transformado em instrumento deaproximação com a sociedade na medida em que possibilitou aomovimento penetrar nos debates literários e conquistar a aceitação dopúblico com sua excentricidade e ousadia. Este artigo pretende analisar- baseando-se nos estudos históricos e literários desse movimento enas propriedades conferidas ao cômico - as facetas que o humor tomouno processo de reconhecimento público e intelectual desse curioso grupo.

Palavras-chave: Comunicação, estratégia, publicidade, humor, PadariaEspiritual.

Humor: uma estratégiacomunicacional do movimentoliterário Padaria Espiritual1

Júlio Vitorino FigueroaBacharel em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará.

E-mail: [email protected]

1 Artigo apresentado no VIII INTERCOM NORDESTE.

11

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134 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

QUESTÕES PRELIMINARES

Este artigo procura, a partir da observação do grupo literário

chamado Padaria Espiritual, movimento dotado de um humor peculiar à

sua época, compreender alguns dos aspectos relacionados à agremiação

que possivelmente não constariam em estudos literários ou históricos.

Como território de análise, tomamos os aspectos decorrentes da presença

do humor no seio do movimento.

Diversos estudos se ocuparam em entender o que representou de

fato essa agremiação, dentre eles merecem destaque os de Sânzio de

Azevedo, Gleudson Passos e José Ramos Tinhorão. Visando expandir as

possibilidades de compreensão do assunto, esse artigo, sob a ótica da

comunicação e dos estudiosos sobre o fenômeno humorístico, analisa a

parcela de contribuição dessa forma de expressão chamada humor para

o êxito do movimento.

Inicialmente, porém, precisamos informar o leitor sobre o assunto

específico do qual estamos tratando, apresentando a Padaria Espiritual.

Com essa noção já adquirida, esboçaremos, então, um breve panorama

da época em que nasceu o movimento, assim como aprofundaremos um

pouco mais suas características peculiares. Só após esses momentos, é

que abordaremos diretamente o papel do humor na agremiação,

observando atentamente as cores que ele toma.

PADARIA ESPIRITUAL: O MOVIMENTO

O século XIX se despedia em nosso País com a instituição do regime

republicano e a chegada das novas relações sociais trazidas pelo avanço

dos valores capitalistas, conjuntura que pretendia remodelar a realidade

social ao novo pensamento, visando a tornar ainda mais concreto o

plano de desenvolvimento do capitalismo.

Page 136: Revista Independência 2007

135Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

A Padaria Espiritual - que não é um estabelecimento onde se

compra pães, tampouco um centro espírita com sede no mesmo

estabelecimento comercial - consistia em uma agremiação literária, um

grupo bastante irreverente de talentosos jovens letrados de classe média

com um bom repertório de leituras e conhecimentos artísticos e literários.

Tais instrumentos intelectuais os dotaram de considerável senso crítico,

cuja utilização, acompanhada de um ácido senso de humor nada

convencional, não tardou a aparecer. Em pouco tempo, ficaram

conhecidos por suas excentricidades e críticas a diversos setores da

província. Todos exaustos da pacata Fortaleza, os padeiros - escritores,

músicos e pintores - lançaram a máxima de fornecer “pão de espírito”

aos que estivessem famintos por idéias. Obviamente essa era uma

metáfora bem humorada e, ao mesmo tempo, uma forma de esclarecer

o interesse do movimento em contribuir para uma maior capacidade de

reflexão da sociedade, levantando o debate intelectual na província.

Na Padaria, as funções estavam dividas em um Padeiro-mor, o

presidente; dois Forneiros, os secretários; um Gaveta, o tesoureiro; um

Guarda-Livros, o bibliotecário; um Investigador das coisas e das Gentes,

ou o O Olho da Previdência, que era o responsável por colher informações

do dia-a-dia. Os membros em geral eram os amassadores, que

trabalhariam a massa (idéias), oferecendo, aos que se interessassem,

o “pão de espírito”. Antônio Sales dividiu a Padaria em duas fases: a

primeira, cheia de espírito, timbrando acima de tudo pela pilhéria, era

a época em que, da sacada do segundo prédio que serviu de sede ao

grêmio, um dos ‘padeiros’, de barbas postiças, fazia conferência para o

povo na rua, tempos em que o Mané Côco embandeirava o Café Java,

distribuía aluá aos fregueses, e soltava um imenso balão com o letreiro

‘Padaria Espiritual’ (...) a segunda, a partir de 1894 (...) menos boêmia,

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136 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

mas nem por isso alheia às brincadeiras e às anedotas, caracterizou-se

por maior seriedade nos trabalhos e sobretudo pela publicação de quase

todos os livros da sociedade. (AZEVEDO, 1996, p.76)

Como AZEVEDO (1996) nos fala, a primeira fase foi marcada pela

despreocupação, em que os membros do grêmio abusavam da

extravagância e boemia. Este foi o momento em que se fez o possível

para atacar de forma irreverente, ao passo que a segunda fase, de 1894

até o fim da agremiação, representava o momento mais sério da

existência do grupo. O órgão oficial da Padaria Espiritual era o jornal “O

Pão”, prometido no artigo 35 do Programa de Instalação.

O “HUMOR ESTRATÉGICO” DA PADARIA

Talvani Lange, professor da Universidade Metodista de São Paulo,

estudioso do humor no âmbito da publicidade, aponta que “em nossa

sociedade competitiva, em que até mesmo o tratamento dado à

informação possui reflexos da concorrência acirrada, procuram-se

maneiras de estabelecer mecanismos publicitários capazes de seduzir o

receptor diante do caos informacional em que vivemos. Tal engrenagem

é enfocada, assim, para cativar o consumidor através dos aspectos

emotivos e psicológicos que ofereçam prazer no ‘consumo’ dos anúncios

publicitários” (LANGE, www2.usp.br ).

De certa forma, podemos relacionar o que Lange investiga com

aquilo que investigamos, posto que é possível encontrar determinada

similaridade entre o humor que estimula o consumo dos anúncios

publicitários” e o humor da agremiação de que tratamos, na medida em

que ela estimulou e despertou o interesse da sociedade, através de suas

pilhérias e de seu comportamento. Ambas as instâncias são marcadas

pela tentativa de fisgar o público a partir dos artifícios de atração do

humor.

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137Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Cabe, neste momento, diferenciarmos os dois tipos de “humor

estratégico” que agora já se delineiam. Despertar o interesse, atrair a

atenção, causar empatia são características gerais do humor que seduz,

o “humor estratégico”. No caso da Padaria, essas duas formas foram

utilizadas de modo parecido, apesar de se distinguirem quanto à

finalidade. Identificamos um “humor estratégico-promocional” e o

“humor estratégico-crítico”.

O “humor estratégico-promocional” se aproxima em alguns

aspectos de um “marketing empático” promovido pela Padaria, no sentido

de que tenha sido também uma estratégia que adotou o humor como

forma de causar determinada empatia no público, com vistas a facilitar

um contato com este.

A Padaria, com seu Estatuto cheio de gracejos, caracterizada pelo

comportamento irreverente e despreocupado de seus membros, não

demorou a “utilizar a emoção e o humor para atingir um grande número

de pessoas” (LANGE, www2.usp.br ). O autor observa essa capacidade

magnética contida no humor, conferindo-lhe a propriedade de

“desarmar”.

Por um lado, tem-se um mundo sufocado de produtos e imagens

em um ritmo acelerado, onde se necessita de um diferencial; por outro,

tem-se um grupo de jovens que planeja sacudir o meio intelectual e

artístico, também em busca de demonstrar originalidade em suas

manifestações. Tendo em vista os aspectos levantados, é possível

considerar que um movimento como o que foi a Padaria Espiritual era

dotado de uma parcela de caráter publicitário. Antônio Sales foi o padeiro

que mais se preocupou com a publicidade do grupo, a divulgar O Pão,

distribuindo números do periódico com o inusitado programa, a emitir

homenagens e estabelecer contato da Padaria com os escritores mais

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138 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

conhecidos da Capital Federal. Essa publicidade do grêmio, que serviu

em grande medida pra imortalizar a agremiação na historiografia literária

brasileira, contribuía para tornar Antônio Sales reconhecido na imprensa

do Rio (CARDOSO, 2002, p. 51).

No padeiro, verificamos uma tendência que aproxima as

características identificadas na utilização do humor pela Padaria a um

tipo de estratégia publicitária. Obviamente não podemos falar aqui de

um “marketing” propriamente dito, visto que seu conceito só começou

a se popularizar nos Estados Unidos dos anos vinte. Todavia, as bases

do marketing se encontram diluídas nas idéias dos “grandes economistas

ingleses dos séculos XIII e XIX, contemporâneos da Primeira Revolução

Industrial” (GRACIOSO, 1998, p. 10). O que pretendemos neste ponto é

demonstrar que é possível uma aproximação do que foi feito por Antônio

Sales e pela Padaria - tanto no âmbito da divulgação do jornal e da

agremiação quanto na conhecida irreverência dos integrantes do grêmio

- com os princípios do marketing e da publicidade.

Interessante é perceber a mobilização de Antônio Sales e dos

demais padeiros em torno do objetivo de fazer com que o lançamento

do Programa de Instalação da Padaria Espiritual e conseqüentemente do

próprio grêmio fosse bem-sucedido, no sentido de que se tornasse uma

novidade excitante. A idéia do Estatuto de Instalação, torna possível

uma aproximação das ações dos padeiros, reservando-se aqui algumas

limitações, com a esfera do marketing, em vias do lançamento de um

novo produto: “Nem é preciso dizer que jamais outra associação cultural

apresentou um programa de instalação com tanto humor (...) Daí o

estrondoso êxito do grêmio cearense” (AZEVEDO, 1996, p. 65).

É válido observar que não estamos refutando a faculdade mediúnica

dos padeiros de serem alegremente embalados pelo “espírito boêmio”,

Page 140: Revista Independência 2007

139Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

mas afirmando que a absoluta espontaneidade de seu humor é

questionável, assim como chamamos atenção para a evidente

preocupação da agremiação em divulgar seus feitos extravagantes. Por

este motivo é tão difícil afirmar categoricamente que a Padaria Espiritual

se utilizou do poder de penetração do humor para se promover e se

destacar. Não podemos afirmar isso e descartar a idéia de que os padeiros

eram conscientes da atmosfera apaziguadora e lúdica provocada pelo

humor e, por isso, tenham enveredado por ele a fim de despertar e

resgatar a criticidade adormecida na população leiga. Devemos, portanto,

passar ao outro tipo de humor.

Esclarecemos o “poder de penetração” do humor, ao que chamamos

de “humor estratégico”, assim como falamos do humor que se utiliza

desse mesmo poder para fins de divulgação, ao que demos o nome de

“humor estratégico-promocional”. Definiremos agora aquele tipo de

humor que, através da capacidade de penetração, tanto abre uma ponte

de diálogo com os desinteressados em assuntos intelectuais, quanto é

responsável por corrosivas críticas à sociedade. A este, atribuímos o

nome “humor estratégico-crítico”, caracterizado pelo ataque a estruturas

de dominação, por muita pilhéria, pela rejeição a comportamentos

enquadrados na norma e pelo despertar da atenção.

Este humor teria um distanciamento em relação àquela essência

cômica medieval, descrita por Bakhtin em Cultura Popular na Idade Média

e no Renascimento (1976), que cuspia na lógica e queria repensar o

mundo a partir da desestruturação das suas bases falhas.

Lipovetsky(1983), por sua vez, entende o humor, como o filhos

conformado do riso, encaixotados em seguros recipientes não prejudiciais

à saúde do organismo vigente. Esse riso contemporâneo não é mais

transgressor, ativo, modificador ou impiedoso como o da Idade Média,

Page 141: Revista Independência 2007

140 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

mas é calmo e leve. Nessa perspectiva, a Padaria teria, sim, contribuído

para a contestação de valores e para o aprimoramento intelectual de

sua época, mas seria em nome de outro quadro de valores nos quais se

acreditava. Apesar disso, no paulatino “abrandamento de costumes”

descrito por Lipovetsky(1983), em que se inclui o humor, processo

gradativo que se iniciou desde o fim da Idade Média, a Padaria pode ter

representado um humor ainda preocupado em assanhar alguns cabelos

bem penteados.

Josimey Costa da Silva entende que o humor sedutor também

atrai o interesse para questões que conscientizam para discussões e

idéias, que, tratados geralmente sob uma atmosfera rude e

excessivamente séria, dificultam um primeiro contato. Em seu artigo

Um Humor Nada Objetivo e um Jornalismo Muito Sério, acrescenta que

“quando se ri sem se saber por quê, corre-se o risco de, excluindo o

elemento intelectual do ato de rir, impossibilitar a leitura do seu potencial

crítico e ignorar qualquer nível de consciência que nele esteja contido.

Em outras palavras, ao se privilegiar o emocional incluso no riso,

escamoteia-se o seu potencial crítico e se reduz a sua importância”

(SILVA, 2002, p. 122).

Inserido em um contexto comunicacional, podemos destacar o

humor não como mero agente alavancador de atenção ou como uma

simples representação banal de algo (às vezes o é, de fato), que pôde

ser percebido pelo talento ou pela sensibilidade. Seria, sim, um artifício

de aceitação e manipulação - politicamente correta, talvez - ,com o

objetivo de tornar o assunto de certa forma mais atraente, abrandando

a rejeição do público. A Padaria Espiritual, que supomos, em certa

medida, consciente desse pontecial, e cujo exame revelou considerável

aproximação com as classes subalternas, perspicazmente adotou as

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141Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

faculdades do humor estratégico de caráter crítico. Defendemos essa

afirmação haja vista os efeitos no campo magnético sob o qual o humor

atua. Nesse campo, as idéias pré-concebidas se enfraquecem, inexistem

formalidade e repreensão, ao passo que as esferas do novo e do diferente

são impulsionadas pela atmosfera livre e aparentemente despreocupada

que paira.

HUMOR ESTRATÉGICO-PROMOCIONAL x HUMOR ESTRATÉGICO-

CRÍTICO

De certa forma, podemos afirmar que o humor, considerando as

idéias aqui discutidas, representa um recurso a que os padeiros

recorreram para conquistar visibilidade e cultivar a imagem de

intelectuais dotados de uma fina ironia, assim como para alfinetar o

conservadorismo sepultado e sério que regia a harmonia vesga dos fatos.

No nosso caso específico de dedicação à compreensão do humor

na Padaria, não se pode constatar um evidente divórcio entre aquele

que seria o “humor estratégico-promocional” e o “humor estratégico-

crítico”. Afirmamos isto tendo em vista que em ambos os casos existe

determinada estratégia de conquista e empatia pautada pela atmosfera

humorística, seja ela para abrandar um discurso crítico, tornando-o mais

atraente e inteligível; seja para, por meio da mesma estratégia,

conquistar popularidade, visibilidade e a empatia, destacando-se frente

aos demais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Empenhamo-nos em nos aproximar do objetivo de compreender

de que maneira a Padaria Espiritual se utilizou do humor. Durante a

pesquisa, algumas idéias principais emergiram e tomaram uma forma

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142 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

mais nítida, constituindo nosso local de chegada. Verificamos, de um

lado, indícios de mecanismos de caráter promocional no conjunto de

ações da Padaria. Valemo-nos, para tal, de uma observação centrada na

figura de Antônio Sales e nos novos ângulos de observação que o

lançamento do seu Programa de Instalação nos proporcionou.

Identificamos, por outro lado, também as vantagens de se tratar um

conteúdo sério dentro de uma atmosfera humorística, considerando tanto

sua facilidade de aproximação com o público quanto seu potencial

transgressor.

Assim, entendemos que estes dois tipos de “orientações

humorísticas” que percebemos se encontram e se entrelaçam, mas não

se confundem. Ambos compõem um mesmo conjunto, mas têm

características diferentes, assim como conservam sua individualidade.

As duas expressões estão inseridas na esfera do humor estratégico,

como já foi dito, mas não há qualquer espécie de relação hierárquica

entre elas.

A discussão parece ser bem mais profunda, sem dúvida. Se

analisada por outros ângulos, certamente se tornará ainda mais clara.

Inviável, senão impossível, é oferecer respostas lapidadas e reluzentes

frente a um tema como o humor, repleto de poeira teórica e densas

contradições. Mais complexo ainda é satisfazer todos os campos de

conhecimento de cujas idéias nos valemos, como o campo da Filosofia,

da História, da Literatura, da Comunicação e da Publicidade. Desta

forma, são inúmeras as possibilidades de abordagem que se podem

desenvolver em relação a este assunto tão rico, com base em diferentes

pontos de partida.

Page 144: Revista Independência 2007

143Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Referências bibliográficas:

AZEVEDO, Sânzio de. A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará. 2ª

Edição. Fortaleza: Casa de José de Alencar Programa Editorial, 1996.

BAKHTIN, Mikhaïl. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento.

São Paulo: Hucitec. Brasília: Editora UNB, 1976.

CARDOSO, Gleudson Passos. Padaria Espiritual: biscoito fino e travoso.

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(Coleção Outras Histórias – 8)

GRACIOSO, Francisco. 4ª Edição. Marketing. São Paulo: Coleção Contato

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LANGE, Talvani. O humor na publicidade comparativa. Disponível em:

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LIPOVETSKY, Gilles. A Era do Vazio. Lisboa: Antropos/Relógio D’Água

Editores Ltda, 1983.

SILVA, Josimey Costa da. O humor nada objetivo e um jornalismo muito

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TINHORÃO, José Ramos. A província e o Naturalismo. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1966.

Page 145: Revista Independência 2007

144 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Page 146: Revista Independência 2007

Ano 1, nº 0, Outubro de 2006 Revista Independência

Título

Autor

ResumoEste artigo visa a apresentação de uma atividade acadêmica desenvolvidacom alunos de Administração em Gerência de Negócios, na forma detrabalho de pesquisa, utilizando-se a metodologia de estudo de caso /história de vida, através de entrevista com um empreendedor desucesso. No depoimento do empreendedor são tratadas questõesrelacionadas à sua origem, o surgimento da empresa, conceito de si, otrabalho como empreendedor, energia, relações, liderança, criatividadee imaginação. Ao final do artigo, percebemos que na fala desse atorsocial são encontradas as características de alguém com espíritoempreendedor. Porém, o que esse depoimento traz de original, típico eexclusivo é a singularidade da sua própria história de vida, onde nos étransmitido lições e “dicas”, que se tornam conselhos úteis a todosaqueles que aspiram à condição de empreendedor ou desejam se manterno seu negócio.

Palavras-chave: Empreendedorismo, estudo de caso, entrevista comempreendedor.

História Empresarial Vivida

Juarez Duarte BomfimProfessor da Faculdade Dois de Julho. Mestre em Administração pela UFBA

E-mail: [email protected]

12

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146 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Introdução

A pesquisa acadêmica sobre empreendedorismo é relativamente

recente e está ligada à grande importância que as pequenas empresas

exercem na atividade econômica nacional e global. Representando

aproximadamente, conforme dados do SEBRAE, 90% do total das

empresas, 75% da mão-de-obra ocupada e contribuindo com 70% do valor

bruto do produto industrial e 35% do PIB1, dá-se para medir a dimensão

de tal setor empresarial.

O empreendedorismo, não sendo (ainda) uma ciência social,

estando no campo de estudos da Administração, enquanto ramo de

conhecimento vive uma fase pré-paradigmática, já que não existem

padrões definitivos, princípios gerais ou fundamentos que possam

assegurar de maneira cabal o conhecimento na área.

A perguntas como “é possível ensinar alguém a ser

empreendedor?”; “Quais as características determinantes no

empreendedor de sucesso?”2 não existem respostas definitivas e os

estudiosos da matéria ficam sempre com um que de desconfiança sobre

as respostas provisórias. Essas dificuldades são vividas / vivenciadas

em sala de aula nas disciplinas de empreendedorismo.

Empreendedorismo é uma livre tradução que se faz da palavra de

origem francesa entrepreneurship e pode ser definida como atividade

daquele indivíduo que assume riscos e começa algo novo3.

O empreendedor (entrepreneur) já foi considerado o agente

responsável pela transformação e desenvolvimento econômico

(Schumpeter); pessoas possuidoras de elevada motivação, que preferem

executar tarefas difíceis e não rotineiras e assumem responsabilidades

pessoais pelo seu trabalho (McClelland); um tomador de riscos (Peter

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147Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Drucker); e uma pessoa que imagina, desenvolve e realiza visões (Filion) 4.

Ele, o empreendedor, é quem tem e namora a idéia do negócio,

implementa e acompanha até adquirir vida própria. Identifica-se

emocionalmente com a empresa, concentrando a sua atenção nas fases

iniciais do empreendimento5. Diferencia-se do empresário, que se

preocupa mais com a segunda fase do ciclo de vida de uma empresa – a

sobrevivência e o crescimento.

Sendo os dois maiores responsáveis pela criação, desenvolvimento,

consolidação, sucesso ou insucesso das empresas, o empreendedor e o

empresário se completam. Percebe-se, no entanto, que a partir de

determinado ponto o empresário “cresce” mais do que o empreendedor.

O empreendedor é um homem de muita iniciativa, personalidade

agressiva, eterno farejador de oportunidades, fazedor de negócios e

muito trabalhador, porque tudo gira em torno dele. Ele faz e gosta de

fazer tudo sozinho6.

O empresário tem outras características, mesmo carregando

dentro de si a chama do empreendedor. No empresário, conforme Aquino 7,

destaca-se sua motivação e capacidade para “crescer” e se

“desenvolver”, conduzir profissionalmente a administração dos seus

negócios e dotar suas empresas de uma estrutura organizacional, inclusive

a administração profissional, como meio de perpetuar o seu sucesso,

libertando-se da condição convencional de “dono”. Enquanto que o

empreendedor, por mais notável que seja, jamais poderá se

responsabilizar, eternamente, pela perpetuidade do seu

empreendimento8.

Feita essa ressalva, e esses papéis – de empreendedor e

empresário - não sendo impermeáveis, pois o empreendedor pode tornar-

se empresário e vice-versa, nessa comunicação não faremos distinção

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148 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

de um e outro.

Sendo as qualidades pessoais do empreendedor mais enfatizadas

do que coisas como o conhecimento do ramo, ou do processo em si, um

dos campos centrais da pesquisa na área do empreendedorismo

concentra-se no estudo de ser humano e dos comportamentos que podem

conduzir ao sucesso, sendo o restante (tecnologia, ferramentas

gerenciais...) visto como uma conseqüência do processo de aprendizado

de alguém capaz de atitudes definidoras de novos contextos – o

empreendedor9.

História Empresarial Vivida

Entre os anos 1980-90, na Faculdade de Economia e Administração

da Universidade de São Paulo ( FEA/USP), o prof. Cleber Aquino organizou

um programa acadêmico denominado de “História Empresarial Vivida”,

baseado em depoimentos de empreendedores e empresários brasileiros

onde, usando a metodologia de estudo de caso / história de vida, visava

proporcionar informações e lições de pioneiros e empresários de processos

de gestão bem-sucedidos dentro do contexto brasileiro.

Resumidamente, os objetivos perseguidos no programa eram de

a) estabelecer um diálogo permanente e interação entre a classe

empresarial e todos os públicos nacionais, especialmente o acadêmico;

b) repassar a experiência empresarial e de negócios brasileira sobre a

vida, a obra e o tempo dos vitoriosos homens de negócios, isto é, dos

empreendedores, pioneiros e empresários; c) proporcionar aos estudiosos

e interessados lições vividas de negócios e de gerência; d) despertar no

estudante o espírito empresarial etc. Tudo isto através do “tempo” (pano

de fundo histórico) e do “contexto” (pano de fundo cultural e ambiental)

dos empreendedores e empresários brasileiros ou atuantes no Brasil10.

Page 150: Revista Independência 2007

149Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Lecionando a disciplina Lógica do empreendedor para o curso de

Administração com habilitação em Gerência de Negócios, este autor

sentiu a necessidade e anteviu a oportunidade de usando uma

metodologia própria, desenvolver com os seus alunos uma atividade

acadêmica que suscitasse nestes a vocação para a pesquisa, juntamente

com o aprendizado, em trabalho de campo, de experiências

empreendedoras, através de coleta de informações, na forma de

entrevista estruturada, de depoimentos de pessoas que assumiram o

desafio de “abrir o seu próprio negócio” e “mudar de vida”.

Acreditamos que, para estudantes de Administração que aspiram

à condição de futuros gestores e empreendedores, um trabalho desse

tipo (a entrevista) surge como forma de preparação para a ação real,

porque através dele se pode ter um discernimento mais profundo das

razões, estratégias, abordagens e motivações do empreendedor para

iniciar ou manter um negócio. O entrevistado, com o seu exemplo

pessoal, transmite informações e “dicas” sobre o mundo dos negócios,

com a sensibilidade e intuição de quem está no “front”.

A metodologia escolhida foi a seguinte: uma vez identificado um

empreendedor, escolhido como informante pelo critério amostral de

acessibilidade-tipicidade, o aluno deveria realizar uma entrevista com

o mesmo, a ser apresentada na forma de relatório de pesquisa.

O método de procedimento praticado foi de estudo de caso /

história de vida, não sendo feita a distinção entre história de vida

completa ou focada, uma vez que o roteiro da entrevista já direcionava

para os objetivos.

A estrutura da entrevista sugerida contempla blocos de perguntas

que consideram questões relacionadas à origem do empreendedor,

surgimento da empresa, conceito de si, visão do empreendedor, o trabalho

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150 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

como empreendedor, energia, relações, liderança, criatividade e

imaginação11.

Os resultados têm sido considerados positivos tanto pelo produto

em si, como pela experiência adquirida pelos alunos com esta atividade

investigativa e inovadora, inclusive como forma criativa de avaliação

discente.

Para exemplificar esta afirmação, apresentaremos uma entrevista

com um empreendedor, realizada pelo estudante José Adauto Ribeiro,

do sexto semestre de Administração com habilitação em Gerência de

Negócios, sob orientação do professor Juarez Duarte Bomfim, em 2004.1.

A entrevistada foi a senhora Helena Torres, proprietária do

Empreendimento: Serve Saúde Cozinha Industrial, localizado na cidade

de Campinas, estado de São Paulo.

A ENTREVISTA

José Adauto - Existe algum empresário em sua família?

Helena Torres - Não. Eu sou a pioneira.

J. A. - Tem alguém como modelo?

Helena Torres - O modelo que tenho são o caráter e honestidade de

meus pais e a força e a coragem de minha mãe, uma mulher que sempre

encarou a vida positivamente e nunca a vi de baixo astral.

J. A. - O que os seus pais fazem?

Helena Torres - São professores aposentados. Dedicaram suas vidas a

essa profissão tão nobre e tão mal compreendida no Brasil, mas minha

mãe nunca reclamou.

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151Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

J. A. - Você poderia falar um pouco sobre a sua formação?

Helena Torres - Formei-me em pedagogia por influência de meus pais,

mas nunca exerci minha profissão. Casei logo após me formar. Meu

marido, em razão de seu trabalho, nunca ficava mais de três anos em

uma cidade. Isso tornou inviável uma carreira profissional.

J. A. - Foi boa aluna? Gostava de estudar? Como você aprende mais?

Helena Torres - Sempre fui boa aluna e gostava de estudar, afinal tinha

dois professores em casa. O que era um privilégio. Freqüento palestras

e cursos, mas tenho aprendido mais sozinha, com leituras. Aliás, quando

estamos lendo, nunca estamos sozinhos. No mínimo estamos conversando

em silêncio com o autor.

J. A. - Como você se vê como pessoa?

Helena Torres - Eu me vejo como uma pessoa que teve a felicidade de

ter uma educação familiar extremamente correta, que me ensinou a

ser ética, a respeitar as pessoas, a respeitar compromissos. E o que é

mais importante, minha família sempre me deu muita liberdade. Com a

liberdade eles me ensinaram a ser responsável.

J. A. - Quais, na sua opinião, são as suas características pessoas mais

importantes para sua empresa?

Helena Torres - Não sou um pessoa castradora, controladora das ações

das pessoas. Além disso, sou muito comunicativa, tenho muitos amigos

e muita disposição para o trabalho.

J. A. - Como surgiu a idéia de ser empreendedora?

Helena Torres - Sempre cozinhei muito bem. As pessoas elogiavam muito.

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152 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Já fui arrendatária de um pequeno bar dentro de um clube. Lá dentro eu

não tinha concorrentes. Isso facilitava minha vida. Mas durou pouco

tempo. Meu marido foi transferido para outra cidade. Já aposentado,

morando em Campinas, ao lado de uma praça onde tinha

aproximadamente 60 camelôs, surgiu a idéia de fazer marmitex para

vender para este público.

J. A. - Como sua empresa começou?

Helena Torres - Dirigi meu negócio inicialmente para os camelôs, que

trabalhavam ao lado de minha casa. No primeiro dia ofereci 10 marmitex

gratuitamente para os camelôs, deixei um panfleto de propaganda do

produto e informei que a partir do dia seguinte estaria vendendo de

segunda a sábado. No dia seguinte vendi 15 marmitex. Com aquela

pequena vitória fiquei muito feliz. Foi um bom começo.

J. A. - Você pensou sobre isso por muito tempo, antes de realmente

começar o negócio? Já havia considerado a possibilidade de abrir um

negócio como uma opção de vida?

Helena Torres - Sempre tive este sonho e acalantei por muito tempo.

Até que surgiu a oportunidade ideal. Sempre pensei em abrir um negócio,

mas as freqüentes transferências, sempre me obrigaram a adiar meu

sonho. Quando meu marido se aposentou, senti que tinha chegado a

hora de agir mais decisivamente.

J. A. - Conte-nos sobre seus primeiros tempos.

Helena Torres - Os primeiros tempos foram difíceis. Eu comecei sozinha,

preparando o cardápio, comprando os ingredientes, preparando os

alimentos e vendendo. Era uma equipe de uma pessoa só. Era cansativo,

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153Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

mas era também realizador e gratificante. Se tivesse que recomeçar,

faria tudo de novo. Logo em seguida comecei a receber a ajuda de meu

filho André e depois de meu outro filho formado em nutrição, Alexandre.

J. A. - Como você identifica oportunidades?

Helena Torres - A primeira oportunidade que identifiquei, ela estava na

minha frente, quase caiu na minha cabeça. Havia 60 camelôs que

trabalhavam na praça ao lado e não havia um restaurante mais próximo

que a minha casa. Antes, os camelôs ou traziam marmita de casa ou

almoçavam nos bares locais sem adequada condição de higiene. Depois

com a pequena cozinha industrial já instalada em um endereço próprio,

quase todo fim de semana andava pela cidade vendo se tinha um canteiro

de construção civil iniciando uma obra nova. Toda minha família também

ficava atenta para estas oportunidades. Pois elegemos como nosso público

alvo os operários da construção civil. O motivo desta escolha é que este

público não interessava para as grandes cozinhas industriais. Hoje o

nosso público está mais diversificado.

J. A. - Como você aprende hoje? Tem um método próprio?

Helena Torres - Sempre que posso faço um cursos no SEBRAE, vou a

palestras dirigidas ao pequeno empresário e todo ano vou a uma feira

de cozinha industrial, em São Paulo, ver as novidades. Tenho vários

amigos que são donos de outras cozinhas industriais, sempre faço visitas

a eles para trocar idéias e informações. Temos um relacionamento muito

cordial.

Page 155: Revista Independência 2007

154 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

J. A. - Tem um sistema para solução de problema?

Helena Torres - Meu método, se é que se pode chamar de método, é

matar o problema na hora. Não gosto de postergar a solução. O problema

que não é resolvido na hora corre o risco de se multiplicar em outros

problemas ou aumentar de tamanho. E pode virar um monstro. Se eu

tenho um problema hoje não deixo para reunir amanhã ou pensar em

sua solução depois. São pouquíssimos problemas que você não possa

resolver na hora ou deixar bem encaminhado sua solução. Se você não

fizer isso, será soterrado por problemas.

J. A. - Como lida com o fracasso?

Helena Torres - Na vida há dois tipos de pessoas: há o que, quando leva

um golpe da vida, se fecha, abaixa a cabeça e se encolhe como se

estivesse se protegendo para não ser golpeada de novo. E aí fica mais

frágil e vulnerável. E há outro que, quando recebe um golpe da vida,

levanta a cabeça e parte com força redobrada para o contra-ataque

como quem tenta virar o jogo. A queda serve de alavanca, como um

estímulo, como um ponto de inflexão para uma virada, uma mudança,

uma transformação. E essa transformação nada mais é do que o

aprendizado com o fracasso. Meus pais me disseram certa vez, quando

fui reprovada no vestibular, que o fracasso é uma oportunidade de

aprendizado e de crescimento. Esta é uma maneira positiva que meus

pais me ensinaram de ver o fracasso. É importante que a gente não

internalize a negatividade do fracasso. Agora, só aprenderá e crescerá

com o fracasso quem souber aproveitar essa oportunidade.

J. A. - Qual é o seu trabalho na empresa?

Helena Torres - Eu controlo a compra junto aos fornecedores e gerencio

o serviço de cozinha.

Page 156: Revista Independência 2007

155Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

J. A. - Quais são as áreas onde você gosta de se concentrar?

Helena Torres - As duas áreas sensíveis em meu negócio são a qualidade

e preço dos ingredientes e o padrão das refeições. Por isso, me envolvo

mais intensamente com esses dois setores. Até porque são minhas

especialidades. O meu filho, que é formado em nutrição, dá suporte

técnico com relação à manipulação, estocagem e preparo dos alimentos.

J. A. - Você se envolve com a rotina, com as operações do dia-a-dia?

Você tem quantas pessoas que se reportam a você? Você delega?

Helena Torres - Nossa empresa é relativamente pequena. Além de

gerenciar e investir, temos que botar a mão na massa. Eu vou diariamente

ao Ceasa e a outros fornecedores e escolho pessoalmente os ingredientes.

A qualidade final depende da qualidade dos ingredientes. Uma boa

refeição envolve estética, sabor, aroma e, principalmente, saúde. Higiene

e limpeza são uma obsessão em nossa empresa. Cobro higiene dos meus

fornecedores também. Estou sempre na cozinha acompanhando o

processo de manipulação e estocagem dos alimentos. Disso, nós não

abrimos mão. Vendemos higiene, limpeza, saúde e prazer alimentar.

Porque uma refeição deve ser também um ato de prazer. Nossos clientes

esperam tudo isso de nós. Quando não pudermos atendê-los, buscarão

outros fornecedores. Como a empresa é pequena, nós temos uma

comunicação constante. Um de meus filhos cuida das vendas, o outro da

administração e eu da produção das refeições. Temos também uma equipe

de cinco cozinheiras e ajudantes e um motorista. No atual estágio em

que estamos, com vendas de 1.200 refeições por dia, não há tanta

necessidade de delegação, mas mesmo assim procuro estimular minhas

companheiras de trabalho a serem mais autônomas.

Page 157: Revista Independência 2007

156 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

J. A. - Você tem parceiros no negócio?

Helena Torres - Nós temos uma relação muito construtiva com nossos

fornecedores e clientes, por isso considero-os meus parceiros.

J. A. - Como é que você obtém informação sobre o que está acontecendo

na empresa e como é que você controla as coisas?

Helena Torres - Tem um ditado que diz: o olho do dono é que engorda o

gado. Só que esse ditado serve apenas para empresas de pequeno porte.

Não acontece nada na empresa que a gente não toma conhecimento.

Fazemos uma reunião semanal com todos, às sextas-feiras, para avaliar

como foi a semana. Todos tomam conhecimento como está indo o negócio.

Inclusive as dificuldades. Dedicamos um tempo especial para reclamações

e sugestões dos clientes. Outro grande controle é a contabilidade,

principalmente os relatórios que recebemos. Nosso contador é excelente.

Ele não se limita à rotina contábil. Seus relatórios são muito

esclarecedores.

J. A. - Qual o percentual de solução representado pela tecnologia do

produto? Ou seja, a tecnologia do produto representa qual percentagem

do sucesso da sua empresa?

Helena Torres - Se você der uma mesma receita para dez pessoas

fazerem um prato, ao final você terá 10 pratos diferentes. Nesse sentido,

eu entendo que a tecnologia é fundamental em meu negócio. Pois o

nosso modo de preparo é único. E para preservar essa tecnologia temos

que estar atentos aos padrões. A batata frita tem que estar sempre

sequinha, crocante e com o sabor agradável. Mas, para isso tem uma

técnica precisa e que não pode ter variações, porque a expectativa de

nossos clientes não muda. E, se muda, muda para exigir mais. Nunca

menos.

Juarez Duarte Bomfim

Page 158: Revista Independência 2007

157Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

J. A. - Quantas horas você trabalha por dia? Sábado e domingo?

Helena Torres - Como só servimos o almoço, trabalho, em média, 10

horas por dia. Meus clientes não demandam nos finais de semana. Por

isso, nos sábados e domingos, além de lazer e descanso, eu me dedico

ao planejamento da semana seguinte.

J. A. - Você tira férias?

Helena Torres - Férias? O que é isso? Como antes eu era apenas dona-

de-casa, nunca tirei férias. Agora sou dona-de-casa e empresária e

continuo a não tirar férias. Mas não acho isso normal, considero uma

deficiência. Preciso corrigir isso.

J. A. - Você pensa em se aposentar?

Helena Torres - A idéia de botar um pijama, ficar lendo em casa ou

dando milho aos pombos na praça não me atrai. Gosto de estar produzindo

e de ser útil sempre.

J. A. - Qual a importância que você dá às relações internas e externas

na empresa?

Helena Torres - As relações são um meio de ligação entre o sonho e sua

realização. É através de contatos e uma boa rede de relacionamentos

que se chega a novos clientes, a novos fornecedores, a novas tecnologias.

Enfim, é através dos relacionamentos que você fica conhecido, que tem

acesso a pessoas importantes para o seu negócio e que fazem as coisas

acontecerem.

J. A. - E para você, qual a importância das relações externas? Quais

contatos são mais importantes: fornecedores, clientes, pessoas

influentes?

Page 159: Revista Independência 2007

158 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Helena Torres - Os clientes, garantia de nossa sobrevivência, podem se

tornar nossos vendedores mais eficientes, na medida em que estiverem

satisfeitos. E quando estão encantados com o atendimento que recebem,

vendem sua marca e seus produtos de maneira muito mais entusiasmada

e convincente. Os fornecedores são importantes, mas de alguma maneira

a gente está no controle. Eles é que tem que nos manter satisfeitos. Já

os nossos clientes são os nossos reis, a quem devemos reverenciar e

encantar sempre.

J. A. - Como você faz para que as pessoas realizem os seus sonhos?

Helena Torres - O ideal seria perguntar para elas, mas acho que é o

entusiasmo, o brilho nos olhos e o acreditar sempre. Ser positiva e otimista

todos os dias. E você mostra que é verdadeiramente otimista e positivista

quando as coisas não vão bem. Quando o cenário está ruim, quando as

possibilidades de dar errado são maiores na visão dos outros. Acreditar

mais no sucesso que no fracasso, procurar ver o lado bom das coisas,

acreditar na capacidade das pessoas, procurar mais os acertos do que os

erros. Elogiar os acertos e tolerar erros. Evitar ficar criticando previamente

qualquer idéia, negando a possibilidade de sucesso. Tem pessoas que você

convida para um piquenique e elas logo lembram das formigas. Então

convida para ir a praia, aí levantam a possibilidade de chuva. Da mesma

forma dizem, em uma reunião de trabalho, que a estratégia não vai dar

certo, que o produto na terá aceitação do mercado ou que a idéia já foi

tentada antes. São pessoas negadoras, que tem a cultura do não. O

negativismo e o criticismo são doenças comportamentais que podem matar

uma empresa, um projeto. Acreditar firmemente que hoje será melhor

que ontem e que amanhã será melhor ainda. Este é meu mantra. Tanto o

negativismo como o positivismo são contagiosos. Fuja das pessoas

negativistas e espalhe otimismo por onde passar.

Page 160: Revista Independência 2007

159Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

J. A. - Como você descreveria a si próprio como líder na sua companhia?

Helena Torres - Sou uma pessoa entusiasta, otimista, procuro ser

coerente e ética. Sou rigorosa no cumprimento de meus compromissos

e procuro ter um relacionamento sem barreiras com meus colegas de

trabalho. Faço questão de elogiar sempre que há superação. E também

comemoramos todas as nossas vitórias. As grandes e as pequenas.

J. A. - Você poderia explicar como a sua equipe se desenvolveu?

Helena Torres - No principio comecei sozinha. Depois meus dois filhos

começaram a me ajudar. Depois que estávamos vendendo quase 100

refeições/dia procuramos uma casa para instalar a cozinha industrial.

Contratei cozinheiras e ajudantes que já conhecia seu trabalho e que

tinha confiança.

J. A. - Quais métodos você desenvolveu para encorajar as pessoais a

serem mais criativas?

Helena Torres - Quem trabalha em negócio de alimentação está sempre

a procura de inovações, principalmente no cardápio. Como estímulo,

todo mês a gente faz um concurso. Cada ajudante e cozinheira são

desafiadas a preparar uma receita nova. Convidamos um grupo de

clientes para almoçar na cozinha. Neste almoço há uma experimentação

das receitas. O prato mais elogiado ganha um prêmio e passa a ser

servido no mês seguinte com o nome da criadora. A gente notou que o

fato de fazer parte do cardápio no mês seguinte, dando nome ao prato,

é que dá mais realização e alegria ao funcionário do que o prêmio.

Temos tido surpresas maravilhosas.

Page 161: Revista Independência 2007

160 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

J. A. - O que você diria que é diferente na maneira como você comanda

seus negócios?

Helena Torres - Em duas palavras: objetividade e simplicidade.

J. A. - Para onde você direciona seus esforços ao comandar a empresa?

Helena Torres - Para a cozinha, que é a área mais sensível de meu

negócio. Higiene, limpeza, sabor e saúde. Hoje as pessoas estão

preocupadas com obesidade, colesterol etc. A comida tem que, antes de

tudo, ser saudável.

J. A. - Você vê as coisas de forma diferente, mudou seu estilo de

gerenciamento, desde que fundou sua empresa?

Helena Torres - Sou mais cuidadosa com o controle de custos e com o

capital de giro. Certa vez ouvi no Sebrae que o capital de giro é o oxigênio

da empresa. Não há expressão mais certa. Quando você não tem capital

de giro, toma empréstimo no banco. Aí precisa de mais capital de giro

para pagar os juros do banco, entrando em uma espiral de endividamento

rumo à insolvência e a falência.

J. A. - O que lhe dá mais satisfação ao comandar uma empresa?

Helena Torres - Ver a satisfação dos meus clientes quando nos elogiam

e ver a alegria dos meus empregados quando temos uma vitória.

J. A. - O que você pensa sobre o poder como um instrumento de comando?

Helena Torres - Quando você precisa de poder para comandar então

você não tem o verdadeiro poder. Outro dia li um livro que tinha a seguinte

frase atribuída a Margarett Tatcher: “Ser líder é como ser uma dama, se

você precisa dizer que é, então você não é”.

Page 162: Revista Independência 2007

161Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

J. A. - O que você acha do erro? Como trata os colaboradores que erram?

A sua empresa erra muito?

Helena Torres - Como eu já disse o erro é uma oportunidade de

aprendizado e crescimento. E o melhor dos erros é quando você erra

porque foi ousado e corajoso. Significa que não é conformado com a

mesmice. Nesse sentido, sou tolerante com os erros. Mas isso não

significa empurrá-los para baixo do tapete e fingir que não foi percebido.

Com relação à pergunta se minha empresa erra muito, a resposta é não.

As que erram muito estão na estatística de mortalidade de empresas do

IBGE.

J. A. - O que é que lhe dá mais prazer no processo de empreender? O

que é que a torna criativa?

Helena Torres - É lidar com pessoas tanto interna quanto externamente.

O que me torna mais criativa é estar de bem com a vida, com as pessoas

e comigo mesma.

J. A. - O quanto você diria que a imaginação é importante para o sucesso?

Helena Torres - No meu ramo de negócio a criatividade e imaginação

são fundamentais. Sou daqueles que um bom prato é sempre uma obra

criativa, mesmo para uma pequena cozinha industrial como a minha.

J. A. - O que é intuição para você? Qual a importância da intuição para

o seu negócio?

Helena Torres - Intuição para mim é decidir sem nenhum dado, evidência

ou tendência consistente, mas no íntimo você se sente segura para

seguir um caminho. Prefiro mais a razão à intuição.

Page 163: Revista Independência 2007

162 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista IndependênciaJuarez Duarte Bomfim

J. A. - Como você lida com a incerteza, ambigüidade?

Helena Torres - Com certeza não sou conservadora com relação a riscos.

Empresariar é a arte de correr riscos e gerenciar as incertezas. Quando

você abre uma loja todas as manhãs, nada garante que entrarão clientes,

muito menos que comprarão. No entanto, você abre a loja todos os

dias. É exatamente o risco de não vender que faz com que muitas pessoas

não abram lojas. Vendo desta forma, o risco na realidade se converte

em oportunidade. Quem vê o risco apenas como uma ameaça, certamente

não é empresário.

J. A. - Qual o fator mais importante para o sucesso de sua empresa?

Helena Torres - São alguns valores e princípios que cultivamos. Temos

atenção permanente com a qualidade, estamos sempre buscando

informações do mercado, temos um clima de trabalho muito favorável.

Mas o principal fator é a cultura muito forte de valorização de nossos

clientes.

J. A. - Quais são as principais potencialidades e fraquezas de sua

empresa?

Helena Torres - Vou começar por nossas fraquezas. Nós não temos escala

para competir com as grandes cozinhas. Outra fragilidade é a carência

de capital para investimentos. Com a taxa de juros que está aí não vale

a pena buscar recursos nos bancos. Além disso, não ha muito recurso

para investimento. Há mais para capital de giro. Preferimos crescer

devagar, mas com segurança. Por isso chegamos até recusar clientes de

médio e grande porte. Nossa força é nossa equipe de trabalho, o

diferencial de nosso produto é a imagem que temos junto aos nossos

clientes. Nosso lema: se não podemos ser os maiores, seremos os

melhores.

Page 164: Revista Independência 2007

163Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista IndependênciaJuarez Duarte Bomfim

J. A. - Quais critérios você utiliza na seleção de pessoal?

Helena Torres - O principal é conhecer as pessoas que você escolherá

para fazer parte desta família. Só contrato pessoas conhecidas. É lógico

que isso é possível porque somos uma equipe pequena.

J. A. - Fale de seu sistema de gestão. Ele é baseado em alguma ideologia?

Helena Torres - Nas decisões importantes a gente procura envolver todos.

Decisões que exijam mais agilidade, decidimos eu e meu filho. No final

das contas gerenciar é fazer escolhas e decidir. Quanto mais você decidir

certo, melhor você gerencia. Não há um sistema formal propriamente

dito. Mas com certeza, há um jeito de gerir que é só nosso, que decorre

de nossos valores e princípios e está nas nossas condutas e

comportamento gerenciais.

J. A. - Você tem descrição escrita dos trabalhos e políticas da empresa?

Helena Torres - Embora cada um saiba muito claramente o quer tem

que fazer, não temos isso escrito no papel. Mas temos na consciência de

cada um e de todos e isso é checado diariamente pelas nossas ações.

Pois quando você deixa de fazer algo sempre alguém te lembra.

J. A. - Você estabelece metas?

Helena Torres - Nas nossas reunião gerais fixamos nossas metas de

comum acordo com todos. Além de fixarmos metas de produção, vendas

e de custos, fixamos principalmente metas de satisfação de nossos

clientes.

J. A. - Qual é a posição de mercado de seus produtos/serviços?

Helena Torres - Nosso produto é diferenciado em relação à concorrência,

Page 165: Revista Independência 2007

164 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

principalmente pela variedade, qualidade e sabor. Se entendermos que

o atendimento faz parte do produto, então temos um diferencial. Nós

vendemos 1.200 refeições/dia, nossos concorrentes produzem em média

12.000. Há quem atinja a faixa de 30.000. O fato de ter uma escala

menor nos permite ter maior controle de todo o processo, agregar valores

e diferenciais competitivos e cobrar por isso, fixando um preço um pouco

maior para os nossos produtos. Só faz sentido agregar valor ao produto

se os clientes estiverem dispostos a pagar por eles. A aceitação de nossos

produtos tem sido tão boa que a nossa demanda tem crescido além de

nossa capacidade de crescer. Nossa evasão de clientes tem sido quase

nula. Temos sempre agregado novos clientes.

J. A. - Quais argumentos você utiliza para persuadir os seus clientes a

comprar seus produtos?

Helena Torres - Em cinco palavras: ética, higiene, limpeza, saúde e

sabor.

J. A. - O que você diria a alguém que está pensando em iniciar um

negócio?

Helena Torres – Tudo começa com um sonho. Depois do sonho vem a

informação: conheça profundamente o ramo e o negócio que você vai

operar. Busque o máximo de informação sobre o público alvo,

concorrência, fornecedores, legislação e o melhor ponto de venda. Visite

vários negócios em funcionamento e procure identificar que diferenciais

vai acrescentar à sua oferta. Só informação não basta, também é

necessário emoção. Você precisa gostar ou ter paixão pelo que pretende

fazer. Uma pessoa apaixonada pelo que faz não conhece limites ou

barreiras. E ser empreendedor é superar obstáculos e gerenciar a

Page 166: Revista Independência 2007

165Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

escassez. É preciso sonhar, sonhar grande para o futuro, mas na hora de

realizar no presente procure evitar a megalomania. O ideal é começar

pequeno para poder ter uma margem para corrigir os rumos, pois cada

desvio de rota tem um custo. Todo início de negócio, por mais estudado

e pensado que seja, é um experimento de alto risco. A máxima “não

devemos colocar todos os ovos em uma única cesta”, é valida e útil para

todo empreendedor. Conheço muita dona de loja de confecções que foram

sacoleira antes. Enquanto vendiam para as amigas e de porta-em-porta,

estavam testando e conhecendo o mercado. Também é fundamental

cultivar a humildade e ser um eterno aprendiz, mantendo acesa a chama

da curiosidade e da busca incessante pelo conhecimento. Por fim, é

preciso ter um objetivo claro, manter o foco no negócio e ser otimista,

positivista e acreditar no sucesso sempre. Quando mentalizamos

intensamente o sucesso em nossa consciência, significa que ele já

começou a existir. Essa é a base onde se assentam todas as vitórias.

J. A. - Há algo mais que você gostaria de dizer que nós não abordamos?

Helena Torres - Deus e a família são o canteiro onde florescem todas as

nossas conquistas. Ninguém, absolutamente ninguém, vence só.

Conclusão

Percebemos que na fala dos empreendedores, como da senhora

Helena Torres, são encontradas as características gerais do indivíduo

que além de ter o perfil de empreendedor, na sua história de vida

demonstra essa vocação, com o seu exemplo prático. Comuns aos

empreendedores são as características de ter gosto pelo desafio, ousadia,

coragem para enfrentar riscos, ter prazer no trabalho, capacidade

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166 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

gerencial, determinação, visão de futuro, visão global, talento no

relacionamento com pessoas, habilidade com as comunicações,

responsabilidade, persistência e muitos outros aspectos que podemos

enumerar.

O que então podemos encontrar de original, peculiar e único nos

depoimentos como este que acabamos de apresentar?

No que pese de semelhante nas respostas, em conseqüência da

metodologia utilizada (entrevista estruturada), o que encontramos de

típico, especial e exclusivo do depoente é a singularidade da sua própria

história de vida, onde nos são transmitidas lições como: que sistema de

gestão utiliza, processo de seleção e recrutamento, política de recursos

humanos, captação de recursos, parcerias... e tudo o que foi narrado ao

longo do texto.

Chama a atenção também, em um exercício acadêmico como este,

e isto é reconhecido pelos estudantes que desenvolvem tal atividade,

que este é o momento de (no jargão deles) comparar a “teoria” com a

“prática”, isto é, cotejar os paradigmas administrativos aprendidos no

decorrer do curso com as atividades reais de gestão.

Portanto, “dicas”, análise de conjuntura, como aproveitar as

oportunidades, como lidar com o fracasso... se tornam conselhos úteis

a todos aqueles que aspiram à condição de empreendedor ou desejam

se manter no seu negócio.

E o que verificamos de mais singular em uma conversação como

esta, é a capacidade inovadora e a criatividade do empreendedor, já

apontadas por Schumpeter na primeira metade do século anterior, e que

permanece atual até os dias de hoje.

Page 168: Revista Independência 2007

167Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Referências bibliográficas:

ALBAGLI NETO, Isaac. A revolução do espírito empreendedor. O capital

de risco na pequena empresa. Salvador: Bureau Gráfica e Editora, 1998.

AQUINO, Cleber. História empresarial vivida. Depoimentos de

empresários brasileiros bem sucedidos. Volume V. São Paulo: Atlas, 1991.

DOLABELA, Fernando. O segredo de Luíza. 14ª ed. São Paulo: Cultura

Editores Associados, 1999.

DORNELAS, José Carlos Assis. Empreendedorismo. Transformando idéias

em negócios. Rio de Janeiro: Campus, 2001.

Notas:

1 ALBAGLI NETO, Isaac. A revolução do espírito empreendedor. O capital de risco napequena empresa. Salvador: Bureau Gráfica e Editora, 1998, p.13.2 DOLABELA, Fernando. O segredo de Luíza. 14ª ed. São Paulo: Cultura EditoresAssociados, 1999, p. 37.3 DORNELAS, José Carlos Assis. Empreendedorismo. Transformando idéias emnegócios. Rio de Janeiro: Campus, 2001, p. 27.4 ALBAGLI NETO, 1988, p. 21-22; DOLABELA, 1999, passim.5 ALBAGLI NETO, 1988, p. 19.6 AQUINO, Cleber. História empresarial vivida. Depoimentos de empresáriosbrasileiros bem sucedidos. Volume V. São Paulo: Atlas, 1991, p. 20-21.7 Idem, p.22.8 Id, ibid, p.22.9 DOLABELA, 1999, p. 37.10 AQUINO, op cit, p. 16-17.11 Uma referência dada pelo professor para elaboração do roteiro de entrevistaencontra-se em DOLABELA, Fernando. Op cit, p. 87-89.

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168 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

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169Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

A REVISTA INDEPENDÊNCIA é uma publicação da FACULDADE 2 DE

JULHO, indexada no ISSN, que tem como missão fomentar a produção e

a disseminação do conhecimento das Humanidades.

O público-alvo da REVISTA INDEPENDÊNCIA é composto por

acadêmicos – professores, pesquisadores e estudantes – assim como

todo público interessado em conteúdo de profundidade analítica na área

de Humanidades.

O principal requisito para publicação na REVISTA INDEPENDÊNCIA

consiste em que o artigo represente, de fato, contribuição científica. O

tema tratado deve ser relevante, ter linguagem clara e objetiva, instigar

perspectivas provocativas e inovadoras, ter referencial teórico-

conceitual, ser consistente, e conclusão clara e concisa.

A REVISTA INDEPENDÊNCIA tem interesse na publicação de artigos

de desenvolvimento teórico, trabalhos empíricos, ensaios e resenhas.

A REVISTA INDEPENDÊNCIA está aberta a colaborações do Brasil e

do exterior, sendo a pluralidade de abordagens e perspectivas

incentivada.

ENCAMINHAMENTO DE ARTIGOS

Os artigos deverão conter, no máximo, 15 páginas e ser

encaminhados para a Editoria com as seguintes características:

Formatação:

Folha: A4

Editor de texto: Word for Windows 6.0 ou posterior

Margens: esquerda, direita, superior e inferior de 2 cm.

Fonte: Times New Roman, tamanho 12.

Parágrafo: espaçamento anterior: 0 pontos; posterior: 12 pontos;

entre linhas: duplo; alinhamento à esquerda.

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170 Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Texto: a primeira página do artigo deve conter:

Título, com, no máximo, oito palavras, em maiúsculas e negrito.

Resumo em português, com cerca de 150 palavras, alinhamento à

esquerda, contendo campo de estudo, objetivo, método, resultado e

conclusões.

Cinco palavras-chave, alinhamento à esquerda, em português.

Resumo em inglês e/ou espanhol, com cerca de 150 palavras,

alinhamento à esquerda, contendo campo de estudo, objetivo, método,

resultado e conclusões.

Cinco palavras-chave, alinhamento à esquerda, em inglês e/ou

Espanhol.

Em seguida, deve ser iniciado o texto do artigo.

Referências: devem ser citadas no corpo do texto com indicação

do sobrenome, ano e página de publicação. As referências bibliográficas

completas deverão ser apresentadas em ordem alfabética no final do

texto, de acordo com as normas da ABNT (NBR-6023).

Notas: devem ser reduzidas ao mínimo necessário e apresentadas

ao final do texto, numeradas seqüencialmente, antes das referências

bibliográficas.

Diagramas, quadros e tabelas: devem apresentar título e fonte

e ser colocados ao final do texto, após as referências. Sua posição deve

ser indicada no próprio texto e também deve constar referência a eles

no corpo do artigo. Deve-se evitar que repitam informações contidas no

texto.

Informações complementares: em separado, o autor deverá enviar:

Página 1: título do artigo; seguido da identificação do(s) autor(es)

– nome completo, instituição a qual está ligado, cargo, endereço para

correspondência, fone, fax e e-mail.

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171Ano 1, n. 1, Fevereiro de 2007 Revista Independência

Página 2: resumo indicando a contribuição do texto com cerca de

30 palavras.

Os artigos podem ser enviados em português, inglês ou espanhol.

Excepcionalmente, a critério do editor, serão aceitos artigos em outras

línguas.

Os artigos são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es).

AVALIAÇÃO

O processo de avaliação da REVISTA INDEPENDÊNCIA consta de

duas etapas:

· primeiro, uma avaliação preliminar pelo editor, que examina

a adequação do trabalho à linha editorial da revista;

· segundo, revisão técnica pelo conselho editorial.

Os autores serão comunicados dos passos do processo por e-mail.

Os avaliadores da REVISTA INDEPENDÊNCIA devem apresentar, quando

necessário, além do parecer quanto à publicação, sugestões de melhoria

quanto ao conteúdo e à forma, inclusive aos artigos não aceitos.

RESENHAS

A seção de resenhas tem como objetivo apresentar aos leitores

os lançamentos nos campos da Administração, Comunicação Social e

Direito, contribuindo, assim, para a disseminação dos referidos

conhecimentos.

As obras escolhidas para preparação das resenhas devem ser

recentes e apresentar conteúdo inovador e consistente, de interesse

para o público da REVISTA – INDEPENDÊNCIA.

As resenhas devem conter, no máximo, cinco páginas e podem

ser enviadas em dois formatos: Resenhas de um livro, analisando um

lançamento, nacional ou estrangeiro, e resenhas múltiplas, analisando

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duas a cinco obras, com as mesmas características de formatação dos

artigos.

Os arquivos devem ser encaminhados para a Editoria da REVISTA

INDEPENDÊNCIA, através do e-mail: [email protected].

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