revista democracia viva 26

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  • 8/7/2019 Revista Democracia Viva 26

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    D E M O C R A C I A V I V A 26MAR 2005 / ABR 2005

    Especial FSMDulce Pandolf

    Hamilton Pereira

    Mario Lubetkin

    Trabalhoescravo

    J. R. Ripper

    Comidamoderna

    Renata Menasche

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    s u m r i o

    entrevista

    Padre Ricardo Rezende

    Cultura

    Algemas virtuais,dramas reais

    Ibase Instituto Brasileiro de Anlises Sociaise EconmicasAv. Rio Branco, 124 / 8 andar20148-900 Rio de Janeiro/RJTel.: (21) 2509-0660 Fax: (21) 3852-3517

    Conselho CuradorRegina NovaesJoo GuerraCarlos Alberto AfonsoMoacir PalmeiraJane Souto de Oliveira

    Direo ExecutivaCndido GrzybowskiDulce PandolfiFrancisco MenezesJaime Patalano

    Coordenadores(as)Erica RodriguesIracema DantasItamar SilvaJoo Roberto Lopes Pinto

    Joo SucupiraLeonardo MlloMoema MirandaNbia Gonalves

    d e m o C r a C i a v i vaISSN: 1415-1499

    Diretor ResponsvelCndido Grzybowski

    Conselho EditorialAlcione ArajoAri RoitmanEduardo Henrique Pereira de OliveiraJane Souto de OliveiraRegina NovaesRosana Heringer

    Coordenao EditorialIracema Dantas

    SubedioAnaCris Bittencourt

    RevisoMarcelo Bessa

    Assistentes EditoriaisFlvia MattarJamile Chequer

    ProduoGeni Macedo

    DistribuioMaria Edileuza Matias

    Projeto GrficoMais Programao Visual

    DiagramaoImaginatto Design e Marketing

    CapaArte sobre foto de J. R. Ripper

    FotolitosRainer Rio

    ImpressoJ. Sholna

    Tiragem5 mil exemplares

    [email protected]

    O Ibase adota a linguagem de gnero em suas publicaes por acreditar que essa uma estrat-gia para dar visibilidade luta pela eqidade entre mulheres e homens. Trata-se de uma polticaeditorial, fruto de um aprendizado e de um acordo entre os(as) funcionrios(as) do Ibase. No casode artigos redigidos voluntariamente por convidados(as), sugerimos a adoo da mesma poltica.

    Para apoiar os projetos

    desenvolvidos pelo

    Ibase, escreva para

    [email protected] telefone para

    (21) 3852-6028.

    Doaes de pessoas

    jurdicas podem ser

    abatidas do Imposto

    de Renda.

    03 artiGo

    Formao de pesquisadores(as) negros(as),

    uma necessidade democrticaHenrique Cunha Jr.

    08 artiGo

    Alimentos transgnicos: no meu

    prato, no?Renata Menasche

    16 naCional

    Energia nuclear no Brasil, pauta malditaMarcelo Furtado e Sergio Dialetachi

    22 variedades

    24 internaCional

    De uma coalizo antiglobalizao a

    uma aliana por uma outra mundializaoPierre Calame

    30 Pelo mundo

    32 entrevista

    Padre Ricardo Rezende

    48 CrniCa

    A modstia do sbioAlcione Arajo

    50 resenHas

    54 oPinio iBase

    Software livre, conhecimento compartilhadona redeCssio Martorelli

    60 esPeCial Fsm

    Avanos e desafiosDulce Pandolfi

    O mosaico imperfeitoHamilton Pereira

    Uma comunicao altura

    dos novos desafiosMario Lubetkin

    78 Cultura

    Algemas virtuais, dramas reaisJ. R. Ripper

    86 esPao aBerto

    Autonomia e democratizao da culturaFrancisco Humberto Cunha Filho

    90 indiCadores

    Raios X das prefeituras brasileirasFranois E. J. de Bremaeker

    104 ltima PGinaMarco

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    a r t i G oH Ch J.*

    Formao depesquisadores(as)negros(as),uma necessidadeA historia da formao social brasileira a histria de um escravismo criminoso que produziu,

    ao longo de quase 300 anos, a imigrao macia de pessoas africanas. Como os processos

    de invases europias no continente africano encontraram fortes resistncias, as regies de

    explorao e lutas variaram e se alternaram no tempo, fazendo com que as pessoas cativas

    trazidas para c viessem de diversas regies e culturas. Dado o imenso desenvolvimento

    tcnico e social, para a poca, vivido pelos diversos pases africanos, o Brasil absorveu e se

    beneficiou de mo-de-obra portadora de todas as tcnicas e conhecimentos utilizados nos

    diversos campos da produo no pas. O conhecimento produtivo do Brasil Colnia funda-

    mentalmente africano, nas reas de minerao, agricultura, produo de ferro e de acar,

    manufaturas, tecelagem e construo. Isso tambm se observa no campo da poltica, se

    considerarmos que os quilombos foram a forma mais sistemtica de contestao do Estado

    escravista. No paradoxalmente, as artes e a cultura se fundam tambm sobre as mesmas

    heranas africanas. At a literatura e a msica ditas eruditas so realizadas pelos povos afri-

    canos e descendentes. Basta nomearmos os marcos das nossas artes e da nossa literatura

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    a r t i G o

    A produo da pesquisa cientfica no Brasil seinicia a partir do fim do sculo XIX e incio dosculo XX. Nesse momento, tambm se obser-va a participao ativa de afrodescendentes. Hcasos extremos como o do engenheiro TeodoroSampaio. Filho de escrava, depois de formadona Escola Politcnica do Rio de Janeiro, voltou

    Bahia para comprar a liberdade de sua me.Tornou-se gegrafo, sanitarista, pesquisador eest entre os fundadores da Escola Politcnicada Universidade de So Paulo.

    A contradio que nos preocupa a deque, mesmo em face de inmeras evidncias

    histricas, ainda necessrio discutir apesquisa sobre a po-pulao negra e a for-mao de pesquisa-dores e pesquisadoras

    negros. Os argumen-tos da histria noso suficientes parafirmar a conscinciade que existe um errose perpetrando nacomposio dos cor-pos de pesquisa bra-sileiros, nas temticaseleitas pela cinciabrasileira, sobretudonas polticas cient-ficas e de formao

    de pesquisadores epesquisadoras nopas. Surpreende noapenas a ausnciade polticas na rea,como tambm depreocupaes demo-crticas com a implan-tao dessas. Numpas que forma 6 mildoutores e doutoraspor ano, menos de

    1% formado de pes-soas negras, menos de 1% trata temas de interessedas populaes afrodescendentes.

    Ningum discrimina ningum, a razodisto que a pessoa negra pobre? Errado,o motivo que os mtodos de discriminaoesto institucionalizados de tal maneira que noincomodam as conscincias crticas. naturaluma pessoa negra no entrar nos programasde ps-graduao. Examinando o histrico decerca de 2 mil pessoas negras com mestradoe doutorado existentes no pas, vemos que a

    faixa etria das candidaturas e os regimes detrabalho esto fora dos perfis privilegiados pelaspolticas e pelos programas de ps-graduao.Em geral, pesquisadores e pesquisadoras negrosingressam no mestrado aos 35 anos, trabalhame precisam participar do sustento da famlia,o que incompatvel com o nmero e valores

    das bolsas. Quem os programas favorecemem iniciao cientfica e artigos? Esses(as)pesquisadores(as) vm de ensino universitrionoturno, que no d a oportunidade de inicia-o cientfica. As disciplinas de base dos temaspretendidos por estudiosos e estudiosas negrosno existem nas graduaes. A nica fonte deformao tem sido o prprio movimento negro.Os programas rejeitam pesquisadores e pes-quisadoras militantes dos movimentos negros.Bancas de entrevista no conseguem superar arelao patroaempregada existente nas nossas

    relaes sociais cotidianas, tornando as entre-vistas tensas e transformando as pesquisadorasnegras em antipticas. Fato mais notado entreas mulheres. Quem antiptico no entra. Asnegras muito exibidas no entram.

    Mas existem as pessoas negras queentram, mas no h quem conhea o temapara orient-las. Isso produz dificuldade em tersucesso na pesquisa no tempo determinado.A universidade brasileira no confessa sua ig-norncia nos temas de interesse da populaoafrodescendente. Assim, a responsabilidade doinsucesso fica por conta do(a) pes quisador(a)

    negro(a). O problema grave. Ainda mais grave o fato de que nada disso tem sido questionadopela sociedade democrtica acadmica.

    Ft tudo

    As populaes negras vivem em espaos geo-grficos com total ausncia de polticas pbli-cas. So reas sobre as quais o conhecimentocientfico praticamente inexistente. Forma-seum crculo vicioso, nada se sabe, nada se fazde coerente, porque nada se sabe. As polticas

    universalistas do Estado se mostraram incuas.No governo passado, uma pesquisa do Insti-tuto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea)concluiu o que os movimentos negros vinhamdizendo h quase 30 anos: a necessidade depolticas especficas. No entanto, quase nadase sabe sobre as especificidades porque os(as)pesquisadores(as) e os temas de pesquisas tma ver com interesses distintos das populaesde ascendncia africana.

    Negro(a) e afrodescendente aqui sosinnimos, definies que vo alm das

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    denominaes de raa social. Esto ligadosao trnsito da histria e a enfoques dos pro-cessos de dominao e da produo tnicada submisso neste pas. Temos falado danecessidade de pesquisa e de produo deconhecimento sobre os territrios de maioriaafrodescendente. No h pesquisa, no h

    poltica pblica, no h soluo objetiva dosproblemas.

    A democracia prev a representao detodos os grupos sociais em todas as instnciasde deciso. No estgio atual do capitalismo,a pesquisa cientfica e os grupos de pesquisaconstituem um grupo privilegiado de exercciodo poder quer pela ao direta na partici-pao nos rgos de deciso do Estado, querpela indireta, por meio da difuso dos conhe-cimentos que justificam as aes dos poderespblicos. Os grupos sociais cujos membros no

    fazem pesquisa ficam alijados dessas instn-cias de poder. A ausncia de pesquisadores epesquisadoras negros tem reflexo nas decisesdos crculos de poder: temas como educaoe sade de afrodescendentes s passaram paraa agenda do Estado brasileiro depois que osmovimentos negros, com esforos prprios,formaram uma centena de especialistas nessasreas e produziram um nmero relevante detrabalhos cientficos.

    Por que no h mais pesquisa e pesqui-sadores(as)? Porque no se quer. No existevontade poltica das instituies universitrias

    e muito menos dos rgos de poltica cientficado Estado. Os movimentos negros tm sidomuito ativos nas propostas de polticas pblicasde aes afirmativas para formao de pesqui-sadores e pesquisadoras negros. Essas polticass tm recebido a ateno de setores isoladosda sociedade e das fundaes internacionais.

    Vso oformst uttr

    So infindveis as posies e contraposies queo tema encerra. Ainda temos uma mentalidade

    nacional aversa existncia de pessoas negrasou, pelo menos, contrria e insensvel a qual-quer manifestao de afirmao da existnciade identidades negras. A averso no contraa existncia material desses seres ditos negros,mas contra a nossa existncia poltica. Tal qualdurante o perodo do escravismo criminoso,persiste a tica dominante do medo branco comrelao onda negra. As idias convenciam asociedade de que o perigo era negro, enquantoa criminalidade oficial branca do Estado e todosos processos de dominao impostos pela ma-

    triz europia no eram vistos como perigosos,danosos e dolosos sociedade. Tal mentalidadecontinua se processando, sob novas formas deinculcao, com os mesmos resultados de umcerto pnico e pelo menos indisfarvel descon-forto quanto viso da organizao poltica,cultural e identitria negra.

    O pas funciona bem, democrtico, aConstituio veda qualquer discriminao deraa, sexo ou religio. Esta a viso conformistae utilitria da nossa situao: a harmonia. Quandoum(a) pesquisador(a) de pele clara se denominanegro(a), correm os pares, s vezes at maisescuros(as) que eleou ela, para dissuadi--lo(a) com uma enxur-rada de argumentos,e essa pessoa passa aser vista como a pro-

    dutora da discrdia.Quem negro(a) nes-ta sociedade? Somosuma populao mes-tia. Temos, todas aspessoas, um poucode escravizado e es-cravizador no nossopassado. A pessoanegra passa a ser aintrodutora de temasestranhos comu-nidade harmnica

    brasileira.As fa l c ias

    desses argumen-tos no so anali-sadas com o rigord a c o m u n i d a d ecientfica, ficam nopseudo-senso cien-tfico. As refern-cias biologizantesdo tema superam aspolticas e sociais.

    Pesquisadores(as) dehistria se esquecem dos conceitos da histriasocial e se amparam no argumento biolgico.Socialmente, no temos nada do escravizador,visto que ele no mestiou a sua posse proprie-tria com a nossa. Vejam que o escravizadorsempre vendeu as crianas que teve com asescravizadas como escravizadas. A nossa ditamorenidade no est representada na distribui-o de renda. Importada a maioria ou quasea totalidade das idias cientficas difundidas nopas. Quais seriam os critrios da condenao

    Formao de Pesquisadores(as) neGros(as), uma neCessidade demoCrtiCa

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    a r t i G o

    dessa importao em particular? A crtica daimportao tambm prescreve uma ignornciasobre a nossa histria social, em que os movi-mentos negros h mais de um sculo pautavamessas temticas.

    certo que nos damos bem no campoinformal. Pulamos carnaval juntos(as) e jogamos

    futebol. Mas no estudamos juntos(as). Muitomenos, pesquisamos juntos(as). Mas um pro-blema social. No temos dvida de que umimenso problema social, para o qual no seprocura soluo. H quem diga que tem em casauma negra empregada que como se fosse da

    famlia. Sem que di-vida com ela o capitalcultural, a educaodas crianas ou oseguro-sade da fa-mlia. No Brasil, at

    cachorro membroda famlia.Desde que

    organizamos a As-sociao Brasileirade PesquisadoresNegros, em 2000,com o intuito deacelerar o processode pesquisa das te-mticas de interes-se das populaesafrodescendentes,

    tenho ouvido peloscorredores, e s ve-zes explicitamente,argumentos de quepesquisa no temcor ou que as te-mticas abordadaspor ns no so su-ficientemente uni-versais, ou seja, nofazem parte da ci-ncia. Concordo que

    a pesquisa no temcor, mas as polticas cientficas, que no tmnada a ver com o cerne do fazer cientfico, tmos atributos de cor, de grupo social, de grupohistrico, de marginalizaes e de produo dasdesigualdades sociais, econmicas e polticas.

    Quem detm o poder detm a primaziada cincia e determina quais temas so parte ouno da cincia. O mesmo universalismo cient-fico fez com que todas as teorias racistas fossemproduzidas, divulgadas e aplicadas pelos corposcientficos. O argumento da universalidade da ci-

    ncia no serve como cientfico em face da prpriahistria da sua construo eurocntrica. Por queas cincias fsicas ainda hoje travam um imensodebate sobre as idias de generalizao e univer-salizao da cincia, como as discordncias sobrea natureza do tempo e do espao, sobre a lgicada previsibilidade da cincia destruda pela teoria

    do caos? Podemos quase afirmar que no existeuma cincia universal, pelo menos nos moldes emque era concebida h 30 anos.

    A formao de pesquisadores e pesqui-sadoras negros passa por todos esses obstculosideolgicos, polticos, preconceituosos, eurocn-tricos, de dominaes e at mesmo de inocnciasteis vigentes nas instituies de pesquisa e nosrgos de deciso sobre as polticas cientificas. fundamentalmente um problema poltico deconcepo da sociedade e das relaes sociais.Problema que a sociedade cientfica se nega a

    reconhecer, negando-se a trat-lo e coloc-lona agenda das preocupaes. A mesma atitudeocorre na esfera governamental, que, de certaforma, reflete o pensamento das instituiesde pesquisa.

    O capitalismo segue fabricando seus ne-gros e suas negras. Utiliza a produo cientficapara reatualizar as estratgias de dominaoe subordinao desses negros e dessas negrasproduzidos. As definies de negros(as) e dasnossas condies de vidas seguiram se alterandoao longo do ltimo sculo. Para se ter uma idiadessa dinmica, basta acompanhar as modi-

    ficaes que as Naes Unidas tiveram sobrea temtica. Mas a mdia de pesquisadores(as)brasileiros(as) permanece alheia a tais definiese redefinies. A maioria ainda pensa a pessoanegra no mesmo referencial racista e biolgico dosculo XIX. Praticam as concepes da existnciade raas humanas e dos seus atributos. Tome--se como exemplo o imenso sucesso que o livroCasa-grande e senzala ainda faz entre essamaioria. Participam de um subdesenvolvimentocientfico mental no setor das relaes tnicas,com graves conseqncias para as populaes

    afrodescendentes. Sob um discurso de demo-cracia e igualdade, impem-se descasos e dis-criminaes sobre a necessidade de pesquisasem temas de interesse da populao negra e daformao de pesquisadores(as) originrios(as)desse grupo social.

    * HCh J.

    Professor titular do

    Departamento de

    Engenharia Eltrica e

    do Programa de Ps-

    graduao em Educao

    da Universidade Federaldo Cear. De 2002 a

    2004, foi presidente

    da Associao Brasileira

    de Pesquisadores Negros

    (ABPN)

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    Alimentostransgnicos:no meu prato,

    Ao menos desde 1999, os meios de comunicao tm veiculado notcias que atestam

    a presena, nas gndolas de supermercados brasileiros, de alimentos em cuja com-

    posio tomam parte organismos geneticamente modificados. Em 2000, as primeiras

    denncias de presena de transgnicos em alimentos industrializados em territrio

    nacional conformariam o eixo da campanha de opinio pblica conduzida pela orga-

    nizao ambientalista Greenpeace, Transgnicos no meu prato, no!, que inspira o

    ttulo deste artigo. Assim, a presena de organismos geneticamente modificados na

    alimentao das pessoas moradoras de Porto Alegre entrevistadas2 (Rio Grande do Sul)

    j era uma possibilidade. Tomando por abordagem as perspectivas de anlise propostas

    pela antropologia da alimentao, o objetivo deste artigo consiste em, colocando o foco

    nas vises e prticas de informantes em relao alimentao, buscar apreender suas

    percepes a respeito dos alimentos geneticamente modificados.

    1 Este texto uma verso resu-mida de um artigo de mesmottulo (ver Menasche, 2004).

    2 No perodo compreendidoentre novembro de 2001 emaro de 2002, foram realizadas25 entrevistas em profundidadecom pessoas moradoras dePorto Alegre (Menashe, 2003).Cabe comentar que, com o ob-jetivo de preservar o anonimatodas pessoas informantes, osnomes utilizados neste artigoso fictcios.

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    Sabemos que as classificaes, prticas e repre-sentaes que caracterizam um sistema culinrioagem na incorporao do indivduo a um gruposocial. Afinal, o homem se alimenta de acordocom a sociedade a que pertence (Garine, 1987:4). Ao mesmo tempo, pode-se afirmar que, ao sealimentar, o indivduo incorpora as propriedadesdo alimento. Temos a o princpio da incorpora-

    o, como proposto por Claude Fischler. Paraesse autor, a incorporao

    o movimento atravs do qual fazemoso alimento transpor a fronteira entre omundo e nosso corpo... Incorporar umalimento , em um plano real, como emum plano imaginrio, incorporar todas ouparte de suas propriedades: tornamo-noso que comemos. [...] certo que a vida ea sade da pessoa que se alimenta estoem questo cada vez que a deciso deincorporao tomada. Mas tambm

    est em questo seu lugar no universo,sua essncia e sua natureza, em umapalavra, sua prpria identidade: o objetoincorporado intempestivamente a podecontaminar, transformar... (Fischler,1993: 66, 69)

    Dessa forma, sugere Fischler, se oalimento constri a pessoa que o ingere, compreensvel que essa pessoa busque se cons-truir no ato alimentar. Da esse autor deduz anecessidade vital de identificao dos alimentos,fonte principal da atual ansiedade em relao

    alimentao. Ele indaga:Se no sabemos o que comemos, nose tornaria difcil saber no somente oque nos tornaremos, mas tambm oque somos? (1993: 70)

    a partir desse quadro interpretativo,refletindo sobre a comida industrializada dassociedades contemporneas, que Fischler (1993:218) cunha a expresso objeto comestvel noidentificado (ocni), uma transposio jocosa,para o tema alimentao, do termo utilizado

    em referncia a discos voadores, artefatos queseriam produzidos por seres de outros planetas,objetos voadores no identificados (ovni).

    A ansiedade humana em relao ali-mentao teria origem, segundo Fischler, noparadoxo do onvoro, manifestando-se pelaambivalncia entre neofilia e neofobia. Ou seja,o ser humano, para satisfazer suas necessida-

    des nutricionais, precisa introduzir alimentosvariados em sua dieta. Mas, ao mesmo tempo,depara-se com os perigos oferecidos por novosalimentos. Inovao e prudncia seriam, dessemodo, caractersticas contraditrias do onvoroem suas escolhas alimentares.

    Cabe aqui uma preciso, explicitadapor Ferrires (2002: 13) em seu estudo sobre ahistria dos medos alimentares a partir da IdadeMdia. Enquanto o medo seria referente a umobjeto conhecido e claramente identificado, aangstia e a ansiedade, mais difusas e difceis desuportar, seriam suscitadas pelo desconhecido.A inquietao diante dos alimentos modernos,gerada por acrscimos em sua composio conservantes, corantes, agrotxicos, aditivosetc. ou por novos processos de transforma-o, atestada pela multiplicao, nas ltimasdcadas, de rumores alimentares (Fischler, 1993:218). Vejamos como essa ansiedade se expressaentre algumas das pessoas moradoras de PortoAlegre entrevistadas.

    Os enlatados, eu compro, mas morro demedo! [...] Parece assim que eu pensoah, aquela coisa ficou ali dentro tanto

    tempo!. Que nem o milho verde, que euadoro, pra pr numa salada. s vezes euabro, e d vontade... [gesto significandoato de jogar fora]. (Clara)

    At que chega no supermercado, atque o cara compra, o produto passapor muitas coisas, e o cara no sabe poronde ele passou [...] Muitas coisas elesbotam ali no produto [inscries nosrtulos], porque a lei exige, mas quemme garante aquilo l? Eu no tenho

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    condies de analisar. Eu sou um caramuito desconfiado. (lvaro)

    A composio dos alimentos, seu proces-samento e a procedncia deles, bem como atrajetria que percorrem at serem colocados disposio do pblico consumidor, ou, maisprecisamente, o fato de serem obscuros, seriam,assim, como apontado pelas pessoas informantes,fonte de desconfiana. O que misturado ao pque se transforma em sopa? O que acrescentadoaos gros de milho verde para que se conservem portanto tempo na lata? Ou ao leite de caixinha, para

    que demore tanto aestragar? Com que alimentada a gali-nha, cujos pedaoscongelados so ofe-recidos ao consumo,acondicionados em

    bandejas, envoltaspor filme plstico?

    Se a presenade elementos desco-nhecidos na comidamoderna gera, entreas pessoas entrevis-tadas, desconfianae ansiedade, no de surpreender queencontremos o mes-mo tipo de reao

    diante dos alimentostransgnicos, resul-tantes, a partir demodificaes gen-ticas, da introduode genes estranhosaos vegetais habitu-almente consumidos.

    Sujo mpo:rprstssor omd

    dustrzds vezes tu nem sabe o que est com-prando. No sabe de onde vem, se temagrotxico, no sabe o que eles colocampra produzir. No sabe se limpo, nosabe se sujo. (Cleusa)

    Na fala de Cleusa, moradora de PortoAlegre, a idia de sujeira associada presenado desconhecido no alimento. Entre as pessoasinformantes, vrias seriam as que manifesta-riam considerar sujos os produtos trazidos do

    supermercado.

    Chego em casa, tiro, lavo... Bah, noconsigo nem ver! Nem um frango e nemoutra carne sem lavar! Meto na pia,corto tudo, tiro, limpo, lavo direitinhoe separo. [...] Eu tenho uma mania,eu passo um paninho umidozinho em

    tudo o que saquinho, tudo o que latinha, tudo que coisa que eu trago[do supermercado]. (Margarida)

    No que se refere, particularmente, sfrutas e verduras, inmeras seriam as pessoasentrevistadas que apontariam o descascamentoe/ou lavagem como medidas profilticas paraevitar eventuais efeitos nocivos causados pelapresena de impurezas especialmente resduosde agrotxicos nos alimentos.

    Meu pai no come, se ele v tu comer

    um tomate com casca! Meu pai cuidamuito isso a, pra gente tirar, porque aconcentrao [dos agrotxicos] est nacasca. (Rosane)

    As verduras, deixo de molho um pouco,pra sair o veneno. Eu ponho um pou-quinho de vinagre, s vezes deixo s nagua, porque a gua elimina o veneno,n? A deixo de molho. (Marta)

    As frutas que a gente compra no super,eu lavo tudo com sabo de glicerina.

    Pssego, uva, essas coisas que a gentecome assim. Banana eu no lavo, maso resto, eu lavo tudo com sabo deglicerina. (Dirce)

    Descascando e lavando, as pessoasinformantes considerariam ter, assim, expurga-das fsica, mas tambm simbolicamente asimpurezas das frutas e verduras que consomem.Inmeros so os estudos particularmente osque tomam por objeto a alimentao em pasesdesenvolvidos que vm apontando a crescentepreocupao com a sade nas escolhas dos

    alimentos, mas tambm com a boa forma ou aadeso a novas morais alimentares.

    Em depoimentos coletados para esta pes-quisa, o desconhecido, impuro, sujo seria identifi-cado pelas pessoas entrevistadas tambm comono-saudvel. Da mesma forma, podemos sugerir, interpretao construda por Douglas (1976) dasprescries alimentares contidas no texto bblico.Nesse sentido, Cleomar, adepta do Adventismodo Stimo Dia, citaria o Levtico para explicar asrestries que sua religio estabelece em rela-o ao consumo de carnes. Separando animais

    a r t i G o

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    limpos de animais imundos, a informanteassociaria a pureza do alimento decorrenteda ausncia de produtos qumicos sade.

    Deus, desde o incio, quando criou o mun-do, se preocupou que as pessoas vivessembem, e vivessem felizes, e com sade. Queno adianta tu viver, mas sem sade. A

    no teria alegria nenhuma. [...] Eu tenhocomo pra mim, que eu aprendi, o que euacho que errado em termos alimentares,o que eu acho que certo. Acho assim quequalquer pessoa entende que os produtosqumicos no fazem bem pra sade. [...] Osprodutos qumicos, nossa! superpre-judicial, causa cncer, doenas as maisvariadas, eu acho. (Cleomar)

    Essa viso pode ser mais bem apreendidase levarmos em conta que, como evidenciado porSandra Pacheco, no trabalho em que analisa, em

    duas diferentes comunidades da capital baianaadeptas do Adventismo do Stimo Dia, as rela-es entre prtica religiosa e hbitos alimentares,na cosmologia adventista o alimento

    um meio para a conquista/manipulao dasade do corpo tomado como templodo Esprito Santo, instrumento fsico aservio de Deus. Esta mquina precisaser cuidada para funcionar bem, cum-prir sua meta. A alimentao deve serpautada pela necessidade e no pelodesejo, devendo o controle racional do

    comer subjugar os elementos emocio-nais. Assim, os princpios de alimentaofazem parte de um projeto mais amplode racionalizao da conduta com vistasa transformar o homem em instrumentode Deus e prova de sua glria. (Pacheco,2001: 158)

    assim que, tendo por norma que aquiloque se come cabe garantir a sade do corpo,Cleomar afirmaria que a presena de produtosqumicos nos alimentos bem como modifi-caes genticas comprometeria sua funo,

    tornando-os possveis causadores de doenas.Para melhor apreender a associao entre

    pureza do alimento e sade, ser interessante,ainda, analisarmos o caso relatado por Lusa ePaulo a respeito do leite consumido. A maioriadas pessoas entrevistadas declararia sua adesoao leite acondicionado em embalagens longavida, vrias delas mencionando como vantagensa possibilidade de estocagem do produto quepermite que a aquisio do leite seja includano rancho, a compra semanal ou mensal, rea-lizada em supermercado e, uma vez aberta a

    embalagem, sua maior durabilidade. Entretanto,algumas manifestariam considerar o leite fluidooferecido em saquinhos de melhor qualidadeou mais saudvel. Entre essas, estariam Lusa ePaulo. Veremos a seguir a situao narrada pelocasal, cabendo aqui mencionar que ambos sedefinem como espiritualistas ele kardecista,

    ela umbandista, mdium.Segundo seu relato, toda a famlia, mas

    especialmente Paulo e uma das filhas do casal,manifestavam um problema de pele, de causadesconhecida. Buscando diagnstico para o pro-blema, Lusa realizaria uma consulta espiritual.

    Eu perguntei... foi pra Me Oxum, umaentidade da umbanda. A eu pergunteipra ela, falei de umas coceiras, umas aler-gias, falei no sei se vem dos cachorros,ou de alguma coisa que ns estamoscomendo. Eu at no estava sentindo

    coceira nenhuma, eu procurava pulgae no via, no via nada, mas como eramuito seco, podia ser uma poeira, umcimento, ns estvamos mexendo comcimento. A ela disse que era do leite,que tinha um conservante que estavafazendo mal. O leite de caixinha, eletem uns conservantes, umas coisas amais ali, n? Ento eles [o marido e afilha] observaram. Eu troquei de marca,mas no adiantou. A ele [o marido]comprovou, passou a tomar leite emp, a Jlia tambm. (Lusa)

    No diagnstico espiritual, a doena depele teria sua causa em algo que teria sido acres-cido ao leite longa vida para garantir sua conser-vao. Conforme narrado pelo casal, seguindo arecomendao de Me Oxum, o leite de caixinhaseria eliminado da dieta de Paulo e Jlia. Assim,eles se veriam curados do problema de pele.Desse modo, no apenas as pessoas informantesidentificariam no elemento adicionado ao leitea causa da doena, como o fariam a partir doparecer da entidade espiritual, o que indicaria, interessante notar, que tambm a partir do

    plano espiritual, simblico, a comida modernaseria identificada como contendo substnciasestranhas, sendo, ento, percebida como po-tencialmente malfica.

    Assim, tendo anteriormente evidenciadoentre as pessoas entrevistadas que a presena deelementos desconhecidos nos alimentos industria-lizados gera ansiedade, pode-se agora precisarque essa ansiedade substanciada a partir daassociao entre desconhecido e sujeira ouimpureza, desordem , por sua vez percebidacomo no-saudvel, fonte de doenas. Do mes-

    alimentos transGniCos: no meu Prato, no?

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    mo modo e, podemos sugerir, no campo doimaginrio, a partir da mesma construo , amaior parte dessas pessoas informantes referir--se-ia aos alimentos geneticamente modificadoscomo potencialmente prejudiciais sade.

    O tur s rprstsdo rur

    O molho, eu gosto de fazer, que da fazdo gosto. O molho pronto geralmentetem uns gostos meio estranhos, eu nogosto. Gosto de pegar o tomate, cortar,fazer. [...] No gosto muito de enlatados.[Por qu?] No sei, acho que o gosto no to bom. Acho que s vezes o gostono bom. No que tem gosto ruim,mas a gente nota que no um gostonatural, altera o gosto do produto, isso

    eu no gosto. Gosto de sentir o gostonatural dos alimentos. (Gilberto)

    No depoimento de Gilberto bem comonos de muitas outras pessoas informantes , a va-lorizao do naturalseria construda como reflexoda crtica ao artificial, qualificativo atribudo aosalimentos industrializados. Ou, como sugeridopor La Soudire (1995: 158-160), temos que,como reflexo da desconfiana ante o moderno,o naturale o ruralseriam identificados comoautnticos. As possibilidades de anlise oferecidaspor essa contraposio sero aqui exploradas.

    Entre as pessoas entrevistadas, as verdu-ras adquiridas em supermercados seriam per-cebidas como muito grandes, sem gosto.A galinha congelada parece palha, fica desi-dratada. Do leite tiram todos os nutrientes.Os ovos seriam considerados cpia dos degalinha mesmo. Talvez algumas das declara-es que afirmam a superioridade do sabor dosalimentos no-industrializados se constituamem reao ao que poderia ser caracterizadocomo gosto mdio, excludente de saboresfortes, proposto como sugere Eizner (1995:14) pela indstria agroalimentar. Ou, comoevidenciado por lvarez e Pinotti, em estudosobre as mudanas e permanncias nos hbitosalimentares dos argentinos,

    a insipidez dos alimentos oferecidos pelaindstria alimentcia e a sensao de inse-gurana provocada pela perda de controlesobre a cadeia de operaes de produoe elaborao da comida, provocam oresgate de variedades vegetais, animaislocais ou regionais e produtos artesanais...(2000: 272)

    Assim que molhos e temperos prontos,pratos congelados, bolos e sopas pr-preparados,pes e massas industrializados, alimentos enla-tados e refrigerantes seriam juntamente comoutros itens, anteriormente mencionados reite-radamente condenados. Em detrimento desses,as preferncias declaradas indicariam molhos,

    iogurtes, doces, bolos, pes e massas caseiros;galinhas e ovos caipiras; gua e sucos; milho emespiga, vegetais e temperos frescos; verdurasorgnicas. O que natural, fresco, caseiro, pr-ximo, tradicionalseria, dessa forma, afirmadoem oposio aquilo que artificial, processado,distante, industrializado, moderno.

    Os alimentos industrializados seriam perce-bidos como excessivamente manuseados, e, ainda,provenientes de lugares distantes em algunsdepoimentos seria manifestada a prefernciapor produtos locais, gachos , de origem no

    conhecida. Como no trabalho de Cazes-Valette(1997: 224), seria valorizada a identificao daorigem do produto, que, muitas vezes, passa porum ser humano, algum conhecido no casoestudado pela autora, que analisa o consumo decarne bovina na Frana ps-crise da vaca louca,esse algum seria o criador ou o aougueiro. Oalimento naturalno seria apenas consideradoo de melhor gosto. Em oposio ao alimento in-dustrializado, seria apontado como puro e, dessaforma, saudvel. Os adjetivos relacionados aonaturalseriam atribudos aos alimentos frescos,ou aos provenientes da feira, ou aos orgnicos, ouaos trazidos de fora.

    Ainda, especialmente nos casos das pes-soas moradoras de Porto Alegre entrevistadas etm origem no meio rural mas, como se podeobservar no depoimento de Karen, a seguir, nosomente entre essas , os adjetivos relaciona-dos ao naturalseriam tambm atribudos aosalimentos que remetem memria da infncia,da comida da me ou da av.

    A minha av materna, que era italiana,a famlia quando veio da Europa se esta-beleceu na zona rural, na colnia, eram

    colonos. E a minha av, que est viva athoje... ela uma pessoa muito ligada terra, sempre foi. E mesmo depois de virmorar na cidade, depois de uma certaidade ela veio morar com meus pais... elamanteve aquela profunda ligao com aterra. [...] Eu lembro da minha av italia-na, fazia uma polenta! A polenta, eu jadorava. Mas depois, no dia seguinte,ela cortava a polenta em fatias, quandoela estava j seca, e fazia em cima de

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    uma chapa. E eu comia aquilo com mel!Como era bom! Ai, como era maravi-lhoso! Polenta brustolada, como ela diz.Com mel. Que o mel, isso uma coisagozada, porque minha av italiana,meu av alemo, e alemo misturamuito doce com salgado, os italianos

    j no... Eu me lembro dos pes que aminha av fazia, tambm. Eu ajudavaela, que eu aprendi a fazer po com ela.E fao po, e gosto, adoro fazer po.Me lembro do perfume dos pes, docheiro da massa crua. (Karen)

    interessante remarcar que todas as pes-soas informantes, inclusas as nascidas em PortoAlegre, expressariam, de algum modo, uma me-mria culinria rural, vivida ou herdada, isto ,experienciada diretamente ou a partir do viven-ciado por seus antepassados. A ruralidade, mais

    que qualquer outro atributo, parece condensartodas as vantagens que distinguem o alimentodesejvel do alimento industrializado.

    De fora so os alimentos que vm dointerior, do meio rural, cuja origem associadadiretamente ao produtor. De fora, podem ser osalimentos trazidos pela pessoa informante, oupor algum de sua famlia, quando em visita regio natal, ou por alguma pessoa conhecidaou parente que de l vem. Podem, tambm, seros alimentos produzidos em chcara, perto dacidade. Ou os adquiridos em alguma viagem, deprodutores que os ofertam, beira da estrada.Ou os comercializados em feiras de produtosorgnicos ou no , supostamente pelas prpriaspessoas que os produzem. Ou, ainda, aquelesque, de algum modo como os ovos, trazidosde fora pelo pessoal do estacionamento,para vender , vindos do campo, chegam cidade por canais outros que os formalmenteconstitudos. Os alimentos que vm de fora soconsiderados os melhores. Das verduras, ditoque at a folha mais macia. A galinha, acarne e o leite no tm comparao, ou-tro gosto, as do supermercado no chegam

    nem a seus ps. Nos ovos daquelas galinhascriadas com milho, a gema supervermelha,bem diferente.

    Podemos, assim, supor que, em relao aosalimentos, ocorra o correspondente ao indicadopor Mathieu e Jollivet (1989: 11-12), que, naFrana, debruando-se sobre o tema das repre-sentaes da natureza, evidenciam que o sensocomum urbano tende a associar ao campo,ao rural, os valores atribudos natureza e aonatural. Ou, ainda, processos semelhantes aosapontados por autores que, na Europa, vm se

    dedicando ao estudo da comida como patrimnio e a o caso dos produtos de terroirfrancesesso particularmente significativos , mostrandocomo produtos alimentcios e pratos, associa-dos a uma regio, e referidos a uma naturezae a um campo, a uma identidade, tornam-se, apartir das representaes do mundo rural, bens

    de consumo especiais (Bonnain, 1991; Brard,1998; Delbos, 2000; Rautenberg et al., 2000).

    Assim, o rural tende a ser qualificadocomo natural, mesmo quando, dadas as carac-tersticas intensivas da produo agropecuria que inclui a utiliza-o de agroqumicosdos mais diversostipos , no o seria.Do mesmo modoque indicado por Ei-zner (1995: 14) para

    o caso francs, talvezpossamos identificarnessa valorizao donaturale do ruralmi-tos do naturale doartesanal, algo comoa busca do consumode imagens dos sa-bores perdidos. Aidealizao do ru-ral, transposta aosalimentos de fora,torna-se evidente em

    alguns dos depoi-mentos das pessoasmoradoras de PortoAlegre entrevistadasnascidas no meiorural. Em momentosdiferentes, as mesmaspessoas informantesdestacariam as delciasda comida do campoe, ao descrever a com-posio das refeies

    de sua infncia, mencionariam a pouca variedadede alimentos disponveis, ou mesmo a pobrezaalimentar.

    Prps ms

    No que se refere aos hbitos alimentares, aimagem de uma ruralidade idealizada noseria a nica disjuno perceptvel entre asvises expressas pelas pessoas entrevistadas esuas prticas. Embora cada uma declarasse, emalgum momento, como visto, algum grau de

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    desconfiana e ansiedade em relao comidamoderna, as descries de seus cardpios coti-dianos evidenciariam no apenas a inexistnciade adeptas de dietas como o vegetarianismo ea macrobitica, ou regidas pelo consumo devegetais exclusivamente orgnicos dietas que,como indicado por Oudraogo (1998: 18-19),

    em seu estudo das vises e prticas de consu-midores e consumidoras parisienses adeptos daalimentao orgnica, seriam parte integrantede um estilo de vida, regido por uma tica quevaloriza extremamente a vida simples, a natureza

    e o natural, o arte-sanal e o rstico [...]associados sade, ecologia, pureza, solidariedade , mastambm, e nem sepoderia esperar que

    fosse de outro modo,o amplo consumo dealimentos industria-lizados.

    C a b e a q u iuma observao.Como indicado porDarmon (1993: 77) no estudo em quemostra que, h maisde um sculo, a cres-cente incidncia decncer vem sendo

    percebida, na Europa,como decorrente dehbitos, a inclusos osalimentares, advindoscom a civilizao , comum, nas represen-taes que as socieda-des constroem sobreseu progresso, que osaspectos positivos domundo moderno se-jam omitidos. Assim,

    talvez possamos entender que, embora o consumode alimentos industrializados em geral, e pr--preparados em particular, seja bastante difundido,seriam pouqussimas as pessoas informantes queremarcariam a praticidade, facilidade ou econo-mia de tempo decorrentes de sua utilizao, amaioria preferindo ater-se a comentar, como visto,o que percebem como seus efeitos negativos.

    Observando as detalhadas descries derefeies coletadas com as pessoas entrevista-das, bem como os itens presentes em suas listasde compras, podem-se notar algumas combi-

    naes interessantes. Gilberto cujo trecho dedepoimento foi reproduzido anteriormente ,por exemplo, que prefere preparar seu prpriomolho de tomate, evitando o produto indus-trializado, artificial, consome diariamente, noalmoo, uma Coca-Cola light. J na geladeirade Carla, em que s entram vegetais orgnicos,

    adquiridos na feira ecolgica, freqentada se-manalmente, a Coca-Cola, presena obrigatria,no a light.

    A preocupao com a dieta faria com queLourdes fosse menos rgida em relao ao refrescoque coloca mesa do que com os ingredientesque utiliza na preparao das refeies.

    Extrato de tomate, eu no compro. Euvou na polpa de tomate, se eu queroengrossar meu molho... porque temmuito aquelas porcarias. Quer ver? Jte digo, olha aqui [a informante mostra

    a embalagem, que buscara no armrio,embaixo da pia]. Eu compro a polpa detomate. [...] Aqui no diz a composio?Vamos ver: tomate, acar e sal! Masse tu pegar um extrato de tomate nosupermercado, tu olha o que que tem!Um monte de coisa: conservantes, aci-dulantes, expectorantes [sic], no seimais o qu. (Lourdes)

    Agora eu comprei o suco, aquele [nomedo produto], com aspartame, eu acho.Ento, como ele no engorda, eu gosto

    de tomar um suquinho assim, eu fao. esse aqui , esse aqui Tea de Limo.Bah! [olhando o rtulo] Tem quantidadede coisa aqui! Tudo artificial! Acidulan-te... edulcorante... lll... um monte deporcaria. Mas no tem acar! Ento,isso aqui liberado. Criana gosta, n?Essas porcariazinhas, a gente est tendoque ter. (Lourdes)

    Inmeros seriam os exemplos equivalen-tes, referentes no apenas s bebidas, mas aosmais diversos produtos. assim que Dirce, que

    prefere as verduras orgnicas, lava com sabode glicerina as frutas e declarara no consumirgalinhas de supermercado, manifestaria entu-siasmo diante das misturas pr-preparadas parasopas: Eu adoro sopa de pacotinho, aquelesopo. Ah, eu amo!.

    Do mesmo modo, teramos pessoas que,preferindo fazer seus prprios doces, consomemfreqentemente macarro instantneo; recu-sando alimentos congelados ou embutidos,tm por costume utilizar bolos de caixinha;alimentando-se preferencialmente de vegetais

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    orgnicos, consomem chocolates cotidiana-mente; negando-se a incluir enlatados em seuspratos, servem, em refeies familiares, pratospr-elaborados, ou, ainda, que acrescentamcebolas e tomates ao molho comprado pronto,ou utilizam as misturas pr-preparadas parasopa para incrementar seus prprios caldos.

    Retomemos aqui a questo que se co-locara como ponto de partida para o percursodeste artigo: o que as vises e prticas daspessoas informantes em relao alimentaonos sugeririam a respeito de suas percepessobre os alimentos transgnicos?

    Pde-se, ao longo da pesquisa, observarque, para as pessoas entrevistadas, os alimentostransgnicos so percebidos como includos emuma srie de medos contemporneos, vindo aser associados a clone, radiao, vaca louca,mutao, m-formao fetal e cncer. Entretan-to, mesmo considerando os transgnicos po-

    tencialmente nocivos e declarando sua rejeioa esses alimentos, essas pessoas no adotam,efetivamente, a restrio a alimentos genetica-mente modificados como critrio de escolha deprodutos alimentcios. Assim, ao mesmo tempoem que os alimentos transgnicos so afirmadoscomo perigosos, entre tantos riscos com que sedeparam em seu dia-a-dia, as pessoas morado-ras de Porto Alegre entrevistadas parecem noeleger esse como um dos riscos com os quaisefetivamente devem se preocupar.3

    Ainda, evidenciou-se, entre essas pesso-

    as, a presena de ansiedade diante da comidamoderna. Os produtos industrializados sodesqualificados, ao mesmo tempo em que so

    afirmados como preferveis os percebidos comonaturais, associados a uma imagem idealizadado campo. Esses elementos indicariam uma dis-posio rejeio aos alimentos transgnicos.No entanto, os mesmos alimentos produzidospela indstria agroalimentar desqualificadosnos depoimentos das pessoas moradoras de

    Porto Alegre entrevistadas so cotidianamenteconsumidos por elas, o que leva a supor queisso tambm possa ocorrer com os alimentosgeneticamente modificados.

    Assim, se possvel afirmar que entrea maior parte das pessoas entrevistadas osalimentos transgnicos so objeto de rejeio,temos que essa opinio no necessariamenteencontrar correspondncia em suas atitudesdiante das prateleiras dos supermercados e mesa. Se verdade que os organismos geneti-camente modificados esto bem mais presentesnas lavouras e mesas brasileiras e gachas do

    que gostariam os setores contrrios aos trans-gnicos, as contradies entre vises e prticasdas pessoas moradoras de Porto Alegre entre-vistadas, evidenciadas na pesquisa, indicam queas certezas a respeito do tema permanecembastante aqum do que desejariam os setorespr-transgnicos. No chegamos ao fim dahistria.

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    *rmch

    Professora da

    Universidade Estadual

    do Rio Grande do Sul

    (Uergs) e pesquisadora

    da Fundao

    Estadual de PesquisaAgropecuria (Fepagro)

    menasche@portoweb.

    alimentos transGniCos: no meu Prato, no?

    3 Cabe aqui lembrar que, comoafirmam Douglas e Wildavsky(1982), a escolha dos riscos comos quais se preocupar dependedas formas sociais selecionadas...a escolha dos riscos e a escolhade como viver so realizadasjuntas.

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    n a C i

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    n a C i o n a lmc F* sg dch**

    Energia

    nuclearno Brasil,pauta

    A comunicao com o grande pblico na era da mdia digital, globalizada e em tempo

    real um dos grandes desafios da atualidade aos movimentos socioambientais. Em meio

    a milhes de textos, fotos, vdeos e sons, as organizaes da sociedade civil competem

    hoje por espaos na mdia para divulgar grandes desafios nacionais e internacionais, de-

    nunciar abusos e propor solues. Os meios de comunicao esto se concentrando num

    pequeno nmero de grandes corporaes da mdia e, com isso, assumindo o controle da

    informao perante o grande pblico. As organizaes no-governamentais esto sendo

    obrigadas a investir em estratgias de comunicao mais ousadas e inovadoras para

    garantir a possibilidade de comunicar a um pblico mais amplo, a baixo custo, temas

    importantes como meio ambiente, direitos humanos, desafios sociais, que muitas vezes

    no entram nas pautas dos grandes veculos de comunicao.

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    n a lA sociedade civil tem dois grandes desafios hoje.Em primeiro lugar, fundamental trabalhar emrede com o maior nmero possvel de organiza-es focadas em alguns interesses comuns parase lograr qualquer objetivo socioambiental. Emsegundo lugar, essencial mobilizar o grandepblico para que ele promova o processo demudana por meio da ao poltica e da aoindividual e coletiva.

    A campanha contra a retomada daaventura nuclear no Brasil conta com todos oselementos que desafiam os(as) profissionais decomunicao. Temos forte oposio pblica,relatrios tcnicos, documentos oficiais, anlisesqualificadas, material para Internet, campanhapblica e outros. Entretanto, esse tem sidoum tema de grande relevncia ambiental eenorme impacto financeiro que est recebendo

    pouqussima ateno da imprensa. O assunto complexo, pois envolve questes ambientais(lixo radioativo), econmicas (bilhes de dla-res em investimento) e de segurana nacional(enriquecimento de urnio, submarino nucleare o domnio do ciclo do combustvel nuclear).Segundo pesquisa realizada pelo Instituto deEstudos da Religio (Iser), em meado do anopassado, a pedido do Greenpeace, 80% dapopulao brasileira no quer a construo demais usinas nucleares no pas.

    No incio do primeiro governo civil eleito

    pelo voto direto, o ento presidente FernandoCollor (1990) noticiou, com grande destaque,o fim de um projeto militar secreto. Numa rearemota da Amaznia, fechou um buraco com300 metros de profundidade que seria destinadoa testes com artefatos atmicos. Era uma provareal de que as Foras Armadas chegaram muitoperto de explodir uma bomba nuclear nacional.Durante o governo Fernando Henrique, o setormilitar foi direcionado para a construo de sa-tlites e desenvolvimento do programa espacialbrasileiro. O presidente declarou, na poca, que

    as Foras Armadas estavam resignadas a viversem a presena de armas nucleares.

    No incio do governo Lula, o ento mi-nistro de Cincia e Tecnologia, Roberto Amaral,declarou que o Brasil deveria desenvolver capaci-dade plena para o desenvolvimento de artefatosnucleares, apesar de no estar considerando aconstruo de uma bomba atmica. A prioridadeseria o submarino nuclear e a gerao de energia.O programa permitiria que, at o ano de 2010,fossem produzidos 60% do urnio enriquecidonecessrio para a operao das duas usinasnucleares existentes no pas, Angra 1, Angra 2e, possivelmente, Angra 3.

    A questo nuclear expe a posio fa-vorvel do governo Lula na possvel aplicaoda tecnologia nuclear em reas militares, comoo submarino nuclear, e do enriquecimento de

    urnio. As recentes declaraes do atual ministrode Cincia e Tecnologia, Eduardo Campos, pro-movendo novas usinas e a retomada de projetosnucleares militares, corroboram as declaraesdo ministro-chefe do Gabinete de SeguranaInstitucional da Presidncia da Repblica, ge-neral Jorge Armado Flix, veiculadas pela Folhade S.Paulo em 14 de novembro de 2004. Naentrevista, o general afirmou categoricamenteque a aprovao da construo da usina nuclearde Angra 3 est para sair. Ele tambm disseque estados com capacidade nuclear esto uti-

    lizando organizaes no-governamentais parabarrar o Brasil no ingresso nesse clube seleto.Tais declaraes indicam que o Brasil pode

    caminhar na contramo do desenvolvimentosustentvel e que o governo Lula est disposto ahipotecar nosso futuro ambiental e econmico.A tecnologia nuclear financeiramente invivele no existe soluo para o seu lixo radioativo,apresentando um grande risco populao e aomeio ambiente. Durante o Frum Social Mun-dial 2005, as ministras Dilma Rousseff (Minas eEnergia) e Marina Silva (Meio Ambiente) mani-

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    n a C i o n a l

    festaram sua oposio aos planos do governoLula de construir a usina nuclear de Angra 3. Oprofessor Luiz Pinguelli Rosa, em evento do FrumBrasileiro de Mudanas Climticas, coordenadopor ele, tambm se ops ao projeto.

    O Greenpeace j mobilizou mais de20 mil mensagens ao presidente Lula contra a

    construo de Angra 3 e a retomada da aventuranuclear brasileira com a campanha Lulinha Nu-clear No d uma bola fora. Diga no Angra3!. A campanha circulou nos sites UOL, iG,Yahoo!, nas revistas poca, Isto, Carta Capital,mas foi recusada pela revista Veja sob alegao

    de que a campanhausava a imagem dopresidente sem suaautorizao. Discu-timos a opo da re-tirada do personagem

    Lulinha Nuclear doanncio, mas o textotambm parecia serproblemtico para arevista.

    arquvorto

    A histria da energianuclear no pas teveincio por volta de1945, ano da explo-

    so das bombas at-micas de Hiroshimae Nagasaki e do fimda Segunda GuerraMundial. Apesar depobre em reservasconhecidas de ur-nio, o Brasil era umgrande exportadorde monazita, um mi-neral radioativo.

    No entanto,

    essa exportao foialvo crescente de denncias de favorecimentoa interesses estrangeiros e contrabandos. Natentativa de moralizar essa situao, o governopassou a incluir nos contratos de exportaoa exigncia de beneficiar-se do minrio antesde remet-lo para o exterior. Assim, foramformados os primeiros grupos de pesquisas eimplantadas as primeiras unidades de benefi-ciamento, o que despertou desvarios sobre afabricao de uma bomba atmica nacional.

    A primeira central nuclear brasileira co-

    meou a ser construda em 1971, em Angra dosReis (RJ), sob suspeitas de instabilidade geolgicae ssmica do local escolhido. O nome da praia,Itaorna, em lngua tupi significa pedra podre.Simulaes de acidentes revelaram a fragilidadedo projeto e a impossibilidade de evacuao dapopulao local em caso de uma emergncia.

    Angra 1, conhecida popularmente comovaga-lume, por causa das freqentes interrup-es de funcionamento por motivos tcnicos, foiinaugurada em 1982, em meio a controvrsias,j que a fabricante norte-americana, Westin-ghouse, recusou-se a transferir a tecnologiaao Brasil.

    Em 1975, ainda sob o regime militar, ogoverno firmou com a Alemanha um acordode cooperao na rea nuclear. Pelo acordo,seriam instalados mais oito reatores no pas:dois em Angra dos Reis, ao lado de Angra 1,

    e outros seis no litoral sul do estado de SoPaulo. Reagindo rapidamente, a populaopaulista impediu a construo de suas usinaspor meio da criao de uma estao ecolgicaexatamente no local onde seria implantada acentral nuclear.

    Assim, das oito usinas previstas, ape-nas Angra 2 foi concluda. Sua construo foimarcada por problemas tcnicos e constantesatrasos no cronograma. Comeou a operarsomente em 2000, aps quase 20 anos deconstruo, a um custo de cerca de US$ 14bilhes. Segundo nmeros oficiais, j foram

    gastos com Angra 3 US$ 750 milhes entrea compra e a estocagem dos equipamentos.O projeto de Angra 3 foi paralisado em 1992por motivos econmicos. A indstria nuclearafirma que, at agora, j foi investida umaquantia de US$ 1,2 bilho em Angra 3 e que,para o trmino da obra, ser necessria maisuma quantia de US$ 1,8 bilho.

    Hoje, no mundo inteiro, at mesmona Alemanha, reatores nucleares tm sidogradativamente desativados e no h pratica-mente nenhuma nova usina sendo planejada

    ou construda, j que so consideradas carase perigosas.A tecnologia nuclear perigosa, j

    causou acidentes graves como o de Three MileIsland (Estados Unidos) e Chernobyl (Ucr-nia), com milhares de mortes e enfermidadesdecorrentes dos acidentes, alm da perda degrandes reas. A utilizao desse tipo de tec-nologia continua apresentando graves riscospara toda a humanidade. Reatores nuclearese instalaes complementares geram grandesquantidades de lixo nuclear que precisam ficar

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    sob vigilncia por milhares de anos. No seconhecem tcnicas seguras de armazenamentodo lixo nuclear gerado.

    Optou-se, nos reatores de Angra 1 e An-gra 2, por estocar o resduo dentro do prprioprdio do reator. No entanto, essa soluo provisria e arriscada, j que o prprio Relatrio

    de Impacto Ambiental de Angra 2 reconheceque no h soluo definitiva para os resduosnucleares a longo prazo.

    grds dts

    Em 6 e 9 de agosto de 1945, respectivamente,as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasakiforam destrudas por bombas atmicas lanadaspor avies do Exrcito dos Estados Unidos. Maisde 200 mil pessoas foram mortas nos ataques.Quase seis dcadas depois do bombardeio,

    milhares de pessoas ainda apresentam seqelasem virtude da exposio radioatividade.Mais tarde, vrios acidentes nucleares

    foram registrados no mundo. Em maro de1979, a usina norte-americana de Three MileIsland, na Pensilvnia, foi o local de um dospiores acidentes nucleares registrados athoje. O gs responsvel pela refrigerao de

    um de seus reatores escapou, provocando oderretimento do ncleo. Embora no hajanmeros oficiais de pessoas mortas ou afe-tadas pela radioatividade, sabe-se que houvegrande aumento de incidncia de cncer eproblemas de tireide, alm de vrios outrosefeitos negativos sobre todos os tipos de vida

    na regio.Sete anos depois, em abril de 1986, ocor-

    reu o mais grave acidente nuclear da histria.A exploso de um dos quatro reatores da usinanuclear sovitica de Chernobyl, na Ucrnia, lan-ou na atmosfera uma nuvem radioativa de 100milhes de curies nvel de radiao 6 milhesde vezes mais alto do que o que escapara dausina de Three Mile Island. Todo o centro-sul daEuropa foi atingido. Estima-se que entre 15 mile 30 mil pessoas morreram, e aproximadamente16 milhes sofrem at hoje alguma seqela em

    decorrncia do desastre.Um ano depois do acidente na Ucr-nia, em setembro de 1987, a violao de umacpsula de csio 137 por sucateiros da cidadede Goinia (GO), resultou em quatro mortes.Cerca de 250 pessoas tiveram problemas desade na poca. No ano passado, cerca de

    comuo mo mt

    Durante a ltima grande conferncia internacionalsobre meio ambiente liderada pelas Naes Unidas,

    a Rio+10, realizada em Johannesburgo em 2002,ficou muito evidente que no seria possvel superaros grandes desafios ambientais das prximas dcadas(mudanas climticas, gesto e acesso gua, polui-o, desmatamento, consumo sustentvel e outros)sem que o movimento ambientalista se articulassemelhor com os movimentos sociais, sindicatos, setoresacadmicos e setores industriais que promovem osprodutos e tecnologias alternativas. A comunicaoentre os atores integrantes de uma rede de interessecomum, assim como a comunicao com o grandepblico, se tornou um elemento fundamental dequalquer campanha de mobilizao.

    Na grande mdia, os fatos passam por um funil,e as matrias que chegam aos jornais, rdios, televi-

    so e Internet so fruto de uma deciso que leva emconsiderao os interesses corporativos, humanosou o perfil do pblico leitor. Muitas vezes, o assunto abordado com direcionamento poltico definido ebaixa qualidade. Essa baixa qualidade est freqente-mente associada ao pouco tempo e espao oferecidoao() jornalista para preparao da matria. Outrasvezes est associada ao investimento reduzido notreinamento de profissionais ou na falta de jornalis-tas especialistas na equipe para cobrir nichos comoo ambiental. Portanto, a presso econmica aliadaao posicionamento editorial dos meios faz com que,muitas vezes, a informao gerada pela sociedade

    civil no chegue ao grande pblico ou, eventualmen-

    te, sofra modificaes que podem comprometer seucontedo original.

    A comunicao dos temas ambientais passou aser um desafio maior com o aumento da complexi-dade dos problemas, menor especializao dos meiose menor interesse do pblico pela pauta ambiental.A reao de muitas organizaes foi preparar con-tedos com maior qualidade, oferecer capacitaopara jornalistas nos temas especficos e procurarmanter contato mais estreito com profissionais damdia para estabelecer um canal de relacionamentoe troca de informao.

    Esse cenrio complexo forou, em particular, asorganizaes ambientalistas a procurarem caminhosadicionais ou alternativos para informar o pblico e

    mobilizar a opinio pblica. A mdia local ou regio-nal, apesar de atingir um pblico menor, apresentamais espao e menos competio de pauta. A mdiaalternativa ou especializada tambm atinge um p-blico menor, mas permite, em geral, matrias comcontedo robusto, oferece mais independncia pol-tica e menos controle corporativo. A Internet oferececaminhos inovadores como os blogs e as redes derelacionamento. E ainda possvel o caminho diretocom o pblico.

    enerGia nuClear no Brasil, Pauta maldita

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    Dvudo qum fzO Greenpeace tem buscado melhorar a qualidadedo contedo de sua comunicao, investindo maistempo e recursos na preparao das histrias efacilitando o acesso direto da imprensa com osatores dos processos de mudana. O trabalho quefizemos na demarcao da reserva florestal emPorto de Moz um exemplo dessa abordagem,garantindo que a voz da comunidade tenha acesso mdia e que a discusso no seja polar izada pormadeireiros e ambientalistas.

    Outro exemplo recente aconteceu nos pri-meiros dias do assassinato da irm Dorothy Stangem Anapu. O Greenpeace deslocou jornalistas eequipamento de transmisso via satlite para ga-rantir que as organizaes sociais da regio quedetinham informao relevante e um importanteponto de vista pudessem ser ouvidas. Assim,conseguimos conectar o assassinato em Anapu,uma comunidade distante, sem telefonia celular,com a imprensa nacional e internacional emtempo real, fornecendo fotos, notas e entrevistas.

    Estamos buscando incrementar a divulgaode nossas campanhas nos meios locais, regionaise especializados. Essa foi a estratgia durantea Expedio Energia Positiva: viajamos mais de

    14.250 quilmetros, por 27 capitais e cidades em20 estados, no perodo de 73 dias, divulgandoas energias renovveis (solar, elica, biomassa epequenas hidreltricas). Nessa expedio, conver-samos com mais de 40 mil pessoas diretamente,tivemos mais de 30 horas de transmisso porteleviso e geramos mais de cem artigos em jor-nais e revistas. Tambm desenvolvemos contedoespecfico para Internet e, em particular, blogse redes de relacionamento. Outro exemplo foi acampanha contra os alimentos transgnicos, em

    setembro de 2004, que gerou 15 mil mensagenspara o presidente Lula via Internet e mais de 700mil visitantes em nosso site.

    Durante o ltimo Frum Social Mundial,testamos com sucesso uma nova estratgia decomunicao direta. Construmos no Acampa-mento da Juventude, em conjunto com a Fede-rao Gacha, estruturas de skate com madeiralegal e certificada pelo FSC, para engajar jovensna defesa da floresta e divulgar nossa campanhacontra a destruio da Amaznia.

    * mc F

    Diretor de campanhas

    do Greenpeace

    **sgdch

    Coordenador da

    campanha antinuclear

    do Greenpeace

    1.600 foram consideradas, oficialmente, v-timas da radioatividade do csio de Goinia,grande parte das quais so funcionrios(as)pblicos(as) que trabalharam na assistncias pessoas contaminadas. Atualmente, as 6mil toneladas de lixo radioativo resultantes doacidente esto armazenadas em contineres de

    concreto, em um depsito de Abadia de Gois,prximo a Goinia.

    O csio 137, subproduto das usinas nu-cleares obtido pela fuso do urnio 235, foi lar-gamente empregado no tratamento de vtimas decncer durante dcadas, por meio da radioterapia.Em Goinia, ele fora retirado de dentro de umequipamento que se encontrava nas runas do quecostumava ser o Instituto Goiano de Radioterapia(IGO), no centro da cidade.

    Em maio de 2003, uma equipe de espe-cialistas em radiao do Greenpeace realizou no

    Iraque inspees para detectar nveis de conta-minao prximo central nuclear de Tuwai-tha, localizada no sul do pas e abandonadadurante a ocupao norte-americana. Ativistasencontraram um continer com cerca de cincoquilos de uma mistura de urnio conhecidacomo yellowcake (bolo amarelo) a cu aberto,alm de detectarem taxas de radioatividade deat 10 mil vezes acima do considerado nor-mal, em alguns locais. O Greenpeace tambmapurou que pelo menos 150 famlias estavamutilizando barris pilhados da usina para guardar

    alimentos e gua.O projeto nuclear tratado com tanto

    sigilo na Presidncia que alguns ministros, quan-do perguntados sobre o tema, reconheceramque ele nunca entrou na pauta das reuniesministeriais. A questo nuclear no relevantena matriz energtica brasileira, no susten-

    tvel ou renovvel. Sua viabilidade s pareceinteressar a um setor especfico o militar. Ofortalecimento do investimento militar, com odomnio do ciclo do combustvel nuclear, podeser uma ameaa a nossa imagem internacionale nos remete diretamente aos anos de chumboda ditadura militar, quando o Brasil flertavacom a possibilidade de desenvolver artefatosnucleares. Portanto, fica a questo: como umtema to complexo, perigoso e de grande im-pacto ambiental e econmico no est sendoamplamente discutido na imprensa?

    Estamos num momento fundamentalpara a construo de parcerias com outrasentidades da sociedade civil contra a aventuranuclear brasileira, pois o assunto urgentee a deciso poder ser tomada na prximareunio do Conselho Nacional de PolticaEnergtica (CNPE).

    n a C i o n a l

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    O Jornal da Cidadania distribu-do para pessoas que tm pouco

    ou nenhum acesso informao

    crtica e comprometida com a

    democracia. Nossos leitores e

    leitoras so, especialmente, estu-dantes, professoras e professores

    de escolas pblicas de todo o

    pas. Mas tambm trabalhadoras

    e trabalhadores urbanos e rurais,

    lderes de comunidades, morado-

    ras e moradores de periferias. So

    60 mil exemplares distribudos

    gratuitamente.

    Participe de mais esta iniciativa

    do Ibase. Voc pode ajudar com

    contribuies financeiras ou orga-

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    v a r i ev a r i eF martuo fm

    O 10 Encontro Feminista Latino--americano e do Caribe ser realizadode 8 a 11 de outubro de 2005, emSo Paulo. Feministas brasileiras edo Cone Sul esto se mobilizandopara a formulao da linha poltica

    e de uma proposta de contedo, me-todologia e dinmica para o evento.

    Em 14 de julho, ocorrer emBraslia a primeira reunio da co-misso organizadora composta por18 mulheres de diferentes organiza-es com os comits consultivosnacional e do Cone Sul. A data e olocal foram agendados em virtudeda realizao, um dia antes, daConferncia Nacional de Polticaspara as Mulheres, ou seja, umaforma de aproveitar um momento

    de mobilizao feminista.A expectativa que o encontro

    seja um espao de convivnciaalegre e criativa, que preserve adiversidade de pensamento. Ns,da organizao, estamos trabalhan-do para oferecer condies paraque as mulheres reitam sobre oprprio feminismo e a democraciana nossa regio, diz a feministaDulce Xavier.

    www.10feminista.org.br

    Rspto: dru pr pz

    Anualmente, no ms de abril, oConselho Indigenista Missionrio(Cimi) organiza a Semana dos Po-vos Indgenas. A temtica escolhidapara 2005 Paz, solidariedade e

    reciprocidade nas relaes convi-da a sociedade brasileira a repensarestilos de vida, cultivando valorescomo a solidariedade e a recipro-cidade nas relaes entre pessoas,famlias, comunidades e povos. Atemtica est em sintonia com olema proposto pela Campanha daFraternidade da Conferncia Nacio-nal dos Bispos do Brasil (CNBB):Solidariedade e paz felizes osque promovem a paz.

    Para incentivar o debate, o Cimi

    organizar encontros em diversospontos do pas, entre os dias 17 e23 de abril, contando com a pre-sena do movimento indgena, demovimentos sociais, estudantes,estudiosos(as) e simpatizantes dacausa indgena. As regionais doCimi e o seu secretariado nacionalesto disponibilizando cartazes etextos para facilitar o aprofunda-mento das discusses.

    www.cimi.org.br

    Po drto d ddr

    Pesquisas indicam que so realiza-dos, anualmente, mais de 750 milabortos em condies inseguras noBrasil. Complicaes acarretadaspela prtica clandestina so a quartacausa de mortalidade de mulheres

    no pas. Alm disso, cerca de 250mil mulheres so internadas a cadaano no Sistema nico de Sade(SUS) por complicaes de abor-to, sendo a maioria negra, joveme pobre.

    Integrantes da organizao Cat-licas pelo Direito de Decidir estopromovendo campanha para queo aborto deixe de ser consideradocrime. A iniciativa prev a realiza-o de ocinas de formao sobrea situao do aborto, nas quais

    ser utilizado um kitcomposto porhistria em quadrinhos, vdeo, CDpara rdios e cartilha. Alm disso,haver coleta de assinaturas de for-ma qualicada, incluindo nomes depessoas com posicionamento claroem relao necessidade da legali-zao do aborto, tanto do ponto devista da sade pblica como social.

    www.catolicasonline.org.br

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    d a d ed a d e s

    cxr u

    Caxiri bebida tradicional indgenafeita base de mandioca, frutas ourazes fermentadas. Agora, tambmpassou a ser nome de CD produzi-do pelas comunidades uapixana emacuxi, com a participao de 24

    indgenas. O CD Caxiri na cuia O forr da maloca foi criado paradivulgar a histria dos povos daterra indgena Raposa Serra do Sol,de Roraima.

    As decises sobre a produo doCD ocorreram em assemblias nasaldeias e no Conselho Indgena deRoraima (CIR), organizao quecou responsvel por atender spessoas interessadas em adquiriruma cpia.

    O CD dedicado a Aldo Ma-

    cuxi, assassinado em 2003 emvirtude de um conito fundirio.Cantamos a vida, a natureza e aslutas por nossos direitos, arma otexto de abertura do encarte do CD,que tem, entre suas faixas, Nsqueremos nossa terra homologada,Sofrimento demais e Dom dendio.

    (95) 224-5761

    [email protected]

    www.cir.org.br

    Dt tso

    Lideranas negras de todo o Brasilesto se articulando para a realiza-o da Marcha Zumbi+10, previstapara ocorrer em novembro, emBraslia. A armao da unidadepoltica e o comprometimento na su-

    perao das desigualdades erigidaspelo racismo sero os pontos fortesda iniciativa.

    Entre os principais focos dediscusso da articulao para aMarcha esto as melhores estrat-gias de mobilizao e a data maisindicada para a sua realizao.Existem grupos que defendem quea articulao para Braslia deve seriniciada a partir do mbito munici-pal. Mas tambm h quem julgueser melhor convocar todos e todas

    para uma plenria nacional. A dataque vem sendo apontada como amais propcia para a realizao daMarcha o dia 16 de novembro,em vez do dia 20 (Dia Nacionalda Conscincia Negra), domingo,feriado. Braslia, obviamente, es-tar esvaziada.

    Web dd

    Est no ar a pgina Ao 17 Jornalistas e Comunicadores pela

    Infncia, em portugus e espanhol.O projeto uma parceria entreUnicef, Andi e Rede Andi AmricaLatina foi lanado com o objetivo

    de criar uma aliana internacionalpara enriquecer a prtica diria dacomunicao, tanto nos veculosque abordam a infncia em seutrabalho cotidiano como nos queso elaborados especicamente parao pblico infantil.

    Entre os servios oferecidospelo site esto: frum de discusso,bate-papo, biblioteca, banco defontes, guias, glossrios e agenda deeventos. Assim, comunicadores(as),jornalistas e estudantes de comu-

    nicao de todos os pases ibero--americanos e do Caribe poderodialogar, trocar novas experinciase discutir a qualidade da informaosobre a infncia e a adolescn-cia. Faa parte dessa comunidadevirtual.

    www.accion17.org

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    i n t e r ni n t e r n a C i o n a lP C*

    De uma

    coalizo

    [Traduzido do francs por

    Ana van Eersel, revisto

    por Jones de Freitas]

    Perante uma globalizao econmica sem uma regulao real, o que seria necessrio?

    Uma coalizo antiglobalizao ou a constituio de uma aliana por uma outra mundia-

    lizao? Se for o caso de uma aliana, qual seria sua agenda, quais seriam seus objetivos,

    suas modalidades, suas etapas e suas propostas?

    Quando se trata de oposio, uma coalizo suficiente e pouco importam as con-

    tradies de interesses, o simplismo e as anlises aproximativas, somente os resultados

    so importantes: quanto mais numerosos, mais fortes. O desafio, porm, outro quando

    se trata no s de se opor, mas tambm de construir um outro mundo, de afirmar que

    um outro mundo, uma outra mundializao possvel e, sobretudo, indispensvel. Para

    a humanidade, uma questo de sobrevivncia: o impasse social e ecolgico dos atuais

    modelos de desenvolvimento evidente, e as regulaes entre os Estados atuais so

    incapazes de garantir a paz e a justia.

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    a C i o n a lIsso pressupe, primeiramente, a cor-

    reta utilizao das palavras. A falta de pre-ciso dos conceitos favorece uma estratgiaque permite incorporar tudo quanto possvele atrair a ateno dos meios de comunicao; uma fonte de bloqueios quando se trata deconstruir pontos de vista.

    Os termos globalizao econmica

    e mundializao so constantemente utili-zados um no lugar do outro. Por isso, nopodemos entender como as pessoas que soantimundializao podem estar a favor deum outro tipo de mundializao.

    Retomemos, ento, a distino entremundializao e globalizao econ-mica. A mundializao a constataode interdependncias irreversveis entretodas as sociedades e todas as pessoas doplaneta. Da Internet ao efeito estufa, dainterconexo de idias e de moedas dosecossistemas, da competio pelo acesso

    energia fssil circulao de msicas.Estamos no mesmo barco, que frgil. E bem possvel que ele esteja navegandoem direo a um iceberg e se torne em breveum Titanic, cuja primeira classe e cujo paiolafundaro juntos. Essa a mensagem maisimportante da mundializao. necessriomudar de rumo a tempo porque o barcoreage lentamente; por essa razo, precisochegar a encontrar pontos de vista em co-mum e modos de pilotagem. Antes de 1940,a conscincia de humanidade era apenas um

    conceito filosfico; a humanidade tornou--se sujeito de direito depois do Holocausto.O grande desafio do sculo XXI fazer surgir,de forma progressiva, uma verdadei ra comuni -dade mundial dotada de novas capacidadesde regulao.

    O surgimento de uma sociedade civilmundial que utiliza encontros mundiais, tantoprprios como dos outros, que se beneficiado fenmeno Internet e que aborda simul-taneamente questes polticas, ecolgicas,econmicas e culturais, a clara expresso

    dessa mundializao. Desse ponto de vista,e agrade ou no aos respectivos partidrios,existem, entre Davos e Porto Alegre, maissemelhanas do que oposies! Esses Frunscriam os espaos de dilogo e os cenrios dedebate pblico na escala dos novos desafios.

    A globalizao econmica no amundializao, mesmo que se alimente dela

    e que a reforce. No um fato irreversvel, uma ideologia que aproveitou, durante adcada de 1990, a morte de seu rival, com aimploso do comunismo histrico.

    O desmoronamento do modelo pro-dutivista, centralizado e totalitrio caracters-tico dos sistemas sovitico e chins permitiuque um tipo de pensamento de direita, queexerceu durante muito tempo o domnio,reivindicasse o carter universal de pseu-doleis econmicas e anunciasse o fim dahistria e do fato poltico em benefcio doreino atemporal do intercmbio mercantil.

    A coalizo antiglobalizao (e noantimundializao, como freqentemen-te batizada pela mdia) o reflexo de reaesmultiformes, o sobressalto, a afirmao daprimazia da vida, da histria e da democra-cia sobre a rotina cinza das patentes, dasfuses de empresas, das lgicas de poder eda formatao do pensamento. Mas, apso despertar, temos que comear a agir,temos que construir. Para isso, necessrioestabelecer uma agenda.

    Primeira fase: reconhecer as diversi-

    dades e partir delas. Nem em Davos nem emPorto Alegre, a diversidade do mundo estverdadeiramente representada. A China, africa, os pases do antigo imprio sovitico,o subcontinente indiano e os pases muul-manos esto praticamente ausentes dessadiversidade, e cada Frum (o econmico eo social) s rene um pequeno nmero demeios, convencidos de que avanam nas te-ses que se encontram em debate. Em termosdo meio social e profissional e tambm emtermos geogrficos , cada Frum representa

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    i n t e r n a C i o n a l

    s uma pequena minoria do mundo.A construo de uma aliana para uma

    outra mundializao supe, pelo contrrio,repartir as diversidades do mundo e buscarpacientemente os terrenos de entendimentoem torno de desafios em comum.

    De qual diversidade se deve partir?

    Da diversidade geocultural, certamente. amais evidente. necessrio que cada povoesteja representado eqitativamente tendoem conta sua importncia numrica para sa irdo pt dalouette1 atual com a sua receitade um cavalo ocidental por uma andorinhaasitica ou africana. Mas tambm, e prin-

    c ipalmente, parasair da diversidadede meios sociais eprofissionais porquea nossa sociedade

    mundializada umasociedade na qual, ecom a ajuda da In-ternet, certos meios grandes empre-sas, ONGs, cientis-tas etc. dialogamde uma ponta aoutra do planeta,enquanto se acen-tua a separao deseus vizinhos maisprximos. Por con-

    seguinte, a partirdo surgimento decomunidades co-legiadas, pesso-as pertencentes aum mesmo meio,conscientes de suasresponsabilidades,pode-se estabelecero dilogo entre osmeios para identifi-car os desafios em

    comum.E o que de-bater? Sobre quais bases elaborar novasperspectivas? Tanto na democracia comonas empresas, o enunciado do problema e oestabelecimento dos termos do debate ante-cedem a negociao de solues e so maisimportantes que a negociao em si mesma,quando se trata de elaborar estratgias demudanas. O processo de identificao dedesafios em comum est atualmente no centrode toda estratgia de aliana para uma outra

    mundializao.Essa identificao possvel? A di-

    versidade de culturas, de pontos de vista ede interesses no representa um obstculoradical para qualquer dilogo? Supondo queesse dilogo seja possvel, poderemos fazersurgir dele desafios em comum e estratgias

    de mudana? possvel elaborar pontos de vista

    especializados em direo a uma abordagemmais global e mais sistemtica das transfor-maes que esto sendo geradas? imagi-nvel encontrar, no seio de cada meio sociale profissional, pessoas prontas a reconhecere assumir suas responsabilidades e a entrarem negociaes de cooperao conflitan-tes, correndo o risco de serem tratadas deidealistas por umas e de traidoras sociais,por outras? Todas essas questes tm uma

    importncia renovada aps o 11 de Setembroporque cada pessoa comea a compreenderque o simplismo a cruzada, e a cruzada a guerra. Elas esto no centro do processode trabalho e do dilogo que chamamos deAliana por um Mundo Responsvel, Plurale Solidrio (www.alliance21.org). As mes-mas questes estiveram tambm no centro daAssemblia Mundial de Cidados, que, poriniciativa da Aliana e com apoio da Fun-dao Charles Lopold Mayer pelo Progressodo Homem (FPH), reuniu-se em Lille, de 2 a10 de dezembro de 2001.

    A Assemblia Mundial de Cidados,por sua vez, dedicou-se a uma prtica com-parvel. Nessa assemblia, a presena de400 participantes refletia a diversidade dasociedade mundial. No debateram temaspreestabelecidos, mas sim elaboraram suaprpria agenda identificando suas preo-cupaes em comum. Essas preocupaespossuem, portanto, uma capacidade federa-tiva sem a qual uma sociedade democrticano pode conduzir transformaes maiores.Elas sintetizam de alguma forma o sentido

    comum.Essas preocupaes esto situadas emtrs grandes reas: os sistemas de pensamen-to; os sistemas de produo e a organizaoda vida econmica e social; e os sistemas deregulao, ou seja, a governana. Nossomundo tem sido arrastado, h dois sculos,por uma evoluo tcnica e econmica cadavez mais rpida. Nossos modos de pensar,nossos sistemas de valores e de educao enossos modos de regulao evoluram muitomais lentamente, tendo como conseqncia

    1 Literalmente pat de coto-via, uma expresso utilizadaem francs para aludir a umarepresentao desigual.

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    de uma Coalizo antiGloBalizao a uma aliana Por uma outra mundializao

    um atraso cheio de ameaas. esse atrasoque deve ser resolvido prioritariamente.

    Primeira rea de preocupao: osvalores e os sistemas de pensamento. A co-munidade internacional tem uma base ticacomum que pode ser, em complemento dosdireitos do homem, o fundamento dos com-

    promissos pessoais e coletivos, e tambmdo direito internacional e da governanamundial. A Aliana prope que a Carta deResponsabilidades Humanas se transformeno terceiro pilar da comunidade interna-cional ao lado da Declarao Universal dosDireitos do Homem e da Carta das NaesUnidas. O projeto da Carta, debatido eemendado por participantes da Assembliade Lille, apia-se numa definio ampliadada responsabilidade que cada pessoa deveassumir na proporo de seu saber e de seu

    poder, estendendo-se ao impacto direto eindireto de seus atos.Essa abordagem ampliada da res-

    ponsabilidade tem conseqncias prticasconsiderveis. Ela permite, por exemplo,definir as responsabilidades respectivas decredores, governantes e populaes, no casoda dvida internacional, e tambm permitefundar o princpio de precauo, promovero comrcio eqitativo e as finanas respon-sveis. Incentiva cada meio profissional aelaborar um cdigo de conduta baseado noexerccio prtico de sua responsabilidade. A

    Carta impulsiona o respeito, a dignidadee a tolerncia: isso garante que os direitosalheios sejam respeitados e leva a considerara diversidade de conhecimentos, culturas eecossistemas como um patrimnio comum.Finalmente, afirma a prioridade do ser sobreo ter, o que leva busca de modelos dedesenvolvimento, evoluo de valores nosquais o consumo mercantil no seja mais opadro de medida do progresso individuale coletivo.

    A evoluo dos valores corresponde

    do pensamento. Um mundo to interde-pendente como o nosso no pode mais sesatisfazer com uma viso segmentada, com-partimentada do ser humano, da sociedade,do conhecimento e da biosfera. A educao,a educao do ser e do mundo no pode es-tar baseada na transmisso de saber discipli-nar. Deve ser a iniciao aos valores comunsa todas as pessoas, que o meio pelo qualse podem entender os desafios do mundoe preparar os futuros cidados e cidadspara que possam ser sujeitos de sua histria.

    As mesmas prioridades de pluralismo, deinterdependncia, de responsabilidade, dedemocracia e de solidariedade devem per-mitir a reorientao dos esforos pblicos depesquisa e desenvolvimento tcnico.

    Segunda rea de preocupao: ossistemas de produo e a vida econmica e

    social. A ecologia industrial e territorial levaa prestar ateno ao fluxo de intercmbiosmateriais entre empresas ou entre as socie-dades locais e seu meio ambiente em lugar des se interessar pelos fluxos monetrios, a valo-rizao de intercmbios independentementede sua contrapartida monetria, a constituiodo capi ta l socia ldas sociedades, apossibilidade de or-ganizar em todosos nveis intercm-

    bios estipulados quecriam tanto vnculoscomo bens ummovimento de uni-ficao se produzprogressivamenteentre as inovaes eos ensaios at entodesordenados, al-guns inspirados pelaidia de um desen-volvimento durvel,outros pela idia

    de uma economiasolidria, e outrosf i n a l m e n t e p e l avontade de fugi rdo determinismoe dos impasses dopoderio do mercadomundial.

    A t e r c e i r ag r a n d e r e a d etransformaes, amais ampla, refere-

    -se governana,ou se ja, ao con-junto de regulaes estabelecidas pelassociedades para garantir sua coeso e seudesenvolvimento a longo prazo. A reformada governana a primeira prioridade quesurge da Assemblia Mundial de Cidados edos trabalhos da Aliana. Essa reforma deveocorrer em todos os nveis (o local e o global)e em todos os domnios (da gesto de ecos-sistemas reforma dos sistemas financeiros).As mudanas destes dois ltimos sculos

  • 8/7/2019 Revista Democracia Viva 26

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    P C

    Diretor da Fundao

    Charles Lopold Mayer

    obrigam a repensar os modos e os nveis deregulao, nela includa a democracia ou aorganizao dos Estados, cujas bases soanteriores revoluo industrial.

    Quatro orientaes destacam-se: aprimeira a implementao em todos osnveis, do local ao global, de uma gover-

    nana legtima, democrtica e eficiente.Uma diviso intensifica-se em todo o mun-do, entre a legalidade da governana suaconformidade s regras constitucionais esua legitimidade, o sentimento da popu-lao de concordar, com conhecimento decausa, com abandono da liberdade em nome

    das necess idadesdo bem comum.

    A democra-cia perde muito desua substncia se

    a s cond i es detransparncia noesto garantidas,se os contrapoderesno existem e se osverdadeiros motoresde transformaoesto fora do al-cance e do controledos cidados e dasc i d a d s . N o s s o ssistemas pbl icoscompartimentados

    tm, por sua vez,dificuldade em as-sumir com eficin-cia os novos desa-fios da sociedade.

    Para que associedades locaispossam dirigir seufuturo e tambmassumir as inter-dependncias mun-diais, necessrio

    definir sobre novasbases as modalida-des de cooperao entre os diferentes nveisde governana.

    A segunda orientao refere-se estruturao internacional de diferentesmeios socioprofissionais e atores sociais e organizao de parcerias entre os atores e opoder pblico.

    A governana no consiste s, eantes de tudo, em organizar os serviospblicos. A gesto do bem comum e nvolvea responsabilidade e a cooperao de to-

    dos, e isso que deve ser organizado. Nohaver governana democrtica, em escalamundial, se os diferentes atores sociais nose estruturarem tambm nesse nvel.

    A terceira orientao refere-se aopapel da governana na proteo do direitodos mais fracos. A primeira vocao das

    regulaes pblicas reequilibrar os me-canismos econmicos e sociais cumulativoscolocando o poder nas mos dos pases,dos atores sociais ou de pessoas cada vezmais poderosas. Esse reequilbrio , hoje,urgente, j que se trata de condies denegociao, de regras de jogo internacio-nais dos pases mais pobres ou mais fracos,ou da possibilidade de que, em cada pas,os grupos mais fracos faam valer seusdireitos e sejam cidados e cidads plenos.

    A quarta orientao, f inalmente,

    refere-se constituio de novas regulaespblicas capazes de assumir os novos de-safios sociais e ecolgicos da humanidadee de opor-se dominao somente pormeio das relaes mercantis. Da gesto dagua ou dos solos reforma dos sistemasmonetrios, dos limites da propriedade in-dividual definio ou preservao de benscomuns, essa orientao abrange e ordenamuitas das preocupaes do movimentoantiglobalizao.

    Sistema de pensamento, sistemasde produo, sistemas de governana...

    Como as transformaes sero enormes e,portanto, longas, urgente e imperativorealiz-las. Por causa disso, somente umaabordagem de acordo com os prpriosobjetivos tem possibil idade de sucesso:uma abordagem democrtica que parteda diversidade, de baixo para cima, ligan-do as propostas, os pontos de vista, asinformaes, a criatividade e as energiasprocedentes de diferentes regies do mun-do e de diferentes meios. Essa , a