democracia viva 20

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DEMOCRACIA VIVA 20 FEV 2004 / MAR 2004 Fórum Social Mundial Cândido Grzybowski Flávia Mattar Gustavo Marin João Sucupira Leonardo Méllo Silvana De Paula Vívian Braga Futebol globalizado Fábio Sá Earp Governo Lula Sonia Fleury Entrevista Dodô da Portela

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Revista Democracia Viva, edição 20

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Page 1: Democracia Viva 20

D E M O C R A C I A V I V A 20fev 2004 / mar 2004

Fórum Social Mundial

Cândido GrzybowskiFlávia Mattar

Gustavo MarinJoão Sucupira

Leonardo MélloSilvana De Paula

Vívian Braga

Futebol globalizadoFábio Sá Earp

Governo LulaSonia Fleury

EntrevistaDodô da Portela

Page 2: Democracia Viva 20

E D I T O R I A LCândido Grzybowski

Sociólogo, diretor do Ibase

oderíamos resumir a missão da revista Democracia Viva em exercer uma vigi-

lância cívica sobre a democracia em ação entre nós. Democracia, para o Ibase, são direitos civis e

políticos plenos. É ideal e vivência prática, como processo em permanente construção da sociedade

historicamente possível. Olhar a democracia em ação é uma forma de agir criticando, para extrair o

máximo de possibilidades dos limites reais.

Este número da Democracia Viva vem a público num momento em que nossos contras-

tes como sociedade são mais evidentes, ao menos para os olhares mais atentos. Temos o carnaval, com sua

explosão de criatividade, alegria e afirmação de uma identidade político-cultural que ninguém consegue

destruir. Somos nós, curtindo-nos como somos, mesmo nas piores adversidades, como nos anos de

chumbo. Na outra ponta, temos os 40 anos do início da ditadura militar no Brasil. Por mais que queiramos

esquecer os tristes anos, como lembra Álvaro Caldas, ainda não botamos a limpo o que foi a tortura

política entre nós para extrair a delação. Estamos pagando caro por isso. A crônica de Alcione Araújo é

reveladora da tragédia que se abate sobre nós até hoje. Alguém, sem nome, vive e morre. Triste herança no

cotidiano de nossa atitude complacente com o terror. A democracia não aguenta isso.

Explorar e expor nossos contrastes é uma maneira de olhar sobre os limites e possibili-

dades da democracia. Seja no futebol – artigo de Fábio Sá Earp –, seja no samba – a entrevista com Dodô

da Portela e o ensaio fotográfico de Cris Veneu, com texto de Fátima Pontes. Mas a contradição opera no

centro do governo Lula, como mostra Sonia Fleury, alertando sobre os cenários possíveis neste segundo

ano de “esperança esgarçada”. O olhar irrequieto e provocador de Democracia Viva acolhe o discurso

radicalmente democrático em defesa do feminismo de Ana Veloso. No âmbito internacional, a edição traz

o artigo de Carlés Riera sobre Barcelona. A cidade espanhola é uma referência do urbanismo mundial, mas

ainda não conseguiu superar o desafio de alcançar uma integração onde caibam o respeito à diversidade e à

cultura, além da sustentabilidade

Logo após o Fórum Social Mundial, em Mumbai, na Índia, a revista do Ibase não

poderia deixar de ser o espaço de ressonância deste que é, indiscutivelmente, o portador da maior onda

de cidadania planetária jamais vista. No calor do que ocorreu em Mumbai, diferentes impressões de

pessoas do Ibase que lá estiveram. Além disso, temos o artigo de Gustavo Marin. Trata-se de um

primeiro balanço, feito no calor da hora, instigante, apontando fraquezas e debilidades do FSM em sua

quarta edição – mostrando de forma cabal uma vontade de superar o déficit de globalidade, tanto

geográfica como social. Voltaremos a Porto Alegre em 2005 precisando dar um enorme salto de qualidade

em termos propositivos e de estratégias de ação.

Democracia Viva atende claramente a sua missão, trazendo tudo isto para debate público.

Mas precisamos de vocês, leitor e leitora, para que exerçamos nosso papel de vigilantes da democracia.

Ajudem-nos na tarefa de radicalizar o debate entre nós! A democracia e a cidadania no Brasil agradecem.

P

Page 3: Democracia Viva 20

S U M Á R I O

ENTREVISTA

Dodô da Portela

CULTURA

Do samba

Ibase � Instituto Brasileiro de AnálisesSociais e EconômicasAv. Rio Branco, 124 / 8º20148-900 Rio de Janeiro/RJTel.: (21) 2509-0660 Fax: (21) 3852 [email protected] - www.ibase.br

Conselho CuradorRegina NovaesJoão GuerraCarlos Alberto AfonsoMoacir PalmeiraJane Souto de Oliveira

Direção ExecutivaCândido GrzybowskiFrancisco MenezesJaime Patalano

Coordenadores(as)Erica RodriguesIracema DantasItamar SilvaJoão Roberto Lopes PintoJoão SucupiraLeonardo MélloMoema MirandaNúbia Gonçalves

Assessora da Direção ExecutivaMaria Nakano

D E M O C R A C I A V I V AISSN: 1415149-9

Diretor ResponsávelCândido Grzybowski

Conselho EditorialAlcione AraújoAri RoitmanEduardo Henrique Pereira de OliveiraJane Souto de OliveiraRegina NovaesRosana Heringer

Coordenação EditorialIracema Dantas

SubeditorMarcelo Carvalho

RevisãoAnaCris BittencourtMarcelo Bessa

Assistentes EditoriaisFlávia MattarJamile Chequer

ProduçãoGeni Macedo

DistribuiçãoMaria Edileuza Matias

Projeto GráficoMais Programação Visual

DiagramaçãoImaginatto Design e Marketing

Foto da CapaCris Veneu

FotolitosRainer Rio

ImpressãoSRG Gráfica e Editora

Tiragem4.300 exemplares

[email protected]

2 ARTIGO40 anos do golpe militar, um legadoque ainda paira sobre nósÁlvaro Caldas

8 NACIONALGoverno Lula: continuísmo noprimeiro ano. Mudanças no segundo?Sonia Fleury

14 VARIEDADES

16 CRÔNICARéquiem sem lágrimasAlcione Araújo

18 ESPORTEGrandezas e misérias do futebolglobalizadoFábio Sá Earp

24 INTERNACIONALDesenvolvimento urbano emBarcelona: conflito de vizinhançae consenso midiáticoCarlés Riera

30 PELO MUNDO

32 ENTREVISTADodô da Portela

40 RESENHAS

44 FÓRUM SOCIAL MUNDIALEstamos mais fortesGustavo Marin

48 OPINIÃO IBASEImpressões de MumbaiCândido Grzybowski, Vívian Braga,João Sucupira e Flávia Mattar

54 INDICADORESNotas de pesquisaSilvana De Paula e Leonardo Méllo

60 ESPAÇO ABERTOO discurso feminista na esfera públicaAna Veloso

68 CULTURADo samba

76 ÚLTIMA PÁGINAMarco

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FEV 2004 / MAR 2004 3

A R T I G OÁlvaro Caldas*

um legadoque ainda paira

40 anos do

Num angustiado ensaio escrito em meio ao espanto e à indignação provocados pela revelação

dos porões da guerra da Argélia, Jean Paul Sartre advertiu que �a tortura não é civil nem

militar, nem tampouco especificamente francesa, mas uma praga que infecta toda nossa

era�. Naquele momento, entre 1957 e 1958, a população francesa tomou conhecimento de

que o exército francês e as forças policiais da colônia empregaram sistematicamente a

tortura no enfrentamento aos rebeldes argelinos, levando a uma comoção generalizada.

golpe militar,

sobre nós

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4 DEMOCRACIA VIVA Nº 20

A R T I G O

Até então, no mundo chamado civilizado,acreditava-se que o emprego da tortura cons-tituía uma aberração de governos psicóticose degenerados, sem apoio popular, bárba-ros e déspotas não esclarecidos que viola-vam todos os princípios de justiça e de direi-to universalmente reconhecidos.

A praga antevista por Sartre alastrou-se na década seguinte. Dessa vez, tendo osgovernos ditatoriais da América Latina comocentro de uma nova fase de expansão e re-crudescimento da tortura como método ro-tineiro e institucionalizado de repressão pra-ticado pelo Estado. Esses governos contavamcom a cobertura e o ostensivo apoio técnicoe financeiro da CIA, agência do governo nor-te-americano e de outros Estados liberal-de-mocráticos, todos considerados civilizados.Até mesmo o know-how francês adquiridona Argélia foi transferido.

Gestada nos po-rões da ditadura militar,essa infecção constituium dos seus legadosmais nocivos à socieda-de brasileira; seus tentá-culos criaram raízes e seespalharam, aproveitan-do-se do ambiente pro-pício ao abuso de auto-ridade, à impunidade, àcorrupção e à violênciapolicial. A ditadura du-rou mais de 20 anos.Parte do seu acervo de ar-bitrariedades com muitosdos seus crimes � inclu-indo a localização doscorpos dos desapareci-dos políticos �, continuaaté hoje trancada nos ar-quivos militares.

Quando se falaem tortura, não se tratade desmandos de meiadúzia de policiais e ofi-ciais subalternos. Práti-ca inst i tuc ional izadapelo regime ditatorial, atortura tornou-se umpoderoso instrumentoda política repressora do

Estado, que se provou eficiente e eficaz, àcusta de muitas vidas, de centenas de pesso-as mortas e desaparecidas, de terríveis se-qüelas, físicas e morais. No solitário e abjeto

embate que se trava numa prolongada ses-são de suplícios, o torturador não se con-tenta com a rendição da pessoa torturada,e l e a lme ja apossa r- se de sua a lma,despojá-lo de seus valores, tornar-se donode sua voz para transformá-lo num dela-tor. O carrasco sevicia, humilha e adminis-tra a dor para arrancar uma informação,num sádico ritual que pode terminar comum cadáver em suas mãos.

No Brasil, ainda não fizemos uma dis-cussão para passar a limpo essa história, oque significa que estamos aptos a repeti-la,como de fato se repete país afora. Relatóriorecente da Organização das Nações Unidas(ONU) confirma que a tortura policial corresolta nas delegacias de polícia e penitenciá-rias do país.

No Rio, vale lembrar dois casos de im-pacto registrados pela imprensa. Em outu-bro do ano passado, Chan Kim Chang, co-merciante chinês naturalizado brasileiro, foipreso no aeroporto internacional Tom Jobime levado por agentes federais para o presí-dio Ary Franco. Três dias depois, foi deixadoem coma no hospital Salgado Filho. Para apolícia, o chinês causou uma lesão em simesmo. Policiais suspeitos foram afastadosde suas funções, mas as investigações ain-da não chegaram ao fim e à punição dospoliciais delinqüentes. Em outro caso, ain-da mais recente, o estudante de fisioterapiaRômulo Batista de Melo, 21 anos, foi presono dia 21 de janeiro de 2004 em Cabo Frio,sob acusação de roubo de carro. Seis diasdepois, seu corpo, com marcas de tortura esevícias, foi entregue à família. Relatóriopolicial informa que ele causou as lesõesem si mesmo. Quem não se recorda de queo jornalista Wladimir Herzog, assassinadopelo DOI-Codi em São Paulo, em outubro1975, foi dado como suicida?

Os casos de tortura e morte inte-graram-se à rotina das delegacias de polí-cia, com graves conseqüências para a so-ciedade. Pesquisa realizada pelo Datafolhapublicada em fevereiro deste ano pela Folhade S.Paulo revelou que 24% da populaçãopaulistana admite a prática de tortura físi-ca para que pessoas suspeitas confessemcrimes. Num país que manteve o regimede escravidão até o fim do século XIX, aaberração da tortura pode vir a se tornaraceitável, diante de uma política de Esta-do que ora se omite, ora a utiliza para seusfins ilegítimos.

Pesquisa realizadapelo Datafolhapublicada emfevereiro desteano revelou que24% da populaçãopaulistana admitea prática detortura físicapara que pessoassuspeitasconfessemseus crimes

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Museus do terror

Na América Latina, o violento legado dos anosde terror com seu séqüito de tortura, assassi-natos, execuções e desaparecimentos perma-nece à sombra e ainda não foi inteiramenterevolvido. Com o fim das ditaduras militaresno Brasil, Uruguai, Chile e na Argentina, dra-mas pessoais foram expostos, mas a ação cri-minosa e terrorista dos Estados continua en-coberta. São segredos mil i tares quepermanecem fechados.

Há indícios de que os ventos come-çam a mudar na Argentina. O presidenteNéstor Kirchner anunciou que o prédio datemida Escola de Mecânica da Marinha(Esma), principal centro de tortura durante aditadura, será transformado em museu parapreservar a memória das pessoas presas polí-ticas mortas e desaparecidas. Exemplo que ogoverno brasileiro poderia seguir, transfor-mando em museu e abrindo ao público asinstalações do DOI-Codi no Rio de Janeiro,

no 1o Batalhão de Polícia do Exército, ruaBarão de Mesquita, na Tijuca, com os fantas-mas que habitam seus porões.

Não tivemos um movimento de massade repúdio à praga da tortura porque não sedeu à opinião pública informações sobre aprofundidade da infecção. A covardia e osinteresses de uma parte da sociedade, quetransitou da ditadura para a democracia man-tendo postos no poder e nas Forças Arma-das, e uma imprensa que não se empenhouem recuperar esse passado maldito contri-buíram para que o povo brasileiro, e demaispovos latino-americanos, não tivessem essainformação, como a população francesa pôdeter no caso da Argélia.

Aqui não se criam recordações, é umaterra sem coisas passadas. As bandeiras de de-núncia, os cartazes com as pessoas mortas edesaparecidas e o grito �tortura nunca mais!�continuaram como se ainda ditadura fosse, nasmãos de grupos politizados, entidades de

Barbárie em questão

A guerra da Argélia reabriu uma ferida. Asprimeiras vítimas da tortura naquele país fo-ram os revolucionários árabes que lutavampela independência, ou seja, os estrangeiros,os �outros�, os negros, os oprimidos, pon-do em xeque o problema geral das políticasde colonização européia. A incômoda pre-sença da barbárie no centro da Europa cau-sou escândalo e o caso teve enorme reper-cussão. Em grande parte porque oressurgimento da tortura no século XX eravisto como um fenômeno confinado e res-trito a algumas formas de governos ditatori-ais, de características aberrantes emanipuladoras, como foram os casos da Ale-manha nazista e a selvageria stalinista naUnião Soviética e seus estados satélites.

A França levantou-se, indignada. Comofora possível chegar até aquele ponto?Após 1957, quando as denúncias se in-tensificaram na imprensa, a mobilizaçãode repúdio da sociedade cresceu e contri-buiu para a queda da Quarta República e,logo a seguir, para a independência daArgélia, em 1962. O povo francês orgu-lhava-se do caráter humanitário e legal desuas instituições e não estava preparadopara acreditar que oficiais de seu exército

fossem capazes de dependurar um prisio-neiro no pau-de-arara. Abriu-se um de-bate nacional, envolvendo políticos, sin-dicalistas, jornalistas e intelectuais doporte de Sartre e de Albert Camus, esteum pied noir, nascido na Argélia. A im-prensa teve papel relevante, contribuin-do para revelar a extensão e gravidadedos fatos, com a comprovação de que asautoridades francesas, militares e mem-bros da polícia utilizaram a tortura nãoapenas contra argelinos mas também con-tra cidadãos e cidadãs franceses.

No mesmo ensaio, que serviu de prefá-cio ao libelo �La question�, de Henri Alleg,citado no livro Tortura, do historiador nor-te-americano Edward Peters, Sartreexteriorizou o seu horror:

Em 1943, na rua Lauriston, o quar-tel-general da Gestapo em Paris, os fran-ceses gritavam de agonia e dor e toda aFrança podia ouvi-los. Naqueles dias asconseqüências da guerra eram incertase não queríamos pensar no futuro. Ape-nas uma coisa parecia impossível emquaisquer circunstâncias: que algum diahomens agindo em nosso nome fizes-sem outros gritar daquela forma.

40 ANOS DO GOLPE MILITAR, UM LEGADO QUE AINDA PAIRA SOBRE NÓS

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6 DEMOCRACIA VIVA Nº 20

A R T I G O

* Álvaro Caldas

Jornalista, professor e

escritor. Autor de

Tirando o capuz

(Codecri, 1980), que

será relançado no

primeiro semestre de

2004 pela editora

Garamond

anistia, mães, avós e familiares, ou seja, emseus pequenos guetos, como se ainda vigo-rasse o regime de opressão e essas fossembandeiras da esquerda, de algunsrevanchistas, e não uma questão de interessede toda a sociedade.

Já diziam os gregos que, diante de tra-gédias e crueldades incomuns, as pessoas,para ganhar coragem, sempre costumam re-petir que �já viram coisas piores�, quando de-veriam dizer que �o pior está por vir�. Entrenós, a imagem da tortura praticamente ficoureduzida a um interrogatório de delegaciapolicial, durante o qual são aplicadas rotinei-ramente umas porradinhas, uma extravagân-cia do Dops praticada por delegados. O maisfamoso deles, Sérgio Fleury, um facínora cíni-co, morreu prematuramente, ainda durante a

ditadura, num estranhoacidente em seu barco,para satisfação dos res-ponsáveis maiores, osmilitares, que haviam cri-ado o monstro.

Tudo se passoumuito perto

Vista sob essa ótica de-formada pelos temposde censura, a tortura vi-rou sinônimo de �maustratos�, um detalhe me-nor da �guerra suja�, ex-pressão que iguala todasas pessoas na mesmavala, torturadores e com-batentes, afinal anistia-das juntas. Porém, a di-tadura brasileira e suascongêneres institucio-nalizaram, de fato, a tor-tura e a utilizaram comouma poderosa arma aserviço do Estado paradifundir o terror, omedo, obter informa-ções e eliminar seus ad-versários políticos. E ofez com grande eficiên-cia, numa ação integra-da denominada Opera-ção Condor.

Os oficiais mili-tares recrutados para compor suas equi-pes receberam tratamento de elite, salári-

Todos os �aparelhos�eram devidamenteequipados com osprosaicos e terríveisinstrumentosnecessários a seuinfame e árduotrabalho. Poucaspessoas no Brasilconhecem de fatoessa história.Quando sãoinformados, osjovens abrem a bocahorrorizados

os e soldos extras, benefícios familiares,além de clandestinidade, impunidade, pro-teção e verbas secretas. Também foram trei-nados em cursos e escolas especializadas, umadelas mantida pela CIA no canal de Panamá.A ainda recente experiência francesa na guer-ra da Argélia foi muito bem-vinda. O regimedestinou a esses seletos grupos de foras-da-lei espaços invioláveis dentro de seus quar-téis e em delegacias, com direito a casas esítios clandestinos, como a famosa �Casa doterror�, em Teresópolis.

Todos os �aparelhos� eram devidamen-te equipados com os prosaicos e terríveis ins-trumentos necessários a seu infame e árduotrabalho. Poucas pessoas no Brasil conhecemde fato essa história. Quando são informados,os jovens abrem a boca horrorizados.

Na Casa do terror, os carrascos não te-riam testemunhas. Somente os deuses e algu-mas pessoas desmemoriadas sobreviventes da-quelas oficinas de tortura. Mas tudo se passoumuito perto, do nosso lado. Como na ruaLauriston, em Paris, onde franceses gritaramde agonia e de dor, muitos brasileiros grita-ram de dor e agonia no 1o Batalhão da PE, ruaBarão de Mesquita, centro de operações doDOI-Codi no Rio, e também nos porões de umatranqüila delegacia policial na rua Tutóia, bair-ro do Paraíso, em São Paulo, sede da temívelOban (Operação Bandeirantes), ou em tantosoutros lugares no país onde essa praga con-fortavelmente se instalou.

E com ela o sádico, cruel, covarde erotineiro exercício da macabra exploração docorpo nu da pessoa torturada pelo tortura-dor, à procura dos pontos sensíveis de dor ede sua rendição física e moral.

Naquela assombrada casa de pessoasmortas onde reina o terror e o tempo não pas-sa, o torturador busca infatigavelmente extra-ir � esse é o verbo � aquela informação que apessoa torturada resiste em lhe dar, numa pe-nosa negociação cujo preço é a dor. Uma bru-tal negociação que se desenrola em meio agritos, choques, porradas, execuções simula-das, queimaduras, afogamentos, estupros, fo-bias, humilhação, desespero, suor, dejetos esangue. Agonia e morte de muitas pessoas,seus cadáveres.

Esse é o passado que precisamos pas-sar a limpo. Para livrar a sociedade dessa pra-ga, é indispensável remover os escombros dei-xados pela ditadura. Quarenta anos decorridosdesde o golpe militar de 1964, o abominávellegado ainda paira sobre nós.

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O que era segredo,a gente revela.

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Page 9: Democracia Viva 20

N A C I O

8 DEMOCRACIA VIVA Nº 20

N A C I O N A LSonia Fleury*

GovernoLula:

O presidente Lula foi eleito por uma ampla coalizão, que somou aos votos tradicionais

da esquerda os de outros setores descontentes com o modelo político liberal. Neste

último grupo, incluem-se empresariado, industriais e a classe média. Sob o lema �A esperan-

ça venceu o medo�, o novo governo tomou posse prometendo mudanças com seguran-

ça, demonstrando o amadurecimento político do líder sindical que organizou a resistência

da classe operária aos governos militares e fundou o Partido dos Trabalhadores (PT).

Internacionalmente, a vitória de um governo de esquerda no Brasil representou a possi-

bilidade de construção de uma alternativa à globalização subordinada aos interesses da

especulação financeira.

A vitória de Lula só pode ser explicada como resultado da política liberal implantada

pelo governo anterior, que provocou um desmonte simultâneo nos canais de representação da

burguesia e da classe trabalhadora. É nos marcos da crise de hegemonia do modelo liberal

vigente na década de 1990 que se constrói um projeto alternativo de poder. A eleição de

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FEV 2004 / MAR 2004 9

N A L

* Texto apresentado na jorna-da �Um ano de governo Lula:oportunidades e desafios�,promovido pela Escola Brasi-leira de Administração Públi-ca e de Empresas (Ebape) �Fundação Getúl io Vargas,Universitat Pompeu Fabra eFundación Cidob, em Barcelo-na, Espanha, em 1o de dezem-bro de 2003.

continuísmo noprimeiro ano.Mudançasno segundo?*

Lula representaria, portanto, a possibilida-de de unir os interesses do capital produtivoe do sindicalismo em torno de um projetode desenvolvimento nacional, alterando aatual correlação de forças e, assim, reduzin-do a margem de manobra do capital finan-ceiro e sua voracidade devastadora da eco-nomia nacional.

O novo governo recebeu uma herançaeconômica amarga de seus antecessores, coma economia crescendo cerca de 1% ao ano,incapaz, portanto, de criar empregos parauma nova geração de trabalhadores e traba-lhadoras. O crescimento do desemprego e dainformalidade no mercado de trabalho, a vul-nerabilidade da economia, o crescimento ex-ponencial da dívida como porcentagem doProduto Interno Bruto (PIB), o desmonte doaparato estatal desenvolvimentista por meiode privatizações dos ativos públicos e a inca-pacidade de desenvolver mecanismos de re-gulação foram legados da política liberal. Oinvestimento social realizado, capaz de me-lhorar os indicadores sociais, não reduziu a

concentração da renda, fato que tem geran-do uma explosão sem precedentes da violên-cia urbana.

Economia vulnerável

Neste contexto, e para gerar condições degovernabilidade, armou-se uma ampla coa-lizão liderada por dirigentes do PT, mas comuma composição diversificada, que se refle-tiu na contraditória composição do Ministé-rio de Lula. Nesse sentido, é lapidar a afir-mação de frei Beto, assessor do presidente,ao afirmar que o PT havia chegado ao gover-no, mas não ao poder. Mesmo assim, a es-peculação financeira se fez sentir imediata-mente após a eleição, gerando uma sensaçãode perda de controle da estabilização eco-nômica gerada a altos custos no governoanterior, mas mantendo a economia comple-tamente vulnerável. Apesar de Lula ter seapresentado como candidato responsável,que respeitaria os contratos firmados e man-teria a estabilidade financeira, a especulação

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10 DEMOCRACIA VIVA Nº 20

N A C I O N A L

financeira que se seguiu à sua vitória fez comque o dólar disparasse e a estimativa inter-nacional do risco de investir no Brasil subis-se vertiginosamente.

A opção por uma política econômicaortodoxa, dando continuidade àquela assu-mida pelo governo anterior em consonânciacom as metas acordadas com o Fundo Mone-tário Internacional (FMI), foi adotada com vis-tas a estabilizar a economia e restaurar a cre-dibilidade ameaçada no mercado financeiro

internacional. Sem recur-sos para investir em po-líticas públicas, o gover-no se dedicou a cortargastos e aumentar as ex-portações, aumentando osuperávit primário, emum esforço gigantescopara gerar divisas e pagarjuros da dívida pública.

As conseqüênciasforam devastadoras: odesemprego atingiu ní-veis assustadores, aeconomia entrou em re-cessão, a indústria ficouestagnada, empresariadoe classe trabalhadora jánão suportavam a absurdataxa de juros e a demandadiminuiu no mercado in-terno. Nesse contexto, ogoverno encaminhou aoCongresso as propostas dereforma previdenciária etributária, ambas voltadaspara promoção do ajustefiscal e aumento da cre-dibilidade internacional

do governo. O processo de negociação des-sas reformas evidenciou algumas das princi-pais qualidades e deficiências do governo. Porum lado, o governo Lula inovou ao instituirdiferentes instâncias de negociação das re-formas, seja com a sociedade civil, no Conse-lho de Desenvolvimento Econômico e Social,seja com os governos estaduais. Dessa for-ma, deu maior densidade ao processo demo-crático, reduzindo as pressões de congressis-tas por barganhas de cargos e verbas públicaspara aprovar as reformas. Por outro lado, pri-sioneiro da armadilha da política econômicae do mercado financeiro internacional, redu-ziu a reforma da seguridade social a um ajus-te fiscal, diminuindo os gastos estatais com o

funcionalismo público. Dessa forma, deixoude formular uma proposta para as carreirasdo Estado e perdeu a oportunidade de criarmecanismos de inclusão no sistema de pro-teção social de 60% da força de trabalho quese encontra no mercado informal de traba-lho. Conseqüentemente, promoveu a ruptu-ra com aliados históricos, como sindicatos efuncionalismo público, e gerou fissuras nasua base parlamentar de apoio, passando adepender dos votos da oposição para apro-vação das reformas.

Ano de tensões

O primeiro ano do governo Lula caracterizou-se por continuísmo na política econômica or-todoxa, inovações no estilo e instituições po-líticas, impasses em virtude das contradiçõesinternas ao governo e uma ousada políticaexterna. As primeiras tensões se fizeram sen-tir no interior do próprio PT, caracterizadotanto pela disciplina partidária como por seuscompromissos ideológicos e programáticos,ao ter de apoiar medidas de reforma encami-nhadas pelo presidente ao Congresso, emfranca contradição com todo o ideário políti-co daquele partido. As opções de solidarizar-se com o governo, crescer como partido edescaracter izar-se ideologicamente oudesidentificar-se com o programa governa-mental e isolar-se são tensões permanentesdesse dilema. Dadas as características do pre-sidencialismo de coalizão vigente no sistemamultipartidário do Brasil, associado a baixocompromisso programático dos partidos, po-rém com fortes controles das bancadas pelaslideranças no Congresso, a aprovação das pro-postas do governo depende da negociaçãocom as lideranças parlamentares. Para tanto,é crucial a posição articuladora desempenha-da por líderes do PT no Congresso, fortementeidentificados com as propostas governamen-tais, mas em franca contradição com as basesdo partido e com os movimentos sociais quetradicionalmente o apoiaram.

O governo também procurou cons-truir sua maioria por meio da negociação comgovernos estaduais, reconhecendo a impor-tância política que tradicionalmente tiveramno controle das bancadas estaduais no Con-gresso. Foi marcado um tento pelo governoao convocar governadores para negociar asreformas. No entanto, a recessão econômicaaumentou a tensão política, com os gover-nos estaduais reivindicando compensações

Foi marcadoum tento pelogovernoao convocargovernadorespara negociaras reformas.No entanto,a recessãoeconômicaaumentoua tensão política

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FEV 2004 / MAR 2004 11

financeiras por meio da reforma tributária,de tal forma que essa negociação terminousendo inócua e os conteúdos centrais da re-forma foram postergados.

A perspectiva de gerar uma nova insti-tucionalidade, capaz de permitir espaços pú-blicos de negociação e concertação, marcoucomo inovadora a gestão Lula no seu primei-ro ano de governo. A construção de um novocontrato social, capaz de impulsionar um pro-jeto de crescimento nacional com inclusãosocial requer a formação de um novo blocodirigente para o país, segundo palavras doministro Tarso Genro. Para tanto, o governoLula adotou uma estratégia de concertaçãosocial, inovando nos mecanismos institucio-nais de negociação e argumentação entre so-ciedade civil e governo, que, no entanto, seencontram limitados pela política de conten-ção do gasto público estatal.

Cada vez mais, as lideranças compro-metidas com um projeto nacional estão con-vencidas de que os instrumentos de reativa-ção da economia, capazes de induzir ocrescimento, deveriam ser o gasto e o créditopúblicos, combinados com a redução subs-tancial da taxa de juros e a estabilização dataxa cambial. Os eixos para os quais deveriamser orientadas essas medidas seriam os daampliação do superávit comercial e os investi-mentos públicos na infra-estrutura econômi-ca e social. O próprio governo, em seu planoplurianual, assume essa mesma perspectiva,em franco desacordo com a política posta emprática pelo Banco Central e pela Fazenda,cujos cortes orçamentários têm como esteioo acordo com o FMI.

Contradições também se acentuam naárea relacionada à produção agrícola e ao meioambiente, com relação à liberação ou não dasoja transgênica para plantação e comerciali-zação. Em um lado, encontra-se o Ministérioda Agricultura, cujo titular representa os inte-resses do setor agroexportador, atual respon-sável pelo superávit na balança comercial, e,no outro lado, a ministra do Meio Ambiente,Marina Silva, figura histórica das lutas dos mo-vimentos sociais nessa área.

Todas essas tensões implicaram umcongelamento da gestão pública, mesmo emáreas prioritárias para o governo, por serememblemáticas, como o programa Fome Zero.Também nesse campo social o governo atualsegue a perspectiva de refilantropização dapolítica social, à margem da institucionali-dade das políticas universalistas criadas com

a Constituição Federal de 1988. Em muitosmomentos, evidencia-se uma perspectivaque identifica desenvolvimento com cresci-mento e cidadania com consumo, retroagin-do em relação ao padrão constitucional quereconhece os direitos de cidadania e inovana criação de mecanismos de co-gestão daspolíticas sociais.

Morte súbita

Se o primeiro ano foi ca-racterizado pela continui-dade nas políticas econô-micas e sociais, caberiaperguntar quais as chan-ces de que uma rupturaseja introduzida a partirdo segundo ano de go-verno. Se a estratégia dedar continuidade foijustificada como a únicaforma de evitar a mortesúbita do governo, a in-capacidade de implemen-tar as mudanças para asquais a população lheatribuiu um mandato se-ria razão suficiente paracaracterizar a morte lentado governo.

À medida que asexpectativas popularesnão se realizaram, houveaumento da pressão dosmovimentos sociais, es-pecialmente dos setoresvinculados a trabalhado-res e trabalhadoras semterra e, na área urbana, asem teto. O recrudesci-mento dos conflitos commorte no campo, das invasões das terras in-dígenas, da violência urbana e do desrespei-to aos direitos humanos cobra medidas ime-diatas para buscar reduzir a secular eestrutural iniqüidade na distribuição tanto darenda como dos bens públicos no Brasil.

Impossibilitado de atuar de forma efe-tiva na redistribuição da renda, em funçãodas restrições econômicas das quais não con-segue se libertar, o governo tem buscado mar-car sua gestão por meio de medidas de com-bate à corrupção, construção de uma políticae um sistema nacional de segurança públicae uma política externa autônoma.

A perspectiva degerar uma nova

institucionalidade,capaz de permitirespaços públicos

de negociaçãoe concertação,marcou como

inovadoraa gestão Lula

no seu primeiroano de governo

GOVERNO LULA: CONTINUÍSMO NO PRIMEIRO ANO. MUDANÇAS NO SEGUNDO?

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12 DEMOCRACIA VIVA Nº 20

Na política externa, o Brasil enfrentou-se com a questão da Área de Livre Comérciodas Américas (Alca), cuja agenda inicial favo-recia os interesses dos Estados Unidos em de-trimento dos demais países. Com habilidade,a diplomacia brasileira negocia acordos compaíses membros do Mercosul em uma estra-tégia que reduz a hegemonia norte-america-na na Alca, ao transferir temas polêmicos paranegociações conjuntas ou multilaterais. Noentanto, a capacidade de dar continuidade aessa política externa autônoma dependerá,sem dúvida, da legitimidade do governo noexercício interno do poder.

Possíveis cenários

O ano de 2004 será um ano importante porvárias razões: em primeiro lugar, porque jánão se poderá tributar a política atual à he-rança recebida do governo anterior; em se-gundo, porque será ano de eleições muni-cipais; e, em terceiro, porque existe umaforte mobilização da sociedade civil, tantofruto dos mecanismos de participação jáexistentes como daqueles introduzidos poreste governo.

O primeiro cenário possível é aqueledesenhado pelo governo, no qual o país sai-ria da recessão e iniciaria um ciclo virtuoso decrescimento econômico, com investimentospartilhados por Estado e iniciativa privada.Esse cenário de crescimento econômico é di-visado por alguns em relação aos indicado-res de reaquecimento da produção industrialnos dois últimos meses, tanto do setor ex-portador como daquele responsável pela pro-dução de bens para o consumo do mercadointerno. A suposição de manutenção de umapolítica macroeconômica ortodoxa, com al-guma pequena flexibilidade dada pelas con-dições de negociação do acordo com o FMIseria compensada por uma política meso-econômica heterodoxa, com mecanismos quejá estão sendo implementados de expansãodo crédito popular. O ano seguinte seria ain-da de política de contenção e de arrumaçãoda casa, com o aprofundamento da revisãodo papel das agências reguladoras e fortale-cimentos dos instrumentos de planejamentoe investimento público.

A viabilidade de ser esse um cenáriomais ou menos positivo e provável depende-rá da capacidade, a ser demonstrada, de rea-ção do setor produtivo, especialmente daque-le que absorve mais mão-de-obra. Por outro

* Sonia Fleury

Professora da Escola

Brasileira de

Administração Pública e

de Empresas da

Fundação Getúlio

Vargas (FGV), onde

coordena o Programa

de Estudos da Esfera

Pública, e membro do

Conselho de

Desenvolvimento

Econômico e Social.

[email protected]

lado, sem uma redução dos juros e sem au-mento do investimento público em expansãoda infra-estrutura econômica e social, serádifícil viabilizar uma retomada consistente docrescimento.

Um cenário oposto, pessimista, vê nacontinuidade da política econômica ortodoxaa manutenção das condições de asfixia da ca-pacidade produtiva nacional, com aumento dodesemprego e do desespero. Dada a enormesolidariedade das lideranças sindicais e parti-dárias com o presidente Lula, poderia ocorrerum aprofundamento do distanciamento en-tre bases e lideranças, que já se fez sentir porocasião da reforma previdenciária. Nesse caso,os canais democráticos de canalização de in-teresses e agregação de preferências se en-contrariam com o sentido invertido, de cimapara baixo, deslegitimando não só o governocomo também as instituições da democracia.O �estouro da boiada� ocorreria quando asmassas passassem a atuar por conta própria, àrevelia das lideranças, gerando uma situaçãode ingovernabilidade.

Um terceiro cenário identifica a ma-nutenção da política econômica ortodoxacomo um limite para que o governo possaatender às expectativas que o elegeram. Nes-se cenário, os setores organizados da socie-dade, empresariado, sindicalistas, movimen-tos sociais, partidos políticos e a própriaburocracia passariam a cobrar, cada vez mais,os compromissos assumidos em campanha.O que diferencia esse cenário do anterior nãoé a identificação da manutenção da atual po-lítica econômica como restritiva, mas a con-vicção de que as instituições democráticasnão serão afetadas. Ao contrário, o revigora-mento das demandas sociais passaria peloscanais institucionais, fortalecendo-os. Consi-derando que este é um governo que sabe res-ponder às demandas e pressões políticas, es-pera-se que possa redirecionar sua políticaeconômica em consonância com as expecta-tivas sociais.

Todos esses cenários serão fortemen-te afetados pela conjuntura econômica in-ternacional, pelo prestígio do governo noexterior e pelas condições de governabilida-de na América Latina. Internamente, umacombinação do primeiro cenário com o ter-ceiro seria mais provável que a ocorrênciado segundo. Do desempenho da economiae da reação da sociedade organizada depen-derá o grau das mudanças no segundo anodo governo Lula.

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V A R I E V A R I E Flávia MattarColaboraram: Elaine Ramos e Jamile Chequer

Chope com cidadania

A ONG gaúcha Nuances – grupo pelalivre orientação sexual – iniciou emPorto Alegre a distribuição de men-sagens conscientizadoras em bola-chas personalizadas de chope. De-senhos e cores chamativas foramutilizados como linguagem visual.Mais de 30 mil já estão decorandoas mesas de bares, boates, saunas,videolocadoras, livrarias etc.

Foram criados quatro modelosbem-humorados de bolachas. Duasmulheres, segurando suas escovasde dentes, trazem a mensagem“Quem casa quer casa! – Os direi-tos civis são de todas e todos”. Umhomem, com uma garrafa em umadas mãos e uma camisinha na ou-tra, observado por olhares ‘gulo-sos’ de outros homens, passa o se-guinte recado: “O de bêbado nãotem dono, mas tem camisinha! –Sexo seguro é prazer sem medo”.Em uma referência às dificuldadesenfrentadas por homossexuaispara a adoção de crianças, foi fei-ta a brincadeira “Troque seu ca-chorro por uma criança pobre! –Adoção é um direito cidadão”. E,para chamar a atenção contra opreconceito que ronda as relaçõesinter-raciais, existe a mensagem“Melancia com leite vai bem,também! – Diversidade é democra-cia. Bom proveito!”.

(51) 3286-3325www.nuances.com.br

Trovador do samba

Angenor de Oliveira (1908–1980)– que ficou conhecido como Car-tola por ter o hábito, quando pe-dreiro, de usar um chapéu-cocopara que o cimento não grudasseem seus cabelos –, ao longo de 72anos de vida, compôs cerca de 500canções, sozinho ou em parceria.A grandeza de seus versos e melo-dias é tamanha que até hoje suasmúsicas são regravadas pordiversos(as) intérpretes.

Além do legado de suas com-posições, o mestre ainda nos dei-xou a escola de samba EstaçãoPrimeira de Mangueira, à qualnão só deu o nome como tam-bém determinou suas cores. Paraquem dizia que o verde e rosa nãocombinavam, retrucava: “Ora, overde representa a esperança, orosa representa o amor. Como oamor pode não combinar com aesperança?”.

Mesmo tendo declarado à re-vista Manchete (3/12/1977) que“quem gosta de homenagem pós-tuma é estátua”, é impossível nãocontinuar a reverenciar a suaarte, patrimônio cultural brasilei-ro. O Centro Cultural Banco doBrasil do Rio de Janeiro apresen-tará, até 28 de março, o espetá-culo teatral Obrigado, Cartola(direção de Vicente Maiolino etexto de Sandra Louzada). O mu-sical ganhou de presente sambainédito de Paulinho da Viola eHermínio Bello de Carvalho. Valea pena conferir.

(21) 3808-2020

Bota pra quebrar

Mulheres quebradeiras de cocobabaçu da região do Médio Mearim,no Maranhão, acionaram o Institu-to Brasileiro de Meio Ambiente edos Recursos Naturais Renováveis(Ibama) para denunciar os proble-mas que a produção de carvão coma queima de cocos inteiros poderi-am acarretar. Segundo a Associaçãoem Áreas de Assentamento no Es-tado do Maranhão (Assema), a em-presa Cosima, que nega as acusa-ções, já teria instalado 40 fornosno município de Lago da Pedra.

Em termos ambientais, as mulhe-res chamaram a atenção para as der-rubadas e o envenenamento das pal-meiras de coco babaçu e para o fatode não existir legislação que protejaesse bem natural. Em reunião com oIbama, ficou acordado que deputadosfederais e estaduais seriam procura-dos pelas quebradeiras para tentaracabar com essa lacuna legal.

Também estaria em jogo o sus-tento de muitas chefes de família,que extraem subprodutos do cocobabaçu para aumentar sua fonte derenda. Produzem farinha domesocarpo – que serve como com-plemento alimentar –, óleo paracosméticos e azeite comestível,além de carvão, utilizando apenasa casca do coco. “A empresa tira apossibilidade de as mulheres au-mentarem a sua renda queimandoos cocos inteiros, para a produçãode carvão em escala industrial”,denuncia Maria de Jesus Brinjelo,coordenadora adjunta da Assema.

(98) [email protected]

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D A D E S D A D E S

Arte kusiwa reconhecida

As expressões orais e o grafismodos(as) Waiãpi, que habitam terrasno Amapá, na divisa com a GuianaFrancesa, foram declarados patri-mônio oral e imaterial da huma-nidade pela Organização das Na-ções Unidas para a Educação,Ciência e Cultura (Unesco). A in-dicação partiu do Museu do Índio/Fundação Nacional do Índio(Funai) e foi apoiada pelo Minis-tério da Cultura.

Registrada pelo Instituto doPatrimônio Histórico e ArtísticoNacional (Iphan), desde dezembrode 2002, como Patrimônio Cultu-ral Brasileiro, a arte kusiwa revelapadrões gráficos, com infinitascombinações, que são utilizados empinturas corporais, trançados e de-coração de artefatos. Os traços,representando animais e objetos douso cotidiano, são feitos com tin-tas em cuja composição estão se-mentes de urucum, gordura de ma-caco, suco de jenipapo verde eresinas perfumadas.

O status de patrimônio imaterialda humanidade poderá proteger osgrafismos e saberes orais dos(as)Waiãpi do uso abusivo da sociedadenão-indígena para fins comerciaise publicitários. Além disso, poderáelevar a auto-estima desse povo eo desejo dos(as) mais jovens decontinuar fortalecendo sua tradi-ção e expressão cultural.

Conferência contraa fome

A II Conferência de Segurança Ali-mentar e Nutricional, que aconte-ce de 17 a 20 de março, em Olinda,Pernambuco, cumprirá o impor-tante papel de propor diretrizespara um plano nacional sobre otema. O evento acontecerá em ummomento de decisões no país,como a discussão sobre o PlanoNacional de Reforma Agrária,novo Plano de Safra e as negocia-ções internacionais do acordo agrí-cola. Esses elementos terão boainfluência nas discussões de cercade 800 delegados e delegadas e de200 integrantes do governo e doConselho Nacional de SegurançaAlimentar e Nutricional (Consea).“Espero que as diretrizes estabele-cidas na conferência tenham umbom impacto nas definições dopaís”, anima-se Francisco Menezes,diretor do Ibase e integrante doConsea.

A conferência terá 17 grupostemáticos para o aprofundamentode um amplo leque de temas. Den-tre os mais controversos, RenatoMaluf, professor da UniversidadeFederal Rural do Rio de Janeiro(UFRRJ) e integrante do Consea,destaca os transgênicos. “Certa-mente é um ponto de debate e po-lêmica. O Consea tem uma posi-ção de favorecer o debate edesejamos que a conferência tam-bém seja assim”, diz.

Academia sertaneja

Será inaugurada em agosto a Uni-versidade Federal do Vale SãoFrancisco (UFVSF), com sede emJuazeiro (BA) e Petrolina (PE).A nova universidade incentivaráprojetos que visem à solução deproblemas socioeconômicos queafetam a população pobre da re-gião do semi-árido.

O professor José Weber FreireMacedo, reitor da UniversidadeFederal do Espírito Santo e gestorda implantação da nova federal,declarou que a idéia é destinar 50%das vagas para candidatos(as)oriundos(as) de escolas públicas.Mas alerta que a decisão final fi-cará a cargo do Conselho Federalde Educação.

O concurso público para opreenchimento do corpo docen-te será entre abril e junho. “Jána seleção, o candidato a profes-sor da UFVSF deverá apresentarum projeto social a ser desenvol-vido com os alunos na comuni-dade”, explica Macedo.

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C R Ô

C R Ô N I C A

16 DEMOCRACIA VIVA Nº 20

Tenho em mãos o documento oficial de umapágina. No alto, em letras grandes em negrito,lê-se “República Federativa do Brasil”encimando as Armas da República. Abaixo,em letras menores, “Estado do Rio de Janei-ro”. Em tipos manuscritos, lê-se “Mauro S.Dias”, encimando quatro linhas de letras mi-údas: “Registrador e Notário da Décima Quar-ta Circunscrição do Registro Civil das Pesso-as Naturais e Tabelionato. Freguesia deMadureira – Sétima Zona. Matriz: Rua Dagmarda Fonseca, 118 – Madureira. Filial: Rua Dozede Fevereiro, 427 – Loja A – Bangu”. Apóstriplo espaço, lê-se, em negrito: “Certidão deÓbito”. Em seguida, o texto:

Certifico que à fl. 227 do livro no: C-0182do registro de óbitos, sob o número deordem 85607, foi lavrado o óbito de umcorpo falecido aos 30 dias do mês de ju-lho do ano de 2003, em hora ignorada,no(a) rua Virgílio Filho s/no, Costa Bar-ros, do sexo masculino, filho de pais des-conhecidos, com a idade ignorada, pro-fissão ignorada, Estado Civil ignorado,residência ignorada, natural de regiãoignorada. Ignora-se a existência de fi-lhos, ignora-se a existência de bens, ig-

nora-se a existência de testamento, ig-nora-se se era eleitor. Causa mortis:indeterminada em razão de intensa car-bonização. Médico atestante: Dr(a). NiloJorge R. Gonçalves; Local do sepultamen-to: Cemitério de Irajá. Declarante: Fabi-ano Silva dos Santos. Observações: Re-gistro feito a 01 dia do mês de agosto doano de 2003. Guia: 189 – 39ª DP. Eu,[assinatura ilegível], declaro que o refe-rido é verdade e dou fé.

Ao acabar de ler isso, caro amigo oucara amiga, fiquei como você: pasmo, incré-dulo, chocado. De alma aturdida e espíritodesarrumado. O que pensar primeiro? Nem sei.Para começar, o primeiro impulso de brasilei-ro: suspeitar da autenticidade do documento.Porém, está na minha mão, e recebi de fontelimpa – jornalista que busca alguém com quemcompartilhar sua perplexidade. É um docu-mento autêntico e legal. Tem as Armas daRepública e está assinado pelo responsávelque, diz aqui, dá fé – tem, pois, fé pública.

Mas, pensando bem, dá fé exatamen-te de quê? De que nada sabia da criatura quese foi? Da própria ignorância? Imagino queum atestado de óbito deveria informar quemmorreu, de que morreu, como é o corpo domorto, seus parentes, endereço etc. Para queservirá um documento que informa que ig-nora tudo do morto e das circunstâncias damorte? De tudo, restam apenas três informa-ções: homem, morreu, queimado.

Réquiemsem lágrimas

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Alcione Araú[email protected]

O que pretendia a autoridade ao exarar– como se diz no jargão dela – um tal docu-mento? Tripudiar? O único documento querestou do morto registra a sua morte e nadada sua vida. Talvez seja rotineira a macabraironia. Para a burocracia oficial, que costumaexigir que o cidadão vivo prove que existe,deve ser natural que um morto não tenha pro-vas de que existiu. Há, porém, um insofismávelcorpo. Ele grita no seu silêncio.

Para mim, para você, caro leitor ou caraleitora, e para o mundo, alguém morreu e nãosabemos quem. Como pode isso acontecer naera da Internet, em plena sociedade de infor-mação? Acredite: agora que o sei, em absolu-ta indigência e total anonimato, surge imensavontade de tê-lo conhecido.

Ninguém registrou queixa do desapa-recimento nem foi reclamar o corpo ouidentificá-lo. Não é nada, não é nada, era umcidadão. Seria branco? Negro? Índio? Japo-nês? Seria um brasileiro? Estrangeiro, incóg-nito no Brasil? Um espião? Será que morreuqueimado – viveu o inferno na Terra – paranão restar despojos? Esteve entre nósdeliberadamente incógnito?

Ninguém verteu uma lágrima em suamemória. Não se ouviu um “Descansou, coi-tado”, ou “É uma grande perda”, ou ainda“Que Deus o tenha”. Quem seriam seus pais,seus irmãos? Não teria uma família? Foi semdeixar filhos, netos, nenhuma descendência?Não é nada, não é nada, era um indivíduo.

Passou por aqui sem deixar rastros nem pe-gadas, partiu sem deixar vestígio. Passou, eo mundo não deu pela sua presença.

Ninguém sentiu a sua falta? Será quenão tinha sequer parentes distantes? Nãoé nada, não é nada, era um homem. Esteveentre nós e partiu sem que tivéssemos achance de ouvi-lo, abraçá-lo, quem sabeconvidá-lo a sentar-se à mesa, como se fazcom um irmão.

Será que ninguém o amou? Ninguémo amava? Esposa, namorada, ninguém? Umvizinho não lhe teria acenado nunca? Umcão não lhe teria seguido os passos algumavez, ainda que escorraçado em seguida? Nãoé nada, não é nada, era um ser humano.

Ninguém indagou dos seus sonhos,desejos, saudades? Ninguém mirou o fundodos seus olhos (azuis? Verdes? Negros? Cas-tanhos?) para saber da sua alma – pelosolhos, opacos, brilhantes, radiantes, caloro-sos, tristes, frios, a alma fala. Será que via-jou, visitou cidades, fez amigos, divertiu-se?Seria analfabeto e só viu a montanha, a ár-vore, a água do rio, ou foi um iniciado queentendeu a metáfora do mundo que repousana vida letrada?

Um óbito não basta atestar. Há queinvestigar, revelar, desvelar, conhecer, res-peitar. Não é nada, não é nada, num só cor-po carbonizado morreram um cidadão, umindivíduo, um homem, um ser humano. E umpouquinho de todos e todas nós.

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E S P O R

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futebol

E S P O R T EFabio Sá Earp*

Grandezas

O futebol é uma das poucas atividades em que se cumpriu integralmente a promessa da

globalização � a extinção das fronteiras para o capital e para todas as mercadorias, incluindo

a força de trabalho. Jogadores de futebol pertencem, juntamente com cientistas, artistas,

executivos internacionais e alguns poucos outros profissionais, ao núcleo de privilegiados

que consegue ganhar a vida em um mercado verdadeiramente mundial. Esse é um segmen-

to do mercado de trabalho caracterizado pela meritocracia, em que as firmas precisam de

trabalhadores e trabalhadoras capazes de criar o novo. Enquanto cientistas e executivos são

e misérias do

globalizado

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T E

1 Não se trata de excluir otrabalho de aprimoramentodos jogadores realizados pe-los clubes, apenas deixar cla-ro que, uma vez realizado omesmo trabalho, o talento ina-to continua gerando jogado-res melhores.

2 As es t imat ivas es tãono site Football TransfersInformation, obtidas em 26de outubro de 2003, em<www.footballtransfers.co.uk/contracts/wages>.

3 Dados de Leonardo Ramalho,obtidos em 26 de outubro de2003 em <www.planeta.terra.com.br/esporte/rsssfbrasi l /miscellaneous/brazilplayinworld.htm>.

4 Dois meses e meio depois,quando estas linhas foramredigidas, três deles manti-nham a liderança da artilha-ria. Apenas Adriano perdeua posição, em função da cri-se que atingiu seu clube porconta do escândalo que aba-lou a firma patrocinadora, aParmalat.

produzidos em série pelas universidades,artistas e jogadores são artesãos dotadosde habilidades inatas do tipo que �não seaprende na escola�, as quais lhes permitemoferecer espetáculos.1 Esses trabalhadoresda indústria do espetáculo são raros � por-tanto, são muito mais caros.

Quanto ganham essas pessoas pri-vilegiadas? A maior parte das estrelas deprimeiríssima linha do futebol mundial recebeaproximadamente US$ 500 mil por mês.Esse é o caso do nosso Ronaldo, do francêsZidane, do português Figo e do espanhol Raul.O italiano Del Piero e o holandês Kluivertganham US$ 750 mil; já o inglês Beckhamé o recordista com US$ 850 mil. Jogadoresem início de carreira e de pouco prestígiojamais receberão menos de US$ 3 mil.2 É obastante para fazer a cabeça de multidõesde jovens para quem o mercado de traba-lho raramente reserva mais de uma cente-na de verdinhas.

Nossos jovens desempregados po-dem sonhar, mas dificilmente chegarão aesse paraíso. O mercado de trabalho parajogadores de futebol que recebem salárioscomo esses dificilmente ultrapassará, emtodo o mundo, 20 mil vagas. No Brasil, osclubes da primeira divisão empregam apro-ximadamente 1.500 atletas, dos quais ametade na categoria iniciante (�júnior�).Existem 353 jogadores brasileiros registradosatuando no exterior;3 supondo a existên-cia de outros tantos jogadores mais jovensainda não registrados, podemos imaginarque existam aproximadamente 700 brasi-leiros defendendo seu lugar ao sol nos gra-mados estrangeiros.

Muitos desses jogadores ocupamposição de grande destaque. Quando fi-zemos nossa pesquisa, eram nossos patri-otas os artilheiros dos campeonatos espa-nhol (Ronaldo), alemão (Ailton), italiano(Adriano) e português (Derlei).4 Mas tal

prestígio não se restringe aos atletas queatuam no exterior; as seleções brasileirasvivem o melhor período de sua história.Somos o único país que já deteve ao mes-mo tempo as copas do mundo de todas ascategorias (adultos, sub-20 anos e sub-17 anos).

Nas três últimas copas que dispu-tou, a seleção principal venceu duas e, naoutra, ficou em segundo lugar. Há umadécada, o Brasil ocupa o primeiro lugarno ranking da Federação Internacional deFutebol (Fifa), por ser a seleção de melhoraproveitamento em todas as partidas.

Temos todas as razões para ufanis-mo no futebol, no qual somos indubitavel-mente os melhores do mundo. Exceto uma:a população brasileira raramente assiste aosespetáculos desses artistas dos gramados.Sim, pois um quinto dos nossos jogadores� os melhores � se exibem em campeonatosa que só assistimos pela TV paga (canaisESPN). Apenas nos jogos das seleções bra-sileiras podemos assistir a eles ao vivo oupela TV aberta.

Isso acontece porque, enquantonossos craques se deram excepcionalmen-te bem com a globalização e a Confedera-ção Brasileira de Futebol soube adaptar-se aos novos tempos, os clubes brasileirosestão completamente falidos. Chafurdam napior crise de toda a sua história e não con-seguem pagar nem à previdência social �muito menos segurar os jogadores media-namente competentes, capazes de inserçãointernacional. Para entender como chega-mos a esse ponto, é preciso retroceder eexaminar a história do futebol no Brasil.

Massas urbanas e espetáculos

O futebol acompanhou a industrialização ea urbanização da economia brasileira, queproporcionaram massas urbanas ávidas por

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O Brasil tem umadas melhoresseleções de futeboldesde 1930,quando ocorreua primeira Copado Mundo;na verdade,foi o único paísa comparecer atodas as 17 copasjá realizadas

5 Alguns saudosistas talvezainda se recordem dos versosque embalavam a programa-ção esportiva: �Quem gostade cerveja/bate o pé/reclama/Quero Brahma!/Quero Brahma!�ou �Barba feita/com Gilletteazul/é perfeita/com Gillettemonotech/alegria/faço a bar-ba todo dia/com a Gilletteazul!�.

6 O caso paradigmático foi ode Didi, então tido como omelhor jogador do mundo,que não se adaptou à durezados treinamentos na Espanha,pois, em suas palavras, �trei-no é treino, jogo é jogo�. Ra-ros casos de adaptação foramCanár io, Evar is to, Valdo,Julinho, Mazzola e Amarildo �não por coincidência, merameia dúzia.

espetáculos que lhes permitissem trans-mutar frustrações e ódios sociais em riva-lidades simbólicas entre grupos de iden-tidade esportiva.

As torcidas foram a identidade socialpela qual pudemos deixar de ser nativos oumigrantes, pobres ou ricos, brancos ou mesti-ços de diversas misturas, dos bairros nobresou suburbanos, no turbilhão cultural que foio Brasil na segunda metade do século XX. To-dos e todas nós, ao longo da vida, mudamos

de moradia, de bairro, deemprego e de profissão,votamos em diferentescandidatos e partidos,acreditamos em diferen-tes utopias. Mas umacoisa não muda: a paixãopelo clube de futebol e aidentidade com seus de-mais torcedores.

Foram esses apai-xonados que pagaram,com seus ingressos, os es-tádios e os salários dos jo-gadores. Mas foram aindamuitos mais aqueles queaprenderam a torcer a dis-tância, pelo rádio � progra-mação de baixíssimo cus-to para a indústria cultural,capaz de assegurar umaaudiência predominante-mente masculina, atraindoanunciantes como asgrandes cervejarias e lâmi-nas de barbear, que sus-tentaram a incipiente pro-dução de jingles.5

Além dos jogos, osnoticiários esportivos, os

comentários, tudo aquilo que transformava ummero jogo de 90 minutos em um espetáculo per-manente e quase sagrado, integrante de umacultura esportiva capaz de dar sentido à vida eordenar a passagem do tempo � a semana entreum jogo e outro, os anos de uma competiçãopara a seguinte (�Lembra, foi naquele ano emque o Flamengo ganhou com um gol do Validofeito com a mão...�).

O Brasil tem uma das melhores sele-ções de futebol do mundo desde 1930,quando ocorreu a primeira Copa do Mun-do; na verdade, foi o único país a compare-cer a todas as 17 copas já realizadas. Desde1950, disputamos como real candidato ao

título e, em 14 competições, ganhamoscinco e tivemos dois vice-campeonatos �estivemos em metade das finais. Nenhu-ma outra seleção tem esse retrospecto, se-quer parecido.

Lei do Passe

Os jogadores que despontaram para o su-cesso surgiram de clubes organizados emcampeonatos locais hierarquizados. Até1966, apenas as cidades do Rio de Janeiroe de São Paulo tinham os pré-requisitospara o sucesso: torcidas dispostas a pagare estádios capazes de acomodá-las. Emcada uma dessas capitais, havia quatro clu-bes com torcidas expressivas (chamados�grandes�), que efetivamente competiampelos títulos, e uma dúzia de times semtorcida, que eram meros participantes (cha-mados �pequenos�).

Os pequenos (aí incluídos os principaisclubes das demais capitais brasileiras) não ar-recadavam o suficiente para cobrir suas des-pesas e só sobreviviam graças ao último traçodo trabalho servil existente no país, a Lei doPasse do jogador de futebol.

Essa lei consistia no fato de que umatleta só podia atuar por um clube se nãoestivesse mais ligado a nenhum outro. Ouseja, depois de começar em um clube, o joga-dor dependia da autorização do mesmo paracontinuar exercendo sua profissão em umnovo empregador. O clube só liberava o atle-ta se recebesse uma quantia em dinheiro � a�venda do passe�. Os clubes pequenos eramfábricas de jogadores a serem vendidos aosclubes grandes.

À proporção que esse mercado se de-senvolvia, os clubes grandes passavam agastar cada vez mais com passes e saláriosde jogadores, excedendo o que arrecada-vam nas bilheterias.

Para equilibrar as finanças, recorri-am às famosas excursões � jogos amistosos(isto é, de exibição, não de competição) re-alizados no exterior e pagos em preciososdólares. Quanto mais a seleção brasileiraobtinha resultados, mais os nossos clubeseram convidados a exibir os craques consa-grados pe la camisa amare la � Pe lé ,Garrincha, Didi etc. Alguns desses jogado-res eram negociados e se transferiam paraclubes no exterior, mas eram muito poucos,pois os brasileiros dificilmente se adapta-vam à vida noutro país.6

E S P O R T E

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Mercado futebolístico

Na época do �milagre econômico�, foi po-lítica dos governos militares descentralizaro futebol, mediante a construção (ou o in-centivo à construção) de grandes estádiosnas principais capitais. Com grandes bilhe-terias, os clubes locais conseguiam compe-tir pelos grandes jogadores e, assim, en-trar para o panteão do futebol brasileiro.Foi assim que as cidades de Belo Horizon-te e Porto Alegre forneceram cada uma doisgrandes clubes ao recém-criado campeo-nato brasileiro, e também foi desse modoque Salvador, Recife e Curitiba fornecerammais uns tantos clubes de porte médio.Estava criado um mercado nacional para oespetáculo futebolístico.

Na década de 1970, não exportáva-mos jogadores: apenas craques em fim decarreira iam como uma espécie de embaixa-dores do futebol tentar popularizar o espor-te em novos países (como Pelé, nos EstadosUnidos, e Rivelino, na Arábia). A razão é queos clubes europeus desenvolviam políticasprotecionistas, dificultando a importaçãopara dar oportunidade ao surgimento detalentos nacionais. A xenofobia revelou-seinútil (quando o Brasil decaiu, ascendeu aArgentina, único país capaz de produzir cra-ques em quantidade e qualidade compará-veis aos nossos) e foi sendo paulatinamentesuavizada ao longo da década de 1980. Foientão que os melhores jogadores brasilei-ros tomaram o rumo da Europa � Zico,Sócrates, Falcão, Cerezo e Júnior.

No início da década de 1990, o fute-bol europeu sofreu uma profunda moderni-zação administrativa, com um aumento dasreceitas resultante da venda de campeona-tos para a televisão (sobretudo TV paga), dolicenciamento de marca e de venda anteci-pada de carnês de ingressos. Ao mesmo tem-po, reduziam-se as barreiras à entrada deatletas, em parte como resultado da mobili-dade de cidadãos da União Européia. Foiassim que, na década de 1990, criou-se omercado globalizado do futebol, ora em ex-pansão para a Ásia, com o Japão e a Coréiado Sul já consolidados e sendo a China apróxima fronteira.

O enorme aumento do poder aquisi-tivo dos clubes europeus foi sentido pelosclubes brasileiros, que não puderam maisreter jogadores de seleção no país. Com otempo, nem mais os reservas da seleção aqui

permaneciam. Mas a evasão de atletas foimuito menor do que poderia ter sido em fun-ção de duas barreiras: a Lei do Passe, que res-tringia o direito de trabalho, e a política devalorização cambial da primeira etapa do Pla-no Real. Aliás, com o real valendo um dólar,não faltaram empresas multinacionais dispos-tas a investir em clubes brasileiros, pensandoem obter ganhos semelhantes aos do merca-do europeu. Foi possível repatriar jogadores,tendo sido Romário o caso mais conhecido.

É bastante prová-vel que as experiênciasmodernizantes tivessemacabado pe lo caráterpredatório da adminis-t ração dos c lubes ,freqüentemente caso depolícia. Mas não vale apena perder muito tem-po com i s so porqueduas mudanças decisi-vas sepultaram essa fasedo futebol brasileiro. Aprimeira foi uma mu-dança jurídica, a elimi-nação da Lei do Passe,após uma agonia pro-longada; agora, o clubesó pode reter os direi-tos sobre o atleta du-rante a vigência do con-trato. Livres dos clubes,os jogadores colocaramseus destinos nas mãosde agentes (os famosos�empresários�), que oscolocam em clubes emtroca de uma comissão� algo semelhante aoque ocorre no boxe e nomundo artístico. A se-gunda foi uma mudança macroeconômica,a política de flutuação cambial, que nostrouxe a um patamar sustentável de um dó-lar por três reais.

A conseqüência de ambas as mudan-ças é que os jogadores estão livres para emi-grar e que mesmo salários baixos em dólarconvertem-se em valores extremamente ele-vados a essa taxa de câmbio. E existe umacategoria de agentes especializados, autori-zados pela própria Fifa, em colocar jogado-res em contato com os novos clubes; comisso, muitos clubes estrangeiros podem com-prar um craque brasileiro. Agora, não é mais

O enormeaumento do poder

aquisitivo dosclubes europeusfoi sentido pelos

clubes brasileiros,que não puderam

mais reterjogadores de

seleção no país.E nem mais os

reservas da seleçãoaqui permaneciam

GRANDEZAS E MISÉRIAS DO FUTEBOL GLOBALIZADO

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22 DEMOCRACIA VIVA Nº 20

* Fabio Sá Earp

Professor do Instituto de

Economia da UFRJ e

organizador do livro Pão

e circo: fronteiras e

perspectivas da

economia do

entretenimento (Razão

Cultural, 2002).

E-mail: [email protected]

Só nas situaçõesde desesperonos dispomosa aceitarsoluçõesinovadoras.A situaçãodos clubesbrasileiros já ésuficientementedesesperadorapara permitiro experimento

7 IBOPE, �Pesquisa Personali-zada/Opinião Pública/Timesde Futebol� , obt ido em09/01/2004 em <www.ibope.c o m . b r / o p p / p e s q u i s a /o p i n i a o p u b l i c a /torcidasfutebol_jan03.htm>

apenas o Real Madrid que tem dois jogado-res brasileiros: o Milan tem três; a Roma, oSporting Lisboa e o Lyon têm quatro cada;o Borussia Dortmund, cinco; e o Benfica,outros seis. Mas não são somente os gran-des clubes que têm essa possibilidade: oBol ívar bol iv iano, o CSKA búlgaro e oPortimonense português também têm qua-tro jogadores bras i le i ros cada um, oChernomoritz russo e o Chombuk Hyundaitêm cinco e o recordista é o modestíssimo

Nacional, de Portugal,que conta com nove jo-gadores brasileiros.

Essa fuga de atle-tas prejudicou a quali-dade dos espetáculosapresentados no merca-do interno, e o públicose retraiu, reduzindo asreceitas de bilheteria.Os grandes clubes bra-sileiros viram-se incapa-zes de sequer pagar sa-lários em dia, o queaumentou ainda mais oêxodo. Os clubes quetêm sorte conseguemreceber alguma coisapela saída dos jogado-res com contratos emandamento que este-jam sendo pagos emdia; mas a maioria cha-furda impotente na pró-pria agonia. Ou seja,todos os clubes do paístransformaram-se em�pequenos�, incapazesde se sustentar comsuas receitas próprias ede manter seus princi-pais jogadores.

Qual a saída?

Existe uma solução vazia, repetida como ummantra, que é a profissionalização do fute-bol brasileiro. Nada contra, mas não se es-pere que daí venha a solução. Se triplicaremsuas receitas, os grandes clubes passarão areceber em torno de US$ 2 milhões mensais� o que não dá para sustentar um clube desegunda divisão na Europa e que não é nadadiante de uma dívida como a do Flamengo,que se diz alcançar US$ 80 milhões. A verda-

de é que, com esta taxa de câmbio, não exis-te alternativa de mercado capaz de salvar ofutebol brasileiro.

Mas, felizmente, existem alternati-vas fora das fronteiras do mercado. Não setrata de intervenção estatal, pois ninguémde sã consciência pensaria em proibir a sa-ída de jogadores ou em destinar recursospúblicos aos clubes. A alternativa é algoque já acompanhava a humanidade desdeseu nascedouro, muitíssimo antes da in-venção de mercados e de Estados: a dádi-va, com a qual se sustentam museus e so-ciedades beneficentes. A melhor forma écriar uma sociedade de amigos que captedoações e as direcione para a finalidadedesejada � doações que podem ser obti-das até por telefone.

No caso do futebol, as contribuiçõesnão podem ser feitas mediante doações di-retas aos clubes porque os dirigentes damaior parte deles não gozam da confiançade suas torcidas. As sociedades de amigosprecisam ser dirigidas por pessoas de ido-neidade moral inquestionável e ter suascontas publicadas mensalmente na impren-sa. Pensemos em torcedores ilustres que po-deriam aceitar trabalhar de graça: no Rio deJaneiro, pessoas como o tricolor ChicoBuarque, o vascaíno Sérgio Cabral, o rubro-negro Zico, o botafoguense Armando No-gueira e muitos outros... E só devem liberarrecursos para finalidades específicas, mês amês, fora do controle dos dirigentes de clu-bes, destinando metade dos recursos paradívidas trabalhistas e previdenciárias, en-quanto elas existirem.

Vejamos o potencial deste sistema, quepode ser administrado por um convênio comum banco. O Flamengo tem 25 milhões de tor-cedores;7 se apenas um décimo deles doarmensalmente R$ 10 (preço de uma arquiban-cada no último campeonato), teremos mais deUS$ 8 milhões por mês, ou US$ 100 milhõespor ano � o que é suficiente, por exemplo, parapagar todas as suas dívidas. Parece mágica, masé mera canalização da paixão.

Só nas situações de desespero nos dis-pomos a aceitar soluções inovadoras. A situ-ação dos clubes brasileiros já é suficiente-mente desesperadora para permit i r oexperimento do novo. Ou então, caso per-maneça a miséria atual de nossos clubes, quepelo menos se barateie a TV paga, para quepossamos assistir ao nosso melhor futebol �nos campos europeus.

E S P O R T E

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FEV 2004 / MAR 2004 23

O Jornal da Cidadania é distribuídopara pessoas que têm pouco ou ne-nhum acesso à informação crítica ecomprometida com a democracia.Nossos leitores e leitoras são, espe-cialmente, estudantes e professorase professores de escolas públicas detodo o país. Mas também trabalha-doras e trabalhadores urbanos e ru-rais, líderes comunitários(as), mora-doras e moradores de comunidadespobres. São 60 mil exemplares dis-tribuídos gratuitamente.

Participe de mais esta iniciativa doIbase. Você pode ajudar com con-tribuições financeiras ou organizan-do um núcleo de distribuição.

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24 DEMOCRACIA VIVA Nº 20

I N T E R N

urbano em

I N T E R N A C I O N A LCarlés Riera*

Desenvolvimento

Barcelona está se convertendo, talvez já o seja, em uma referência do urbanismo mundial,

tanto pela sua tradição vanguardista como por seu atual crescimento, de grande projeção

midiática, e por sua arquitetura, tão valorizada entre as elites dessa disciplina. No entanto, a

aposta pelo crescimento sem perder a identidade de cidade compacta, os objetivos da inte-

gração e da coesão do conjunto da cidade compatíveis com a diversidade funcional e de

bairros, as respostas ao desafio da sustentabilidade e o horizonte de uma representatividade

regional e global da cultura e do conhecimento superam em importância o potencial de seus

projetos arquitetônicos mais singulares.

Barcelona:conflitode vizinhançae consensomidiático

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A C I O N A L

1 Na Espanha, movimento devizinhança (movimiento veci-nal) corresponde a um conjun-to de organizações entrepessoas que vivem em ummesmo bairro. O objetivo élevar reivindicações, propostase sugestões a autoridades lo-cais. Também pode ser deno-minado movimento de base(movimiento de base).

Apesar dessa fama, de grande atratividade tu-rística, o desenvolvimento urbano de Barcelo-na não foi levado a cabo sem uma polêmicacidadã. A maior parte dos projetos de trans-formação e crescimento da cidade enfrentoucríticas e freqüentes oposições e mobilizaçõespopulares, encabeçadas, principalmente, pelomovimento de vizinhança.1 Entretanto, os su-cessivos governos locais conseguiram, quasesempre, criar um clima de consenso final, ba-seado na coesão das elites, econômicas, inte-lectuais e culturais, que produziram uma opi-nião pública de apoio ao desenvolvimentismoda cidade e ao seu papel de liderança interna-cional em certos aspectos e momentos, resul-tando em notável adesão e compromisso en-tre os setores populares, apoiados nasmelhorias dos bairros e na identificação comuma cidade que tem condição de protago-nista. Vejamos alguns dos principais proces-sos pelos quais passaram esse desenvolvimen-to e sua legitimação.

Transformação urbana

Na região metropolitana de Barcelona, dife-rentemente do que aconteceu na maioria dascidades européias e americanas � que viramcomo seus centros urbanos mudavam crian-do downtowns metade centro de negócios(em que os fragmentos mais qualificados des-tinam-se a serviços financeiros, serviços em-presariais, sedes representativas das grandesinstituições etc.), metade centros de margina-lização onde vão parar as minorias étnicas,desempregados(as), pessoas mais velhas sempossibilidades, marginalizados(as) e algunsgrupos liberais de classe média �, esse pro-cesso foi apenas parcialmente limitado, reno-vando e revitalizando o centro e também asperiferias compactas do município barcelonês.

As causas dessa tendência são diversase devem ser entendidas no contexto históricoem que se produzem e na intenção que fazcom que Barcelona se dirija para sua recupera-ção de maneira decidida.

O peso de Barcelona em seu contextometropolitano e regional e sua progressivaimportância internacional contribuíram,

juntamente com sua importância política ecultural catalã, de forma determinante parao seu desenvolvimento.

Com o aparecimento das administra-ções democráticas, administradores(as) pro-gressistas das cidades deram seu apoio e res-posta à forte pressão que a sociedade civilhavia exercido para recuperar Barcelona urba-nisticamente no regime político anterior. Emum primeiro momento, atuaram em peque-nos locais urbanos, praças e parques e, de-pois, ampliaram sua intervenção para escalasmaiores de reequilíbrio de áreas obsoletas oude reequilíbrio entre regiões da cidade.

Posteriormente, em outubro de 1986,Barcelona foi escolhida para organizar os Jo-gos Olímpicos de 1992. Mais de 6 bilhões deeuros investidos no total da operação e, emdeterminados períodos, mais de 12 milhões deeuros diários dão uma idéia da magnitude dasatuações e da aceleração no processo de im-plementação. Esse fenômeno excepcional eoutros que, ao longo da história recente deBarcelona, foram ocorrendo em intervalos de40�50 anos (1888, 1929 e 1953) representa-ram saltos qualitativos e quantitativos na trans-formação da cidade. Atualmente, o Fórum 2004das Culturas e a chegada do trem de alta ve-locidade legitimam novas atuações de trans-formação e crescimento da cidade em grandeescala, que atraem investimento e novas opor-tunidades para atuações urbanísticas e arqui-tetônicas singulares. Novamente, reproduz-seo ciclo de oposição de vizinhança, diálogo elegitimação midiática a cargo das elites.

Na requalificação de Barcelona, bus-ca-se novamente, como já haviam feito os pla-nejadores das expansões do século XIX, asáreas comuns entre a arquitetura e o urba-nismo, trabalhando com a especificidade dacidade mediterrânea.

A realidade construída da Barcelonacompacta permitia e permite intervir na cha-mada escala intermediária. Essa escala é rei-vindicada como ponte entre as decisões pro-gramáticas e as estruturais. É a consideraçãoda cidade por partes que permite soluções for-mais bem especificadas e de qualidade. É ochamado �urbanismo urbano�, do Laborató-

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As construçõesrealizadas sobreedifícios jáexistentese a exploraçãomáximade todosos espaçosdisponíveisformam achamadafavelizaçãovertical

I N T E R N A C I O N A L

rio de Urbanismo de Barcelona (1984), que secaracteriza pela localização dos aspectos vin-culados ao desenho em escala urbana.

A Carta de Atenas propõe, para o casodo projeto urbano, que o impacto da inter-venção a médio prazo possa ser previamenteestimado. O valor do projeto de requalifica-ção urbana será dado pela aceitação dosagentes sociais e econômicos e pelo proces-so de revalorização da cidade que se trans-forma e se atualiza em si mesma.

Centro histórico

O processo de renovaçãodo centro histórico deBarcelona é um exemplode trabalho multidisci-plinar e de participaçãodo tecido social, que su-pera necessariamente arealidade urbanística doprojeto urbano e que,em certas ocasiões, nãoem todas as necessárias,modula, transforma eacomoda diferentes pon-tos de vista.

A Cidade Velha,como seu nome indica, éa parte mais antiga da ci-dade. Até o século XIX, aatual superfície da Cida-de Velha representava atotalidade do territóriourbano de Barcelona.Com o Plano Cerdà, exe-cutado durante a segun-da metade do século XIX,a cidade rompe sua ter-ceira muralha e se esten-de até se unir com os po-

voados vizinhos. Essa brecha permite umêxodo da população que possui os meios su-ficientes para fazê-lo: a aristocracia e a bur-guesia se instalarão, assim, nos bairros emconstrução do Eixample. É aí que parece co-meçar o processo de segregação urbana e demarginalização do espaço abandonado pelascamadas abastadas.

No início do século XX, a construçãodo metrô e as obras realizadas em função daExposição Universal de 1929 atraem uma im-portante onda de imigração. Numerosos(as)cidadãos(ãs) de toda a Espanha partem emdireção a Barcelona e se instalam principal-

mente na Cidade Velha. Eles(as) iniciam umprocesso de certa especialização ocupacionalnesses bairros, com a acolhida de recém-chegados(as) à cidade e sua progressiva inte-gração no seio da estrutura urbana.

Durante muito tempo, os bairros da Ci-dade Velha sofreram um importante processode degradação física. De sua longa história ede sua forte densidade demográfica, em cer-tas épocas, nasceu um tecido urbano muitoheterogêneo. As construções realizadas sobreedifícios já existentes e a exploração máximade todos os espaços disponíveis � pátios inter-nos, terraços sobre os telhados, celeiros trans-formados em habitações � chegam a formar achamada favelização vertical. Além disso,proprietários(as), em virtude do constante au-mento da demanda, optaram pela subdivisãodos apartamentos que possuíam, aumentan-do, assim, a rentabilidade de sua proprieda-de, sem realizar obras de manutenção e demelhoria dos edifícios. A tudo isso cabe acres-centar uma falta de investimento por parte dospoderes públicos no tocante à conservação dasinfra-estruturas urbanas e à manutenção dosserviços sociais.

No fim da década de 1980, a adminis-tração empreendeu políticas de reformas ur-banísticas (os Planos Especiais de Reforma In-terna/Peri), destinadas a frear os fenômenosde degradação. Cada plano de reestruturaçãofoi objeto de uma mobilização seguida de umanegociação das associações de bairro. Isso expli-ca, em parte, a lentidão de sua implantação e desua execução. Os diferentes Peris da Cidade Ve-lha são apresentados como uma alternativa aosplanos anteriores de reformas urbanas, bloque-ados por causa de sua impopularidade. Em vezde proceder a uma terceirização do setor � subs-tituindo numerosas moradias por escritórios �e em vez de mudar a textura do tecido social, osnovos projetos permitiriam que os(as) habitan-tes e suas atividades econômicas não-margi-nais permanecessem na região.

Esse processo, no entanto, não alcan-çou plenamente seus melhores objetivos, eo resultado atual inclui uma forte tendênciaà terceirização, uma progressiva substituiçãode habitantes de camadas populares por clas-ses médias e regiões de forte marginaliza-ção ligadas a novos(as) habitantes proveni-entes da imigração, alguns(mas) dos(das)quais em ascensão social. Essa situação in-corpora também uma estrutura fortementeintercultural, valorada por uns(umas) e ques-tionada por outros(as).

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FEV 2004 / MAR 2004 27

DESENVOLVIMENTO URBANO EM BARCELONA: CONFLITO DE VIZINHANÇA E CONSENSO MIDIÁTICO

A democraciaatual foi

verdadeiramenteparticipativaaté o fim ou

somente selimitou a

escutar aspetições com

uma atitude desuperioridade?

Conflito e participação

A história urbanística da cidade está ligada aum ciclo constante de iniciativa urbanísticamunicipal, protesto cidadão, negociação e le-gitimação midiática do projeto estratégico comapoio das elites. Se, em um primeiro momen-to, as reivindicações estavam ligadas às neces-sidades imediatas e fáceis de justificar, tantodiante de vizinhos(as) como das autoridades,com o passar do tempo as demandas torna-ram-se mais complexas, e embora os movimen-tos sociais urbanos não tenham gerado �mo-vimentos de massa� como se esperava,acabaram influindo decisivamente na constru-ção física da cidade. Depois de fazerem frenteàs necessidades imperiosas (expropriações,falta de moradias), passaram a reivindicar umacerta qualidade de vida e acabaram exigindo �com maior ou menor acerto � uma qualidadena forma, um determinado desenho.

Conjuntamente, as discussões geradaspela mobilização cidadã e a demanda de par-ticipação democrática na redação do planeja-mento urbano questionaram também a fun-ção de urbanista como projetista da novacidade e remodelador(a) da existente. O(a)técnico(a) se viu obrigado(a) a reconsiderarseu papel e situar-se, em certo casos, comoredator(a) e planejador(a) de uma propostaque não pode remediar uma pressãoreivindicativa e, em outros casos, comoimpulsionador(a) dessa pressão. Ficou de-monstrado que não se pode prescindir do(a)usuário(a) se realmente se pretende construiruma cidade para todos(as).

Em Barcelona, ainda que se tenhachegado a dialogar mais facilmente comvereadores(as) e prefeitos(as) nas adminis-trações democráticas, a resposta das associ-ações de vizinhança à pergunta sobre se re-a lmente havia ocorr ido uma mudançaimportante em sua forma de participação naconstrução da cidade é negativa. A demo-cracia atual foi verdadeiramente participativaaté o fim ou somente se limitou a escutar aspetições com uma atitude de superiorida-de? No momento da realização das obras, ogoverno local impôs seus critérios com umbom desenho, mas prescindindo das expec-tativas de vizinhos(as)? As associações devizinhança, embora reconhecendo as gran-des realizações e melhorias nos bairros, rea-firmam as críticas, insistindo na existênciade um despotismo ilustrado no urbanismobarcelonês dos últimos anos.

A recente transformação da cidade deBarcelona é de uma evidência indiscutível e comgrande consenso sobre o fato de que as mu-danças eram imprescindíveis e inadiáveis e so-bre as melhorias alcançadas em escala global ede bairros. Entretanto, é óbvio que ainda faltamuito a ser feito, tanto no plano físico (cons-trutivo) como no social. Mas as discrepânciasaparecem em torno da questão sobre se foi fei-to ou não tudo o que era necessário e da ma-neira adequada e, sobretudo, em relação ao pro-jeto estratégico de cidade,progressivamente elitista,dual, turística, multicultu-ral e metropolitana.

Balanço dasreivindicações

Um trabalho de campoem 49 associações debairro permitiu o preen-chimento, com mais oumenos dados, de 550 fi-chas de reivindicaçõescom uma repercussão fí-sica sobre o território.

Entre toda a in-formação sistematizada,foram analisados os ti-pos de reivindicações,correlacionando-as como tempo e o local, o pro-cesso temporal entre rei-vindicação e realização e acorrespondência entre osolicitado e o conseguido,tanto a partir do que po-deríamos chamar de pe-quena escala de satisfaçãodo(a) usuário(a) como a partir do parâmetroem grande escala da incidência na construçãoda cidade. A informação e a análise foram or-denadas em quatro âmbitos.

1. Urbanização

As reivindicações para uma melhoria da ur-banização básica aparecem na etapa inicialdo movimento em todos os bairros periféri-cos, sejam polígonos ou núcleos marginais,geralmente unidos com a reivindicação decondicionamento da moradia, e constatama ínfima qualidade das atuações construti-vas da década de 1950 à de 1970. Além dis-so, era imprescindível para o progresso deum bairro conseguir um sistema de esgotos,

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I N T E R N A C I O N A L

Balanço desigual

Embora seja verdade que o movimento de vizi-nhança tenha alcançado a dignificação urbanados bairros, assim como um clima de concerta-ção e uma tendência redistr ibutiva eintegradora no crescimento da cidade, ele nãoconseguiu uma participação e uma influênciaefetivas no desenvolvimento estratégico deBarcelona, que ficou nas mãos do consensodas elites políticas, técnicas e econômicas. Issosignifica um modelo de adesão construídomidiaticamente que reforça mais a aceitaçãodifusa de uma ordem do que a verdadeira co-esão. Progressivamente, a cidade se desarticulasocialmente sob a aparente comunhão com oprojeto de cidade terciária, cultural, metropo-litana e tecnocrática. Cada vez mais coexistemdiversas redes urbanas e sociais.

Atualmente, Barcelona já está no limite desua capacidade de extensão urbana no territó-rio. E é por isso que já faz tempo que está inter-vindo de forma muito ativa na configuração deuma conurbação metropolitana com os municí-

pios de seu entorno e tentando salvar as barrei-ras físicas que fragmentam essa grande redeurbana. Reivindicações locais, ecológicas e deconceito urbano que propõem idéias maisredistributivas e sustentáveis tentam frear oulimitar tal projeto.

De outra parte, projeto do Fórum 2004 e achegada do trem de alta velocidade completamas grandes intervenções urbanísticas no solo quenão estavam redefinidas. Essas atuações recebe-ram críticas relacionadas à sua visão especulativae elitista. O fato é que Barcelona encarece, amoradia é inacessível e as classes populares de-vem ir embora ou ocupar redutos de baixa qua-lidade habitacional.

Provavelmente, só quando Barcelona en-contrar seus limites � e se o movimento socialurbano for capaz de renovar suas forças �,poderá ser reconsiderado o sentido de suasfuturas transformações, já em escala metro-politana, a partir de uma verdadeira participa-ção no estratégico.

luz, água ou asfalto. A exigência dessas neces-sidades propiciou a coesão necessária para osurgimento dos movimentos sociais urbanos.

Na década de 1970, os serviços míni-mos foram conseguidos ou estava formuladasua reivindicação, e as petições de urbaniza-ção eram, na verdade, de reurbanização, ouseja, existia uma estrutura básica, ruas ou pra-ças, que necessitava uma remodelação ou ummelhor aproveitamento. O planejamento dedemandas de reurbanização se manteve qua-se constante ao longo dos anos.

Algumas dessas reivindicações origi-naram as associações de vizinhança, e a mai-oria teve uma importância muito relevantepara a manutenção do caráter do bairro oupara a recuperação de sua identidade.

A oposição aos planos parciais forta-leceu as associações de vizinhança, que con-seguiram passar da defesa dos habitantesafetados à racionalização das atuações.

A partir de 1973, foram registradas asprimeiras denúncias de irregularidades urba-nísticas, um tipo de ação que predominouaté 1978 e que, além dos resultados positi-vos de vigilância e controle das imobiliárias,parou ou modificou uma série de constru-ções de grande impacto. Continuaram os de-

bates sobre o Plano Geral Metropolitano esobre os Peris dos diferentes bairros com re-sultados desiguais.

2. Patrimônio

O patrimônio é entendido como tal a partirde duas variáveis. Por ser de titularidade pú-blica, será necessário zelar pela manutençãoda propriedade, evitando-se a alienação oureclamando-se o uso público dos terrenosou edifícios. Ou, por seu valor cultural � oscasos mais numerosos �, será necessário res-gatar ou conservar certos edifícios privados,pelo interesse cultural ou artístico, ou, en-tão, reclamar a manutenção ou a reposiçãode monumentos.

As reivindicações de patrimônio foramhabitualmente acompanhadas de propostasde reutilização para equipamentos urbanos ede produção dos espaços públicos e sempretiveram um valor simbólico agregado. Taisequipamentos e espaços foram apresentadoscomo sinais de identidade do bairro e, em al-guns casos, acabaram por ser consideradosmais como um valor patrimonial exclusivo dopróprio bairro, acima de seu serviço ao con-junto da cidade. Apesar de tudo, esse tipo dereivindicação foi de grande utilidade para a

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FEV 2004 / MAR 2004 29

DESENVOLVIMENTO URBANO EM BARCELONA: CONFLITO DE VIZINHANÇA E CONSENSO MIDIÁTICO

* Carlés Riera

Sociólogo, membro

da Associação Desarrollo

Comunitario

O RELATÓRIO 2003 DO OBSERVATÓRIO DA CIDADANIA TRAZ O

CENÁRIO DE 15 PAÍSES, ENFOCANDO A PRIVATIZAÇÃO DOS SERVIÇOS

PÚBLICOS ESSENCIAIS E OS PREJUÍZOS QUE VÊM ACARRETANDO PARA

AS POPULAÇÕES MAIS POBRES. O CAPITULO BRASILEIRO ENFATIZA

OS SEGUINTES TEMAS: GÊNERO E AGRICULTURA FAMILIAR, COMBATE

À AIDS, RACISMO, PROTEÇÃO SOCIAL E DIREITOS, DESIGUALDADES

E POLÍTICA, ECONOMIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS.

O CD-ROM QUE ACOMPANHA A PUBLICAÇÃO TRAZ ESTATÍSTICAS QUE

MOSTRAM O AVANÇO E O RETROCESSO DOS PAÍSES EM RELAÇÃO

ÀS METAS DA ONU E TAMBÉM AS EDIÇÕES COMPLETAS EM

ESPANHOL E INGLÊS, COM AVALIAÇÃO DE 181 PAÍSES.

reconstrução de Barcelona e, sobretudo, tevea função de catalogação e revalorização dealguns edifícios de notável interesse arquite-tônico e de conservação total ou parcial daarquitetura industrial, a qual constitui umreferencial histórico para o conjunto da cida-de e não somente para os bairros tradicio-nais onde está localizada.

3. Produção do espaço público

A reivindicação do espaço público tem sidopredominante na história do movimento so-cial urbano. No caso das áreas verdes e dosequipamentos urbanos, dos quais Barcelonaestá muito necessitada, o tema anima e ofe-rece grandes possibilidades de estender aslutas de vizinhança, chegar a todas as imedi-ações, à imprensa e às autoridades compe-tentes. Se a essas circunstâncias somarmos atão citada revisão do Plano Geral Metropoli-tano (PGM), será possível compreender que amaioria das reivindicações foi formulada en-tre 1974 e 1980.

A subdivisão dessas reivindicações emdois grandes blocos, áreas verdes e equipa-mentos urbanos, mostra o predomínio dasdemandas de equipamentos e, dentro destas,

as escolas e as creches. A partir de 1970, apa-recem as primeiras demandas de equipamen-tos esportivos, assim como as primeiras de-mandas de equipamentos sanitários, sociais,cívicos e culturais.

4. Serviços públicos

Desde a reivindicação inicial de um mercadoaté a oposição a um aterro sanitário, a deman-da de bombeiros e a supressão de torres de altatensão cruzando um bairro, passando pela de-manda de transporte público, tudo isso se tratade mobilizações para converter os bairros emterritório urbano conectado e de qualidade. Taismobilizações tiveram uma grande repercussãona idéia de uma cidade integrada, redistributi-va e policêntrica, assim como na construção deuma forte identidade de bairro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DOMINGO I CLOTA, Miquel; BONET I CASAS, Maria Rosa.

Barcelona i els moviments socials urbans. Barcelona: Editorial

Mediterrània, 1998.

MONNET, Nadja. La formación del espacio público: una

mirada etnológica sobre el Casc Antic de Barcelona. Barcelona:

Catarata, 2002.

PALENZUELA, Salvador Rueda. Ecologia urbana: Barcelona i la

seva regió metropolitana com a referents. Barcelona: Beta, 1995.

Pedidos de exemplares ao Ibase: (21) 2509 0660 ou www.ibase.br

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M U N D O P E L O M U N D O P E

30 DEMOCRACIA VIVA Nº 20

Encontro cidadão

Entre os dias 21 e 24 de marçode 2004, Gaborone, capital daBotsuana, será a sede da 5a Confe-rência Mundial da Civicus – umaaliança internacional, fundada em1993, para a representação cidadãcom a participação de mais de cempaíses. Os eventos anteriores acon-teceram na Cidade do México, Bu-dapeste, Manila e Vancouver.

O objetivo desse encontro éarticular a sociedade civil, pesqui-sadores(as), ativistas, agências dedesenvolvimento etc. e estimulara troca de informações sobre ati-vidades de sucesso e desafios pre-sentes em suas organizações e so-ciedades. Além disso, o encontropretende descobrir maneiras defortalecer as organizações da so-ciedade civil, trabalhar para a jus-tiça social e qualificar a partici-pação cidadã.

“Agindo juntos para um mun-do justo” é o tema principal. MasHIV/Aids, juventude, grupos mar-ginalizados, entre outros assuntos,estarão perpassando todos os even-tos da conferência.

www.civicus.org

Festival de peso

O Annual Kora Music Awards estána oitava edição. Comparável aoGrammy nos Estados Unidos e aoBrits, na Grã-Bretanha, o evento– que aconteceu em dezembro emJohanesburgo, África do Sul –teve, em 2003, 29 categorias, 15a mais que a segunda edição doKora. E uma novidade do prêmiofoi que as categorias de “Melhorartista feminino” e “Melhor ar-tista masculino” foram votadaspor telefone.

Só entre os(s) quenianos(as),foram 11 os(as) indicados(as). Oqueniano E-Sir, que faleceu emmeados do ano passado, foi repre-sentado por sua mãe. Uganda par-ticipou com três músicos que con-correram na categoria “Melhormúsico do Leste da África”.

Oliver Mtukudzi, do Zimbábue,ganhou dois dos prêmios mais co-biçados: “Melhor artista masculi-no do Sudeste da África” e“Lifetime Achievement”. Algunsartistas aproveitaram o momentopara falar sobre a Aids. Foi o casodo ganhador do “Melhor artistamasculino do Oeste da África”,Ghana´s Kojo Antwi. Ele lembrouque a pandemia atinge o continen-te de forma brutal e pediu que ouso da camisinha seja uma práticadas pessoas que fazem sexo.

Liberdade, liberdade

A organização Freedom House lan-çou o relatório Liberdade no Mun-do – 2003. Dentre os destaques naanálise feita sobre o grau de demo-cracia nos países, está a Iugosláviapós-Milosevic, que aumentou suaatividade cívica e livre expressãoda mídia.

No fim de 2002, 89 países eramconsiderados livres, com mídia in-dependente, abertura para oposi-ções políticas, clima de respeito euma significante vida cívica. Em2003, esse número aumentou porquatro. “Isso significa que tanto onúmero como a proporção de pa-íses livres (46%) são os maioresda história dessa pesquisa”, apon-ta o documento.

São 55 países parcialmente li-vres, quatro menos que no ano an-terior. Constatou-se que 1.293 bi-lhão de pessoas (20,87% dapopulação mundial) vivem em umambiente de corrupções, restriçõesétnicas e religiosas e pouca forçadas leis. E são 48 países sem liber-dade, com 2.186 bilhões de pessoas(35,28% da população mundial).

O relatório também chama aatenção para o fato de que paísesde maioria mulçumana na Ásia,Oriente Médio e África têm apre-sentado progressos. “Isso contra-diz algumas afirmações de que osensinamentos islâmicos são con-trários ao desenvolvimento demo-crático”, finaliza.

Jamile Chequer

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L O M U N D O P E L O M U N D O P E L O M U N D O

Ainda os transgênicos

A União Européia (UE) e os Esta-dos Unidos estão em uma acirradabatalha por causa dos transgênicos.Em dezembro, mais uma vez, a Co-missão Européia anunciou que os(as)especialistas da UE não autoriza-ram a comercialização do milhoBT-11. Agora, está com os minis-tros da UE a responsabilidade demanter a proibição ou não aos or-ganismos geneticamente modifica-dos (OGMs), que vêm sendo bani-dos do continente desde 1999.

Na verdade, a autorização podenão ter saído por falta de quórum.A UE é formada por 15 países. Se-gundo o jornal Le Monde, Espanha,Irlanda, Reino Unido, Holanda, Su-écia e Finlândia deram o aval para acomercialização. Alemanha, Bélgi-ca e Itália se abstiveram e França,Áustria, Luxemburgo, Dinamarca,Portugal e Grécia votaram contra.

Entre satisfeitos(as) e insatisfei-tos(as) com a decisão, vieram osaplausos da ONG Amigos da Terra.

Cenário mundial

As Nações Unidas divulgaram, re-centemente, relatório com proje-ções da população mundial para2300. Mapearam cinco possíveiscenários mundiais. Todas as pro-jeções apontam um declínio na na-talidade depois de 2050 e um con-seqüente aumento da expectativade vida. Também nesses cenários,a imigração internacional é consi-derada inexistente depois de 2050.

No cenário médio, em 2075 apopulação mundial será de 9,2 bi-lhões. Em 2175, esse número di-minuirá para 8,3 bilhões, e, porcausa do aumento da fertilidade,em 2300, a população será de 9bilhões. Os países em desenvolvi-mento serão responsáveis por 7,7bilhões de pessoas em 2300. Chi-na, Estados Unidos e Índia conti-nuarão sendo os países mais popu-losos, sendo que a Índia, em 2050,terá mais habitantes que a China.

O documento mostra tambémuma numerosa população mundialcom 80 anos ou mais. Em 2300, aexpectativa é de que haja mais de1,5 bilhão de pessoas, 17% da po-pulação mundial. Hoje, essa popu-lação corresponde a apenas 1%. Orelatório conclui que a sociedadefutura terá de dar mais valor àscontribuições das pessoas maisvelhas para garantir que elas con-tinuem ativas e engajadas.

De olho nas atrocidades

A Human Rights Watch (HRW)lançou recentemente uma publica-ção sobre direitos humanos e con-flitos armados. São 407 páginas,divididas em 15 estudos. Um delesnarra a situação da Chechênia,onde direitos humanos estariamsendo esquecidos com a desculpada “luta contra o terror”. Outroestudo diz que forças aliadas estão“perdendo a paz” no Afeganistãoe um terceiro fala sobre a Iugoslá-via e mostra como ainda há inse-gurança, discriminação trabalhis-ta e problemas de justiça queservem como barreiras para o re-torno de refugiados(as). Como re-sultado, a “limpeza étnica” conti-nua expressiva em alguns locais.

O Iraque é o foco da publica-ção. “O governo Bush não podejustificar a guerra como uma in-tervenção humanitária, assimcomo Tony Blair”, disse oKenneth Roth, diretor executivodo HRW. “Essas intervenções de-vem ser reservadas para acabarcom uma iminente ou constantecarnificina. Não podem ser usadastardiamente tendo como causaatrocidades que foram ignoradas nopassado”, advertiu.

www.hrw.org

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E N T R EV I S T A

E N T R E V I S T A

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Dodô daPortelaO Rio de Janeiro não seria o mesmo sem alguns de seusícones. Contar a história de um deles é recriar a cidade, éacrescentar um pouco mais de vida à heróica cidade de SãoSebastião. Conversar com Dodô da Portela é percorrer atrajetória da escola, berço de Paulinho da Viola, Monarco,Natal e Paulo da Portela, é rejuvenescer o Rio de Janeiro.Dodô foi escolhida pela diretoria da escola de Oswaldo Cruzpara ser a madrinha da bateria, substituindo a apresentadorade TV Adriane Galisteu. Significaria uma volta às raízes nocarnaval carioca? O tempo dirá.

Maria das Dores Rodrigues, seu verdadeiro nome, foiporta-bandeira no primeiro campeonato da Portela em 1935,função que exerceu até 1966. É muito querida na escola.Conversar com ela na quadra é tarefa quase impossível, a todomomento é interrompida por alguém que a saúda, pedindo abênção. A memória de Dodô não se restringe à Portela. DeBarra Mansa � sua cidade natal � ao Rio, conta comdesenvoltura como era sua vida no interior, sua chegada aobairro carioca da Saúde, o período Getúlio Vargas etc. E umpouco do difícil cotidiano da cidade hoje.

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E N T R E V I S T A

Há quanto tempo mora na cidadedo Rio?Dodô da Portela � Tenho 84 anos e moro

na Saúde há 80 anos. Sou de Barra Mansa,vim para cá com 4 anos, com a mamãe, seisirmãos e mais três sobrinhos que a mamãecriava. Fomos direto para a Saúde, onde mora-mos em um quarto de um beco. Mamãe veiopara o Rio porque em Barra Mansa não tinhaemprego para os rapazes.

E seu pai?Dodô da Portela � Papai nunca morou

no Rio, vinha de oito em oito dias. Ele ficouem Barra Mansa. A família do meu pai eramelhorada; da minha mãe, não. Ele traba-lhava na estrada de ferro e também era co-missário de polícia. Ele podia dar ordem deprisão; se tivesse uma briga ou qualquercoisa, ele podia prender. Achavam que agente era rica. Por causa disso, eu e meusirmãos não ganhávamos nada no colégio,nem merenda, nem uniforme. Nossa casa emBarra Mansa, mamãe dizia, era enorme: tí-nhamos nossos quartos e duas salas. Quan-do inventaram o gramofone, meu pai com-prou logo. Só rico tinha gramofone, e meupai comprou para a minha mãe. Tudo de me-

lhor o meu pai dava para ela. Mas, depois,meu pai começou nas andanças dele e minhamãe teve que virar lavadeira.

Eles se separaram?Dodô da Portela � Não, nunca se separa-

ram. Minha mãe, dona Otília, era de igreja.Olha a minha casa, cheia de santo... Lá naPortela quem cuida de santo sou eu. Meu pai,seu Tibúrcio, era de baile. Puxei aos dois, né?

Sua mãe era religiosa, católica, eseu pai era boêmio?Dodô da Portela � Isso mesmo. Para meu

pai, mulher tinha que ter as cadeiras largas.Minha mãe falava que, por isso, ele corriaatrás das andanças. O meu pai que abriu oprimeiro clube de baile, de gafieira, lá em BarraMansa. O nome era Pensão, defronte ao Jar-dim Macaco.

Meu pai era um negro bonito à beça. Nãofaltava mulher para ele, mas faltavam as coi-sas pra gente; foi assim que a mamãe viroulavadeira. Não tenho nenhum retrato dele naparede porque eu era tão apegada que prefi-ro nem ficar olhando... A mesma coisa é comminha mãe e com meu crioulo, meu marido:tenho fotos, mas não boto na parede. Sem-pre fui muito ligada à família. Todo final deano vou para Aparecida, como ia antes comminha mãe.

A senhora ainda vai a BarraMansa?Dodô da Portela � Sempre vou. Batizei

uma escola de samba lá, tenho parentes queainda moram na cidade. A casa onde a gen-te morava ainda existe. Está escrito até hoje:Vila Otília.

Voltando à época que a senhorachegou ao Rio, como era a vida?Dodô da Portela � Para mim, estava tudo

bom, eu era criança. Mas lembro que, aqui naSaúde, era bem diferente. Se chegasse umacriança perto de um malandro quando ele es-tava trabalhando � porque pra ele era traba-lho �, ele ralhava com ela e mandava chamar opai. Quando o pai vinha, perguntava: �Por quedeixou seu filho por aí?�. Se aparecesse umamenina grávida e a mãe dela falasse que orapaz não queria casar, a coisa complicava: era�ou casa ou morre�. A lei era assim. Agora,com o dinheiro, tudo mudou. Mudou muito.Naquela época, não tinha tanta violência. Hoje,tem tanta criança pequena envolvida...

Mas nem a polícia era violenta?Dodô da Portela � A polícia não subia o

morro; era tudo mais calmo. Agora, os polici-ais acham que é só no morro que tem violên-

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cia. E é aqui que eles vêm procurar. Esquecemque lá embaixo também tem violência. Fui cri-ada aqui e via que um tomava conta do outrodireitinho. Havia respeito entre nós. Tinha mui-ta festa; era raro o sábado em que não haviaum casamento!

Depois, fui crescendo e comecei a enten-der um pouco mais do lugar onde vivia. Foiaqui no Rio que tirei meus documentos. Mi-nha carteira tem a assinatura do GetúlioVargas. Quando ele entrou no poder, ma-mãe tirou nossas carteiras para a gente po-der trabalhar. Me lembro de que, quando oGetúlio veio para o poder, foi uma fofocadanada. Diziam até que ele tinha vindo acavalo, mas eu não acredito. Foi nessa épocaque fui para a Portela.

E como foi sua ida para a Portela?Dodô da Portela � Eu trabalhava como

empacotadora em uma fábrica de cartonagemna Visconde da Gávea, 121. Tinha uns 13 para14 anos. Lá também trabalhava a Dora, queera a rainha da Portela na época. Antigamen-te, as escolas de samba tinham um concursopara escolher a rainha e também a princesa;era uma forma de angariar dinheiro com a ven-da dos votos. Na hora do almoço, só davaPortela! E quem não era portelense virava porcausa da Dora! As moças que trabalhavam lácantavam sambas da Portela, uma batucava namesa, umas começavam a sapatear, outras dan-çavam. Eu, que já gostava, passei a adorar.

E isso era todo dia: batendo aqui, cantan-do lá... O patrão vinha de pontinha de pé nasescadas para ver e ralhar com a gente. Quan-do uma escutava e sentava, todo mundo sen-tava. Quando ele chegava ao sobrado, nãotinha mais barulho. Aí ele olhava e dava aque-le sorriso. Sabia que a gente só estava senta-da por causa dele. Quando ele descia, come-çava o batuque de novo... Eu não batucavanada, só dançava.

Eu trabalhava de guarda-pó, mas, na horado almoço, tirava o avental, colocava no caboda vassoura e começava a rodar. A Dora come-çou a dizer que eu levava jeito para porta-ban-deira. Mas foi só com 15 anos que eu fui àPortela. A Dora disse que a porta-bandeira es-tava faltando e me levou à quadra. Foi quandoeu conheci o Paulo da Portela. Quando chegueilá, o Paulo logo disse: �Ela é muito criança, nãopode sair�. Não podia mesmo, mas eu fui aprimeira menor a sair numa escola de samba.

Mas ninguém sabia da sua idade?Dodô da Portela � Desfilei a primeira vez

em 1935. É só fazer as contas...Ele aumentou

minha idade para o juiz de menor; disse queeu tinha 19 anos.

O Paulo da Portela?Dodô da Portela � Ele mesmo. Mas, an-

tes, ele disse ao seu Antônio, que era o mes-tre-sala da Portela: �Veja se essa menina dápara porta-bandeira�. Fomos para a rua en-saiar na mesma hora. Rapidinho, seu Antô-nio me explicou o que eu tinha que fazer acada sinal: quando jogava o lenço para cima,quando esticava a mão, quando pedia minhamão � até hoje é tudo na base dos sinais.Quando acabamos o en-saio, seu Antônio me le-vou de volta ao Paulo daPortela e disse: �Essa me-nina vai ser uma grandeporta-bandeira�.

Na época, a Portelanão tinha uma quadra tãogrande como hoje; era aPortelinha: uma casa defamília que só dava mes-mo para guardar os ins-trumentos da bateria e ostroféus. A gente nem po-dia sambar ali, a genteensaiava na rua.

Onde?Dodô da Portela � Na

Estrada do Portela, emMadureira. Começava 8horas da noite e acabavameia-noite. Em dia de en-saio, eu saía do trabalho eia para casa me arrumar eencontrar com minha mãe.Era ela quem me levavapara a Portela porque euera menor e, naquela épo-ca, menor não andava sozinho na rua, senãoa polícia levava. Mas, antes de ir para a Portela,a gente rezava o terço. Eu fazia tudo rápido edizia para a mamãe: �Já estou com o terço namão�. Se eu rezasse sozinha, ela sabia que euia pular alguma coisa. Depois da reza, a gentepegava o bonde, saltava em Madureira e an-dava até a Portelinha.

O fato de ser tão jovem não fezcom que sua família tentasseimpedir sua entrada na escola?Dodô da Portela � Até que não, mas

minha mãe sempre ia junto. Mas eu tinhaque rezar o terço antes! Acho que vem daíesse meu gosto pelos santos. Nisso puxeià mamãe. Mas já disse que também saí ao

Os policiaisacham que é só

no morro quetem violência.

E é aquique eles vêm

procurar.Esquecem que

lá embaixotambém tem

violência

DODÔ DA PORTELA

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E N T R E V I S T A

papai: minha canela não pode ouvir um sam-ba. Eu sempre dizia que o culpado era o papai.Sou mesmo uma mistura do meu pai e da mi-nha mãe. Sempre gostei de ir a bailes; minhasirmãs nunca foram desse jeito. E eu enterreitodo mundo e ainda estou aqui! Às vezes, ficopensando: �Será que tenho mesmo 84 anos?�.Eu até olho os documentos para ver se tenhomesmo essa idade toda. Todo mundo diz quenão parece. Eu vejo senhoras que dizem ter 70anos e nunca saem dos 70! Muita gente men-te a idade...

Que outras lembranças a senhoratem do Paulo da Portela?Dodô da Portela � Ele foi o primeiro

sambista que viajou para fora do país. Nes-sas viagens, ele levava o nome da Portela.Quando ele chegava, já vinha com o sambapronto para a escola. Enquanto ele não che-gava, a gente ensaiava com sambas de ou-tros compositores. Mas o Paulo sempre che-gava e concorria com o samba dele. Mas,em certo ano, ele estava em São Paulo e,quando chegou, a gente já estava na Cen-tral indo para a Praça Onze desfilar, já eracarnaval! Ele ensinou o samba para as pas-toras ali mesmo, só que elas não entende-ram o samba direito. No refrão a gente ti-nha que falar �glória pra justiça�. Só que,na hora, saiu �pau na justiça�! As pastoras

com alegorias de carabina, ajoelhadas eapontando para a comissão julgadora di-zendo: �pau na justiça�! Ficamos em sextolugar! Foi uma briga danada!

Que ano foi isso?Dodô da Portela � Não sei, não me lem-

bro. Mas lembro que foi por causa disso que oPaulo deixou a Portela. Na verdade, tiraram ele.Não podiam fazer uma coisa dessas com o fun-dador da escola! Até diziam que ele podiacontinuar indo à Portela, mas seus compa-nheiros não podiam entrar. Isso levou ele àmorte. Antigamente, as escolas de samba erammuito rigorosas.

E ele continuou freqüentandoa Portela?Dodô da Portela � Não, ele foi para a

Lira do Amor; quando morreu, não estavana Portela. Mas, no enterro dele, eu estavalá segurando a bandeira da nossa escola.

Na época do Paulo da Portela,a escola não tinha nenhum tipode patrono?Dodô da Portela � O que tinha era o Li-

vro de Ouro, onde as pessoas assinavam suasdoações. O dinheiro arrecadado era para fa-zer os carros alegóricos e vestir a bateria. Por-ta-bandeira e mestre-sala se vestiam por con-ta própria.

Como foi a emoção do primeirodesfile, em 1935?Dodô da Portela � Eu, com 84 anos, sei

lá como fiquei naquele dia! Acho que foi mui-to grande, que eu me lembre; e ninguém metira esse prazer porque eu dei essa vitória àPortela. Nenhuma escola tinha ganho na Pra-ça Onze, e eu, no meu primeiro desfile comoporta-bandeira, dei esse título à Portela. Foio meu ponto que fez a Portela desempatarcom a Mangueira.

E não tinha essa história de escolinha, eracom a gente mesmo. Em dias que não tinhaensaio na escola, quando eu chegava em casaa mamãe até escondia as vassouras. Eu enro-lava um pano no cabo e rodava! Haja espelhoe lâmpada! Mamãe ficava tiririca...

Na Portela, sempre foi tudo muito emoci-onante... A cada novo campeonato, os com-positores me carregavam no colo. O resulta-do era na hora e os jurados não ficavam longecomo hoje. Eles olhavam e pegavam nabandeira, botavam a mão na roupa da porta-bandeira e do mestre-sala, olhavam toda anossa elegância. Nós dois não podíamos dejeito nenhum dar as costas para os jurados, agente tinha que dançar olhando e sorrindo

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para eles. Hoje, tem mestre-sala e porta-ban-deira que só rodam e nem sabem por queestão rodando... A verdadeira rodada da por-ta-bandeira, três para direita e três para es-querda, só quem faz sou eu e a Vilma, nin-guém mais faz. A maioria só faz aquele pião,não acompanha nem a bateria. Era muito maisbonita uma dança de porta-bandeira e mes-tre-sala. Os mestres-salas de agora gostamde pular. Os únicos que ainda fazem da ma-neira antiga são o Peninha, da Estácio, e oChiquinho, da Imperatriz Leopoldinense. Nomeu tempo, a gente ia e voltava; agora, é tudocorrendo. Mas isso é por causa do relógiotambém. O próprio pessoal da harmonia man-da a escola correr.

Que outras mudanças ocorreramnas escolas de samba?Dodô da Portela � A ala das baianas!

Antigamente, iam para a ala das baianas assenhoras que não podiam sair em alas, nãotinham mais pique. Agora, a ala está cheiade meninas novas, que só querem sair debaiana para não pagar a fantasia. Como éque essas senhoras estão se sentindo? Com65 anos, já são cortadas. Não me conformode ver uma senhora se queixando que foicortada da ala das baianas. Na Portela, elasvão para a minha butique falar sobre isso.Sou do tempo em que as baianas eram assenhoras da escola. Era uma ginga diferente.Agora, os diretores querem que as baianassuspendam os pés. Baiana não suspende opé, por isso se usava chinelo. Hoje estão des-filando até de sandálias.

Mas, apesar disso, a senhora nempensa em deixar a escola.Dodô da Portela � Eu vou deixar por quê?

Já estou velha, vou deixar por que se eu gostoda Portela? Lá todos me respeitam.

Quem é a melhor porta-bandeirada atualidade?Dodô da Portela � Na minha opinião, são

várias: a Maria Helena, da Imperatriz, aSelminha, da Beija-flor. E tem também aMariazinha, que era da Vila Isabel; mas ela estácega, não dança mais.

A senhora desfilou a vida inteira sópela Portela. Mas, nos carnavaisatuais, mestre-sala e porta-bandeiramudam bastante de escola, não?Dodô da Portela � Sim, mas antigamen-

te não tinha dinheiro, agora tem. Agora é ou-tro departamento. Eu não ganhava dinheironem para fazer minha roupa, minha roupa erafeita com o dinheiro do meu trabalho.

A senhora nunca ganhou dinheirocom o samba?Dodô da Portela � Não, até agora. Tenho

uma butique lá na quadra que seu Carlinhos[Carlinhos Maracanã, presidente da Portela]mandou fazer pra mim. É só. Pode perguntar aqualquer pessoa. Para mim, ter essa butiquena quadra da Portela é um troféu, o troféu deque eu gosto mais.

A senhora tem aposentadoriatambém?Dodô da Portela � Tenho! E eu não tra-

balhava? Quando me casei, meu crioulo que-ria me tirar do emprego, mas eu já tinha muitotempo de serviço. Conversei, levei ele; sabecomo é, mulher leva o homem. Eu fiquei e meaposentei; tenho a minha aposentadoria e te-nho a pensão dele.

DODÔ DA PORTELA

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38 DEMOCRACIA VIVA Nº 938 DEMOCRACIA VIVA Nº 20

E N T R E V I S T A

Seu marido também tentou tirá-lada escola?Dodô da Portela � Quando éramos noi-

vos, meu crioulo até me levava. Ele trabalhavano cais e já me conheceu como porta-bandei-ra. Ele dizia para mim: �Não sei se eu traba-lho hoje�. Eu dizia: �Te espero até 9 horas. Senão vier, eu vou sair�. Nunca enganei. Ele sa-bia. Mas, depois que casamos, não sei o quedeu nele, e ele não queria mais que eu fosse.Ele foi até fazer queixa para minha mãe e meupai. Um dia meu pai chegou e falou: �Dodô,deixa a bandeira�. Eu disse: �Deixo não�. Enunca deixei.

Ele era do samba?Dodô da Portela � Era! Era mangueirense.

Nós nos conhecemos num baile lá no Irajá; eutinha 20 e poucos anos; era muito bonita. Eugostava muito de ir aos bailes...

Era ciúme então?Dodô da Portela � Ciúme nada; não que-

ria mesmo, só isso. Depois desistiu.Naquela época não era tão comumuma jovem ir sozinha a bailes,não? O que as pessoas falavam?Dodô da Portela � Ninguém falava nada.

Ou eu não prestava atenção. Eu queria mesmoera dançar, gostava de ir à Elite [tradicionalgafieira do Centro do Rio]. Entrava em qual-quer gafieira. Usava sapato alto e minha rou-pa não era uma roupa comum; quem é de es-cola de samba se veste diferente pra ir ao baile.

A senhora tem filhos(as)?Dodô da Portela � Criei uma sobrinha

porque a mãe dela morreu de parto, era mi-nha irmã. Mas filho meu, não tive. Acho quepor causa da Portela.

Como a senhora se tornoumadrinha da bateria?Dodô da Portela � Nem sei direito como

foi! Só sei que recebi um telefonema doMarquinhos, assessor do seu Carlinhos, dizen-do: �Vou te falar uma surpresa, a senhora ago-ra é madrinha da bateria�. Eu falei: �Você nãosabe que eu tenho mais de 80 anos? Sou ve-lha, como você fica dizendo que sou madri-nha de bateria?�. Claro que eu pensei que eleestava caçoando de mim. Todo mundo sabeque as madrinhas de bateria são modelos,meninas novas. Antigamente, era diferente,mas madrinha de bateria nunca foi velha.

Como era antigamente?Dodô da Portela � Era uma menina do

local, da escola, mas era uma menina nova. Sóque ela não vinha nua; aliás, nem passista vi-nha nua. Mas depois resolveram tirar as meni-nas da escola e botar modelo.

O que a senhora acha disso?Dodô da Portela � Para mim, tem que ser

menina da escola. Mas a verdade é que tira-ram quase toda a gente da escola. Até parasubir no carro tem que ser menina bonita,modelo. A única escola que não tem muitoessa diferença é a Beija-Flor. A Mangueira tam-bém valoriza muito as pessoas do local; tantoque, para ser porta-bandeira ou mestre-sala,tem que morar lá no morro.

A senhora vai sozinha na frente dabateria?Dodô da Portela � Iremos eu e a rainha,

uma menina da comunidade.E a senhora acha que essa atitudeda Portela pode significar umavolta às origens da escola?Dodô da Portela � Pode ser um exemplo

para as outras escolas. Sou uma das mais ve-lhas do samba. Vocês já viram uma mulher de84 anos na escola de samba se rebolando? Édifícil! Na bateria é só homem, com uma se-nhora é mais respeito, eles não vão me dizerpiada, eles não vão me agarrar. É outro respei-to, lá todo mundo me chama de madrinha.

A senhora é muitíssimo admiradae respeitada no mundo do samba.Mas, fora dele, já houve algumfato que a discriminasse por sermulher e negra?Dodô da Portela � Quando os desfiles de

escola de samba começaram, os brancos não semetiam. As mães nem deixavam que as meni-nas brancas falassem com a gente, não podiamnem encostar. Mulher de samba, mulher degafieira e mulher que trabalhava na fábrica não

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Participaram destaentrevista:Elaine Ramos,Iracema Dantase Marcelo Carvalho

Fotos: Vanor Correia

prestava! Eu fazia isso tudo... E me casei di-reitinho. Mas a idéia era que a gente não pres-tava. Lembro de uma música que diz: quandouma escola de samba passa, parece até quesacudiu um pé de jamelão; só preto. Mas,mesmo nessa época, branco namorava negra.Não casava, mas namorava. Até hoje não mu-dou muito, né?

Mas, pessoalmente, já sentiualgum tipo de discriminação?Dodô da Portela � Em lugar nenhum. Se

eu sei que em alguns lugares eu não vou serbem recebida, por que iria? Sou muito assim.

Quais seriam esses lugares?Dodô da Portela � Antigamente, por

exemplo, o único clube de futebol onde en-trava preto era o Vasco. No Fluminense, noFlamengo, no Botafogo, nesses clubes sóentrava pra jogar. Não podia fazer outracoisa. Então, o que eu iria fazer lá? Paralevar um não? Não sou melhor do que nin-guém, mas ninguém faz pouco caso de mim;é ruim de fazer!

A senhora acompanhou adiscussão sobre as cotas paraalunos(as) negros(as)?Dodô da Portela � Claro! Todo mundo

tem que ter direito a estudar, mas depende deoutras coisas. Lembro que, lá em Barra Mansa,tinha um rapaz negro que estudou, fez facul-dade. Ele, apesar de toda a separação que exis-te, foi em frente e se formou médico, um mé-dico muito bom. Mas é raro. Quando um negroentra para um departamento, mesmo que sai-ba mais que os brancos, quem fica é o branco;o negro sai.

E por que o negro sai?Dodô da Portela � Porque é preto! Já viu

preto mandar em branco? Já viu branco acei-tar isso? É difícil para um preto!

Eu conheço a mãe do Edson Santos [verea-dor pelo PT-RJ], a dona Elza. Ela já desfiloucomigo na Ala das Damas do Samba e semprediz que ele apanhou muito porque, quandoera estudante, só andava no meio dos bran-cos fazendo política. Ela não queria que ne-nhum branco fizesse pouco caso dele. Eu digopara a Elza: �O seu filho ainda vai ser presi-dente�. Ele luta bastante pelos negros, tantoque já foi até candidato a senador. Ele perdeuvoto para o pessoal da Bíblia, mas tomara queseja presidente um dia.

Então, a senhora acha que o Brasilé um país racista?Dodô da Portela � É racista, sim. Não era

pra ser, porque está cheio de crioulo aqui, mas

é. Até os americanos dizem que no Brasil nãotem branco! Mesmo nas famílias de branqui-nhos � assim, igual a vocês � tem um preto láno fundo do baú. A verdade é essa, mas quemé que vai dizer? Todo mundo sempre está que-rendo clarear...

E que negócio é esse de falar que o Brasilfoi descoberto pelos brancos? Descobriunada, tinha terra e tinha índio! A nossa línguaé guarani, é de índio, não é o português.

Algumas igrejas evangélicas têmido ao sambódromo em grandesevangelizações. O que a senhorapensa disso?Dodô da Portela � Esse negócio de dizer

que eles estão salvos e a gente não me deixadanada. Quando vejo sambista deixando osamba e entrando pra Igreja, digo logo: é di-nheiro, é dinheiro! E ainda tem gente quelarga de comprar um pão para levar dinheiropara a Igreja.

Veja só: tem um programa que passa de-pois da meia-noite, com uma loura, que temcada coisa... Ela diz que é evangélica... Ah, caifora! Pelo menos os católicos dão esmola, elesnão dão nada... Por isso, eu digo: �Deixa euassim mesmo�, né, São Sebastião?

DODÔ DA PORTELA

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R E S E N H A

O medo na cidadedo Rio de JaneiroVera Malaguti BatistaEditora Revan272 págs.

As décadas de 1980 e 1990 serão reconheci-das pela historiografia, no futuro, como aépoca da grande vitória da reação burgue-sa contra os movimentos políticos de es-querda. A derrota se deu no campo das experi-ências de governos de esquerda (socialismoreal ou socialdemocracia) e nas respostas te-óricas aos dilemas da sociedade contempo-rânea. Diante disso, esboçaram-se, entre in-telectuais de esquerda, três comportamentos:os que rapidamente se entregaram aos no-vos tempos e suas vicissitudes antiutópicase pós-tudo; os que ficaram reafirmando o pas-sado como uma entidade mítica, sem que nelefossem identificados erros de qualquer or-dem; e os que se puseram a pensar na pers-pectiva de atualizar a crítica ao capitalismonuma de suas fases mais predatórias e

destrutivas. Vera Malaguti Batista se inscre-ve no seleto círculo do último grupo, e seunovo livro O medo na cidade do Rio de Ja-neiro é uma importante contribuição pararefletir sobre os motivos por que as mudan-ças sociais são sempre adiadas em nossopaís. Sobretudo, o que acontece com umasociedade onde essas mudanças permane-cem por séculos bloqueadas.

A autora traça um paralelo entre oséculo XIX e as três últimas décadas do sé-culo XX. O primeiro quadro se desenha nocontexto da sociedade escravocrata do Im-pério e do medo constante de uma rebeliãodos de baixo como elemento determinanteno DNA político das classes dominantes.O segundo é o Brasil das políticas de des-monte do Estado dos anos recentes, com ocrescimento impressionante da violêncianossa de cada dia e sua transformação emnotícia de primeira página de todos jornais.O aspecto de convergência seria a relaçãosubordinada com a dinâmica mundial deacumulação de capital, por meio da econo-mia agrária de então ou de um parque in-dustrial complexo e incompleto, infenso auma economia política que pudesse trans-formar os ganhos com a modernização emamplas conquistas de cidadania. O resulta-do dessa condição é o cultivo permanentedo medo como estratégia de dominação.

Assim, o que poderia ser visto comoarbitrário nesses paralelos históricos ganhauma proximidade desconcertante. O grandemedo do século XIX – que Vera constrói apartir da Revolta dos Malês, na Bahia, em1835 – era uma resposta à crise do PrimeiroImpério, forma acabada da frustração de to-dos os sonhos de uma independência querepresentasse a formação de uma nação li-vre e autônoma. Portanto, aquela conjuntu-ra de instabilidade da década de 1930 – tam-bém sacudida pela Cabanagem no Pará, entreoutras revoltas populares – indica o quanto

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era insuportável para as classes subalternasa continuidade da estrutura colonial, mesmoque em nova chave política. O apelo ao medoem torno de um inimigo perigoso e desco-nhecido é quase igual nos tempos de Feijó enos de FHC. Porém, para os dias de hoje, aorigem dessa velha e requentada estratégiade poder está no golpe de Estado de 1964.

Em sua história desses dois momen-tos dos medos cariocas, o argumento novoque a autora mobiliza para a compreensãodos modos das nossas revoluções passivas,como diria Carlos Nelson Coutinho, é o pa-pel que exercem o sistema penal e o discursocriminológico em tais ocasiões. Sabemos, aomenos desde a grande obra de Rusche eKirchheimer (Punição e estrutura social),que o sistema punitivo de uma sociedade éum poderoso aparato disciplinador das clas-ses subalternas. Mas, em países onde a do-minação política pôde se realizar predomi-nantemente pela via da persuasão, esseaparato perdeu sua função ainda no iníciodo século XX. (É certo que essa afirmaçãomerece ressalvas nos anos mais recentes como que Loïc Wacquant tem chamado de Esta-do penal nos Estados Unidos. Mas isso ape-nas esclarece a natureza política da transiçãopor que estão passando as sociedades dospaíses centrais.) Em países periféricos, acriminalização dos pobres é uma constante quepode ser compreendida como contraponto daausência desde sempre do Estado de bem-es-tar social, donde o uso da força como via privi-legiada de dominação de classe. Dessa for-ma, o direito penal é um dos componentes“ontológicos” da ideologia da classe domi-nante brasileira – com toda a crueldade des-ses homens cordiais, essa face perversa dafrieza e desprezo com os de baixo. Se as vira-das de mesa nas regras do jogo democráticojá são uma praxe dessa elite, e tais golpes fo-ram escrutinados e denunciados pelas esquer-das; os crimes cotidianos – verdadeiros

genocídios, como a cifra de 40 mil mortesviolentas por ano no Brasil, atingindo, so-bretudo, jovens negros – com que essa clas-se impõe literalmente a ferro e fogo a ordeme o progresso (não é um notável acaso que oalcaide condottieri da protofascista guardamunicipal do Rio de Janeiro recupere nasplacas de suas obras essa consigna?) estãocompletamente silenciados. A própria es-querda, na sua maioria formada pelos filhosda classe média branca, tende a ignorar essetema, talvez por julgar que ele não faça par-te da luta pela radicalização da democracia. Comtal comportamento, apenas revela sua total su-bordinação a pensadores de outros países euma incompreensível alienação diante doscomponentes materiais, isto é, étnicos – julga-ria redundante o termo se não fosse uma ques-tão teórica de primeira ordem em nosso país –das classes populares.

O Medo na cidade do Rio de Janeiroé uma corajosa escavação nas ruínas resul-tantes desse processo histórico. Um passeiopela alma de uma sociedade que não quer sesaber assustadoramente deformada. Torna-seuma contribuição importante não apenas portrazer uma nova luz ao modelo em que as clas-ses dominantes preparam as contra-revolu-ções no Brasil como também por apontar quenão há neutralidade possível diante das açõesdo sistema penal contra as pessoas pretas epobres. Nesse campo, alinhava-se a unidadeentre racismo e repressão como o componen-te que, em última instância, faz que osperdedores sejam sempre os mesmos. Exata-mente esses que o medo do primeiro governode esquerda eleito democraticamente nestepaís fará que vejam o futuro como uma per-manência do passado.

Marildo MenegatProfessor adjunto da Escola

de Serviço Social da UFRJ

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A aventura da forma:urbanismo e utopiaem Volta RedondaAlberto LopesEditora E-papers188 págs.

A aventura da forma: urbanismo e utopiaem Volta Redonda é fruto da dissertaçãode mestrado de Alberto Lopes. Embora sejadenso, o livro, longe de ser um texto hermé-tico, feito para doutos, é fácil de ser lido. Otexto reflete a complexidade da pergunta-problema, do objeto e do caminho percorri-do para desvelá-los.

A densidade do livro se revela nainterface do objeto construído. O recursoà história e à geografia, sem jamais aban-donar o campo do urbanismo, mostra umpesquisador maduro com suas fontes eopções teórico-metodológicas. Assim, otexto flui a partir do contexto do EstadoNovo. As construções simbólicas do esta-do de exceção de Vargas são decodificadas

no estímulo ao novo – nem sempre associ-ado ao moderno – e ao simultâneo resgatee construção da identidade brasileira. Onovo dizia respeito às esferas administra-tiva, produtiva, política, social, territoriale urbana. Já o redescobrimento do Brasilnão seria simplesmente uma volta nostál-gica ao passado, mas a simbiose do pas-sado, cuidadosamente selecionado, comesse novo patrocinado pelo Estado. Nes-se ambiente, deve ser entendida a cons-trução de Volta Redonda.

Mas o que interessa em Volta Re-donda? A unidade produtiva da usina, oprojeto urbanístico ou a cidade? A respos-ta do autor é clara: tudo o que ao projeto seassociava. Lopes se detém na atmosfera daera Vargas para situar a construção de VoltaRedonda no contexto da reorganização doterritório, da urbanização crescente e dasarticulações políticas em torno dos princi-pais personagens que emergiam no novocampo profissional que se consolidava: ourbanismo moderno. Por isso, o fácil en-tendimento da relação existente entre amarcha para o Oeste, as construções daCentral do Brasil, do Palácio Capanema, doMinistério da Fazenda e a abertura da Ave-nida Presidente Vargas no Rio de Janeiro,a construção de Goiânia, a criação da LigaNacional contra o Mocambo e a invençãode um novo lugar exemplarmente imagina-do para ser Volta Redonda.

Para dar conta desse desafio, o au-tor faz um pequeno histórico da ocupaçãodo lugar para, então, nos contar a tramapolítica por trás da escolha do local do pro-jeto. No terceiro capítulo, faz um breve pas-seio pelo pensamento urbanístico moder-no para chegar a Tony Garnier (1869–1948).O modelo da cidade industr ial desserenomado urbanista francês é dissecado deforma a nos mostrar a analogia existente como plano de Volta Redonda. O instigante foi

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R E S E N H A

a acuidade de Lopes em tratar dessa influ-ência, acentuando a característica utópicade ambos os projetos.

Essa influência pode ser buscada naexpressão física dos projetos, mas extrapolaa materialidade dos planos. A dimensão so-cial é examinada a partir da interseção daanálise da cidade industrial de Garnier, datrajetória profissional de Attílio Corrêa Lima(1901–1943), autor do plano de Volta Redon-da que havia estudado na França entre 1927e 1931, e principalmente das conjunturas doperíodo analisado. Assim, o livro não é so-bre a história de Volta Redonda e muito me-nos sobre a implantação da usina siderúr-gica, mas sobre a relação entre a forma dacidade e os seus processos sociais.

Ocorre que os processos sociaisnão são dependentes exclusivamente dasformas espaciais que os sustentam, o quetende a desmistificar o discurso social epolítico fundador do projeto. Não surpre-ende, portanto, a tensão existente entre apreferência de Corrêa Lima por habitaçõescoletivas e a concepção vitoriosa da di-retoria da Companhia Siderúrgica Nacio-nal (CSN) em relação às habitações indi-viduais. A luta entre o novo e o passado,rapidamente transformado em velho – de-vendo, portanto, ser descartado –, expres-sou-se de formas diferenciadas ao longo dotempo. Se o novo, em alguns momentos, ser-viu-se do velho, rapidamente o velho pas-sou a se servir do novo. Entre as experiênci-as relatadas no livro, há casos de moradorese moradoras que criavam boi e porco emedifícios de apartamentos planejados paraensejar a nova ordem.

Longe de pensar o texto como umacrítica contundente ao ideário do urbanis-mo moderno, o livro explora a poderosa re-lação entre o Estado e a cidade, em termosde políticas públicas e projetos, ao longodo tempo. A relação entre a usina e a cida-

de era visceral. Assim, Volta Redonda emer-ge como um projeto ufanista de Estado,onde a cidade real se encontraria suspensano tempo. Ela se realizaria no devir sem opassado, tendo o presente como uma formainacabada. Na expectativa do projeto, essefuturo desejado estava chegando e o pas-sado indesejado estava sendo definitiva-mente morto.

Por fim, a questão desafiadora queenvolve a busca de uma filiação entre acidade industrial de Garnier e a Volta Re-donda de Corrêa Lima não se resolve comas similaridades dos traçados e dos dese-nhos propostos, como explicitou o autor,pois, entre o lápis e o papel do projeto, háo espaço de tudo aquilo que não está ex-plícito no plano. Mas isso nos traz outrasperguntas. O modelo de Garnier teria umadimensão democrática que o plano deCorrêa Lima não contemplava? Como seriapossível buscar essa filiação em meio a umaencomenda feita por uma ditadura?

Por tudo isso, a leitura desse livrotorna-se obrigatória. A aparente narrativalinear torna o texto leve, mas não escondeessas questões. São elas que nos aproxi-mam das Fedoras, de Italo Calvino, pois aaventura da forma se confunde com a aven-tura da cidade e da vida.

Lucia SilvaMestre em Planejamento Urbano

e Regional (Ippur/UFRJ) e doutoraem História Social (PUC/SP).

Autora de Verão de 1930/31:tempo quente nos jornais

do Rio (PMCRJ, 2003)e História do urbanismo no Rio

de Janeiro: administração municipal,engenharia e arquitetura

dos anos 20 à ditadura Vargas(E-papers, 2003).

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F Ó R U MS O C I A LMUNDIAL

F Ó R U M S O C I A L M U N D I A L Gustavo Marin*

Estamos mais

Depois do Fórum Social Mundial 2004 (FSM), em Mumbai, na Índia, em janeiro, a socieda-

de civil mundial já não é mais a mesma ou, pelo menos, a dinâmica iniciada no primeiro

FSM de Porto Alegre mudou profundamente, fortalecendo-se de forma notável. De agora

em diante, Mumbai está inscrita na agenda cidadã mundial iniciada em Seattle ou, como

dirão algumas pessoas, na África do Sul, em 1994, com a queda do apartheid. Daqui para

frente, quando se falar do Fórum de Mumbai, estará sendo evocado um evento efervescen-

te, popular, inédito na curta história dos movimentos altermundialistas.

fortes

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A tentativa de mundializar realmente o FSM efazê-lo crescer além de suas raízes brasileirasdeu resultado, pois a busca de uma verdadei-ra mundialização das resistências e a elabo-ração de vias alternativas ante a globalizaçãocapitalista apontam justamente para o forta-lecimento das lutas de todos os atores, tantono Norte como no Sul e, também, no Leste eno Oeste. Depois de Mumbai, Porto Alegreestá mais forte do que antes. Graças à tenaci-dade de organizadores e organizadorashindus e, principalmente, graças à forte pre-sença e à arte de viver dos hindus que coor-denaram esse evento, todos e todas somosagora mais fortes do que antes.

Depois dessa primeira constatação, sãomuitas as lições aprendidas que podemos citar.A primeira delas é que, quando um grupo decidadãos e cidadãs se envolve em uma novaação, procurando abrir novos caminhos parafazer avançar um processo mundial e isso acon-tece, propiciando um processo aberto e trans-parente, apesar da diversidade (ou deveríamosdizer graças à diversidade?) de seus membros,essa ação tem muita chance de ter êxito. Se,além disso, há uma ajuda em outras regiões domundo a partir de pessoas que oferecem suasexperiências e manifestam sua solidariedademediante sua presença e apoio, as possibilida-des de sucesso são ainda maiores. É precisodizer que, como toda aventura humana, o FSMde Mumbai foi possível graças a um grupo re-lativamente pequeno de homens e mulheresda Índia, apoiado por pessoas de outras regi-ões do mundo que, progressivamente, foramampliando o processo até envolver centenas �ou milhares � de organizadores e voluntários.1

Os métodos e as práticas de organização dosFóruns Sociais, uma vez que se baseiam na Car-ta de Princípios e pregam a abertura e a trans-parência, diminuem os riscos de controle porparte de um pequeno grupo.

Outra lição é que, acima de tudo, o Fó-rum de Mumbai foi uma manifestação popu-lar, uma manifestação do povo. Comparadocom Porto Alegre, e principalmente com osFóruns europeus, que mobilizaram principal-mente setores da classe média, em Mumbaifoi amplamente majoritária a presença de�intocáveis�, de camponeses, de organizaçõesde mulheres e jovens e de pessoas visivelmen-te pobres. O Fórum não só se tornou mais�mundial�, como também mais �social�.

Um aprendizado foi que o Fórum 2004também reuniu culturas e práticas muito di-versas. Em Mumbai, vieram à tona várias ten-

sões próprias de qualquer encontro desseporte. Essas tensões podem ser fonte de enri-quecimento individual e coletivo. Tambémpodem aumentar as distâncias existentes en-tre os diversos setores que compõem a dinâ-mica altermundialista e, a longo prazo, enfra-quecer o processo empreendido.

Entre essas tensões, pode ser identifica-da a separação entre as atividades organizadasde forma centralizada e as atividades auto-geridas pelos diversos grupos, redes, sindica-tos, associações etc. Era um tanto patético veras salas com 4 mil cadeiras para os painéis ecom 10 mil para as conferências ocupadas por100 ou 200 pessoas. A sensação de vazio eraevidente. Essas salas dispunham de serviçosde tradução simultânea, áudio e vídeo própri-os das grandes conferências, mas para umpúblico que não estava lá, enquanto muitosdos seminários e das oficinas autogeridas (cer-ca de mil) eram mais animados e participativos.Essa divisão, que já tinha sido notada em Por-to Alegre, entre uma cultura que se expressamediante o discurso emitido (freqüentementea partir de cima) diante de um público que sópode aplaudir e outra cultura que favorece odiálogo, o intercâmbio de experiências e odebate sobre as idéias e as propostas foi, emMumbai, uma evidência indiscutível. Comocorolário, pode-se acrescentar que as ativida-des autogeridas, ao terem como referência umgrupo, uma associação ou uma rede com basena Índia, foram muitas vezes as mais numero-sas. Em outras palavras, nos Fóruns Sociais asatividades �lançadas� de cima não funcionam.

Outra divisão flagrante era a que exis-tia entre as pessoas que se manifestavam nasruas, freqüentemente gritando slogans e to-cando tambores, e as que discutiam nas salasde reuniões. Era um pouco estranho ver, porum lado, os grupos que tentavam se fazer ou-vir dizendo �aqui estamos� mediante sloganse tambores e, por outro, aqueles que, laborio-samente, procuravam se fazer ouvir por meiodos idiomas, em inglês, híndi, marati, chinês,francês, espanhol, português etc. A diversida-de é uma característica importante dos FórunsSociais e, em Mumbai, era muito clara e evi-dente. Mas, se não há diálogo entre as dife-rentes culturas, a diversidade pode se trans-formar em um diálogo de surdos e fazer comque as pessoas não se encontrem. �Domesti-car� a interculturalidade requer tempo, não éalgo que se possa improvisar. Não há dúvidade que é preciso deixar espaço para oimprevisível e que se esteja aberto diante das

1 O artigo �Deux ans déffortspour um Forum �made inIndia��, do jornalista LaurenceCaramel, publicado no LeMonde de 16 de janeiro de2004, traz informações sobreos antecedentes do FSM naÍndia.

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F Ó R U M S O C I A L M U N D I A L

diferentes expressões culturais, mas, ao mes-mo tempo, é necessário preparar os encon-tros entre culturas diversas. Caso contrário,acabam surgindo mal-entendidos.2

Outra contradição diz respeito aos mei-os de expressão. Há pessoas que se expressampor meio do discurso e da escrita e há aquelasque o fazem por meios artísticos. Durante oFórum de Mumbai, houve 5 mil manifestaçõesartísticas nas ruas, algumas delas não regis-tradas na programação. Essas manifestaçõesaconteciam nas esquinas ou nas áreas próxi-mas aos estandes. As manifestações do tipo�teatro de rua� ou corais a céu aberto eramverdadeiras oficinas temáticas onde eram tra-tados os mais diversos temas, tais como o co-mércio justo ou a exclusão das mulheres, comuma qualidade tão pertinente quanto a dasoficinas e, às vezes, até mais. Podemos dizerque essa contradição não é, na verdade, umacontradição. No entanto, o diálogo e a articu-lação entre as formas de intercâmbio basea-das no discurso e as que se baseiam em diver-sas expressões artísticas ainda continuamsendo tarefas incompletas.

Desafios históricos e políticos

Para refletir sobre os desafios históricos e po-líticos, falta algo mais que o espaço de umartigo redigido logo depois do Fórum. Muitaspublicações divulgadas durante o Fórum daÍndia já trazem alguns dados esclarecedoressobre essas questões. Por exemplo, é cada vez

Visibilidade e legibilidade de debates e propostas

Atualmente, já se admite com facilidadeque os Fóruns não devem terminar comdeclarações finais. Por outro lado, é hu-manamente impossível querer redigiruma só declaração comum e final. Essaprática, claramente inscrita na Carta dePrincípios do FSM, foi uma das chavesdo sucesso. Entretanto, ainda existe umatarefa pendente no que diz respeito aodesenvolvimento de meios que permi-tam ter uma visão global e facilitem umalegibilidade, evidenciando a riqueza dosdebates e das propostas. Já no primeiroFórum em Porto Alegre, em janeiro de2001, houve tentativas de documenta-ção e sistematização das idéias pensadasnos Fóruns, mas a inevitável improvisa-ção fez que ficassem poucos indícios damemória da primeira edição. Em 2002,

foi feito um novo esforço, e os debates eas propostas surgidos nas conferênciaspuderam ficar registrados e foram pu-blicados diretamente no site. Para a ter-ceira edição de 2003, foi implementadoum mecanismo mais consistente.3 Nosdiversos Fóruns continentais e temáticos,foram levadas adiante iniciativas seme-lhantes. Esperemos agora os informesdo Fórum de Mumbai.4

Essa tentativa de conservar a me-mória dos Fóruns não se trata, em ab-soluto, de uma questão de nostalgia.Uma dinâmica sem memória corre o ris-co de diluir-se ou de que sua históriaseja escrita por outros. O trabalho dememória, documentação e sistematiza-ção é essencial para valorizar a riquezaintercultural, social e política, trazida

pelo público participante. Esse esforçopermite trazer à luz as novas idéias, asnovas alternativas que os atores sociaisestão implementando para fazer frentee se sobrepor, dia após dia, às políticasimpostas pelos donos da globalizaçãoneoliberal e neo-imperialista.

Os trabalhos de memória, documen-tação e sistematização são assumidos, deagora em diante, por um crescente nú-mero de equipes. As comissões de con-teúdo e metodologia do Conselho Inter-nacional também começaram a seenvolver. A capacidade de inovação paraque os programas e os métodos dos pró-ximos Fóruns sejam realmente inovado-res e participativos será uma das chavespara que a dinâmica altermundialistapossa continuar fazendo caminho.

mais forte a convicção de que é necessário atra-vessar o umbral e entrar em uma nova etapa.

Enquanto o fim da Guerra Fria e a que-da do Muro de Berlim pareciam pressagiar umanova organização mundial fundada sobre omultilateralismo internacional baseado no di-reito e na democracia, a realidade é que assis-timos a um panorama bem diferente: o do rei-nado absoluto do império norte-americanosobre o restante do mundo. A globalizaçãoneoliberal estende sem cessar seus tentáculospor todos os cantos do planeta e só faz ampli-ar as desigualdades entre pessoas pobres ericas, entre o Sul e o Norte. O panorama mun-dial no início do século XXI, e ainda mais de-pois de 11 de setembro de 2001, caracteriza-se pela passagem de uma globalizaçãoneoliberal (na qual a vontade de potência semantinha dentro dos limites marcados pelaGuerra Fria) para uma mundialização/globali-zação neo-imperial (na qual a lógica de guerrase junta à lógica da competência, mostrandoclaramente os interesses dos Estados Unidose seus aliados).

A história nos ensinou que todos osimpérios caem. Mas também nos ensinou quepodem durar muitos séculos! Não estamosagora no início do império norte-americano,tampouco estamos diante de sua crise finalou de sua queda iminente.

Até agora os impérios não detiveram ahistória. Mas o império norte-americano com-porta uma característica singular e, nesse sen-tido, nos confronta com um desafio histórico:

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2 Sobre esse tema, no marcodo Diálogo Intercultural entrea Índia e a China, coordenadopela Aliança para um MundoResponsável, Plural e Solidárioe apoiado pela Samvad IndianFoundation, pela Universidadede Jinan, em Guangdong, epela Fundação da Juventudeda China, com o apoio da FPH(Fundação Charles LéopoldMeyer), uma delegação daChina, com 15 pessoas, parti-cipou do FSM de Mumbai. Ogrupo chinês tomou a inicia-tiva de chegar à Índia umasemana antes, encontrar-seem Pune e no estado deMaharastra com outros cola-boradores e organizar juntocom eles várias oficinas duran-te o Fórum (em chinês, híndi,marati e inglês). A Carta dePrincípios do FSM tinha sidotraduzida para o chinês. Apreparação da presença chi-nesa no Fórum ocorreu commeses de antecedência, e umtrabalho de imersão préviapermitiu superar eventuaismal-entendidos e favorecer osvínculos � ainda que incipientes� entre aqueles dois países, quesão os mais povoados do mun-do e, além disso, vizinhos.

3 O Ibase, em nome da Se-cretaria Internacional, mobili-zou vár ias dezenas depesquisadores e pesquisadoras.Essa iniciativa foi reforçadapela equipe de apoio para asistematização (�mapeadores�),coordenada pela Aliança paraum Mundo Responsável, Plurale Solidário, com o apoio daFPH. Foi publicada uma cole-ção de cinco volumes em por-tuguês e divulgado umCD-ROM em quatro idiomas,com todos os informes e asanálises da terceira edição doFórum (conferências, painéis,atividades autogeridas, mesasde diálogo e controvérsia epesquisas sobre o perfil departicipantes).

4 Françoise Fuegas, da equipede documentação e sistemati-zação que havia trabalhado emPorto Alegre, em 2003, come-çou um primeiro trabalho quese propõe a dar legitimidadeaos temas apresentados noFSM de Mumbai. Trata-se deuma análise baseada nas pa-lavras-chave da base de dadosdo FSM na Índia (The top tenkeywords of the WSF and themain keywords by continents),que pode ser encontrada em:<http://allies.alliance21.org/fsm/article.php3?id_article=231>.

* Gustavo Marin

Aliança para um Mundo

Responsável, Plural e

Solidário

Fundação Charles

Léopold Mayer

[email protected]

o modo de produção e de consumo e o siste-ma científico e técnico que implementou aten-tam contra a própria condição humana. E nãosomente pelos prejuízos que infligem ao meioambiente, mas também à vida, pelas mudan-ças que podem introduzir na espécie humana.Não é simplesmente uma questão de modosde produção e de consumo. Tem algo a vercom a essência da condição humana, e issoestá em perigo.

Sabemos, agora, que o império atra-vessa crises econômicas recorrentes, mas pas-sa de uma crise para outra. Até se poderia di-zer que é um império que se alimenta de crises.Até agora sempre conseguiu se salvar. Natu-ralmente, deixa atrás de si uma situação eco-nômica e social pior do que a provocada porum terremoto: sociedades cada vez maisdestroçadas, cada vez mais fragmentadas, ondeas desigualdades e as exclusões se agravam.

Também atravessa crises de gover-nança: há muito tempo se diz que a reformado sistema das Nações Unidas é uma necessi-dade evidente, mas o fato é que isso nuncaacontece. O sistema de segurança internacio-nal se tornou mais obsoleto e, além disso, porestar sob a tutela do império norte-america-no, representa um perigo para a segurança eo entendimento entre as nações.

Além do mais, o império tenta imporum novo marco, ideológico e religioso, medi-ante verdadeiras cruzadas que só fazem au-mentar os fanatismos religiosos. Esse impériotem uma característica especial. Todos a tive-ram, mas esse é um verdadeiro especialista:cada vez que há uma crise, reage fazendo umaguerra. É um império guerreiro que atua pelaforça violenta e impõe guerras, como é o casoda última, que atualmente vivemos no Iraque.

Mas também há outra característica sin-gular na atual situação que não podemos dei-xar de mencionar, que é o grande aumento daviolência espetacular por parte de grupos queatuam em rede. Chegamos a um ponto emque todos os anos são comemorados os gran-des atentados que vêm matando milhares depessoas. Daqui em diante viveremos um perí-odo em que todos os anos estaremosrelembrando massacres. Esse é um traço parti-cular de nossa época: o império norte-ameri-cano se impõe, mas por meio de explosões,como acontece não só no Iraque, mas tam-bém no mundo árabe, nas grandes cidades doNorte e em algumas do Sul. Nesse contexto, jáque é nele que devemos nos situar, estamosentre a espada e a parede? Por um lado, um

império que impõe uma lógica de �pax ameri-cana� por meio da guerra e do modo de orga-nização social e política que ela envolve e, poroutro lado, grupos que organizam atentadosreiteradamente, sem esquecer todas as redesmafiosas � essas redes clandestinas que re-gem a vida de milhões de seres humanos quesobrevivem em condições semelhantes às daescravidão. Dentro dessa lógica (se é que issopode ser chamado de lógica), a sociedade civilque está surgindo e que tentamos desenvol-ver não pode ser tomada como refém.

Está claro que temos avançado desdea queda do Muro de Berlim ou desde o fimdo apartheid na África do Sul. Tem sido dadaprioridade a novos valores e a uma relaçãode respeito entre homens e mulheres, e tam-bém foi empreendida uma nova relação en-tre a humanidade e a biosfera. Na últimadécada, havíamos avançado na questão dosdireitos humanos. Por um momento, acredi-tamos que Pinochet seria julgado! Foi possí-vel constituir um Tribunal Penal Internacio-nal e houve um desenvolv imento deimportantes redes. Centenas de encontrosforam realizados. Produzimos dezenas decadernos de propostas.

Todos os avanços são significativos. OsFóruns Sociais e as diferentes alianças são im-portantes. A pergunta continua sendo: comovamos fazer para que esses Fóruns e essas ali-anças estejam à altura da situação? Podere-mos fazer com que o império caia? Seremoscapazes de fazer que a humanidade saia dasituação de estar entre a espada e a parede?

O século XXI deverá ser um século degrandes transformações, tanto no que se re-fere à nossa maneira de pensar, como de sen-tir, de produzir, de consumir, de nos comuni-car e nos governar. Cada um de nós sabe disso,mas, ao estarmos isolados, sentimo-nos para-lisados pela nossa própria impotência. É pre-ciso reagir contra essa impotência, e essa rea-ção está se manifestando de diferentesmaneiras no mundo inteiro.

Para fazer frente a esse desafio, há umamplo debate de idéias e propostas, desen-volvido no processo gerado pelos Fóruns So-ciais e pelas diferentes dinâmicas cidadãs emmuitas regiões do mundo. A partir daí, po-dem e devem surgir não só respostas às per-guntas anteriores, mas também contribuiçõespara abrir, desde já, novas perspectivas paraque a humanidade possa viver em paz. Emnossos dias, esse desafio se tornou uma ques-tão de vida e morte.

ESTAMOS MAIS FORTES

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I B A S EO P I N I Ã O

Impressões

O Fórum Social Mundial 2004 despertou diferentes sentimentos entre aqueles(as) que

estiveram em Mumbai. Especialmente para integrantes do Ibase, que acompanham o

Fórum desde as primeiras edições em Porto Alegre, o impacto de conviver com uma

desigualdade tão diferente da brasileira � ainda que não se trate de qualificá-la como

mais ou menos grave que a nossa � fez despertar questionamentos sobre os caminhos

que levam à construção de um outro mundo. Democracia Viva traz alguns relatos

dos(as) que durante seis dias puderam acompanhar mais uma edição de pleno exercício

da cidadania planetária.

Mumbaide

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Artífices de um mundo diferenteCândido GrzybowskiSociólogo, diretor do Ibase

O Fórum Social Mundial (FSM) adquiriu umanova e importante faceta: mostrou ser de di-mensões universais. Como mobilização daemergente e diversa cidadania planetária, con-tinua crescendo � quase 120 mil participantesmobilizados(as) pela idéia de que, diante daglobalização dominante e suas mazelas, �ou-tro mundo é possível�.

À primeira vista, uma cacofonia. A Índiaem si mesma, com mais de 1 bilhão de sereshumanos, é um mundo diverso, falando mui-tas línguas � mais de 40, das quais quase ametade é oficial �, com suas castas, com a ex-clusão social de dalits e quase 300 milhões vi-vendo na indigência. No outro extremo, cercade 200 milhões integrados ao mercadoglobalizado. O impacto é atordoante, culturale politicamente, ainda mais para olhos aguça-dos de ativistas de um emergente movimentode dimensões planetárias. Inevitavelmente,somos levados(as) a nos perguntar se faze-mos o bastante, se nos indignamos suficien-temente diante da desumanidade a que mui-tas mulheres e homens, crianças e idosos(as)são condenados(as) e se estamos sendo verda-deiramente radicais nas propostas de mudança.

Mais de 20 mil dalits participaram, dan-do uma dimensão bem popular ao FSM. Jun-tou-se aos indianos e indianas uma rica expres-são dos povos da Ásia, além de europeus eeuropéias e norte-americanos(as), africanos(as)e latino-americanos(as). Destacou-se o fato dehaver 480 brasileiras e brasileiros participan-tes, número maior do que aqueles(as) da Ásiano FSM de 2003, em Porto Alegre. O NescoGround � as construções de uma indústria si-derúrgica falida, na periferia de Mumbai, adap-tadas ao FSM, com salas improvisadas à basede bambu e divisórias, teto e piso de pano rús-tico � tornou-se a expressão plena do que estáde alguma forma de fora da globalização: gen-te em carne e osso, mas comungando de ummesmo ideal de liberdade e dignidade huma-nas acima do mercado.

O êxito do Fórum Social Mundial emMumbai deve ser medido pela adesão política,de mente e coração, no sonho e com vontade,à sua mensagem. A cacofonia foi, na verdade,uma pujante demonstração da diversidade de

sujeitos sociais que aderem à idéia e queremser artífices de um mundo diferente, onde areferência sejam todos os direitos humanospara todos os seres humanos. Se, até 2003,éramos dominantemente latinos(as), agora so-mos mais universais, bem implantados na Ásia,onde vive metade da humanidade. O FSM pas-sou a ser assumido como espaço de expressãode identidades e propostas de amplos setorespopulares. Foi um enorme salto de qualidadena superação do déficit geográfico e social emtermos de sujeitos portadores do FSM.

As novas linguagens e a necessidade detradução, que faça a liga da igualdade na diver-sidade, são o desafio político e cultural maiorque emerge de Mumbai. A força de novas lin-guagens, exprimindo identidades não-reconhe-cidas e direitos negados � entre os quais so-bressaíram os movimentos dos dalits � ,somando-se à onda ascendente clamando poroutro mundo, foi a tônica das múltiplas mar-chas no FSM. A poeirenta rua principal foi trans-formada em avenida da cidadania planetária,das 8 horas da manhã às 10 horas da noite.Esse foi o epicentro do FSM, em Mumbai. Nãofoi preciso entender literalmente o que diziamas marchas, bastava render-se ao seu simbolis-mo, cheio de denúncias e afirmações. A elasse somaram e por elas foram requalificadosos grandes atos (conferências, painéis e me-sas-redondas) sobre militarismo, unilateralismoe guerra, sobre o poder global opressor e astrincheiras de resistência, sobre os movimen-tos pela paz. No meio, o laboratório vivo demais de mil seminários e oficinas, a seu mododesencontrados, mas afirmativos da possibi-lidade de iniciar aqui e agora a construção deoutro mundo.

No fim, foi um Fórum que impactoupelo que carrega de surpreendente. Diante dacrise em que se debate a ordem dominante dodireito quase exclusivo do capital, a adesão àmensagem de que �um outro mundo é possí-vel� é uma garantia da pujança da onda decidadania. Precisamos transformá-la em forçade reconstrução de um mundo solidário, de-mocrático e sustentável, para nós e para asgerações futuras. Essa é a principal lição a seextrair de Mumbai.

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O P I N I Ã O

Do calor dos temperos às mãos geladasdas crianças que passam fomeVívian BragaAntropóloga, pesquisadora do Ibase

Pela manhã, já se sentia aromas de curry,cominho, gengibre , a lho, mostarda,tamarindo e chile misturados ao cheiro docafé servido no hotel. Ao fazer o pedido,brasileiros(as) que não queriam se envere-dar pela cozinha indiana defendiam-se comum sonoro �no spice�. Mas o alerta nãosurtia efeito. Mesmo assim seus pratos vi-nham apimentados. Parece que a comidadizia: �O que vocês estão pensando?! Nãovou mudar porque querem�. Seria esse umsinal de resistência à massificação do gos-to, sutilmente tramada pelos chefes dos res-taurantes de Mumbai?

À tarde, era a vez das comidas vendi-das nos Food Counters do Nesco Ground. Ainusitada montanha de pastéis fritos nahora e empilhados uns sobre os outros cha-mava a atenção � não só pelo modo de pre-paro, mas também pela sensação que des-pertavam. Pareciam deliciosos. Aliás, emMumbai consome-se bastante óleo, muitascomidas são fritas, e as massas dos pãessão oleosas. Os doces não fogem à regra.Porém, não são exageradamente doces,como os do Brasil. Para saber se esse é umaspecto cultural ou se alguma onda lighttomou conta dos doces indianos, há de sepesquisar um pouco mais. Curiosamente,uma d ieta com a l imentos bastanteengordurados e doces com pouco açúcarproduz uma população muito elegante. Ho-mens e mulheres são, em sua maioria, ma-gros. Cabe também ressaltar o tamanho dasporções servidas � das sopas, dos pratosprincipais ou dos acompanhamentos � bemreduzidas se comparadas ao modo brasilei-ro da mesa farta.

As frutas também reinam nos cardá-pios e no cenário de algumas ruas da cida-de. Barracas delas fazem lembrar do Brasil.Isso remete às cores, que estão por todaparte, predominantemente nas mulheres enas comidas. Nesse sentido, é possível ar-riscar alguma associação. A cultura hinduimpressiona pela riqueza dos detalhes nosornamentos das mulheres. Independente-mente de sua condição social, elas estão

sempre enfeitadas com pulseiras, braceletes,brincos, colares, tecidos e cores, muitas co-res. A comida indiana também. Tanto os mem-bros da casta mais baixa como os da mais altaconsomem alimentos multicoloridos.

À noite, nos restaurantes, a ausên-cia de alguns itens alimentares no cardá-pio indiano e o alto preço das bebidas al-coólicas é uma constante. Provavelmente,isso se relaciona às restrições alimentaresda religião hindu. Hindus não comem car-ne de vaca, queijo nem consomem bebi-das com álcool.

Nessa viagem gastronômica, não sepode negligenciar um outro tipo de ausên-cia e privação, da qual padecem mulheres ecrianças. A fome e a desnutrição são malesque acinzentam a riqueza colorida da culi-nária indiana. Em Mumbai, a desnutriçãomaterno-infantil está por toda parte e, portoda parte, crianças e mulheres aglomeram-se em volta de estrangeiros(as), tocando-lhes os braços, as pernas, as mãos, os pés,em busca do que comer. Quando levam suaspequenas mãos geladas à boca, tocam tam-bém o coração e a alma de quem as observa.Como acontece em todo lugar onde o capi-talismo impera, há aqueles(as) que ganhamcom a tragédia humana. Por toda parte, estáà venda um tipo de leite especial, não poracaso o mesmo que é pedido. Vendido emlojas que mais parecem farmácias, esse ali-mento, ao ser encarado como único remé-dio contra a fome e a desnutrição, naturali-za a situação vivida por milhares de indianose indianas.

Quando a realidade se impõe dessemodo, não há como fugir. Nessas horas,todos(as) somos iguais. E se aprende queser humano(a) é mais do que se comovercom os gestos desesperados de quem temfome. Humano(a) é aquele(a) que sente otoque das crianças e mulheres em buscada sobrevivência como um tapa na cara.Na Índia, no Brasil ou em qualquer lugardo mundo, ser humano é se indignar e seenvergonhar ao perceber que ainda não sefez o bastante

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Percebia-seclaramente

naquelesrostos uma

vontade imensade expressar

sua condiçãode ser humano

que lhes éhistoricamente

negada

Uma cara popularJoão SucupiraEconomista, coordenador do Ibase

Muitos aspectos poderiam ser ressaltadospara retratar o que foi o Fórum Social Mun-dial 2004 (FSM). Porém, um dos que mais cha-maram a atenção foi, sem dúvida, a presençamarcante dos movimentos sociais de base. Adiversidade desses movimentos agindo deforma organizada, criativa e vibrante, não sódas diversas regiões da Índia, mas dos de-mais países, principalmente asiáticos, deu aoFórum uma nova cara. Uma cara popular.

Ao mesmo tempo em que represen-tantes de organizações de cidadania ativa, deoutras entidades da sociedade civ i l ,pesquisadores(as) da academia e estudantesdiscutiam em oficinas e seminários, manifes-tações com palavras de ordem e cartazes to-mavam conta das �ruas� do imenso espaçodo Fórum. Aos berros, manifestantes agita-vam a bandeira da igualdade como parte daluta pela transformação da sociedade. As dis-tintas formas de reivindicações e de agir �pequenas passeatas, teatro de rua, gruposde dança e música � tinham em comum a pers-pectiva de que todos(as) aqueles(as) �sem po-der� ou �sem privilégio� podem lutar paramudar o mundo.

Os dalits marchavam com a esperan-ça de romper com as tradições arraigadase a hierarquia de poder. Percebia-se clara-mente naqueles rostos uma vontade imen-sa de expressar sua condição de ser huma-no que lhes é historicamente negada. Eramtantos os motivos para denúncias que atéo local do estande reservado para venda eexposição de materiais dos dalits recebeucrítica. �Por que nossos estandes estãosempre perto dos banheiros?�, questiona-va um dos cartazes.

Coreanos(as) denunciavam a políticagovernamental de expulsão de imigrantes ede seus familiares � filhos(as) nativos(as) �que vivem no país há muito tempo, mas nãopossuem documentação de permanência nopaís. Tibetanos(as) expressavam o horror ea humilhação da intervenção chinesa em seuterritório. Organizações de vários países exi-giam a saída de norte-americanos(as) doIraque. A figura caricaturada do presidente

Bush lembrava a opressão do império explo-rador. Enfim, a favor da liberdade e da paz,podiam se ouvir vozes nas mais diferenteslínguas.

Em todo seu desenrolar, o Fórumaglutinou forças. Era comum encontrar pes-soas que, mesmo não fazendo parte de umdeterminado grupo, se engajavam na luta pelaemancipação de um povo ou contra uma guer-ra. Negros(as) se mistu-ravam em passeatas detailandeses(as). Pessoasdo Norte da Europa, ves-tidas a caráter, tentavamacompanhar o ritmo dostambores de grupos indí-genas. Uma verdadeirababel, mas com muitaharmonia apesar dos di-ferentes códigos, símbo-los e etnias.

Em Mumbai, o(a)�cidadão(ã) do mundo�não atuou apenas nasquestões local izadas,mas fez parte de redesinternacionais ligadas agrandes temas como jus-tiça, igualdade e paz. Asmanifestações não se di-rigiam necessariamente aesse ou àquele governo.Em seu centro, estavamhomens e mulheres: a fi-gura do(a) cidadão(ã).

O FSM 2004 dei-xará marcas profundas nahistória dos movimentossociais indianos, tanto por seu significado ge-ral na trajetória das lutas pela cidadania comopor ter sido um período de questionamentodas próprias relações entre eles. Deixará mar-cas também em todos(as) que desconfiavamda continuidade da realização de Fóruns emâmbito regional ou mundial. Definitivamente,os discursos e debates deixaram de ser o úni-co caminho para o exercício da luta pelos di-reitos que acontecerá nos próximos Fóruns.

IMPRESSÕES DE MUMBAI

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O P I N I Ã O

Trabalhar comojornalista noFórum muitasvezes causa certafrustração.A sensaçãoé a de que nuncaserá possíveltraduzir nostextos queescrevemosa diversidadede um processocomo esse

�Perdida� em MumbaiFlávia MattarJornalista, editora do IbaseNet <www.ibase.br>

Com meu gravador, bloco de anota-ções e caneta, sentei-me em uma das cadeirasde um dos grandes halls disponíveis às ativi-dades da grade principal. Infelizmente, a úni-ca língua que se falava na mesa era o híndi.Uma das responsáveis pela tradução, vendo ainterrogação em meu rosto, aproximou-se edisse, em inglês: �O equipamento falhou�.Tendo entendido a mensagem, percebi quenão daria conta dessa tarefa específica.

Também causou preocupação o fatode ter a missão de cobrir um evento que es-perava no mínimo 75 mil pessoas, oferecen-do cerca de 1.200 atividades, sem contar coma usual parceria de outros colegas de profis-são do Ibase.

Trabalhar como jornal ista no Fó-rum, ao mesmo tempo em que causa pra-zer, muitas vezes causa certa frustração. Asensação é a de que nunca será possíveltraduzir nos textos que escrevemos a di-versidade de um processo como esse. Ou-tro fantasma constante é a impressão deque podemos estar no local errado, nahora errada. Ou seja, algo mais importan-te e interessante pode estar ocorrendosem que estejamos presentes. Um colegade profissão tentou me acalmar dizendo:�Em um evento desse tamanho, nossasescolhas acabam sendo meio aleatórias�.

Passados os sustos iniciais e criadasestratégias de trabalho durante os seis diasdo FSM 2004, foi possível não só cumprir atarefa, mas também me emocionar com de-poimentos como o da feminista Irene Khan,de Bangladesh, que denunciou o uso do es-tupro como arma de guerra, levando ao co-nhecimento das pessoas presentes históriasde mulheres, com nome e endereço,vitimizadas por esse abuso. Foi possível tam-bém trocar olhares fraternos com indianasque demonstravam carinho por mulheres oci-dentais, como eu, solicitando dedicatóriasem seus cadernos e fotografias para regis-trar o encontro da diversidade em algum ou-tro lugar, além da lembrança.

Foi com entusiasmo � e também temor � querecebi a notícia de que faria a coberturajornalística para o Ibase do Fórum SocialMundial 2004. Lembro do frio na barrigaque senti no dia da abertura do evento, en-quanto me preparava para pisar pela primei-

ra vez no Nesco Ground,espaço destinado à rea-lização do Fórum.

Além da vontadede ver de perto o des-pertar do FSM, tinhaduas preocupações. Umadelas era a babel que es-perava encont rar naquarta edição do even-to � e que, de fato, aca-bei encontrando. Ou-tra era fazer sozinha acobertura de um even-to tão grande.

Era grande acacofonia presente, nãosó em termos de línguascomo também de lin-guagens � as pessoasque se manifestavamconstantemente nasruas do Nesco usavam eabusavam de formas decomunicação que pu-dessem sensibi l izar omaior número possívelde participantes.

Mesmo quandoos(as) participantes fa-lavam inglês, os sota-ques eram tão variadosque muitas vezes pre-judicavam o entendi-mento. Mas o problemamaior era quando nos

deparávamos com situações como a que vivino segundo dia do evento, quando optei porassistir a uma atividade sobre os dalits, cas-ta dos �intocáveis�.

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IMPRESSÕES DE MUMBAI

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I N D I C A D O R E SSilvana De Paula* e Leonardo Méllo**

Uma celebração da diversidade e da tolerância em relação à diferença � essa é sempre a

constatação forte que fazemos quando participamos de uma edição do Fórum Social

Mundial (FSM). Nos eventos que ocorreram no Brasil e no que aconteceu este ano em

Mumbai, na Índia, a manifestação da diversidade foi a marca do FSM, sua marca fundante

e sua vitalidade. Na Índia, a magnitude da diversidade foi ainda mais expandida do que

nos anos anteriores, de modo que a gama extremamente plural de categorias sociais e

de setores da sociedade civil que se fez presente significa, com toda certeza, um novo

aporte para a diversidade, que é a meta constituinte do Fórum. Um novo aporte e,

conseqüentemente, novos desafios.

Ainda no começo, em 2001, o FSM foi pensado primordialmente como um even-

to, um acontecimento em oposição ao Fórum Econômico Mundial. Uma manifestação

cujo objetivo era dar lugar à multiplicidade de vozes discordantes da hegemonia de um

pensamento único, como princípio de ação no mundo, e da globalização neoliberal,

como processo político, social e econômico.

Notas depesquisa

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Desde aquele FSM, no conjunto das ativi-dades foram denunciadas e discutidas asvárias formas e facetas do processo de ex-clusão promovido pelo ambiente monolíticopreconizado pela idéia de consenso � cadavez mais claramente um eufemismo para apredominância de um único pensamento �e pelas regras do jogo político e econômicoimpetradas pelas agências internacionaiscomo o Fundo Monetário Internacional(FMI), a Organização Mundial do Comércio(OMC) e o Banco Mundial (BM).

A repercussão da experiência do Fó-rum logo se fez sentir. Cada vez com maisnitidez, delineava-se que o FSM não eraapenas um evento, mas, sim, um processo.Um processo pelo qual os diversos setoresdas sociedades civis podiam discutir desdequestões locais até questões transnacionais.O documento intitulado Carta de Princípios1

desde o início estabelecia os parâmetrosdesse processo, que contou com a partici-pação de 20 mil pessoas no FSM de 2001,50 mil no de 2002, 100 mil em 2003 e,estimativamente, 150 mil pessoas este anona Índia.

Entretanto, nem sempre esses mo-mentos foram documentados; nem sempreos conteúdos das discussões empreendi-das no conjunto das atividades dos FSMsforam registrados, de modo a conformaruma memória do processo do Fórum. Ébem verdade que muitos livros sobre asexperiências dos FSMs foram escritos, masesses livros são autorais. Somente em 2003as instâncias organizadoras do FSM deci-diram documentar os eventos anuais. Taldemora não se explica tanto pela falta deinteresse por esse tipo de iniciativa. Maisdo que isso, explica-se pela dificuldade dese encontrar uma forma de fazer registrosoficiais sem, com isso, ferir uma das regraspilares da Carta de Princípios: a não-for-mulação ou enunciação de qualquer �re-sultado final� ou �conclusão�, ou, ainda,�resolução final� ou �proposição oficial�em relação às discussões encaminhadas nasdiversas atividades que tinham lugar du-rante um dos FSMs. Assim, foi preciso quea preocupação de acompanhar sistemati-camente o Fórum ficasse metodologica-mente assegurada como registro, comodocumentação, e que jamais resvalassepara a avaliação dos conteúdos das ativi-dades compreendidas no FSM. Nesses ter-mos, no ano de 2003, no terceiro FSM, fo-

ram empreendidos: a) pesquisa sobre operfil dos(as) participantes; b) registro dasatividades autogeridas; c) sistematizaçãodos conteúdos dos painéis; d) registro dasmesas de diálogo e controvérsia; e) trans-crição das conferências proferidas.2

Em 2004, no evento realizado emMumbai, a proposição era dar continuidadea esse tipo de iniciativa por meio de umasondagem entre os(as) participantes acercados temas que julgassem importantes paraserem discutidos no âmbito do FSM.

O fundamento dessa pesquisa coin-cide com o próprio fundamento do FSM:num espaço dessa natureza, todas as vo-zes devem ser ouvidas. Assim, assume-secomo imprescindível saber o que as pesso-as presentes nesse tipo de espaço têm in-teresse em discutir. Essa perspectiva visaevitar o descolamento entre os temas sele-cionados para discussão ao longo da sériede Fóruns nacionais e regionais e os temasque as pessoas que freqüentam o Fórumpriorizam discutir. Ao mesmo tempo, evi-dentemente, esse tipo de sondagem ali-menta a organização temática de Fórunsfuturos � nacionais, regionais, temáticos,bem como o de âmbito mundial. Foi comesse horizonte que se procedeu à consul-ta/sondagem3 no FSM-Índia, cuja realiza-ção foi deliberada pelo Conselho Interna-cional e conduzida pelo Ibase.

O instrumento para essa enquete foi umquestionário elaborado de modo a contemplar:4

1) caracterização do(a) entrevistado(a); 2) ques-tões de intensidade de importância sobre 43temas extraídos do conjunto das discussõesempreendidas nos Fóruns anteriores � mundi-ais, regionais, nacionais e temáticos; 3) ques-tões abertas, nas quais o(a) entrevistado(a)nomeava assuntos considerados por ele(a)como não contemplados na lista de temasmencionada; dentre a totalidade dos temas� isto é, os apresentados no questionáriomais os por e le(a) suger idos �, o(a)entrevistado(a) hierarquizava até cinco de-les, de acordo com sua concepção de ordemde prioridade.

É sobejamente reconhecido que aspessoas do país que sedia o FSM e dos paí-ses mais próximos constituem a maior parteda população que dele participa. Para con-tornar esse viés, ou seja, evitar que nossasondagem ecoasse o predomínio de vozesasiáticas e, sobretudo, a posição dos(as)indianos(as) acerca dos temas que os(as)

1 A Carta de Princípios podeser l ida no s i te <www.forumsocialmundial.org.br>.

2 IBASE. Coleção Fórum SocialMundial 2003. Rio de Janeiro:Ibase, 2004. (5 volumes).

3 Qualificar essa consulta comosondagem é de extrema im-portância, pois uma consulta,a rigor, implicaria, de acordocom a própria dinâmica doFSM, a instituição de um am-plo processo de discussão so-bre o assunto, no âmbito doqual todas as pessoas seriaminstadas a manifestar suas po-sições. Já a adição do atributode sondagem justifica meto-dologicamente o procedimen-to de survey balizado porregras de constituição de uni-verso e de amostragem sanci-onadas na prática de pesquisa.

4 O questionário foi elabora-do no Brasil durante o mês dedezembro de 2003 e primei-ra semana de janeiro de 2004.

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I N D I C A D O R E S

entrevistados(as) consi-deravam importantes naagenda de discussão doFSM, foi adotado o sis-tema de cotas. Assim, aaplicação do questioná-rio obedeceu à regra se-gundo a qual, dado onúmero de inscritos(as),foram predeterminadasuma quant idade deentrevistados(as) indi-anos(as) , outra paraos(as) asiáticos(as), exce-to indianos(as), e umaterceira cota de entrevis-tados(as) oriundos(as)dos demais países. Talcota também combinouo tipo de inscrição/regis-tro com que o(a) en-trevistado(a) tornava-se

participante do Fórum, a saber: delegado(a)/participante; observador(a)/passe diário; eacampado(a) (Acampamento da Juventude).Em linguagem estatística, as cotas resultaramda operação de uma matriz cujas coordena-das eram 3 por 3 � três tipos de origem/naci-onalidade e três tipos de inserção.

O trabalho na Índia teve início em 10de janeiro de 2004,5 a partir de quando 67estudantes univers i tár ios(as) 6 foramrecrutados(as) e treinados(as) para a aplica-ção do questionário. Ainda durante essa pri-meira semana, foi feita uma aplicação pilotodo questionário no campus da Universidadede Mumbai. Em virtude do feedback dessepiloto, assim como em razão dos dados ofi-ciais obtidos no escritório do FSM-Índia eno Acampamento da Juventude,7 o questio-nário foi adaptado de modo a facilitar suainteligibilidade, aplicação e eficácia em rela-ção aos propósitos a serem por intermédiodele atingidos.

Foram aplicados 3.891 questionári-os. No momento, ainda se desenvolve a fasede processamento das informações levan-tadas, não sendo possível, portanto, apre-sentar neste artigo um quadro mais acaba-do dessas informações. Contudo, algumasconsiderações sobre o processo de sonda-gem devem ser socializadas, já que elas,além da enquete, falam também do FSM-Índia � ainda que dentro dos limites do pro-visório, ou seja, nos limites de um trabalhoem andamento.

Perspectiva de comparação

Um primeiro aspecto a ressaltar é que a pri-meira parte do questionário � caracteriza-ção do(a) entrevistado(a) � foi elaborada demodo a permitir uma comparação potenci-almente muito interessante com os dadoslevantados pela pesquisa realizada em 2003sobre o perfil dos(as) participantes do FSMde Porto Alegre. Mais especificamente, po-deremos estar cotejando o tipo de inserçãodo(a) entrevistado(a) em termos de ocupa-ção, escolaridade, filiação a partido políti-co, participação em organização e/ou movi-mento soc ia l , á reas de atuação dasorganizações e movimentos de que partici-pam, entre outros.

Contudo, ao mesmo tempo em quehá elementos de comparabilidade por seme-lhança entre as duas investigações, há tam-bém aqueles que podem nos permitir umacomparação por diferença, de modo a tornarpossível acompanhar as especificidades en-tre as duas experiências que foram objetodessas investigações.

Nesse contexto, vale ressaltar o casodo Acampamento da Juventude. À primeiravista, os dados oficiais de registro préviodos(as) acampados(as) no FSM-Índia pare-cem bastante irrisórios diante da magnitu-de do Acampamento da Juventude do Fó-rum de 2003, em Porto Alegre. Para termosuma idéia, basta saber que na véspera doinício do evento em Mumbai, isto é, em 15de janeiro, pouco mais de 2.500 pessoasestavam registradas no acampamento. En-tretanto, é preciso destacar três pontos. Oprimeiro, salientado pelo coordenador dasinscrições no acampamento, diz respeito àtendência das inscrições serem feitas �emcima hora�, pois as pessoas chegavam aMumbai, já com o Fórum começando. O se-gundo e mais importante diz respeito à con-cepção do Acampamento da Juventude noFSM-Índia. À diferença da experiência bra-sileira � na qual o acampamento era simul-taneamente local de acomodação e de ati-vidades �, o acampamento de Mumbai foifundamentalmente um espaço de discussão,um espaço de fórum, por assim dizer. Osespaços destinados à acomodação e ao dor-mitório foram os numerosos campings dis-tribuídos pela cidade de Mumbai. Assim, oregistro no Acampamento da Juventude naexperiência indiana dizia respeito, sobretu-do, à participação prioritária nas atividades

O acampamentode Mumbai foifundamentalmenteum espaçode discussão,um espaçode fórum

5 Gostaríamos de agradecer aKamal Chenoy pelo apoio e peloeficaz encaminhamento decontatos que viabilizou a con-dução do nosso trabalho emMumbai. Somos tambémimensamente gratos ao profes-sor doutor Sharit Bhomit, daUniversidade de Mumbai. Oprofessor Sharit foi de sumaimportância no recrutamentodos(as) estudantes e foi incan-sável em divulgar entre os(as)alunos(as) da Universidade deMumbai e do Tata Institute ofSocial Sciences a relevância daconsulta e a importância departiciparem dela. Sua gene-rosidade para conosco mate-rializou-se de várias outrasmaneiras, seja viabilizando sa-las na Universidade de Mumbaipara nossas reuniões, seja colo-cando-nos em contato comseus(suas) colegas, e até toman-do parte em algumas das nos-sas sessões de treinamentodos(as) estudantes � apesar desua agenda ser extremamenteocupada, dada sua participa-ção muito ativa tanto na uni-versidade como no FSM.

6 Os(as) estudantes são daUniversidade de Mumbai e doTata Institute of Social Sciencese são alunos(as) de graduaçãoou pós-graduação em cursoscomo Sociologia, História, Ciên-cia Política, Psicologia, Filosofia,Geografia e Serviço Social.

7 Queremos agradecer o aces-so aos dados oficiais de regis-tro no FSM-Índia. Tambémsomos muitíssimos gratos aKatherine (escritório do FSM �Índia) e a Pieter (Acampamen-to da Juventude � Índia) pelaajuda na operacionalização doacesso a tais dados.

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programadas no âmbito do acampamento,ou seja, seminários, debates, atos, confe-rências, shows etc. É bem verdade que ocrachá do acampamento facultava livre aces-so das pessoas ao espaço do Fórum e vice-versa. Mas isso se relaciona ao terceiro pon-to: a local ização do acampamento e alocalização do FSM. Diferentemente do queaconteceu em Porto Alegre, quando os lo-cais eram vizinhos, em Mumbai o Acampa-mento da Juventude ficava no Colégio DomBosco, s i tuado em Matunga, áreadiametralmente oposta a Goregoon, bairroque abriga o Nesco Ground, onde ocorreuo FSM. Isso pode nos levar a aceitar a possi-bilidade de que as pessoas terem se inscri-to prioritariamente em Nesco Ground. Des-se modo, poderiam igualmente participardo acampamento. Essa hipótese poderia ex-plicar o movimento das pessoas no acam-pamento, ou seja, o fato de que o fluxo departicipantes adensava-se a partir do fim datarde, quando justamente as atividades noNesco Ground estavam terminando, alcan-çando seu ponto máximo à noite.

As caracter ís t icas especí f icas doAcampamento da Juventude em Mumbaidefiniram uma estratégia também especialpara a condução da sondagem. Havia sem-pre duas equipes de pesquisadores(as) tra-balhando: uma cuidava da aplicação dosquestionários no acampamento, a outra fi-cava encarregada do mesmo procedimentoem Nesco Ground. Tal estratégia foi opera-cionalizada por meio do deslocamento docoordenador ou da coordenadora da pes-quisa (às vezes ambos) para o acampamen-to e, simultanemente, pelo expediente determos uma supervisora permanente, esco-lhida no âmbito da equipe, no acampamen-to e outra, também escolhida entre os(as)estudantes, em Nesco Ground.

Rotina de pesquisa

Um segundo aspecto que vale ser re-gistrado, considerando sua grande eficiên-cia para essa sondagem, diz respeito à roti-na de t rabalho adotada � foram doisandamentos diferentes: o do primeiro dia eo dos demais. Nosso cronograma de traba-lho era cumprir nossa cota nos dias 17, 18e 19 de janeiro; e, por garantia, reservar odia 20 para preencher eventuais lacunas documprimento dessas cotas. Para o dia 21foram programados: o pagamento � sim-

bólico � de entrevistadores(as); a emissão doscertificados de participação na pesquisa; e aentrega, por parte de entrevistadores(as), derelatórios qualitativos individuais, nos quaiseles(as) deveriam descrever suas experiênci-as como participantes da sondagem, assimcomo emitir seus comentários acerca da con-dução do trabalho, incluindo sugestões e ob-servações que julgassem pertinentes. É umprazer noticiar que o cronograma funcionoumelhor do que o esperado, que tudo resul-tou muito a contento.

O primeiro dia foi acordado entre co-ordenador, coordenadora e pesquisa-dores(as) como um dia especial. Desnecessá-rio dizer que todos(as) estavam excita-díssimos(as) com a �estréia�, depois de diasde treinamento, da apli-cação do teste piloto doquestionário, dos ajustesetc. Igualmente merece-dor de nota é o fato dogrande entusiasmo quesempre marcou a partici-pação de todos(as) nessetrabalho � esse entusias-mo disseminado no gru-po era emocionante. Parao dia 17 de janeiro, o diaespecial de �estréia�, fo-ram marcados dois en-contros com toda a equi-pe. No primeiro, logopela manhã, foram reca-pitulados os pontos-cha-ve do trabalho e saldadaseventuais dúvidas. Tam-bém foram distribuídosaos(às) pesquisadores(as)os crachás, os questionári-os e as cotas de entre-vistados(as), tudo numclima em que todos(as)se sentiam �prontos(as)�para começar e, como jádito, entusiasmados(as).Divididas as duas equipes� Acampamento da Juventude e Nesco Ground� foi dado início ao trabalho, tendo já acerta-do um encontro de fim de expediente, noNesco Ground. A idéia desse encontro era fa-zer um balanço da estréia na aplicação dosquestionários e ajustar eventuais problemas.Para os demais dias, a rotina foi pautada peloencontro matinal, antes do início dos traba-lhos, quando era feito um breve balanço do

As característicasespecíficas do

Acampamentoda Juventude

em Mumbaidefiniram uma

estratégiatambém

especial paraa condução

da sondagem

NOTAS DE PESQUISA

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58 DEMOCRACIA VIVA Nº 20

I N D I C A D O R E S

dia anterior, possibilitado pela verificaçãofeita pelo coordenador e pela coordenadoratodas as noites, com os questionários emmãos. Em concordância com esse balanço,eram feitas recomendações e solicitações es-pecíficas. Os questionários eram distribuídos,as equipes começavam a trabalhar e cadaentrevistador(a), depois de ter cumprido suacota, entregava o seu lote de questionário às

supervisoras ou ao(à)coordenador(a). Após isso,ele(a) estava l iberado(a)para participar das atividadesdo FSM � isso, vale mencio-nar, constituiu também umagrande e muito apreciada�mais-valia� do trabalho.

Essa rotina garantiu,a um só tempo, tanto aeficác ia da sondagemcomo o estabelecimentode uma atmosfera de trocaentre todos(as), um climaestimulante de engajamen-to, de verdadeira equipe,que permeou todo o perío-do de trabalho. Os relató-rios individuais confirmamessa avaliação. Por essa ra-zão, constituem um ricomaterial a ser analisado emalgum momento deste pro-cesso � muito possivelmen-te após a apuração dos da-dos levantados pelosquestionários.

Registros de onteme de hoje

As informações levantadasa partir dos questionáriosapl icados nessa sonda-gem estão em fase de apu-ração. Ass im, os dadosque se seguem têm porbase apenas os númerosof ic ia is fornecidos pelo

escritório do FSM em Mumbai acerca dosregistros, das inscrições feitas até 15 dejaneiro, véspera, portanto, da abertura doFórum.

Isso significa dizer que os dados queoferecemos a seguir são provisórios. Toda-via, oferecem um desenho � ainda que tosco� das pessoas que estiveram presentes no

FSM-Índia, mais precisamente dos paísescom maior número de inscrição/registro na-quele Fórum.

A equipe responsável por procederaos registros no escritório do FSM-Índia tra-balhou com as seguintes categorias deinscritos(as):� participantes e organizadores(as) de

eventos: inscritos(as) que vinham por in-termédio de organização;

� participantes individuais: inscritos(as)que se apresentavam individualmente,isto é, sem ser por intermédio de orga-nização;

� observadores(as): políticos(as), repre-sentantes de organismos, como FMI eBM, que tinham direito à presença, masnão tinham direito à voz. Eram, então,por definição, espectadores(as);

� passe livre: quem adquiriu um passe, àentrada � no guichê de regist ro(registration desk) �, mediante o qual ti-nha acesso às atividades do Fórum porum dia. Era também, por definição,espectador(a);

� acampados(as).Aos(às) que são familiarizados(as)

com as categorias de inscrição utilizadasnos Fóruns anteriores, não é difícil reco-nhecer na primeira categoria empregadano procedimento de registro em Mumbai� participantes que se inscrevem por inter-médio de organização � o que anteriormen-te era denominado �delegado(a)�. Comesse critério, foi adotado, no questioná-rio, o termo delegado(a). Para diferenciaresse tipo de inscrito(a) daquele que se re-gistrou sem ser por intermédio de organi-zação, ou seja, aquele que se apresentoucomo indivíduo, incorporamos o termo�participante�.

É pertinente observar dois aspectos:1) ambos(as) � delegado(a) e participante� têm efetiva participação no Fórum, sejacomo membro de mesa, conferencista,organizador(a) de evento etc. Daí, o deno-minador comum entre eles(as), ou a cate-goria englobadora, ser �participante�; 2)a distinção entre eles(as) � se participamdo Fórum por intermédio de organizaçãoou não � fica explicitada em questão daprimeira parte do questionário, relativa àcaracterização do(a) entrevistado(a), ondeé inquirido se o(a) entrevistado(a) perten-ce a alguma organização ou movimentosocial etc.

Os dadosque oferecemosa seguirsão provisórios.Todavia,oferecem umdesenho aindaque toscodas pessoasque estiverampresentesno FSM-Índia,mais precisamentedos países commaior númerode inscrição

Page 60: Democracia Viva 20

FEV 2004 / MAR 2004 59

* Silvana DePaula

Consultora do Ibase

e coordenadora

da pesquisa FSM 2004

**Leonardo Méllo

Coordenador do Ibase e

da pesquisa FSM 2004

Quanto à categoria �observador(a)�,foi obedecida a definição feita pela equipelocal responsável pelos registros e, portan-to, mantida a categoria. Todavia, dado queseu traço distintivo em relação aos(às) parti-cipantes � delegados(as) e participantes in-dividuais � é precisamente o fato de serespectador(a), permitiu-se aproximar essacategoria com a de passe diário no questi-onário. Também a distinção entre eles(as) éfacultada pela primeira parte do questioná-rio, a que trata da caracterização do(a)entrevistado(a) e na qual, como dito anteri-ormente, é perguntado se o(a) entrevistado(a)pertence a alguma organização ou movimen-to social etc.

Um segundo quadro de dados quepodemos apresentar com base nos registrosoficiais anteriores ao início do FSM-Índia re-fere-se à origem geográfica, por assim dizer,de previamente inscritos(as). É importantelembrar algo que já foi mencionado anteri-ormente: com o intuito de não supervalorizara opinião de indianos(as) � já que as pesso-as de nacionalidade indiana compunham amaioria das presentes ao Fórum �, foi ado-tado o sistema de cotas. A classificação denacionalidade para cotas resultou nas se-guintes categorias: indiano(a); asiático(a),exceto indiano(a); outros(as). Precisamenteporque o quest ionár io prescreve aexplicitação do país de origem das duas últi-mas categor ias � as iát ico(a) , exceto

indiano(a); e outros(as) �, foi possível umpequeno desdobramento dos dados de re-gistro prévio (Tabela 1).

É preciso reiterar, enfaticamente, queos dados aqui apresentados são extrema-mente provisórios. Sua fonte são registrosque, embora oferecidos pelo escritório doFSM-Índia, são anteriores ao evento. Porisso, são passíveis de atualizações potenci-almente significativas. Como também já foiassinalado, ainda está sendo feita a análisedo retorno provido pelos 3.891 questioná-rios aplicados. Aguarda-se ainda o fecha-mento final dos dados de registro oficialdo FSM-Índia.

Nesse contexto, o que neste artigo éapresentado constitui um �aperitivo�, porassim dizer, do campo da consulta/sonda-gem empreendida. O desejo é que estasnotas func ionem como conv i te ao(à )leitor(a) para acompanhar o andamento eos desdobramentos desse trabalho. Paraacrescentar um pouquinho mais de condi-mento a tal convite, pode-se dizer que, da-quilo que já foi manuseado em relação àsquestões abertas do questionário, foramapurados mais de mil � sim, mais de mil �novos temas que os(as) entrevistados(as)propuseram para serem discutidos no âm-bito do processo do Fórum Social Mundial.Certamente, uma contribuição de peso estápara surgir no processo do FSM e na suapróxima edição, em 2005.

Tabela 1

Porcentagem da origem geográfica das pessoas registradas �inscrição prévia � em %

Índia 50

Outros(as) 39

Ásia � exceto indianos(as) 11

África 10

América Latina 10

Oceania 10

Europa, Estados Unidos e Canadá 9

NOTAS DE PESQUISA

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60 DEMOCRACIA VIVA Nº 20

ESPAÇOE S P A Ç O A B E R T O Ana Veloso 1 *

Uma das maiores contribuições que o feminismo, como projeto político e pensamento críti-

co, trouxe para a humanidade foi o questionamento do modelo patriarcal de construção de

sociedade, que destinava às mulheres o lugar de coadjuvantes do processo histórico,

restringindo a existência da condição feminina à esfera privada. Ao propor uma transforma-

ção nas relações de gênero e a igualdade e a liberdade para a mulher, o feminismo a

credenciou como sujeito político.

A ruptura de uma identidade socialmente imposta, que limitava o acesso das mulheres à

esfera pública, foi outra conquista do feminismo, como resgata a socióloga Maria Betânia Ávila

(2000) ao analisar a produção da filósofa Hannah Arendt:

Penso que, desta forma, se viabiliza o que Arendt (1988) definiu como o direito

a ter direitos, uma vez que a conquista dos direitos exige um sujeito que anuncie

O discursofeminista

na esferapública

1 A autora também é �Jorna-lista Amiga da Criança�, títu-lo concedido, em dezembrode 2003, pela Agência Nacio-nal dos Direitos da Infância(Andi).

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FEV 2004 / MAR 2004 61

ABERTOseu projeto e tenha ação na esferapolítica, participando, assim, doconflito, que deve ser inerente à de-mocracia, e instituindo, como par-te desse conflito, a luta contra asdesigualdades a que estão sujeitas.

Espaço onde se intensificavam as de-sigualdades e a subordinação feminina, a es-fera privada surgiu como conceito na Anti-güidade clássica, na vigência da supostademocracia grega, na qual o acesso à pólissó era permitido para os cidadãos de direitos,ou seja, os homens. A noção de liberdade es-tava condicionada à vivência no espaço pú-blico. O privado, no entanto, não se consti-tuía em local de expressão da intimidade paraas mulheres, mas, ao contrário, o da privaçãode direitos, fundamentado em uma relação hi-erárquica e de opressão. Escravos e mulhereseram tidos como desprovidos de desejos enecessidades. Eram invisíveis socialmente,pois o que acontecia no privado não tinhasignificado político. O termo “público”, paraArendt, significa:

Em primeiro lugar, que tudo quevem a público pode ser visto e ou-vido por todos e tem a maior di-vulgação possível. Para nós, a apa-rência – aquilo que é visto e ouvidopelos outros e por nós mesmos –constitui a realidade. Em compa-ração com a realidade que decorredo fato de que algo é visto e escu-tado, até mesmo as maiores forçasda vida íntima – as paixões do co-ração, os pensamentos da mente, osdeleites dos sentidos – vivem umaespécie de existência incerta e obs-cura, a não ser que, e até que, se-jam transformadas, desprivatizadase desindividualizadas, por assimdizer, de modo a se tornarem ade-quadas à aparição pública.(Arendt, 1991, p. 60)

Explosão do feminismo

Movimento que toma maior fôlego a partir dadécada de 1960, o feminismo trouxe à tonadiscussões em torno da vida pública e priva-da, instigando as mulheres a ocupar o espaço

público e convocando-as a dar visibilidade parasuas reivindicações. Nasce, para a pesquisado-ra Jane Mansbridge (apud Castells, 1999), o queviria a se tornar um “movimento criado de formadiscursiva”, mas que não fixou sua ação ape-nas na argumentação política.

Para além de soltar a voz das mulhe-res, o movimento propunha atitudes políticasradicais. O debate feminista era uma forma dese contrapor publicamente ao sistema patri-arcal. Para tanto, as feministas questionaramas relações entre os sexos masculino e femi-nino, estabelecidas com bases na secularsubmissão das mulheres.

Mas não bastava apenas conquistara esfera pública. Ao politizar a vida privada,as feministas lançaram luz sobre temas atéentão intocáveis ou obscurecidos pelo Es-tado e pela Igreja. Foi nesse momento queincentivaram o debate acerca de algumasquestões – como planejamento familiar e cui-dado com os(as) filhos(as) – e, posteriormen-te, trataram dos direitos sexuais como expres-são da liberdade feminina.

A saída para o espaço público trouxeinúmeras conquistas para as mulheres, taiscomo a criação de postos no mercado de tra-balho e em instâncias de poder político. Amáxima “nosso corpo nos pertence” foi o moteda década de 1960, quando as primeiras rei-vindicações pela inclusão do tema direitosreprodutivos em discussões internacionais vi-eram à tona. Era a vez das mulheres reivindi-carem seu espaço na cena pública como su-jeitos políticos.

Stuart Hall (1997) vê no feminismo umdos movimentos da chamada “modernidadetardia”, ao lutar pelo reconhecimento de umaidentidade feminina, também tendo relaçãodireta com o descentramento conceitual dosujeito cartesiano e sociológico:

O feminismo questionou a clássicadistinção entre o “dentro” e o“fora”, o “privado” e o “públi-co”. O slogan do feminismo era:“o pessoal é político”. Ele abriu,portanto, para a contestação polí-tica, arenas inteiramente novas devida social: a família, a sexuali-dade, o trabalho doméstico, a di-visão doméstica do trabalho, o cui-dado com as crianças etc. Ele

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62 DEMOCRACIA VIVA Nº 20

ABERTOESPAÇOtambém enfatizou, como questãopolítica e social, o tema da formacomo somos formados e produzidoscomo sujeitos generificados. Isto é,ele politizou a subjetividade, a iden-tidade e o processo de identificação(como homens/mulheres, mães/pais,filhos/filhas). (Hall, 1997, p. 49)

Apesar de ter dado largospassos rumo à politizaçãoda esfera privada, a con-quista da esfera públicaainda é um desafio paraas feministas. Talvez por-que “a esfera pública,tanto na dimensão do Es-tado como em outros pla-nos, onde também seprocessam os conflitospolíticos, ainda se consti-tui como um espaço soci-al onde as desigualdadesde gênero, de classe, deorientação sexual e de raçaestão presentes” (Ávilaet al., 2001).

Entre as dificulda-des enfrentadas pelo mo-vimento feminista em as-cender à esfera pública,está a necessidade deromper com a construçãohistórica que coloca acasa, o lar e a famíliacomo únicos espaçospossíveis para a existên-

cia cotidiana da condição feminina. Não temsido fácil, para as mulheres, o convívio socialem meio à dicotomia entre o público e o priva-do, principalmente porque sua manutençãono ambiente doméstico fundamenta o poderpatriarcal e nem todas as suas aspirações so-ciais aparecem na arena pública. RichardJohnson entende o poder como um elementode análise nesse debate, chamando a atençãopara sua presença implícita na relação entreas duas esferas:

Existem, naturalmente, profundasdiferenças em termos de acesso àesfera pública. Muitas das preocu-pações sociais não ganham abso-lutamente qualquer publicidade.

Não se trata simplesmente de queelas continuem privadas, mas deque elas são ativamente privatiza-das, mantidas no nível do priva-do. (apud Silva, 1999, p. 49)

Esfera pública

Local de embates políticos e espaço fundamen-tal para a democratização da vida cotidiana, aesfera pública desponta como locus privilegi-ado para quem pretende ascender ao poder oupara quem não quer abrir mão dele. Isso acon-tece porque também é por meio dela que seconstroem e legitimam discursos. Ela funcionacomo vitrine da vida social. E ninguém melhordo que a imprensa para fazer sua refração.

Não seria exagero dizer que a mídiadetém grande poder de sedução e influênciasobre a sociedade justamente por fazer a me-diação entre a esfera pública e a privada, oumelhor, por sua capacidade de reproduzir,para um grande número de espectadores, al-gum fato social.

A sociedade, ao que parece, procurareafirmar sua identidade por meio da necessi-dade de exposição da intimidade. A exibiçãodo que, até poucos anos, era consideradoexclusivo da vida privada tem sido comum emum mercado ávido por novidades. De progra-mas de auditórios, nos quais se discute avida de estrelas televisivas, ao simulacro deprogramas como Big Brother Brasil. A idéiaé alimentar a cultuada sociedade do espetá-culo. Vale tudo para conquistar os 15 minu-tos de fama, e a máxima “ser é ser percebi-do”, de Berkeley, nunca fez tanto sentido.

Até as discussões políticas têm seueco ampliado via imprensa. É a alta visibilida-de que diversos atores/atrizes sociais perse-guem, como forma de participar do mundopúblico, com existência reconhecida e voz le-gitimada. Isso também justifica a crescenteimportância que a sociedade deposita nosveículos de comunicação. Neles, discursospodem ser simulados, editados e transforma-dos. As possibilidades são infinitas. Isso en-canta, seduz e fascina. Nesse contexto, a ex-assessora do Senado Federal, MaristelaBernardo, colabora: “A mídia é cada vez maiso que restou do espaço público. É o maiorcampo de mediação de poderes e conflitos,

E S P A Ç O A B E R T O

Não seriaexagero dizerque a mídiadetém grandepoder de seduçãoe influência sobrea sociedadejustamente porfazer a mediaçãoentre a esferapública e aprivada

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FEV 2004 / MAR 2004 63

O debate entrea íntima relaçãoentre as esferas

privada e públicaé de grande

interesse para acomunicação. Naera da sociedademidiática, a vida

privada seconstituiu em um

novo bemde consumo

um espaço de competição. Estar na mídia ésinônimo de existir” (apud Oliveira, 1997).O debate entre a íntima relação entre as es-feras privada e pública é de grande interes-se para a comunicação, uma vez que, na so-ciedade moderna, a indústria cultural estendeseu domínio para a produção de novos sen-tidos da vida privada. Na era da sociedademidiática, a vida privada se constituiu emum novo bem de consumo.

Uma das contribuições mais importan-tes a respeito dos conceitos de esfera priva-da e esfera pública ou espaço público(Öffentlichkeit) é abordada pelo filósofoJürgen Habermas em sua obra de estréia,Mudança estrutural na esfera pública, de1962, que se tornou uma importante referên-cia para a teoria e a filosofia política contem-porâneas. Os conceitos trazidos na publica-ção foram reformulados nas três décadasseguintes a partir de novas reflexões do au-tor, especialmente sobre a teoria da ação co-municativa e sobre as inter-relações entre oscampos da moral, do direito e da política.Naobra, Habermas coloca a mídia no centro dasdiscussões sobre a refuncionalização da es-fera pública, entendendo-a como uma das suasprincipais expressões:

“A refuncionalização do princípioda esfera pública baseia-se numareestruturação da esfera públicaenquanto uma esfera que pode serapreendida na evolução de sua ins-tituição por excelência: a imprensa”.(Habermas, 1984, p. 213)

É central, nas formulações de Habermas,o surgimento de uma arena onde cidadãos pri-vados se colocam como públicos para debaterquestões e influenciar processos de decisãopolítica. Esse local se constitui fora da vidadoméstica, da Igreja e do governo.

Em acordo com as teorias da culturadas massas, o filósofo e principal represen-tante da segunda geração da Escola de Frank-furt reconhece a centralidade dos mass me-dia nas sociedades contemporâneas. Elepropõe uma análise crítica sobre o funciona-mento dos veículos de comunicação, dos oli-gopólios e da publicidade, estimulando refle-xões sobre a formação de consenso na opiniãopública. Nas produções de Habermas, tam-bém notamos sua preocupação em estudar aemissão e a recepção das mensagens difun-didas pela imprensa e a introdução do con-ceito de cidadãos(ãs) como consumidores(as).

As maiores críticas ao trabalho deHabermas se fundamentam na defesa de ina-dequação histórica do seu conceito de esferapública burguesa, que, embora idealmente uni-versal, excluía as mulheres, a população de bai-xa renda, as pessoas que não tinham acesso àeducação e as minorias étnicas. Outra obser-vação ao seu trabalho é feita por teóricos(as)que o acusam de não reconhecer o papel deesferas públicas alternativas, formadas porsegmentos da sociedade civil.

João Correia, noseu artigo “Novo jornalis-mo, CMC e esfera públi-ca”, entende que o espa-ço público estaria, então,midiatizado, existindo nocenário de uma esfera pú-blica plural e multifaceta-da, também compreendidacomo um local privilegia-do de disputa e afirmaçãode direitos e cidadania.

Nessa eclética cenacultural, emergem os mo-vimentos da sociedade ci-vil que reivindicam, cadavez mais, o reconhecimen-to de sua ação política e ainserção do seu discursona cena pública, a exemplodos grupos de gays e lés-bicas, de defesa dos direi-tos das populações ne-gras, dos(as) idosos(as) ede portadores(as) de ne-cessidades especiais. To-dos anseiam por mais doque visibilidade.

Querem, na verda-de, que suas propostaspossam ser assimiladaspela opinião pública para formar uma opi-nião positiva acerca do que defendem e con-quistar simpatia e apoio de outros segmen-tos para sua causa.

Nesse contexto, é importante resgataro pensamento de E. Katz sobre a interface daação política desses movimentos com a mídia:“O funcionamento das novas formas de cida-dania e, conseqüentemente, os resultadosdessa luta simbólica estão cada vez mais rela-cionados com os media, sendo que a opiniãopública não tem necessariamente de se fazerapesar da presença dos media, mas com re-curso a eles” (Katz, 1995, p. 85).

O DISCURSO FEMINISTA NA ESFERA PÚBLICA

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64 DEMOCRACIA VIVA Nº 20

falar “em sua própria voz”, assim,simultaneamente, construindo e ex-pressando a própria identidade cul-tural através do idioma e do esti-lo. (apud Moreiras, 2001, p. 89)

Apesar de ter protagonizado experiên-cias exitosas no diálogo com a mídia nos últi-mos anos, demonstrando preocupação eminteragir de forma qualificada com ela, o mo-vimento feminista ainda não desenvolveu umapolítica de comunicação nem um trabalho con-tínuo com vistas ao estabelecimento de rela-ções mais permanentes com a imprensa.

No entanto, nem a timidez do movimen-to em lidar com a mídia, nem a falta de umaestratégia política de diálogo permanente comos veículos de comunicação impossibilitarama incorporação das formulações feministas pordistintos(as) atores/atrizes. A dinâmica dasrelações sociais nos espaços públicos con-tribuiu para que possamos, atualmente, en-contrar referências feministas em artigos dejornais, entrevistas de parlamentares,advogados(as), profissionais de saúde e atéem documentos de governos.2

Mesmo tendo a “autoria” teórica econceitos próprios sobre questões relaciona-das, por exemplo, à saúde e aos direitos sexu-ais e reprodutivos, muitas vezes o movimen-to não conseguiu fazer sua defesa maisveemente nos embates com a mídia. A atua-ção ainda acontece de forma restrita edescontinuada, sem a preparação de argu-mentos convincentes, perdendo terreno eenfraquecendo a afirmação de ações favorá-veis à ampliação e à garantia desses direitos.

Uma contradição se apresenta entre odiscurso e a prática do movimento, uma vezque reconhece a suposta atração que a mídiaexerce sobre a opinião pública, mas não sabecomo interagir com ela. Esse é um reconheci-mento que se explicita nas recomendaçõescontidas na publicação Hera: Health,empowerment, rights & accountability –Saúde, empoderamento, direitos e responsa-bilidade (1999).3 O documento sugere ações,com diretores(as), gerentes e funcionários(as)de empresas de comunicação, que reforcem aimportância dos direitos reprodutivos e so-bre o papel de cada um(a) na difusão de infor-mações confiáveis nessa área.

Outro documento que traz uma sériede sugestões sobre a ampliação dos debatesem torno da democratização dos meios decomunicação e a atuação do movimento de

Mulheres e mídia

Consciente da lógica da indústria cultural, quetem na imprensa seu motor difusor, o movi-mento de mulheres entendeu que, para sair dasmargens da sociedade e legitimar seu discursoperante a opinião pública, precisava conquis-tar novos espaços. Seria necessário, como diza socióloga Fátima Jordão (1999), “encarar amídia como campo de ação política”.

Isso significa dizer que, para entrar nes-se cenário, onde os valores patriarcais sãoreproduzidos, desigualdades de gênero sãoperpetuadas, e o corpo da mulher e sua sexu-alidade são comercializados como objetos deconsumo, seria preciso reunir argumentospara, por exemplo, desconstruir o sexismo pre-sente nas redações.

Para tanto, o movimento precisa enten-der a lógica social da globalização (MacLuhan,1960), sabendo, ainda, que a incorporação deseu projeto político em instâncias da esfera pú-blica está intimamente relacionada com sua ca-pacidade de conquistar espaço na mídia.

Autores como Thompson, Spink eGuiddens entendem que, atualmen-te, a imprensa tem um papel fun-damental na análise das relaçõessociais dinâmicas do mundo mo-derno. Para eles, a mídia apontapara um novo olhar do que se con-sidera “o público e o privado”,entendendo a ética como uma novainstância de regulação social. (Me-drado & Lira, 1999)

Para as mulheres, que enfrentam dile-mas oriundos da dinâmica e tensa relaçãoentre o privado e o público, expressar suasidéias e opiniões, exercendo sua liderança emespaços públicos, ainda é um grande desafio.No entanto, é cada vez maior a participaçãodelas no poder. Isso exige, em contrapartida,maior habilidade para difundir seu discurso.

Ao que parece, as feministas, ao longodos últimos anos, estão procurando dar maiorvisibilidade à sua intensa produção teórica.Isso nos leva a concluir que o movimento veminternalizando alguns pontos convergentescom o pensamento de Nancy Fraser:

As esferas públicas não são só are-nas para a formação da opiniãodiscursiva, além disso, elas sãoarenas para a formação e o desem-penho de identidades sociais [...].Participar significa ser capaz de

E S P A Ç O A B E R T O

2 Uma tendência crescente nomovimento é a inserção defeministas em espaços antesconsiderados �do governo� ou�institucionais�. Se, no fim dadécada de 1970, o movimentode mulheres lutou contra �Es-tados� repressivos, atualmen-te é grande a atuação nessesespaços, que não necessaria-mente são �de governo�. E issoesteve em evidência nas dis-cussões das conferências inter-nacionais de Pequim, na China,e do Cairo, no Egito. Essa par-ticipação acarreta a assimila-ção do discurso feminista emdiversos segmentos da socie-dade, até ampliando a visibi-l idade das propos ições eteorias do movimento.

3 Trata-se de um documentoproduzido por um grupo in-ternacional de mulheres envol-vido na área de saúde, a partirde conceitos fundamentais deacordos assinados na Confe-rência Internacional sobre Po-pulação e Desenvolvimento(1994) e na IV Conferência In-ternacional da Mulher (1995).

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FEV 2004 / MAR 2004 65

ABERTOESPAÇO

Dialogar coma mídia de

forma planejadatambém fez parte

do processo deempoderamento

das mulherese pode se

constituir numaação estratégica

de advocacy

mulheres nesse campo é o balanço nacionalPolíticas públicas para as mulheres no Bra-sil 5 anos após Beijing, da Articulação deMulheres Brasileiras. A publicação ressalta anecessidade da criação de mecanismos de-mocráticos de monitoramento, pela socieda-de brasileira, da transmissão de mensagensque agridem a cidadania das mulheres, alémda qualificação feminina para atuar em canaisde TV e rádios comunitárias. E ainda reco-menda: “É preciso desenvolver uma políticapara o estímulo à capacitação de mulheres nojornalismo escrito, na televisão, no rádio e nainternet” (Oliveira, 1999, p. 160). O trecho ci-tado indica que, embora a performance femi-nista seja acanhada nos veículos de comuni-cação, o movimento enxerga esse campo comosetor de concentração de poder e importanteinfluência social.

Dialogar com a mídia de forma planeja-da também fez parte do processo deempoderamento das mulheres e pode se cons-tituir numa ação estratégica de advocacy.Nesse sentido, as etapas do Curso Nacionalde Advocacy Feminista em Saúde e DireitosSexuais e Reprodutivos, realizadas, respecti-vamente, em 1999 e 2001, tiveram, no progra-ma, debates em torno de estratégias de inter-venção política das mulheres nos veículosformais e comunitários de comunicação, con-tando, para tanto, com a significativa contri-buição e participação de jornalistas da RedeNacional Feminista de Saúde e DireitosReprodutivos.4

Mas o desafio não é só melhorar odiálogo com os meios. As feministas tam-bém voltam seus olhos para o machismo pre-sente nas redações, que pode originar emcoberturas que desqualificam a populaçãofeminina, imputando-lhes papéis sociais de-preciativos. Um sexismo explicitado, ainda,na discreta participação de mulheres noscargos de decisão desses veículos,5 o que,para a feminista Maria Cristina Quevedo(1996), é expressivamente combatido no ca-pítulo “La mujer y los medios de difusíon”,contido na Plataforma de Ação da IV Confe-rência Internacional da Mulher (1995).

Fala pública feminina

Uma nova revolução começou a tomar formadentro do feminismo nos últimos anos, quandoestratégias nacionais de acesso do discursofeminista à esfera pública tiveram inegávelimpacto na opinião pública. Duas articulações

feministas elevaram o status do sujeito políticofeminista a formador de opinião. São elas: a RedeNacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuaise Direitos Reprodutivos (Rede Feminista deSaúde) e a Rede de Mulheres no Rádio.

A Rede Feminista de Saúde fomentou,nos últimos anos, intensos debates públicossobre questões centrais da agenda do movi-mento, demarcando sua posição diante dequestões polêmicas, como o aborto. A redetambém foi pioneira em promover debates en-tre feministas e jornalis-tas, ao realizar, entre 1997e 1999, seminários regio-nais que, além de diag-nosticar ruídos na comu-nicação entre ativistas eprofissionais de impren-sa, forneceram subsídiostanto para melhorar a co-bertura da mídia comopara qualificar a participa-ção das mulheres organi-zadas em programas derádio e televisão. Os en-contros resultaram na pu-blicação do livro Mulhere mídia, uma pauta desi-gual?, editado em 1997.

Outra estratégiade grande êxito na pro-moção de ações afirmati-vas voltadas ao incre-mento da participaçãodas mulheres na mídia foia formação da Rede deMulheres no Rádio, ain-da na década de 1990. Arede reúne quase 400 in-tegrantes de todos ospontos do país. Sua tessitura está se consoli-dando, atualmente, por meio da Rede Cyberela,um projeto do Cemina – Comunicação, Edu-cação e Informação em Gênero, que prima pelainclusão digital de mulheres por meio daveiculação de programas de rádio via Internet.

A paixão das integrantes da rede pelorádio tem possibilitado o exercício da falapública na mídia para centenas de mulheres,numa intensa troca de relatos, histórias devida e articulação de ações políticas e campa-nhas em prol do pleno exercício da cidadaniafeminina em todo o país.6

Integrante da rede, o Centro de Mu-lheres do Cabo, uma ONG feminista sediadaem Pernambuco, entendeu, ainda em 1995,

4 Os dois documentos elabo-rados a partir das discussõese conteúdos do curso deadvocacy trazem recomenda-ções expressas e até dicas so-bre como lidar com a mídiapara estimular as feministas apensar em uma forma de co-municação política.

5 Nos últimos anos, as reda-ções têm demonstrado maisdisponibilidade para as mulhe-res. Em Pernambuco, porexemplo, alguns cargos dedireção estão em mãos femi-ninas, mas, ao mesmo tempo,isso não significa que as re-dações tenham incorporado �oolhar que transforma� nemque levem em consideração aeqüidade de gênero em suaspráticas.

O DISCURSO FEMINISTA NA ESFERA PÚBLICA

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66 DEMOCRACIA VIVA Nº 20ESPAÇO

que o rádio poderia ser um grande aliado parao movimento feminista e o combate às desi-gualdades de gênero na Zona da Mata Sul dePernambuco.7 A entidade produz, em parce-ria com os centros de mulheres das cidadesde Palmares, Joaquim Nabuco e Água Preta,o programa Rádio Mulher. Fenômeno de pú-blico, o Rádio Mulher ocupa o terceiro lugarde audiência na região e o primeiro lugar napreferência do público no seu horário deveiculação, entre as 11 horas e o meio-dia.Totalmente produzido por mulheres, o pro-grama vai ao ar, ao vivo, três vezes por sema-na, na rádio Quilombo FM.8

As iniciativas citadas demonstramque as feministas estão atentas para a im-portância da difusão de suas idéias por meioda mídia, como forma de emplacar mensa-gens na esfera pública. No entanto, até 2002,o movimento se ressentia de uma ação con-creta e ousada que habilitasse suas ativis-tas a enfrentar debates políticos em entre-vistas nos veículos de comunicação. Nãohavia, ainda, uma ação voltada para a po-tencialização de porta-vozes para intervir nalógica das coberturas de imprensa, pautan-do assuntos do seu interesse.

Para passar de receptor passivo damídia a agente de mudança, de acordo comFátima Pacheco Jordão (1999), o movimentoprecisa não somente interagir seu fazer políti-co com a mídia, mas “fazer política de modocomunicacional”.

Porta-vozes feministas

Em Pernambuco, as mulheres começaram adialogar mais intensamente com a imprensaao denunciar o sexismo nos meios de comu-nicação de massa na década de 1980. No en-tanto, a promoção de ações afirmativas, prin-cipalmente no campo da saúde, dos direitossexuais e reprodutivos e do combate à vio-lência, valorizando os veículos de comunica-ção como um caminho rápido e eficaz paraatingir a opinião pública, ainda se ressentiade estratégias de continuidade que primas-sem pela politização do discurso.

* Ana Veloso

Mestranda em

Comunicação pela

Universidade Federal

de Pernambuco (UFPE),

bolsista do programa

Gênero, Ação,

Reprodução e Liderança

da Fundação Carlos

Chagas e integrante da

equipe técnica da ONG

feminista Centro das

Mulheres do Cabo.

Isso acontece porque o movimento demulheres, por sua própria falta de prontidão,tem dificuldades em lidar com a velocidadedas emissoras de rádio e televisão comunitá-rias ou comerciais. Por isso, acaba perdendooportunidades de desencadear discussõespolíticas e difundir argumentos. Outro fatorpreponderante para a suposta falta de espa-ço sempre foi a resistência das feministas emse relacionar mais intensamente com a mídia.

Uma coisa é certa: qualificar a fala pú-blica das suas líderes é primordial para o movi-mento. E também é essencial, uma vez que odiscurso não fica no ar. Necessita de atrizesempoderadas para a sua propagação. No seutexto preparatório ao curso nacional deadvocacy feminista, a psicóloga Suely Olivei-ra (1999) atesta que a liderança não é só umtalento natural. Ela também afirma que um dosdesafios do feminismo é formar as mulheres,capacitando tecnicamente suas líderes, paraque possam ter êxito em suas missões: plane-jamento estratégico de ações, bom discurso efala pública, boa capacidade de argumentação,relação habilidosa com a mídia, enfim, potenci-alizar e desempenhar cada uma das habilida-des da liderança.

Nem a invisibilidade na esfera privadanem a superexposição dos holofotes da mídiana esfera pública. Ao entender a importânciada qualificação para esse diálogo com a soci-edade, mediado pelos meios massivos, o mo-vimento conquistará novos aliados e aliadaspara seu projeto político que visa à transfor-mação das relações sociais e à democratiza-ção da vida cotidiana. Acreditamos que quemtem uma proposta ousada como essa não secontentará em ser apenas uma fonte reconhe-cida pela opinião pública.

Ao compreender que qualquer trans-formação cultural em curso no Brasil preci-sa levar em conta os veículos de comunica-ção, o movimento apresenta as mulherescomo sujeitos políticos com habilidade paraimprimir seu discurso na esfera pública, lan-çando o olhar feminista para a mídia como“ locus privi legiado da ação polít ica”(Jordão, 1999).

E S P A Ç O A B E R T O

6 Tudo isso convergindo parao sítio <www.radiofalamulher.org.br>.

7 Região marcada por umahistória de ocupação de terrae monocultura da cana-de-açúcar.

8 Também pode ser ouvidopor intermédio do sítio daONG<www.mulheresdocabo.org.br>.

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ABERTOFEV 2004 / MAR 2004 67

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Ação inédita

O Fórum de Mulheres de Pernambuco, emintercâmbio com a Rede Feminista de Saúde,decidiu investir na potencialização da fala pú-blica de suas militantes por meio do projetoMídia Advocacy � Qualificando Porta-VozesFeministas de Pernambuco para dialogar coma imprensa.9 Trata-se de uma ação inéditaem comunicação que, além de habilitar fe-ministas para lidar com a mídia, prima peloseu aprofundamento teórico em temas rela-cionados com saúde, direitos reprodutivos edireitos sexuais. A primeira edição do MídiaAdvocacy começou em março de 2003 e vaiaté março de 2004 e também tem o apoioda Ação Mundo Solidário � Projetos na Amé-rica Latina (ASW).10 O projeto vem sendodesenvolvido com 25 mulheres líderes de or-ganizações feministas e de grupos comuni-tários de oito municípios da Região Metro-politana do Recife, Zona da Mata Sul e dosertão pernambucano.

A metodologia prevê discussões sobreo papel dos veículos de comunicação, trocade experiências por meio de vivências, exer-

cícios de argumentação, de fala pública emedia training. A idéia é fortalecer o dis-curso feminista não apenas para �figurar�na esfera pública e conquistar espaço. Oprojeto pretende, ainda, orientar as partici-pantes sobre a lógica e o funcionamentodos veículos de comunicação de modo queelas passem a interagir com profissionais deimprensa e suas opiniões influam nas co-berturas jornalísticas de temas de interessedo movimento.

Em âmbito nacional, o movimento co-memora o surgimento do Instituto PatríciaGalvão, uma ONG criada em 2002 porativistas e feministas que atuam no campoda comunicação em todas as regiões do país.Entre seus objetivos, o instituto pretende�colaborar para a promoção e a constru-ção de uma imagem da mulher na mídiaque seja mais adequada à realidade das bra-sileiras e que reflita o crescente reconheci-mento dos direitos humanos das mulheres�.Trata-se de uma grande contribuição parao feminismo brasileiro.

9 O projeto vem sendo coor-denado pela autora deste ar-t igo como parte de suasatividades como bolsista doprograma de Gênero, Repro-dução, Ação e Liderança, daFundação Carlos Chagas, como apoio da FundaçãoMacArthur e em parceria coma ONG feminista SOS Corpo �Gênero e Cidadania.

10 O Fórum de Mulheres dePernambuco está negociandoa continuidade da execuçãoda proposta em 2004 com aActionAid e com o Dia Mun-dia l de Oração � ComitéAleman.

O DISCURSO FEMINISTA NA ESFERA PÚBLICA

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C U L TC U L T U R AFátima Pontes *

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FEV 2004 / MAR 2004 69

U R ADosamba

O olhar de Cris Veneu1 pousa vibrante e emocionado

sobre as representações do samba. É como se repetisse

os versos da canção De volta ao samba de Chico

Buarque, �Acenda o refletor / Apure o tamborim / Aqui é

o meu lugar / Eu vim�.

Ver fotos de sambistas, violões, estandartes é, sobretudo,

sentir as intensidades da cultura de um povo. Mas é

também constatar que o samba pode ser uma importante

e bela fonte criadora de imagens. Elas nos contam uma

história. Melhor, várias histórias.

Assim como as letras dos grandes sambistas expressam

os múltiplos aspectos da vida � o sentir, o lutar, o sofrer,

o sobreviver �, as fotos nos mostram recortes da emoção

humana no essencial momento da manifestação da arte,

levando-nos a compreender a nossa própria trajetória.

1 Cris Veneu é carioca. Vemdesenvolvendo esse trabalhohá sete anos, onde lida comsensações particulares sobre osamba, criando sempre no li-mite f ronte i r iço entre ofotojornalismo e sua subjetivi-dade, convidando cada um(a)a fazer sua própria incursãonesse universo. As fotos queilustram esse texto são frutoda exposição individual DoSamba, ocorrida no primeirosábado de fevereiro de 2004,no Espaço Bananeiras, emSanta Teresa, Rio de Janeiro.

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70 DEMOCRACIA VIVA Nº 20

C U L T U R A

Produzir arte e cultura também

é conhecer a si mesmo, saber o que é

urgente e necessário para nós mesmos.

O nosso lugar. E a fotografia nos revela

por meio do samba � arte visceral � esse

nosso lugar cultural e humano.

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FEV 2004 / MAR 2004 71

A fotografia que revela

a relação do sambista

com o estandarte

de sua escola

nos remete aos aspectos

de reverência e adoração,

fazendo-nos pensar

o quanto

é imprescindível

e essencial a emoção

na vivência da arte.

DO SAMBA

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72 DEMOCRACIA VIVA Nº 20

C U L T U R A

Reconhecemo-nos

em cada uma dessas fotos.

Percebemos nelas elementos

de resistência e renovação

nas imagens de jovens que

juntam ao tradicional

uma estética mais ousada,

porém permeada

pelo caráter de resistência

de um fazer artístico

e cultural cultivado

apaixonadamente

pelas pessoas mais velhas.

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FEV 2004 / MAR 2004 73

DO SAMBA

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74 DEMOCRACIA VIVA Nº 20

C U L T U R A

Músicos,

pandeiros

e violões.

O samba

traduzido

em imagens

propicia

um ouvir

e sentir

diferentes,

pois são olhos

e coração

que definem,

agora,

seu sentido.

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FEV 2004 / MAR 2004 75

* Fátima Pontes

Escritora, professora

de literatura inglesa.

Fotos: Cris Veneu

DO SAMBA

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