revista democracia viva 27

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DEMOCRACIA VIVA 27 JUN 2005 / JUL 2005 Edição Especial Meio ambiente e democracia

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Page 1: Revista Democracia Viva 27

D E M O C R A C I A V I V A 27JUN 2005 / JUL 2005

Edição Especial

Meio ambiente e democracia

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e d i t o r i a l

E sta edição de Democracia Viva está voltada para o meio ambiente. Trata-se de uma questão central no processo de construção de um mundo mais justo e mais democrático. O problema é aqui analisado nas suas diferentes dimensões e através de distintas abordagens.

Em entrevista, o assessor da Fase, Jean-Pierre Leroy, afirma que a questão ambiental precisa ser melhor compreendida por todas as pessoas que lutam por mudanças na sociedade. Para ele, falar de desenvolvimento é, necessariamente, falar de justiça ambiental. Sabemos que a desigualdade social é uma das marcas fundamentais da história do nosso país. Em um dos artigos da revista, Henri Acserald nos mostra que uma das expressões da desigualdade social é a desigualdade ambiental. As populações de baixa renda são as mais atingidas pelos riscos ambientais. Por isso, é fundamental articular as lutas por justiça social com as lutas por proteção ambiental.

A ocupação desordenada da região amazônica é um dos objetos de análise da revista. Para que a floresta amazônica continue a exercer um papel fundamental na manutenção do clima do nosso país e do nosso planeta, é urgente que se adotem novos padrões na ordenação da sua ocupação espacial. O grande desafio para a região é conciliar desenvolvimento socioeconômico com a conservação dos recursos naturais. Críticas ao modelo de desenvolvimento adotado nas últimas décadas estão presentes em vários artigos. No caso da agricultura, por exemplo, é certo que a expansão da soja tem, por um lado, propiciado o aumento da entrada de grandes divisas para o país. Mas, por outro, tem contribuído para uma maior concentração fundiária e para desmatamentos na região amazônica.

A relação entre democracia e fontes de geração de energia é o ponto central do artigo do pesquisador do Ibase Carlos Tautz. Nesse debate, no qual diferentes posições têm sido defendidas, Tautz afirma que, no Brasil, opções como as usinas nucleares e as termoelétricas movidas a gás natural devem ser descartadas. Uma análise sobre a transposição das águas do Rio São Francisco também não poderia estar ausente nesta edição. A questão é polêmica. Em dois artigos, são apontadas graves distorções econômicas e sociais presentes no projeto que está sendo apresentado pelo governo federal.

Atualmente, existe uma percepção que a coleta seletiva do lixo e a reciclagem de resíduos sólidos produzem benefícios econômicos e podem gerar impacto positivo na imagem das empresas que trabalham com esses materiais, consideradas eco-responsáveis. Nesse campo, enquanto o mercado para os reciclados cresce a olhos vistos, catadores e catadoras de lixo continuam sendo alvo de forte preconceito.

A equipe de Democracia Viva visitou três comunidades quilombolas. Em todas elas, estão em curso interessantes projetos de desenvolvimento sustentável. A luta pelo reconhecimento das terras, a preservação do meio ambiente e a valorização da cultura local são questões essenciais para aquelas co-munidades. Numa edição especial sobre meio ambiente, não se poderia esquecer do Protoloco de Quioto.

dulce PandolfiDiretora do Ibase e pesquisadora do Cpdoc/FGV

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s u m á r i o

entrevista

Jean-Pierre Leroy

esPecial quilombos

Da África para o Brasil

3 artigo

Do lixo à cidadaniaAdriana Valle Mota

10 esPecial quilombos

Da África para o Brasil

42 artigo

Novas articulações em prol da justiça ambientalHenri Acselrad

48 nacional

Amazônia e o desafio do desenvolvimento sustentávelPaulo Moutinho

54 variedades

56 internacional

Regimes internacionais e políticas de mudanças de climaRubens Born

62 Pelo mundo

64 entrevista

Jean-Pierre Leroy

78 crônicaAlcione Araújo

80 resenhas

84 transPosição das águas do rio são francisco

Sérgio Pinheiro TorgglerCarmen Silvia Maria da Silva

96 oPinião ibase

Uma janela histórica está abertaCarlos Tautz

102 indicadores

Comportamento ecológico: chave para compreensão e resolução da degradação ambiental?Claudia Pato

108 cultura

Arte, cidadania e samba no péLuigi Zampetti

114 esPaço aberto

Dinâmica da soja, o desmatamento na fronteira da AmazôniaWeber A. N. Amaral, Silvio Ferraz e Roberto Smeraldi

123 sua oPinião

124 Última PáginaNani

O Ibase adota a linguagem de gênero em suas publicações por acreditar que essa é uma estraté-gia para dar visibilidade à luta pela eqüidade entre mulheres e homens. Trata-se de uma política editorial, fruto de um aprendizado e de um acordo entre os(as) funcionários(as) do Ibase. No caso de artigos redigidos voluntariamente por convidados(as), sugerimos a adoção da mesma política.

Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e EconômicasAv. Rio Branco, 124 / 8º andar20040-916 Rio de Janeiro/RJTel.: (21) 2509-0660 Fax: (21) 3852-3517<[email protected]> <www.ibase.br>

Conselho Curador Regina Novaes João Guerra Carlos Alberto Afonso Moacir Palmeira Jane Souto de Oliveira

Direção Executiva Cândido GrzybowskiDulce Pandolfi Francisco Menezes João Sucupira

Coordenadores(as) Erica RodriguesFernanda CarvalhoIracema DantasItamar SilvaJoão Roberto Lopes PintoLeonardo MélloMoema MirandaNúbia Gonçalves

d e m o c r a c i a v i v a ISSN: 1415-1499

Diretor ResponsávelCândido Grzybowski

Conselho Editorial Alcione AraújoAri RoitmanCleonice DiasEduardo Henrique Pereira de OliveiraJane Souto de OliveiraJoão Roberto Lopes PintoMárcia FlorêncioMoema MirandaRegina NovaesRosana HeringerSérgio Leite

Coordenação Editorial Iracema Dantas

Subedição AnaCris Bittencourt

Revisão Marcelo Bessa

Assistentes Editoriais Flávia MattarJamile Chequer

Produção Geni Macedo

Estagiária Thais Zimbwe

Distribuição Maria Edileuza Matias

Projeto Gráfico Mais Programação Visual

DiagramaçãoImaginatto Design e Marketing

CapaFoto de Marcio R.M./Brasil Imagens

Fotolitos Rainer Rio

Impressão Editora Lidador LTDA

Tiragem 5 mil exemplares

Para apoiar os projetos desenvolvidos peloIbase, escreva para [email protected] ou telefone para (21) 3852-6028.Doações de pessoas jurídicas podem ser abatidas do Imposto de Renda.

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a r t i g oadriana valle mota*

Do lixoAbordar a questão do lixo e suas principais e atuais problemáticas requer um mergulho

no passado, para compreender melhor sobre qual tipo de lixo estamos falando. Afinal,

o lixo faz parte da produção humana desde tempos ancestrais – foi se modificando e se

transformando, assim como a própria vida de maneira geral. Se nos tempos pré-históricos

a quantidade de lixo produzida por homens e mulheres era pequena e pouco variada,

a evolução da ciência e da tecnologia possibilitou a transformação de matérias-primas

naturais e a criação de novos produtos, totalmente estranhos ao meio ambiente, ainda

que bastante úteis para a humanidade. Esses novos produtos, como os papéis, plásticos,

vidros, metais e muitos outros, passaram a fazer parte do dia-a-dia da humanidade e

também do lixo produzido.

Mas, ao contrário do lixo primitivo, que se reintegrava naturalmente ao ambiente,

esses novos materiais compõem um tipo de lixo diferente, um lixo que resiste, que não

se deteriora com facilidade, que ocupa espaço e que incomoda a consciência ambiental

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4 democracia viva nº 27

a r t i g o

O lixo produzido por uma sociedade pode revelar aspectos importantes sobre seus hábitos de consumo e poder aquisitivo das famílias. Nas cidades do interior e áreas rurais, é comum encontrar uma quantidade maior de lixo orgânico (cascas de frutas e legumes, restos de alimentos) na composi-ção do lixo doméstico do que a encontrada em grandes centros urbanos. Se pudéssemos fazer uma comparação entre o lixo domésti-co produzido em nossa casa nos dias de hoje

e o lixo doméstico produzido na casa de nossos avós, por exemplo, as dife-renças seriam enor-mes. Um exemplo muito comum é o das fraldas descar-táveis, um tipo de lixo muito comum hoje, mas conside-rado raro 30 anos atrás.

D a m e s m a forma, o tratamen-to dispensado ao l ixo pode reve lar qual a importância que a sociedade dá ao tema, se existem marcos regula tó rios eficazes e técnicas eficientes pa ra a co-l e ta , t r anspor te , a r m a z e n a m e n t o e destinação final dos resíduos sóli-dos. Entre as técni-cas utilizadas para a des t inação dos res íduos só l idos , uma em espec ia l merece nos sa con-sideração: a co le ta seletiva.

A coleta sele-tiva é aquela que recolhe somente os materiais recicláveis, aqueles que podem ser utilizados como matéria-prima na indústria da reci-clagem. Papéis, vidros, plásticos, materiais ferrosos, alumínio e outros tipos de resíduos que seriam enterrados em aterros sanitários ou jogados em lixões ganham uma nova vida, deixam de ser lixo e viram matérias--primas. Com a coleta seletiva, o resíduo

que era lixo, que estava desorganizado e misturado, passa a ser organizado, selecio-nado, vira matéria-prima.

Aproveitamento da matéria-prima

Para a indústria da reciclagem, a utilização de resíduos sólidos como matérias-primas é um grande achado. Há estudos econômicos que indicam que a utilização de produtos recicláveis como matéria-prima reduz sig-nificativamente os gastos dos processos de produção, além de reduzir em 74% a po-luição do ar, em 35% a poluição da água, gerando um ganho de energia de 64%.1 Há, ainda, uma sensível redução na quantidade de matéria-prima natural utilizada. Para citar o exemplo do alumínio, um dos materiais reciclá-veis mais coletados no Brasil, estima-se que a redução da utilização de bauxita seja da ordem de 90% para cada nova latinha produzida.2 Um reflexo da utilização dos resíduos sólidos como matéria-prima na indústria da reciclagem é, portanto, a diminuição da extração de matéria--prima virgem.

Uma parte dos(as) economistas e pesquisadores(as) que trabalham com a te-mática dos resíduos sólidos é forte contesta-dora da tese mencionada anteriormente e refuta os argumentos de que a indústria da reciclagem se beneficia economicamente com a utilização dos resíduos sólidos como matéria-prima. No entanto, a indústria da reciclagem segue crescendo e com espaço para crescer ainda mais, pois opera com ca-pacidade ociosa no Brasil. E, certamente, o incentivo maior para que o empresariado do setor se sinta estimulado a seguir ou ampliar seus negócios não diz respeito unicamente aos ganhos ambientais, mas também – e principalmente – aos ganhos econômicos.

Para além dos benefícios econômicos, a coleta seletiva e a reciclagem de resíduos sólidos podem gerar impacto na imagem das empresas que trabalham com esses materiais. Se, na década passada, poucos consumido-res e consumidoras se sentiam atraídos por produtos reciclados, hoje o mercado para os reciclados cresce a olhos vistos. Várias marcas e empresas que tinham receio em ver seus produtos atrelados ao conceito de reciclagem hoje investem pesado na propaganda dessas qualidades, ressaltando seu “compromisso ambiental” e com o “desenvolvimento auto--sustentável”. Uma ampla gama de empresas nacionais e internacionais busca se beneficiar

1 CONCEIÇÃO, Márcio Ma-gera. Os empresários do lixo: um paradoxo da modernida-de. Campinas: Átomo, 2003, p.102-103.

2 Idem, ibidem.

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do lixo à cidadania

com a reciclagem, não apenas por meio da economia que a utilização de resíduos sólidos como matérias-primas pode propor-cionar, mas também investindo pesado na propaganda e na imagem de uma empresa “ecorresponsável”.

Em abril deste ano, a imprensa noti-ciou que o Brasil havia alcançado, pela quinta vez consecutiva, o melhor desempenho entre todos os países que reciclam o alumínio no mundo. Em outras palavras, o Brasil é, hoje, um líder do setor de reciclagem de alumínio. No entanto, diferentemente do Japão, o segundo colocado nesse ranking, ainda não existe uma lei nacional específica que obrigue e normatize a criação e manutenção de serviços de coleta seletiva nos municípios brasileiros. Também não existe ainda no Brasil uma lei que responsabilize produtores de embalagens recicláveis a investir em programas e projetos que diminuam o impacto ambiental causado pelo seu descarte inadequado. A coleta seleti-va, que promove o recolhimento desse tipo de embalagem, poderia ser um desses tais projetos.

Apesar de ser uma prática interessante sob diversos aspectos – já destacamos aqui os aspectos econômico e ambiental –, a coleta seletiva ainda é uma atividade rara no Brasil e pouco incentivada pela legislação. Segun-do dados do Compromisso Empresarial para a Reciclagem (Cempre),3 no ano de 2004, dos 5.566 municípios brasileiros, apenas 273 tinham programas oficiais de coleta seletiva de lixo. Isso indica que, de cada cem cidades bra-sileiras, apenas cinco tinham coleta seletiva de lixo realizada por um programa da prefeitura, que é o gestor das políticas relacionadas aos resíduos sólidos.

A região Sudeste concentra 122 expe-riências de coleta seletiva das 273 conheci-das. São Paulo é o estado com mais cidades atendidas, 84 no total. No Rio de Janeiro, um estado com 92 municípios, apenas 13 cidades são citadas como alvo de programas de coleta seletiva.

Organizando e crescendo

A participação de catadores e catadoras na

Em busca de uma identidade profissionalImaginar que apenas os programas oficiais e governamentais são responsáveis por todo o material que alimenta a indústria da reciclagem no Brasil seria um grande equívoco. Então, de onde vêm

de 14 anos de idade na época da pesquisa. Além dos catadores e catadoras que estão nos lixões, a PNSB estima que existam mais 800 mil catadores e catadoras de rua no país. No mesmo ano de 2000, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) realizou uma pesquisa que identificou a presença de catadores e catadoras de materiais recicláveis em pelo menos 3.800 cidades, 68% do total de municípios brasileiros. Na região Sudeste, a mais desenvolvida econo-micamente, esses trabalhadores e trabalhadoras estão presentes em 74% das cidades. É preciso ressaltar que tais números, ainda que sejam oficiais, são considerados subestimados pelo Fórum Nacional Lixo e Cidadania, uma instância organizada de discussão que reúne organizações não-governamentais, instituições religiosas, órgãos governamentais e instituições de ensino e pesquisa que atuam nas áreas relacionadas à gestão dos resíduos sólidos e também na área social. O Movimento Nacional dos Catadores, órgão criado por catadores e catadoras do Brasil em 1999, que conta com representantes em quase todos os estados brasileiros, também considera que o número de pessoas que traba-lham atualmente em lixões é maior do que o apurado pela PNSB.

esses materiais? Quem são os trabalhadores e as trabalhadoras responsáveis de fato pela coleta, seleção, beneficiamento e comerciali-zação dos recicláveis no Brasil? Há pelo menos 50 anos, catadores e catadoras de materiais recicláveis vêm desenvolvendo, de modo infor-mal, sistemas de coleta seletiva que atendem a pequenas comunidades, bairros ou cidades inteiras. Até mesmo naqueles municípios onde existem programas governamentais de coleta seletiva de lixo, podemos encontrar catadores e catadoras em atividade. Conhecidos no país afora como garrafeiros(as), carrinheiros(as), catadores(as) de papel ou catadores(as) de lixo, esses trabalhadores e trabalhadoras já avançaram em busca da construção de uma identidade profissional e estão se organizando para conquistar o reconhecimento e a profissio-nalização da categoria, que agora faz parte do Código Brasileiro de Ocupações,4 como catador ou catadora de materiais recicláveis. Dados da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2000, apontam que os lixões ainda são a alternativa mais comum para a disposição final dos resíduos sólidos nos municípios (59% dos casos). Nos lixões, 24.340 catadores e catadoras trabalham diariamente, retirando desses locais o seu sustento e o de suas famílias. Entre essas pessoas, pelo menos 7 mil moram nos lixões e 5.598 tinham menos

3 Essa e outras informações estão disponíveis em <www.cempre.org.br>.

4 CBO94 – Portaria 397, de 9 de outubro de 2002, do Minis-tério do Trabalho e Emprego.

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coleta seletiva de lixo das cidades tem sido uma grande contribuição dessas pessoas para o circuito da reciclagem e para a lim-peza pública. É uma atividade econômica que integra outros aspectos importantes como a geração de renda, a proteção aos recursos naturais, a educação ambiental, a inclusão social e a prestação de serviços públicos.

Somando-se aos serviços governamen-tais já existentes, estima-se que catadores e

catadoras desviam para o circuito da reciclagem cerca de 20% dos resíduos só l idos urbanos , segundo pesquisa realizada pelo Uni-cef em 2000. Isso significa que, graças à participação de tais profissionais, a cada dia mais mate-riais recicláveis estão sendo selecionados, com um destino ambi-en talmente correto, economicamente viável e socialmente justo.

Para realizar a coleta de reciclá-veis, catadores e ca-tadoras têm atuado ao longo destes 50 anos em diversas frentes de trabalho. Algumas dessas pes -soas atu am em li-xões e aterros sani-tários; outras atuam em cen tros urbanos, ruas, empresas, co-mérc ios, escolas , igrejas etc. Algumas trabalham sozinhas,

por conta própria, sem nenhum tipo de apoio ou parceria; outras trabalham organizadas em grupos (associações, cooperati vas, grupos comu ni tários etc.).

Para o trabalho desenvolvido pelos ca-tadores e catadoras, trabalhar soli tariamente ou vincu lado(a) a um gru po faz muita diferen-ça. Por meio da experiência adquirida com o acompanhamento do trabalho de diversos grupos organizados de catadores e catadoras

no Rio de Janeiro, é possível afirmar que a sua organização coletiva permite alguns avanços importantes.

Em primeiro lugar, o trabalho em um grupo organizado favorece a construção da identidade dos catadores e das catadoras como trabalhadores e trabalhadoras, como uma categoria profissional. O sentimento de pertencimento a um grupo, a uma classe, pode resultar na valorização pessoal e pro-fissional dessas pessoas.

Em segundo lugar, o(a) catador(a) que trabalha vinculado(a) a uma cooperativa ou associação tem condições de estabele-cer vínculos mais sólidos com a sociedade, viabilizando a construção de par ce rias e a prestação de serviços. Para poder coletar os recicláveis gerados, por exemplo, por uma agência bancária, é preciso ter equipamen-tos, equipe e regularidade no atendimento. Uma cooperativa ou associação atende me-lhor a esses requisitos do que uma pessoa sozinha. Por outro lado, uma cooperativa ou associação de cata dores(as) pode ser alvo de investimentos por parte de empre-sas e instituições interessadas em projetos de economia solidária, geração de renda, melhorias so cio ambientais etc.

Em terceiro lugar, uma pessoa sozi-nha, por mais que se dedique à atividade de recolhimento dos materiais recicláveis, não conseguirá alcançar a quan tidade, o volume e o peso necessários para conseguir os melhores preços no mercado. Para isso, é preciso ter escala, ou seja, ter recicláveis em grande quantidade. Além disso, os reci-cláveis precisam estar beneficiados, mesmo que primariamente, ou seja, separados por tipo, prensados, enfardados, pesados. A produção em escala e o beneficiamento dos materiais recicláveis irão fortalecer a participação das cooperativas e associações de catadores(as) no mercado dos recicláveis, gerando melhores oportunidades de co-mercialização, como preços e prazos mais favoráveis.

Finalmente, o diálogo com governos e empresas com vistas à participação no processo de produção e definição de polí-ticas sociais públicas também fica facilitado quando catadores e catadoras se organizam. Uma cooperativa ou associação pode firmar parcerias com o poder público para realizar coleta seletiva em algumas comunidades, ao passo que um(a) cata dor(a) que trabalhe de forma individualizada não tem a mesma

a r t i g o

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oportunidade.

Luta contra o preconceito

Apesar de atuarem em uma atividade que, a um só tempo, gera emprego e renda, oferece serviços e reduz os gastos públicos emprega-dos na coleta de lixo, nem sempre o trabalho de catadores e catadoras é reconhecido pelo poder público e pela sociedade como importante e fundamental. Ao contrário, em várias cidades brasileiras, catadores e cata-doras enfrentam permanentes dificuldades e barreiras, lutando contra o preconceito e a falta de oportunidades.

Além disso, outra disputa importantís-sima está sendo travada em torno da coleta seletiva de lixo e da reciclagem nas cidades, a partir da construção de duas propostas di-ferentes para o seu desenvolvimento. Numa delas, encabeçada pelo setor empresarial, a coleta seletiva fica nas mãos de empresas particulares, excluindo catadores e catadoras e suas “empresas sociais”. Na outra, a propos-ta é a inclusão des ses(as) trabalhadores(as), por meio de sua participação não apenas como pres ta do res(as) de serviços na coleta seletiva, mas também como co-gestores(as) da política de resíduos sólidos. Para levar adiante essa segunda proposta, catadores e catadoras devem se organizar, buscar par-

cerias e apoios, capacitar e profissionalizar as cooperativas e associações.

Há vários anos, catadores e catado-ras em diferentes cidades do Brasil estão se organizando, pela criação de cooperativas, associações e grupos comunitários. A Coopa-mare (em São Paulo/SP), a Asmare (em Belo Horizonte/MG) e a CoopCarmo (em Mesquita/RJ) são exemplos de organizações com mais de uma década de existência.5

No Rio de Janeiro, catadores e catadoras reuniram-se em uma rede, a Rede Indepen-dente de Catadores de Materiais Recicláveis (Ricamare), que conta com a participação de aproximadamente 25 cooperativas e as-sociações de diferentes municípios do estado do Rio de Janeiro: São Gonçalo, Petrópolis, Duque de Caxias, Mesquita, Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, São João de Meriti, entre outros. É um espaço da sociedade civil, independen-te, no qual se luta pela defesa de interesses comuns dos catadores e das catadoras de materiais recicláveis. A rede nasceu do pro-cesso de mobilização dessas pessoas para o 1º Congresso Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, realizado em Brasília, no ano de 2001.

Por meio da Ricamare, catadores e catadoras buscam participar ativamente nas diversas instâncias de decisão da gestão dos resíduos sólidos no Rio de Janeiro, in-

Movimento nacionalCatadores e catadoras estão se organizando também nacionalmente, por meio do Movimen-to Nacional dos Catadores de Materiais Reciclá-veis (MNCR), cuja trajetória teve início em 1999, no 1º Encontro Nacional de Catadores de Papel e Material Reaproveitável, em Belo Horizonte. O processo de articulação nacional de tais traba-lhadores e trabalhadoras levou à realização do 1º Congresso Nacional de Catadores de Mate-riais Recicláveis, realizado em Brasília de 4 a 6 de junho de 2001, que contou com a participação de 1.600 congressistas, entre catadores(as), técnicos(as) e agentes sociais de 17 estados brasileiros. No congresso, foram eleitos os(as) representantes que assumiram a Comissão Na-cional do Movimento, cuja secretaria executiva encontra-se na cidade de São Paulo.6 De 1999 até agora, o Movimento Nacional dos Catadores conseguiu alguns êxitos, realizou encontros e eventos, desenvolveu projetos e fez valer a voz de catadores e catadoras deste país. Entre as principais realizações estão as duas edições do Encontro Latino-Americano de Catadores (2003

e 2005), oficinas no Fórum Social Mundial (2003 e 2005), parceria com o Ministério do Desen-volvimento Social, Fundação Avina e Fórum Nacional Lixo e Cidadania.O principal desafio que o Movimento Nacional dos Catadores tem pela frente no ano de 2005 é promover a realiza-ção de 14 Congressos Estaduais de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis, nos seguintes estados: Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Bahia, Rio Grande do Norte, Sergipe, Ceará, Pará, Paraíba, Pernambuco, Santa Catarina e Mato Grosso. No Rio de Janeiro, o congresso será realizado pela Ricamare, em parceria com a Nova Pesquisa e Assessoria em Educação e o Fórum Lixo e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro, no dia 1º de outubro, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

5 Contatos podem ser feitos por te le fone: Coopamare (11) 3064-3976, Asmare (31) 3201-0717 e Coopcarmo (21) 2697-0545.

6 Contato com a secretaria execult iva do MNCR pode ser feito pelo telefone (11) 3399-3475 ou pelo e-mail <secretarianacionalcatadores@

do lixo à cidadania

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8 democracia viva nº 27

a r t i g o

*adriana valle mota

Socióloga, pesquisadora

da Nova Pesquisa e

Assessoria em Educação

e membro da Secretaria

Executiva do Fórum

Estadual Lixo e Cidadania

do Rio de Janeiro

amota@novapesquisa.

fluenciando na definição de políticas sociais públicas que tragam benefícios para as cooperativas e associações. Foi o que acon-teceu no processo de formulação da Política Estadual de Resíduos Sólidos, Lei 4.191/03, cuja elaboração contou com a participação ativa da Ricamare.

Reconstrução de vidas

É louvável o esforço feito pelas organizações de catadores e ca-tadoras em vários estados do Brasil, no sentido de ofe-recerem melhores serviços à população em geral e melhores condições de traba-lho aos(às) associ a-dos(as) e coopera-dos(as). A esses es-forços se soma o apoio prestado por organizações não--governamentais , instituições religio-sas, movimentos po-pulares, associações de moradores(as), governos municipais e instituições de en-sino e pesquisa.

No entanto, esse apoio não pode ser apenas fruto do voluntarismo ou da solidariedade pontu-al. Precisa ser a poio planejado, que aten-da aos reais interes-ses e necessidades de catadores e ca-tadoras e de suas organizações.

O apoio go-ve rnamenta l po r

meio de programas e políticas públicas, por exemplo, pode propiciar avanços muito concretos e importantes: por meio da uni-versalização da coleta seletiva no município, priorizando a inclusão de catadores(as) na sua gestão e execução; do incentivo à insta-lação de indústrias recicladoras no estado, ampliando as possibilidades de negociação dos materiais recicláveis; da promoção da

organização e qualif icação do trabalho de catadores(as); da oferta de linhas de financiamento público a juros populares para cooperativas de cata do res(as); ou até mesmo da destinação dos materiais reci-cláveis gerados pelas secretarias e órgãos públicos para cooperativas e associações de catadores(as).

Por outro lado, o apoio de universida-des e outras instituições de ensino e pesquisa também pode criar condições para o aper-feiçoamento do trabalho dessas cooperativas por meio do oferecimento de apoio técnico às organizações de cata dores(as); do estudo de novas tecnologias que propiciem o avanço de catadores(as) diante da cadeia produtiva dos recicláveis; da inclusão da perspectiva de catadores(as) nas disciplinas de educação ambiental; da celebração de convênios para assessoria jurídica aos grupos organizados de catadores(as) por meio de escritórios-modelo; e da destinação dos materiais recicláveis para as cooperativas e associações de catadores(as).

A questão do lixo conjuga aspectos técnicos, econômicos, ambientais, culturais, políticos e sociais que não podem ser tomados de forma isolada. Nenhuma proposta que considere apenas um desses aspectos será boa o suficiente para resolver a questão do lixo. Além disso, não é possível continuar a fazer propostas em torno dos resíduos sóli-dos desconsiderando a contribuição efetiva que milhares de catadores e catadoras vêm dando ao desenvolvimento da indústria da reciclagem no Brasil. Essas pessoas, que são qualificadas para a coleta seletiva, precisam ser vistas e ouvidas, não como uma curiosida-de ou um subproduto do lixo, mas como uma categoria profissional que busca se organizar e reivindicar direitos.

A coleta seletiva pode ser um importan-te instrumento para a valorização de catadores e catadoras e deve ser utilizada com essa finalidade. É por meio dela que tais profissio-nais podem dar sua melhor contribuição para a cidade e para todas as pessoas que nela habitam. Também é pela coleta seletiva que catadores e catadoras podem reconstruir sua trajetória de vida e de trabalho, do lixo à cida-dania. Endossando a máxima do Movimento Nacional dos Catadores: coleta seletiva sem catador(a) é lixo!

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q u i l o m b o s

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e s P e c i a l

Da

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q u i l o m b o sO Artigo 68 da Constituição Federal obriga o Estado a reconhecer, regularizar e titular os territórios quilombolas de todo o Brasil – sua inclusão foi fruto da pressão exercida por lideranças quilombolas de todo o país durante o processo constituinte em 1988. Mas ainda falta um bocado para tal direito ser garantido de fato a essas populações. Segundo levantamento realizado pela Universidade de Brasília (UnB) e divulgado em maio, das 2.228 comunidades reconhecidas como quilombolas pelo governo federal, apenas 70 possuem registro no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O número total em si já é uma polêmica, pois a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) avalia que existam cerca de 4 mil comunidades no Brasil. Do que foi levantado pela UnB, grande parte dessas terras concentra-se na região Nordeste, são 1,4 mil territórios. Maranhão, com 642 comunidades, está em primeiro lugar; seguido da Bahia, com 396; e Pará, com 294.Para esta edição, a equipe da revista Democracia Viva visitou três dessas comunidades: Conceição das Crioulas, em Pernambuco; Ivaporunduva, em São Paulo; e São José da Serra, no Rio de Janeiro. O resultado desses encontros você confere nas páginas seguintes.

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q u i l o m b o s

12 democracia viva nº 27

e n t r e v i s t a

Givânia

Por iracema dantas

Vereadora exercendo o segundo mandato pelo Partido dos Trabalhadores, em Salgueiro, sertão de Pernambuco, Givânia Silva, 37 anos, traz na sua trajetória pessoal a história da reconstrução da identidade de um povo – um povo quilombola. Nascida em Conceição das Crioulas, distante 50 km da cidade de Salgueiro, Givânia é referência para os(as) jovens que despertam para o exercício da cidadania. Para ela, a luta pela terra e a preservação do meio ambiente não podem estar distante da luta pela cidadania: “Enquanto algumas pessoas estão preocupadas com esse ou aquele animal que está em extinção, e

nós também nos preocupamos com isso, estamos preocupadas com as pessoas que estão em extinção. O meio ambiente para nós não é descolado das pessoas, é a natureza com as pessoas dentro. Não adianta deixar o animal se a pessoa não puder mais existir”.Além de professora, formada em Letras, Givânia é uma política bastante atuante dentro e fora do estado de Pernambuco. É a única mulher, a única negra e a única pessoa de origem pobre eleita vereadora em sua cidade. Nesta entrevista à Democracia Viva, conta sua luta pessoal e o caminho percorrido até a atual consolidação do movimento quilombola e a criação da Associação Quilombola de

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q u i l o m b o s

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Democracia Viva – Qual a origem de Conceição das Crioulas?Givânia – Não temos registros escritos, mas

a história oral nos diz que Conceição surge a partir de um grupo de seis mulheres negras que por lá fixaram residência. Na época, era bastante forte na região o plantio do algodão e elas seguiram essa tradição. Com a venda de rendas e do fio de algodão, tornaram-se donas da terra. As pessoas mais velhas dizem que o documento dessa terra data do ano de 1802. Acreditamos que as mulheres chegaram 40 a 50 anos antes.

Democracia Viva – E como surgiu esse nome?Givânia – Mais uma vez, só temos a história

oral. Pelo que sabemos, depois da chegada das mulheres, veio um homem que trouxe uma imagem de Nossa Senhora da Conceição. Então, fizeram uma promessa: caso se tornassem do-nas daquelas terras, construiriam a capela para Nossa Senhora da Conceição. Não sabemos a data exata da construção dessa capela, mas foi por causa dela que temos o nome de Conceição das Crioulas, na verdade um distrito da cidade de Salgueiro. A construção foi um marco da conquista da terra.

Democracia Viva – Sua trajetória é bastante incomum para uma mulher negra, do interior de Pernambuco. Você cursou o ensino superior e é uma vereadora muito atuante. Pode contar um pouco da sua história?Givânia – Nasci em Conceição e fui a

primeira mulher a chegar à universidade. Eu me formei em Letras, em 1996. Até o início da década de 90, normalmente as pessoas só estudavam até a quarta série. Para dar continui-dade aos estudos, era preciso ir para a cidade e não tínhamos transporte regular. Algumas meninas até tentavam estudar na cidade, mas havia resistência por parte dos pais porque muitas acabavam sendo domésticas nas casas

das famílias brancas. Meu pai, que é agricultor, era um dos mais resistentes. Ele achava que, ao ir morar numa casa de família branca, poderia acabar grávida e não estudar.

Já minha mãe pensava ao contrário, ela achava que, se fosse para engravidar, isso aconteceria em qualquer lugar, não era estu-dando fora, saindo de casa que isso iria aconte-cer. Ela é artesã e trabalhava com cerâmica. Era com esse recurso que ela comprava material para a gente estudar. Ela sempre defendeu que precisávamos estudar e sabia que esse era o meu sonho. Enquanto as meninas se animavam quando começavam a trabalhar com a agri-cultura, eu lamentava cada vez que ia para a roça. Isso me causava um sofrimento enorme, eu queria estudar, queria ir para a cidade, e meu pai não deixava porque dizia que a gente tinha que trabalhar para comprar uma casa.

Democracia Viva – Você tem irmãos e irmãs? Alguém seguiu uma trajetória semelhante a sua? Você tem filhos?Givânia – Tenho três irmãs e três irmãos.

Quem não pôde estudar na época está estudan-do agora, mesmo com idade mais avançada. Não tenho filhos, mas tem uma carrada de gente de que eu cuido, são filhos dos outros. Meu filho é o trabalho.

Democracia Viva – Foi sua mãe que incentivou seu estudo?Givânia – Sim. Quando eu tinha 16 anos,

surgiu a minha grande oportunidade. Uma funcionária da Secretaria de Educação foi lá em casa comprar artesanato, e a mamãe contou que meu sonho era estudar. Essa funcionária disse: “Realmente, é muito complicado levar uma pessoa para casa de uma família. Mas existe um programa na prefeitura em que ela podia tentar ingressar. Como contrapartida, vai ter que dar aula para crianças. Se ela passar num teste, será aceita”. Eu fui, fiz o teste, passei.

Democracia Viva – Assim você

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iniciou seu trabalho como professora?Givânia – Sim, de 1984 a 1986 fiquei

nesse programa da prefeitura de Salgueiro. De segunda a quinta-feira, eu dava aula. Na sexta e no sábado, estudava em horário integral. Quando terminei o que correspondia à oitava série, recebi o convite para continuar e fazer o segundo grau. Em seguida, em 1989, houve o primeiro concurso para a rede municipal de ensino. Resolvi fazer o concurso e fui apro-

vada, tornando-me efetiva no quadro de professores. Paralelo a isso, eu já atuava, estava bem engaja-da na Pastoral da Juventude, nas co-munidades eclesiais de base. Trabalhava até sexta-feira; aos sába dos e domingos, eu ia para as comu-nidades, reunia e animava os jovens para os encontros.

Em 1991, tirei uma l icença sem vencimentos porque minha situação esta-va insustentável. Não era admissível que uma professora da rede municipal fizes-se o que eu estava fa-zendo: questionando distribuição de me-renda, debatendo os salários, discutindo as necessidades da co-munidade... O povo começava a se or-ganizar para vir para a cidade reivindicar carro-pipa, constru-ção de estrada. E eu

era servidora do município... Licenciada, fui trabalhar em um programa da Igreja Católica.

Democracia Viva – E como era esse trabalho?Givânia – Era um projeto financiado pela

Misereor [agência de financiamento], da Alema-nha, e tinha bastante recurso. Recebia salário, que não era ruim, e tinha boas condições de trabalho, inclusive dinheiro para viagens. Essa experiência me abriu novos horizontes. Meu

trabalho era na Pastoral da Juventude, eu era liberada só para fazer articulações pelos mu-nicípios do sertão. Minha formação na Igreja Católica foi toda na linha do grupo que discutia política, as comunidades eclesiais de base eram um campo de debates, a Pastoral da Juventude era muito forte. Resolvi prestar vestibular e pas-sei, comecei a faculdade enquanto trabalhava na Igreja.

Democracia Viva – Esse seu envolvimento já se refletia na sua comunidade?Givânia – No começo de 1992, foi que-

brada a primeira corrente em Conceição. Uma família tradicional, ligada ao PFL [Partido da Frente Liberal], administrava a cidade de Sal-gueiro desde sempre e nem se preocupava em fazer campanha eleitoral. Para surpresa geral, um candidato da família perdeu pela primeira vez em toda a história de Salgueiro. Consegui-mos eleger como prefeita uma professora da base da Igreja, catequista, coordenadora desse nosso movimento. O normal, até então, era que votássemos em quem o fazendeiro da região mandasse. Meu pai dizia que, se o fazendeiro votasse no cachorro, ele também votaria. Não precisava pregar um papel de propaganda, fazer comício, nada. Em 1993, eu já estava em Salgueiro fazendo faculdade e me tornava bastante conhecida na região. Foi justamente nessa época que os conflitos começaram; fui ameaçada de morte pela primeira vez. Eu era uma professorinha de 25 anos de idade.

Democracia Viva – O que representou essa mudança no cenário político?Givânia – Quando quebramos a oligarquia

da cidade, disse à professora que a única coisa que eu queria era a construção de uma escola de quinta a oitava série em Conceição. Não queria nem voltar a ser funcionária do município, queria apenas que a nova admi-nistração olhasse para Conceição de forma diferenciada. Em 1995, a escola ficou pronta, e eu continuava a trabalhar na Igreja. A prefeita dizia para mim: “Discuta com a comunidade o nome da escola”.

Foi nesse processo que começamos a discutir a história de Conceição por um olhar étnico. Nós nos perguntávamos se éramos todos negros. Começamos a assumir a nossa identidade, a nos assumir negros; até então todo mundo era moreno, eu inclusive. Demos à escola o nome de um professor que nem era da rede municipal nem do estado, mas era a pessoa que sabia ler na comunidade. Por isso,

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era tido como professor e era descendente direto das negras fundadoras. Depois de re-solvida essa etapa, veio um novo desafio. A prefeita me disse: “Se a escola é para ser um apoio à comunidade, para dar continuidade a esse trabalho que vocês fazem lá, a diretora não pode ser de fora. Você deve retornar para o município e ser diretora da escola”.

Eu ganhava três salários mínimos e passaria a ganhar um salário e meio, com a gratificação de diretora. Já no dia seguinte – acho que por amar muito o que faço, quando decido, decido de vez –, pedi demissão do projeto da Igreja. Meus amigos acharam que eu estava louca, faltava pouco para eu me formar na faculdade. Eu disse: “Não vou abandonar a faculdade, vou freqüentar as aulas pelo menos três dias por semana”. Pedi demissão e fui tomar conta da escola.

Democracia Viva – Como foi esse retorno à sala de aula?Givânia – Foi uma experiência maravilhosa.

Consegui, com ajuda da Pastoral, selecionar pro-fessores que se afinavam com nossas idéias. Che-guei para eles no primeiro dia e disse: “Eu não sei ser diretora, nunca dirigi nada, nem minha casa”. As pessoas não acreditavam... Construí-mos essa escola juntos. Nos dois anos em que fiquei como diretora, em 1995 e 1996, a escola apareceu em uma pesquisa sobre educação e pobreza como uma das melhores propostas de educação da zona rural. Foi uma festa! A escola se firmou ainda mais. Antes de estudar qualquer coisa que estivesse nos livros didáticos, tinha que estudar primeiro sobre Conceição. Em 1996, já estava no PT e me candidatei pela primeira vez. Fui vitoriosa pela manhã e, de noite, já não estava mais eleita.

Democracia Viva – Como foi isso?Givânia – Fui eleita, mas o voto ainda era

no papel... Foi uma grande surpresa, eu não tinha nem material, tinha saído candidata apenas pela conjuntura. Na minha cabeça, eu no máximo iria somar voto para outra pessoa se eleger e eu voltaria para a escola para fazer o que gosto. No dia seguinte à eleição, pela manhã, por um voto eu fiquei como suplente. Resumindo a história: na contagem final eu não estava eleita por um voto! A professora que era prefeita também não fez o sucessor.

A nova administração demit iu todo mundo que trabalhava comigo na escola; eram contratados. Só ficou a merendeira, ninguém mais. Pior: colocaram no lugar dos antigos professores, os brancos, as filhas dos fazendeiros. Foi uma ocupação. Numa

comunidade negra, numa escola de negros, não tinha um professor negro. Como eu era concursada, me jogaram para a periferia. Continuei dando aula normalmente, fazen-do o melhor que podia. Às sextas-feiras, eu voltava para Conceição, continuando o trabalho, não mais dentro da escola, mas do mesmo jeito.

Democracia Viva – Quando você se candidatou novamente?Givânia – Em 2000. Minha candidatura

já era natural, meu nome estava con-solidado na cidade, a discussão do Mo-vimento Nacional das Comunidades Quilombolas virou uma referência. Não entendia muito de comunicação, como ainda não entendo, mas fizemos uma campanha do “só faltou seu voto”. Com esse slogan, eu me elegi vereadora, sem nada, sem um centavo. Eu estava há seis meses sem receber salário. Con-trariando todo mun-do, dentro e fora do grupo, fui a segunda mais votada.

Democracia Viva – Você se candidatou também em 2004?Givânia – Em

2004, eu me reelegi também sem grana, sem nada. Minha cabeça não conse-gue admitir algumas coisas, por isso é muito difícil para mim. Minha campanha sou eu, Deus e algumas pessoas que acreditam em mim. Ou esse mundo da política tem que melhorar, ou não é meu mundo. Não sei, alguma coisa está errada nesse casamento. Ou eu estou errada, ou o mundo está muito distorcido.

Democracia Viva – Refere-se à falta de apoio político dentro do seu partido?

entrevista givânia silva

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Givânia – Não é bem isso. Por causa do acirramento dos conflitos e da visibilidade que temos tido, o partido até tem apoiado bas-tante. O partido sabe que quem está falando por Conceição não é mais nenhum fazendeiro. Todo o processo que vivemos hoje não é só a questão da terra, tem um recheio político muito forte, de manutenção desse espaço comum, um espaço político-eleitoral de poder. A terra, como meio de produção, é o que menos im-porta para esses fazendeiros. O que importa é a

propriedade da terra, o poder que signifi-ca estar ali naquele meio. A questão é que não concordo com alguns acordos que são feitos para garant i r recursos para a campanha. Fiz minha campanha de moto-táxi, a pé, do jeito que dava...

Outro ponto de tensão é quanto a alianças políticas. Havia uma possi-bilidade de aliança com a qual não con-cordava, que tinha fazendeiro no meio. Eu briguei dentro do partido, não é que não admitisse, mas defendi minha posi-ção e acabei tendo o maior apoio den-tro do partido. Isso trouxe, de certa for-ma, um problema: o outro grupo tinha muito dinheiro, e algumas pessoas do partido entendiam que era importante ter o dinheiro para

fazer a campanha. Eu entendia de forma di-ferente: se o povo me quisesse novamente na Câmara, iria votar; se não votasse, paciência, eu iria continuar meu trabalho do mesmo jeito. Sem contar também que se trata de um partido de cidade pequena, as pessoas querem ajudar, mas não têm como. Por parte de quem tem dinheiro, não vem nenhuma possibilidade de aposta porque quem tem dinheiro quer lutar por outras coisas. É muito difícil, é uma expe-

riência que cada pessoa tinha que viver para saber o que é: se manter numa postura de não se distanciar daquilo que acredita.

Democracia Viva – A AQCC também surgiu em 2000?Givânia – Sim, a AQCC surgiu num mo-

mento maravilhoso, quando a gente começou a discutir de forma mais forte a questão da posse da terra. Pelo instrumento do governo, a terra seria titulada em nome de uma organização. Só que a gente já tinha começado um processo de interação com todas as comunidades. Já que as comunidades eclesiais de base já não mobiliza-vam, as associações estavam cada uma em seu canto, 30 famílias, 25 famílias, começávamos a discutir uma estratégia de interação entre essas associações. Aí surgiu essa história, e nós só consolidamos um processo que já vínhamos discutindo, que era ter um instrumento que não substituiria as associações que já estavam lá e, ao mesmo tempo, pudesse interagir em todo o território, que não é pequeno. Era mais uma articulação, um modelo de instrumento que articulava todas, garantindo as especificidades locais, porque existem comunidades que estão a 22 km, a 34 km das outras. Como isso se daria pensando em um território? A gente nem cha-mava de território, mas como a gente pensava isso? A AQCC surgiu nesse contexto. Assim, surgiu essa história que terminou empurrando para tal modelo que seria uma associação. Até então, não tínhamos clareza do que seria, discutíamos, começávamos a construir nesse rumo. A AQCC surgiu em 2000, exatamente quando a comunidade seria titulada. A gente entendia que esse instrumento era bastante forte – como é –, mas era preciso que a gente não só criasse mais uma associação para ficar lá, mas era importante pensar a comunidade. Nesse mesmo ano, elaboramos um plano de desenvolvimento sustentável da comunidade, em que a AQCC assume várias tarefas.

Democracia Viva – A AQCC é composta por pessoas de diferentes associações?Givânia – Sim. A coordenadora-geral é de

uma associação, o secretário já é de outra. Na prática, a AQCC atua através de comissões . As comissões são: Juventude, que é a mais nova, Educação, Comunicação, Saúde, Meio Ambiente, Patrimônio e Geração de Renda. Achamos que ainda precisamos avaliar e estudar mais esse modelo, de forma que se torne mais operativo, mas não passa pelas nossas cabeças uma nova mudança de perfil ou estrutura.

A mudança que houve foi no estatuto,

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em 2004. Revisamos a missão, que antes era garantir a posse da terra para os moradores de Conceição; hoje, a missão é muito mais ampla, definimos nossos valores, nossas crenças. A AQCC luta pelo desenvolvimento da comuni-dade, levando em conta sua realidade e sua história, a valorização das suas potencialida-des, a conscientização do povo negro da sua importância para construção de uma sociedade justa e igualitária.

Democracia Viva – Por que apenas a questão étnica está explícita? Por que não a questão das mulheres?Givânia – Quando discutimos a revisão do

estatuto, o mais forte foi mesmo a questão do território. Debatemos muito o papel da AQCC para promover o desenvolvimento e fortalecer a identidade étnica. Creio que a questão das mulheres é tão natural que não tínhamos sen-tido falta disso, na prática. Algumas discussões em torno da questão de gênero em Conceição foram tão longe que hoje os meninos é que reivindicam ampliar as discussões sobre ga-rantir os direitos dos homens! De qualquer forma, acho que a pergunta deve ser debatida coletivamente. Vou levar essa inquietação para discutir em Conceição.

Democracia Viva – E quais são os maiores desafios atualmente para as mulheres de Conceição?Givânia – Um desafio que envolve as mu-

lheres – mas também toda a comunidade – é uma campanha para recuperar o maior prejuízo que já tivemos: a questão do estudo. Hoje te-mos muitas mulheres de 40, 50, 60 anos que estão retornando para a escola. Outro desafio para as mulheres – que mais uma vez é de todos – é nos mantermos lá. Isso significa não só a permanência na terra, mas as condições dessa permanência.

É importante entender que em Conceição não temos ações sistematizadas exclusivas das mulheres. O que temos é essa liderança natu-ral. Mesmo no caso do artesanato, que tem mais mulheres participando, também temos artesãos. Nossa metodologia – nossa tradição, jeito, cultura – nos tem feito caminhar juntos, homens e mulheres. A liderança feminina em Conceição é muito natural e não incomoda mais. Ao contrário, estamos lá e temos lide-ranças masculinas maravilhosas, importantes. Mas faz parte da nossa tradição as mulheres serem muito fortes, o próprio nome nos dá esse status de fortaleza.

O que não fizemos ainda – e precisamos

fazer – é um debate de forma sistemática sobre questões de gênero. Sempre discutimos a saúde, a educação, a geração de renda etc. Acho que, por isso, esse recorte específico para a questão das mulheres acaba não acon-tecendo. Mesmo conhecendo as diferenças nos indicadores entre homens e mulheres de maneira geral, temos muito essa coisa do global, do conjunto. Estamos lutando juntos, mas sabe-mos que a voz de Conceição sai muito mais pela mulher que pelo homem.

Democracia Viva – Qual é o percentual de homens e mulheres na comunidade?Givânia – Não

temos essas informa-ções, mas creio que as mulheres são em maior número. Mas, quanto às lideranças da comunidade, a maioria é mulher.

Democracia Viva – Quantas pessoas vivem do artesanato em Conceição das Crioulas? Essa é a principal fonte de renda da comunidade? Quais os significados dessa atividade?Givânia – Essa

não é apenas a nos-sa principal fonte de renda, é a principal fonte de renda, de resistência e de existência. As pessoas fazem artesanato, mas também plantam milho, feijão e batata e criam gali-nhas e algumas cabras. O artesanato é uma das possibilidades. O artesanato é muito forte porque carrega a marca e a história da comu-nidade, é por isso que é a principal, mas não necessariamente em termos financeiros. É mais do que a questão financeira, existem esses outros significados. No início, quem trabalhava com o

entrevista givânia silva

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caroá era apenas uma pessoa, a Júlia, que virou uma das nossas “bonecas”. Antes de morrer, ela teve a felicidade de ver tudo isso, ver aquele caroazinho, que ela só fazia um saco para guardar milho, transformado em uma boneca ou em uma bolsa maravilhosa. Hoje, as filhas dela estão no artesanato, além de outras cem pessoas. Às vezes, quando as vendas melhoram, o grupo aumenta; quando fica bastante tempo sem vender, algumas pessoas saem para cuidar da roça, depois voltam.

Democracia Viva – Quantos modelos de bonecas vocês fazem?

Givânia – São d e z , t o d a s c o m nome e com histó-ria. A boneca nunca é vendida separada-mente. A história é o mais importante. Já esta mos em um segundo modelo de embalagem, sempre com o nome de uma mulher da comuni-dade e com infor-mações sobre ela e sobre Conceição. Uma delas é Francis-ca Ferreira, umas das primeiras negras que chegaram à comu-nidade. Ainda não é suficientemente ren-tável para viver só do artesanato. Para produzir as bonecas e continuar tendo acesso ao caroá, é fundamental que a questão da terra esteja totalmente resolvida.

Democracia Viva – Como a AQCC tem atuado em relação ao meio ambiente?Givânia – Se tem alguma preocupação com

a preservação do meio ambiente, de cuidado com a natureza, é porque as comunidades indígenas e quilombolas ainda estão naquela região. Temos um pertencimento muito grande da terra, mas existem coisas que precisamos debater mais. A questão é muito profunda;

meio ambiente sou eu, é você, é uma planta. Enquanto algumas pessoas estão preocupadas com esse ou aquele animal que está em extin-ção, e nós também nos preocupamos com isso, estamos preocupadas com as pessoas que tam-bém estão em extinção. O meio ambiente para nós não é descolado das pessoas, é a natureza com as pessoas dentro. Não adianta deixar o animal se a pessoa não puder mais existir.

Democracia Viva – Qual sua opinião sobre a transposição do Rio São Francisco?Givânia – Prefiro acreditar que a transpo-

sição pode ser benéfica para o Nordeste. Essa é uma decisão política que já foi tomada, vai acontecer. Só não sei qual será a real contri-buição para a vida das pessoas. O que sei é que a transposição não é e nem será a solução definitiva para a seca. A transposição tem que ser vista como uma obra que vai ajudar certos setores, mas que pode causar outros proble-mas. Não podemos achar que os pobres estão todos agrupados em tal lugar e que o canal vai passar e resolver tudo. Não é assim, na nossa lógica do sertão não é assim. Não é porque chegou água em uma roça que as pessoas da região podem ir trabalhar lá. Essa é a cultura da terra. Se a transposição passasse dentro de Conceição, por exemplo, seria muita confusão, porque essa água seria entendida como sendo de quem mora ali. No sertão, a lógica da água é outra...

Democracia Viva – Em que se diferencia a luta pela terra feita pelo movimento quilombola da luta feita pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)?Givânia – Na nossa perspectiva, quando

discutimos terra, estamos discutindo territó-rio. O que é uma terra para um assentado e o que é uma terra para um quilombola? Pela ótica da Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura], do MST e de outros movimentos que legitimamente lutam pela questão da terra, o que se quer é que a terra seja produtiva. Para nós, as nossas terras não são as melhores terras, mas nós queremos aquela terra porque há, entre nós e a terra, um sentimento de pertencimento. Quando falamos de território, parece que algumas pes-soas não compreendem que estamos falando de terra. Dentro da terra, existem as pessoas, a escola que queremos que seja afinada com a história da comunidade, com a história do povo negro. Precisamos pensar que a saúde tem de

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refletir as doenças que são específicas do nosso povo, o que significam os valores e os saberes populares e tradicionais da comunidade, as benzedeiras, os chás, as medicinas alternativas, os remédios que as mulheres fazem, as pessoas que rezam e curam, que não são curandeiras, mas são benzedeiras. Queremos muito mais do que o acesso a uma terra improdutiva que está nas mãos de um fazendeiro. Temos um pertencimento, uma relação de cumplicidade, é a terra onde meu bisavô nasceu, onde minha avó nasceu. Minha mãe é ceramista porque a avó dela também era. Cuidar da cerâmica não é só gerar renda, mas é também manter a história da comunidade viva. São esses aspectos que os movimentos que a gente citou não têm.

Democracia Viva – O pertencimento a que você se refere se dá por outros valores que não estão relacionados só à produção. Essa é a contribuição do movimento quilombola para o debate sobre questão agrária?Givânia – Para nós, a terra não só produz

milho, feijão, batata, cenoura, tomate etc. Ela produz sentimento, produz história, produz cultura, saberes, muita coisa mesmo. São le-gítimos todos os movimentos que defendem e lutam pelo acesso à terra, mas não é o sufi-ciente para nós. Se o governo diz: “Aqui está complicado por causa dos fazendeiros, mas existe uma área ali que é boa, tem água e vai dar tudo certo”, não aceitamos. Não vai dar certo porque nesse local tem muita coisa a ser vivida, é nesse local que queremos produzir. É por isso que até investimos em outras coisas, porque percebemos que só milho, feijão e to-mate, se existisse água, não segurariam, não dariam sustentabilidade à comunidade. Este para nós tem sido o grande desafio: pautar esse tema pelo olhar de pertencimento. O aparelho de Estado está pronto para fazer a distribuição de terra a partir de uma área que será loteada por famílias. No nosso caso, não só existe um território comum, mas sim uma individualidade lá dentro. Não pense que a roça de Maria é a mesma que a minha, não. Eu tenho a minha roça, Maria tem a dela. Mas o nosso território é maior do que isso.

Democracia Viva – Não seria uma questão para debater com outros movimentos, além do governo?Givânia – Mas os outros movimentos

pensam de forma diferente. O interessante é como garantir a união dessas lutas sem perder a identidade: não só eles, que têm uma cons-

trução diferente da nossa, mas também nós, que temos nossa identidade quilombola. É um entendimento de cada um olhar de um jeito, os princípios são comuns, caminhamos para o mesmo lugar, mas ora eles podem ir na estrada asfaltada e nós na estrada de chão, ora nós vamos numa bicicleta, e eles, num jumento. Enfim, os meios podem ser diferentes, mas estamos caminhando para um lugar só, para essa transformação. O certo para mim é que o governo tem que fazer a reforma agrária. Mas a reforma agrária a partir do pensamen-to do MST é uma; do pensamento da Contag é mais pare-cido com a do MST; das comunidades in-dígenas e quilombo-las é completamente diferente, mas é uma reforma agrária. O modelo que está aí não cabe às comuni-dades quilombolas, portanto temos que ter um modelo de distribuição de terra para quem quer a terra para produzir milho, feijão, uma casa para morar e temos que distribuir terra para aqueles que estão lá há 300 anos e tiveram suas terras invadidas. No nosso caso, foi um movimento contrá-r io: ocuparam as nossas terras. E não fomos só invadidos, não levaram só as terras, levaram a li-berdade das pessoas, escravizaram as pes-soas que lutaram mais de 200 anos por liber-dade, e hoje ainda há restos dessa escravidão.

Democracia Viva – Qual a relação da AQCC com a Conaq [Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas]? e com o movimento negro?Givânia – Estamos na Conaq, foi uma das

coisas que ajudamos a articular em 1995. Por

entrevista givânia silva

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sermos secretaria executiva, representamos Pernambuco na Conaq. Com o movimento negro, temos algumas articulações também por meio da Conaq. Em Pernambuco, o movi-mento negro é menos intenso, dadas algumas dificuldades que enfrentou, está em um proces-so de reestruturação. Entendemos que temos uma pauta comum: o combate ao racismo. Mas também com olhares diferentes. Nosso discurso é o combate ao racismo, mas o que é combater o racismo para uma pessoa urbana

e o que é combater o racismo para nós que vivemos na zona rural?Democracia Viva – Como é a aproximação com o movimento de mulheres? O fato de estar na zona rural limita o entrosamento com outros movimentos?Givânia – L imi ta muito. A distância, as nossas condi -ções e a nossa es-trutura se transfor-mam em algumas d i f i c u l d a d e s d e participação. Com a Internet, pode-mos acompanhar o debate um pou-co melhor. Mesmo ass im, um inte r -câmbio freqüente com o movimento feminista continua sendo dif íc i l . Em re lação à Art icu-lação de ONGs de Mulheres Negras

Brasileiras, até tivemos uma avanço. Atu-almente, a Conaq faz parte da Articulação, mesmo não sendo um movimento só de mulheres. Isso ocorreu porque, na Articula-ção, não existia a representação da mulher negra rural.

Democracia Viva – A cidade de Salgueiro ainda vive em conflito? Não conseguiram ainda a regularização da terra, não é?

Givânia – Sim, ainda temos conflitos. O território já foi reconhecido, foi identificado. Existe um documento da Fundação Cultu-ral Palmares reconhecendo Conceição das Crioulas como território quilombola. O que falta é o processo de desintrusão, ou seja, levantar o que os fazendeiros construíram de bens e indenizá-los para que possam sair do território.

Democracia Viva – Vocês sofrem ameaças?Givânia – Estamos sendo ameaçados

desde muito tempo. Ameaça de morte é uma coisa já corriqueira. Os conflitos se intensi-ficaram bastante não só entre as lideranças mais velhas, recentemente tiveram investidas muito fortes contra a juventude, o que nos deixou bastante preocupados porque os jo-vens têm outro temperamento, isso foi este ano.

Democracia Viva – Há muitas lideranças ameaçadas?Givânia – Que tenham recebido ameaças,

direita ou indiretamente, são cerca de 15 pessoas. A gente tem tentado publicizar isso ao máximo, mas não existe um esquema de segurança. Eu hoje, por exemplo, tenho limita-ções. Nem sempre posso ir aonde quero; antes, eu andava de moto, já não vou mais. Eu ia para Conceição em qualquer caminhão de feira, hoje não posso mais. Na minha cabeça, isso é também uma forma de escravidão, não consigo lidar muito com isso. Por exemplo, houve uma festa de conclusão de curso na comunidade, e eu recebi uma recomendação da própria polícia de não ir, porque era uma festa grande no meio da rua, não havia controle. Foi muito difícil não estar lá naquele momento, é complicado explicar. Ao mesmo tempo, há uma sensação de “o que eu fiz, por que isso?”.

Às vezes me sinto triste, depois me animo porque sei que só está acontecendo tudo isso porque nosso povo despertou, porque não queremos mais concordar com o que foi feito contra nós a vida toda. Se a gente estivesse concordando, estaria tudo bem. Não teria conflito.

Democracia Viva – Os dados recentes que o governo federal informou dão conta da existência de cerca de 2 mil comunidades quilombolas. Esse número está perto do real? Como vivem essas comunidades?Givânia – Na verdade, os dados da Conaq

mostram que são cerca de 4 mil comunidades, o dobro do que o governo fala. Só no estado

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do Maranhão foram identificadas cerca de 700 comunidades. Há cinco anos, se dizia que havia quatro comunidades quilombolas em Pernam-buco; hoje sabemos que são cerca de 60.

Um problema comum é a questão da terra, a questão das políticas públicas, saúde e educação se constitui em um elemento. Enquanto nós, de Conceição, estamos discutindo de forma ampla e profunda a proposta de educação diferenciada em território, com possibilidade de até o fim do ano sistematizar isso, existem comunidades que ainda estão brigando para que a escola seja feita. São estágios diversos. Estive recentemente no Maranhão e percebo que há muito para ser feito. Mesmo em estados com um nível de vida diferenciado, com renda maior, com visibilidade maior, como o próprio Rio de Janeiro e São Pau-lo, a situação das comunidades não é melhor. Conceição significa hoje uma das comunidades que ousadamente podem ser consideradas bem--sucedidas, apesar de tudo isso.

Democracia Viva – Então o avanço das políticas sociais com relação aos territórios quilombolas está relacionado com o nível de organização política?Givânia – Tem tudo a ver. Se a comunidade,

localmente, não tiver um debate, os prefeitos dizem que elas nem existem, são apenas negros rurais, elas não se constituem como elementos políticos, como segmento, como força, como grupo étnico. É claro que em algumas administra-ções isso é mais fácil de negociar. Uma situação assim não acontece com Conceição sem que pelo menos a gente discuta antes, se não pudermos barrar algo que não queremos, vamos pelo menos discutir algumas mudanças. Em outras comuni-dades, não é a mesma coisa porque as pessoas não estão no mesmo nível de organização. Os recursos passam pelos municípios e há uma tendência muito grande de invisibilidade dessas comunidades por parte das prefeituras.

Por outro lado, está ocorrendo um movi-mento contrário agora. Algumas prefeituras têm procurado comunidades quilombolas porque sabem que existe dinheiro no governo federal para investir nessas áreas. Por exemplo, há uma norma no Ministério da Saúde que diz que as equipes de saúde da família que atuam em comunidades quilombolas têm 40% de incen-tivo; então, o médico, a enfermeira e toda a equipe que estiver lotada em uma comunidade quilombola vão receber 40% a mais que os profissionais que trabalham em outras áreas. Há uma corrida das prefeituras para garantir esses recursos. Precisamos fazer um debate

dentro da Conaq para fazer valer nosso direito. O município que receber esse recurso vai ter que aplicar onde realmente deve. Mas tudo isso tem muito a ver com a forma como a comunidade está organizada, com a forma como as forças políticas se dão.

Democracia Viva – Conceição das Crioulas é a maior comunidade quilombola de Pernambuco?Givânia – Sim, temos 3.700 pessoas na

comunidade, não é uma comunidade pequena. Aqui em Pernambuco e no Brasil, em alguns campos, nós somos referência. Por exemplo, nessa temática da educação, somos a comuni-dade quilombola com maior acúmulo. Isso é um processo que vem se construindo há dez anos. A gente, que vem de uma cultura de base, discute e faz muito. Mas não temos tudo pronto, é preciso paciência. É claro que precisamos vencer isso, é um desafio porque muito tem sido feito. Nós acumulamos bastante coisa sobre essa temática, mas não é a realidade geral.

Democracia Viva – A AQCC está articulada com a Conferência Nacional sobre Igualdade Racial?Givânia – Sim, nós não só ajudamos a co-

ordenar o processo da conferência regional, que aconteceu na nossa cidade. Mas também o que queremos é levar para a conferência estadual a afirmação de que promoção da igualdade racial é, para os quilombolas, antes de qualquer coisa, o direito à posse da terra, isso é promoção da igualdade racial. Essa questão da posse da terra vai aparecer bastante forte, dada a conjuntura. Também vamos estar numa consulta que aconte-cerá em Brasília que vai eleger um percentual de delegados para a conferência nacional e devem acontecer outros debates por lá.

Democracia Viva – Você tem acompanhado o debate sobre cotas nas universidades públicas? Qual é a sua opinião?Givânia – Tenho acompanhado como parte

interessada. Aqui, o debate não tem a mesma intensidade que no Sudeste. Por outro lado, digo que ainda não estamos discutindo cotas porque o debate é sobre cotas nas universi-dades e ainda estamos brigando para fazer escolas nas comunidades, estamos realmente em níveis diferenciados. Conceição hoje pode dizer que vai brigar por cotas nas universidades porque já tem alunos para isso. Mas é uma rea-lidade apenas de Conceição. No Maranhão, por exemplo, as comunidades ainda estão muito mais distantes das cidades e dessa realidade.

Pessoalmente, falando como negra, acho

entrevista givânia silva

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22 democracia viva nº 27

que é uma política imediata, não pode se constituir em uma política definitiva, mas neste momento é estratégica, temos que apostar. Se o acesso à educação for no ritmo que vai, a gente não consegue chegar. Mas defendo as cotas como parte de um processo de transição. Melhorar a escola pública é o que nos interessa, porque aí vai sim melhorar a vida dos negros e a educação para a população negra. Chegará um momento em que nós mesmos vamos dizer: “Bem, não quero mais cota, não”. Mas isso vai levar muitos anos. Como quilombola, posso dizer que o movimento quilombola ainda não debateu o suficiente sobre cotas.

Democracia Viva – Como você avalia o processo Fórum Social Mundial?Givânia – Participamos do Fórum Social

Nordestino, em 2004, em Recife, de uma forma um pouco complicada. A distância pre-judicou nossa participação. Para vir à cidade, precisamos ter R$ 300, é o mínimo para pa-gar a passagem, hospedagem. Não tínhamos dinheiro para ir às reuniões preparatórias, acompanhamos o processo por e-mail, e isso termina prejudicando um pouco. Mas pautamos a nossa temática. Nós nos mobilizamos para que outras comunidades também participas-sem, conseguimos ter representações das cinco regiões, mas não foi uma presença maciça. Entendemos que nosso fortalecimento depende também da presença em encontros desse tipo.

Em relação ao Fórum Social Mundial, só não fui ao da Índia e ao primeiro em Porto Alegre. Lá fizemos várias atividades da Co-naq, discutimos a questão da regularização fundiária das terras de quilombo em parceria com o Cori, com a Rede Social de Defesa dos Direitos Humanos e o Instituto Pólis. Mas também participamos de outras ações, como o Fórum Mundial pela Dignidade Humana. Tive o privilégio de dividir a mesa com uma pessoa que tem muito a ver com minha his-tória de formação de igreja: Leonardo Boff. Meus olhos brilharam quando lhe disse que, mesmo que não soubesse, ele tinha muito a ver comigo, com a minha formação. Essa foi uma indicação da Articulação de ONGs de Mulheres Negras para participarmos desse fó-rum, e junto com a Articulação coordenamos uma ação para os parlamentares, foi bacana, aconteceu lá na Assembléia Legislativa de Por-to Alegre. Coordenamos uma mesa, lançamos um material da Articulação.

Foi uma experiência muito interessante, muito importante. Só acho que o Fórum é muito grande. Claro que a diversidade tem que ser

garantida, mas receio que a gente discuta muita coisa e não consiga alinhar aquelas discussões com o objetivo do Fórum. Tenho medo de que isso não aconteça.

Democracia Viva – E qual a contribuição do movimento quilombola para a construção de um outro mundo possível?Givânia – Normalmente, as pessoas nos

procuram e dizem: “Ah, tem comunidade quilombola?”. Primeiro, é um suspense para perguntar se tem, depois também tem uma coisa que é interessante, a nossa visão sobre esse tema. A gente tem contribuído muito para esse debate. Se hoje o governo afirma e várias organizações estão concorrendo para trabalhar com os movimentos quilombolas, com as comunidades quilombolas, o governo principalmente, foi a Conaq que levou para dentro do governo essa temática. O desenho não está bom, a execução, muito pior. Mas seria impossível discutir comunidade quilombola no Ministério do Trabalho, no interior de todos os ministérios, se a gente não tivesse feito uma pressão e tivesse ido na construção do GTI. Claro que tem a determinação, tem a criação da Seppir [Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial], mas a própria criação da secretaria já nasce com o apoio da Conaq. Temos críticas, mas é esse debate que estamos pautando, que temos levado e que achamos que é uma contribuição importante. Não é a partir de uma pesquisa acadêmica, de um olhar de alguém que foi lá fazer um relatório, uma visita, é de quem está lá no dia-a-dia, vivendo os problemas, tentando encontrar saídas. Inclusive eu acho que, para as organizações da sociedade civil, esse é um debate novo, não é algo claro ainda para todo mundo. Acho que a gente tem contribuído nesse sentido.

Democracia Viva – Como você avalia a questão quilombola no governo Lula?Givânia – Para avaliar o governo Lula é

preciso fazer algumas considerações do que foi o governo Fernando Henrique. Passamos oito anos tentando mostrar que existiam comunida-des quilombolas. No dia 13 de maio de 2002, com o aval da Fundação Cultural Palmares, o governo de FHC vetou, na íntegra, um projeto que reconhecia as terras quilombolas. Era um texto muito mal escrito, horroroso, mas era um primeiro passo.

No governo Lula, começamos um novo debate. Começamos a dialogar com o gover-

e s P e c i a l s q u i l o m b o s

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Jun / Jul 2005 23

Participaram desta

entrevista: Janaína

Jatobá, coordenadora

do Programa de

Mobilização de Recursos

da Oxfam-GB; Márcia

Laranjeira, coordenadora

de Comunicação do

SOS Corpo; e Rosângela

Bueno, assistente de

Relações Institucionais

do Ibase

no ainda na transição. Tivemos duas reuniões durante a transição para pautar essa história e disso o que restou foi a criação de um grupo de trabalho, do qual fizeram parte eu e outras lideranças no Brasil: o Ivo, do Maranhão; o Silvano, do Pará; a Gonçalina, do Mato Grosso; o Ronaldo, do Rio; o Oriel, de São Paulo; e o Potássio, do Rio Grande do Sul. Com esse grupo de trabalho (GT), construímos o Decreto 4.887, que foi sancionado pelo governo no dia 20 de novembro de 2003.

A partir disso é que começou a existir uma política mais desenhada para a questão dos quilombos. O desenho ainda não está bom, mas é alguma coisa, pelo menos temos uma política. O que está sendo muito complicado é a implementação desse decreto e das outras ações. Percebo que há muita fragmentação, há muito recorte no sentido de fazer coisinhas e não encarar o foco, a garantia da terra. Não temos um saldo muito bom, esperamos que seja esse um dos debates da conferência sobre igualdade racial. Foram tituladas apenas três comunidades no Pará, não foi nenhuma das comunidades que listamos como prioritárias, que são as que têm conflitos atuais: no Rio de Janeiro, Marambaia; no Maranhão, Alcântara; e no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, Morro Alto. Enfim, não temos um saldo tão bom, esperamos que dê tempo de melhorar alguns indicadores que, para nós, não são satisfatórios.

Democracia Viva – Você diz que o saldo não foi bom, mas seu relato não mostra uma maior participação?Givânia – Sem dúvida. Na Conaq, temos

representação em grande parte dos conse-lhos e espaços políticos. Nossa participação aumentou e conseguimos gerar uma política. O que falta é a parte do Estado, é a questão da operacionalização. Por exemplo, temos re-presentação no GT de Educação, no Conselho de Desenvolvimento Sustentável, assento no GT de Infra-estrutura, no Conselho da Mulher etc. Houve, sim, um crescimento qualificado da nossa participação no governo.

Na nossa luta, passamos oito anos expli-cando o que são as comunidades tradicionais, e as pessoas não conseguiam compreender. Agora, estamos há dois anos e meio explican-do, e outras pessoas também não conseguem compreender. Estão sempre querendo nos colocar dentro de um modelo que está na cabeça deles, na lógica deles. Não conseguem compreender que as coisas podem acontecer, mas não por aquela lógica que está pensada há 500 anos. Essa é uma dificuldade real. É um

modelo na cabeça das pessoas. Ou se pensa uma forma de flexibilizar isso, ou estaremos fora. Os conceitos deles estão formados, tem muita coisa para ser quebrada, é uma mudança radical de paradigma. O Estado nunca pensou nada para nós mesmos. Nós somos excluídos desse Estado que está aí, não há nada, não há política nenhuma, não há lei nenhuma, não há quase indicador nenhum que fale da gente. Como poderemos querer estar dentro de um negócio em que não existimos?

O nosso grande desafio, não só com o governo Lula, é dizer a esse Brasil – que ajudamos a fazer – que existi-mos. Essa é a grande comunicação que temos a fazer. E dizer que existe significa fazer com que as ações voltadas para esses grupos sejam pauta das decisões políticas, e não ações fragmentadas.

entrevista givânia silva

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24 democracia viva nº 27

r e P o r t a g e miracema dantas*

O nome da comunidade é Conceição das Crioulas, mas, diante da força da liderança femi-

nina, a inversão no título desta reportagem faz todo sentido. Distante 500 km de Recife,

Pernambuco, o município de Salgueiro, no Sertão, abriga o maior território quilombola

do estado. São aproximadamente 17 mil hectares, onde vivem 4 mil pessoas em dez

diferentes sítios, com 30 a 50 famílias cada. Sem dados oficiais sobre essa população,

moradores e moradoras da comunidade acreditam que o número de mulheres é maior

que o de homens.

Mas não só a atualidade é marcada pela forte presença feminina. A própria origem

de Conceição das Crioulas está absolutamente ligada a seis mulheres negras que chegaram à

região ainda no fim do século XVIII. Foram elas que, com a venda do algodão, juntaram

dinheiro para comprar a área que hoje é conhecida como Conceição de Crioulas. Na

origem do nome, a participação de Francisco José – um negro que chega a essas terras

trazendo consigo uma imagem de Nossa Senhora da Conceição. Ao oferecê-la às mulheres,

resolvem construir uma capela para a santa. Começa, assim, a história de uma república

Crioulas de

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Conceição das Crioulas tem uma forte expres-são no movimento quilombola e tem na luta pela terra sua principal atuação. Fundada em julho de 2000, a Associação Quilombola de Conceição das Crioulas (AQCC) – ONG criada e dirigida por lideranças da comunidade – tem dado visibilidade à empreitada. Encrustada em uma área de conflitos agrários, Conceição das Crioulas é reconhecida como território rema-nescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares. Mesmo assim, a região ainda desperta a cobiça de fazendeiros que vêem na organiza-ção popular um entrave para seus desmandos. A AQCC conta com os apoios da Universidade Federal de Pernambuco, por meio do projeto Imaginário Pernambucano, da Oxfam-GB, da ActionAid Brasil, do Centro de Cultura Luiz Freire, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Salgueiro, do Movimento de Mulheres trabalha-doras Rurais do Sertão Central e da Prefeitura Municipal de Salgueiro.

A AQCC tem como objetivos o desen-volvimento da comunidade – levando em conta sua realidade e sua história –, a valorização das suas potencialidades, a conscientização do povo negro da sua importância para construção de

mulheres à frente do desenvolvimento

uma sociedade justa e igualitária, a quebra da barreira do preconceito e da discriminação racial. Atualmente, além da luta pela terra, a AQCC está voltada para a implantação de um projeto político-pedagógico para regiões quilombolas – realizado em parceira com a Comissão dos Professores Indígenas de Xukuru (Copixu), a Prefeitura Municipal de Salgueiro e o Centro de Cultura Luiz Freire. Outra iniciativa em curso é a geração de renda por meio do artesanato feito com fibra de caroá – uma planta nativa. A preservação do meio ambiente e o resgate e valorização da cultura local também fazem parte da atividade. Uma das maneiras encontradas para isso é bem inovadora: as principais peças desse artesanato são bonecas que receberam o nome de dez mulheres consideradas “especiais” pela comunidade. Uma delas é Francisca Ferreira, uma das seis negras que fundaram Conceição das Crioulas. Em cada embalagem, além do nome e história da personagem, estão informações gerais sobre a comunidade. Outro cuidado é quanto ao manejo da planta que dá origem à fibra, sendo sempre respeitado o tempo da colheita.

Aparecida Mendes, a Cida, 34 anos, é

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26 democracia viva nº 27

coordenadora executiva da AQCC e divide seu tempo como estudante de Pedagogia, em Salgueiro. É ela quem en-fatiza o aspecto de resgate da cultura quilombola: “Quan do Conceição surgiu, o artesanato veio junto com o plantio de algodão. As mulheres negras que aqui chegaram faziam diferentes tipos de renda. Hoje fazemos bonecas e outros ob-jetos com a fibra do caroá e do catulé e com o barro, mas não se trata apenas de venda. Cada uma dessas peças conta nossa história”. O artesanato feito a partir do algodão foi abandonado no fim da década de 1980, por conta da praga do bicudo, da popularização dos fios sintéticos e também da dificuldade em manter as terras para plantios. “Ficamos à mercê do nada. As pessoas iam em-bora para a cidade grande e quem aqui ficava dependia da aposentadoria dos mais velhos ou das frentes emergenciais contra a seca”, conta Cida. O grupo de pessoas – cerca de 200, na maioria mulheres – envolvido com o artesanato ainda não pode viver exclusivamente da atividade mas nem pensa em abandoná-la: “As pessoas não recebem salário. O pagamento depende da encomenda e das vendas. Mas a atividade tem contribuído muito para manter nossa identidade, a história da comunidade. Temos muito orgulho das nossas peças”, explica a coordenadora executiva.

Apesar da origem católica, Cida não esconde que o sincretismo religioso presente em Conceição das Crioulas também aflorou nos últimos tempos: “Na medida em que fomos re-descobrindo, vimos influências que não são da Igreja. Passamos a observar as influências das religiões de matriz africana. Só não temos isso aprofundado. É uma pena que a Igreja Católica tenha colocado na cabeça do nosso povo que tudo que vem das religiões africanas é coisa do demônio”. Um exemplo vem do poder exercido pela Mãe Magá, também homenageada em forma de boneca. Segundo Cida, ela era uma espécie de líder espiritual e conselheira. Além disso, Mãe Magá era uma experiente parteira e sempre “sentia” o que ia ou não dar certo. Cida garante que até hoje essas influências es-tão presentes com as rezadeiras e mesmo com alguns rituais de religiões de origem africana:

“É meio escondido, como se algo estivesse errado, mas que resistiu assim como o próprio povo. Uma contradição nisso tudo é que todo mundo se diz católico”. A busca pelo resgate da cultura africana também está presente por meio da educação: “Para nós, educador não é só quem está na sala de aula com o quadro e giz. As lideranças contam muito. Hoje a escola já está bem voltada para a nossa realidade, mas ainda falta resgatar a nossa origem como povo do continente africano. Sonho o dia em que possa dizer de qual país africano eu sou descendente”.

Luiza Maria de Oliveira Silva tem 37 anos e representa essa herança. Nascida em um sítio próximo à Conceição, Nívia mudou-se para a comunidade logo após seu casamento. O exercício de benzedeira surgiu da necessidade: “Minha filha mais velha vivia doente e eu tinha que ficar na dependência de outras pessoas. Então, resolvi aprender e hoje me orgulho de poder ajudar a manter essa tradição”. Outra atividade desempenhada por essa benzedeira é o artesanato, cuja renda é gasta integralmente para a criação de seus quatro filhos e duas filhas. “Quero muito poder ensinar a reza para outra pessoa, mas mulher só pode ensinar para homem. E homem só pode ensinar para mulher. Quem sabe um dos meus filhos tem o dom?”.

Sobre a mais forte característica dessa comunidade – a liderança feminina –, a co-ordenadora executiva da AQCC explica: “Em Conceição, as mulheres sempre acreditaram primeiro nas possibilidades. É claro que os ho-

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mens também participam das nossas iniciativas e projetos, de todas as conquistas, mas são elas se engajam e acreditam primeiro nas mudanças, mesmo quando as coisas são mais difíceis.” De novo, o artesanato é um exemplo. No início, apenas as mulheres trabalhavam e iam buscar a matéria-prima nas matas e foram elas também que viram na atividade a possibilidade de gerar renda de forma mais sistemática. Na hora de buscar parcerias e divulgar o trabalho, foram as mulheres que fizeram isso. Mas se inicialmente os homens, não participavam hoje fazem parte ativamente do grupo dedicado ao artesanato.

Numa realidade assim, era de se esperar que a violência contra a mulher não acon-tecesse. Surpreendentemente, acontece. E é discutida de forma corajosa. Em Conceição, as mulheres fazem questão de lembrar que o racismo também é uma forma de violência. Cida resume o que sentem sobre o assunto: “A diferença é que encaramos esse fato como mais um desafio que temos a vencer; é mais uma barreira que enfrentamos. E não é só a violência doméstica. É a violência da discri-minação racial também. É mais fácil valorizar algo feito por um homem do que por uma mulher. Percebemos claramente que algumas das barreiras e violências que enfrentamos no trabalho da AQCC com outras instituições vêm do fato de sermos mulheres e negras. A agres-são moral é maior”. Ela própria já passou pela experiência, quando, no meio de um debate, um fazendeiro disse: “Você é uma menina que não sabe o que diz”. Ela lembra que, logo em seguida, um homem disse a mesma coisa com outras palavras e foi respeitado: “Eu chamo isso de violência; é uma tentativa de fazer calar. Sofremos violência que, infelizmente, não vem só dos machistas. As mulheres que começam a se destacar em reuniões e representações começam a ter problemas. A questão racial às vezes é tão forte que, por isso, defendemos os educadores da comunidade e esperamos que percebam a importância da valorização da diversidade racial para a auto-estima”. São barreiras que acabam transpostas. A fala de Cida não deixa dúvida: “Fico lembrando de um tempo em que éramos tão isoladas que imaginar dar uma entrevista era impossível! Hoje tanto me sinto segura a falar da minha história pessoal como da situação da comunidade. Aprendi e ganhei muito ao fortalecer o carinho que tenho pela minha comunidade. Teve uma época em que sonhava em ir para São Paulo. Agora, não me imagino longe daqui. Outro ganho pessoal é o direito de falar, de me colocar, mesmo com

as barreiras que temos que enfrentar. Não abro mais mão da minha fala”.

A AQCC possui seis comissões – Juven-tude e Educação; Comunicação; Saúde; Meio Ambiente; Patrimônio; e Geração de Renda – formadas pelas lideranças da comunidade, cada qual responsável por levar adiante a dis-cussão e a execução de diferentes iniciativas. Integrante da Comissão de Educação, Márcia do Nascimento, 31 anos, diretora da Escola José Néu, de primeira a quarta série, na Vila de Con-ceição das Crioulas, explica o papel do grupo: “Discutir, a partir da educação que temos, qual a educação que queremos para a nossa comu-nidade, que tem uma especificidade étnica. Temos discutido um refererencial de educação para a comunidade tendo como base a história e a cultura do nosso povo, nossos valores”. Em todo o território, existem dez escolas públicas, que ainda seguem o currículo tradicional, mas que fazem parte da construção de um projeto político-pedagógico inovador. Há dez anos, em 1995, quando foi inaugurada a única escola de quinta a oitava série, os debates sobre educação foram iniciados incentivados pela então diretora Givânia Silva (leia mais na entrevista). O projeto Edu cação e Etnia, consolidado em 2003, já desenvolveu três das etapas previstas: oficinas de leitura e escrita, um diagnóstico e uma pesquisa sobre as histórias contadas pelas pessoas mais velhas. A úl-tima etapa, a edição de um livro didático para escolas quilombolas e não-quilom-bolas, ainda depende de financiamento. Nele haverá temas como a luta pela terra, as festas e tradições, além da própria história de Conceição das Crioulas. Márcia resume toda essa trajetória: “Uma coisa é a gente imaginar o que é melhor; outra é ouvir o que as pessoas da comunidade pensam. Por isso, em 2004, fizemos um mapeamento dentro do território qui-lombola de Conceição das Crioulas”. Foram realizadas entrevistas com lideranças, pessoas mais velhas e tam-

rePortagem crioulas de conceição – mulheres à frente do desenvolvimento sustentável

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28 democracia viva nº 27

bém com a juventude; além de questões sobre o currículo programático, o perfil de professores e professoras foi altamente discutido. Segundo Márcia, baseado nessa “fala coletiva”, está sendo construído um projeto político-pedagógico para escolas quilombolas. Enquanto todo o processo não está sistematizado, a AQCC faz questão de participar dos mecanismos tradicionais de educação: “Nós construímos o atual currículo com a Secretaria Muncipal de Educação de Salgueiro, colocamos nossas ações e propostas para contemplar a nossa história. O que não está lá, nós colocamos”, afirma Márcia. No diagnóstico, a questão do currículo foi ressal-tada pela maioria das pessoas ouvidas, sendo apontada a necessidade de que os mais jovens aprendam seus costumes, seus valores, suas his-tórias e que sejam preparados para a realidade local. Segundo Márcia, ao mesmo tempo em que é citada a importância de crianças, rapazes e moças aprenderem a trabalhar na roça, por exemplo, é bastante enfatizada a necessidade de “ler e escrever bem”.

Nascida a 12 km de Conceição das Crioulas, a própria Márcia tem, na sua história pessoal, a prova de quanto o resgate da identi-dade cultural na educação é capaz de mudar as pessoas. “Vim para Salgueiro para poder estudar; na época só tínhamos escola até a quarta série. Trabalhava em casa de família para poder ter onde ficar na cidade. Me formei e fiz concurso para o magistério, em 1995. Quando fui lotada

em Conceição, não tinha uma ligação forte com essa história de um povo. Hoje, sei que aprendi mais do que ensinei. Não tinha essa consciência de ser uma quilombola. Não me considerava uma quilombola.” Dez anos depois de chegar à escola mais antiga da Vila, Márcia se sente pertencente a essa comunidade: “Foi com a chegada da escola de quinta a oitava série, pelas mãos da Givânia, que começamos a buscar essa história que nos era negada. Hoje sei da minha história e da história de resistência de um povo e me identifico com isso. Sou uma quilombola. Somos ensinados que ser negro é feio, e não queremos ser feios; negamos nossa identidade. Só quando entendemos nossa his-tória, passamos a nos orgulhar da nossa raça. É muito importante saber que faço parte de um povo que há mais de 500 anos foi massacrado, assassinado e ainda está aqui resisitindo. Que estamos firmes e fortes. Me sinto muito orgu-lhosa de pertencer a esse povo“.

Além da escola de ensino fundamental, que tem mais de 220 estudantes, a Vila tem a Escola José Mendes, que vai de quinta a oitava série e também oferece ensino médio a mais de 800 pessoas. Além dos(as) morado res(as) locais, as unidades atendem estudantes de toda a região. “Mesmo estando dentro de uma área quilombola, valorizamos a diversidade cultural. Quilombola e não-quilombolas podem aprender juntos.”

Adaumi, de 24 anos, estuda Pedagogia

Boneca vivaA idéia de recriar em bonecas algumas das mulheres de Conceição surgiu em 2000, justamente quando

era iniciado o projeto pedagógico. Cida conta que a história de Conceição era totalmente oral, sem registros escritos: “Nossa preocupação era que essa riqueza se perdesse nas gerações mais jovens. As bonecas são uma forma de fortalecer a identidade e homenagear as mulheres que fizeram e que fazem esta comunidade e que têm se doado com muita intensidade”.

Mas as bonecas são também uma forma de ho-menagem às atuais lideranças femininas. Lourdinha, que também cursa pedagogia, é uma das mulheres transformadas em bonecas. Professora e artesã, foi escolhida por seu trabalho de valorização da beleza e auto-estima da mulher negra. Indicada pelos(as) jovens(as) para virar boneca, Lourdinha considera que esse é um grande reconhecimento: “Valorizo mesmo a minha cor e falo para meus alunos que devemos nos valorizar e nunca aceitar a discriminação. Tenta-ram nos impedir de ter educação e não conseguiram,

somos fortes”. Ela acredita que as bonecas representam também uma forma de com-bate ao racismo, já que cria uma referência positiva para os(as) mais jovens: “As crian-ças agora dizem que somos famosas e se orgulham. Minha filha fica encantada quando dizem que a mãe dela é uma boneca. As que estão vivas e as que não estão mais aqui são todas símbolos da nossa luta contra qualquer discriminação”.

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*iracema dantas

Coordenadora de

Comunicação do Ibase

[email protected]

Artesanato e preservação do meio ambienteOs(as) moradores(as) de Conceição das Crioulas têm grande consciência da importância do manejo

na retirada dos recursos naturais. Prova disso é que pessoas mais experientes sempre ensinam a iniciantes o “tempo certo de colher”. Além de não retirarem plantas em fase de crescimento, fazem questão de manter um rodízio nas áreas de extração das diferentes matérias-primas usadas no artesanato local. Outra consciência ecológica vem de uma campanha para impedir o banho no açude da região. Mesmo diante de um “convite ao oásis”, os(as) moradores(as) de Vila da Con-ceição, especialmente os(as) mais jovens, fazem questão de debater freqüentemente a importância de manter a qualidade da água disponível para a comunidade. Diante de um quadro como esse, a inexistência de uma rede de saneamento básico é algo a lamentar. Por enquanto, a comunidade conta apenas com energia elétrica. A conquista para muitos acabou por inibir as rodas de conver-sa nas portas das casas, como conta Tia Marina, uma das mais antigas moradoras da Vila: “Agora todo mundo tem parabólica e fica vendo novela. Antes, a gente fica conversando e olhando o céu”.

Entre os recursos naturais mais utilizados estão o caroá, o barro e o catulé. O caroá é uma bromélia que fornece a fibra para a confecção das bonecas. De caule curto, a planta possui espinhos em sua borda, com folhas que lembram o formato de uma rosa. Em meado do século XX, uma fábrica de caroá foi instalada na região, mas foi desativada com a concorrência do sisal.

O barro está presente até os dias atuais nos

utilitários do povo de Conceição. Até a década de 1950, aproximadamente, usavam-se apenas louças de barro. Muitas dessas peças eram vendidas em feiras e lojas de cidades próximas como Cabrobó, Floresta e Salgueiro, em povoados e por encomenda. As mulheres que trabalham com esse tipo de artesanato são conhecidas como louceiras e pertencem todas a mesma família consangüínea.

O catulé, uma palmeira silvestre bem comum no sertão, fornece uma amêndoa de onde se extrai óleo. Sua palha é aproveitada no artesanato, sendo transformada em chapéus, cestas, bolsas etc. A palha de catulé sempre esteve presente na produção de vassouras e esteiras, sendo considerada uma atividade tipicamente das pessoas mais velhas.

Para a coordenadora executiva da AQCC, é im-portante que o artesanato seja visto como algo além de geração de renda. “No caso do Caroá, uma planta nativa, por exemplo, a cada extração a força da planta aumenta. Sabemos que não podemos tirar aleato-riamente.” O artesanato de Conceição das Crioulas revela uma outra questão: “Precisamos das plantas nativas para o nosso trabalho. Temos que preservar a natureza. O problema é que muitos fazendeiros tocam fogo nas plantações só para impedir que a gente retire a fibra; outros simplesmente arracam as plantas. Alegam que estamos tendo muito dinheiro com isso”.

e integra a Comissão de Juventude e Educação. Um dos projetos implementados por essa co-missão é o jornal Crioulas. “Fazemos da reunião de pauta à redação; só a diagramação e a impressão são feitas fora daqui. Mas nós é que aprovamos o produto final”, explica. São os(as) jovens que se encarregam de fazer as fotos, entrevistas e matérias, escolhendo cada um(a) o tema de sua preferência; a produção gráfica é assinada pelo projeto Imaginário Pernambu-cano, da Universidade Federal de Pernambuco. Editado a cada três meses, o jornal Crioulas já está na sétima edição e é distribuído para 4 mil pessoas em todo o Brasil.

O mais novo empreendimento da Comis-são é o Crioulas Vídeo – feito em parceria com o Centro de Cultura Luiz Freire, de Recife, e com a Universidade de Lisboa. O primeiro vídeo conta a própria história da comunidade e está sendo exibido em encontros dos quais o grupo participa. Outros dois já foram filmados e estão em fase de finalização: um sobre as quebradeiras de

coco do Maranhão e outro sobre um encontro entre educadores indígenas e quilombolas, que aconteceu em abril deste ano. “As filmagens com as quebradeiras foram feitas recentemente num intercâmbio que fizemos com a Associação em Áreas de Assentamento do Estado no Maranhão (Assema). O outro fala do encontro com os indíge-nas e também sobre o que significa a educação”.

Para Adaumi, a liderança feminina de Conceição das Crioulas, como disse Cida, é algo natural: “Somos gratos pelas mulheres não serem acomodadas e nem alienadas. Elas sempre procuram formar as pessoas de comunidade para o mundo. Elas pensam no bem de Conceição das Crioulas. Mesmo que os homens tenham também papel de liderança, as mulheres fazem isso de uma maneira mais forte e mais voltada para o coletivo”.

rePortagem crioulas de conceição – mulheres à frente do desenvolvimento sustentável

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30 democracia viva nº 27

r e P o r t a g e manacris bittencourt*

No extremo sul do estado de São Paulo, no Vale do Ribeira, no interior do município de

Eldorado, vive uma das mais antigas populações quilombolas do Brasil. A comunidade

de Ivaporunduva é um exemplo de convivência saudável entre os seres humanos e o

meio ambiente. Todos os projetos de desenvolvimento sustentável, que vem imple-

mentando nos últimos cinco anos, levam em conta a preservação e a utilização dos

recursos naturais sem danos à natureza. A defesa dos direitos coletivos, muito bem

sedimentada, tem sido combustível vital para o funcionamento das engrenagens de

uma organização que tem contribuído decisivamente para a garantia de conquistas

como a titulação da terra e servir de exemplo às outras 53 comunidades quilombolas

do Vale. Formada há mais de 300 anos, por um grupo de pessoas que se rebelou contra

a escravidão e cuja resistência garantiu sua liberdade muito antes da abolição da escrava-

tura, hoje a comunidade se depara com novos desafios: garantir o êxito desses projetos

e impedir que seja construída uma barragem no Rio Ribeira do Iguape, uma ameaça às

populações daquela região.

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A Associação Quilombo de Ivaporunduva existe informalmente desde a década de 1980, mas seu estatuto só foi colocado no papel recente-mente, há 11 anos. Envolve cerca de 300 pes-soas de 80 famílias e tem acumulado vitórias: a região conta com abastecimento de água e luz elétrica, melhorou estradas dentro da área do quilombo e garantiu a permanência de canoei-ros para fazer a travessia dos(as) moradores(as) no Ribeira; tem desenvolvido projetos de gera-ção de trabalho e renda; reformou a casa onde funciona a escola de primeira a quarta série; construiu uma praça que se tornou ponto de encontro em torno da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos – construída no século XVII e tombada como patrimônio histórico pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) e também recententemente restaurada; e construiu uma pousada para receber visitantes dispostos(as) a fazer ecoturismo e conhecer a história local.

Mas a grande mudança está vindo como resultado de três projetos de desenvolvimento sustentável, implementados a partir de 2001 em parceria com o Instituto de Estudos Sociambien-tais (ISA), sediado na capital paulista. O estrei-tamento das relações entre a organização e as comunidades quilombolas da região começou em 1996, quando o ISA elaborou o Diagnóstico Sociambiental Participativo do Vale do Ribeira. E se intensificaram na luta contra as barragens (leia boxe sobre o assunto). Hoje, os projetos contam com apoio do PD/A Consolidação, do Ministério do Meio Ambiente, da Escola Superior de Agri-cultura Luiz de Queiroz (Esalq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). No início, tiveram também o apoio da Fundação Ford. Durante a realização do diagnóstico, o ISA constatou a existência de 50 comunidades quilombolas, hoje o movimento já fala em 54. As comunidades têm em média 50 famílias, cada uma com seis integrantes.

Boa parte das conquistas de Ivaporundu-va deve-se a um diferencial que salta aos olhos

na visita à comunidade: seu poder de lideran-ça. “Um problema notório nas comunidades quilombolas é a ausência do serviço público. Se nossa comunidade está indo bem é porque as próprias pessoas de lá correram atrás para suprir suas deficiências. Oxalá todas as comunidades tivessem informação para isso. A história dos quilombolas não é fácil de contar. O Vale do Ribeira tem um movimento consolidado e mi-nha comunidade se destaca por concentrarmos um maior número de lideranças. Isso tem nos favorecido no desenvolvimento de projetos, se reflete na busca pela segurança alimentar, pela sustentabilidade”, explica Oriel Rodrigues, 34 anos, advogado, professor de História no pré-vestibular da comunidade e representante das comunidades do estado de São Paulo na Coordenação Nacional de Articulação das Co-munidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

Se as lideranças mais velhas não ti-veram oportunidade de estudar, foi a parti-cipação intensa em movimentos sociais que contribuiu na sua formação, atitude seguida pelas pessoas mais jovens. Foi o caso de José Rodrigues da Silva, 43 anos, uma das princi-pais lideranças no quilombo e coordenador da associação: “Quando falamos de liderança e conhecimento, sempre digo que existem dois tipos de faculdade, a formal e a faculdade da vida, do mundo. Esta, onde aprendi, é a mais difícil porque temos que aprender tudo ao mesmo tempo. Muito cedo percebi que, se quisesse ajudar a resolver as necessidades do nosso povo, precisava aprender mais em menos tempo. Por isso, fui conhecer movi-mentos, tentar participar para aprender a nos organizar”, diz ele, que estudou até a sétima série do ensino fundamental.

Para Zé Rodrigues, outro fermento que faz com que a comunidade se desenvolva é a noção muito forte de coletividade. “Ficamos aqui isolados até há algum tempo e nossos ancestrais sempre valorizaram a idéia do pa-rentesco, da amizade, do trabalho conjunto. Eles achavam que esse era o melhor caminho

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para um grupo que já vivia isolado, se não nos uníssemos, se ficássemos dispersos, nada daria certo. Essa linhagem continua até hoje, somos todos parentes, vivemos em família. Se alguém tem um problema, todos ajudam. Abrimos mão da ascensão individual em prol da ascensão coletiva, preferimos trabalhar e lutar juntos para alcançar os mesmos objetivos.” Para se ter idéia de até onde vai essa noção de conjunto, as terras do quilombo não têm divi-sas, cada pessoa planta onde quer, cria seus animais em pasto comunitário, até existem roças individuais, mas, na hora da colheita, todo mundo participa. “Ninguém aqui é rico nem miserável, temos o suficiente para viver, terra para trabalhar, rio para pescar, temos muita coisa boa para usar coletivamente”, enfatiza.

Elas ganham mais

A população de Ivaporunduva tem mais homens que mulheres (60% contra 40%, segundo levantamento realizado em 2001 pelo ISA). Mas também conta com lideranças femininas. É o caso de Maria da Guia Marinho da Silva, 43 anos, casada com Zé Rodrigues. Ela participa do grupo de produção e comer-cialização do artesanato da palha da bananeira

– um dos projetos de desenvolvimento citados – e também é membro da Pastoral da Criança.

Uma vez por mês, realiza visitas mensais de orienta-ção às famílias dessa e de outras comu-nidades, a respeito de saúde, higiene e alimentação, cui-dados com grávidas e crianças, fazendo ainda a pesagem de bebês e ensinan-do a multimistura, complemento vita-mínico de combate à desnutrição. Para Maria, oferecer um melhor atendimento de saúde é ainda um desafio na região.

“Temos em Eldorado um posto

que presta os primeiros-socorros, contamos com agentes comunitários de saúde toda semana, mas ainda é pouco. Gostaríamos de ter um atendimento específico para o povo quilombola, um médico que ficasse aqui e acompanhasse nosso cotidiano. Hoje, quando procuramos um hospital fora da comunidade, somos respeitados, mas já fomos bastante discriminados e sofremos muito com isso, eram horas de fila de espera para nada. Ago-ra, somos mais reconhecidos até pela nossa atitude”, afirma.

O grupo de artesanato, do qual Maria faz parte, formou-se em 1997, depois de um curso de capacitação oferecido pela Esalq. Da turma de dez pessoas, a maioria era homem, mas aos poucos as mulheres lideraram o proje-to. “Como se tratava de um trabalho detalhado e que precisava ter paciência para fazer e ven-der, os homens se afastaram e nós tomamos conta. Nessa época, as mulheres não tinham uma fonte de renda, sempre trabalhamos na roça, só para sobreviver, não havia dinheiro. Por isso, nos interessamos pelo artesanato”, conta Araci Atibaia Pedroso, 61 anos, que coordena o grupo.

O aprendizado foi passando de uma para outra. Hoje, cerca de 20 mulheres, de 14 a 70 anos, estão envolvidas na atividade que já rende uma média de R$ 300 por família. Depois do primeiro, outros cursos, em parceria com o ISA, foram organizados, e a quantidade de artesãs aumentou. A matéria-prima é o tronco da bananeira, de onde se tiram filetes, mais grossos ou mais finos, trançados com a ajuda de um tear e ornamentados com sementes lo-cais para se transformar em pulseiras, colares, bolsas, carteiras, tapetes, esteiras, caixinhas e cestas. Cada peça tem uma etiqueta, com a his-tória resumida da comunidade. Recentemente, foi construída uma casa para servir de oficina, armazenamento e venda das peças. Porém, por ser um local onde não bate sol e a palha da banana ser um material sensível à umidade, elas só usam o espaço para venda, fazendo e guardando os produtos em casa.

Esse é um obstáculo a galgar, aprender a livrar a palha dos fungos, o que as tem im-pedido de estocar material. “Estamos fazendo um curso para resolver isso, assim poderemos aumentar bastante a produção. Temos tido bons resultados e o nosso esforço tem sido recompensado. Muita gente que não conhecia o quilombo acaba conhecendo nossa história através desse trabalho”, diz Araci.

As vendas são feitas na própria sede,

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para visitantes, mas também em exposições, feiras e eventos na capital. Para ela, a atividade transformou a vida das mulheres. “Alguns ho-mens não gostaram quando deixamos o traba-lho nas roças em troca do artesanato, mas não dá mesmo para fazer as duas coisas. Depois, aos poucos, eles perceberam que passamos a ajudar no sustento da família, a melhorar as condições da casa, comprar material de escola para as crianças e, às vezes, até fazer um pas-seio. O que mudou muito na vida da gente é que o tempo todo dependíamos dos homens e, a partir do momento em que começamos a ter renda também, eles nos deram mais valor”, enfatiza.

Um ponto a destacar é que o traba-lho artesanal vem dando mais lucros que o cultivo da banana orgânica, outro projeto de desenvolvimento sustentável, coordenado pelos homens da comunidade. “Esta é uma atividade em fase de estruturação, mas já tem significado importante geração de renda para algumas famílias locais. Os cursos realizados motivaram o ingresso de outras pessoas na atividade, aumentando o número de artesãs e a quantidade de peças produzidas, assim como as possibilidades de comercialização. A criação da identidade visual, logomarca e de etiquetas para identificação foi de fundamental impor-tância para a maior visibilidade dos produtos e para agregar valor às peças. Atualmente, uma peça do artesanato produzido com a palha, um produto secundário da atividade agrícola, chega a ser comercializada por até três ou quatro vezes o preço de uma caixa de bananas orgânicas”, explica o coordenador dos projetos

no ISA, Nilto Ignácio Tatto.

Turismo e educação

Buscando um futuro menos acidentado para a juventude do quilombo, o que não falta é incentivo para estudar, aprender, participar de cursos, seminários e eventos dentro e fora da comunidade. Mas sempre com a consciência de que esse aprendizado precisa ser aplicado ali. O curso pré-vestibular comunitário, orga-nizado em 2004 com apoio da rede Educafro, levou, no início deste ano, 13 estudantes para a universidade. “Tentamos mudar a idéia de que negro não serve para pensar, não serve para ser intelectual. Das pessoas que entraram na universidade agora, quatro estão fazendo Direito. Aqui no Brasil, Medicina e Direito ainda são cursos para elite, temos que quebrar esses privilégios. Tenho certeza de que essas pessoas, quando terminarem os estudos, vão trabalhar com a nossa comunidade, a simbiose que temos favorece isso”, afirma Oriel.

Sua trajétoria é um exemplo da dedicação de quem faz parte dessa família. Nascido em Iva-porunduva, teve que deixar a comunidade ainda pequeno para acompanhar seu pai que arru-mou trabalho na capital. Voltaram quando ele estava com 12 anos. Oriel continou estudando em outro município, Itapeúna, decidido a fazer um curso técnico de contabilidade. “Nesse período, já participava como militante da causa quilombola, fosse contra as barragens ou pelo registro da terra. É difícil conciliar a militância com o estudo, queria muito ter o curso superior. Cheguei a fazer História, Biologia e Antropo-

Maria da Guia e o grupo de mulheres do artesanato: o trabalho tem garantido uma renda de R$ 300 mensais às famílias da comunidade de Ivaporunduva. Recentemente, foi construída uma sede para expor e vender os trabalhos

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logia, mas terminei o curso de Direito, no ano passado. Isso tudo me serviu de aprendizado, porém meu conhecimento maior vem mesmo da militância em movimentos sociais”, conta.

As representações em instâncias fora da comunidade, como no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), na Pastoral da Criança e na Conaq, são uma mostra da força da comunidade de Ivaporunduva. As representações também possibilitaram a participação nas discussões durante o pro-cesso constituinte que resultou na inclusão do Artigo 68 na Constituição Federal – este obriga o Estado a reconhecer, regularizar e titular os territórios quilombolas de todo o Brasil. Ivaporunduva está entre as poucas já tituladas, mas essa titulação só alcançou um terço das terras originais, são pendências a

resolver no futuro.“Antes das comunidades quilombolas

terem o direito garantido pela Constituição, era comum as pessoas saírem daqui por falta de oportunidades, elas se dirigiam à capital ou às cidades vizinhas para tentar a sorte. Depois que tivemos esse direito garantido, a comunidade se organizou, nos estruturamos em um sistema coletivo de trabalho. Hoje, é comum a pessoa sair para fazer um curso, temos oportunidade de nos preparar pensan-do em dar esse retorno para a comunidade”, anima-se Paulo Silvio Pupo, 25 anos, uma das vozes jovens envolvidas no trabalho de preservar a história da comunidade.

Ele é um dos três monitores que acompanham estudantes e professores(as) de escolas particulares da capital e de outros municípios em visitas semanais à comuni-dade. Trata-se de uma verdadeira aula de educação ambiental e cidadania. Dentro da igreja, os grupos assistem a uma palestra sobre a história do quilombo – dura cerca de 30 minutos, com ênfase nas lutas que enfrentaram, na questão do preconceito, o convívio com a terra, a corrida pelos direitos e a organização comunitária como chave dessas conquistas –, conhecem os projetos que estão sendo desenvolvidos e almoçam uma comida tipicamente quilombola – como frango caipira com mandioca, arroz e feijão mulatinho, verduras e legumes, suco de lima e doce de banana, tudo cultivado no local, sem agrotóxicos.

“Desenvolvemos com os estudantes uma atividade turística mais voltada para o étnico e o cultural. São estudantes a partir da quinta série que querem conhecer como vivemos. Mas se torna uma oportunidade de repassar informações sobre a população qui-lombola no Brasil e também mudar uma visão distorcida que a maioria tem a nosso respeito. Em geral, as escolas passam informações bem equivocadas sobre o assunto, é algo que não está em livro nenhum, daí ser tão importante essa troca. Com certeza, eles também serão dis-seminadores dessas informações”, afirma Paulo.

Críticas como essa culminaram em um projeto de construção de uma escola coletiva para as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira. A escola, de ensino fundamental e médio, está sendo instalada na comunidade de André Lopes – fundada por famílias que vieram de Ivaporunduva. A idéia é facilitar a ida das crianças, já que hoje as comunidades só dispõem de escola até a quarta série e, a

Lideranças jovens desenvolvem o projeto de parceria com estudantes para preservar a história quilombola. Da esquerda para a direita, Ladio dos Santos, Paulo Pupo e Denildo

A escola de primeira a quarta série foi recentemente reformada para atender às demandas locais

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partir daí, elas têm que estudar fora. A intenção também é permitir um ensino diferenciado.

Quem explica é Maria da Guia: “Essa foi uma reivindicação das comunidades por-que nossos filhos têm que sair de casa muito cedo, 3h30, 4h30 da manhã, para estudar em outros municípios. Percebemos que, com essa dificuldade, eles não vão conseguir concluir os estudos, queremos que eles estudem em uma escola com horários melhores, que descansem mais. Queremos também formar as crianças dentro dos nossos costumes, uma educação vol-tada para o trabalho que fazemos para que, no futuro, eles possam administrar a comunidade”.

O projeto de intercâmbio com as esco-las foi discutido por dez anos e colocado em prática há três. Isso porque abrir a comunidade para o público externo é algo tratado com particular cuidado. “O estatuto da associação reza o que pode o que não pode. Aqui não entram drogas, não há problemas de roubo. Nossos filhos estudam na cidade, mas têm essa consciência, não trazem nada disso para cá. Pessoas estranhas quase não entram aqui, fica mais fácil controlar. Trata-se de um bairro rural de uma cidade no interior e na nossa cultura não tem essas coisas”, explica Zé Rodrigues.

Por esse motivo, a pousada, constru-ída em parceria com o governo do estado ano passado para estimular o ecoturismo na região, não começou a funcionar. A idéia não é abrir o prédio para hospedagem comum, mas incluir a estadia em um pacote no qual a história quilombola e a preservação da natureza sejam o prato principal. E como o projeto ainda não foi acertado, as portas da pousada continuam fechadas ao público.

Banana para dar e vender

Um dos projetos que mais têm movimentado a comunidade de Ivaporunduva é o de manejo orgânico da banana. A idéia é aprimorar a produção e a comercialização e agregar valor à banana produzida, visando independência e autonomia da comunidade com relação ao mercado. O projeto possibilitou a aquisição de um caminhão, o que tem possibilitado aos produtores alcançarem mercados mais vanta-josos, sem a interferência de atravessadores – que ficavam com a maior parte do lucro. “Os produtores orgânicos têm recebido até R$ 5 pela caixa de 20 quilos da fruta verde (não--climatizada). Se estivessem comercializando com os atravessadores, estariam recebendo

em torno de R$ 1,50 a caixa”, defende Nilto.Outro resultado importante foi a

certificação de 35 produtores pelo Instituto Biodinâmico (IBD). A certificação atesta que o produto foi feito dentro de padrões orgânicos de produção, sem uso de adubos e defensivos agrícolas químicos. O padrão de certificação orgânica IBD inclui critérios sociais e ambientais, tais como não-utilização de trabalho infantil, estímulo à preservação e à recuperação de áreas nativas. Trata-se de um selo de qualidade e pureza do produto, que acaba se tornando também um cartão de visita no momento da venda.

“Antes de conhecer o ISA, já estávamos buscando projetos de geração de renda, mas essa parceria ajudou a fortalecer os projetos, eles têm um corpo técnico que nos ajuda bastante. De seis anos para cá, nossa situa-ção começou a mudar, a idéia é buscar uma qualidade de vida cada vez melhor”, diz Zé Rodrigues.

O próximo desafio é comer cia lizar a fruta já ma dura (climati za da), cujo valor chega a ser o dobro da fruta verde. “Para isso, já foi adquirida uma câmara de clima ti zação. No momento, estamos trabalhando na capacita-ção téc nica da comunidade”, anima-se Nilto. Também es tá sendo instalada uma unidade de processamento de frutas para a produção de derivados orgânicos como banana-passa e doces.

Da devastação à preservação

O terceiro proje-to de desenvol-vimento é de re-povoamento do palmiteiro juçara. A iniciativa, além de resolver um pro-blema ambiental grave, já que a es-pécie corria risco de extinção, vem solucionando um aspecto social re-levante – o retorno de boa parte da força de trabalho masculina para a comunidade. Du-rante muitos anos, era comum a re-

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tirada clandestina do palmito, entregue por qualquer dinheiro a atravessadores. Para fazer esse trabalho, alguns homens da comunidade se embrenhavam na mata por semanas, dei-xando abandonadas suas famílias em atividade perigosa para eles, danosa ao meio ambiente e praticamente sem retorno financeiro.

“Essa devastação acontecia por falta de informação da população e também porque não estávamos preparados para receber tanta restrição ambiental. A partir da década de 80, nossa região passou a sofrer uma repressão forte por parte dos órgãos de fiscalização do estado por guardar uma porção rara de mata atlântica, não podí-amos desmatar para sobreviver. Por exemplo, se vinha o guarda florestal e dizia que não podíamos fazer roça em determinada área, a população começava a ver aquele guarda como inimigo, não tínhamos senso crítico para trabalhar de forma cooperada com o

meio ambiente, como acontece hoje. Assim, muitos partiram para a clandestinidade, cortando palmito para sobreviver”, esclarece Denildo Rodrigues, 23 anos, irmão de Oriel.

Segundo informações do ISA, o Vale do Ribeira, onde fica a comunidade de Iva-porunduva, abriga um valioso patrimônio ambiental. São 2,1 milhões de hectares de florestas, que representam 21% dos rema-nescentes de mata atlântica do Brasil, 150 mil hectares de restingas e 17 mil hectares de manguezais. Em 1999, a Reserva de Mata Atlântica do Sudeste, formada por 17 muni-cípios do Rio Ribeira do Iguape, entrou para o time das seis áreas brasileiras tombadas como Patrimônio Natural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco).

O projeto tem possibilitado a reintro-dução da espécie em 200 hectares do terri-tório quilombola de Ivaporunduva, por meio da coleta e dispersão das sementes. Até o momento, a atividade viabilizou a dispersão de cerca de 3 mil quilos de sementes, cole-tadas na própria comunidade. O trabalho é feito em mutirões, com o envolvimento e mobilização de grande parte das famílias.

A iniciativa trabalha com a perspec-tiva de manejo da espécie no futuro, seja o palmito, a semente ou a polpa. Além de ser mais uma fonte de renda para a comunida-de, é importante considerar o seu papel na manutenção da biodiversidade da região. “O potencial ecológico da espécie está na interação com a fauna local, pois funciona como fonte de alimento de grande parte dos animais. Isso indica que o palmiteiro é uma espécie estratégica para a manutenção da dinâmica dos ecos siste mas”, esclarece Nilto.

Plantula do palmiteiro juçara: o projeto de repovoamento da espécie envolve todas as famílias de Ivaporunduva e salvou-a do risco de extinção

O projeto de replantio do palmiteiro juçara se estende por 200 hectares do território quilombola

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Interesses empresariais ameaçam o ValeHá cerca de dez anos, as comunidades quilombolas do Vale

do Ribeira têm se articulado para tentar impe-dir a liberação do licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto – prevista para ser construída entre os municípios de Ribeira/SP e Adrianópolis/PR, no Rio Ribeira do Iguape.

Se concretizada, sua instalação está pre-vista para acontecer no alto Vale do Ribeira, mas, segundo os estudos já realizados pelo ISA e publicados na cartilha Tijuco Alto Saiba porque ela não interessa ao Vale do Ribeira, em 2002, a usina vai prejudicar, direta e indi-retamente, vários outros municípios situados no médio e baixo Vale.

A Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto faz parte de uma proposta de construção que engloba pelo menos mais três usinas a serem construídas ao longo do rio – é o que consta no estudo de inventário do Rio Ribeira de Iguape, aprovado em 1994 pelo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE) e pela Eletrobrás. Se essas barragens forem construídas, uma área de 11 mil hectares será inundada para sempre – a área, equivalente a 11 mil campos de futebol, inclui várias comunidades quilombolas, entre elas Ivaporunduva, dois parques estaduais e áreas urbanas como o centro histórico da cidade de Iporanga.

O projeto foi planejado pela Companhia Brasileira de Aluminío (CBA), que pertence ao Grupo Votorantim, com a intenção de aumentar a oferta de energia elétrica para sua indústria de alumínio. Segundo dados do Ibama de 1997, essa energia extra seria exclusivamente destinada ao aumento da produção da empresa.

Nem mesmo no período da construção da barragem – um arco de concreto de 150 metros de altura, comparável a um prédio de 15 andares –, as pessoas das comunidades do Vale do Ribeira seriam beneficiadas, já que, do conjunto de 1.500 trabalha do res(as) necessários(as) à empreitada, apenas 10% se-riam da região. Tampouco vai gerar empregos locais quando estiver funcionando, a previsão é de ter uma equipe de apenas 123 pessoas.

* anacris bittencourt

Subeditora da revista

Democracia Viva.

Agradeço a colaboração

de Fábio Graf Pedroso,

engenheiro agrônomo,

e Fábio Zanirato,

engenheiro florestal,

pesquisadores do ISA,

que me acompanharam

na visita à Ivaporunduva

e forneceram

informações valiosas

incluídas neste texto

[email protected]

“Quando surgiu o boato com relação à construção das barragens, tentamos nos arti-cular com outras comunidades e, aos poucos, criamos uma consciência crítica com relação às barragens. De acordo com experiências de outras comunidades, acontece tudo ao con-trário do que as empresas falam. Diziam que as barragens levariam desenvolvimento para as regiões atingidas, quando na verdade elas ficaram muito mais pobres. As pessoas que antes viviam da terra agora passam fome”, la-menta Denildo Rodrigues, liderança jovem em Ivaporunduva, integrante do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), em Brasília, e do Movimento dos Ameaçados por Barragens (Moab), que se organizou no Vale do Ribeira.

Denildo se referiu à construção de barragens para atender aos interesses do empresariado fazendo uma comparação com o problema da terra, as barragens seriam lati-fúndios de água: “Hoje temos uma imensidão de água represada, são 2 mil barragens em todo o Brasil, isso representa o território do estado do Tocantins. Em geral, as populações atingidas, que antes moravam às margens dos rios, perdem o acesso à água de qualidade e passam a ter que disputar uma água barrenta com animais, como está acontecendo na Paraí-ba. É muito doído perceber que hoje o dinheiro está acima dos direitos humanos”, conclui.

Nilto Tatto, do ISA, tem uma visão mais otimista: “Acredito que a articulação das comunidades quilombolas com outros setores da sociedade conseguirá impedir a construção das barragens. A sociedade civil organizada também pode contribuir com essa luta, par-ticipando do processo de mobilização já em curso no Vale e exigindo que sejam realizados estudos de impacto de toda a bacia antes de iniciar qualquer obra”, incentiva.

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Resistênciae cultura em Valença

thais Zimbwe*

Preservar a memória é uma das maneiras de construir a história. Com esse objetivo,

a comunidade quilombola São José da Serra realiza todos os anos a Festa de Jongo,

para comemorar o Dia dos Pretos Velhos e a abolição da escravatura. No dia 14 de

maio deste ano, cerca de 600 pessoas puderam conhecer a cultura e as tradições

africanas preservadas numa comunidade quilombola.

O quilombo São José da Serra, localizado na cidade de Valença, no interior

do estado do Rio de Janeiro, existe há cerca de 150 anos e é composto por apro-

ximadamente 200 negros e negras. A comunidade é referência pela preservação

das tradições africanas mantidas por moradores(as) e pela divulgação de seus

patrimônios culturais, tais como a umbanda e o jongo. A comunidade recebeu,

este ano, a medalha estadual de direitos humanos Austregésilo de Athayde, pela

importância do trabalho social e cultural local.

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“Foi muito importante para nós recebermos essa medalha. Nós aqui da comunidade procuramos manter nossas tradições vivas, podendo mostrá-las e ensiná-las para quem vem nos conhecer. Em dias de festa, procu-ramos dançar melhor o nosso jongo, cantar melhor as nossas cantigas, para que todas as pessoas saiam daqui melhores do que entra-ram”, comenta Toninho Canecão, presidente da Associação de Moradores do Quilombo São José da Serra.

“Eu vou tocar minha viola, eu sou ne-gro cantador. O negro canta, deita e rola lá na senzala do senhor. Tem que acabar com essa história de negro ser inferior, o negro é gente como o outro, quer dançar samba e ser doutor. O negro mora em palafita, não é culpa dele, não, senhor. A culpa é da Abo-lição, que veio e não o libertou”, diz a letra da cantiga cantada na missa afro que abriu a Festa de Jongo.

Para festejar o Dia dos Pretos Velhos, divindades cultuadas pelas rel igiões de matrizes africanas, moradores e morado-ras realizam anualmente a Festa de Jongo, quando são praticadas diversas manifestações culturais africanas, preservadas no quilombo desde a época da escravidão. Uma missa afro, na qual se mescla o catolicismo com a um-banda, abriu a festa, e todo o público pôde participar da celebração. “É muito bonita toda essa festa, nunca pensei que a cultura africana fosse tão forte e bem representada, como estou vendo aqui no quilombo. Sou presença garantida ano que vem”, afirma Amélia Santtana, que foi para a festa numa excursão de São Paulo.

A folia de reis, a marujada, o calango, a capoeira, o jongo, entre diversas outras manifestações culturais, puderam ser confe-ridas pelo público nos dois dias de festa no quilombo. As pessoas que lá compareceram conheceram também o trabalho de agricultura de subsistência, a crença religiosa, o artesana-to tradicional, as casas construídas de adobe

(tijolo de barro) e cobertas de sapê, o ferro à brasa e o fogão à lenha, que fazem parte do cotidiano dos(as) moradores(as) do quilombo desde a chegada de seus antepassados, por volta de 1850.

Dona Joanna, uma das moradoras mais antigas, nunca saiu da comunidade. “Não pre-ciso ir até a cidade, tudo que preciso tenho aqui e está tudo muito bom. Os jovens que sentem vontade de ir lá para fora a todo tem-po querem aprender outras coisas, estudar e trabalhar”, diz.

Protagonismo juvenil

No quilombo São José da Serra, a juventude tem papel importante, pois é responsável por grande parte das tarefas dentro da comunidade. Como acontece na liturgia, a maioria dos(as) integrantes é composta de mulheres jovens. Elas organizam as celebrações religiosas, regem as missas afros, entre outras atividades.

“Temos que nos preocupar com nosso futuro, e o futuro da comunidade será definido pelo nosso comportamento. Amamos nossa cultura e temos a obrigação de preservá-la para que não morra ou seja absorvida pela modernidade. É complicado para nós, jovens, que temos acesso às informações do mundo lá fora, não nos influenciarmos pelas outras coisas, mas mesmo assim temos que trabalhar na cultura, plantar e fazer nosso artesanato, cantar nossas músicas e tocar o atabaque. Dessa maneira, a cultura do quilombo não acabará”, explica Maria de Lourdes, de 24 anos, uma das integrantes da liturgia do quilombo.

Uma das manifestações mais caracterís-ticas do quilombo São José é o jongo, consi-derado um dos mais tradicionais do Brasil. Ele permanece intacto desde os tempos do Brasil colonial, já teve suas cantigas gravadas em CD e sua história contada em livro. O CD-livro Jongo do Quilombo São José foi gravado em outubro de 2004, registrando a música, a história e a cultura do jongo local.

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O jongo é uma dança trazida da África pelos escravos e escravas. Também conhe-cido como caxambu, foi uma das poucas possibilidades de diversão e manifes ta ção rel igiosa dos(as) escravos(as), reunindo can to e dança em uma grande festividade. “Dançar e cantar o jongo é preservar a cul-tura de nossos antepassados, posso tocar uma noite inteira, sempre fico muito feliz e agradecido de ter herdado essa dança e poder passá-la para meus filhos e todos os que querem aprender”, expressa Jorge, ao lado de seu atabaque, antes de iniciar uma roda de jongo.

Em todo o estado do Rio de Janeiro,

existem 14 comunidades rema-nescentes de quilom bos, nas quais vivem cerca de 770 famílias. No caso do quilombo São José da Serra, os(as) ne gros(as), após a libertação, permaneceram na fazenda, consti-tuindo sua comunidade.

O quilombo de Valença não tem a característica de um sítio de escra vos(as) fugiti vos(as). Ele ocupa duas áreas demar cadas, num total de 25 hectares. A comunidade foi reconhecida há seis anos como re-manescente de quilombo, abrindo caminho para a titulação de suas terras. Entretanto, esse processo é bastante lento e ainda não está con-cluído, acarretando sérios problemas.

“A demora das autoridades em resolver a questão sobre a desapropriação das terras que nos pertencem dificulta muito nossa sobrevivên-cia. As cercas espalhadas ao nosso redor furam as bolas quando jogamos futebol e são um perigo para nossas crianças. Elas impedem o plantio dos nossos alimentos, dificultando muito nosso dia-a-dia”, desabafa Toninho.

Motivados pela forte identidade cultural, a comunidade do quilombo São José da Serra consegue se manter como uma das mais belas do país, sendo um relato vivo da história de negros e negras no Brasil.

Pretos velhosA comemoração em homenagem aos pretos velhos ocorre no dia 13 de maio, data em que foi assinada a Lei Áurea, razão pela qual a umbanda comemora esse dia. Os pretos velhos são considerados guias ou protetores somente pelos(as) umbandistas, seguidores(as) da umbanda, religião de matriz africana cultuada no Brasil. Representam todos os espíritos de humildade, de serenidade e de paciên-cia, que, como escravos, chegaram ao Brasil, para onde foram trazidos negros e negras de todas as nações africanas, reis, rainhas, príncipes, além de religiosos(as) de várias culturas.

Essas div indades são or iginár ias dos(as) escravos(as) no cativeiro, que eram submetidos(as) a condições desumanas e implacáveis de trabalho forçado e a torturas. A vida sofrida nas senzalas, onde somente mais fortes sobreviviam, reservava-lhes, entre tantas humilhações, comer os restos de comida dos senhores. Esse fator originou a feijoada, um prato da culinária bastante apreciado hoje.

Apesar de tudo, esses povos renegados pela sorte trouxeram em seus espíritos a ciência e a

sabedoria de ances-trais, empregando seus dotes no uso das ervas, plantas, raízes e tudo o mais que estava dispo-nível na natureza.

Depois de mor-tos(as) , passaram a surgir em lugares ade-quados, principalmente para se manifestarem. Esses espíritos se com-prometiam com a alta espiritualidade a ajudar todas as pessoas necessitadas, independentemente de cor ou credo.

No dia 13 de maio, os(as) adeptos(as) da um ban-da comem feijoada com as mãos, como uma forma de reverenciar os pretos velhos.

* thais Zimbwe

Formanda de Jornalismo

pela Centro Universitário

da Cidade, estagiária de

Comunicação do Ibase.

Correspondente do

Portal Mundo Negro

e colunista dos sites

Hip Hop BR, Epidemia

Urbana e do Afro

Reggae

e s P e c i a l s q u i l o m b o s

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Jun / Jul 2005 41

A Festa no Quilombo São José teve a apresentação da Folia de Reis, uma manifestação cultural de origem portuguesa que ainda sobrevive em cidadezinhas brasileiras

A missa afro do Quilombo São José é liderada pela juventude. A celebração é animada com cantigas ao som de atabaques, violão e cavaquinho

resistência e cultura em valença

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42 democracia viva nº 27

a r t i g ohenri acselrad*

Novas articulações

A morte de uma criança, ocorrida em agosto de 2004 em Barra Mansa, no Rio de Janeiro –

quando brincava em um terreno baldio onde produtos químicos entraram em combustão –,

chamou mais uma vez a atenção para o descalabro do lançamento descontrolado de resíduos

industriais perigosos nos espaços públicos, notadamente nos bairros habitados por populações

de baixa renda. Diante de ocorrências trágicas como essa, cabe abrir espaço para a discussão

mais geral sobre a desigualdade social na exposição da população aos riscos ambientais em

nosso país. Esse debate parece estar apenas em seu começo entre as forças empenhadas no

processo de construção democrática. E poderia partir da pergunta: como os movimentos

sociais no Brasil poderiam melhor articular a questão dos riscos ambientais com o debate sobre

as condições de existência da população e com o processo de construção de direitos no país?

Como evidenciar a dimensão ambiental do projeto de construção democrática da sociedade

brasileira? Como fazer entender que os incêndios florestais em Roraima, a seca no Nordeste,

a desigual exposição dos grupos sociais aos riscos da poluição são a expressão do mesmo

processo de produção da desigualdade ambiental que distancia pessoas ricas e pobres, brancas

e negras em nosso país? É da experiência dos próprios movimentos sociais que esperamos

em prol

Page 44: Revista Democracia Viva 27

Jun / Jul 2005 43

A desigualdade ambiental é uma das expres-sões da desigualdade social que marca a histó-ria do nosso país. As pessoas pobres estão mais expostas aos riscos decorrentes da localização de suas residências, da vulnerabilidade das mo-radias a enchentes e desmoronamentos, além da ação de esgotos a céu aberto. Há, assim, forte correlação entre indicadores de pobreza e a ocorrência de doenças associadas à poluição por ausência de água e esgotamento sanitário ou por lançamento de rejeitos sólidos e emis-sões líquidas e gasosas de origem industrial. Essa desigualdade resulta, em grande parte, da vigência de mecanismos de “privatização de fato” do uso de recursos ambientais. Seu en-frentamento requer dar visibilidade a processos pouco visíveis ao senso comum.

Ante os indicadores do que o pensa-mento dominante considera como principal problema ambiental – o desperdício –, em-presas e governos costumam propugnar ações da chamada “modernização ecológica”, desti-nadas essencialmente a promover ganhos de eficiência e a ativar mercados. Trata-se, nessa perspectiva, de agir exclusivamente dentro da lógica econômica, atribuindo ao mercado a capacidade institucional de resolver a de-gradação ambiental, economizando o meio ambiente e abrindo mercados para novas tecnologias ditas limpas. Nenhuma referência é feita, por certo, por esses atores dominantes, à associação entre degradação ambiental e in-justiça social. Por sua vez, os atores sociais que percebem a importância de tal relação lógica, ao contrário, não confiam no mercado como instrumento de superação da desigualdade ambiental e promoção de justiça ambiental. Para eles, o enfrentamento da degradação do meio ambiente é o momento da obtenção de ganhos de democratização, e não apenas de ganhos de eficiência e de mercado, pois há uma ligação lógica entre o exercício da democracia e a capacidade de a sociedade se defender da injustiça ambiental.

Nas conjunturas recessivas, o crescimento

do desemprego tende a ser acompanhado de uma redução da capacidade de organização e resistência da população trabalhadora, acarre-tando, conseqüentemente, uma diminuição dos cuidados empresariais com a manuten-ção dos equipamentos, uma intensificação dos ritmos de trabalho das pessoas que não perderam seus empregos, o crescimento dos acidentes de trabalho e da irresponsabilidade ambiental das empresas. A democratização do controle sobre os riscos é, portanto, muito mais viável de ser conquistada nos períodos de menor incidência do desemprego e de maior capacidade de mobilização dos atores sociais.

Distribuição desigual

As conjunturas históricas podem explicar a maior ou menor propensão de os atores sociais mobilizarem-se na denúncia da irresponsabili-dade ambiental de mercado. Não há nenhuma lei natural que imponha que as populações destituídas coloquem-se automaticamente ao lado dos propósitos ambientalmente danosos de empreendedores pouco responsáveis. Os movimentos por justiça ambiental vêm, ao contrário, mostrando como as ligações entre as lutas por justiça social e por proteção ambiental podem se articular.

O movimento de justiça ambiental constituiu-se inicialmente nos Estados Unidos, na década de 1980, fruto de uma articulação criativa entre lutas de caráter social, territorial, ambiental e de direitos civis. Já a partir do fim da década de 1960, redefiniu-se em termos ambien-tais um conjunto de embates contra as condições inadequadas de saneamento, de contaminação química de locais de moradia e trabalho, e contra a disposição indevida de lixo tóxico e perigoso. Na década de 1970, sindicatos preocupados com saúde ocupacional, grupos ambientalistas e organizações de minorias étnicas articularam-se para elaborar em suas pautas o que entendiam por “questões ambientais urbanas”.

Alguns estudos apontavam já a dis-

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44 democracia viva nº 27

tribuição espacialmente desigual da poluição segundo a raça das populações a ela mais expostas, sem, no entanto, que se tenha con-seguido mudar a agenda pública. Em 1976 e 1977, diversas negociações foram realizadas, tentando montar coalizões destinadas a incluir na pauta das entidades ambientalistas tradicio-nais o combate à localização de lixo tóxico e perigoso, predominantemente em áreas de concentração residencial de população negra.

A constituição de um movimento afir-mou-se a partir de experiência concreta de luta inaugurada em Af ton, no condado de Warren, na Carolina do Norte, em 1982. Ao tomarem conhecimento da iminente contaminação da rede de abastecimento de água da cidade, caso fosse nela instalado um depósito de policlorina-to de bifenil, a população do condado organi-zou pro testos maciços, deitando-se diante dos caminhões que para lá traziam a perigosa carga. Com a percepção de que o critério racial estava fortemente presente na escolha da localização do depósito daquela carga tóxica, a luta radica-li zou-se, resultando na prisão de 500 pessoas. A população de Afton era composta de 84% de negros e negras; o condado de Warren, de 64%; e o estado da Carolina do Norte, de 24%.1 Diante de tais evidências, estreitaram-se as convergências entre o movimento dos direitos civis e dos direitos ambientais.

Nascido de lutas de base contra iniqüi-dades ambientais locais, o movimento culminou elevando a “justiça ambiental” à condição de questão central na luta pelos direitos civis. Ao mesmo tempo, induziu a incorporação da desi-gualdade ambiental na agenda do movimento ambientalista tradicional. Como o conhecimento científico é correntemente evocado em estratégias de redução das políticas ambientais em meras so-luções técnicas, o movimento de justiça ambiental estruturou suas estratégias de resistência recor-rendo, de forma inovadora, à própria produção de conhecimento.

Racismo ambiental

Notadamente, o movimento recorreu aos resul-tados da pesquisa multidisciplinar que promoveu sobre as condições da desigualdade ambiental no país. Momento crucial dessa experiência foi a pesquisa realizada em 1987, a pedido da Comissão de Justiça Racial da United Church of Christ, que mostrou que “a composição racial de uma comunidade é a variável mais apta a explicar a existência ou inexistência de depósitos de rejeitos perigosos de origem comercial em

uma área”.2 Evidenciou-se, então, que a pro-porção de residentes que pertencem a minorias étnicas em comunidades que abrigam depó-sitos de resíduos perigosos é igual ao dobro da proporção de minorias nas comunidades desprovidas de tais instalações. O fator raça revelou-se mais fortemente cor relacionado com a distribuição locacional dos rejeitos perigosos do que o próprio fator baixa renda. Portanto, embora os fatores raça e classe de renda te-nham se mostrado fortemente interligados, a raça apresentou-se como um indicador mais potente da coincidência entre os locais onde as pessoas vivem e onde os resíduos tóxicos são depositados.

Foi a partir dessa pesquisa que o re-verendo Benjamin Chavis cunhou a expressão “racismo ambiental” para designar “a imposição desproporcional, intencional ou não, de rejeitos perigosos às comunidades de cor”.3 Entre os fatores explicativos de tal fato, alinham-se a disponibilidade de terras baratas em comuni-dades de minorias e suas vizinhanças, a falta de oposição da população local por fraqueza organizativa e carência de recursos políticos das comunidades de minorias, a falta de mobilidade espacial das “mino rias” em razão de discrimina-ção residencial e, por fim, a sub-representação das “minorias” nas agências governamentais responsáveis por decisões de localização dos rejeitos. Ou seja, tornou-se evidente que for-ças de mercado e práticas discriminatórias das agências governamentais concorrem, de forma articulada, para a produção das desigualdades ambientais.

A partir de 1987, as organizações de base começaram a discutir mais intensamente as ligações entre raça, pobreza e poluição, e grupos de pesquisa iniciaram estudos sobre as ligações entre problemas ambientais e injustiça social, procurando elaborar os ins-trumentos de uma “avaliação de equidade ambiental” que procurava introduzir variáveis sociais nos tradicionais estudos de avaliação de impacto. Nesse novo tipo de avaliação, a pesquisa participativa envolveria como co-pro-dutores do conhecimento os próprios grupos sociais ambientalmente desvantajados, viabi-lizando uma apropriada integração analítica entre processos biofísicos e processos sociais. Procurava-se postular, assim, que aquilo que trabalhadores e trabalhadoras, grupos étni-cos e comunidades residenciais sabem sobre seus ambientes deve ser visto como parte do conhecimento relevante para a elaboração não-discriminatória das políticas ambientais.

1 HARTLEY, Troy W. Environmen-tal justice: an environmental civil rights value acceptable to all world vies. Environmental Ethics, vol. 17, p. 278, outo-no, 1995.

2 LAITURI, Melinda; KIRBY, Andrew. Finding fairness in America’s cities? The Search for environmental equity in everyday life. Journal of Social Issues, vol. 50, n. 3, p. 125, 1994.

3 PINDERHUGHES, Rachel. The impact of race on environmental quality: an empirical and theo-re tical discussion. Sociological Perspectives, vol. 39, n. 2, p.

a r t i g o

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Jun / Jul 2005 45

Mudanças ocorreram, então, no próprio Estado. Pressionado pelo Congressional Black Caucus, em 1990, a Envi ronmental Pro tection Agency do governo dos Estados Unidos criou um grupo de trabalho para estudar o risco am-biental em comunidades de baixa renda. Dois anos mais tarde, esse grupo concluiria que havia falta de dados para uma discussão da relação entre equidade e meio ambiente e reconheceria que os dados disponíveis apontavam tendências perturbadoras, sugerindo, por essa razão, maior participação das comunidades de baixa renda e minorias no processo decisório relativo às polí-ticas ambientais.

Em 1991, 600 delegados e delegadas presentes à 1ª Cúpula Nacional de Lideranças Ambientalistas de Povos de Cor aprovaram os “17 Princípios da Justiça Ambiental”, estabe-lecendo uma agenda nacional para redesenhar a política ambiental dos Estados Unidos de modo a incorporar a pauta das “minorias”, comunidades ameríndias, latinas, afro-ame-ricanas e ásio-americanas, tentando mudar o eixo de gravidade da atividade ambientalista naquele país.4 O movimento de justiça am-biental consolidou-se, assim como uma rede multicultural e multirracial nacional – e, mais recentemente, internacional5 –, articulando entidades de direitos civis, grupos comunitários, organizações de trabalhadores e trabalhado-ras, igrejas e intelectuais no enfrentamento do “racismo ambiental” como uma forma de racismo institucional, buscando fundir direitos civis e preocupações ambientais em uma mesma agenda e avançando na superação de 20 anos de dis sociação e suspeita entre am bientalistas e o movimento negro.

Tempo de denúncia

A luta pelo reconhecimento da desigualdade ambiental nos Estados Unidos tem constituí-do um passo importante para a contestação do modelo de desenvolvimento. O lema do movimento tem sido “poluição tóxica para ninguém”, e não simplesmente o de deslocar a poluição de lugar ou “exportar a injusti-ça ambiental” para países onde as classes trabalhadoras estejam menos organizadas. Trata-se de discutir a pauta da chamada “tran sição justa”, de modo que a luta contra a poluição desigual não destrua simplesmente os empregos das pessoas que trabalham nas indústrias poluentes ou penalize as populações dos países menos industrializados para onde as transnacionais tenderiam a transferir suas

“fábricas sujas”.O movimento de justiça ambiental vem

procurando se internacionalizar para construir uma resistência global às dimensões globais da reestruturação espacial da poluição, ou seja, para barrar a lógica perversa do conhecido Memorando Summers,6 no qual, em 1991, o então economista-chefe do Banco Mundial, Law rence Summers, justificava a transferência de riscos técnicos e industriais para os países menos desenvolvidos. Tal mecanismo, dizia ele, seria perfeitamen-te lógico do ponto de vista econômico, pois os baixos salá-rios da periferia tor-nam o custo da vida humano mais baixo. A subpoluição dos países pobres é, por essa lógica, a expres-são de uma inefici-ência a ser corrigida. Embora Summers tenha, em seguida, desmentido a se-riedade de sua as-serção, sabemos que tal processo já exis-tia e veio ganhando mais realidade desde o apro fundamento do processo de libe-rali zação das eco-nomias periféricas. A des lo ca l i zação industr ia l tem se mostrado meio es-tratégico pelo qual as grandes corpo-rações impõem a regressão dos dire-tos sociais e a des-regulação das nor-mas amb ien ta i s . Resistir à chanta-gem da deslocali-zação é uma das motivações centrais dos movimentos por justiça ambiental.

Se, por um lado, sabemos que os me-canismos de mercado trabalham no sentido da produção da desigualdade ambiental – os mais baixos custos de localização de insta-lações com resíduos tóxicos apontam para as áreas onde pessoas pobres moram –, não podemos desconsiderar, por outro lado, que

241, 1996.

4 BRADEN, Anne. Justice envi-ronnementale et justice sociale aux États Unis. Ecologie Politi-que, n. 10, p. 10, 1994.

5 Seis representantes do mo-vimento dos Estados Unidos e das Filipinas estiveram no Rio de Janeiro em 1998, desenvolven-do contatos com ONGs (como o Ibase) e grupos acadêmicos (como o Ippur/UFRJ).

novas articulações em Prol da Justiça ambiental

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46 democracia viva nº 27

é a omissão das políticas públicas que permite a ação perversa do mercado. A experiência do movimento de justiça ambiental mostra como é possível organizar as populações para exigir políticas públicas capazes de impedir que tam-bém no meio ambiente vigore a desigualdade social e racial.

Constituída em setembro de 2001, a Rede Brasileira de Justiça Ambiental tem denunciado a segregação socioespacial como o mecanismo pelo qual se faz coincidir

a divisão social da deg radação am-biental (os r iscos ambientais sendo destinados às pes-soas mais pobres) com a divisão espa-cial da degradação ambiental (o local de implantação das atividades perigo-sas e contaminantes coincidindo com os locais de moradia de população de baixa renda).

De um lado, as empresas evitam investir em trata-mento e incineração de resíduos, dadas as possibilidades de lançá-los em áre-as desvalorizadas, abandonadas pe-los invest imentos públicos em infra--estrutura urbana e hab i t ada s po r populações pobres e menos organ i -zadas . E l a s u su -fruem, ass im, de uma sobreposição de benefícios que lhes permite maxi-

mizar sua liberdade de escolha locacional: economias técnicas (eliminação de etapas dos processos físico-químicos), economias regulatórias (desconsideração de normas técnicas, urbanísticas e ambientais) e econo-mias transferenciais (transferência de custos de tratamento e controle ambiental para o Estado e população).

Mas a realização dessas “economias”

conta também com a formação de um circui-to de autoconsumo e um “submer ca do” de sucata, materiais e utensílios contaminados para uso doméstico e construtivo: uso de to-néis com traços tóxicos para armazenar água (dada a falta de abastecimento de água), uso de areia e materiais contaminados para aplainar terrenos e construir moradias (dada a falta de infra-estrutura urbana e habitacional) e uso de produtos tóxicos como brinquedo (falta de escolas e áreas de lazer). Ou seja, à sobreposição de benefícios para as empresas, soma-se uma sobreposição de condições de destituição para as populações que residem em áreas periféricas: insuficiência de renda, insuficiente acesso a serviços públicos, a infra--estrutura e a capacidade de influência sobre o poder regulatório/fiscalizatório. Assim, a eficiência alocativa empresarial é construída pela mediação de processos sociopolíticos espaciais concretos.

Tais processos são também dotados de uma temporalidade específica, privilegiados que são os períodos noturnos para o lança-mento clandestino de material tóxico. No livro A noite dos proletários, sobre os primórdios da condição operária, Jacques Rancière assinala como, à noite, em seu tempo de não-trabalho, os proletários procuravam experimentar uma reversão do mundo, buscando o contrário do trabalho “onde a vida se perde” e tentando retardar o sono reparador das forças requeridas pela máquina fabril. Buscavam interromper a hierarquia que subordina trabalhadores e trabalhadoras manuais àquelas pessoas que receberam o privilégio do trabalho intelectual: investiam, então, em noites de estudo, em-briaguez, aprendizado, sonho, discussão ou escrita. Pretendiam mostrar que eram outras pessoas, indicando a quem tinha o poder que almejavam ser tratados como alguém a quem várias vidas são devidas, fazendo-se reconhe-cer, em que pese o discurso sobre identidade operária, uma dignidade diferente daquela do simples pertencimento à categoria salarial.7 Ao contrário, com sua atividade noturna, as empresas aqui referidas não buscam mostrar-se outras, mas, ao contrário, iguais a si mesmas, otimizando as condições espaciais e temporais da acumulação, dada a inativação noturna das determinações jurídicas.

Assim como a literatura econômica fala de “sistemas produtivos locais” designando “arranjos produtivos cuja interdependência, articulação e vínculos consistentes resultam em interação, cooperação e aprendizagem,

6 The Economist, 8 fev. 1991.

7 RANCIÈRE, J. La nuit des

a r t i g o

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Jun / Jul 2005 47

possibilitando inovações de produtos, proces-sos e formatos organizacionais, gerando maior competitividade empresarial e capacitação social”,8 poderíamos sugerir aqui a vigência de espécies de “sistemas locais de poluição” – arranjos produtivos cuja interdependência e vín-culos resultam em uma articulação espacial dos impactos negativos da produção, otimizando os investimentos pela distribuição dos riscos ambientais para os agentes menos dotados de recursos econômicos e políticos.

O lixo tóxico – é o que denunciam os movimentos sociais – costuma não ser visto como uma ameaça a cidades comprometidas por sua própria poluição, desde que estejam azeitados os mecanismos que destinam os danos às pessoas mais pobres.9 Colocadas à parte do mercado, mesmo que dispostas a integrar o fluxo de riqueza pela oferta de suas competências, essas pessoas “excluídas” descobrem-se parte integral do circuito de troca,10 como objeto da imposição do consumo forçado dos produtos invendáveis da atividade capitalista. Mas, para que tal descoberta se dê, elas precisam desconstruir todo o arcabouço discursivo que “finge emancipação, simula abundância num cerimonial que não visa so-mente ‘distrair’ o trabalhador, mas dar-lhe o sentimento de que ele participa de um mesmo ideal, que ele pertence a um gênero humano único, quan do se encon tra mais isolado que nunca, deportado para longe de qualquer verdadeiro mundo comum”.11

Expondo a sobreposição de desiguais benefícios e destituições, certos agentes da denúncia evidenciarão esse “lado noturno do capital”, no qual vigoram a desinformação sistêmica, a irresponsabilização organizada e a política de subestimação sistemática dos riscos (a política chamada por Beck de “destoxificação simbólica”12). Por meio desses expedientes, a penalização das pessoas mais desprotegidas torna-se regra, e o controle democrático dos riscos, a exceção.

“No capitalismo <convencional>”, lembra-nos Luiz Gonzaga Belluzzo,

as regras do jogo são as da acumulação de riqueza monetária obtida no merca-do, isto é, mediante a competição feroz entre empresas, Estados e indivíduos. Em sua roupagem neoliberal, esse jogo pressupõe a violação sistemática das regras. As relações entre o político e o econômico estão configuradas de modo a remover quaisquer obstáculos

à expansão da grande empresa e do capital financeiro internacionalizado, apoiados na força militar e política do Estado Imperial. Trata-se da emergência na esfera jurídico-política, da exceção permanente, na consolidação da lei do mais forte, para desgosto dos que se ima-ginam descendentes do Iluminismo e de seu programa de garantias da liberdade e da igualdade.13

A ciência política já definia o soberano como “aquele que decide sobre o estado de exceção”. A soberania sobre o ambiente des-regulado aqui em pauta é aquela exercida por forças que condenam moradores e moradoras de áreas pobres ao estado permanente de exceção. Grande parte das denúncias sobre os depósitos de lixo tóxico visa à normalização do ambiente, à aplicação das normas ambientais onde elas não vigoram. Mas parte desses conflitos – sejam aqueles que são politizados, sejam aqueles em que se recorre à violência – põe em pauta o caráter discriminatório desse estado de exceção localizado.

Para essas vítimas de um estado de exceção que é regra, segundo Agamben, “a vida nua atinge sua indeterminação mais ex-trema”.14 Pela alocação preferencial dos riscos tóxicos industriais sobre as classes mais destitu-ídas, o capital instaura uma ordem ambiental, ainda que não se trate de uma ordem jurídica formal. Nela, define-se um regime da lei no qual a norma jurídica formal vale (ambiental, no caso), mas não se aplica (porque não tem força), e atos que não possuem o valor de lei (a penalização ambiental das pessoas pobres) adquirem força impositiva.15 Cria-se, assim, um espaço vazio de direitos, uma zona de anomia na qual todas as determinações jurídicas são desativadas, confirmando a oitava tese sobre a filosofia da história, de Walter Benjamin,16 para quem a tradição das pessoas oprimidas ensina que devemos ter sempre em mente concepções da história em que o estado de exceção é a regra, ainda que, como vimos aqui, se tratem de estados de exceção socioespacialmente circunscritos.

proletaires. Paris: Fayard, 1981, p.7-10.

8 CNPq/FINEP/SEBRAE. Interagir para competir – promoção de arranjos produtivos e inovativos no Brasil. Brasília: Sebrae, 2002, p.13.

9 “À medida em que a preo-cupação pública com os danos infligidos pelas emissões radio-ativas, por resíduos tóxicos e envenenamento por pesticidas cresce, o capital encontra sua liberdade ‘exter nalizando’ seus custos, impondo os venenos para as comunidades periféricas, desafiado que é por formas não familiares de resistência” (DYER--WITHERFORD, N. Cyber-Marx: cycles and circuits of struggle in High Technology Capitalism. Chicago: Illinois Press,1999, p. 233).

10 CÉLIS, R. De la Ville Mar-chande à l´Espace-temps. ALEXANDER, R. et alii. Le temps et l´espace. Bruxelas: Ousia, 1992, p. 97 e 103.

11 Idem, ibidem, p. 102.

12 BECK, U. From Industrial to Risk Society: questions of survival, social structure and ecological enlightenment. Theory, Culture & Society, 9:97-123, 1992.

13 BELLUZZO, L. G. Democracia e capitalismo. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. B2, 4 ago. 2002.

14 AGAMBEN, G. A zona morta da lei. Folha de S.Paulo, São Paulo, 16 mar. 2003. Caderno Mais!, p. 5.

15 Idem, ibidem, p. 6.

16 BENJAMIN, W. Thèses sur la philosophie de l´histoire. In:

* henri acselrad

Professor do Instituto

de Pesquisa e

Planejamento Urbano e

Regional da UFRJ (Ippur/

UFRJ), pesquisador do

CNPq e organizador

do livro Conflitos

ambientais no Brasil

(Relume-Dumará, 2004).

novas articulações em Prol da Justiça ambiental

Page 49: Revista Democracia Viva 27

n a c i o n a l

48 democracia viva nº 27

n a c i o n a lPaulo moutinho*

Amazôniae o desafio do

A Amazônia abriga a última grande floresta tropical contínua do mundo. Berço de um

quarto da biodiversidade do planeta, a região ainda exerce um papel importante na

manutenção do clima regional e global e, apesar do desmatamento alarmante (aproxi-

madamente 2,4 milhões de hectares por ano), 85% de suas florestas ainda estão em pé.

É uma condição ímpar e desafiadora. Se considerarmos o destino dado a outras flores-

tas no mundo ou mesmo no Brasil, como a floresta atlântica, a Amazônia representa a

última chance de se pôr em prática um desenvolvimento capaz de conciliar crescimento

socioeconômico com a conservação dos recursos naturais. Está, portanto, nas mãos do

povo da região e do governo uma oportunidade única (e última) de se promover o tão

sonhado (e falado) desenvolvimento sustentável.

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Jun / Jul 2005 49

n a c i o n a lPara que esse desenvolvimento seja alcançado, são necessárias, contudo, mudanças drásticas de rumo. Nas últimas três décadas, a ocupação da Amazônia brasileira tem sido caracterizada pela exploração intensa e desordenada do ca-pital natural da região – florestas, rios, solos, fauna e flora. Assumiu-se um modelo baseado na implementação de grandes projetos de colo-nização (como o Pólo Noroeste em Rondônia), em investimentos na mineração (como Carajás) e na construção de longas estradas (como a Transamazônica) e grandes usinas hidrelétricas (como Tucuruí). Até agora, 60 milhões de hec-tares de floresta (uma área equivalente a duas vezes a área do estado de São Paulo) foram derrubados para a implementação de pastagens extensivas de baixa produtividade e geradoras de poucos empregos. Atualmente, um terço da área coberta por essas pastagens encontra-se abandonado (cerca de 20 milhões de hectares) e, ainda hoje, a maior parte do desmatamento (de 60% a 70%) resulta da conversão de flores-tas em pastos de uso extensivo (Inpe, 2003).

Apesar de todos os investimentos his-tóricos (equivocados ou não) para a ocupação da região, pouco resultou em melhoria efetiva na qualidade de vida e na distribuição de renda para a população. Atualmente, cerca de 43% da população da Amazônia possui renda per capita abaixo da linha de pobreza (Pnud, 1996; IBGE, 2000) e 10% da riqueza regional está concentrada em 1% da população (50% das pessoas mais pobres ficam com apenas 15% dessa riqueza) (IBGE, 2000). A atual ocupação da região está, assim, pautada pela exploração, a todo custo – e no menor espaço de tempo possível –, dos recursos naturais (pouco valori-zados), pelos investimentos em grandes obras, especialmente o asfaltamento de rodovias, e pela ausência do Estado. O resultado tem sido a abertura de novas fronteiras preenchidas por sistemas extensivos de produção de alto impacto ambiental e baixa rentabilidade e recheadas de conflitos agrários. O desafio do

povo brasileiro é, portanto, o de reorientar essa trajetória de desenvolvimento predatório para um de bases mais sustentáveis.

Para que o desenvolvimento sustentável na Amazônia ocorra não será necessário abrir mão do desejo de crescimento econômico, como é alardeado, mas sim que se alterem os princípios vigentes de ocupação dos espaços. Essa alteração passa pela adoção de um novo modelo sustentável de desenvolvimento que esteja centrado em uma perspectiva de go-vernança da fronteira. Para que isso ocorra, é preciso que os governos federal e estaduais e a sociedade local revejam seus programas e anseios de desenvolvimento. A chave para um desenvolvimento mais sustentável está na adoção de novos padrões de ordenamento da ocupação do espaço com base em critérios fortes de sustentabilidade, e não apenas por estabelecimento de planos de zoneamentos ecológicos, que, muitas vezes, são de aplicação complicada. Para isso, é preciso que se dê ga-rantia de participação ativa da sociedade civil na discussão de políticas para a região. Ainda, será fundamental que políticas ambientais eficientes sejam implementadas e que o fortalecimento das instituições locais seja garantido.

Riscos ambientais

Num cenário de Amazônia desmatada, por exemplo, qualquer vantagem social ou eco-nômica vislumbrada hoje pode se transformar em uma grande ilusão no futuro. O custo do desmatamento ilegal e descontrolado na região vai além da perda da biodiversidade. Inclui a mudança do clima regional. Reduzir a cobertura florestal implica reduzir os índices pluviométricos na região. Quase a metade da chuva que cai na Amazônia é produzida pela floresta (Nobre et al., 1991). Ao transpirar, a vegetação lança milhões de toneladas de vapor de água que formarão as nuvens. Cientistas já chamam a Amazônia de “oceano verde”,

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50 democracia viva nº 27

n a c i o n a l

pois o processo de formação de nuvens é similar àquele que ocorre sobre os oceanos. Sem a floresta, ou mesmo sem parte dela, a precipitação poderia sofrer reduções signi-ficativas impondo à região períodos de seca mais prolongados e intensos (Nobre et al., 1991; Nepstad et al., 2004, 1999).

Além dos prejuízos ambientais (perda de biodiversidade, incêndios florestais, emis-são de gases de efeito estufa, de gradação do solo etc.), vários pre juízos econômicos

resultariam de tal mudança climática regional. Os incên-dios compromete-riam os estoques de madeira, e, ironica-mente, as principais e atuais atividades econômicas de ter-ra firme (pecuária e ag ro indús t r i a ) estariam compro-metidas (Men donça et al., 2004). Isso sem falar na falta de reposição da água dos reservatór ios das hidrelétricas a um nível satisfatório. Ressuscitaríamos, as-sim, os “apagões”, mesmo com inves-timentos em novas hidrelétricas. A falta de chuvas atingiria não somente a Ama-zônia, mas também as regiões Sul e Su-deste, já que parte do vapor gerado pela floresta é carregada pelas correntes de ar que se movem para essas regiões. O pla-nejamento correto dos investimentos

na região é, portanto, fundamental para a sustentabilidade da região.

Um dos exemplos mais críticos do efei-to negativo de investimentos mal planejados sobre a região amazônica é o asfaltamento de estradas. A simples construção e pavimentação de rodovias visando apenas a um propósito – como a criação de corredores de exportação de bens ou a integração entre grandes centros

urbanos, como é o caso da BR-163 que liga a cidade de Santarém, no Pará, a Cuiabá, no Mato Grosso – pode resultar em elevados custos ambientais (desmatamento) e, de quebra, não trazer benefício algum para uma parcela con-siderável da população local que vive ao longo desses eixos de transporte. Isso ocorre porque estradas abrem acesso a áreas remotas e ainda sob conservação passiva. Para se ter uma idéia, 70% da degradação ambiental na Amazônia gerada pelo desmatamento está concentrada ao longo das rodovias pavimentadas (Alves, 1999). Se todas as rodovias que estão sendo plane-jadas para a região fossem implementadas seguindo os moldes atuais, isto é, o asfalto vindo antes da governança, a área desmatada pularia dos atuais 15% para 30% ao fim de 35 anos (Nepstad et al., 2000, 2001). Ocupar a Amazônia, portanto, tem custos ambientais de diversas ordens. Ignorá-los poderá gerar um “progresso” aparente ou imediato, como até agora, mas não sustentável.

Amazônia sustentável

A sustentabilidade do desenvolvimento amazô-nico só será garantida se, de uma vez por todas, for reconhecido que a Amazônia, com suas florestas e rios, representa uma oportunidade para uma nova economia, em que a preserva-ção e o uso racional de seus recursos naturais conferem uma vantagem futura (e sustentável) diferenciada (Santilli et al., no prelo). Para tanto, é necessário que os investimentos na região avaliem os seus custos socioambientais. Assim, o estabelecimento de uma governança local ou regional é fundamental e deve anteceder os grandes investimentos em infra-estrutura, especialmente o asfaltamento de rodovias. Por governança, poderíamos entender o aumento da capacidade combinada do Estado, da inicia-tiva privada e da sociedade civil na articulação de seus interesses, no exercício de seus direitos legais e no cumprimento de suas obrigações, como forma de solucionar possíveis diferenças (Bandeira, 1999). Tudo isso sob uma presença forte do Estado e suas instituições fundamentais como garantia do cumprimento da lei e amparo a cidadãos e cidadãs. Não se trata, assim, de estagnar a abertura de novas estradas, mas sim de ordenar o processo de sua implementação.

Sobre um desenvolvimento que prima pela sustentabilidade e pelo estabelecimento de governança local antes dos investimentos com alto risco ambiental poderiam ser aplicados mecanismos efetivos de gestão e fiscalização,

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amaZônia e o desafio do desenvolvimento sustentável

com a participação dos diferentes setores da sociedade, para reprimir o avanço de novas fronteiras em áreas remotas onde a governança ainda é baixa (Nepstad et al., 2002; Carvalho et al., 2002, 2001). Esse processo conduziria a uma redução na quantidade de terras disponí-veis e, portanto, no aumento do seu valor de mercado, o que incentivaria a implantação de culturas perenes, o manejo florestal de baixo impacto e outros sistemas mais sustentáveis de produção, como o plantio direto levando a um desenvolvimento socioeconômico das populações locais. Concomitantemente, seria preciso que as estradas vicinais, que partem das grandes rodovias, recebessem investimentos em pavimentação e manutenção para facilitar a comercialização dos produtos locais e o acesso da população rural à saúde, à educação e aos serviços técnicos.

Mais amplamente, um desenvolvimen-to socioeconômico da Amazônia com baixo custo ambiental poderia ser conseguido, entre várias alternativas, por meio da promoção de uma agricultura intensiva em terras já altera-das ou desmatadas ou em regiões onde essas atividades são inadequadas (solos pobres, por exemplo). Ainda, a criação de incentivos para implementação de tecnologias que melhoras-sem a produtividade e a sustentabilidade agrí-cola poderia minimizar os impactos ambientais, assim como o desenvolvimento de mecanismos que incentivassem a extração de produtos não-madeireiros e o manejo florestal de baixo impacto por parte de pequenos(as) e mé dios(as) produtores(as) poderiam fornecer uma alterna-tiva a esse setor produtivo. Seria também de fundamental importância que houvesse linhas de crédito que compensassem produtores(as) da região por comportamentos ambientalmente sustentáveis, bem como a promoção de ativi-dades econômicas de vocação florestal, como a extração de borracha, castanhas, óleos e explo-ração madeireira de baixo impacto, como uma estratégia para reprimir a conversão de floresta para expansão de pastagens. Ainda, a floresta deveria ser, definitivamente, reconhecida como um recurso prestador de serviços ambientais (equilíbrio do clima, por exemplo) capaz de receber compensação (Santilli et al., no prelo).

Finalmente, seria preciso uma abertu-ra no processo de decisão política para que fosse possível envolver grupos locais que são raramente consultados nos estágios prévios do planejamento – tais como pequenos(as) agricultores(as), organizações de base e municí-pios –, assim como atores com poder econômico, como produ tores(as) de soja e construtoras

de rodovias, que possuem acesso garantido no processo.

O potencial de esse cenário de gover-nança da fronteira se tornar realidade está crescendo na Amazônia brasileira. O processo de articulação da sociedade civil residente ao longo da BR-163, que receberá em breve as-falto, é um exemplo claro nesse sentido. Esta sociedade, que depende das riquezas naturais da região para sobreviver, foi capaz de construir um plano de desenvolvimento sustentável para a BR-163 e sua área de influência. Tal propos-ta foi apresentada ao governo fede-ral por meio de um consórcio chamado “Desenvolvimento socioambiental da BR-163”, que agora discute com dir i-gentes os rumos para um desenvol-vimento mais sus-tentável da região.1 Ou seja, ao contrário do passado, o plane-jamento da BR-163 se torna um caso de “governança antes do asfalto”.

Um outro im-pressionante caso de aumento da capaci-dade de governança local na Amazônia pode ser ilustrado pela construção do Pro-ambiente. Trata-se de um programa, ago-ra encampado pelo governo federal, de créditos ambientais oferecidos a peque-nos(as) produtores(as). Por iniciativa própria das associações, as Federações de Traba-lhadores na Agricultura (Fetags) da Amazônia, o Proambiente, que teve sua concepção dentro do Grito da Amazônia de 2000, busca incluir em sistemas de crédito a compensação por serviços ambientais prestados para a sociedade quando um produtor assume o uso de sua propriedade de acordo com critérios agroambientais e ecológicos.

Outras iniciativas governamentais também lançam esperança de aumento de governança na

1 Ver http://www.ipam.org.br/programas/cenarios/br163/consorcio.php.

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n a c i o n a l

Amazônia. Por exemplo, o caso do sistema de licen-ciamento de desmatamento, que foi implementado em Mato Grosso, demonstrou ser possível reduzir a taxa de desmatamento estadual. O programa, con-tudo, no atual governo, parece não ter o mesmo fôlego, já que as taxas de desmatamento atuais em Mato Grosso subiram e já correspondem a 50% do total para a Amazônia. Um outro exemplo, digamos, clássico é o programa de combate ao fogo do governo federal (Programa de Prevenção e Controle de Queimadas e Incêndios Florestais na Amazônia Legal/ Proarco), que, de 1999 a 2000, conseguiu reduzir o número de focos de incêndio na Amazônia, mostrando que o estado pode interferir no uso de fogo na região. Mais recentemente, o Plano de Prevenção e Combate ao Desmatamento na Amazônia foi lançado pelo governo federal e, de maneira inédita, reúne 11 ministérios e tem a coordenação da Casa Civil. Tam-bém de maneira inédita, o plano tem dado ênfase à questão fundiária e ao combate à grilagem de terras públicas, dois fatores importantes na produção de degradação ambiental.

Embora sejam frágeis esses e outros avan-ços recentes na capacidade de governar a Ama-zônia, eles mostram que é possível contemplar o cenário de governança da fronteira agrícola da Amazônia. Um indicativo dessa fragilidade e do desafio imposto pelo desenvolvimento sustentável é o fato de que as taxas de desmatamento na região seguem a todo vapor. Na década passa-da, a taxa de desmatamento girou em torno de 1,7 milhão de hectares por ano. Desde o início da presente década, essa taxa está ao redor de 2,3 milhões (um aumento de 40% nos últimos

quatro anos). A redução do desmatamento virá não apenas pelo aumento da governança, mas também por uma efetiva busca de mecanismos que valorizem a floresta em pé. Floresta é mais do que madeira. Será preciso trabalhar com meca-nismos que possam compensar aqueles governos que reduzem desmatamento tropical ou con-servem florestas. Além disso, qualquer atividade sustentável na Amazônia precisa adaptar-se ao contexto ecológico da região. Os conhecimentos científicos sobre essa dinâmica acumulam-se constantemente, apesar de ainda existirem muitas áreas de ignorância. Na verdade, muitos desses conhecimentos já estavam presentes na década de 1970, quando se desatou o modelo de ocupação predatório.

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deforestation in Brazilian Amazonia the 1991-1996 period. In:

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PNUD. Índice de Desenvolvimento Humano, 1996.

* Paulo moutinho

Pesquisador do Instituto

de Pesquisa Ambiental

da Amazônia (Ipam)

[email protected]

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O Jornal da Cidadania é distribuído para pessoas que têm pouco ou ne-nhum acesso à informação crítica e comprometida com a democracia. Nossos leitores e leitoras são, espe-cialmente, estudantes e professoras e professores de escolas públicas de todo o país. Mas também traba-lhadoras e trabalhadores urbanos e rurais, líderes comunitários, mora-doras e moradores de comunida-des pobres. São 60 mil exemplares distribuídos gratuitamente.

Participe de mais esta iniciativa do Ibase. Você pode ajudar com contri-buições financeiras ou organizando um núcleo de distribuição.

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v a r i e d a d e v a r i e d a d e s flávia mattar colaborou: alfredo boneff

Riqueza musical

O projeto Música, Memória e So-ciabilidade da Maré, coordenado pelo professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Samuel Araújo, ganha novo fôlego: foi contemplado com uma bolsa “Cientistas do Nosso Estado”, da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), para o perí-odo de março de 2005 a fevereiro de 2006. O objetivo da iniciativa – que durante 2004 ficou restrita às comu-nidades de Nova Holanda e Morro do Timbaú – é mapear gêneros musicais existentes na comunidade da Maré. O projeto está registrando a relação entre gêneros musicais – como forró, funk, hip hop, pagode, rap, char me, samba, gospel, rock, entre outros – e as diferentes etnias e identidades sociais presentes: baia nos(as), paraibanos(as), minei-ros(as), negros(as), brancos(as) etc. O trabalho investiga, ainda, de que modo a violência permeia estilos musicais como funk, rap e heavy metal. O comércio de fitas, CDs e LPs independentes, lançados e vendidos na localidade por músicos da região, também é estudado. A idéia é estender o projeto, em um futuro próximo, para a Mangueira, o Morro da Serrinha, a Rocinha e outras comunidades conhecidas pela sua riqueza musical.

Campo brasileiro em foco

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) lança mais uma edição de seu tradi-cional relatório Conflitos no Campo Brasil, com dados relativos a 2004. A publicação é a única do país que apresenta estimativas sobre os conflitos por terra (violências como despejos e expulsões) e os números da violência (como assassinatos, ameaças de morte e prisões). Há, ainda, dados sobre trabalho escravo e conflitos em virtude da seca, entre outras informações. Desde 2002, conflitos gerados pelo uso da água passaram a fazer parte dos levanta-mentos. A publicação é reconhecida como científica pelo Instituto Bra-sileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) e é referência internacional para as questões agrárias no Brasil. A documentação é realizada por agentes da CPT no campo e nas secretarias regionais. Os dados de cada estado são enviados para a sede nacional da entidade em Goiás, onde são organizados.

www.cpt.org.br

Guardiães da terra

Facetas da condição feminina e da exclusão social. Este é tema do documentário Sentinelas do tempo – mulheres quilombolas, do pesquisador e cineasta carioca Sergio Brito. Como personagens principais estão as remanescentes do Complexo Quilombola Mata Cavalo, localizado no município de Nossa Senhora do Livramento, a 50 quilômetros de Cuiabá, Mato Grosso. Lançado em Cuiabá, o filme será exibido no Projeto Cinema Circulante Arni Sucksdorf, que leva produções a periferias e municípios da capital mato-grossense.

Elaborado a partir de dois tra-balhos acadêmicos de Sergio na área de saúde pública, Sentinelas do tempo mostra, em 23 minutos, depoimentos de mulheres a respeito de sua relação com a terra e a per-cepção que têm de si próprias. O documentarista aborda essa vivên-cia e o significado de ser, ao mesmo tempo, mulher, quilombola e negra na sociedade brasileira. “Chamo o filme de documentário-processo, pois ele não se esgota em si mesmo, está em desenvolvimento. Fizemos as entrevistas sem uma preparação prévia, pois queria dar um caráter de conversa mais informal”, diz o diretor.

Solicitação de cópias:

(21) 2290 4745

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v a r i e d a d e v a r i e d a d e s

Cultura e saúde

Instrumentos de percussão, cor, fan-tasias e dança. É com essa vibração que o grupo teatral Companhia da Saúde, iniciativa da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) coordenada pelo dentista José Marmo da Silva, se apresenta em escolas públicas, comunidades carentes, terminais rodoviários, praças públicas, seminários e con-gressos. O grupo é formado por jovens de terreiros de candomblé e de favelas. A proposta – que, de início, se limitava à utilização de técnicas circenses em esquetes teatrais para abordar a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e Aids – atualmente abarca saúde da infância e da adolescência de forma geral. Recentemente, por exemplo, a companhia montou esquetes sobre racismo na saúde. Para obter mais informações, basta entrar em contato com a Abia. As apresenta-ções, dependendo da necessidade de quem as solicita, são gratuitas.

(21) 2223-1040

[email protected]

Negócio coletivo

Está prevista para agosto, durante os festejos em homenagem a Nossa Senhora da Assunção, a inauguração do Centro de Produção Artesanal de Conceição das Crioulas. A iniciativa tem como objetivo abrigar a produ-ção artesanal da comunidade. Além disso, o centro terá salas de aula e uma loja, onde serão vendidos os produtos confeccionados. Moradores e moradoras de localidade – cerca de 3.800 – sobrevivem da agricultura fa-miliar de subsistência e do artesanato. Além de fonte de renda, a produção artesanal mantém viva a história da comunidade e gera visibilidade à causa do povo quilombola.

O projeto conta com a doação de 25 mil libras, obtidas por meio do Programa de Mobilização de Recur-sos, com o apoio do Departamento de Marketing da Oxfam, em Oxford. A construção será coordenada pela Associação Quilombola de Concei-ção das Crioulas, em parceria com o Imaginário Pernambucano e o Centro de Cultura Luiz Freire.

Mandando fechado em saúde e sexualidade

Estatísticas revelam o aumento do número de gravidezes indesejadas na adolescência e da incidência do vírus da Aids entre meninas com menos de 24 anos. O Cemina – Co-municação, Educação e Informação em Gênero e a Redeh aproveitam o potencial mobilizador da cultura hip hop para dar visibilidade ao debate sobre os direitos sexuais e reprodutivos. Acaba de ser lançado site pelo qual podem ser baixadas, distribuídas e remixadas dez mú-sicas do CD Mandando fechado em saúde e sexualidade, que trata de temas como corpo e violência, gravidez na adolescência, aborto e diversidade sexual. Para ampliar o alcance das músicas, o CD foi gravado e distribuído gratuitamente para DJs, integrantes da Rede de Mulheres no Rádio, rádios comu-nitárias, programas voltados para o público jovem, organizações de cidadania ativa, conselhos munici-pais e estaduais e para o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e da Juventude.

www.hiphopdsdr.org.br

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i n t e r n a c i o n a li n t e r n a c i o n a lrubens born* colaboração: mark lutes e délcio rodrigues1

Regimes internacionaise políticas de mudanças de

O regime multilateral de mudança de clima, conhecido por meio da Convenção-Quadro

das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) e seu Protocolo de Quioto, é,

além de sua função para a sustentabilidade do desenvolvimento e proteção do sistema

climático, um importante processo para a construção de governança, justiça e coopera-

ção no sistema internacional. Não obstante, fruto dos contextos em que foi gerado e é

operacionalizado, esse regime apresenta enormes desafios para se lograrem, de maneira

efetiva e justa, os objetivos e princípios nele inseridos.

O regime2 de mudança de clima é considerado um dos legados do processo da

Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD,

também conhecida como Rio 92), realizada no Rio de Janeiro em junho de 1992 e

notabilizada por três grandes aspectos: a necessidade de transformação do modelo de

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i n t e r n a c i o n a l

com base então nos conceitos e idéias do desenvolvimento sustentável, a fim de se pro-tegerem as condições e dinâmicas ecológicas que viabilizam a existência de vida no planeta; a necessidade de que as transformações e medidas correspondentes sejam concretizadas mediante crescente e mais justa cooperação entre países e organizações; e, finalmente, a ampla participação de diversos segmentos da sociedade na formulação de políticas e pro-gramas de ações, nas esferas global, nacional e local, mesmo no âmbito das Nações Unidas.

De fato, a Agenda 21, o ambicioso acordo de programa de ações, assinado na Rio 92 por mais de 170 países, tem seção especial sobre a participação de segmentos da sociedade considerados relevantes (indígenas, organizações civis, agricultores e agricultoras, mulheres, jovens, autoridades locais) e reitera, ao longo de seus 40 capítulos, a importância do envolvimento de todos os setores na cons-trução e consolidação das ações para o desen-volvimento sustentável. A Rio 92 foi, como dissemos, marco da crescente participação de tais setores em regimes e conferências da ONU, sendo que, nos anos seguintes, houve aprimoramento dos mecanismos e formas de participação de representantes de organiza-ções da sociedade civil em diversos processos e regimes vinculados às Nações Unidas.

Convenção de Clima e Protocolo de Quioto

O regime está assentado na Convenção-Qua-dro – negociada entre 1991 e 1992, assinada durante a Rio 92 e em vigor a partir de 1994 – e no seu Protocolo de Quioto. O regime é marcado por uma longa série de impasses e abordagens distintas para o enfrentamento do problema do aquecimento global. Entre eles, citamos:• aênfasenabuscade reduçõesabsolutas

das emissões de gases de efeito estufa (GEE), especialmente nos países industria-lizados, isto é, a mitigação de principais causas antrópicas, ou alternativa e com-plementarmente valorizar a contribuição da captura de gás carbônico da atmosfera por atividades de reflorestamento, con-tabilizando isso nos esforços globais. Em outras palavras, se políticas e ações devem estar voltadas para a redução absoluta de fontes, ou também para a importância, inequívoca, de florestas, sumidouros e reservatórios de carbono;

• seoregimedevefundar-semaisemabor-dagem que valorize políticas de Estados e respectivos instrumentos de comando e controle (caso da Convenção) ou em mecanismos econômicos, para estimular a adesão dos agentes do mercado em torno de instrumentos de flexibilização de metas e compromissos mensuráveis (caso do Protocolo de Quioto);

• oônusdasmedidasdeadaptaçãooumiti-gação às mudanças climáticas nos países em desenvolvimento, em especial nos países mais pobres;

• a adoção de mecanismos efetivos demonitoramento e medidas de penalida-des para o não-cumprimento de metas e compromissos;

• a resistência àmudança de padrões eco-nômicos, tecnológicos e institucionais de produção e consumo nos países indus-trializados, com a argumentação de seu relativo custo e indicando-se que medidas mais baratas podem ser implementadas em países em desenvolvimento para alcançar as mesmas metas globais de redução da concentração de gases de efeito estufa.

De fato, do ponto de vista ambiental e mais geral, não importa onde sejam feitas as reduções de emissões ou captura de carbono atmosférico. Mas tal fato tem as implicações

1 Mark Lutes é mestre em socio-logia e tem estudos e doutorado em políticas de mudança de clima. Tem mais de 13 anos de experiência em atividades e pes-quisas de ONGs em questões de mudança de clima. Atuou como diretor executivo da organização canadense Conservation Council of New Brunswick. É autor de publicações acadêmicas sobre políticas ambientais e mudança de clima, bem como sobre acor-dos e políticas globais em meio ambiente. Canadense, reside no Brasil há dez anos e tem atuado como pesquisador associado do Vitae Civilis, representando-a no Conselho de Coordenação Internacional do Climate Action Network.

Délcio Rodrigues é bacharel e mestre em física. É ambien-talista, pesquisador associado do Vitae Civilis e membro dos grupos de trabalho de energia e clima do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais. Foi assessor do Ministério do Meio Ambiente para a realização da 1a Conferência Nacional do Meio Ambiente (2003), global team leader do Greenpeace Internacional, diretor de cam-panhas do Greenpeace Brasil, coordenador do Instituto Akatu pelo Consumo Responsável, analista de Planejamento Ener-gético e Relações com Meio Ambiente da Jaakko Poyre e Cesp, além de pesquisador do Instituto de Física da Universi-dade de São Paulo.

2 Uma formulação, entre várias, de regime internacional refere-se como o conjunto de objetivos, princípios, regras, processos de-cisórios e instâncias operativas que buscam articular ações e políticas dos diversos atores em torno de um problema ou de-safio, visando obter resultados que beneficiem todas as partes envolvidas.

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i n t e r n a c i o n a l

políticas, econômicas e sociais às questões associadas a alguns desses impasses e es-quemas alternativos de formulação e imple-mentação do regime. A partir do choque desses enfoques, não necessariamente mutuamente excludentes, surgiram questões (e opções) como: devem ser mudados prioritariamente os padrões de produção industrial ou agrícola nos países industrializados, que respondem por cerca de três quartos das emissões de GEE? São baratas e politicamente factíveis tais mu-

danças ou seria me-lhor dar prioridade a ações nos países em desenvolv imento, com custos meno-res, e eventualmen-te dando ênfase na captura de carbono ou crescimento de emissões projetadas pelo atual estilo de desenvo l v imento não sustentável?

Esperava-se que os países in-dustrializados acei-tassem incluir na Convenção metas claras e específicas para a redução de emissão de gases de efeito estufa, posto que alguns deles já haviam anunciado, em 1990 e 1991, a adoção unilateral de metas de corte de emissões. Como tais metas não foram então definidas, a 1ª Conferência das Par-tes (COP), realizada em Berlim em 1995, deliberou a fixação de um mandato (o Mandato de Berlim)

para o grupo especial, no âmbito da Convenção, negociar um protocolo, que foi finalizado na cidade de Quioto. Em 1997, foi finalizado o Pro-tocolo de Quioto a partir da referida convenção.

O Protocolo de Quioto contém dire-trizes para a redução das emissões de gases de efeito estufa para países industrializados, relacionados no Anexo l do documento. Im-portante notar que hoje os países em desen-

volvimento não têm qualquer obrigação no sentido de reduzir suas emissões, em função do princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas. Mais de 130 países ra-tificaram o Protocolo de Quioto, incluindo o Brasil, superando, dessa forma, a marca necessária de 55 países para sua entrada em vigor. Porém, há um requisito adicional para a entrada em vigor do Protocolo que exige que a ratificação por países industrializados corresponda a pelo menos 55% das emissões dos países industrializados relatadas no Ane-xo I do Protocolo, limite que só foi possível atingir com a ratificação da Rússia. Embora os Estados Unidos e a Austrália tivessem anun-ciado em 2001 que não pretendiam ratificar o Protocolo, este entrou em vigor a partir de 16 de fevereiro de 2005, uma vez que a Rússia o ratificou no fim de 2004. Nesse período, foram muitas as barganhas e pressões políti-cas para lograr ou evitar a ratificação russa, uma vez que a vigência do Protocolo, nessas condições, cria “constrangimentos” políticos aos Estados Unidos, por um lado, mas per-mite a viabilização legal de mecanismos com relativo impacto econômico e ambiental nos países que decidiram cumprir o Protocolo.

O objetivo da convenção é o de al-cançar a estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera num nível que impeça uma interferência antrópi-ca perigosa no sistema climático. Esse nível deverá ser alcançado num prazo suficiente que permita aos ecossistemas adap tarem-se naturalmente à mudança do clima, que assegure que a produção de alimentos não seja ameaçada e que permita ao desenvol-vimento econômico prosseguir de maneira sustentável.

Importante notar também que, hoje, os países em desenvolvimento não têm qualquer obrigação no sentido de reduzir suas emissões, em função do princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, o que também ficou inscrito no Protocolo de Quioto. Esses pa-íses têm o “direito” de aumentar suas emissões, mas tal crescimento deve ser em ritmo menor do que aquele que ocorreria se o país não tivesse ratificado a Convenção. É que o seu artigo 4.1 estabelece compromissos para todos os países, para que sejam adotadas medidas variadas, mas que, na essência, apontam para a incor-poração dos desafios de prevenir, mitigar ou se adaptar às mudanças de clima nas várias políticas e esferas da vida cotidiana de nossa sociedade: energia, transporte,

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regimes internacionais e Políticas de mudanças de clima

urbanismo e habitação, florestas, agricul-tura e desenvolvimento agrário, combate à desertificação, gestão de recursos hídricos etc. O artigo 4.2 estabelece os compromissos para os países industrializados, até mesmo os de contribuir financeiramente para fundos de adaptação dos países mais pobres e vulneráveis.

De fato, está claríssimo o objetivo da alínea (b) do artigo 4.1 da Convenção--Quadro de Mudança de Clima, que indica compromissos de todos os países para “formular, implementar, publicar e atualizar regularmente programas nacionais e, conforme o caso, regionais, que incluam medidas para mitigar a mudança do clima, enfrentando as emissões antrópicas por fontes e remoções antrópicas por sumidouros de todos os gases de efeito estufa não controlados pelo Protocolo de Montreal, bem como medidas para permitir adaptação adequada à mudança do clima”.

Hostilidades e desafios

O Protocolo de Quioto funda-se, então, na perspectiva de se lograr o atendimento de metas líquidas e específicas de redução das emissões de gases de efeito estufa por países industrializados, listados no Anexo I da Convenção, e no uso de três mecanismos, conhecidos como mecanismos de flexibiliza-ção: execução conjunta (Joint Implementation – JI), comércio de “certificados” de redução de emissões e mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL). Todos se baseiam na con-tabilidade de emissões absolutas de GEE deduzindo-se carbono capturado da atmos-fera ou emissões evitadas, segundo critérios especiais. Os dois primeiros só podem ser usados entre os países do Anexo I. O MDL e o JI vinculam-se a pro jetos especiais, em que se dará a redução líquida, mensurável e certificada, de emissões de GEE, que sejam implementados em um país hospedeiro e apoiado financeiramente por um país in-dustrializado que obterá parte dos créditos da redução de carbono obtida. O MDL deve ser exclusivamente aplicado em projetos em países em desenvolvimento.

O Protocolo estabeleceu metas e regras para o período de 2008 a 2012, sen-do que sua continuidade para além desse período deve ser objeto de negociações, cujo início foi marcado para 2005. Pelo Protocolo, se todos os países industrializa-dos cumprissem integralmente suas metas, poder-se-iam alcançar cerca de 5,2% de

redução, em 2012, das emissões de GEE comparadas ao nível existente em 1990.

A ratificação do documento pela Rússia, em 2004, deu novo estímulo à sua implemen-tação, baseado em metas de redução para certos países industrializados, mecanismos de afe rição do cumprimento de tais metas e negociações de compromissos progressivos, mais amplos e exigentes de redução de emissões gases de efeito estufa. Entretanto, com a reeleição do presidente George W. Bush, há expectati-va generalizada de que o atual governo dos Estados Uni-dos continue hostil às ações e compro-missos multilaterais, impondo, assim, de-safios e limites aos esforços que con-tribuem pa ra a re-dução das emis sões globais. Certamen-te, a ausência dos Estados Unidos nos esforços globais de cumpr imento do Protocolo causará ônus adicional para todos os países que aderiram ao regi-me, nos períodos subseqüentes.

O f a t o d e q u e o s E s t a d o s Unidos, o país com mais alta emissão de gases de efeito estufa, “pega ca-rona” (é um “free rider”, isto é, vai se beneficiar dos esfor-ços de outros apesar de nada fazer – ou fazer até o contrário do estabelecido no regime da Convenção de Clima) torna muito mais difícil um novo acordo entre os países industrializados (Anexo I do Protocolo) e os países em desenvolvimento para reduções mais significativas, especialmente após 2012. Isso tornará também mais difíceis as negocia-ções para a adoção de metas de redução por alguns países em desenvolvimento, embora haja pressão enorme para que alguns deles,

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notadamente China, Brasil e Índia, venham a ter metas obrigatórias em algum período logo após 2012.

É necessário identificar, no regime global, uma forma de evitar que o governo George W. Bush tenha, na prática, o poder de veto que impeça esforços internacionais de proteção do sistema climático. Alguns países podem e devem continuar a exercer liderança no processo internacional, com a esperança de que, a partir da adoção e implementação de políticas domésticas e o cumprimento efetivo das metas do primeiro período (2008–2012) do Protocolo de Quioto, possamos ter a adesão dos Estados Unidos em um futuro próximo. Por isso, dependendo de quão ativo os Estados Unidos sejam para bloquear a implementação da Convenção-Quadro de Mudança de Clima

e do Protocolo de Quioto, países importantes, incluindo o Brasil, que se fizeram lideranças nas negociações internacionais deverão continu-ar a exercer um protagonismo para manter viável o regime de cooperação global.

O caso do Brasil

O país tem tido um papel significativo e cons-trutivo nas negociações internacionais, inclusive no G-77 o grupo de países em desenvolvimento, o que se evidenciou também com a apresen-tação da chamada “Proposta Brasileira” para alocar metas e compromissos com base na responsabilidade histórica de cada país para o aquecimento global do planeta. Há ainda grande expectativa de como o governo fe-deral lidará, no longo prazo, com a questão

de mudança de clima. O projeto Brasil em Três Tempos, em formulação pela Presidência da República desde o fim de 2004, pretende indicar planos de desenvolvimento para o país em cenários de longo prazo: 2015 e 2022. En-tretanto, com base nas informações disponíveis à época da redação deste texto (maio de 2005),

o projeto contemplava como prioritário, para o país, deter o controle de uma fatia considerável do mercado de MDL, ecoando setores gover-namentais e privados que ou negligenciam ou resistem à adoção de uma política nacional que organize e articule as medidas brasileiras de cumprimento dos compromissos obrigatórios

Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL)Nas negociações internacionais do Protocolo de Quioto, ficou estabelecido o uso de MDL para projetos

novos (adicionais) de desenvolvimento sus-tentável, mas no caso de captura de carbono restrito a reflorestamento e aflorestamento, ou seja, criar uma floresta onde antes ainda não havia. Por ser um instrumento de mercado, o MDL não reúne condições suficientes para ser usado a fim de implementar e gerir políticas públicas. Da maneira que está atualmente regulamentado, o MDL é instrumento que permite projetos e negócios privados, com base no propósito público de redução efetiva de emissões existentes ou futuras. Isso cria, en-tão, oportunidades para projetos diversos, que não necessariamente atendem a demandas ou expectativas locais ou nacionais de recuperação ou gestão da qualidade ambiental, por estarem voltadas ao foco específico, que é a redução líquida de emissões equivalentes de carbono.

Como conseqüência, uma das possibi-lidades de uso do MDL é na expansão de monocultivos arbóreos, para produção de madeira, papel e celulose ou de carvão ve-getal. Sabe-se que são necessários plantios de espécies vegetais para a obtenção de tais produtos, como forma de se diminuir a pressão antrópica sobre as florestas na-

turais. Certamente, ainda há muito em que se avançar, do ponto de vista ambiental e social, para o aprimoramento de modelos e técnicas que nos libertem das mazelas associadas aos monocultivos arbóreos e agrícolas, em geral fundados na grande propriedade de terra.

Entretanto, na comunidade ambientalista, há expectativa de que o MDL possa servir para a recuperação de áreas ambientalmente degradadas e que deveriam estar sujeitas a algum tipo de proteção, gerando empregos e benefícios sociais. Por exemplo, no estado de São Paulo, o Fórum Paulista de Mudanças Globais de Clima e Biodiversidade fez recen-temente instigante discussão sobre como usar o MDL para recuperar áreas de preservação permanente (APPs). Mas a eventual indução pública para projetos “voluntários” de MDL, sujeitos aos interesses de mercado, dependerá do aprofundamento da discussão e de maior engajamento da sociedade civil e dos diversos níveis de governo.

i n t e r n a c i o n a l

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Jun / Jul 2005 61

da Convenção.Entretanto, fatos recentes do fim de

2004 e início de 2005 parecem indicar que maior atenção será prestada aos desafios cor-respondentes (por exemplo, a reativação do Fórum Brasileiro de Mudança de Clima – FBMC; a criação de grupo de trabalho sobre o tema no Ministério do Meio Ambiente – MMA). Em dezembro de 2004, foi divulgada, pela primeira vez, a Comunicação Nacional, o relatório que cada país deve apresentar à Convenção, com seu inventário de fontes e sumidouros de car-bono. Pelo relatório, elaborado para o período de 1990 a 1994, 73% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa estão associadas a des-matamento, queimadas e mudança no uso do solo, especialmente na Amazônia e no cerrado; 23% estão associadas à matriz de produção e consumo de energia (notadamente combustí-veis fósseis) e o restante a outros processos e atividades (aterros sanitários e lixo, atividades de segmentos industriais etc.).

Os dados de desmatamento recente na Amazônia, como o de cerca de 26 mil quilô-

metros quadrados em período de um ano entre 2003 e 2004, permitem inferir, segundo alguns especialistas, que o Brasil é um dos cinco países do mundo com maiores emissões de gases de efeito estufa. O governo brasileiro tem progra-mas nas áreas e eficiência energética e fomento de energia por fontes renováveis, mas a prio-ridade continua sendo a expansão da geração de energia a partir de grandes hidrelétricas e da termoeletricidade em vez de expandir mais ainda as fontes renováveis de energia.

*rubens born

Coordenador executivo da

Vitae Civilis; engenheiro

civil, com especialização

em engenharia ambiental;

mestre em saúde

pública e ambiental,

e doutor na área de

regimes internacionais;

coordenador do

Grupo de Trabalho de

Mudanças de Clima

do Fórum Brasileiro de

ONGs e Movimentos

Sociais (FBMOS) para

Desenvolvimento e Meio

Ambiente. Participante

da delegação brasileira

em diversas etapas da

Convenção de Clima e

do Protocolo de Quito.

Foi coordenador da

delegação do FBOMS na

Rio 92 e na Cúpula de

Johannesburgo. rborn@

vitaecivilis.org.br

Política nacional de mudança de climaNo nosso entendimento – e também no de várias entidades do Grupo de Trabalho de Mudança de

Clima do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente (FBOMS) –, além de organizações de outros países, o cumprimento do Artigo 4.1 da Convenção deve ser levado muito a sério por todas as nações, incluindo o Brasil.

Devemos contar com uma Política Nacional para Mudança de Clima para, por um lado, cumprir com seus compromissos internacionais, já ratificados pelo Congresso Nacional e, por outro, fortalecer a liderança e protagonismo global nas negociações do regime multilateral da Convenção Quadro de Mudança de Clima e seu Protocolo de Quioto. Para essas negocia-ções, o governo brasileiro deve ter uma postura ativa e de liderança quanto ao respeito aos princípios da Convenção, mas, internamente, preparar o país para os próximos períodos do regime. Entendemos que urge uma discussão pública dos objetivos, critérios e instrumentos gerais de tal política, que deveria envolver as várias áreas de atuação do governo, bem como articular as competências e ações dos estados e municípios em questões como transporte ur-bano e intermunicipal, zoneamento territorial ecológico-econômico, conservação de florestas, eficiência energética e fomento de fontes limpas, sustentáveis e renováveis de energia, entre ou-tros. Enfim, essa Política Nacional de Mudança

regimes internacionais e Políticas de mudanças de clima

de Clima deve:

a) considerar todos os princípios e compromis-sos assumidos pelo Brasil no regime inter-nacional, especialmente aqueles delineados no artigo 4.1 da Convenção;

b) definir os marcos gerais que permitam o envolvimento das várias esferas de governo e, portanto, que estimulem todas as unidades da Federação a desenvolver programas e iniciativas compatíveis com os objetivos do regime, tendo em vista o previsto na Cons-tituição de 1988 e o princípio de responsa-bilidades comuns, porém diferenciadas;

c) estimular a internalização dos objetivos e considerações previstas no regime interna-cional em políticas e programas setoriais, nas áreas de energia, habitação e cidades, transporte, agricultura e desenvolvimento agrário, conservação ambiental, resíduos, mineração etc.

d) ser flexível para poder considerar a evolução do regime internacional e, assim, deixar abertas para o país oportunidades para a adoção de instrumentos e iniciativas que fo-rem acordadas no âmbito das negociações.

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m u n d o P e l o m u n d o P e l o m u n d o P e l o m u n d o P e l o m u n d o

62 democracia viva nº 27

Jamile chequer

Ensaios internacionais

O Programa Globalização, Cultura e Transformações Sociais do Cen-tro de Investigações Pós-doutorais (Cipost) da Faculdade de Ciências Econômicas e Sociais (Faces) da Universidade Central de Venezuela (UCV) está promovendo o concurso Cultura e Transformações Sociais. A idéia é estimular e difundir in-vestigações que analisem, a partir de uma perspectiva cultural, os processos sociais contemporâneos.

Serão aceitos ensaios que te-nham entre 10 mil e 16 mil pala-vras, escritos em espanhol ou em português e que não tenham sido publicados em nenhum tipo de meio impresso ou virtual. Vale lembrar que o programa considera “cultura” uma perspectiva de análise também de estudo de todos os aspectos simbólicos que orientam e tornam possíveis as ações sociais nos mais variados âmbitos políticos, econô-micos e sociais.

Três eixos de análise serão acei-tos: representações, discursos e políticas de identidades e diferenças sociais; representações, discursos e políticas de cidadania e sociedade civil; representações, discursos e políticas de economia, ambiente e sociedade. As inscrições devem ser feitas até o dia 15 de setembro.

www.globalcult.org.ve/Program.htm

Flashs que mudam

Há alguns anos, ser jornalista em uma guerra ou conflito era quase garantia de vida. Não eram consi-derados(as) alvos, e sim vis tos(as) como pessoas neutras que estavam no fogo cruzado cumprindo o papel de dar visibilidade aos fatos. Mas isso mudou.

Na guerra recente no Iraque, pelo menos 29 jornalistas foram raptados(as) e 56 mortos(as). Para se ter uma idéia, durante os 20 anos da Guerra do Vietnã, as mortes contabilizaram 63. Recentemente, o Comitê para Proteção de Jorna-listas (CPJ) analisou que a morte, seguida de impunidade, é a maior ameaça para jornalistas no mundo. Países como Filipinas, Iraque, Colômbia, Bangladesh e Rússia – nessa ordem – lideram a lista de “mais perigosos” para se exercer a profissão. Eles abarcam, no período de 2000 a 2005, 48% das mortes desses e dessas profissionais no mundo. E, pasmem, nenhum caso foi solucionado.

“Por falharem na investigação e na punição dos assassinos, os gover-nos desses cinco países encorajam aqueles que perseguem o silêncio da imprensa por meio da violência”, alerta Ann Cooper, da diretoria executiva da CPJ. E continua: “A violência se perpetua e o fluxo livre de informações é cortado”. É duro ser jornalista.

Passo à frente

O Chile deu um passo à frente no que diz respeito aos direitos homos-sexuais. O Projeto de Lei contra a Discriminação foi aprovado por 41 votos a sete. Isso significa que a Câ-mara dos Deputados reconhece que, nos últimos anos, graves delitos fo-ram cometidos contra as pessoas por causa de sua orientação sexual. Além disso, entende que as discriminações se explicitam em ações que afetam direito ao trabalho, educação e saúde.

Para o presidente do Movimento de Integração e Liberação Homos-sexual (Movilh), Rolando Jiménez, essa foi a principal conquista alcan-çada pelo movimento homossexual chileno. “É histórico porque conse-guimos que o Estado, pela primeira vez, faça um pronunciamento sobre uma discriminação que existe desde sempre”, comemora. O projeto foi idealizado pela Movilh em resposta aos variados casos de discriminação sexual, de gênero, racial, cultural etc. Já era hora.

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m u n d o P e l o m u n d o P e l o m u n d o P e l o m u n d o P e l o m u n d o

Ranking de desprestígio

Qualquer semelhança com uma bar-ra de chocolate, recheada de coco, não é mera coincidência. A Nestlé é uma das poderosas internacionais que ganhou o prêmio de empresa mais irresponsável por conflitos tra-balhistas na Colômbia. Mas não fez apenas isso. A empresa conseguiu a proeza de promover substitutos do leite materno, aumentando o desmame de bebês e expondo-os a riscos de saúde importantes em países da América Latina. Não, não é boato. Haja campanha de conscientização da amamentação para desbancar o NAN 1. Não sa-tisfeita, a Nestlé está envolvida com a exploração predatória de água no Brasil e em outros países.

“Prêmios dessa natureza são importantes como contraponto a um crescente número de premiações que mostram o lado bonito das ações empresariais. Em geral, relatórios e seminários tendem a esconder os problemas e conflitos com os quais as empresas multinacionais estão envolvidas”, revela o pesquisador do Ibase, Ciro Torres.

O prêmio foi “entregue” no fórum alternativo Olho Público em Davos e “contemplou” outras empresas, como Shell e Wal-Mart.

Chamado nominal

Em janeiro deste ano, um acordo de paz deu fim a uma guerra civil de 21 anos no Sudão. Certo? Não exatamente. Embora o Conselho de Segurança da Organização das Na-ções Unidas (ONU) tenha concen-trado esforços na região, a situação no país continua grave. Segundo a organização International Crisis Group (ICG), ainda serão necessá-rias firmes medidas para restaurar a segurança e prevenir mortes, que somam cerca de 10 mil por mês.

O ICG convoca organizações internacionais e governos para agi-rem urgentemente e fazerem o que for possível, sem se preocuparem com prerrogativas institucionais para sanar o problema. Para isso, produziu documento indicando os principais problemas e formas necessárias de atuação. Entre as questões mencionadas, faz um cha-mado especial para a proteção de civis e manutenção de mantimentos em Darfur, nomeando organizações como a ONU, a União Européia (UE) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) como capa-zes de fazer a diferença. Também é necessário construir um processo de paz efetivo na capital, implementar um acordo de paz entre as partes e prevenir novos conflitos no Sudão.

Bafafá climático

O Encontro do G-8 que vai acon-tecer na Escócia entre os dias 6 e 8 de julho já está dando o que falar. As duas prioridades de discussão serão as mudanças climáticas e o desenvolvimento da África, dois tópicos quentes. Mas o que real-mente está chamando a atenção é que, na última semana de maio, um documento com as indicações dos acordos feitos entre os países no que diz respeito ao clima foi colocado anonimamente na internet. Com o material na mão, confirmado por Tony Blair, a organização Amigos da Terra declarou que, substancial-mente, pouco progresso aconteceu. “O documento é fraco, ineficaz e carece de urgência”, critica.

Acusações de dedo dos Estados Unidos e um chamado de pressão para que o país entre no grupo dos assinantes do Protocolo de Quioto, à parte, a organização pede a in-clusão de acordo sobre a evidência de que a mudança climática já está acontecendo, em determinar prazos na diminuição doméstica dos “gases estufa”, entre outros. É torcer ou comprar uma máscara de oxigênio.

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e n t r ev i s t a

e n t r e v i s t aPor iracema dantas*

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e n t r ev i s t a

Atual assessor da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) no programa Amazônia Sustentável, o francês Jean-Pierre está no Brasil desde 1971: “Era a época da ditadura. O governo dava muito mais facilmente vistos para pastores americanos. Dizia-se que, de cada 300 vistos concedidos, apenas um era para a Igreja Católica”. Iniciou sua trajetória como religioso no Pará e, hoje, é reconhecido como um dos mais atuantes defensores do direito ao meio ambiente. Antes, esteve à frente de importantes momentos como a criação do Fórum Global de ONGs, evento paralelo à Rio 92, e do Projeto Brasil Sustentável e Democrático, iniciado em 1997 e ainda em curso.

Escolhido em 2003 como um dos relatores da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (Plataforma Dhesc), iniciativa que teve o apoio do Programa de Voluntários das Nações Unidas e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Jean-Pierre garante: “Muita gente neste país é considerada invisível, são grupos sociais que não interessam a ninguém ou porque já foram descartados ou porque nunca serão alvo desse desenvolvimento”.

O meio ambiente sempre foi entendido como bem coletivo, mas para Jean-Pierre, quando se trata de injustiça ambiental, as pessoas atingidas são sempre as mesmas: mulheres, pobres, trabalhadores e trabalhadoras, negros e negras: “Os custos desse desenvolvimento para eles chegam da pior forma, agredindo sua saúde, suas águas, tirando suas terras...”.

Jean-Pierre afirma que uma das grandes questões da luta ambiental é não mostrar o que ela tem a ver com o cotidiano: “Mas um dado além é que não temos grandes expoentes, pessoas que são capazes de pensar o que significa esse dia-a-dia do meio ambiente. Na Índia, temos a Vandana Shiva, mas no Brasil não temos uma pessoa assim. Eu, depois desses anos trabalhando com a justiça ambiental, vejo que tropeço todo dia, o tempo todo, no meio ambiente...”. Não tínhamos, Jean-Pierre...Je

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66 democracia viva nº 966 democracia viva nº 27

Jean-Pierre leroye n t r e v i s t a

Você nasceu na França. Em que momento e por que resolveu vir para o Brasil?Jean-Pierre – Eu era religioso na França,

era de uma congregação presente em vários países e regiões do mundo. Sempre dizia que, se fosse para sair da França, minha preferência era o Brasil. Não estava nada a fim de ir para a África e sempre acompanhei a conjuntura latino-americana. Em 1968, eu estava motivado a deixar a França desde que houvesse essa oportunidade. Como ela não surgia, fiquei na França mesmo, trabalhando no meio operário, lidava com migrantes no norte da França, portugueses e norte-africanos, vindos da Argélia, do Marrocos. Fui trabalhar no meio operário enquanto esperava uma vaga no Brasil.

E o que o levou a se tornar padre? É uma tradição na sua família?Jean-Pierre – Venho de uma família bas-

tante religiosa, tanto do lado do meu pai como do lado da minha mãe. Já criança, queria ser padre. Vivi no oeste da França e depois no norte. Minha família é basicamente da roça: meu pai era ferroviário, mas todos os meus tios eram pequenos agri cultores. Tem também a questão da militância, meu pai era sindica-lista, eu freqüentava, quando adolescente, a militância operária. Isso também fazia parte do meu universo. Participei da Juventude Operária Católica, tinha uma grande moti-vação social. Sempre fui muito motivado, muito empolgado para fazer algo no social, tanto que, quando decidi dar o passo além, definitivo, ninguém se intrometeu.

Quando você deixou a França?Jean-Pierre – Em 1970, uma equipe de

colegas que estava no Pará me convidou para ir para lá. Era para morar no litoral, com os pescadores. Eu me lembrei de que, quando criança, morava à beira-mar. Então, antes de vir para o Brasil, resolvi rever como era viver da pesca e convidei uns amigos para pescar de arrastão no oeste da França; só ao chegar aqui me dei conta do quanto era diferente...

Mas a viagem demorou, deveria ter vindo em 1970 e só cheguei ao Brasil no fim de 1971. Era a época da ditadura, e a concessão de vistos para quem era religioso ou ligado à Igreja Católica era complicada. O governo dava muito mais facilmente vis-tos para pastores americanos, mas para a Igreja Católica, não. Dizia-se que, de cada 300 vistos concedidos, apenas um era para a Igreja Católica.

Como foi sua chegada ao Brasil?Jean-Pierre – Fui para a região do Salgado,

localizada no litoral do Pará. Como eu achava que não sabia nada da realidade – e não sabia mesmo –, decidi não atuar como padre, mas ir à pesca e à roça para conhecer um pouco dessa vida. Passei oito meses assim: no domingo, acompanhava a missa calado, não fazia nada. Também passei um tempo no Rio de Janeiro em um curso de aculturação para, além de apren-der português, ter estudos sobre a história, a cultura e a arte.

No Pará, em que cidade você ficou?Jean-Pierre – Em Magalhães Barata. Na

época, não existia luz e só havia um carro, da prefeitura. Vi carne duas vezes nesse período: no casamento da filha de um comerciante e numa festa envolvendo política. Senão, era só peixe, caranguejo, siri, nada de carne. Também se comia farinha d’água com um pedaço de peixe seco e, às vezes, açaí. Não era uma região produtora, mas tinha um pouco de açaí.

Depois, fui para Belém, ainda como reli-gioso. Um colega decidiu ser técnico agrícola porque chegou à conclusão de que só ser pa-dre e rezar missa não levava a nada; e eu não quis ficar sozinho. Fui padre em Belém durante um ano, depois comecei a fazer pesquisa de campo. Foi assim até 1974.

O que foi mais difícil nesse processo de adaptação?Jean-Pierre – O calor. Quanto ao restante,

eu me adaptei bem. Era um ambiente muito diferente do que estava acostumado na França, evidentemente. Mas a diferença entre mim e os brasileiros de outros estados que também chegaram à Amazônia é que eu era estran-geiro e sabia que não entendia nada de Ama-zônia. Eles, por serem do Brasil, achavam que sabiam e, na verdade, eram tão estranhos à região quanto eu. Foi um período em que as migrações eram pouquíssimas, era realmente um outro mundo. Não só pela pujança da natureza, que por si só impressiona muito, mas eram também as pessoas, os costumes, a cultura, as tradições, as comunidades, era tudo muito diferente. Se eu não tivesse tido esses meses de convivência antes de começar a trabalhar, teria feito muito mais besteiras do que fiz. Realmente, era preciso aprender aquele modo de viver, de ser, de se relacionar daquelas pessoas e comunidades. Para mim, foi uma experiência fantástica.

Quanto tempo foi padre?

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Jean-Pierre leroye n t r e v i s t a

Jean-Pierre – De 1962 a 1974. Decidi deixar a congregação religiosa por proble-mas pessoais. Viver sozinho no Brasil não era nada fácil, vi que realmente não era por aí que eu poderia ajudar. Como religioso, achava o trabalho muito limitado. Mesmo atuando nas comunidades de base, faltava alguma coisa. Quando decidi deixar a con-gregação, os colegas me deram seis meses de salário, era o tempo que eu tinha para encontrar um trabalho que correspondesse às minhas aspirações ou voltar para a Fran-ça. Depois de um mês e meio, Mateus, um colega da Fase do Pará, soube da minha decisão e me convidou para trabalhar para a Fase em Santarém. Foi meu primeiro trabalho sem ser padre.

Como foi esse primeiro trabalho na Fase?Jean-Pierre – A Fase tinha na época dez

ou 12 programas no Brasil todo. No Pará, eram quatro ou cinco. Em Santarém, o trabalho era em torno de pequenos agricultores, na verda-de, eram semi-extrativistas. A Fase trabalhava também com as comunidades ribeirinhas, em Tapajós. Hoje, uma parte dessas comunidades se reconheceu como indígena, mas, na época, não queriam ser índios. Quando perguntáva-mos: “Vocês são índios?”, eles respondiam: “Índios, não!”. Outra parte do trabalho era feito no Rio Amazonas, na região do Ituqui em uma comunidade quilombola, que na época também não se considerava assim, e outra cabocla, formada pelas populações ribeirinhas. Em meio a tudo, duas coisas me atraíam mais: a possibilidade de reorganizar o movimento sindical rural e a questão da defesa da terra.

No Ituqui, meses antes da minha chega-da, as comunidades já tinham sido avisadas de que a terra seria comprada por uma grande empresa. Nosso trabalho, então, se dirigiu imediatamente para ajudar na re sistência dessas comunidades. Foi uma experiência interessante e me permitiu ver que, no fundo, essas comunidades tinham uma relação com a terra que não era base-ada na propriedade, isso não existia. Eles veneravam a memória ancestral da posse, dos pais, dos avós, bisavós. Essa relação com a terra, com a sua realidade, chamou a minha atenção. Era a evidência de uma relação que combinava várias formas de sobrevivência, a pesca, a terra, as casas. Apoiamos muito essa luta.

E conseguiram resistir?Jean-Pierre – Sim, mas não foi fácil. Eu

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Jean-Pierre leroye n t r e v i s t a

e uma colega da Fase, Cristina, fomos de-nunciados. Correu um boato de que a Polícia Federal tinha dito que seríamos presos por subversão. Isso em um lugar pequeno, ima-gina! A conclusão é que, durante três meses, onde a gente sentava ninguém sentava perto, ninguém ficava onde a gente estivesse. Até hoje, as pessoas lembram da gente e desse trabalho, foi uma ação muito interessante. Além dos laços de amizade que fizemos, que foram muito profundos.

Nessa época, ainda havia a movimentação de tropas por causa da Guerrilha do Araguaia?Jean-Pierre – Sim, mas naquela região a

maior presença era a do Batalhão de Enge-nharia, por causa da Transamazônica. Mesmo assim, o Serviço Secreto foi pesquisar sobre nosso trabalho na região. Dissemos que a questão da terra era deles e não da Fase, que estávamos ali para fazer hortas. A isso eles não atribuíam nenhuma importância.

Outra coisa em que me envolvi muito no Pará foi a organização sindical. Como já estava motivado para isso desde a França, fiz um convênio com pelegos e trabalhadores rurais para ajudar na formação das delegacias sindicais. Fizemos uma cartilha que correu o Brasil inteiro chamada O que é sindicato. Contribuímos para a formação dos primeiros sindicatos de trabalhadores rurais do país. Mas essa é uma outra história, foi depois que eu saí de Santarém.

Você deixou Santarém para ser diretor nacional da Fase?Jean-Pierre – Não, deixei Santarém para

ir ao Maranhão. A Fase estava estudando um grande projeto, financiado por uma mul-tinacional suíça. Essa empresa dizia ter uma preocupação com o social e veio negociar com a Fase. Só que eu saquei imediatamente que a coisa não iria para frente e que dali surgiriam contradições profundas muito rapidamente.

O trabalho seria na região de Pindaré, onde viveu o sindicalista Manoel da Conceição, uma região em que ainda havia gente do PCdoB na clandestinidade. Era um clima barra pesada. Fiquei lá pouco tempo, menos de três meses, mas organizamos um encontro de lideranças de agricultores e tirei uma foto. Das pessoas fotografadas, duas morreram assassinadas, uma desapareceu e duas tiveram que fugir, ou seja, significa que mais da metade sumiu. Foi uma época muito difícil e estranha, tinha a grilagem por parte da família Sarney. Só assumi a direção da Fase em junho de 1978.

Você foi diretor durante quanto tempo?Jean-Pierre – Fiquei sozinho até 1983. De

1984 até 1986, dividi a direção com o Jorge Eduardo Durão, que permanece até hoje. Tí-nhamos combinado que eu deixaria a direção e assumiria um novo programa a partir de 1987: eu seria o coordenador do programa de meio ambiente e desenvolvimento. Eu já havia convidado o Cândido Grzybowski, que também era da Fase, para que trabalhasse comigo, mas o dinheiro do programa não veio. Nessa época, o Betinho vinha me cantando para que eu fosse para o Ibase. Eu respondia: “Nem pensar, agora que deixei a direção da Fase, não estou louco para assumir a direção do Ibase”. Ele convidou o Cândido, que veio conversar comigo, e eu disse: “Aceita!”.

Acho que tive mesmo um papel importante na história do Ibase. Antes mesmo de ser criado, fiz parte de um grupo que deu apoio coletivo à idéia. Eram pouquíssimas as ONGs na época, tí-nhamos muita credibilidade, e esse foi um apoio de peso. Conversei e também discuti muito com o Betinho, inclusive sobre nossas trajetórias pessoais, mas creio que ajudei bastante. Depois disso, trabalhei vários anos como consultor na Novib [agência financiadora holandesa] e participava das avaliações do Ibase.

Tinha ajudado também a criar a AS-

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Jean-Pierre leroye n t r e v i s t a

-PTA [Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa], que, a princípio, era um programa da Fase voltado para a agricultura orgânica – na época era o que se trabalhava, depois é que começamos a trabalhar a agricultura alternativa. Era uma preocupação minha desde o tempo do Pará, achava que a agricultura, tal como eu conhe-cia, não dava. As pessoas não tinham capital técnico, conhecimento para criar um modelo. Eu tinha visto muitas pequenas experiências que considerava interessantes. A minha idéia era encorajar as pessoas envolvidas nessas experiências a se reunirem para propor alter-nativas à agricultura. Isso foi em 1982, 1983, hoje é conhecido como agroecologia.

Como foi sua participação na Rio 92?Jean-Pierre – Só em 1990 soubemos que

ocorreria a Rio 92, até então apenas as enti-dades mais ligadas à questão ambientalista sabiam. Não lembro como, mas passou nas minhas mãos um comunicado que se cons-tituiria num coletivo de organizações. SOS Mata Atlântica, Vitae Civilis e o Centro de De-fesa da Amazônia já estavam nessa articulação. Soube que haveria um encontro em Nova Fri-burgo e achei que seria interessante participar. Encontrei um clima horroroso de disputa, que não entendi bem, porque se tratava de criar uma coordenação, assumir responsabilidades. Acabei intervindo e me pediram para assumir a coordenação do encontro para que não terminasse mal. Tive sorte porque, como não era do meio, foi mais fácil apaziguar as coisas. Depois, me pediram para entrar na coordenação desse fórum.

Trata-se do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para Meio Ambiente e Desenvolvimento? Jean-Pierre – Sim, mas na época se cha-

mava Fórum Preparatório à Conferência da Sociedade Civil à Rio 92. A idéia era fazer uma conferência paralela à conferência ofi-cial e fizemos o Fórum Global das ONGs. Era um fórum bastante abrangente; na coorde-nação, eram cerca de 12 entidades. Estavam lá as principais organizações dos movimentos de mulheres, os vários setores do movimento negro, todos do movimento ambientalista, ONGs do campo mais social, ONGs ligadas ao desenvolvimento e à agricultura... A CUT [Central Única dos Trabalhadores] esteve presente desde o começo, mas as suas bases participaram menos. O MAB [Movi-

mento dos Atingidos por Barragens] entrou, mas outros poucos movimentos participaram. O MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] não entrou, a Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura] participou mais ou menos. Mas, para a épo-ca, foi um leque bastante aberto que fez com que o termo socioambiental ganhasse peso. Era um encontro sobre meio ambiente e desenvolvimento, mas já com a perspectiva socioambiental. Obviamente, isso não era muito evidente, os ambientalistas não tinham es sa tradição, a preocupação deles era específica com a natureza.

Muitos dos inte-grantes desse fórum não tinham essa per-cepção socioambien-tal, isso surgiu du-rante as discussões sobre a importân-cia das populações em relação ao meio ambiente. Mui tos defendiam a Mata Atlântica e a existên-cia de parques e de sistemas de conser-vação, subestiman-do a importância das comunidades e populações tra-dicionais. Quando falavam de biodi-versidade, falavam apenas da biodiver-sidade da natureza, mas nunca pensa-vam, por exemplo, nas sementes do pequeno agr icul-tor. Foi durante os debates da Rio 92 que essa percepção mudou. Essas pontes que se criaram talvez sejam uma das coisas mais interessantes...

Que outros resultados teve o Fórum Global das ONGs?Jean-Pierre – Ocorreram avanços em

vários setores para além do ambientalismo. As feministas começaram a pensar sobre a sustentabilidade e sobre o meio ambiente, o movimento negro também passou a pen-

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sar além das suas questões. Começaram a pensar a sua relação com o meio ambiente sustentável. Outro resultado foi que todos acabaram questionando o que era esse mo-delo de desenvolvimento vigente. Mas o fato de tornar inseparável a questão ambiental da questão social foi a experiência mais interessante.

O Fórum Global foi um marco. Dentro dele, fizemos também o Fórum Internacio-nal, que discutiu os tratados. Tivemos muita abertura para essas discussões, tivemos diálogos intensos sobre o marco social, o marco do meio ambiente e desenvolvimen-to, o marco da desigualdade... Ao olhar os tratados, hoje, vemos que ficaram coeren-tes, interessantes, reuniu gente de todo o lugar. Acredito que foi algo único, ficou como referência para vários encontros internacionais que vieram depois.

Fizemos também, na época, um pequeno livro que colocou as posições do coletivo: Meio ambiente e desenvolvimento: uma visão das ONGs e movimentos sociais brasileiros. Lembro muito bem de que a maioria das

pessoas que estavam na coordenação não acredi-tava em tantos resultados, mas passou por cima e se envolveu diretamente, o Ibase também participou. Isso mostrou que, coleti-vamente, a gente podia produzir algo e com uma coerência razoável. A própria existência, até hoje, do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para Meio Ambiente e Desenvolvimento é um resultado dessa articulação. Você continua na coordenação?

Jean-Pierre – Não, eu fiquei na coordenação do fórum só até 1993 porque fui contra a sua continua-ção depois da conferência. Dizia que não podíamos viver de lembranças, mes-mo que fossem boas, mas fui voto vencido. Continuei a participar, mas o fórum

ficou um pouco esvaziado. Mais recentemente, houve um encontro importante em Belo Hori-zonte, que mostrou que ainda há centenas de instituições motivadas. Acho que formamos uma geração de pessoas com um determinado perfil e modo de pensar o meio ambiente.

Antes da Rio 92, havia uma luta de especialistas ou de alguns grupos, como a luta pela terra. O próprio Chico Mendes se dizia um defensor da terra, não usava o termo ambientalista.Jean-Pierre – É verdade, Chico Mendes

nunca se denominou ambientalista, ele se denominava sindicalista. Só depois o termo ambientalista se tornou positivo e bem-aceito. Eu também nunca tinha me definido como ambientalista e fazia questão de dizer que não era um.

Mas hoje você se define como ambientalista?Jean-Pierre – Eu não me defino como

tal, mas no fundo acho que sou. Tenho uma trajetória ligada à pequena produção, ligada a várias regiões. Assessorei o Fórum PTA, um fórum de entidades que têm projetos alternati-vos para a agricultura. Acompanhei a trajetória de entidades que caminhavam na direção da agricultura ecológica, das associações de base.

Considera que o conceito de socioambientalismo já foi absorvido pela sociedade civil?Jean-Pierre – Acho que sim, hoje encon-

tramos dentro da sociedade pessoas que têm intuitivamente o raciocínio de que a questão ambiental é importante para o Brasil e que ela tem a ver diretamente com as nossas vidas. A questão é que o socioambientalismo precisa ser mais bem percebido pelos que estão nas lutas pelas mudanças.

Foi um marco termos esse conceito na Rio 92, e me preocupava com sua durabili-dade. Quando houve a Rio+5, descobri que seria duradouro ao retomar o contato com algumas pessoas para animar um grupo e montar um relatório. Todo mundo topou, foi fácil juntar o grupo – foi um sinal de amadurecimento enorme. O marco era cla-ríssimo, o socioambientalismo estava como referência. Porém, mais uma vez ficaram de fora os conservacionistas. Para eles, conser-vação é conservação, e o povo nada tem a ver com isso. Eles nunca abriram mão disso e estão evoluindo devagar. Mas também não entraram certos movimentos sociais que fa-zem um trabalho interessante, mas que nunca

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colocaram o conceito socioambiental como estratégia central. Eu me refiro especialmente, à época, ao MST e à Contag. Hoje, no caso do MST, suas lideranças já absorveram esse conceito, mas não está consolidado, e existem setores que não internalizam. Na Contag, isso se deu por setores, mas efetivamente, há limites.

E o movimento feminista incorporou esse conceito?Jean-Pierre – Não, a situação é a mesma

que de outros movimentos. Hoje estamos que-rendo fazer uma ponte para tentar recuperar o debate feminista sobre a sustentabilidade, mas não sabemos onde nem quem procurar. Esse foi um dos movimentos que fez um refluxo. Precisamos estar entre mulheres, precisamos do Planeta Fêmea. Há momentos em que é importante discutir entre si, mas há momentos também em que conseguimos avançar justa-mente porque nos abrimos para o diálogo, para o confronto com outros setores. E acho que o movimento feminista não fez isso de maneira suficiente. Internamente, pode ser que tenha debate, mas falta efeti-vamente ampliar essa visão. A esse respeito, no primeiro Fórum Social Mundial, encorajei a ONG Ser Mulher a organizar uma oficina sobre o que cunhei como a luta contra os transgênicos e mercantilização do corpo da mulher, um só combate. A oficina teve quatro pessoas: as organizadoras e eu, que fui dar minha solidariedade. Em 2005, com o apoio da Fundação Böll, fizemos uma oficina do mesmo tipo, aí vieram cem pessoas, estava cheio mesmo. Então, isso mudou. Mas veio uma liderança de uma organização femi-nina e disse: “Jean-Pierre, eu fiquei muito preocupada porque a gente nem conseguiu se entender no nosso campo e você já quer que a gente faça alianças”. Ela expressava como era difícil para a organização da qual fazia parte refletir sobre essas questões e, portanto, entrar para o debate público. Sabe que nos Estados Unidos um embrião de mulher branca e intelectual custa US$ 40 mil? Esse de-bate é uma forma de trabalhar o feminismo e a questão ambiental, mas veja como é difícil.

Outro exemplo vem do movimento negro, que foi bem atuante na Rio 92. Quem é ligado ao candomblé sabe que não tem nada mais próximo da natureza: os orixás são energias da natureza. Mas isso ficou só em um grupo, de-pois a gente não mais ouviu esse debate. Agora, é como se a questão negra só fosse ligada aos quilombos. Houve um afastamento, o debate

não mais se aprofundou. É claro que a sensibilidade ficou, o movimento sabe que o tema é importante, mas a luta concreta não tem a ver com isso, não chegou a se incorporar como uma agenda de trabalho permanente.

E do que se trata o conceito de racismo ambiental?Jean-Pierre – Em 2001,

organizamos um seminário em Niterói com uma pesqui-sadora da UFF [Universidade Federal Flumi nense] e pesqui-sadores do Ippur [Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano Regional] sobre jus-tiça ambiental. O pesquisador Robert Bul lard, dos Estados Unidos e especialista no as-sunto, veio a esse encontro, onde nós criamos a Rede Brasileira de Justiça Ambien-tal. Existem estatísticas que mos tram como os negros são afetados pelo racismo ambiental. Por exem plo, se a maioria dos moradores de favela é negra, esse grupo sofre mais as mazelas desse tipo de ambiente. Discutimos também sobre a situação do Quilombo de Alcântara e em que medida seus moradores eram vítimas de um racismo ambiental. O que ficou nesse seminário foi a idéia de que deveria existir no Brasil o racismo ambiental, mas que não era um conceito assumido pelo movimento negro. Tanto que, neste ano, vamos fazer uma oficina de trabalho com várias organizações sobre isso. Queremos saber o que o movimento negro tem a dizer sobre isso.

Qual a sua avaliação dos impactos do processo Fórum Social Mundial sobre o sociambientalismo?Jean-Pierre – Eu achava que a questão

ambiental teria mais presença no Fórum So-cial Mundial, retomando desde o primeiro. Para mim, meio ambiente somos nós dentro desse universo, somos nós dentro desse território e como nos relacionamos com ele e que projetos temos para esse território, que cidadania para amanhã e cidadania para além do Bra-sil. Sempre achei que a questão ambiental é central. Culturalmente, filosoficamente ou

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espiritualmente, isso nos ajuda a repensar a relação com o outro e os impasses do desen-volvimento. Acho tão chocante o modo como o território está sendo apropriado, privatizado, acho que isso é uma questão central e pensei que já haveria uma compreensão mais avança-da sobre isso. Portanto, quem quisesse discutir democracia, desenvolvimento, paz colocaria a questão ambiental dentro. E não foi o que aconteceu, não é o que está acontecendo.

Sempre foi um tema à parte no Fórum Social Mundial. Quem tra-balha com a questão ambiental tem difi-culdade também de relacionar isso com as outras questões, é recíproco. Este ano, fiquei chateado ao perceber que o prin-cipal evento ligado à questão ambiental – não lembro o nome, era um evento brasi-leiro, com a ministra [Marina Silva], meio governamental, do qual participaram muitas pessoas – teve destaque por causa de algumas personalidades, e não por causa do tema. Foi um evento brasileiro, em que havia algumas pes-soas estrangeiras, mas não discutiu propostas para o desenvolvimento do Brasil, para o futuro do país. Isso marca, é um limite muito nítido. Mas indo por dentro, em peque-nos eventos, dava para achar muitos

que faziam conexões, que ligavam uma coisa com a outra. Mas mesmo assim o tema não conseguiu se impor como uma idéia-força para o coletivo. Acho que a referência para pensar o futuro ainda é esse debate, a referência ainda é muito esse desenvolvimento que temos. Não conseguimos nos deslocar ainda para pensar com liberdade.

Dentro da questão do meio

ambiente, um tema que tem se destacado é a questão da água. Jean-Pierre – Isso é porque existem grandes

lutas pela água atualmente. É um debate no qual muita gente está antenada. Além disso, existem os processos em curso em Cochabamba e, no Brasil, a questão da transposição do São Francisco. O problema é que a discussão tem sido apenas técnica, no caso da transposição. Não se discute o futuro, temos essa dificuldade. Discutir a água é sair um pouco da água; discu-tir bacia não é falar de água. Para discutir o Rio São Francisco, é preciso falar de qual projeto serve para a agricultura no Brasil, que futuro para a gestão do território teremos. Discutir apenas a água é mais fácil como gancho, mas também não teremos controle das conseqüên-cias. Não temos outro projeto, outra proposta, talvez também por estarmos tão vencidos que seja desanimador. Minha sensação é de que as pessoas têm medo de ser acusadas de utópicas, de não ter os pés no chão.

Os primeiros debates ambientais falavam de problemas evidentes, por exemplo, da poluição dos rios, do lixo. Hoje, fala-se de coisas como efeito estufa, um tema que não é tão visível. Existe um debate conceitual que faz com que riscos reais não sejam percebidos?Jean-Pierre – O tema do efeito estufa e a

questão do clima é o campo onde se constitui um corpo científico que trabalha com técnicas extremamente sofisticadas de projeção, avalia-ções de futuros. Há um campo internacional de cientistas que já vem de duas ou mais décadas e que faz um lobby extremamente forte. Esse debate geral é supersofisticado, mas abstrato. Já a biodiversidade avançou menos porque não tem o mesmo suporte científico, não há um corpo científico tratando disso, é mais com-plicado. Mas é verdade que algumas questões parecem tão distantes da nossa realidade que não sabemos como encará-las.

Há efetivamente um descompasso muito grande, e esse foi um dos motivos que nos le-varam a criar a Rede de Justiça Ambiental. Meio ambiente tem a ver com a nossa vida. Quando discutimos clima com o pessoal do Pará, por exemplo, temos que mostrar que a época de chuvas, que já foi de sete meses, é hoje de apenas cinco meses; simplesmente dois meses sumiram, isso é muito, muda muita coisa. Vi, em Santarém, cupuaçu secar mesmo embaixo de árvores, não rendeu nada porque há seca que antes não havia. Não dá para falar simples-

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mente do efeito estufa, mas das mudanças que não se percebem a não ser quando acabam em catástrofe, por exemplo, quando faltou energia elétrica. A grande questão é mostrar efetiva-mente às pessoas que o meio ambiente é mais próximo do que elas pensam e que pensar a cidade, pensar água e energia é pensar a rela-ção da cidade com o meio ambiente, pensar no entorno, na questão agrícola, nas áreas de preservação, o tipo de agricultura, e por aí vai.

Uma das grandes questões é justamente não mostrar o que essas discussões têm a ver com a nossa vida cotidiana. Mas um dado além é que não temos grandes expoentes, pessoas que são capazes de pensar o que significa esse dia-a-dia do meio ambiente, isso não se traduz em grandes cabeças, em porta-vozes. Na Índia, temos a Vandana Shiva, mas aqui no Brasil não temos uma pessoa assim. Essa compreensão de meio ambiente não é algo automático para as pessoas em geral. Eu, depois desses anos trabalhando com a justiça ambiental, vejo que tropeço todos os dias, o tempo todo, no meio ambiente...

Parte das suas reflexões tem um lado de militância, mas parte tem a ver com a sua atuação no projeto Brasil Sustentável e Democrático. Pode contar quando surgiu esse projeto e por quê?Jean-Pierre – Na Europa, também como

fruto da Rio 92, a instituição Amigos da Terra, de Paris, começou a se perguntar o que seria uma ação sustentável num país que vivia afo-gado em seu lixo, no estrume. Eles nos per-guntaram algo assim: “E se a gente parasse de

importar para mudar os padrões de produção e consumo no país, quais seriam as conseqüên-cias para o Brasil?”. Minha resposta foi: “Que tal consultarmos outras entidades para ver se juntos encontramos uma resposta?”

Foi a mesma filosofia que apliquei na Rio 92, no lugar do ‘eu sozinho’, vamos tentar nos consolidar, nos fortalecer; é uma questão metodológica que sempre persegui. Acho que a produção individual pode ser mais brilhante e mais aprofundada, mas a produção coletiva tem a vantagem de ter mais solidez, de repre-sentar conceitos de forma mais ampla e de ter um conceito político mais forte. Considerei mais interessante perguntarmos o que seria um Bra-sil sustentável, pois poderíamos dialogar com outros países a partir de uma posição nossa e, assim, não estaríamos apenas respondendo às perguntas deles.

Então, decidimos ter um programa para refletir sobre o país numa perspectiva de pensar o que seria um Brasil viável no futuro e como pensar de outro modo a sustentabi-lidade, o desenvolvimento, mais includente, e que garantisse o futuro do território. Essa foi a perspectiva da criação desse programa, que juntou a AS-PTA, o Ibase, o Pacs [Instituto Po-líticas Alternaticas para o Cone Sul], o Ippur, o Instituto de Economia da USP [Universidade de São Paulo] e a Fase. Con fesso que, com o tempo, ficou mais associado à Fase porque não conseguiu se manter como debate coletivo. Mas a idéia é essa.

O Brasil tem que responder a algumas grandes questões. A questão do trabalho é uma. Não dá para refletir nada que tenha

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a ver com o meio ambiente se não incorporarmos o que isso vai levar, o que isso vai aju-dar em termos de trabalho. A ques-tão da exportação, levando em conta o perfil internacional do Brasi l , é fun-damental. Não dá para pensar o que significa desenvol-v imen to s e não refletirmos sobre exportação em ter-mos de uso dos re-cursos, em termos de degradação do meio ambiente. A qualidade da vida, a questão da igual-dade, a questão da pobreza, como isso está relacio-nado com o meio

ambiente? Nossa idéia era dar uma visão transversal, tentando responder a alguns desafios para o Brasil, e avançamos um pouco nessa linha. Só que, no fundo, a gente acabou mostrando a incompatibilidade entre esse desenvolvimento tal como é hoje e qualquer possibilidade de sustentabilidade, de igual-dade e de democracia para o futuro. Cada documento que fizemos – e trabalhamos a questão da energia, da água, das florestas, mineração, questão urbana, cerrado, Ama-zônia – e qualquer tema misturado a essas questões transversais nos levaram a esse impasse. As reflexões que fizemos mostram que são simplesmente inviáveis esse modelo, esse desenvolvimento, essa agricultura, es-se tipo de industrialização para o Brasil. São contraditórios a qualquer tipo de projeto que queira possibilitar a sustentabilidade do território.

Quais os principais impasses nesse modelo de desenvolvimento?Jean-Pierre – Primeiro, se você quer partir

da necessidade de o Brasil dar conta dos seus compromissos internacionais, a exportação é sempre o valor central; não há nenhuma refle-xão sobre que exportação, como e para quê. É só crescer e exportar, isso é dado como um fato. Como vamos discutir agricultura familiar

se isso não tem a menor importância nesse contexto? No governo, há quem pense que a economia dos caseiros é muito mais importante do que a agricultura familiar, o rodeio é mais importante, então pronto, o agrobusiness deu certo e vai em frente, e é isso o que acontece.

Nos últimos anos, o crescimento industrial que tivemos é contraditório com qualquer pro-jeto sensato para o futuro do país. Ninguém pensa o custo de energia embutido nisso, é tão inviável, não há perspectiva. E a energia vai para onde, para quem e para quê? Todos dizem que o Brasil tem ainda um enorme potencial de água, só que isso significa a expulsão de milhões de pessoas. Estive em Minas, onde foram feitas 13 barragens; isso significa que 30 mil pessoas vão perder suas terras. Em agosto do ano pas-sado, em Belo Horizonte, fizemos reuniões, e cada representante de comunidade vinha dizer o que significavam para eles essas barragens. Algumas pessoas choravam do começo ao fim da reunião. Além disso, todo o agrobusiness, incluindo os usineiros fraudadores e falidos do Nordeste, agora falam de energia renovável, dizem que “o futuro está conosco”. O pior é que isso não é urgente de verdade porque a economia é um debate mais urgente do que o desenvolvimento democrático. Só depois pode-mos discutir, participar. Refletir sobre o futuro do Brasil é chegar a um impasse.

Quais alternativas seriam viáveis?Jean-Pierre – Por exemplo, a agricultura

ecológica. Há três anos, houve um encontro nacional na Uerj [Universidade do Estado do Rio de Janeiro] que reuniu 1.500 pessoas, com uma vitalidade tremenda e, agora, certamente há muito mais, muito mais. Se a agricultura eco-lógica ainda não tem a capacidade de mostrar impacto suficiente é porque não há políticas para isso. Se pegarmos a questão do transpor-te, temos alternativas, sabemos que existem caminhos, mas não interessam. Construção popular para resolver o déficit habitacional? Há vários modos de encarar isso, existem formas de sustentabilidade com aproveitamento de mate-riais locais. O Brasil tem escolas de arquitetura e engenharia que vêm pensando em soluções baratas, tem mutirões, tudo para fazer, mas a legislação para fazer não sai. Em cada setor, vemos acúmulos fantásticos, mesmo no caso da energia. Energia com biomassa é possível, assim como articular sistema diversificado de produ-ção, criar uma descentralização maior... Mas nada disso acontece, não há políticas para isso.

Mas o projeto Brasil Sustentável serve também para vermos a

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urgência de retomarmos essas reflexões, em termos estratégicos. Qual perspectiva você vê? Ou você está abandonando essa linha do Brasil sustentável?Jean-Pierre – Eu quase abandonei, pensei

em ficar só na luta pelos direitos, mas percebi que ela era muito ligada à questão ambiental e ao desenvolvimento. As pessoas lutam e são vítimas porque não têm qualquer projeto de futuro. Então, voltamos às velhas questões. Acho que temos que mostrar que o que es-tamos dizendo é que esse modelo não vai para frente, que por aí vamos quebrar. Mas é importante mostrar que, sim, há alternativas, elas existem, têm potencial. Temos que mos-trar isso com mais força porque atualmente uma entidade tem duas experiências, outra tem três ou quatro, e não aparece como algo substancial. Devemos voltar a fazer conexões e mostrar, por exemplo, que esse projeto de 1 milhão de cisternas não vai resolver sozinho o problema da água, porque tem que se basear em um outro tipo de agricultura para o sertão. Esse tipo de conexão mostra que outra gestão de água é possível. Com o investimento que seria usado para a transposição, poderíamos dar uma injeção para mudar muita coisa. A produção, a microprodução, pode não parecer nada, mas pode permitir não só que a pessoa permaneça no mesmo local, mas também que dinamize a microeconomia local. Esse é apenas um exemplo, mas, em muitas áreas, temos que recuperar isso.

Como foi a experiência de ser relator nacional de direito humano ao meio ambiente da Plataforma Dhesc? Jean-Pierre – É muito cedo para avaliar.

Mas a primeira coisa que vi com essa função é que existe um direito humano ao meio ambiente, mas isso não é evidente. A Cons-tituição diz que todos têm direito ao meio ambiente brasileiro. Mas, conversando com os outros relatores, começou a ficar confuso. Um dizia: “Sou relator para a alimentação, vou pegar a questão rural e a água”; o outro com a saúde, saúde do trabalho. Fiquei pensando o que iria sobrar para o relator de direito humano ao meio ambiente, senão o direito de visitar par-ques nacionais? Eu não sabia, decidi ir logo à luta para ver se aquilo fazia sentido. Fui pelo mais fácil, pelo que conhecia melhor, o Pará. Justamente na época em que havia proble-mas sérios lá. Em Porto de Moz, os moradores, apoiados pelo Green peace, tinham bar rado o

rio por onde passava a madeira que saía de várias posses. Tinha ocorrido um conflito muito grande, um grupo tinha queimado um barco do movimento, uns tinham levado surra, e por trás estava o prefeito. Além disso, na Tran samazônica tinha sido assassinado o Ademir Alfeu Fede ricci, o Dema, coordenador do movimento pela sobrevivência da Transamazônica e do Xingu, e a morte estava ligada, evidentemente, a sua liderança e proposições no movimento por uma colonização diferente, uma outra agricultu-ra, mais amigável, contra os grileiros, contra a invasão das grandes fazendas e contra a Usina de Belo Monte. Tomei i sso como ponto de partida. Também havia a Dorothy em Anapu.

Uma luta parecida, não?J e a n - P i e r r e

– Sim, em Anapu t inham c r i ado o projeto de desen-volvimento susten-tável com apoio do Ministério do Meio Ambiente, mas que também não es -tava se viabilizan-do. Também eram madeire i ros, mas o ponto principal eram os grileiros. Em Anapu, conse-guimos fazer um encontro secreto, porque o clima de medo e ra mu i to grande, mas, nos outros lugares, em Porto de Moz, por exemplo, consegui-mos reunir 600 pessoas, todas se manifes-tando publicamente. Acho que isso teve um papel. Em Altamira, também tivemos bons resultados. Acho que demos ânimo às comunidades e despertamos o sentido da luta pela justiça ambiental. Um exemplo foi que o GTA [Grupo de Trabalho Amazônico] lançou a campanha “Na floresta têm direi-tos, justiça ambiental na Amazônia”. Estou

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falando do Pará, mas isso ocorreu em várias outras regiões. O primeiro passo foi mostrar às pessoas que elas têm esse direito, trazer essa visibilidade.

Por baixo da questão do direito, existem muitas pessoas e comunidades que se tor-nam invisíveis, e não falo só dos que estão no mato. Os atingidos, por exemplo, pelo amianto, em Osasco, são invisíveis, quem fala deles? Eles nem têm acesso aos seus prontuários médicos, isso lhes foi negado, não têm história de doença. A justiça não re-solve nada, e eles vão morrendo. O pessoal da Associação dos Atingidos pelos Produtos Clorários, vítimas da multinacional francesa Rhodia, em Santos, é outro exemplo dessa invisibilidade. Durante 10, 20 anos, a Rhodia gerou um enorme impacto ambiental sobre os operários e sobre a população.

Muita gente neste país é considerada in-visível, são grupos sociais que não interessam a ninguém ou porque já foram descartados ou porque nunca serão alvo desse desen-volvimento. A luta pelos direitos é uma luta pela dignidade das pessoas, pela cidadania. A luta pela justiça ambiental, pelo direito humano ao meio ambiente pode ser forte porque coloca em questão que a vida da pessoa é a sua relação com seu futuro e com o desenvolvimento do país.

Quando se fala em injustiça ambien-tal, são sempre os mesmos que pagam os

custos desse desenvolvimento, o pobre, o trabalhador, o negro, a mulher. Os custos desse desenvolvimento para eles chegam da pior forma, agredindo sua saúde, suas águas, tirando suas terras e por aí vai. Foi o que aconteceu com os negros nos Estados Unidos, eram pessoas frágeis, e o lixo tóxico era enviado para onde eles moravam. Nós estamos fazendo a mesma coisa, são os mu-nicípios sacrificados. São lugares onde tudo é possível, quem vai reclamar? São pessoas pobres em lugares onde ainda predomina a lei da pistolagem, quem vai reclamar?

Vi que efetivamente era esse o caminho, e conseguimos muita mobilização ao mostrar que o meio ambiente tinha relação estreita com toda essa situação. O projeto da Plata-forma Dhesc, com seus relatores nacionais, foi apropriado principalmente por esses grupos atingidos e permitiu que lutassem pelo resgate de sua dignidade, que voltassem a ser sujeitos de direito, cidadãos. Além disso, permitiu, em vários lugares, fazer encaminhamentos com o Ministério Público federal ou estadual ou órgãos de fiscalização.

Poderia citar alguns exemplos?Jean-Pierre – Em Pernambuco, denun-

ciamos uma fazenda que estava avançando sobre um manguezal. O Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recur-sos Naturais Renováveis] nos mandou um

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Jean-Pierre leroye n t r e v i s t a

*iracema dantas

Coordenadora de

Comunicação do Ibase

Participaram desta

entrevista: Cândido

Grzybowski, diretor-

geral do Ibase, e

AnaCris Bittencourt,

subeditora da

Democracia Viva.

relatório sobre as vistorias que fizeram no local e as decisões que foram tomadas para mudar aquela situação. No interior de Mato Grosso, um grupo de pequenos agricultores foi deslocado de uma área que virou reserva indígena, Ouro Branco, para um assenta-mento chamado Liberdade. Só que, quando chegaram lá, o assentamento estava ocupado por grileiros, produtores de soja. Eles viviam em condições atrozes, não tinham organi-zação, não tinham condições básicas de hi-giene, não tinham nada. Fizemos denúncias e demos coragem à turma de se mexer e também interpelamos o Ministério Público.

A questão dos cinta-largas é emblemáti-ca. Estive lá em 2003 e escrevi um relatório informando as coisas graves que poderiam acontecer. Só não sabia que matariam brancos... Esses índios estavam em um isolamento de dar dó, com processo nas costas, com medo de sair. Uma das coisas que mais me chamaram a atenção em todo lugar foi como as pessoas acham que são livres para circular, mas não são. Há comunidades inteiras ameaçadas que não podem sair do seu pedaço porque têm medo de morrer. Era o caso não só da Dorothy, mas também dos índios, a mesma situação... Mas o que a gen-te vê também é a dificuldade da Promotoria Pública para realmente poder agir. Se isso não mudar, podemos tirar o cavalo da chuva, essa idéia de buscar o desenvolvimento sustentável para a Amazônia não vai ocorrer. A força do poder público, se não for articulada, nada vale.

Mas o Ministério Público Federal não tem atuado?Jean-Pierre – É uma situação muito grave,

mas percebemos que é possível. O exemplo do enfrentamento do trabalho escravo mostra que há caminhos possíveis e que existe gente a fim de colaborar em todos esses ministérios, órgãos, na Polícia Federal etc. Basta dar con-dições para essas pessoas agirem, o que não ocorre hoje. Quanto mais o poder público se ausenta de propósito, mais mostra sua fraqueza, mas, de outro lado, mostrando que a força está conosco. Outro dia, vi uma reportagem em que madeireiros ilegais di-ziam que não aceitam uma dada demarcação indígena. Como não aceitam? São pilantras, que praticam o contrabando de madeira, e, com a cara mais lavada do mundo, dizem que não aceitam a lei! Sabem que a lei existe, mas sabem que não terão problemas. Esse tipo de violação fica parecendo a coisa mais normal do mundo.

A questão que precisa ser debatida é séria. Além de repensar o país, de mostrar caminhos de desenvolvimento, precisamos recuperar o sentimento de indignação com tanto desres-peito. Quando vi os 30 mortos na chacina da Baixada Fluminense, pensei: “Como a situação é a mesma, seja nos rincões do Brasil e aqui em nossa porta”. É a mesma lógica do desmando e do mando, aqui e lá. As populações mais pobres, mesmo aqui do Rio de Janeiro, estão tão distantes do poder e da classe média como a Dorothy estava lá em Anapu, a distância é a mesma. Aliás, quando estive com a Dorothy, em Anapu, na tal reunião secreta que já falei, ouvi relatos impressionantes sobre a ação de grileiros. Ouvi coisas como: “ele tentou me atro-pelar no caminho, me joguei no mato porque escutei o carro”, “queimaram meu barraco, mas felizmente, a gente tinha saído com a família algumas horas antes”. Dentro do possível, até contava que fosse ouvir isso. Mas o único mo-mento em que me vieram lágrimas nos olhos foi quando ouvi: “Sabe como os grileiros derrubam nossos lotes? Vão derrubando a partir da peri-feria, em direção ao centro e, quando chegam no meio, deixam uma moita e colocam fogo. O fogo vai se aproximando da moita, de longe, a gente escuta o grito dos macacos, dos bichos todos, morrendo asfixiados e queimados”. Para esses moradores, é como se os grileiros estives-sem dizendo: “Olha como temos poder, somos os donos da vida e da morte”. Isso é realmente de dar lágrimas nos olhos.

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Há exatos quatrocentos anos, Dom Quixote de La Mancha encanta mortais de todas as partes do mundo. Herói da literatura de cavalaria andante, criado pela imaginação delirante do fidalgo Alonso Quijano, um vo-raz leitor da literatura de cavalaria andante, ele próprio fruto da delirante imaginação do marinheiro Miguel de Cervantes, que preten-deu escrever uma paródia para ridicularizar a influência, para ele nefasta, da cavalaria andante. Obra de gênio, tomou as rédeas do autor, frustrou sua intenção e se eternizou como a apoteose da literatura de cavalaria andante e primeiro romance moderno. Desde a infância as proezas de Dom Quixote de La Mancha habitam minha imaginação – confis-são, aliás, que serve aos que pretendam, como Cervantes, usar meus delírios para provar que a literatura de cavalaria andante é nefasta às crianças. Malgrado eventual dano à minha

Quatro séculos do maluco

saúde mental – do que não o culpo nem me queixo, visto não ser exemplo para ninguém – afirmo que ler o Dom Quixote estimula a imaginação de qualquer pessoa, em qualquer idade, entre outros prazeres. Quatro séculos como o livro mais vendido do mundo, exceto a Bíblia, provam sua universalidade.

A primeira parte de O engenhoso fi-dalgo Dom Quixote de La Mancha foi escrita em sete anos. Surgiu em Madri em janeiro de 1605, a segunda, dez anos após. Na sábia, feliz calma em que o escreveu, Cervantes jamais sonhou um tal futuro para o livro – a condição para se escrever uma obra eterna é não se propor a tal. Tolerante quando a Inquisição assava gente na fogueira, foi um escritor atento ao sonho humano. Freud per-deu por ignorá-lo.

Nos transes de delírio que assombram a sua pacata vida de leitor, Alonso Quijano

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alcione araú[email protected]

torna-se Dom Quixote. De lança e escudo, sai pelas poeirentas trilhas da Mancha sobre o esquálido Rocinante, seguido pelo fiel Sancho Pança. Movem-no a heróica vontade de fazer justiça, a emoção da aventura, o desejo de se apaixonar. Seu sonho é restaurar o Paraíso Perdido ou construir o paraíso na terra – so-nho inaugural que a história humana apagou, mas que ecoa no mais profundo da nossa consciência como valor eterno. O homem real, egoísta, ganancioso individualista e violento fez da meta de Quixote uma uto-pia; do nome, o ridículo. O cínico posa de realista e chama de quixotesco o sonho de Quixote. Para Cervantes, só um louco pode encarnar um ideal que o ser humano sonha, mas sua vida nega. E metamorfosear Quijano em Quixote é concretizar, na própria ficção, o que imaginamos ao ler. Quijanos sonhando ser quixotes, não nos identificamos com o pobre Quijano, mas com a fantasia dele, Quixote.

Alonso Quijano convence o vizinho a ser seu escudeiro em troca de imaginária ilha a ser conquistada. Com Sancho, a dupla inaugura a contrastação para representar as contradições e ambigüidades humanas, com a antinomia entre mundo real e ideal. Quixote, alto e magro, Sancho, baixo e gor-do; Quixote idealista, Sancho materialista; sonhador, realista; destemido, cauteloso; aventureiro, acomodado; perdulário, sovina, etc. Homem real, o leitor sabe que Quixote e Sancho coexistem nele; ora curva-se à

vontade de um, ora à de outro, e toca a vida, sem pensar em síntese. Vem daí o humor, para sublimar as angústias do existir.

Quando Quixote ataca gigantes com três braços, Sancho avisa que são moinhos de vento. O escudeiro convence o amo de que são moinhos e não gigantes? Jamais! Nem mesmo ferido, após o ataque, se rende: inventa o mago que transformara gigantes em moinhos para privá-lo da glória de vencê--los. No que Sancho jamais acreditará. Eis a metáfora da radical diferença de percepções de mundo, que remete à dificuldade de co-municação e irremissível solidão. O que não impede que o mundo gire, Quixote mande e Sancho obedeça. A tragédia se insinua entre risos, e sutilmente redesenha o herói como o Cavaleiro da Triste Figura.

Quixote encanta pela loucura da luta por ideais dos quais a razão desistiu – os humanistas, domesticados pela razão cínica, viraram técnicos em acomodação. Quixote, como Cervantes, foi-se em agitação criativa e penúria material: “Alonso Quijano, entre lágrimas e quejas de quienes lo rodeaban, dio su espiritu; quiero decir que se murió”. Quatro séculos após a sua vinda, restam o quixotesco de anedota, frases divertidas, fugaz admira-ção. Do ideal, apenas a glória do derrotado. Venceu o pragmatismo de Sancho. Mas vale a pena ler, quimeras são sempre divertidas; a infância – ou a loucura – ainda mora na alma deste quixotesco cronista.

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Socioambientalismo e novos direitosJuliana SantilliEditora Peirópolis 303 págs.

O livro Socioambientalismo e novos direi-tos surgiu de projeto de pesquisa da autora para obter o título de mestre em Direito na Universidade de Brasília (UnB). Sua publi-cação é uma realização conjunta do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) e o Instituto Socioambiental (ISA), duas organizações com trajetórias e experiências distintas, mas cujos objetivos se unem na promoção do desenvolvimento sustentável na perspectiva socioambiental.

A autora traz uma análise sobre a in-fluência do socioambientalismo no sistema jurídico constitucional e infraconstitucio-nal brasileiro, enfocando especificamente os dispositivos constitucionais referentes à cultura, ao meio ambiente, aos povos in-dígenas e quilombolas (minorias étnicas)

e à função socioambiental da propriedade. No âmbito infraconstitucional, enfoca a lei que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), em especial as categorias essencialmente socioambientais por ela delineadas (re-servas extrativistas e de desenvolvimento sustentável), bem como esboça alguns elementos fundamentais à construção de um regime jurídico sui generis de proteção aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

O livro começa com uma análise do desenvolvimento histórico e do con-texto político e social do surgimento do movimento socioambientalista no Brasil. Inicialmente, discorre sobre as origens do ambientalismo brasileiro e traça um breve panorama de sua evolução histórica e de seus principais marcos, essencial para uma me-lhor compreensão da trajetória de alianças com os movimentos sociais, que culminou no socioambientalismo – movimento que desenhou a sua história e definiu os con-ceitos e paradigmas que lhe são próprios. Segundo Juliana, o socioambientalismo desenvolvido a partir da segunda metade da década de 1980 e consolidado na década de 1990, principalmente após a Eco-92, foi estabelecendo seus próprios conceitos e paradigmas, que, por sua vez, foram sendo incorporados cada vez mais ao discurso e à prática política e jurídica.

Quando, posteriormente, a autora analisa o processo constituinte brasileiro e o seu significado para a democratização da América Latina, abre reflexões críticas sobre as grandes inovações em relação à tradição constitucional anterior e a inserção, na Carta Magna, de capítulos e artigos que plantaram as sementes dos chamados “novos direitos” e lançaram as bases cons-titucionais dos “direitos socioambientais”. Esses direitos se inserem no contexto dos

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novos paradigmas jurídicos, com base nos quais ela discorre sobre os disposi-tivos constitucionais dedicados ao meio ambiente, à cultura, aos povos indígenas e quilombolas e à função socioambiental da propriedade, interpretando-os de forma sistêmica e integrada.

A autora analisa a legislação infra-constitucional para demonstrar que a síntese socioambiental permeia todo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, que privilegia a interface entre biodiversidade e sociodiversidade, influenciada pelo multi-culturalismo e pela plurietnicidade.

Juliana afirma que os “novos” direi-tos socioambientais impõem a superação de conceitos velhos e surrados, como o direito de propriedade absoluto e ilimitado, que não admite restrições e limitações em face de direitos socioambientais. Impõe-se a superação do paradigma individualista e economicista dos direitos consagrados pelo chamado direito “moderno”. Não só a propriedade, materialmente considerada, deve cumprir a sua função socioambiental, mas também a propriedade imaterial, conhe-cida como “propriedade intelectual”, que até agora se limita a proteger as inovações geradas pelo saber considerado científico, tecnológico. A propriedade intelectual deixa, dessa forma, de cumprir qualquer função social ou ambiental.

Os “novos” direitos socioambientais rompem com os paradigmas da dogmática jurídica tradicional, contaminada pelo apego ao excessivo formalismo, pela falsa neutralidade política e científica e pela excessiva ênfase nos direitos individuais, de conteúdo patrimonial e contratualista, de inspiração liberal. Para a autora, os “novos” direitos, conquistados por meio de lutas sociopolíticas democráticas, trazem novos desafios à ciência jurídica, tanto do ponto de vista conceitual e doutrinário como de

sua concretização. São direitos histórica e democraticamente conquistados, e não se enquadram nos estreitos limites do dualis-mo público–privado, mas se inserem num espaço público não-estatal. Os aplicadores e intérpretes dos direitos socioambientais devem ser capazes de compreender o seu caráter inovador e a sua enorme generosi-dade conceitual.

Insiste a autora em que a efetividade dos direitos socioambientais exige um papel proativo do Estado na sua promoção, por meio de políticas públicas apropriadas e específicas. Distinguem-se, portanto, dos direitos “clássicos”, em que o papel do Estado se dá apenas na sua garantia, por meio de instrumentos repressivos quando são violados. Os direitos socioambientais só se efetivam mediante a ativa promoção de políticas públicas.

Apesar de o trabalho fazer uma aná-lise de instrumentos normativos, procura se referenciar e se socorrer de conhecimentos produzidos por outras áreas, especialmente as ciências sociais e biológicas, além de estudos antropológicos.

Socioambientalismo e novos direi-tos é uma viagem pelo processo de luta e de reconhecimento da diversidade cultural brasi-leira realizada por índigenas, seringueiros(as), quilombolas, pescado res(as), agricultores(as) familiares e outros segmentos sociais que emergem no cenário pós-democratização como atores políticos contemporâneos. Essa viagem ainda está em curso, em processo de afirmação de direitos sobre a biodiversidade e sobre os conhecimentos tradicionais a ela associada.

Alejandra Leonor PascualProfessora adjunta da Faculdade de

Direito da Universidade de Brasília (UnB)

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Direitos humanos no Brasil – Diagnósticos e perspectivasCláudio Moser e Daniel Rech (Orgs.)Ceris – Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais 412 págs.

Durante muitos anos no Brasil, principalmente a partir da década de 1960, a luta pelos direitos humanos esteve ligada exclusivamente à Igre-ja Católica. No início, a luta era por direitos políticos e civis e depois se voltou para toda uma gama de direitos que garantem a digni-dade humana: direitos econômicos, direitos culturais e direitos sociais, entre outros. Com o fim da ditadura militar, esses direitos foram parar em nossa Constituição Federal e muitos até possuem uma legislação específica (direito à saúde e direito à moradia, por exemplo). Porém, mesmo hoje, quando o Brasil já possui uma Secretaria Especial de Direitos Humanos, vinculada diretamente ao gabinete do presidente da República, ainda estamos longe de ver as

pessoas que têm seus direitos violados (em sua maioria, pessoas com baixo poder aquisitivo) serem atendidas pelas leis existentes, pois faltam estrutura e recursos para garantir esse acesso.

A questão dos direitos humanos no Brasil possui elementos que agravam, ainda mais, a situação de alguns grupos. Se olhar-mos a questão dos direitos humanos pelo viés étnico, por exemplo, vamos descobrir que a desigualdade no Brasil possui cor, ela é negra. Essa parcela da população não só é excluída de seus direitos, mas também é a principal vítima da violência institucional. E a história recente do país nos mostra isto: chacina de Vi-gário Geral, chacina na Baixada Fluminense; massacre em Eldorado dos Carajás, massacre no Carandiru, o caso da favela Naval em São Paulo, entre outros.

A partir da Constituição de 1988, o movimento social brasileiro ganhou fôlego. Por meio da Carta Magna do país, foram abertos novos canais de participação (resul-tado de muita luta por parte dos movimentos sociais da época) e, dessa forma, foi possível ampliar a capacidade da sociedade civil de monitoramento e controle social aos governos – principalmente em conselhos. Mas não foi só a Constituição, outros documentos puseram na ordem do dia a defesa dos direitos humanos, e todos eles tiveram ampla participação popular.

Contudo, o simples fato de termos uma legislação específica para a área de direitos humanos não quer dizer que concretamente eles serão respeitados. Exemplo disso é que, no Brasil, assistimos à execução de muitas lideranças de movimentos sociais e de orga-nizações populares que apenas queriam ver esses direitos respeitados.

São estes 45 anos de luta no Brasil que o livro organizado por Cláudio Moser e Daniel Rech analisa, mostrando o que já foi feito e o que ainda está por fazer. A divisão dos capítulos do livro não segue a mesma linha adotada pelo Pacto Internacional dos Direitos

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Civis e Políticos (PIDCP) e nem pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIEDSC). O conteúdo do livro tem como base a junção desses documentos e trata de analisar as condições necessárias para que haja respeito, proteção e promoção dos direitos humanos no Brasil.

O primeiro capítulo trata da questão do desenvolvimento e meio ambiente, escrito por José Augusto de Pádua, professor da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro. O autor diz que um meio ambiente degradado trará como conseqüência uma vida social degradada. De-monstra, ainda, que o meio ambiente deve ser pensado não só como algo a ser preservado, ele deve ser visto como direito e que o caminho que queremos seguir (para algumas pessoas, já estamos nesse caminho) rumo ao desenvolvi-mento tem que ser sustentável também do ponto de vista ambiental. Nesse capítulo, enumera-se uma série de problemas que afetam diretamente o meio ambiente, tais como: espaços urbanos com grande contingente populacional, falta de saneamento básico, falta de acesso à energia, um número ainda grande de pessoas que migram para as cidades, contaminação por agrotóxicos, desmatamento, lixões, enchentes etc. Todos esses problemas, segundo o autor, devem ser enfrentados para que se possa garantir o direito humano a um meio ambiente saudável.

Já o terceiro capítulo trata da realidade agrária brasileira e foi escrito por Daniel Rech, técnico do Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris). Ele aponta como problema crucial da área o seguinte item: traba-lhadores e trabalhadoras rurais não têm direito à terra, à liberdade e ao trabalho. O estudo as-sinala que no Brasil ainda persistem as grandes propriedades, e isso influencia diretamente a luta pela posse da terra, diminui a capacidade produtiva, favorece a especulação imobiliária e aumenta o número de pessoas sem terra. Além disso, mostra que o país carece de uma política agrícola – a qual existiu somente no fim da

década de 1960 – que privilegie o pequeno produtor em vez da produção voltada para exportação. Ainda figuram como problemas da realidade agrária brasileira esvaziamento do campo, baixa remuneração da agricultura, trabalho escravo, elevação dos custos de pro-dução, perda da diversidade e muitos outros que comprometem uma gama de direitos. Para termos esses problemas resolvidos, o autor aponta como solução uma reforma agrária ampla, o fortalecimento da agricultura familiar, ampliação da produção de alimentos ecológi-cos e desenvolvimento local sustentável. Essas políticas públicas transformarão as relações no campo, que hoje se apóiam no clientelismo, e passarão para uma nova fase na qual homens e mulheres do campo conduzirão seus próprios destinos.

Além de sete capítulos, o livro traz ainda uma sessão especial com enfoques específicos nas seguintes áreas: afrodescendentes, crianças e adolescentes, idosos e idosas, povos indígenas, migrantes, pescadores e pescadoras e pessoas portadoras de deficiência. Vale ressaltar que, embora apareçam num capítulo separado, esses temas estão presentes nos primeiros capítulos do livro, pois todos(as) os(as) au tores(as) acredi-tam que, para resolver o problema dos direitos humanos no Brasil, é necessário trabalhar cada item transversalizado pela questão de gênero, raça-etnia etc.

O livro é uma obra imprescindível para aquelas pessoas que se ocupam das questões de direitos humanos no Brasil, atores da sociedade civil e integrantes dos governos, pois, somente trabalhando unidos, esses dois grupos serão ca-pazes de criar soluções para as políticas públicas na área de direitos humanos, contribuindo para a melhora substancial da qualidade de vida da sociedade brasileira.

Luciano CerqueiraCientista político, pesquisador do Ibase

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CARLOS CARVALHO/BRASIL IMAGENS

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O projeto de transposição das águas do Rio São Francisco é um dos carros-chefes do pre-

sidente Lula e também uma das maiores polêmicas em seu governo. Nos últimos grandes

encontros realizados pela sociedade civil organizada – como o Fórum Social Mundial

2005, em janeiro, ou o Fórum Social Nordestino, em novembro de 2004 –, debates,

passeatas e manifestações fizeram ecoar um rotundo “não!” à idéia. Até mesmo dentro

do governo, as opiniões estão divididas. Agora, existe a possibilidade de a população

contribuir com esse debate, por meio de um plebiscito popular que seria realizado no

primeiro domingo de outubro de 2006, simultaneamente ao primeiro turno das eleições.

O Projeto de Decreto Legislativo (PDC) foi apresentando em maio e aguarda votação. A

proposta de transpor as águas do Rio São Francisco como saída aos problemas causados

pela seca no semi-árido nordestino é histórica, surgiu na época do imperador Pedro II

e voltou à tona com força na década de 1980, mas sem sucesso. O projeto atual está

em tramitação na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e deverá

passar também pelo crivo das Comissões de Minas e Energia e de Constituição e Justiça e

de Cidadania. Nesta edição, a revista Democracia Viva busca contribuir para este debate,

trazendo os olhares do engenheiro agrônomo Sérgio Pinheiro Torggler, que aborda os

aspectos econômicos do projeto; e da feminista Carmen Silvia Maria da Silva (da ONG

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Perpetuação do assistencialismoSérgio Pinheiro TorgglerEngenheiro agrônomo

A defesa do projeto de transposição do Rio São Francisco está baseada na alegação

de que tecnicamente o projeto pode ser feito, devendo gerar um pólo de agricultura

irrigável no polígono das secas, fixando e gerando renda no sertão do Nordeste, e

que esses benefícios justificam por si sós os investimentos de R$ 4,5 bilhões (US$

1,67 bilhões). Já as críticas ao projeto apontam apenas os aspectos ligados ao

volume de água retirado do rio e seus efeitos no aspecto de potencial hidráulico,

de irrigação e de natureza ambiental na porção a jusante do desvio. Esta análise

busca demonstrar que os efeitos econômicos do projeto são relevantes e que os

malefícios econômicos serão enormes para a sociedade brasileira, representando uma

transferência de recursos de contribuintes para o beneficiamento de poucas pessoas,

que serão subsidiadas com esse projeto por décadas.Como tem sido debatido, a destinação maior do projeto é a criação de núcleos de agricultura irrigável. Assim, o que procuraremos demonstrar é a viabilidade de se cobrar o custo real da água transportada

da atividade agrícola e verificar, desse modo, a viabilidade da iniciativa. Ou seja, o processo será comparar os custos da água transportada como fator de produção agrícola, apurando a participação desse custo na receita bruta de agricultores e agricultoras.

Para que se possa demonstrar inequivo-camente a tese levantada, é preciso conhecer os custos do projeto, mais particularmente o funcionamento dos processos físicos de trans-posição e suas grandezas. O cerne do projeto é representado por dois números: o primeiro é a capacidade nominal projetada de transportar 60 m3/s, ou seja, o volume a ser desviado, e o segundo e mais importante número é a altura de recalque (metros) – uma vez que essa água será bombeada morro acima para transpor a barreira geográfica entre as bacias hidrográ-ficas, no caso 160 m de altura (475–315 m). No entanto, haverá recuperação de parte da energia despendida no bombeamento pela geração de energia hidroelétrica na descida, sendo que as colunas de água úteis na geração somam 92 m (472–380 m). Mas como há per-das na conversão da ordem de 30%, pode-se dizer que a energia recuperável equivale a um desnível de 64 m, permitindo, assim, calcular que a altura líquida total a ser bombeada será de 96 m (veja figura a seguir).

Quando o projeto estiver em funciona-mento, teremos dois custos a serem analisados. O primeiro grupo é dos variáveis, basicamente for-

mado pelo custo da energia consumida, ou seja, custo aplicado ao processo. O segundo grupo é constituído dos custos fixos, representados pelos custos administrativos operacionais, depreciação e juros; esses custos fixos independem do volu-me de água transposta, existindo mesmo que o projeto não opere.

Sempre que possível procuraremos trabalhar com unidades que permitam com-paração, ou seja, reais por metro cúbico (m3), metro cúbico/hectare (m3/ha), e, assim, no fim, será possível avaliar diretamente os efeitos nas atividades beneficiadas pela água – agricultura ou consumo humano.

Análise do custo variável

O custo da energia consumida para o bombe-amento da água é praticamente a totalidade do custo variável dessa atividade, uma vez que o bombeamento é a única atividade realizada com relação direta e proporcional ao produto. A quantidade de energia consumida na atividade pode ser calculada utilizando-se o padrão teórico da quantidade de energia para erguer água, no caso utilizaremos o quilowatt-hora (kWh), sendo que 1 kWh corresponde à energia necessária para elevar 1 m3 de água a 360 m de altura, ou 360 m3 de água a 1 m de altura.

Na transposição, cada metro cúbico transposto deverá ser recalcado (erguido) 96 m de altura, ou seja, teoricamente consumirá 0,27

transPosição das águas do rio são francisco

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kWh (96 m/360 m). No entanto há de se aplicar um fator de eficiência da conversão, uma vez que no bombeamento há perdas por meio de calor e atrito, devendo ser aplicada mais ener-gia que o cálculo teórico, sendo que o índice normal das bombas de mercado apresenta 70% de eficiência (índice para calcular a potência real de saída usando a potência nominal de consumo motor). De outra forma, o índice pode ser de 142% quando se calcula a entrada (motor) a partir da saída (água transportada). Assim, cada metro cúbico transportado com consumo teórico de 0,27 kWh exigirá uma demanda real de energia de 0,38 kWh (0,27 x 1,42 ou 0,27 / 0,70).

Conhecido o consumo de kWh para cada metro cúbico transportado, precisa-mos transformar esse consumo de energia em custo monetário. A discussão será a determinação do valor do kWh, podendo seguir diversos caminhos: um deles é apurar o custo real da concessionária geradora e distribuidora; outro é adotar o valor aplicado a outros consumidores de mesma atividade (tarifa diferenciada da agricultura de outras regiões) ou também usar o valor-padrão de custo internacional.

A primeira alternativa, cálculo do custo da concessionária, é difícil e complexa, não cabendo seu uso aqui. As atividades que rece bem energia elétrica com custo diferenciado, tais como indústria e irrigação, pagam uma média de US$ 0,05 por kWh consumido (fora

do horário de pico). O padrão internacional do custo de kWh (sem diferenciação) é da ordem de US$ 0,10 por kWh. Portanto, para nosso raciocínio, utilizaremos doravante o menor custo (US$ 0,05/kWh).

Resta agora apurar o custo do metro cúbico transposto, multiplicando-se o consumo de kWh/m3 pelo custo. O resultado é igual ao produto de 0,38 kWh/m3 por 0,05 US$/kWh, dando custo de 0,019 US$/m3.

Quando se faz bombeamento em pe-quenos projetos, quase a totalidade da água bombeada é utilizada na irrigação, mas em projetos desse porte, que utilizam canais construídos e naturais por longas distâncias, é preciso considerar as perdas por evaporação, vazamento e infiltração. No caso, para faci-litar os cálculos, mas não sendo muito fora das perspectivas reais, consideramos que as perdas serão de 50%, ou seja, de cada 100 m3 bombeados apenas 50 m3 serão utilizados em agricultura irrigada comercial. Assim, para se cobrar a energia gasta no sistema, o custo de energia da água utilizada será de 0,038 US$/m3.

Agora devemos apurar o impacto desse custo na atividade agrícola, para uma unidade de área-padrão de 1 ha, ou seja, comparar a receita bruta de 1 ha de milho com a despesa de água gasta nessa mesma área.

Para facilitar os cálculos, admitimos os seguintes parâmetros da lavoura de milho em es-tudo: cem dias de irrigação, produtividade 150 sc/ha (saca por hectare), consumo de água de 50 m3/

Figura

PerPetuação do assistencialismo

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dia. A receita bruta de 1 ha será o produto de 150 sc (alta produtividade, 9.000 kg/ha) vezes preço de 8,52 US$/sc, totalizando US$ 1.278.

A despesa de água será calculada pelo produto do consumo de 50 m3/dia (média da região do São Francisco) por cem dias e pelo preço de custo de 0,038 US$/m3, totalizando 190 US$/ha, equivalente a 14,9% da receita bruta.

Esse custo é aparentemente suportável, mas impl ica uma perda de competiti-vidade permanente da atividade perante as demais áreas agrí-colas que tenham alta produtividade e não utilizem irriga-ção. Também é rele-vante constatar que esse custo é apenas da energia e que pro-jetos normais de irri-gação trabalham com recalques hidráulicos muito menores, da ordem de algumas dezenas de metros, e trabalham próximo da eficiência máxima de utilização da água, ou seja, apenas uma fração do custo ener-gético desse projeto.

Essa energia está sendo dispen-sada apenas para dis ponibilizar a água para as propriedades ribeirinhas da bacia recebedora. Para que essas propriedades se uti l izem dessa água para irrigação, ainda haverá a ne-cessidade de recal-

ques adicionais até a área de cultivo.Dos cálculos energéticos podemos retirar

uma crítica secundária, mais relativa ao efeito dessa obra no sistema elétrico regional, que se-guiria o seguinte raciocínio: cada metro cúbico bombeado consumirá diretamente 0,38 kWh do sistema regional de geração mais a perda da energia que o mesmo metro cúbico produziria se fosse utilizado na geração, calculado em

mais 0,24 kWh (a altura útil da usina de Paulo Afonso é de 85 m), totalizando uma perda de 0,62 kWh/m3. Se o sistema de transposição operar um mês a plena carga, representará um “aumento” de consumo de energia do sistema da ordem de 95 milhões de kWh.

Análise dos custos fixos

Nesse projeto, identificamos três grandes grupos de custos fixos: os operacionais administrativos, a depreciação da obra e os juros do capital investi-do. Os custos fixos são, por natureza, proporcio-nais ao tempo, e não à produção, isso implicando que existirão se o sistema operar em plena carga ou não funcionar. Nesta análise, utilizaremos como unidade de tempo o ano, apurando-se as despesas anuais, e depois dividiremos pelo volume de água transportada.

O custo operacional administrativo anual deverá ser da ordem de R$ 30 milhões, sendo suas premissas calculadas seguindo este raciocínio: haverá de ser constituída uma em-presa pública para gerir as atividades, com os devidos cargos de confiança políticos, os cargos técnicos gerenciais e os cargos operacionais de administração e manutenção. Em virtude do caráter público e do tamanho da obra, além das pressões políticas, estimamos que a atividade terá 500 funcionários(as) diretos(as) a um custo médio de R$ 3.000 (lembramos que englobam os custos indiretos), totalizando despesa anual de R$ 18 milhões. Acreditamos que haverá uma despesa adicional de R$ 12 milhões para manutenção das bombas, frota de veículos, maquinários, despesas administrativas, viagens, refeições etc.

A cobrança do custo de depreciação no preço do produto entregue representa a recu-peração do capital investido ao longo da vida útil estimada do projeto. Nesse sentido, seria a forma de o governo recuperar os impostos que investiu no projeto sem subsidiar consumidores e consumidoras finais do produto ou serviço oferecido. No caso desse projeto, em que a maior parte do investimento é para a constru-ção de canais, aquisição das bombas e linha de transmissão, a vida útil média foi estimada em 30 anos e o investimento total apontado pelo governo é de R$ 4,5 bilhões. Assim, calculamos que a despesa anual de depreciação seria de R$ 150 milhões.

O cálculo dos juros pressupõe que o governo recuperará a depreciação, cobrando na tarifa de usuários e usuárias, e assim o saldo médio

transPosição das águas do rio são francisco

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devedor nos 30 anos é estimado pela média do saldo devedor inicial e final, R$ 4,5 bilhões e zero, ou seja, R$ 2,25 bilhões. Aplicamos juros anuais de 12% sobre esse saldo, resultando em uma despesa de R$ 270 milhões. Lembramos que a taxa de 12% ao ano é inferior à taxa básica de financiamento da dívida pública, mas entendemos que 12% são uma boa estimativa para prever a média dos próximos 30 anos.

Somando os três grupos de despesas fixas, chegamos ao valor de R$ 450 milhões ou US$ 167 milhões anuais, que deveremos apropriar ao volume de água transportado para apurar o custo na unidade US$/m3.

Caso o projeto opere o ano inteiro na capacidade plena, teremos um volume de água transposto de 1.892 milhões de metros cúbicos, resultando em um custo fixo por metro cúbico de US$ 0,09.

No entanto, sabemos que o bombea-mento não poderá operar o ano inteiro, devendo haver um período em que não se poderá retirar água do Rio São Francisco, digamos quatro meses por ano, e também, mesmo no período normal de operação, nos horários de pico (3 h/dia), as máquinas deverão ser desligadas para não sacrificar o sistema de geração de energia com sua demanda extra. Aplicando-se a capacidade nominal de 60 m3/s sobre as horas efetivamente operadas, o volume a ser transportado será de 1.088 milhões de metros cúbicos, resultando em um custo fixo de 0,15 US$/m3.

Apurados os prováveis custos fixos por metro cúbico, podemos avaliar o impacto no custo de produção do milho, que tem um consumo estimado de 5.000 m3/ha, ou seja, o custo fixo, se cobrado na água transportada, representará uma despesa de 440 a 765 US$/ha, comprometendo de 34,5% a 59,9% da renda bruta do hectare de milho.

Esses cálculos estimam que toda água transportada será utilizada em atividade pro-dutiva, sem haver qualquer perda, fato que na vida real será impraticável. Acreditamos que, dificilmente, 50% da água transportada será utilizada na agricultura, pois o transpor-te na porção posterior ao bombeamento se utilizará em grande parte de canais naturais e percorrerá longas distâncias, com perdas por evaporação e infiltração. Assim, considerando a perda estimada, o custo fixo subiria para US$ 0,30/m3, implicando que a água utilizada na lavoura de milho consumiria 880 a 1.530 US$/ha ou 69% a 119,8% da renda bruta da cultura.

Quando somamos os custos variáveis aos custos fixos, a situação fica pior, o custo do m3 sobe para 0,338 US$/m3, fazendo com que as despesas de água atinjam a cifra de 976 a 1.353 US$/ha. Isso corresponde somente o cus-to água, sem com putar os custos de semente, adubo, ma quinário, mão-de-obra, diesel, ma-nutenção, administrativa, juros, defensivos etc.

Assim, na vi da real, a cobrança do custo da transposição a usuários e usuárias finais inviabili-zará a atividade agrí-cola, atividade que justificaria o projeto por propiciar a redu-ção da miséria e faria a inserção da área na economia competiti-va, criando empregos e melhorando a renda do(a) trabalhador(a).

Críticos desta análise poderão ques-tionar afirmando que a cultura do milho é uma atividade de baixa rentabilidade e que fruticultura e outras culturas po-deriam proporcionar maior rendimento por área e, assim, serem mais viáveis mes mo com o custo de irrigação. Real-mente, a participação do custo da água so-bre o rendimento da cultura pode ser me-lhor na fruticultura, mas afirmamos, sem precisar fazer conta, que o custo não será inexpressivo e será sempre uma fonte de risco e perda de competitividade da atividade.

Subsídio da sociedade

Mas o que significa a não-cobrança dos custos ao(à) usuário(a) final? Significa subsídio que o restante da sociedade pagará por meio de impostos para cobrir o déficit público. No caso dessa obra, se a população economicamente

PerPetuação do assistencialismo

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90 democracia viva nº 27

Lógica do absurdoOs projetos de irrigação viáveis são aqueles que, por atribuição, conseguem transportar água pelo menor custo. Os parâmetros que condicionam são distâncias e alturas de re-calque. Áreas próximas ao rio e de topografia plana são as áreas ideais em termos de custo/benefício, constituindo a já parcialmente ex-plorada margem ribeirinha do São Francisco. Existem vários pequenos projetos (em relação à transposição) nas margens do São Francisco paralisados por falta de recursos, mas que re-únem ótimas condições para projetos agrícolas competitivos que, somados, suplantam em área irrigável o projeto de transposição, gastando--se uma fração do investimento. O excedente de recursos poderia ser utilizado na melhoria das demais infra-estruturas de transporte e escoamento da safra com fins de aumentar a competitividade dos produtos dessa região. Outro aspecto estranho do projeto é o custo do hectare irrigado criado, encontrado quando

dividimos o investimento de R$ 4,5 bilhões por 65 mil ha, que chega a um custo de R$ 69.230/ha (25.641 US$/ha), custo superior às melhores terras do Brasil e equiparando-se ao custo de terras agrícolas nos Estados Unidos. Não ficaria mais barato comprar terras no Paraguai ou no Centro-Oeste, transportar os nordestinos que seriam beneficiados pela irrigação para lá cons-tituírem suas atividades agrícolas de subsistência e transformar parte do polígono das secas em um imenso parque nacional? Se a eficiência do uso da água transposta for de 100%, a área irrigável será de 130 mil ha, passando a relação investimento por hectare a valores de R$ 34.615 ou US$ 12.820, valores ainda muito expressivos e maior que muitas terras agricultáveis do sul do Brasil.

ativa for de 60 milhões de brasileiros e brasilei-ras, cada um(a) terá de recolher US$ 2,70 anuais, apenas para custear esse projeto de irrigação, pelos próximos 30 anos.

Quem se beneficiará, primeiramente, serão proprietários de terra: calculamos que, se 60% da água transportada for utilizada em irrigação (653 milhões m3) e que sejam feitos dois ciclos culturais na mesma área ao ano, esse projeto proporcionaria uma expansão da área agrícola de 65 mil ha. Proprietários dessas terras ganharão a valorização imobiliária, pois suas terras passarão a ser “competitivas” com as melhores terras do país, proporcionando um ganho de US$ 1 mil a US$ 5 mil /ha.

Além disso, políticos da região ganha-rão mais cargos políticos para preencher, e as construtoras ganharão grandes obras para executar. Não cabe discutir a lisura dos ganhos desses agentes ou das possibilidades de ganhos fraudulentos nas obras, pois muitos deles são passivos na história, tais como fazendeiros que serão subsidiados e construtoras que terão o ganho com essa ou outra obra mais “eficien-te”. O que é pertinente é a responsabilidade de se decidir por uma obra que perpetua o assistencialismo, cria e pereniza uma atividade deficitária para ser custeada pela sociedade brasileira como um todo.

A decisão de fazer uma obra inviável economicamente é o mesmo que construir uma pirâmide, acreditar que contribuintes po-

dem bancar qualquer capricho de governan-tes. O erro, nesse caso, é gerado pela falta de consulta ao seu corpo técnico, seguindo uma orientação com isenção política e financeira.

A eficiência do investimento, pro-porcionando retorno positivo para a so-ciedade, deve ser o parâmetro que norteie os investimentos públicos. Deve-se procurar identificar um ganho de longo prazo maior que o custo de desenvolvimento. Podem-se enumerar diversos projetos, das mais diver-sas naturezas, que poderiam melhorar essa mesma região, com custo menor e retorno que proporcione a independência da região das tetas federais, tais como: investimento em turismo temático do interior nordestino, pesquisa agropecuária para desenvolver técnicas ou culturas próprias para o clima, melhoria da infra-estrutura de transporte para baratear o custo de insumos e de escoamento da produção das atuais áreas irrigadas ribeirinhas do São Francisco.

A obra de transposição nesse aspecto está condenada ao fracasso: ou se tornará um grande elefante branco ou se tornará um mecanismo de transferência de riqueza que beneficiará poucas pessoas.

transPosição das águas do rio são francisco

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Água não é mercadoria, é um direitoCarmen Silvia Maria da SilvaEducadora do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, organização que atualmente assume a secretaria executiva da Articulação das Mulheres Brasi-leiras (AMB).

De dentro do casebre, sob a luz do candeeiro, assim que o rio baixa, vê-se a torre

da igreja apontando no espelho d’água, ela é tudo que restou do povoado, aqui

onde esta comunidade viveu de plantar, onde aquela mulher aprendeu a dançar o

coco e aquele menino enterrou o avô...Essa desolação que toma conta do espírito das pessoas dos povoados cobertos pelas águas, em função das barragens que sustentam o setor elétrico brasileiro, também poderá ser sentida por quem

vive nas terras por onde poderão passar os canais da transposição do Rio São Francisco, que o governo insiste em chamar de “integra-ção de bacias”. E o que é pior: o projeto não foi montado nem para fins energéticos, nem para viabilizar água encanada para as casas do povo do semi-árido nordestino. As mulhe-res continuarão a carregar as latas d’água na cabeça para abastecer precariamente as suas casas, os políticos tradicionais continuarão a fazer circular os carros-pipas, a produção da agricultura familiar continuará definhando, e as crianças do Nordeste seguirão subnutridas e sem perspectivas.

As mulheres não querem esse futuro. “Não queremos a transposição do Rio São Francisco! Queremos, sim, que o governo fortaleça a pequena agricultura, que invista nas alternativas de convivência com o semi--árido e que escute os movimentos sociais do Nordeste sobre os projetos com os quais diz querer enfrentar os problemas da região!” Esse foi o grito que ecoou no Fórum Social Nordestino (FSNE), em novembro de 2004, e que se manteve na reunião regional da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), que congregou todos os fóruns de mulheres dos estados do Nordeste, em abril de 2005. Mas, enfim, por que a transposição do Rio São Francisco interessa tanto ao movimento de mulheres?

Em primeiro lugar, porque as mulheres – e em especial as mulheres negras – são a parte mais pobre da população brasileira. Portanto, todos os projetos de desenvolvimento que se proclamam como mecanismo de ‘combate à pobreza’ ou para sanear graves problemas so-ciais, que atingem as pessoas submetidas a essa abissal desigualdade econômica, interessam ao movimento de mulheres. O feminismo, em sua

luta contínua pelos direitos das mulheres, há muito denunciou que a estrutura econômica à qual estamos submetidos(as) inviabiliza a au-tonomia das mulheres. A situação de pobreza mantém a falta de acesso a bens e serviços, a quase total ausência de renda, o confinamento às suas casas e a trabalhos precários em áreas próximas e inviabiliza até o inalienável direito de ir e vir, de ter contato com a vida para além da esfera privada.

É também o movimento feminista que traz à tona a problematização sobre o tra-balho doméstico. Infelizmente, às mulheres ainda é imputado todo o trabalho doméstico, os cuidados com as crianças e com aquelas pessoas que não têm condições de cuidarem de si mesmas, mesmo que essas mulheres realizem uma extensa jornada de trabalho fora da residência. Isso também ocorre na zona rural, com a agravante de que, além do trabalho doméstico e de sua participação no roçado, as mulheres assumem as tare-fas do entorno da casa, como cuidados e alimentação de pequenos animais, hortas ou canteiros, beneficiamento de produtos, entre outros.1 E todos esses trabalhos reque-rem água, bem escasso que, no semi-árido nordestino, não chega às suas casas por meio de adutoras e canos, mesmo que elas morem próximo de um açude. Quando a família não tem um lombo de animal para transportar água, na maioria das vezes são as mulheres – e também as crianças – que fazem o serviço, andando longas distân-cias, desde o açude mais próximo até os seus quintais, transportando pesadas latas d’água ou trouxas de roupas.

Legado imperial

O governo diz que a transposição do Rio

água não é mercadoria, é um direito

1 “Mulher e trabalho na agri-cultura familiar”, de Ana Paula Portella, Carmen Silvia Maria da Silva e Simone Ferreira. Recife: SOS Corpo, 2004.

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São Francisco tem como objetivo enfrentar o problema da seca no Nordeste, favorecer a produção agrícola e mudar o cotidiano de sofrimento das famílias do semi-árido. Com isso, a elite nordestina se dividiu entre “estados doadores” e “estados receptores”, para serem respectivamente contra e a favor da transposição.2 A Organização das Nações Unidas (ONU) considera que há es tresse de água quan do a oferta é abaixo de 1.000 m3

anuais por pessoa. Pernambuco, o esta-do mais carente, tem uma disponibilidade média de 1.270 m3 anuais por pessoa. Tem, portanto, 270 m3 acima do míni-mo. Como afirma Malvezzi,3 “média é uma abstração, não significa o acesso e f e t i v o d a s p o -pulações à água, mas significa que a disponibilidade de água existe”.

O s m o v i -mentos sociais não funcionam na mes-ma lógica do go-verno. Eles vêem o Nordeste como um todo e como re-gião inserida den-tro de um projeto de nação, por isso questionam o mo-delo de desenvolvi-mento que está em curso e estranham p r o f u n d a m e n t e que seja exatamen-te Lula, que emer-giu de um vínculo estreito com a luta

social, o presidente da República a retomar a idéia que foi um legado do Império.

O povo Truká, comunidade indígena que tem suas terras próximas a um dos trechos fundamentais para o projeto da transposição, acredita que a retirada das águas do rio pode vulnerabilizar ainda mais o seu território e, com isso, a sua cultura e a saúde de toda a população. Esse foi o

tom da fala de Pretinha Truká durante a videoconferência sobre a controvérsia da transposição do Rio São Francisco, promo-vida pela coordenação do FSNE, no dia 2 de maio, em todas as capitais nordestinas. Reu-nidos(as) no 1º Encontro dos Povos Indígenas Ribeirinhos da Bacia do São Francisco, em mar-ço, na Bahia, indígenas de Sergipe, Alagoas, Bahia e Pernambuco manifestaram-se contra a transposição, pois acreditam que o mega-projeto, assim como outros semelhantes, só trazem desmatamento, desvio de águas para irrigação de grandes fazendas e o despejo de dejetos, esgotos e agrotóxicos.4

O movimento ambientalista e as or-ganizações da sociedade civil que trabalham com agroecologia informam que o Rio São Francisco não tem condições de fornecer água até que seja completamente revitali-zado, tenha suas matas ciliares recompostas e as cidades ribeirinhas tenham esgotamento sanitário. Hoje, muitas das populações do entorno do Rio São Francisco já não se be-neficiam de suas águas, em parte porque não há tratamento e distribuição; em parte porque as condições de assoreamento já não permitem navegação e a pesca fica cada vez mais difícil. Significa que a revitalização do Rio São Francisco é indispensável e deve ser realizada a partir de um projeto construído com participação popular, o que poderá gerar empregos e impulsionar a economia das pequenas cidades da região.

Em encontro nacional, em novembro de 2004, a Articulação do Semi-Árido (ASA) reuniu representantes de 11 estados, que também manifestaram sua posição contrária à transposição. A ASA chama a atenção para o fato de que a população do semi-árido é dispersa no território e que as experiências demonstram que é possível alcançar a des-centralização do acesso à água. Um exemplo é a realização de pequenas obras de baixo custo para captação e armazenamento, construídas a partir da participação ativa das comunidades e com uso de tecnologias apropriadas.

As experiências a que a ASA se refere são as cisternas de placa, barragens sub-terrâneas, bombas d’água manuais, entre outras. Pelos dados do projeto de transposi-ção, as águas do São Francisco só atingirão 5% da população do semi-árido, e, além disso, os cem municípios mais pobres, isto é, com menor índice de desenvolvimento humano

transPosição das águas do rio são francisco

2 Estados doadores: Minas Ge-rais, Bahia, Alagoas e Sergipe. Estados receptores: Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. Per-nambuco é ao mesmo tempo doador e receptor.

3 “Geografia da sede e hidro-negócio”, artigo de Roberto Malvezzi, Gogó, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), publicado no site da Inter-redes.

4 Divulgado no boletim Ações (ano 4, n. 21, jan./mar. 2005), do Centro de Cultura Luís Freire.

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(IDH), não constam entre os beneficiados.

A população brasileira ainda lembra que, no primeiro semestre de 2004, choveu bastante no Nordeste, mas para onde fo-ram essas águas? As mulheres que vão aos açudes buscar água ou lavar roupas sabem exatamente como funciona o sistema de armazenamento na região. Grande número de açudes vazou porque a qualidade da obra não comporta a quantidade de água com a qual o Nordeste foi brindado nesse ano. Outros, que se mantiveram firmes nas bordas, deixaram a água evaporar porque não possuem nenhum sistema de proteção sob o sol escaldante. Problemas semelhantes já foram resolvidos com tecnologia simples em várias partes do mundo que enfrentam condições semelhantes.

Interesses camuflados

O projeto visa captar água do São Francis-co e deslocá-la para os rios Jaguaribe (CE), Apodi (RN), Piranhas-Açu (PB e RN), Moxo-tó e Brígida (PE), por meio da construção de dois canais: o Leste, que levará água para Pernambuco e Paraíba, e o Norte, que chegará ao Ceará, Rio Grande do Norte e também Paraíba. Segundo o Fórum de Mu-lheres do Ceará, “para a sociedade cearense, passa-se a idéia de que esta será a grande beneficiada, principalmente as populações que vivem no sertão, mas não se diz que as águas do São Francisco serão transportadas para o Rio Jaguaribe para alimentar o Canal do Trabalhador (já privatizado) e o Açude Castanhão, que servirá aos interesses das megaempresas que se instalarão no Porto de Pecém”.5 O próprio governo afirma que levará água aos grandes centros urbanos do Ceará e Rio Grande do Norte, o que é realmente “chover no molhado”, já que nesses estados estão as duas maiores represas do Nordeste, Castanhão (CE) e Armando Ribeiro Gonçalves (RN).

A AMB considera que a transposição do Rio São Francisco faz parte de um proje-to para o país, um projeto que não rompe com o lugar estabelecido para o Brasil pelos países centrais: o de exportador de produ-tos agrícolas. Em função do equilíbrio de contas, o país investe muito mais na agri-cultura de exportação do que na produção para consumo interno, que é garantida pela agricultura familiar. A transposição do rio visa também levar água para beneficiar o

agronegócio, para alavancar a produção da fruticultura irrigada, a monocultura da soja, entre outras, além de favorecer os novos pólos industriais, como o vinculado ao Porto de Pecém e à crescente produção de camarões nos es-tados do Ceará e Rio Grande do Norte, o que tem se mostrado como uma atividade altamente predatória para o meio ambiente. Essas perspec-tivas econômicas, aliadas ao turismo de litoral (baseado em grandes empreendimentos) e a retomada da mono-cultura de cana-de--açúcar, fazem parte do que os governos a tua i s entendem como sendo uma proposta de desen-volvimento para o Nordeste.

Especialistas em polít ica ener-gética dizem que o projeto de trans-pos ição não traz também nenhum benef íc io para o enfrentamento da cr i se no setor , o que, de an temão, já compromete mes-mo a perspectiva governamental de d e s e n v o l v i m e n -to. O pesquisador João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) , lembrou, na vide-oconferência pro-movida pelo FSNE, a crise de forneci-mento de energia de 2001, provocada pela estiagem, e a so lução apresen-tada pelos setores governamentais, as termelétricas, que são quatro ou cinco vezes mais caras que as hidrelétricas.

Cálculos do próprio governo federal dão conta de que só poderão ser captados 25 m3 de água, e que o restante a ser atin-gido só será possível quando a Barragem de Sobradinho estiver vertendo, o que infelizmen-te não ocorre todo ano. O governo calcula

água não é mercadoria, é um direito

5 Manifesto contra a trans-posição das águas do Rio São Francisco. Fórum de Mulheres Cearenses, maio de 2005.

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também que a água deve chegar aos estados a R$ 0,11.6 Hoje, a água chega no lote de um irrigante ao custo de R$ 0,023 o metro cúbico, cerca de quatro vezes menos. Diante dessa situação, as políticas de incentivos e subsídios à agricultura irrigada adotadas pelo governo federal podem transferir os custos da água para as áreas urbanas, ou seja, o aumento do custo da água pode atingir sobremaneira as popu-lações pobres e, em especial, as mulheres –

que, além de serem o contingente mais pobre, a inda são responsabi l izadas por gerir a escassez de água nas resi-dências.

A o r e t o -mar o projeto de transposição do Rio São F ranc i sco, o governo brasileiro agudizou uma das principais polêmi-cas nacionais, mas essa situação nos possibilita colocar na agenda política o debate sobre a gestão das águas e o caráter do projeto de desenvolvimento para o país. A trans-posição é polêmica e realmente divide até os próprios mo-v imentos soc ia is , mas a revitalização do Velho Chico é consenso, unif ica todos os movimen-tos e até o governo. Por que, então, o debate é todo sobre a transposição, ou integração de ba-

cias, e não sobre os procedimentos e recursos para revitalizar o rio? A dotação orçamentária mostra a diferença entre a transposição e a revitalização na agenda de prioridades go-vernamentais: estão sendo destinados cerca de R$ 100 milhões para revitalização e R$ 1 bilhão para a transposição em 2005.7

Questão de seca ou de cerca?

Como se pode concluir, o problema do Nor-deste não é apenas de falta de água, e sim do risco, cada vez maior, de privatização do uso e da dificuldade de acesso à água de qualidade. O movimento de mulheres considera que a água é um direito humano fundamental, sem o qual não podemos ter a garantia da vida, da saúde e da produção de alimentos. Entretanto, parece que o governo federal está prenhe das idéias da política tradicional brasileira, que foram chamadas de “indústria da seca”, ou seja, a manutenção da velha po lítica de grandes obras hídricas que favorecem empreiteiras e grandes latifundiários. Tratar a água como moeda de barganha política é um risco não apenas para a vida das populações do semi-árido nordestino, mas também para o próprio sentido da construção da democra-cia e da justiça social no nosso país.

Neste momento em que estão em curso as negoc iações na Organização Mundial do Comércio (OMC), em especial as discussões sobre agricultura e as possi-bilidades de abertura do setor de serviços, causa-nos profunda preocupação que o governo possa pôr a privatização do trata-mento e distribuição de águas no território nacional, a serviço do capital estrangeiro, na mesa de negociações. A privatização, na verdade, já está em curso, porém perder o controle nacional sobre as águas pode vul-nerabilizar sobremaneira o país na disputa política internacional, além de aprofundar ainda mais as precárias condições de vida das pessoas que não tenham renda sufi-ciente para garantir o acesso.

A água é um bem escasso no mun-do. Todos os estrategistas dos países ricos sabem disso e, por esse motivo, têm feito manobras políticas e militares para pode-rem usufruir de territórios com aqüíferos. Se a água for compreendida mundialmente como um bem comum, ao qual homens e mulheres do mundo devem ter direito, a forma de desenvolver a política de águas será uma; já se for entendida como uma mercadoria, a ser controlada pelo mercado, no futuro a humanidade verá as pessoas no semi-árido nordestino e também nas periferias das grandes cidades morrendo à mingua, muito mais do que nas épocas de estiagem no sertão.

Nos debates ocorridos entre governo e sociedade civil, como a recente videocon-

transPosição das águas do rio são francisco

6 Dados fornecidos por Egídio Serpa, assessor especial de imprensa do Ministério da Inte-gração Nacional, em entrevista concedida ao boletim Ações (ano 4, n. 21, jan./mar. 2005).

7 Palavras de João Suassuna, no boletim Ações, (ano 4, n. 21, jan./mar. 2005).

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ferência do FSNE, a posição oficial tem sido a de desdenhar das preocupações apontadas pelos movimentos sociais, colocar a questão no âmbito do debate técnico e argumentar no sentido de que as críticas estariam vindo de quem nunca passou sede, uma vez que o projeto visa resolver o problema da água no semi-árido.

Essa forma de o governo conduzir a discussão, por um lado, parece buscar desqualificar a crítica elaborada por diver-sas pessoas especializadas e também de várias experiências de convivência com o semi-árido que têm sido estimuladas pelas organizações. Por outro lado, tenta tirar da área da política – e, portanto, do espaço pú-blico de negociação de interesses – um projeto bastante controverso, não enfrenta o problema a que se propõe e aponta possibilidades de inúmeros impactos sociais negativos sobre vários setores da população. Como disse Roberto Malvezzi,

é preciso politizar a sede como Josué de Castro politizou a fome e Paulo Freire a educação. Sem a politização da sede é impossível entender uma obra como a transposição do Rio São Francisco com todos os interesses subjacentes à sua insana implantação. A crise planetária da água, a sua pri-vatização, a sua mercantilização, seu uso intenso na irrigação, indústria e carcinicultura também estão incluídas na busca alucinante por seu controle.8

O projeto de transposição do Rio São Francisco e o discurso sobre ele, oriundo do governo, reforça um imaginário sobre o Nordes-te calcado na idéia de seca e pobreza, o que o mantém como uma região a ser “ajudada” por grandes obras negociadas em Brasília. O debate que os movimentos sociais vêm construindo segue outra direção. É muito cara aos trabalha-dores e às trabalhadoras rurais a idéia de que “o problema não é a seca, é a cerca”, e que a solução para isso é um processo de reforma agrária capaz de garantir terra, condições de produção e de comercialização de alimentos de qualidade. Os movimentos já apontaram também uma outra perspectiva para o problema da água com as inúmeras experiências de convi-vência com o semi-árido que têm enfrentado o problema do consumo humano e podem aportar con dições para a produção agrícola.

Para promover o desenvolvimento sus-

tentável do Nordeste é preciso democratizar a gestão da política de recursos hí dri cos, dentro da com preensão de que a água é um direito humano, e não mercadoria. Para mudar o co-tidiano das pessoas que vivem no semi-árido, é necessário democratizar o acesso à água, o que não será feito com os canais de transposição do São Francisco, que não chegam às populações dispersas nos territórios, mas sim com peque-nas obras próximas às comunidades como as cisternas, ao lado das casas, que po-dem possibilitar um trabalho planejado e distribuído entre as pessoas adultas da família para uso e gestão domiciliar da água.

água não é mercadoria, é um direito

8 “Geografia da sede e hidro-negócio”, artigo de Roberto Malvezzi, Gogó, disponível no site Inter-Redes.

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i b a s eo P i n i ã ocarlos tautz*

Uma janelahistóricaestá abertaHá uma janela histórica aberta para o povo brasileiro elaborar estratégias de desen-

volvimento nacional e democrático que resgatem dívidas de centenas de anos com

diversos setores da sociedade. O momento é especial: estão dadas as condições, interna

e externamente ao Brasil, para que essas estratégias sejam elaboradas sob os valores

que expressam o tremendo avanço político que a sociedade brasileira conseguiu nos

últimos 40 anos. Entre esses valores estão a eqüidade de gênero e de etnia, e a justiça

em suas vertentes social e ambiental.

Ter claro quais são alguns desses valores sociais já significa um passo importante

na definição de prioridades das estratégias, que devem atender a carências históricas

e, por isso mesmo, urgentes da maioria do povo brasileiro. A opção pelo pagamento

das dívidas históricas também confere a essa ação alguma qualidade perto de um

projeto ou de uma estratégia.

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Ser democrático e republicano na aplicação dos novos valores é um bom primeiro passo da caminhada. Ela, entretanto, só irá se materia-lizar à medida que forem sendo colocadas em prática políticas públicas para a distribuição do saber, da renda, do conhecimento, do acesso à justiça e, também, de uma relação em novos patamares com os recursos naturais do país, em especial com os recursos naturais cujo acesso e uso expressam mais fortemente os tipos das estratégias que se pretenda realizar. E, mais particularmente, no tocante às fontes de gera-ção de energia. Elas são capazes de sintetizar os paradigmas escolhidos para se realizar o desenvolvimento.

A conjuntura internacional nos favore-ce. Desde 16 de fevereiro de 2005, começou a vigorar o Protocolo de Quioto, o acordo internacional para diminuir as emissões dos gases que causam as mudanças do clima no planeta. Sem se propor a resolver por inteiro o problema das emissões, o Protocolo, ao menos, cria um ambiente favorável para se pensarem formas de superar os paradigmas tecnológicos, políticos e econômicos que orientaram as opções, vigentes até aqui, por modelos de desenvolvimento com base no uso intensivo de combustíveis fósseis (grandes emissores daqueles gases) em modelos de gera-ção de energia extremamente desperdiçadores. Neste contexto, além da oportunidade, temos também uma grande responsabilidade. Foi o nosso país quem mais contribuiu na elaboração do principal instrumento de implementação do Protocolo, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL).

Ao definir sua política energética, o Bra-sil precisa ter um olho nas opções tecnológicas que adotará, para evitar as emissões causadas pelos combustíveis fósseis e, também, para fazer com que essa política seja consoante com uma estratégia de desenvolvimento econômico dirigida ao pagamento das dívidas históricas.

Também pode se olhar a importância do

momento histórico em que vivemos sob o ponto de vista da conjuntura interna. Mais de 30 anos após o Brasil ter tomado a decisão política de tornar viável econômica e tecnologicamente o aproveitamento do álcool combustível, naquele instante histórico em um contexto de ditadura, sem que a sociedade fosse consultada, outra vez o governo federal resolve colocar a biomassa no centro de um projeto energético. Deveria, por-tanto, aproveitar a oportunidade para fazê-lo no bojo de uma estratégia de desenvolvimento democrático, nacional e renovável. Dessa forma, ele contribuiria para estabelecer uma relação de aproveitamento dos recursos naturais em níveis renováveis – distantes, portanto, da escala e dos objetivos de mera predação que vigoram no Brasil há 505 anos.

É bom estabelecer uma diferença do que aqui é proposto – projetos ou estratégias, como se queira chamar – de desenvolvimento dos potenciais desta quase-nação. Um linguajar semelhante a esse já foi assumido em outros momentos da nossa história por forças rea-cionárias, ditatoriais até, em sua marcha pela introdução do Brasil no cenário internacional, sob a condição de um desenvolvimento cujas benesses fossem canalizadas quase exclusiva-mente para uma elite.

Não podemos cair na armadilha de efeito retardado que essas forças nos deixa-ram. Elas se apoderaram desse discurso do projeto e da estratégia de maneira tão forte que muitas pessoas ainda hoje confundem a idéia em si com quem, em determinado mo-mento histórico, se apoderou dela. E erram ao rejeitá-la a priori.

O que se propõe é, em primeiro lugar, observar que esse discurso deve ser retomado agora na perspectiva da conclusão de projetos de nação – ela só está ainda apontada, uma vez que não se completou para a maioria do povo. E, em segundo, sugerir a reapropriação dessa necessidade de ter estratégias de desen-volvimento para elaborá-las sob o império dos

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o P i n i ã o

novos valores sociais que criamos e também dos quais somos produto.

Como já foi dito, o mundo, e em especial a América Latina, nos proporciona condições para realizar um debate público sobre quais seriam essas estratégias. Em boa medida, o impulso para a eleição de governos comprometidos com plataformas originalmente antineoliberais na Argentina, Brasil, Equador, Peru, Venezuela, Uruguai – e aqui sem entrar no mérito de even-tuais apagamentos dessa plataforma eleitoral

por parte dos(as) elei-tos(as) – demonstra a viabilidade de re-patriar para dentro das fronteiras desses paí ses a capacidade de definição de prio-ridades nacionais, al go inviável sob o neo liberalismo triun -fante nas décadas 1980 e 1990.

Quioto igual-mente fortificou o caldo de cultura em que se devem valo-rizar opções menos impactantes de fontes geradoras de energia e que revelem novos paradigmas civiliza-tórios diferentes da-queles que orientam a civilização do petró-leo – com todas as suas conseqüências nos campos militar, diplomático, tecno-ló gico, econômico e ambiental.

Nesse con-texto, o Brasil sur-ge com vantagens comparativas, por exemplo, o de pos-suir amplo território

agricultável, o que lhe confere possibilidade de aproveitar a enorme insolação que recebe (é uma das cinco maiores do planeta) para transformá-la em biomassa, fonte de energia incomparavelmente menos poluidora do que a da queima do carbono fóssil. Em associação, deve-se pensar em uma ocupação do território para a produção dessa biomassa sob a pers-pectiva de um novo desenvolvimento rural,

que pense a atividade agrícola de forma mais sistêmica em suas relações com o espaço, os recursos naturais e a economia em suas di-mensões locais, regionais, nacionais e globais.

A elaboração de um, por assim dizer, projeto energético nacional e democrático afastaria o perigo de dependência tecnológica e econômica. O Brasil ainda serve apenas de mercado – e não de produtor – para manter em atividade industrial mínima a capacidade produtora de tecnologias “limpas” em países frios do Atlântico Norte. Elas continuam pes-quisando – e investindo rios de dinheiro público e privado – na tentativa de barateamento de equipamentos para as fontes solar e eólica, que por aqui poderiam ser amplamente exploradas. Essas fontes já estão próximas da viabilidade econômica para mercados de massa, mas ainda não alcançaram a rentabilidade que a grande indústria de energia exige. Por enquanto.

Por essa razão, países doadores de caixas--pretas tecnológicas incentivam o fornecimento de pacotes a países em desenvolvimento, como o Brasil, com doações, aqui e ali, de sistemas energéticos para o atendimento a comunidades isoladas dos sistemas de distribuição de energia implantados até hoje no país.

Alternativas como o programa brasileiro do biodiesel são um bom avanço na direção contrária, mas esse programa talvez ainda não tenha sido observado sob a lógica mais sistê-mica, de uma nova ocupação territorial para o desenvolvimento agrícola do país.

Há entraves legais, institucionais, merca-dológicos e políticos que precisam ser remo-vidos para fazer avançar a adoção das fontes de energia renovável, que não apenas geram conhecimento tecnológico novo, mas também representam um passo do país à frente na elaboração de novos paradigmas, algo que só pode ser feito em um país como o Brasil, e não nos enriquecidos e relativamente frios países do Atlântico Norte, que recebem pro-porcionalmente muito menos insolação sobre seus territórios.

Também o aproveitamento das con-dições favoráveis para a geração de energia a partir do vento, em especial no litoral do Nordeste, indicam potencialidades extraor-dinárias. Estudos da Universidade Federal de Pernambuco mostram que os ventos nordes-tinos estão entre os de melhor qualidade e quantidade no mundo e que estão em maior potencial justamente naquelas épocas em que o Rio São Francisco, cujas águas movimentam as hidrelétricas que energizam quase toda a

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Jun / Jul 2005 99

uma Janela histórica está aberta

região, tem suas menores baixas de volume, em um sistema complementar.

O desenvolvimento de modernos siste-mas eólicos na região, descentralizando o cres-cimento econômico e a geração de capacidade científica local, aumentaria o nível de utilização de empresas instaladas na região de São José dos Campos (SP), nascidas em torno da Empresa Brasileira de Aeronáutica S. A. (Embraer). Afi-nal, a geração eólica exige o aproveitamento de muita tecnologia aeronáutica, campo em que o Brasil está entre os cinco ou seis países que dominam o ciclo completo desse tipo de conhecimento.

Em paralelo a uma política pública que incentive o atingimento da viabilidade econô-mica dessas fontes de energia, temos ainda dois aspectos importantes. O primeiro é a dis-tribuição do desenvolvimento para o Nordeste, uma região que ainda carece crescer para fugir à caricaturização de região atrasada.

Porém, exercer essa espécie de vocação natural e tirar da biomassa e do aproveitamento eólico a energia de que o país necessita importa aproveitar as vantagens proporcionadas pelo Protocolo de Quioto. A adoção das políticas públicas que viabilizassem as opções descritas anteriormente dá ao Brasil e ao seu povo a possibilidade de se alavancar economicamente. Cada tonelada de carbono que se evita jogar na atmosfera, por meio da adoção de fontes não-poluentes, transforma-se em um crédito cujo preço pode ser negociado em mercados internacionais.

Não se sabe quanto esse mercado vai gerar, mas é certo que um grande emissor de títulos de não-emissão de carbono, como o Brasil, pode se beneficiar da condição de expor-tador desse papel. Mais uma vez, evito entrar na discussão que daí advém – a de que os compra-dores dos créditos estariam adquirindo o direito de poluir. Mas insisto em chamar a atenção para a urgência de se desenvolverem maneiras de a maioria da população se beneficiar dessas condições naturais do nosso país.

O desenvolvimento em larguíssima es-cala de tecnologias associadas a essas e outras opções hoje chamadas pejorativamente de “alternativas” abre a chance de o Brasil pagar dívidas com aqueles extratos do seu povo que foram colocados para fora da festa do de-senvolvimento. E que, agora, no início de um século novo, têm a chance de entrar no baile da história pela porta da frente, de mãos dadas com políticas distributivistas – se assim for da coragem dos(as) governantes para tomar as

medidas necessárias.É importante também aproveitar a

janela histórica que se abriu para descartar algumas opções energéticas que recentemente o governo brasileiro pensou em adotar. Entre elas, que não foram definitivamente descar-tadas, estão as usinas termelétricas movidas a gás natural.

As termelétricas a gás natural, por exemplo, são inadequadas para um novo de-senvolvimento democrático da nação por vários motivos. Elas perpetuam o sistema de geração de grandes blocos de energia para gran-des concentrações humanas e econô-micas, dificultando o enraizamento do de-senvolvimento eco-nômico e social nas regiões mais distan-tes do centro do sis-tema. Contribuem, dessa maneira, para concentrar renda, o que não favorece re-gimes de justiça étnica e de gênero, uma vez que reproduzem os ultrapassados modelos de desenvolvimento que herdamos.

Como uma espécie de estudo de caso, tem-se que a alternativa das usi-nas termelétricas não se justifica para o Brasil dos pontos de vista ambiental, eco-nômico-financeiro, energético, nem da segurança energéti-ca, porque:

1. elas emitem mui-to menos gases com carbono, nitrogênio e outros elementos químicos. Mas elas os emitem, e isso nos tiraria aquela vantagem de o Brasil ser um dos grandes países que proporcionalmente emitem poucos gases por habitante. Essa característica nos facilita acesso às linhas financeiras internacionais que serão cria-das no âmbito do Protocolo de Quioto. Termelétricas também gastam quantidades

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100 democracia viva nº 27

o P i n i ã o

*carlos tautz

Jornalista, pesquisador

do Ibase

enormes de água, que é utilizada para refrigerar o sistema das usinas. Parte dessa água evapora, outra parte retorna ao meio ambiente alguns graus acima de quando é captada. Quase 50 termelétricas foram planejadas para serem instaladas perto de grandes centros urbanos onde entrariam na disputa pela água destinada ao consumo humano, à agricultura e a outros tipos de uso;

2. no campo econômico-financeiro, a difi-culdade maior resi-de no uso do dólar como moeda para compra dos equi-pamentos (que não são fabricados no Brasil) e pagamento do combustível, em sua maioria importa-do. Gastos externos em dólares apenas beneficiam os atra-vessadores de finan-ciamentos interna-cionais. O modelo de contrato do gás natural take or pay (pegue ou pague), como o empregado no Gasoduto Bolí-via–Brasil, incorpora variantes como a in-flação dos Estados Unidos e o preço do barril de petróleo em âmbito internacio-nal. Dispara na pri-meira crise interna-cional e termina por aumentar a tarifa para consumidores e consumidoras finais;3. no campo da segurança ener-gética, é uma opção

inadequada porque o combustível é impor-tado. Por ora, a Bolívia é o maior fornecedor, principalmente para indústrias localizadas em São Paulo. Ocorre que, no país vizinho, há ampla (e justa, diga-se de passagem) rejeição aos contratos firmados pelos go-vernos nacionais e empresas multinacionais, como se configura com a Petrobras Bolívia, que lá desempenha papel igual ao das de-mais multinacionais petrolíferas. Angaria

a antipatia do povo boliviano, o que pode resultar no corte repentino do fornecimento.

Outra opção energética que se deve rejeitar é a nuclear. Mesmo após mais de 30 anos do Acordo Nuclear Brasil–Alema-nha, que viabilizou a construção das usinas nucleares Angra 1 e 2, instaladas em Angra dos Reis (RJ), esse debate propositadamente ainda não foi tornado público porque carre-ga a marca do pecado original. Ele atenderia, mesmo três décadas após a sua concepção, de acordo com aqueles(as) que pretendem mantê-lo secreto, a “razões estratégicas” não reveladas.

Ele foi imaginado em um contexto de ditadura pelos militares brasileiros que sonha-vam em dominar localmente o ciclo de enri-quecimento de urânio para fabricar a bomba atômica. Pois, em pleno século XXI, essa lógica persiste, eclipsando os demais usos pacíficos da tecnologia atômica na pesquisa ambiental aplicada aos recursos hídricos, na medicina e na agricultura.

Agora mesmo o governo – especifica-mente a Casa Civil da Presidência da Repúbli-ca – estimula o reaparecimento do tema da construção da terceira usina, Angra 3, que acabou de ser rejeitada, em abril, no âmbito do Conselho Nacional de Política Energética, pelos Ministérios de Minas e Energia e do Meio Ambiente. O Ministério de Ciência e Tecnologia, tradicionalmente mais sensível aos apelos dos centros militares de pesquisa, apoiou a cons-trução, desconsiderando o fato de que Angra 3 igualmente mantém a lógica da produção de grandes blocos de energia para suprir um mo-delo de consumo energético que tolera amplas faixas de desperdício.

Além disso, como lembra o físico e ex--reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) José Goldemberg, que é secretário estadual de Meio Ambiente de São Paulo, há toda sorte de incertezas sobre o que fazer com o “lixo nuclear”, para o qual não existem repo-sitórios adequados em nenhum país.

Esses são indicativos fortes da existência de uma janela de oportunidade para o Brasil se concluir como nação. Indicativos de que chegou a hora de recolocarmos – como algumas pesso-as já fizeram no passado – em debate público as estratégias que queremos para alcançar esse objetivo.

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Jun / Jul 2005 101

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102 democracia viva nº 27

i n d i c a d o r e sclaudia Pato*

O interesse por estudos sobre a temática ambiental é relativamente recente e não é

objeto exclusivo de uma área do conhecimento. Ao contrário, constitui-se num campo

multi, inter e transdisciplinar que desafia pesquisadores e pesquisadoras à compreensão

de sua complexidade a partir de um enfoque múltiplo.

Na Psicologia, os estudos sobre as relações entre o ser humano e o meio ambiente

vêm aumentando, especialmente nas últimas décadas. Neste texto, pretendo trazer con-

tribuições da psicologia ambiental para enriquecer as discussões acerca dessa temática.

Os problemas ambientais têm sido objeto de preocupação e de investigação, transforman-

do a questão ambiental num foco crescente de interesse. Desse modo, a preocupação com a

degradação ambiental se converteu num problema central para quem investiga essa temática.

Embora degradação ambiental não seja um tema desconhecido da civilização

ocidental (Ferreira, 2004), estamos expostos diariamente a situações e informações

que podem provocar sensação negativa e catastrófica sobre o momento presente. Essa

sensação pode concorrer para a percepção de que esses problemas são atuais, exigindo

soluções imediatas que visem à continuidade da vida no e do planeta.O crescimento urbano acelerado e desordenado, assim como o modelo de desenvolvi-

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Jun / Jul 2005 103

mento econômico vigente, que proporciona a expansão das riquezas e incentiva o consu-mismo nas pessoas, tem contribuído para um conflito que exacerba a problemática ambiental.

A busca da qualidade de vida e a aqui-sição de bens de consumo muitas vezes se dão à custa do uso insustentável dos recursos naturais. Isso contribui para a degradação ambiental, deteriorando, conseqüentemente, a qualidade de vida nas cidades e ameaçando a sustentação da vida no planeta.

Por outro lado, a falta de acesso aos bens de consumo e de serviços de infra-estrutura, característicos dos países mais pobres, também contribuem para um conflito socioambiental e para a degradação ambiental.

Mesmo analisando-se a realidade atual sob perspectiva histórica, em que podemos reconhecer a melhoria na qualidade de vida da população mundial como um todo, é inegável que a situação esteja longe da ideal. A distri-buição dos recursos é desigual, e sua utilização precisa ser otimizada, muito embora não se corra o risco de esgotar os recursos naturais em curto prazo, segundo afirma Lomborg (2001).

A literatura específica sobre o assun-to, especialmente na psicologia ambiental, vem apontando o ser humano como o grande responsável pelo agravamento da

situação ambiental e sugerindo que a chave para a compreensão dessa problemática está no comportamento dos seres humanos em relação ao meio ambiente – o compor-tamento ecológico.

Zelezny e Schultz (2000), por exemplo, afirmam que os problemas ambientais são indiscutivelmente questões sociais, causados pelo comportamento humano, e que sua re-solução exigirá mudança no comportamento em grande escala, envolvendo mudanças no comportamento individual.

Oskamp (2000) compartilha desse pen-samento, reforçando o argumento de que os problemas ambientais poderiam ser potencial-mente revertidos pelo comportamento humano. Esse autor entende o comportamento humano não só como aquele que é emitido por pessoas individualmente, mas também como os que são manifestados por grupos, organizações e nações.

A problemática ambiental é com-plexa e envolve aspectos sociais, econômi-cos, políticos, entre outros. Compreender essa complexidade é fundamental para que se possam identificar os fatores que influenciam as diferentes manifestações do comportamento em relação ao meio ambiente.

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104 democracia viva nº 27

i n d i c a d o r e s

Consciência e exploração

Apesar do interesse internacional crescente por estudos dessa natureza, existem muitos aspectos a serem investigados. Um desses aspectos refere-se à incongruência entre o interesse geral cada vez maior por questões socioambientais e pela consciência ambiental, de um lado, e os comportamentos claramente prejudiciais ao meio ambiente e a exploração indiscriminada dos recursos naturais, por outro lado.

Além disso, pesquisas teóricas e empíricas sobre a temática ambiental e participação ativa de grupos ambienta-listas e da sociedade civil em campanhas de conscientização da população e de proteção ao meio ambiente não têm levado à mudan-ça significativa de comportamento da população em geral em favor do meio ambiente.

Essa incon-gruência percebida – entre o despertar da consciência am-biental, o acúmulo de conhecimentos e de informações es-pecíficos e técnicos, e a manifestação de comportamen-tos que degradam o meio ambiente – pode estar relacio-nada à existência de valores e de crenças distintos que esta-riam na base desses

comportamentos, influenciando-os diferente-mente.

No Brasil, as questões ambientais ainda parecem receber pouca atenção da sociedade, e os problemas ambientais se agravam a cada dia. As condições socioambientais brasileiras são assustadoras, acentuadas pela pobreza e pela injustiça social, entre outros, muito em-bora os recursos naturais brasileiros ainda não

pareçam estar em condições tão alarmantes quanto, por exemplo, as condições enfrentadas por países europeus (Barbosa, 1992; Torres, 1992; Costa, Alonso & Tomioka, 2002).

Grande parte da população brasileira, especificamente a das periferias dos grandes centros urbanos, das cidades do interior e do meio rural, ainda carece das condições mais básicas para a sobrevivência, como o sanea-mento básico e a coleta de lixo. Essa situação sugere um problema ambiental mais grave: a falta de acesso aos recursos.

O Brasil possui uma das maiores reser-vas mundiais de biodiversidade. Entretanto, enfrenta diariamente uma série de agressões que, gradativamente, vêm esgotando seus recursos e ameaçando essa biodiversidade, colocando-a em risco. Alguns exemplos são o desmatamento descontrolado, o assore-amento de rios e nascentes, o crescimento desordenado das cidades, entre outros (Brasil, 1998).

Talvez nossa preocupação com o meio ambiente ainda não tenha aflorado ou se manifeste diferentemente dos países conside-rados mais desenvolvidos e mais ricos, que já enfrentam o esgotamento de seus recursos e, por outro lado, mantêm programas e políticas ambientais para solucioná-los.

Aparentemente, poderíamos inferir que há pouca evidência de comportamentos ecológicos na população brasileira. Entretan-to, é possível supor que sentimentos, valores e atitudes envolvidos nesse tipo de comporta-mento possam ocorrer. Um estudo recente do Ministério do Meio Ambiente (MMA) revelou que a consciência ambiental da população brasileira cresceu na última década e que a população tem algum conhecimento sobre as questões ambientais globais. No entanto, as pessoas que participaram desse estudo não foram capazes de citar problemas ambien-tais locais, quando solicitadas a considerar a sua comunidade de vizinhança (Brasil & Iser, 2001).

A compreensão dos aspectos cultu-rais e pessoais relacionados à negligência ambiental e às ações prejudiciais ao meio ambiente, bem como daqueles que promo-vem a qualidade de vida e contribuem para a recuperação e a manutenção dos recursos naturais renováveis ou não, pode ajudar no esclarecimento dessa problemática. Desse modo, poderá favorecer o estabelecimento de estratégias de intervenção mais eficazes, assim como a elaboração de políticas am-bientais mais compatíveis com a realidade

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Jun / Jul 2005 105

comPortamento ecológico: chave Para comPreensão e resolução da degradação ambiental?

brasileira.O debate sobre a questão ambiental

deverá considerar, portanto, o comportamento ecológico, uma vez que ações humanas, direta ou indiretamente, vêm contribuindo para a degradação ambiental acelerada e provocando conflitos socioambientais que resultam muitas vezes em dilemas de difícil resolução, especial-mente a curto prazo.

Fenômeno

A negligência das pessoas com relação ao meio ambiente, observável, por exemplo, em uma rápida caminhada pelas ruas de qualquer cidade brasileira, assim como a observação de cidadãos e cidadãs comuns participando de atividades como mutirões para a limpeza de nascentes, rios e lagos, demonstra a necessidade de se conhecer melhor o fenômeno do comportamento ecológico. O que leva essas pessoas a agirem de uma ou de outra maneira?

Nesse sentido, tornou-se premente conhecer as características que o comporta-mento ecológico assume na realidade brasileira e identificar aspectos que o influenciam em nosso contexto socioambiental. Os estudos realizados até o momento têm revelado resul-tados encorajadores, que serão apresentados de maneira breve a seguir, na tentativa de alimentar esse debate.

Utilizando-se uma amostra de jovens e adultos(as) das cidades do Rio de Janeiro e de Brasília (Tabela 1), foram identificados quatro tipos específicos de comportamento ecológico, chamados de limpeza urbana, economia de água e de energia, ativismo-consumo e reci-clagem (Tabela 2). Limpeza urbana descreve comportamentos relacionados à manutenção dos espaços públicos limpos, associados ao tema do lixo urbano. Um exemplo desse tipo de comportamento seria não jogar papel na rua. Economia de água e de energia está as-sociada ao uso racional dos recursos naturais, apresentando comportamentos relacionados ao não-desperdício de água e de energia. Fechar a torneira enquanto escova os dentes seria um exemplo desse tipo de comporta-mento. Ativismo-consumo representa ações relacionadas à preservação e à conservação do meio ambiente, por meio de participa-ção ativa que envolva outras pessoas ou por meio de decisão de compra e de uso de produtos considerados inofensivos ao meio ambiente. Ser voluntário(a) em um grupo que preserve ativamente o meio ambiente ou evitar a compra de produtos poluentes são exemplos desse tipo de comportamento. E, por fim, reciclagem representa a separação do lixo doméstico conforme o tipo, visando ao reaproveitamento, reutilização ou reciclagem. Separar os diversos tipos de lixo e ter uma lixeira para cada tipo de lixo são exemplos

Idade Gênero Total

Média (M) Desvio-padrão (DP) Mulheres % Homens %

20,5 6,33 61,2 37,1 234

22,75 6,1 54,2 45,4 443

Participantes

Tabela 1

Caracterização das amostras

Tabela 2

Média e desvio padrão por fatores de comportamento ecológico e de crenças ambientais

Comportamentos ecológicos*

Crenças ambientais**

Limpeza urbana 4,92 0,88 Economia de água e de energia 3,98 0,87 Ativismo-consumo 2,27 0,76 Reciclagem 2,16 1,54

Crenças ecocêntricas 4,31 0,45 Crenças antropocêntricas 2,19 0,63

Fatores Média (M) Desvio Padrão (DP)

* ESCALA DE 6 PONTOS QUE MEDE FREQüêNCIA DE COMPORTAMENTO (1 = NUNCA E 6 = SEMPRE).** ESCALA DE 5 PONTOS QUE AVALIA GRAU DE CONCORDâNCIA (1 = DISCORDO TOTALMENTE E 5 = CONCORDO TOTALMENTE).

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106 democracia viva nº 27

i n d i c a d o r e s

desse tipo de comportamento.Os dois primeiros tipos de compor-

tamentos – limpeza urbana e economia de água e de energia – são considerados mais simples de serem executados, porque en-volvem esforço menor para sua realização e dependem basicamente do próprio indivíduo. Estão presentes no cotidiano da maioria do povo brasileiro e, em particular, da amostra participante da pesquisa.

Já os comportamentos de ativismo--consumo e reciclagem envolvem um esforço maior para sua realização, além de nível de informação e de consciência mais elevados. Esses comportamentos dependem de outras pessoas, de estrutura e, muitas vezes, de organizações para que possam se manifestar. Assim, são considerados mais complexos, de maior dificul-dade e mais raros de se observar. O surgimento desses comportamentos na amostra estudada sugere um “salto de consciência ambiental”

Crenças e valores

As chamadas crenças ambientais foram identifi-cadas como sendo de dois tipos: as ecocêntricas e as antropocêntricas (Tabela 2). As primeiras referem-se à visão sistêmica, na qual o ser humano se percebe como parte integrante da natureza, ao passo que as últimas refletem visão utilitarista e instrumental da natureza.

Os resultados indicaram que as pes-soas que possuem valores mais ecológicos manifestaram mais comportamentos de “limpeza urbana” e de “ativismo-consumo”; já as que possuem valores considerados como antiecológicos revelaram menos economia de água e de energia.

Os valores ecológicos relacionam-se aos interesses mais coletivistas, envolvendo recipro-cidade nas relações, como respeito e igualdade. Contribuir para que a cidade se mantenha limpa e participar de atividades em defesa do meio ambiente são ações voltadas para o interesse da coletividade mais ampla, que revelam respeito ao outro e cooperação. Desse modo, esses valores são perfeitamente compatíveis com esses tipos de comportamentos ecológicos, que implicam ação individual visando ao bem-estar da coletividade.

Por sua vez, os valores antiecológicos atendem a interesses individuais e egoísticos, como poder e realização pessoal, podendo ser incompatíveis com comportamentos ecológicos. Pessoas que priorizam esses valores dificilmente reduzirão o consumo de água e de energia em seu cotidiano, a menos que possam obter alguma vantagem pessoal. O desperdício desses recursos poderá ser justificado pelo conforto que eles podem proporcionar a essas pessoas.

Com relação às crenças ambientais, o comportamento de economia de água e de energia foi influenciado pelos dois tipos de crenças, e o de ativismo-consumo teve influência apenas das ecocêntricas, e o de limpeza urbana apenas das antropocêntricas.

Os resultados revelaram que as pessoas que acreditam na exploração da natureza para o benefício do ser humano e na capacidade inesgotável da natureza de se recuperar das inúmeras agressões sofridas pelas intervenções humanas não se preocupavam com a limpeza da cidade onde viviam e não se sentiam responsáveis por ela. Tampouco estavam atentas ou dispostas a evitar desperdício ou consumo exagerado de água e de energia.

Por sua vez, as pessoas que se sentem parte de um sistema mais amplo, que integra

nessas pessoas, que vai ao encontro do estudo do MMA (Brasil & Iser, 2001).

Em seguida, procurou-se identificar se os valores pessoais e as crenças que as pessoas tinham sobre o meio ambiente exer-ciam influência sobre cada um desses tipos de comportamento ecológico. Desse estudo participaram jovens e adul tos(as) de Brasí-lia, e os valores e as crenças influenciaram diferentemente a maneira como as pessoas se comportam em relação ao meio ambiente (Figura 1).

Figura 1

Representação gráfica das relações entre valores e crenças ambientais com comportamentos ecológicos

Relações positivasRelações negativas

Valores anti-ecológicos

Crenças antropocêntricas

Valores ecológicos

Crenças ecocên-tricas

Economia de água de energia

Ativismo-consumo

Limpeza urbana

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comPortamento ecológico: chave Para comPreensão e resolução da degradação ambiental?

a natureza, se mostraram mais ecológicas, usando a água e a energia de forma racional, de maneira a evitar sua escassez. Além disso, participavam ativamente de ações que preten-diam proteger o meio ambiente, contribuindo para a conservação da natureza.

Quanto à reciclagem, os valores e as crenças não exerceram influência. No geral, os resultados indicaram que as pessoas que aceita-vam os outros como iguais, estavam sensíveis aos interesses de todas as pessoas e tinham uma visão de integração com a natureza mani-festaram mais comportamentos ecológicos. Já as que estavam voltadas para os seus próprios interesses e viam a relação ser humano–meio ambiente de forma dicotômica manifestaram menos esse tipo de comportamento.

Desafios e participação

A realização de novos estudos, com amostras representativas da população brasileira, que esclareçam e confirmem as características es-pecíficas aqui levantadas, torna-se fundamental para a compreensão do comportamento ecoló-gico em nossa cultura.

O ativismo-consumo, por exemplo, pre-cisa ser aprofundado para identificarmos sua especificidade em nosso contexto. Será que, no Brasil, o ativismo pode refletir tanto a par-ticipação coletiva em defesa do meio ambiente como a ação individual de compra de produtos mais “ecológicos”? Ou essas características se aglutinaram apenas nessa amostra, envolvendo um comportamento complexo com dimensões tanto de ativismo como de consumo?

Com relação à reciclagem, embora te-nha emergido nesses estudos, os valores e as

crenças não o influenciaram. Dada a inexistência de programas oficiais de reciclagem na quase totalidade das cidades brasileiras e, em parti-cular, em Brasília, esse tipo de comportamento pode ter outras influências ou características que precisam ser conhecidas.

Além disso, é possível que existam outros tipos de comportamentos ecológicos que até o momento não foram identificados. Do mesmo modo, os estudos internacionais têm aponta-do outras influências sobre o comportamento ecológico que ainda não foram pesquisadas na realidade brasileira, tais como as normas pesso-ais e as características situacionais, que tanto podem favorecer como inibir a manifestação desse comportamento (Nordlund & Garvill, 2003; Corraliza & Berenguer, 2000).

Considerando-se a inexistência de es-tudos empíricos que tenham identificado as características do comportamento ecológico na realidade brasileira e testado a influência dos valores e das crenças ambientais sobre esse comportamento, nossos achados se constituem relevantes para cercar o fenômeno e desencadear pesquisas que procurem aprofundar sua compreensão, além de fomentar a discussão sobre essa temática. Os desafios estão lançados, e o convite à participação está feito.

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ZELEZNY, L. C.; SCHULTZ, P. W. Promoting environmentalism.

*claudia Pato

Doutora em Psicologia,

professora da

Universidade de Brasília

(UnB), coordenadora

da área de Educação

Ambiental da Faculdade

de Educação/UnB

e pesquisadora

do Laboratório de

Psicologia Ambiental do

Instituto de Psicologia /

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108 democracia viva nº 27

c u l c u l t u r aluigi Zampetti*

Arte,cidadaniae samba

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u r a

Jun / Jul 2005 109

Arte,cidadaniae samba

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110 democracia viva nº 27

c u l t u r a

Em Belo Horizonte, há 15 anos, surgiu um exem-plo de luta. A vontade de 20 pessoas catadoras de papel se tornou realidade: hoje, o que elas construíram superou em muito qualquer sonho considerado antes impossível. A Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reapro-veitável de Belo Horizonte (Asmare) tem cerca de 380 associados e associadas e beneficia, indiretamente, mais de 1.500 pessoas.

Além do trabalho de coleta realizado por catadores e catadoras, a associação de-senvolve um trabalho de parceria com empre-sas, escolas, condomínios, órgãos públicos,

entre outros, para a coleta de recicláveis. O material reciclado produzido pelos parceiros é doado à associação, que, desse modo, pode gerar e sustentar postos de trabalho para pessoas catadoras e ex-moradoras de rua. A organização da produção é acompanhada pelo processo de resgate da auto-estima e da cidadania de uma população historicamente excluída.

A Asmare recolhe por mês cerca de 450 toneladas de lixo contendo papel, pa-pelão, revistas, jornais, latas de alumínio, garrafas PET e plásticos. Com exceção do vidro e da borracha, recebe quase todos os outros tipos de material. Tudo é separado, prensado e estocado, antes de seguir para a reciclagem. Nos galpões, parte desse ma-terial é utilizada nas oficinas de reciclagem, que geram postos de trabalho para cerca de 30 pessoas.

Shows e debates

Uma parceria entre a Asmare e sete organi-zações de catadores e catadoras vai fazer a diferença em Belo Horizonte. Eles inaugurarão a primeira fábrica de reciclagem do mundo dirigida por pessoas catadoras de materiais recicláveis.

Exemplo de lutaLogo no início, o pequeno grupo reuniu materiais recolhidos durante seis meses e trocou pelo dinheiro necessário para a associação funcionar. “Era o tal de capital de giro que a gente não sabia o que era, achava que era palavrão”, conta d. Geralda, uma das fundadoras. Até então, catadores e catadoras tinham que driblar a fiscalização, que não permitia a coleta. “O jeito era trabalhar durante a noite, sem nenhuma garantia de segurança, mas a gente já tinha botado na cabeça que ia conseguir exercer a nossa cidadania e fortalecer os direitos da classe. O lema era não desistir”, conclui. Depois de 15 anos de trabalho, vieram a credibilidade e o reconhecimento, e as palavras, que antes eram sofridas, hoje saem fáceis e cheias de alegria, sensação de dever cumprido.

Maria das Graças Marçal – rebatizada como d. Geralda, em homenagem ao santo de devoção de sua mãe – começou a catar papel aos 8 anos. Como catadora, sofria discriminação e era desprezada. Em 1990, d. Geralda reuniu-se com mais 19 pessoas, e, com a ajuda da Pastoral de Rua, fundaram a Asmare. Esse grupo inicial ocupou um terreno vazio e, com passeatas e contatos, acabou conquistando reconhecimento e apoio de parte da comunidade.

Em 1997, d. Geralda representou o Brasil num seminário sobre desenvolvimento sustentável na Organização das Nações Unidas (ONU) e, em 1999, foi agraciada como representante dos catadores e das catadoras pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), com menção honrosa pelo trabalho desenvolvido. No mesmo ano, recebeu da revista Cláudia o prêmio Mulher do Ano. Ela é casada, mãe de nove filhos, criados e educados com o dinheiro de catadora de papel. No ano passado, foi homenageada em uma reunião do Banco Mundial, em Washington, nos Estados Unidos. Atualmente, responde pela coordenação--geral da Asmare.

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arte, cidadania e samba no Pé

A fábrica está sendo construída no bairro Juliana, regional norte da capital mineira gerará 62 empregos e aumentará a renda de 550 famílias. Por ano, serão recicladas 3,6 mil toneladas de plástico que iriam para aterros sanitários. A indústria será inaugurada em agosto, durante o 4º Festival Lixo e Cidadania.

O Festival Lixo e Cidadania nasceu com a proposta de discutir, por várias perspectivas e olhares, a questão dos resíduos sólidos no Brasil. Aliando uma programação temática de debates e conferências com uma programação cultural de lançamentos de livros, exposições, feiras de produtos reciclados, desfile de moda com roupas feitas a partir de materiais reapro-veitáveis e shows culturais, o festival convoca a comunidade a participar da discussão. O festival já se tornou uma referência na capital mineira. Nestes três anos, um público de mais de 25 mil pessoas esteve presente ao evento.

O 1º Festival Lixo e Cidadania foi re-

Desperdício em númerosO costume faz acreditar que o lixo deixa de ser problema quando é deixado na porta de casa. A maioria das pessoas não sabe para onde os resíduos vão e o que poderia ser feito com eles. Por isso, ocorre o desperdício. Ao misturar os produtos na hora de descartá-los, as pessoas diminuem o potencial de reciclagem do material. Segundo o Programa Ambiental da ONU, uma tonelada de papel reciclado poupa cerca de 22 árvores, economiza 71% de energia elétrica e polui o ar menos 74%. Reciclando, a humanidade extrai menos recursos naturais, economiza energia, reduz a poluição, gera empregos e deixa as cidades mais limpas e bonitas. Então, por que as pessoas não “cuidam do lixo”? Segundo os(as) catadores(as), falta consciência e informação, o que eles(as) também demoraram a aprender. No Brasil, os resultados dos censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 1989 e 2000 mostram que, enquanto a população aumentou 16%, a quantidade de lixo coletada no mesmo período aumentou 56%.

• Em20%dosdomicíliosbrasileiros,olixonãoésequercoletado(fonte:PesquisaNacionalporAmostra de Domicílios/Pnad – IBGE).

• Dosmunicípios brasileiros, 64% destinam seus resíduos sem tratamento em lixões oucurso de água.

• NoBrasil,jásãomaisde500milpessoascatadoras,espalhadaspor3.800municípios,segundodados coletados em 2000 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

• Estima-sequeaspessoascatadorassejamresponsáveispor90%dosmateriaisquealimentamas indústrias recicladoras.

• AcidadedeSãoPauloproduz,diariamente,15miltoneladasdelixoeperdeR$300milhõesao ano por causa de materiais recicláveis que vão para as lixeiras.

• OestadodoRiode Janeiroproduz42mil toneladasdegarrafas.Desse total,apenas1% é reciclado.

• Brasíliaéacapitaldodesperdício.Cadapessoaproduz,emmédia,1,2quilodelixopordia.Isso é 30% a mais do que o restante do país.

• EmBeloHorizonte, são 700gramasde lixo diários por habitante.A Superintendência deLimpeza Urbana (SLU) recolhe diariamente 4,5 mil toneladas, o que equivale ao peso de mil elefantes. O aterro sanitário da cidade tem sobrevida apenas de um ano e meio.

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112 democracia viva nº 27

2003. Durante o evento, a ministra do Meio Ambiente Marina Silva anunciou a liberação de R$ 4 milhões para formação e capacitação de catadores e catadoras de materiais reci-cláveis. Artistas que têm envolvimento com a reciclagem apresentaram shows alternativos: Trio Mocotó, Mundo Livre S/A e, mais uma vez, Hermeto Pascoal animaram as mais de 12 mil pessoas que passaram pelo evento.

Em 2004, o 3º Festival Lixo e Cida-dania foi realizado de 31 de agosto a 5 de setembro. O ministro de Desenvolvimento Social e Combate à Fome Patrus Ananias de Sousa abriu o festival, alertando sobre a questão dos assassinatos de mora dores(as) de rua nas cidades de São Paulo e Belo Hori-zonte, e se comprometeu a lutar por políticas públicas rigorosas contra tais atrocidades e de incentivo para o trabalho da catego-ria. Cerca de 7 mil pessoas passaram pelo evento, que teve shows de diversos artistas, como Amaranto, Vander Lee, Sandra de Sá, Zé da Guiomar, Uakti e Velha Guarda da Portela.

Há dez anos, foi criada também a Estação Primeira dos Catadores, que, desde então, vem se apresentado nas festividades do carnaval em Belo Horizonte. É uma opor-tunidade de mostrar as possibilidades da reciclagem, com fantasias feitas a partir de materiais encontrados no l ixo. Com papel, plástico, vidro e metal, mais de 300

alizado de 13 a 17 de novembro de 2002. Contou com mais de 5 mil participantes, entre técnicos(as), agentes sociais, catadores(as) e público em geral. O sucesso desse evento, que foi amplamente divulgado na mídia, evidenciou que é possível gerar trabalho por meio do re-aproveitamento e da reciclagem. Entretanto, também se constatou a necessidade de ampliar o debate e estimular participação social, com-prometendo os governos a adotarem políticas públicas que inovem o tratamento do lixo e da miséria. Na parte cultural, houve shows com o multiinstrumentista Hermeto Pascoal, Elza Soares, DJ Dolores, entre outros.

O 2° Festival Lixo e Cidadania foi reali-zado de 27 de outubro a 1º de novembro de

c u l t u r a

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Quem não se comunica se estrumbica(Mandruvá, Léo Piló, Dimir Viana)

Catador, catador, catador

É a Asmare na avenida

Praças e avenidas vou rodar

Reciclando a sua vida. (BIS)

Quem não se comunica

Se estrumbica.

Estou aqui para mostrar

A nossa arte que recicla

A consciência para um futuro de verdade

Que anuncia que a felicidade,

É a boa-nova para o mundo renovar.

Alô, Alô, você!

A manchete está no ar!

Sou rio sem poluição

Com água limpa vou lavar seu coração! (BIS)

Tô aqui pra mostrar!

componentes retratam sambas-enredo que têm a ver com a realidade e o dia-a-dia das pessoas catadoras. Em 2004, a homenagea-da na avenida foi a imprensa com o samba “Quem não se comunica se estrumbica”. Este ano, Ary Barroso serviu de inspiração para o tema do carnaval. Ele teria sido o primeiro radialista a defender a coleta seletiva no Brasil.

Fundado em 2001, o Espaço Cultural Reciclo foi outra alternativa que a Asmare encontrou para mostrar, de maneira lúdica e prazerosa, as possibilidades de reaproveita-mento do lixo.

O Reciclo conta com uma lojinha para venda de produtos, espaço de shows com capacidade para 300 pessoas, além de ofici-nas de cozinha, confecção de instrumentos musicais, corte e costura, papelaria, metal, teatro e carnaval.

Há quatro anos, na noite de Belo Horizonte, o Reciclo Asmare Cultural come-çou a sua programação musical com ritmos ecléticos, inovadores e autorais, mas foram os shows de samba e bossa nova que se des-tacaram. Clientes do bar identificam o Reciclo com o ritmo do samba. Segundo o público, é o espaço ideal para dançar, beber uma cerveja, conhecer pessoas e paquerar.

Por isso, fica cada vez mais forte a ligação entre os dois, transformando, hoje, o Reciclo na casa de samba de Belo Horizonte. Mais de 100 mil pessoas e 2.500 artistas já passaram pela casa.

Em um projeto inovador, a Asmare, até o fim deste ano, inaugurará, na Zona Sul da capital mineira, o Reciclo 2. Com o novo espaço, será possível diversificar as atividades culturais, criando oportunidades para deba-tes temáticos, seminários, mostra de vídeos e mais apresentações culturais. Além disso, funcionarão no Reciclo 2 um restaurante e um café, que serão abastecidos de ervas e temperos por uma horta orgânica, em par-ceria com a rede de agricultura alternativa.

A lojinha do Reciclo é um espaço que permite que as pessoas que o visitam façam compras diferentes e encontrem produtos de qualidade, com design arrojado e um ponto em comum: todos são feitos a partir do que é encontrado no lixo. Para o coordenador técnico da Asmare, José Aparecido Gon-çalves, a loja não foi criada apenas pelo aspecto comercial. Segundo ele, esse tipo de empreendimento é fundamental para a comunidade de Belo Horizonte. “Com isso, trazemos o conceito de beleza em torno

* luigi Zampetti

Assessor de

comunicação da

Asmare e diretor da

LZ Comunicação –

empresa especializada

em comunicação para

o Terceiro Setor

Espaço Reciclo

Asmare Cultural:

Av. Contorno, 10.564,

Barro Preto, Belo

Horizonte – MG

Tel.: (31) 3295-3378 /

3295-6320

Fotos: Elias Henrique

da reciclagem. As pessoas podem, através desses produtos, transformar a noção de ambiente que têm”, diz.

Produtos do vestuário, como calças e camisas, e até artigos decorativos, como luminárias e tapetes, são comercializados. A maioria dos mais de 50 produtos é feita nas oficinas da Asmare, por ex-moradores(as) de rua e catadores(as) de papel. A loja funciona de segunda a sábado, das 9 às 18 horas. De quinta a sábado, a loja fica aberta até 2 horas da manhã, por conta do funcionamento do bar Reciclo.

arte, cidadania e samba no Pé

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114 democracia viva nº 27

e s P a ç o a b e r t oWeber a. n. amaral, silvio ferraz e roberto smeraldi*

Dinâmica da soja,o desmatamento

A expansão da soja no país nos últimos anos tem sido alvo de intensos debates entre go-

vernos, organizações civis e iniciativa privada, principalmente quanto às mudanças no uso

do solo e a sustentabilidade do processo de crescimento da produção da soja. Ao mesmo

tempo que propicia grandes divisas e desenvolvimento ao país, essa produção avança ra-

pidamente, de forma direta e indireta, sobre o cerrado e a Amazônia, funcionando como

um dos vetores importantes do desmatamento, de concentração fundiária e de geração de

conflitos sociais.

Este artigo aborda algumas questões fundamentais relacionadas ao entendimento

desses processos complexos e suas dinâmicas, e especialmente sobre os principais fatores

condicionantes da expansão da soja na região amazônica. Além disso, são apresentados

os resultados de simulações sobre cenários de expansão dessa cultura a partir de diversas

estatísticas oficiais disponíveis. É baseado nos resultados do trabalho realizado, em 2005,

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aberto

Jun / Jul 2005 115

pelo Grupo de Trabalho de Florestas do Fórum Brasileiro de Organizações Não--governamentais e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvi-mento (FBOMS) sobre a relação entre cultivo de soja e desmatamento.

O primeiro registro de cultivo de soja no Brasil data de 1914, no município de Santa Rosa, Rio Grande do Sul. A partir da década de 1960, a soja expandiu-se para o norte do Paraná e se estabeleceu como cultura economicamente importante no país, sendo que 98% da produção nacional de soja nesse período era originária da região Sul. Nas décadas de 1980 e 1990, a cultura se expandiu rapidamente para áreas de cerrado no Brasil Central. Em 1980, o Centro-Oeste era responsável por 20% da produção nacional; em 1990, esse percentual era superior a 40% e, em 2003, chegou próximo a 60%.

Diversos fatores contribuíram para a expansão da soja no cerrado ao longo dos últimos anos, entre os quais se destacam: o aumento da demanda e cotação da soja no mercado internacional de commodities; baixo valor das terras em relação à região Sul; ganhos de produtividade associados ao desenvolvimento de novos cultivares adap-tados aos solos e clima da região;1 extensas áreas com topografia plana, propícia à me-canização; condições ambientais favoráveis em termos de chuvas e insolação, melhorias na infra-estrutura de transportes; e o perfil de produtores e produtoras rurais oriundos, em sua maioria, da região Sul.

Não obstante a sua importância para o crescimento do agronegócio e contribuição para a balança comercial brasileira, a expan-são acelerada da soja no cerrado tem provo-cado grandes impactos sociais e ambientais, incluindo a expansão dessa cultura para áreas de rica biodiversidade, já dentro dos limites

legais da Amazônia brasileira.Inicialmente, o principal interesse na

Amazônia, por parte das pessoas envolvidas na produção e comercialização da soja no Centro-Oeste, especialmente no norte de Mato Grosso, era baratear o escoamento da produção destinada à exportação, em função de hidrovias como a do Rio Madeira, com seus portos graneleiros nas cidades de Porto Velho (RO) e Itacoatiara (AM). No entanto, de forma crescente, a Amazônia está sendo vista como a “nova” fronteira de produção de soja e de outros grãos, dentro de uma lógica do agronegócio globalizado.

Na Amazônia Legal, o cultivo da soja se expandiu, inicialmente, a partir do fim da década de 1990, em áreas de cerrado e florestas de transição, principalmente no norte de Mato Grosso, sudoeste de Mara-nhão, norte de Tocantins, sul de Rondônia e lavrados de Roraima. Mais recentemente, o cultivo da soja tem avançado em áreas inseridas no bioma da floresta tropical, a exemplo das regiões de Humaitá-Lábrea (AM) e Santarém (PA).

Especialistas consideram as difi-culdades logísticas de escoamento como o maior obstáculo à expansão da soja na Amazônia. Nesse sentido, destaca-se a formação recente de coalizões de produto-res de soja, as tradings (ou compradoras) e articulações políticas que buscam a viabilização de investimentos de grande porte em infra-estrutura de transportes, a exemplo da pavimentação da rodovia Cuiabá–Santarém (BR-163).2 Um indicador da importância dessa rota para o escoamento da soja do Centro-Oeste e a expansão de seu cultivo em direção à floresta amazônica é a construção do terminal graneleiro da Car-gill em Santarém (PA), com capacidade para escoamento de cerca de 1 milhão de toneladas de grãos/ano.

1 Hoje, as lavouras de soja mais produtivas do Brasil estão em Mato Grosso, com rendimentos médios acima de 3 toneladas por hectare/ano.

2 Segundo o governo de Mato Grosso, o asfaltamento da BR-163 deve permitir uma redução dos custos de transporte da soja em aproximadamente 30% ou US$ 38 por tonelada.

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abertoesPaço116 democracia viva nº 27

e s P a ç o a b e r t o

Não obstante os seus benefícios potenciais, principalmente em termos de crescimento econômico no curto prazo, a expansão acelerada da soja na Amazônia Legal traz uma série de riscos e impactos sociais e ambientais. Tais impactos têm chamado a atenção de órgãos governa-mentais, organizações da sociedade civil, instituições de pesquisa e até mesmo dos grandes produtores de soja, que atualmente se sentem pressionados a adotar práticas

sustentáveis de uso do solo e a reduzir as taxas de desmatamento. Entre os principais impactos potenciais da expansão da soja na Amazônia, destacam-se o aumento das taxas de desmatamento (associado a perdas de biodiversidade, aumento da erosão do solo, comprometimento de regimes hidrológicos e alterações climáticas), o deslocamento de pequenos produtores rurais (populações tradicionais, agricultores e agricultoras mi-grantes etc.), a migração de outras atividades

econômicas e dos outros usos do solo que empurram a fronteira do desmatamento para o interior da Amazônia, como a pecuária, e a geração de conflitos sociais.

Impactos desconhecidos

Atualmente, as dinâmicas de expansão da soja e seus impactos socioambientais em diferentes sub-regiões da Amazônia ainda são pouco conhecidos. Em particular, há uma carência de estudos sobre as tendências de expansão da soja no contexto da heterogenei-dade de paisagens amazônicas, em termos de características dos recursos naturais (solos, topografia, hidrologia e vegetação) e de ocupação humana (situação fundiária, po-pulações locais, atividades produtivas etc.).

Por exemplo, argumenta-se que a soja não provoca desmatamento na Amazônia, uma vez que seu cultivo mecanizado está ocupando pastagens antigas, principalmente em fazendas de médio e grande porte, loca-

lizadas na terra firme. Entretanto, existem indícios de que a expansão da soja esteja deslocando a frente da pecuária para áreas vizinhas de floresta primária, gerando um expressivo impacto indireto sobre o des-matamento.

Os impactos socioambientais da expansão da soja em áreas já ocupa-das por pequenos produtores rurais na Amazônia, detentores ou não de títulos de propriedade, também são pouco co-nhecidos. A predominância de pastagens como uso da terra em áreas ocupadas por produtores familiares, mesmo em projetos de assentamento, pode estar favore-cendo esse fenômeno. Visto que a soja está ocupando propriedades e posses de produ-tores familiares, cabe analisar os impactos desse fenômeno em termos de geração de emprego e renda, concentração fundiária e deslocamento dessas populações para áreas urbanas, novas frentes de ocupação

Para ser viávelO fenômeno da expansão da soja na Amazônia traz grandes desafios para o poder público, que tem como função desenhar e viabilizar instrumentos e políticas públicas que estimulem a incorporação de princípios de sustentabilidade (econômica, social e ambiental) na lógica dessa importante atividade produtiva, bem como a sua inserção, de forma mais ampla, em estratégias de desenvolvimento regional sustentável. Nesse sentido, a formulação e a implementação de po-líticas eficazes pressupõem:

• acompreensãodasdinâmicasdaexpansãodasojanaregiãoamazônica,especialmenteosfatoresque condicionam e determinam o comportamento dos agentes econômicos;

• umaavaliaçãoobjetivadoscustosebenefíciostotais (para interessesprivadosedeformamaisampla para todos os segmentos da sociedade em geral) da atividade econômica em questão e, portanto, das necessidades de intervenção pública para planejamento do uso do solo;

• conhecimentodaeficiênciaeeficáciadosváriosinstrumentosdepolíticasquepoderiamserapli-cados, bem como dos seus custos associados.

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Jun / Jul 2005 117

dinâmica da soJa, o desmatamento na fronteira da amaZônia

na floresta primária etc. Outra questão que merece uma análise mais aprofundada é o impacto da valorização de terras em áreas de expansão da soja sobre práticas de grilagem em terras públicas, freqüen-temente associada à exploração madeireira ilegal, num contexto de frágil atuação dos órgãos públicos responsáveis pelas políticas fundiária e ambiental.

De modo geral, existe uma carên-cia de estudos que integrem as principais escalas temporais e espaciais dos fatores que condicionam a expansão da soja e suas relações com as atuais políticas públicas (fundiária, ambiental, instrumentos econô-

micos, zoneamento etc.) diante das dinâmi-cas de expansão da soja na Amazônia. Tais análises são particularmente relevantes, sob a ótica da identificação das mudanças necessárias no intuito de estimular uma maior aproximação entre o desenvolvi-mento agroindustrial e a conservação e o uso sustentado dos recursos naturais da Amazônia brasileira.

Expansão da soja e concentração fundiária

Uma das conseqüências do processo de expansão da fronteira agrícola nas

Fatores condicionantes da dinâmica da expansão da soja e seus processos associados: as dimensões espaciais, temporais e impactos

Figura 1

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118 democracia viva nº 27

esPaço

regiões Centro-Oeste e Norte é a concen-tração fundiária, de renda e dos sistemas produtivos – grandes fazendas de gado e monoculturas mecanizadas (caso da soja) – com a subordinação dos padrões cultu-rais e produtivos das comunidades locais e regionais ao padrão conduzido pelos novos atores sociais, de modo geral imigrantes de outras regiões, com acesso a capital e tecnologia. Esse processo causa o desloca-mento de pequenos agricultores, resultando em novas fronteiras locais de desmatamento.

Nas áreas de expansão da cultura da soja, é a lucratividade da pecuária, e poste-rior transformação ou venda da terra para agricultura intensiva, que sinaliza, tanto para os agentes iniciais como para os próprios pe-cuaristas, que o desmatamento e a conversão das florestas em pastagens são uma atividade

rentável. Se não existissem esses lucros, não haveria interesse pela apropriação ou compra das terras convertidas, e os desmatamentos certamente teriam ritmo muito menos intenso.

Em todas as etapas do processo de desmatamento, os direitos de propriedade são assegurados com a ocupação física da terra, presença que é muito mais importante do que qualquer documento de posse, incen-tivando a ação de grileiros ou posseiros a ocupar terras e garantir sua transferência a novos atores com aversão ao risco relativa-mente maior, embora ainda baixa.

Existe uma tendência de tecnificação e profissionalização da produção pecuária, gerando perspectivas reais de lucro que in-centivam agentes com diferentes funções. Alguns tendem a ser especuladores, sem in-teresse de longo prazo ou compromisso com

a produção em si (no máximo se capitalizam temporariamente com a retirada de madeira), enquanto outros são empresários capitaliza-dos e profissionais da fronteira consolidada, em relação direta com a economia formal. Já os atores sem capital não só ficaram, até o momento, excluídos desses processos, mas também tendem a ser deslocados para áreas marginais, onde contribuem para a abertura de novas fronteiras móveis ou expandem o alcance daquelas existentes.

Soja deslocando a pecuária

A análise da relação entre expansão da soja e taxa de desmatamento em escala municipal mostra que existe uma relação indireta entre os dois fenômenos. A soja se apresenta, por-tanto, como um dos fatores do desmatamento, mas não o único. Há, porém indicações de que

Tabela 1

Análise de correlação entre as variáveis: área de soja em 2002, incremento da soja entre 2000 e 2002, desmatamento médio, desmatamento total e taxa de aumento do rebanho bovino. Entre parênteses, os níveis de significâncias obtidos.

A_Soja_2000 Inc_Soja01/02 Desm_Tot03 Tx_desm01/02

Inc_Soja01/02 0.511(0.000)

Desm_Tot03 0.067(0.653) 0.430(0.003)

Tx_desm01/02 0.034(0.823) 0.501(0.000) 0.780(0.000)

Tx_inc_Reb00/03 - 0.271(0.066) - 0.078(0.602) 0.180(0.225) 0.188(0.205)

a sua expansão direcione o desmatamento em novas áreas, empurrando outras atividades, como a pecuária, para o interior da Amazô-nia. Além disso, cenários futuros apontam para um aumento da expansão da cultura em função da disponibilidade de terra e presença de infra-estrutura já disponível.

Há elementos que apontam niti-damente para o fato de que a soja desloca a pecuária para novas áreas, com provável efeito de desmatamento indireto. Isso pode ser observado pelo fenômeno da redução do rebanho bovino nos principais municípios produtores de soja, porém com o aumento do rebanho nas regiões limítrofes, com destaque (no caso de Mato Grosso) para os municípios das regiões de fronteira móvel.

Particularmente para o estado de Mato Grosso, foram analisadas diversas variáveis para quantificação desse pro-

e s P a ç o a b e r t o

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cesso. Foram estudadas a área plantada no ano 2000 (A_Soja_2000) , o inc re -mento da área plantada da cultura para os municípios (Inc_Soja01/02) e as taxas de desmatamento observa-do para o mesmo período (Taxa_desm01/02). As aná-l ises envolveram estudos de correlação entre tais va-riáveis, com o objetivo de identificar a relação entre a expansão da soja e o processo de desmatamento.

Os resultados indicam que as taxas de desmatamento são positivamente correlacio-nadas (50%) com o incremen-to do cultivo de soja, e essa correlação é extremamente significat iva do ponto de vista estatístico (> 99% de probabilidade). Outro elemento importante observado é que o aumento da área plantada com soja no estado vem ocorrendo em municípios já produtores, com extensas áreas já desma-tadas, mas à custa de novos desmatamentos. Analisando a relação entre as taxas de aumen-to do rebanho bovino no período e demais variáveis estudadas, verifica-se que existe correlação negativa entre a área plantada de soja e a taxa de aumento do rebanho, o que significa que o número de cabeças de bovinos tem diminuído nos municípios com grandes extensões de soja.

Cenários da expansão

A análise da produtividade da soja nos princi-pais estados produtores mostra que os estados de Rondônia e Mato Grosso apresentam as maiores produtividades no período de 1990 a 2004, variando em média entre 2,8 e 2,7 ton/ha, respectivamente. Nesse mesmo período, a produtividade média para as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul foi respectivamente de: 2,1, 2,0, 2,5, 2,3 e 2,1 ton/ha.

Nota-se que a produtividade da soja em Mato Grosso ultrapassou os índices

obtidos na região Sul do país. Além disso, a curva de crescimento da produtividade no Centro-Oeste apresenta menor variação anual, quando comparada à de outras regiões. Esses são indicativos de que, em Mato Grosso, a cultura encontrou melhores condições de adaptação.

A soja em Mato Grosso esteve concen-trada durante anos na porção sul do estado (regiões de cerrado), com escoamento realiza-do principalmente pelos corredores da região Sudeste. A expansão da soja para regiões de

dinâmica da soJa, o desmatamento na fronteira da amaZônia

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120 democracia viva nº 27

abertoesPaço

Tabela 2

Extensão das áreas com cultivo de soja e com outros usos, área potencial para cultura e estimativas de alocação de novas áreas de cultivo em cinco estados (valores em km2)

FONTE: 1 – INPE/PRODES (2004); 2 – IBGE (2004), 3 – ADAPTADO DE BICKEL, U.; DROS, J. M. (2003).

UF área área Outros Potencial Estimativa Aumento desmatada1 de soja2 usos estado3 área (2014) projetado

RO 57.157 595 56.562 100.000 37.708 37.113

PA 91.210 268 90.942 10.000 10.000 9.732

TO 29.841 2.436 27.405 8.000 8.000 5.564

MA 39.293 3.425 35.868 10.000 10.000 6.575

MT 156.720 51.488 105.232 400.000 105.000 53512

Total 374.221 58.212 316.009 528.000 170.708 112.496

transição cerrado–floresta no estado se deve provavelmente ao desenvolvimento de varie-dades adaptadas, disponibilidade de grandes extensões de terra já desmatadas a preços competitivos e altos índices de produtividade obtidos. No entanto, a viabilização dos corre-dores de escoamento noroeste e norte foram responsáveis pela grande expansão da cultura no estado e avanço sobre a região amazônica.

A análise parcial de fatores limitantes e estímulos para a futura definição de cená-rios de expansão da soja na região mostraram que os principais corredores disponíveis para escoamento – Porto Velho–Itacoatiara e Por-to de Itaqui – devem tornar grandes áreas, em torno de rodovias e vicinais, suscetíveis à conversão para cultura da soja. A zona de influência da infra-estrutura é definida em função da relação custo/dificuldade de acesso e o retorno econômico da atividade.

A zona de 100 quilômetros em torno de estradas existentes apresenta as maiores extensões de áreas já desmatadas, porém sem uso atual para soja, no norte de Mato Grosso, região central de Rondônia, leste do Pará, norte de Tocantins e sul do Maranhão. Na mesma zona de influência, as áreas de floresta mais suscetíveis ao desmatamento são as de transição cerrado–floresta, loca-lizadas principalmente no sul de Rondônia, centro-oeste de Mato Grosso e leste de Mato Grosso (Tabela 2). A tabela a seguir aponta para algumas estimativas preliminares de expansão da cultura, a serem validadas pela inclusão de outros estados potencialmente importantes (como Amazonas e Roraima) e pelo uso de diferentes variáveis nos cenários de disponibilidade de infra-estrutura.

Desse modo, o deslocamento da soja depende de uma combinação de elementos naturais (solos, topografia), tecnológicos (variedades, técnicas de cultivo), estruturais (infra-estrutura) e de oportunidade (disponibi-lidade e custos da terra e logística), sendo que parte desses elementos pode ser controlada ou condicionada por incentivos e políticas de direcionamento.

As estimativas mostraram que o Bra-sil deverá atingir produção acima de 140 milhões de toneladas até 2020, caso sejam mantidos o ritmo de crescimento médio da área colhida e da produtividade dos últimos 13 anos (respectivamente, 6,52% e 4,59%) e o patamar médio dos preços internacionais dos últimos anos (US$ 192/t) (Figura 4). A área deverá se expandir atingindo pouco menos de 60 milhões de hectares, sendo que a produtividade deverá dobrar (BNDES, 2003).

e s P a ç o a b e r t o

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abertoesPaço

Tendência da produção, área colhida e produtividade da soja no Brasil, no período de 1961 a 2020 (Fonte: BNDES, 2003)

Figura 4

Evolução da produção e produtividade, no Brasil, e nas duas principais regiões do complexo soja – Centro-Oeste e Sul (Conab, 2004)

Figura 3

dinâmica da soJa, o desmatamento na fronteira da amaZônia

Page 123: Revista Democracia Viva 27

abertoesPaço122 democracia viva nº 27

* Weber a. n. amaral e silvio ferraz

São da Escola Superior

de Agricultura Luiz de

Queiroz, Universidade

de São Paulo, Piracicaba,

SP, e integram a

ONG Amigos da Terra

Amazônia Brasileira, São

Paulo, SP.

roberto smeraldi

também integra a

ONG Amigos da Terra

Amazônia Brasileira

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS

ABIOVE. Empresas processadoras de soja no Brasil – empresas

associadas. 2004. Disponível em: <http:// www.abiove.com.br>.

———. Soja verde para um mercado maduro. Informativo

Abiove, out. 2004.

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Consultoria & Comércio, 2003.

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na Amazônia Brasileira – Dados e estado da discussão. 3. ed., jun.

2004.

BICKEL, U.; DROS, J. M. The impacts of soy bean cultivation

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BNDES. Perspectivas para o cultiva da soja:2004/20. BNDES

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CASTRO, A. C. Localização e identificação das empresas

processadoras de soja, suas áreas de influência, preços e custos de

transporte relacionados. WWF-Brasil, 2002.

CONAB. Levantamento de safras 2004/05. 2004. Disponível em:

<http://www.conab.gov.br>. Acesso em: 2 jun. 2005.

COSTA, F. G. Avaliação do potencial de expansão

da soja na Amazônia Legal: uma aplicação do modelo

de von Thünen. 2000. (Dissertação de mestrado).

ESALQ/USP, Piracicaba.

EMBRAPA. Recomendação de cultivares de soja para a

microrregião de Paragominas, Pará. Belém: Embrapa, 2003.

(Comunicado Técnico 82).

————. Tecnologias para produção de soja na região central

do Brasil. Sistemas de produção, v. 6. Londrina, out. 2004.

FBOMS. Relação entre cultivo de soja e desmatamento:

compreendendo a dinâmica. São Paulo: Amigos da Terra Amazônia

Brasileira, 2005.

GEIPOT. Corredores Estratégicos de Desenvolvimento/

Alternativas de Escoamento de Soja para Exportação. 2004.

Disponível em: <http://www.geipot.gov.br/estudos_realizados/soja/

capitulo_16.htm>.

IBGE. Censo agrícola municipal – Sidra: banco de dados

agregados. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em:

2 jun. 2004.

INPE. O monitoramento da Amazônia brasileira por satélite –

projeto Prodes. Disponível em: <http://www.obt.inpe.br/prodes>.

Acesso em: 18 maio 2004.

Pontos para debateI. Processos de desmatamento são complexos e envolvem múltiplos fatores, em diferentes

escalas de tempo e espaço. As dimensões espacial e temporal da fronteira móvel do des-matamento foram muito estudadas no fim da década de 1980 e no início da década de 1990. Porém, atualmente, a soja adiciona outros fatores de complexidade, potencializando as escalas espacial e temporal do processo de desmatamento, já que aumenta a velocidade das mudanças no uso do solo de uma cultura para outra e empurra a fronteira da pecuária para o interior da Amazônia, mantendo uma relação algumas vezes direta e em outras indireta com o desmatamento.

II. Há uma clara correlação entre as taxas de desmatamento e a expansão da cultura da soja nas áreas analisadas dentro da região amazônica. Porém, os fatores que afetam essa correlação devem ser mais bem investigados, no que diz respeito à velocidade (dimensão temporal) e ao direcionamento do desmatamento (dimensão espacial).

III. A previsão para 2014 é de que a área plantada de soja nos estados de Mato Grosso, Rondônia, Pará, Maranhão e Tocantins possa vir a ser triplicada em função das tendências observadas, mesmo que sujeitas às influências de outros fatores externos, como os de mer-cado. Grande parte das novas áreas deverá estar provavelmente concentrada nos estados de Mato Grosso e Rondônia. No entanto, tais previsões podem também ser alteradas em função da expansão de áreas plantadas em outros estados da Amazônia (como Amazonas e Roraima) ou do Nordeste. É também necessário observar que os impactos ambientais e sociais podem variar muito de acordo com a situação de cada estado ou sub-região.

IV. A falta, até o momento, de dados, levantamentos e pesquisas de longo prazo sobre o tema leva à conclusão de que é necessário e urgente aprofundar e ampliar o trabalho inicial realizado pelo GT Florestas do FBOMS (Grupo de Trabalho de Florestas, 2005), que serviu de base para este artigo, com levantamentos primários em diferentes situações e contextos dentro da Amazônia. Tais trabalhos devem, pela complexidade do tema, ser realizados em parceria com os diferentes atores envolvidos e interessados no assunto, tais como organizações civis, universidades, instituições de pesquisa, órgãos do governo, como a Embrapa, ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), do Meio Ambiente (MMA) e Ciência e Tecnologia (MCT), e a iniciativa privada.

e s P a ç o a b e r t o

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s u a o P i n i ã o

Caro(a) leitor(a)

Estamos inaugurando, nesta edição da Democracia Viva, um espaço para sua opinião.

Queremos manter um canal de diálogo com nosso público e verificar a utilização

da nossa revista por diferentes setores da sociedade. Para isso, contamos com sua

colaboração por correio eletrônico <[email protected]> ou pelo

endereço postal – Avenida Rio Branco, 124, 8º andar, Centro, Rio de Janeiro – RJ,

CEP 20040-916.

A seguir, algumas opiniões enviadas recentemente à Democracia Viva e que

nos inspiraram a abrir este novo espaço. As remetentes dessas mensagens – uma

educadora, uma comunicadora e uma bibliotecária de universidade pública – ilustram

com seus comentários nosso esforço em transformar um meio de comunicação em

instrumento de mudança social. Agradecemos a Célia Varela, Andréa Rodrigues e

Aparecida Caitar pelo reconhecimento ao trabalho do Ibase.

Aguardamos seu contato também.

Equipe da Democracia Viva/Ibase

Educação popular

Receber um exemplar da revista Democracia Viva é sempre uma maneira de ficar mais sábia, de refletir a minha prática de educadora popular, conectando-me com o movimento do mundo, do Brasil e das comunidades locais. É uma revista bonita e de muito conteúdo inspirador para consolidar e inovar práticas sociais que transformem a nossa utopia em projeto político, comprometido com a felicidade da maioria da população. No mais, parabéns pela força e pelo trabalho de produção e democratização do conhecimento comprometido com a afirmação da cidadania e da democracia no Brasil e no mundo. Para a democracia SER e estar VIVA, dá um trabalho... Valeu por estarem fazendo a parte de vocês.

Com admiração,

Célia VarelaAssessora da Fian Brasil (FoodFirst Informa-tion & Action Network / Rede de Informação e Ação pelo Direito a se Alimentar)

Comunicação

Perdoe-me pelo atraso em agradecer pela doação entregue em minha casa. Confesso que chorei muito... Aqui na Baixada Fluminense, onde todas as formas de misérias são evidentes, nós

que tentamos resgatar social e culturalmente nossa boa imagem nos sentimos fortes quando encontramos iniciativas como as que V.Sas. tiveram com a nossa causa. Forte abraço a todos da equipe desta grande revista. Digo tranquilamente que Vocabulário Feminino tem hoje uma informação muito mais enriquecedora graças à doação de exemplares da Democracia Viva. Atenciosamente agradeço em meu nome, em nome da Rádio e de toda a comunidade que passou a conhecer o trabalho do Ibase.

Aplausos!

Andréa RodriguesVocabulário FemininoRádio Baixada FM (93,7)

Acervo

A Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina agradece o recebimento da revista Democracia Viva (jun./jul. 2004). Gostaríamos também de receber, através de doação, os números seguintes que forem publicados da revista Democracia Viva, editada por essa con-ceituada entidade.

Aparecida J. P. CaitarUniversidade Estadual de LondrinaBiblioteca Central

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