revista democracia viva 40

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  • 8/7/2019 Revista Democracia Viva 40

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    Bete MendesBete MendesBete MendesBete MendesBete MendesBete MendesBete MendesBete MendesBete MendesBete Mendes

    D E M O C R A C I A V I V A 40

    Constituio Cidadvinte anos depois:debater preciso

    EntrevistaBete Mendes

    Direito educao em risco

    Trinta anos das greves do ABC

    Cenrio poltico-eleitoral em Angola

    Constituio Cidadvinte anos depois:debater preciso

    EntrevistaBete Mendes

    Direito educao em risco

    Trinta anos das greves do ABC

    Cenrio poltico-eleitoral em Angola

    SETEMBRO 2008

  • 8/7/2019 Revista Democracia Viva 40

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    e d i t o r i a ldc Chv Pf

    Diretora do Ibase e pesquisadora do CPDOC/FGV

    Comemorar festejar, celebrar, lembrar, reetir. Mas , sobretudo,

    no esquecer. Nesta edio da revista Democracia Viva, estamos homenageando e lembrandoalguns momentos, personagens e acontecimentos que marcaram a histria do nosso pas.

    Por exemplo, estamos comemorando o centenrio do pernambucano e cidado do

    mundo Josu de Castro, um intelectual ativista no combate fome. Estamos rememorando os

    30 anos das greves do ABC paulista momento signicativo do avano e do compromisso com

    as mudanas na vida do movimento sindical brasileiro.

    Estamos, tambm, festejando os 20 anos da nossa Constituio, que representou

    o rompimento com a ditadura militar, implantada no pas em 1964, e a retomada do regime

    democrtico. Conhecida como Constituio Cidad, sem dvida, proporcionou um alargamento

    da nossa cidadania. Entretanto, apesar dos grandes avanos, o nosso dcitde cidadania ainda

    muito alto. Por isso, ao mesmo tempo que festejamos nossas conquistas, devemos buscar

    lembrar, entender e reetir sobre nossas decincias.

    Nesse sentido, no momento em que comea a ganhar espao na sociedade brasileira

    o debate sobre a responsabilizao daqueles que cometeram crime de tortura durante o regime

    militar, nada mais oportuno do que a entrevista com Bete Mendes. Desde muito cedo quer

    por meio da arte, quer da poltica , ela se engajou na luta pela transformao da nossa socie -

    dade. Por isso, foi presa e barbaramente torturada pela ditadura militar em 1970, aos 20 anos

    de idade. Certamente, para alm do privilgio de conhecer melhor a riqueza e a grandeza da

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    s u m r i oIbase Instituto Brasileiro de Anlises Sociaise EconmicasAv. Rio Branco, 124 / 8 andar20040-916 Rio de Janeiro/RJTel.: (21) 2178-9400 Fax: (21) 2178-9402

    Conselho CuradorSebastio SoaresJoo GuerraCarlos Alberto AfonsoNdia RebouasSonia Carvalho

    Direo ExecutivaCndido GrzybowskiDulce PandolfiFrancisco MenezesJoo Sucupira

    Coordenadores(as)Ciro TorresFernanda CarvalhoItamar SilvaJoo Roberto Lopes PintoLuzmere DemonerMoema Miranda

    d e m o C r a C i a V i VaISSN: 1415-1499 Publicao trimestral

    Diretora ResponsvelDulce Pandolfi

    Conselho EditorialAlcione ArajoCndido GrzybowskiCharles PessanhaCleonice DiasJane Souto de OliveiraJoo Roberto Lopes PintoMrcia FlorncioMrio OsavaMoema MirandaRegina NovaesRosana HeringerSrgio Leite

    EdioAna Bittencourt

    SubedioJamile Chequer

    RevisoFlvia Leiroz

    Assistente EditorialFlvia Mattar

    Assessoria de imprensaRogrio Jordo

    ProduoGeni Macedo

    EstagiriosCarlos Daniel da Costa

    Diego Santos

    DistribuioElaine Amaral de Mello

    Projeto Grfico e DiagramaoMais Programao Visual

    Foto de capaMontagem sobre foto de Duda Bentes / Agil /Acervo Museu da Repblica

    ImpressoMorada do Livro

    Tiragem5 mil exemplares

    [email protected]

    O Ibase adota a linguagem de gnero em suas publicaes por acreditar que essa uma estratgiapara dar visibilidade luta pela eqidade entre mulheres e homens. Trata-se de uma polticaeditorial, fruto de um aprendizado e de um acordo entre os(as) funcionrios(as) do Ibase. No casode artigos redigidos voluntariamente por convidados(as), sugerimos a adoo da mesma poltica.

    Os artigos assinados nesta publicao no traduzem, necessariamente, a posio do Ibase.

    Para apoiar os projetosdesenvolvidos peloIbase, escreva [email protected] telefone para

    (21) 2178-9400.Doaes de pessoasjurdicas podem serabatidas do Impostode Renda.

    Cultura

    Constituio de 1988

    entreVista

    Bete Mendes

    3 artiGoEducao pede socorrono Complexo do Alemo

    Denise CarreiraSuelaine Carneiro

    8 deBateBrasil comemora aniversrioda Constituio CidadMarcello CerqueiraGisele Silva ArajoPedro Cludio Cunca Bocayuva

    24 internaCionalPaz, governana, reconstruo,democracia e eleies em AngolaAdo Domingos Adriano; Analdina SilvinaEduardo; Konde Emmanuel; LourenoMabonzo; Massamba Ngengo Dominique;e Moises Chiteculo Piedade Festo

    28 entreVistaBete Mendes

    46 artiGoTrinta anos das greves do ABCMarco Aurlio Santana

    50 resenHasAlvaro NeivaCludio Severino

    54 CrniCaAlcione Arajo

    56 artiGoJosu de Castro: um homem

    e vrios legadosTeresa Sales

    60 oPinio iBaseParticipao cidad, ondeavanamos, onde emperramos?Luciano Cerqueira

    Reformas constitucionaisna Amrica do SulMaurcio Santoro

    66 CulturaConstituio de 1988:a voz e a letra do cidadoMaria Helena Versiani

    76 esPao aBertoUm novo olhar sobreas cotas raciaisAndr SantAnna de Oliveira

    82 sua oPinio

    84 ltima PGinaNani

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    setemBro 2008 3

    a r t i G od C*

    s C**

    A Relatoria Nacional para o Direito Humano Educao1 lanou, em agosto de 2008,

    relatrio final2 da misso realizada em outubro de 2007 sobre a violao dos direitos

    educativos de crianas, jovens e adultos(as) que freqentam as escolas pblicas do

    Complexo do Alemo, no Rio de Janeiro. O relatrio ser encaminhado, em setem-

    bro, Comisso Interamericana da Organizao dos Estados Americanos (OEA) e ao

    Comit da Criana da Organizao das Naes Unidas (ONU).A misso e o levantamento complementar de informaes realizado em 2008 tiveram por

    1 A Relatoria Nacionalpara o Direito Humano Educao vinculada Plataforma Dhesca (DireitosHumanos Econmicos,Sociais, Culturais eAmbientais), uma articulaode 43 organizaes eredes nacionais de direitoshumanos. Alm da educao,a plataforma conta com maiscinco Relatorias Nacionais(sade, alimentao e terrarural, meio-ambiente, moradiaadequada e trabalho), queatuam com o apoio daProcuradoria Federal doCidado e do Programa deVoluntrios das Organizaesdas Naes Unidas.

    2 O relatrio, na ntegra, estdisponvel em:

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    objetivo apurar e analisar o que ocorreu antes,durante e aps a suspenso das aulas por quasedois meses, decorrente da megaoperao po-licial contra grupos do narcotrfico ocorrida apartir de maio de 2007 e que levou morte19 pessoas. Uma das questes que mobiliza-ram esse trabalho foi verificar se a situao

    de confronto armado como intensificadordas histricas violaes do direito humano educao e de demais direitos, enfrentadascotidianamente pelas populaes de comuni-dades populares restringiu-se ao perodo daao policial ou se algo permanente na vidada populao do Complexo do Alemo.

    Para compreendermos a situao,visitamos escolas e ouvimos integrantes dascomunidades, profissionais de educao, sin-dicalistas, autoridades pblicas, organizaes

    comunitrias do Complexo do Alemo e outrasorganizaes da sociedade civil carioca.

    Por dentro do Complexo

    O Complexo do Alemo um conjunto defavelas localizado na zona norte do Rio deJaneiro, na Serra da Misericrdia, parte centralda regio da Leopoldina, abrangendo cincobairros: Ramos, Inhama, Bonsucesso, Penhae Olaria. Em decorrncia da falta de pesquisassobre a rea, h dados conflitantes por parte

    de diferentes fontes governamentais sobre suapopulao3 e situao socioeconmica.

    Segundo dados do censo demogrficodo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica(IBGE), a populao do Complexo em 2000era de 65.021 habitantes. Atualmente, es-timada por alguns rgos pblicos entre 120mil e 160 mil pessoas, ocupando uma rea de6.185 hectares, sendo a segunda regio maispopulosa da cidade. O Complexo compostopor 13 comunidades: Morro do Alemo, Grota,Nova Braslia, Alvorada, Alto Florestal, Itarar,

    Morro Baiana, Morro Mineiro, Morro da Espe-rana, Joaquim de Queiroz, Cruzeiro, Morrodas Palmeiras e Morro do Adeus.

    Considerada uma das regies mais po-bres do Rio de Janeiro, o Complexo do Alemoapresenta ndice de Desenvolvimento Humano(IDH) de 0,711, o mais baixo dos 126 bairros doRio de Janeiro. A expectativa de vida de 64,8anos e aproximadamente 14% da populao analfabeta. Nessa regio, cerca de 29% dapopulao local vive abaixo da linha de pobre-

    za, e a taxa de mortalidade infantil de 40,15por 100 mil nascidos vivos, nmero cinco vezesmaior do que na zona sul da cidade, que de7,76 por 100 mil.

    A atividade econmica da regio com-posta por 6 mil pequenos estabelecimentos,sendo que 87,4% so do segmento do comrcio

    e servios. Apresenta altas taxas de natalidade,pequena rea livre por habitante, pouca ofertade emprego, baixo ndice de desenvolvimentoinfantil e carncia geral de atendimento no setorda sade. Desde o fim da dcada de 1990, aregio do entorno do Complexo do Alemoviveu intenso processo de desindustrializao,que acarretou a perda de cerca de 20 mil postosde trabalho.

    A misso da Relatoria Nacional para oDireito Humano Educao nas escolas pblicas

    do Complexo do Alemo revelou a urgncia deque a educao naquela localidade seja assumi-da como uma educao em situao de emer-gncia. Em mbito internacional, educaoem situao de emergncia a decorrente decatstrofes naturais ou das chamadas emergn-cias complexas. As emergncias complexasso situaes de gravidade social geradas pelosseres humanos, entre elas, a violncia armada.

    O que vimos demonstra que a violnciana qual as escolas esto imersas permanentee cotidiana e no-episdica, como informado

    por algumas autoridades. Essa violncia temmomentos de pico e sentida de forma dife-renciada nas reas do Complexo do Alemo eadjacncias. Depoimentos apontam que ela seintensificou nos ltimos anos em vrias reas,alcanando patamares preocupantes a partir daoperao policial de maio de 2007.

    Grande parte das escolas da regio sofrea falta de professores(as), um problema queafeta todo o estado, mas de forma intensa oComplexo do Alemo e outras comunidadespopulares do Rio de Janeiro. H escolas com

    turmas inteiras sem aulas, e h anos no ministrada a disciplina de matemtica. Emdecorrncia da violncia, das precrias condi-es de trabalho e dos baixos salrios, muitosprofessores e muitas professoras sobretudoda rede estadual no permanecem nas esco-las. Essas apresentam tambm infra-estruturainadequada ou sem manuteno, os recursosso insuficientes para a merenda, h grandedemanda por vagas, como no caso das creches,e baixa qualidade do ensino em grande parte

    3 Segundo estudo do Centrode Promoo da Sade

    (Cedaps), realizado em 2003e baseado em informaesobtidas na prefeitura, muitosmoradores do Complexodo Alemo no informamo endereo utilizandoComplexo do Alemo comobairro de moradia prefereminformar os bairros a quepertenciam suas comunidadesantes da existncia doComplexo (Inhama, Ramos,Bonsucesso etc.). O estudoconsidera que tal situaodecorre do estigma criadosobre o bairro, marcadopor uma reputao cadavez pior com relao violncia e pobreza.

    a r t i G o

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    das unidades educacionais, apesar do esforoherico de muitos e muitas profissionais daeducao. Tambm destacamos o comprome-timento da sade mental de vrios profissionaise estudantes.

    Para alm da ao policialEntendemos ser dever do Estado restaurar suaautoridade no Complexo do Alemo e em outrascomunidades do Rio de Janeiro dominadas pelasforas do narcotrfico que, como apontadopelo relator especial da ONU para ExecuesSumrias, Philip Alston, dominam comunida-des inteiras, submetendo os residentes a umaviolncia sem sentido e constante represso.

    Porm, questionamos a forma comovem sendo desenvolvida essa autoridade, ba-

    seada no uso arbitrrio e excessivo da fora, etemos grandes dvidas sobre a sua eficcia aoidentificarmos:

    conhecimentolimitadoporpartedasauto-ridades pblicas das dinmicas sociais e dascomplexidades envolvidas na constituiodo poder, do funcionamento e da repro-duo das redes do narcotrfico na regio.Essa viso muitas vezes marcada porpreconceitos diversos e pela estigmatizaodas comunidades;

    inexistnciadeestratgiasarticuladasentreas esferas de governo (municipal, estadual efederal) e entre reas de governo (sociais, desegurana e de trabalho) que visem garantiros direitos humanos das comunidades eimpactar as causas estruturais do conflito.Dessa forma, o Estado brasileiro, mais umavez em sua histria, apresenta-se para apopulao de baixa renda com sua facepredominantemente repressiva;

    inexistnciadeestratgiasdeprevenodo

    conflito e de qualquer outra iniciativa que

    vise proteo das comunidades envolvidas; existnciadediversasdennciasdevioln-

    cia cometidas pela polcia e pela Fora deSegurana Nacional contra as comunidades,que abarcam casos de abuso de poder,homicdios, tortura e roubos, em fase deapurao pelo Ministrio Pblico Estadual;

    visoetapistadaintervenoestatalpresen-te nos discursos das autoridades pblicas:em primeiro lugar, o Estado chega com asoperaes de limpeza das redes criminais,

    seguidas por obras de infra-estrutura doPrograma de Acelerao do Crescimento(PAC das Favelas) e, por ltimo, a garantiade servios sociais adequados.

    O objetivo de reassumir o poder doterritrio no se realizar por meio somente

    de polticas de segurana, mas com serviossociais de qualidade, entre eles, uma educaode qualidade que garanta os padres bsicosprevistos na legislao educacional. Alm disso,so necessrios atendimento de sade comprofissionais e equipamentos e uma polticade assistncia social consistente e articulada apolticas de trabalho e renda. O Complexo doAlemo e outras comunidades que enfrentamproblemas similares de violncia e exclusosocial acentuada exigem um

    choque de poltica socialque melhore as condies devida daquelas populaes eimpacte, de forma estrutural, areproduo cotidiana das redescriminais nessas reas.

    Nove meses depois

    Em agosto de 2008, a equipeda Relatoria entregou em audi-ncia o relatrio s autoridades

    do estado e voltou a visitar asescolas do Complexo do Ale-mo (ler recomendaes emdestaque). Para a secretriade Estado de Educao, TeresaPorto, e o secretrio de Estadode Segurana Pblica, JosMariano Beltrame, h con-cordncia com a necessidadede investimento em serviossociais. Ns, da polcia, senxugamos gelo. Hoje, tenho

    conscincia de que precisamosde um grande investimento so-cial nessas reas para combatero crime organizado, disse Bel-trame. O secretrio informou que havia acolhidoa recomendao de desenvolver um conjunto deorientaes s escolas sobre segurana pblica.E avaliou que o PAC est contribuindo paraarticular as aes entre os governos estadual,federal e municipal.

    A secretria Teresa Porto informou que

    Entendemos serdever do Estado

    restaurar sua

    autoridade no

    Complexo do

    Alemo eem outras

    comunidades do

    Rio de Janeiro

    dominadas

    pelas foras do

    narcotrfico

    eduCao Pede soCorro no ComPlexo do alemo

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    a situao nas escolas estaduais bem dife-rente da encontrada pela Relatoria ao fim de2007. Disse que novos(as) docentes haviamsido contratados(as) e que a secretaria estconstruindo um sistema de informao quepermitir acompanhar, de forma mais deta-lhada, a situao de cada escola. A secretria

    municipal de Educao, Sonia Mograbi, norecebeu a equipe da Relatoria para entrega dodocumento.

    A constatao em agosto de 2008 queos confrontos entre policiais e narcotraficantesdiminuram no Complexo do Alemo. Algunsacreditam que isso decorre das obras do PAC,outros que resultado de algum pacto empoca eleitoral, outros acham que tudo poderecomear a qualquer momento. Nas escolasda rede municipal Leonor Coelho e Monse-

    nhor da Rocha, localizadas na Vila Cruzeiro,o clima de temor e expectativa. Desde queuma ocupao policial teve incio na segundasemana de agosto de 2008 com 300 policiais,motivada segundo as autoridades pelo casodo seqestro de um grupo de chineses e pelasdenncias de impedimento da presena depolticos e jornalistas na rea, grande parte dascrianas e dos(as) adolescentes deixou de ir escola. A escola Monsenhor da Rocha informouque, na segunda quinzena de agosto, quase40% faltaram s aulas. Na escola Leonor, na

    primeira semana de ocupao, a ausncia che-gou aos 90% e ficou em mais de 50% a partirda segunda semana. Aqui, a gente vive sempreum sobe e desce. As famlias esto segurandoas crianas em casa com medo do que vir,afirma a diretora Vera Caldas.

    No Ciep Thephilo de Souza Pinto, lo-

    calizado na Vila Braslia, o vice-diretor KleberCoelho observa que pouco mudou do anopassado para c. Continuamos com falta deprofessores. Temos capacidade para atender 4mil estudantes e estamos com pouco mais demil. Como retrocesso, destaca que no maisconsegue fornecer o caf da manh para ascrianas do perodo integral. O dinheiro nod, fizemos de tudo. E sabemos que essa ali-mentao fundamental para a maioria. Maisuma vez, a direo pede o apoio da Relatoria

    para que o consultrio odontolgico da escola devidamente equipado volte a funcionar. Jno sabemos mais para quem pedir. So tantasas promessas de polticos e tanta a demandapor atendimento. um absurdo.

    Possibilidades do PAC

    Recomendamos, enfaticamente, que o PAC das

    Favelas, iniciativa do governo federal que co-

    meou a ser implementado no fim de 2007 nas

    comunidades cariocas do Complexo do Alemo

    e de Manguinhos, possa ser assumido, no como

    mais um projeto, mas como uma estratgia que

    potencialize ao mximo a ao articulada entre

    os governos federal, estadual e municipal. Ao

    que permita a melhoria das condies de vida

    da populao, baseada em participao efetiva

    dessas comunidades e de outras organizaes

    do Rio de Janeiro.

    Nesse sentido, defendemos tambm a pro-

    posta de organizaes do Rio de Janeiro de que

    seja composto um Conselho da Cidade para

    monitorar e influenciar este que um dos

    principais projetos de interveno pblica em

    comunidades populares do pas. Sem instncias

    de controle social e participao, devidamente

    institucionalizadas e com poder efetivo, ser

    difcil alterar a relao historicamente viciada e

    clientelista que marca a relao do Estado com

    essas comunidades. Comunidades que, apesar

    dos grandes desafios, possuem organizao, di-

    namismo e criatividade imensa na forma como

    organizam suas manifestaes culturais, redes

    de solidariedade e aes polticas.

    a r t i G o

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    * d C

    Relatora Nacional para

    o Direito Humano

    Educao; feminista,

    coordenadora do

    Programa de Pesquisa

    e Monitoramento

    da Ao Educativae ex-coordenadora da

    Campanha Nacional

    pelo Direito Educao

    ** sC

    Assessora da Relatoria

    Nacional para o

    Direito Humano

    Educao; integrante de

    Geleds Instituto

    da Mulher Negra

    Recomendaes

    Entendemos que o Estado brasileiro (Unio, estadoe municpio) viola o direito humano educao dacomunidade do Complexo do Alemo e de outrascomunidades similares ao no garantir condiesmnimas que permitam a efetivao desse direito.A situao de emergncia na qual se encontramexige um conjunto de medidas urgentes a seremimplementadas pelo Estado brasileiro, entre elas: Planodeao:elaboraourgentedeumplano

    de ao visando garantir o direito humano educao de qualidade, levando em conta asvrias dimenses do documento internacionalRequisitos mnimos para a educao em situ-ao de emergncia. Alm da infra-estruturaadequada, especial ateno deve ser dada necessidade urgente de recomposio do qua-dro de profissionais de educao com condiesde trabalho adequadas, estmulo financeiro esuporte pedaggico para o exerccio da funona rea. Isso exige estratgias que possibilitema superao de um quadro marcado por con-

    trataes precrias, baixssimos salrios, intensarotatividade e inexistncia de apoio adequadopor parte dos rgos centrais s escolas dessascomunidades. O plano tambm deve contem-plar, de forma sistmica, a rpida melhorado conjunto dos servios sociais oferecidosnas comunidades e alternativas de trabalhoque garantam condies de vida dignas parajovens e adultos(as) desempregados(as) ousubempregados(as).

    Presena deoperadores dedireito: instalao

    de postos de atendimento permanentes nascomunidades da rea por parte do MinistrioPblico Estadual e do Federal e da Defensoria

    Pblica. Realizao de visitas peridicas porparte dos organismos da ONU, da Cruz Ver-melha, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)e demais operadores do direito. Observamosque, em decorrncia da escalada da violncia,vrios desses rgos e vrias dessas instituiesdeixaram de visitar ou diminuram de formasignificativa a presena na rea, contribuindopara o abandono total das comunidades aode narcotraficantes, tornando-as vulnerveisao abuso de poder de determinados policiais.Identificamos tambm que vrias empresasprestadoras de servio de gua, luz, correio,telefone, entre outras, diminuram a presena oudeixaram de prestar atendimento s populaesdo Complexo e adjacncias em decorrncia daviolncia.

    Informaodequalidade:enfrentamosmuitas

    dificuldades para ter acesso a dados quantitati-vos e qualitativos referentes regio. Encontra-mos informaes contraditrias e insuficientesfornecidas pelo poder pblico. Para se construirestratgias eficazes e efetivas, fundamental aconstituio de um sistema integrado de infor-maes que possibilite uma base qualificadapara o planejamento da ao do poder pblicoe da sociedade civil e o monitoramento de in-dicadores diversos, entre os quais, situao dos

    equipamentos, evaso, repetncia, rotatividadede docentes e problemas de sade. Nesse ponto,tambm destacamos a importncia de que todosos dados e todas as informaes pblicas estejamdisponveis para consulta pblica, vinculadas a

    uma poltica de promoo da transparncia e decontrole social que garanta o direito informaopblica de todo cidado e toda cidad.

    Articulaoecoordenaodepolticas:funda-mental a articulao das polticas de seguranae das polticas sociais entre reas de governo eentre governo federal, estadual e municipal. Essaarticulao deve se concretizar por meio de umainstncia coordenadora constituda para tal fim,que possibilite o planejamento, o monitoramentoe a avaliao das aes e polticas consistentes.

    Participaocomunitria: a constituio de

    instncias institucionalizadas e permanentes deinterlocuo com as comunidades fundamen-tal em situaes como a vivida pelo Complexodo Alemo e por outras comunidades cariocas.Instncias baseadas no em uma participaofigurativa e nem consultiva, mas em uma partici-pao que efetivamente contribua no processo detomada de decises e que reconhea a diversidadeinerente organizao comunitria. importanteque o poder pblico no reduza a convocatriapara participao nesses processos somente aosconsiderados aliados dos governos.

    Protocolodeseguranaescolar:observamosem

    nossas visitas que no existe nenhuma orientaos escolas e s famlias com relao seguranaem caso de conflito. Como nos foi dito pelo go-verno estadual, sero realizadas novas operaes

    policiais nas comunidades. Por isso, insistimosser fundamental a criao de protocolos de se-gurana, construdos por meio da parceria entresegurana e reas sociais, de forma a respondera algumas questes: o que fazer quando comeaum tiroteio? Liberar ou no as crianas? Comoorientar as famlias? Ouvimos depoimentos quemostram a total desorientao diante de talsituao, o que, em nosso entender, aumenta orisco.

    Cadastrode demanda:criaoemergencialde

    cadastro de demanda por educao da popula-o do Complexo do Alemo e adjacncias. Essecadastro deve abarcar diferentes graus e etapas

    da educao brasileira: educao bsica (creche,pr-escola, ensino fundamental e ensino mdio),e ensino superior e modalidades (educaoespecial para deficientes, educao de jovense adultos(as), educao profissional e educaoindgena). Evidentemente, recomendvel queo cadastro seja atualizado para o conjunto dapopulao do municpio do Rio de Janeiro.

    eduCao Pede soCorro no ComPlexo do alemo

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    d e B a t e

    8 demoCraCia ViVa n 40

    Em 5 de outubro, a Constituiobrasileira completa duas dcadas.Resultado do trabalho de umaAssemblia Constituinte consideradaexemplar por estudiosos(as), realizadode 1987 a 1988, tambm fruto da

    presso da sociedade civil organizada que se empenhou para que as reaisdemandas da populao fossemincludas na nova Carta. Desde suapromulgao, a Constituio Cidad,como foi batizada pelo presidente daAssemblia, Ulysses Guimares,

    Brasil comemora

    aniversrio da

    festejada como o documentoque trouxe nosso pas de volta vida democrtica e abriu novaspossibilidades de exerccio dacidadania. Mas nossa legislao maisimportante tem sido respeitada?Como vem se dando essa aplicabilidadeno cotidiano do Brasil? Onde o soprode democracia fluiu e onde ficou

    congelado? Este um momentoespecial para fazermos tais reflexes.Para contribuir com o debate, a revistaDemocracia Viva publica trs artigos:um do jurista Marcello Cerqueira;outro da cientista social Gisele SilvaArajo; e outro do especialista emDireitos Humanos, Pedro Cludio CuncaBocayuva.Confira a seguir.

    DUDABENTES/AGIL/ARQUIVOHISTRICODOMUSEUDAREPBLICA

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    setemBro 2008 9

    De p, com as mospara o alto, UlyssesGuimares. A sua direita,Moreira Alves e, sua esquerda, Paes deAndrade. (Constituinte Sesso de 2 de fevereiro

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    d e B a t e

    10 demoCraCia ViVa n 40

    A Constituio de 1988 marcou a ruptura coma extenuante ditadura militar de 1964 e foi feitapor meio de negociaes, como a Constituioanterior, de 1946 (ruptura pactuada). Isso aaproximou do modelo espanhol (transicinpactada) e a afastou do modelo portugus(revolucionria, na origem).

    Os setores mais avanados no queriamrepetir o modelo anterior e propunham, comose recorda, Constituinte livre, soberana eexclusiva. Livre se auto-explica, e com sobe-rana e exclusiva queria-se dizer que ela no

    teria funes legislativas ordinrias e que sedissolveria aps a promulgao do novo texto,convocando eleies gerais.

    A primeira questo que ento se apre-sentava para a Ordem dos Advogados do Brasil(OAB) era a convocao da Constituinte, poisela poderia definir, ou pelo menos fortementeorientar, seu modelo. Sabe-se que uma Cons-tituinte s est vinculada aos termos de suaconvocao.

    Nesse sentido, o ento presidente daOAB nacional, o advogado Herman Assis Baeta,

    levou ao ministro da Justia, Fernando Lyra, ostermos da entidade. O ministro encarregou oconsultor jurdico do ministrio de redigir ocaminho por onde deveria seguir a convocao:

    Simples projeto de lei ordinria de ini-ciativa do Executivo submeteria ao Con-gresso Nacional a outorga de poderesconstituintes aos representantes do povoeleitos em 1986. A lei da resultante seriasubmetida a referendo popular. Evitava-sea convocao por Emenda Constitucional,j que a sistemtica de sua aprovao

    Vinte

    anos daConstituio:

    exige quorum de dois teros em ambasas casas do Congresso. Ora, em 1982, foieleito um tero dos membros do SenadoFederal, que em sua maioria gostaria departicipar da Constituinte, embora notivesse poderes originrios para tanto.A fixao do quorum de maioria simplescontornaria esse obstculo. Diferentemen-te, a hiptese de convocao por meio deEmenda Constitucional teria de conciliar-secom a pretenso de senadores residuais(Lobo; Leite, 1989, p. 4).

    Tal no se deu e, de certa forma, em-baraou o passo dos trabalhos constituintes. que, naturalmente, os interesses permanentesde uma Assemblia Constituinte so diferentesdos que pressionam o Congresso no dia-a-dia.

    De qualquer forma, a Constituio foipromulgada e trouxe aporte significativo dedireitos fundamentais e sociais, ao mesmotempo que seu texto, demasiadamente anal-tico, incorporou normas que mais bem seriamtratadas em leis ordinrias. Mesmo a lei que

    criou a Petrobras, por exemplo, alada normaconstitucional, nem por isso viu protegida aintegralidade do monoplio estatal do petrleo.

    Divergncias e insensatez

    Pouco tempo aps a sua celebrao e a pretextodo fim do socialismo real que teve a quedado muro de Berlim como ponto de maior ex-presso e explorao , setores inconformadoscom os inegveis avanos da Constituio de1988 j reclamavam sua reviso, brandindo

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    dispositivo do Ato das Disposies Transitriasque chamava a plebiscito o eleitor para decidirentre a forma de governo (presidencialismo ouparlamentarismo) e a nostlgica volta ao pas-sado com outro extico imprio nos trpicos.

    Isso se o eleitor pudesse escolher entreum sistema desconhecido (o parlamentarismo,

    com vida efmera com Jango) e a forte atraomessinica do presidencialismo. Marx, no 18Brumrio, ao comentar o golpe do II Bonaparte que, de alguma forma, aqui se reproduziriacom a recandidatura de Fernando Henrique, dizia que um parlamento eleito estava emrelao metafsica com o povo, ao passo queo presidente eleito mantinha com ele relaodireta.

    Recorda-se que, presidente eleito, Tan-credo Neves constituiu comisso de estudospara oferecer um anteprojeto de Constituio,

    que restou conhecida pelo nome de seu presi-dente, professor Afonso Arinos.A Comisso Arinos inclinou-se para o

    semipresidencialismo (ou o semiparlamentaris-mo), nos moldes j praticados na Frana, desdeDe Gaulle, e em Portugal (mais mitigado), apsConstituio nascida da Revoluo dos Cravos(e que permanece, mesmo aps as reformasliberais que aproximaram o pas da ComunidadeEuropia).

    J assumindo a cadeira presidencial,e em face de divergncias com o texto daComisso Arinos, sobretudo com a adoo do

    semipresidencialismo que sugeria uma novaeleio para um novo governo , o presidenteJos Sarney limita-se a publicar o relatrio Ari-nos no Dirio Oficial da Unio, e no o enviacomo proposta do governo para a nascenteConstituinte.

    Razovel que no projeto Arinos constas-se a medida provisria, que vai buscar razesna ordenanza italiana, cultura to a gosto dosaudoso professor. S que, naquele contexto,a medida expedida por um primeiro-ministrodependente do Parlamento que o escolheu, e

    que a qualquer momento pode derrub-lo comuma moo de desconfiana.Transplant-lo para um regime presiden-

    cialista (forte) foi insensatez, da qual se paga opreo da desorganizao legislativa e mesmodo desequilbrio entre poderes (Executivo ver-sus Legislativo), pedra angular do princpio deseparao deles. O excesso de poderes do pre-sidente da Repblica enfraquece e desorganizao Legislativo, alm de abrir passo para situaesde exceo (como esse arremedo de estadopolicial que ora se apresenta desenvolto e

    incontrolvel).Mal entrava em vigor e a nova Cons-

    tituio j enfrentava a arremetida de setoresconservadores dentro e fora do governo. Logoem seguida, veio a investida do emendo dogoverno Collor, que j usara o remdio amargoda medida provisria para confiscar a pou-

    pana. Depois, clusula perempta do Ato dasDisposies Constitucionais Transitrias (ADCT)seria ilegalmente ativada na pretenso intil deoperar uma ambiciosa reviso constitucional instituto, como se sabe, estranho ao direitoconstitucional brasileiro, que s reconhece opoder de emenda ao seu texto.

    A reviso seria convocada na formado art. 3 do ADCT, mas sua fonte materialestava no anterior art. 2 do mesmo diploma.Ou, em outras palavras: na hiptese de o elei-torado sancionar o sistema parlamentarista

    ou a monarquia, ento a norma seria ativada,mas apenas para compatibilizar o texto cons-titucional com a novidade (parlamentarismo emonarquia). Os demais dispositivos da Consti-tuio restariam intocados.

    A pretenso de votar uma revisoampla da Constituio (espcie de terceiroturno constituinte) iria esbarrar na dificuldadede operar interesses que se repeliam. No in-cio, observou-se at certa euforia envolvendosetores que desejavam reformas para servirexclusivamente a seus interesses. No curso dosdebates, entretanto, verificou-se a impossibili-

    dade de agradar a todos. Naturalmente, umamodificao atendia a uma parte, mas prejudi-cava outra que, por sua vez, entrava em conflitocom uma terceira, e assim sucessivamente. Areforma, aparentemente inovadora, contidapelo conservadorismo.

    O esprito que animou a Constituiobrasileira parcialmente j deixou seu corpo. Asreformas a mutilaram. As vicissitudes polticasafastaram a aplicao prtica dos ideais quea escreveram. A proposta da criao de umEstado Democrtico de Direito, fundado na so-

    berania, na cidadania, na dignidade, nos valoressociais do trabalho e no pluralismo poltico, foisubstituda por um estado liberal.

    Os objetivos fundamentais da Repblica,grafados no art. 3 da Carta Magna, mais pa-recem, agora, motivo de triste ironia: construiruma sociedade livre, justa e solidria; garantir odesenvolvimento nacional; erradicar a pobreza ea marginalizao e reduzir as desigualdades so-ciais e regionais; promover o bem de todos, sempreconceitos de origem, raa, sexo, cor, idadee quaisquer outras formas de discriminao.

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    A Constituio de 1988, alm de re-tomar e ampliar a ordem democrtica, antesferida de morte pela ditadura militar, consolidacomo direitos e tambm os amplia aquiloque era um misto de conquistas populares econcesses das elites na esfera social. Ela adicio-na cidadania civil e poltica a d imenso social.

    Desde a Revoluo de 1930, um pactono-escrito, impregnado de contradies, aque no faltaram perodos demorados de au-toritarismo, dava curso a um projeto nacional.Seu contedo era a busca do desenvolvimento,s vezes acelerado, outras lento. Mas semprebuscado.

    A longa e penosa construo do pactoenvolvia a coeso das mais diferentes forassociais e polticas. O conflito entre essas foras,contudo, era menor do que o consenso na im-plementao do pacto. Militares, por exemplo,

    desferem o golpe de Estado de 1964, do qualresultaria a longa e amarga ditadura. E, mesmoassim, do seqncia, em parte, a um projetoque antes era conduzido por seus adversrios,embora os governos militares exacerbassem olado perverso do desenvolvimento capitalistano Brasil: a concentrao de propriedade e derenda, que agravou a j secular discriminao

    social.A Constituio teria vindo para conduzir

    o mesmo processo, mas de forma a reduzir osaspectos negativos. Afinal, uma nao efeti-vamente para todos. Essa utopia foi frustradapelas reformas que, mutilando o corpo daConstituio, afastaram seu esprito.

    Economia desprotegida

    O desmanche do pacto constitucional produzi-do pelas foras do mercado e seus subalternosoperou-se em fraude Constituio. A acu-mulao democrtica e social que o processoconstituinte (constituio material) fez desaguarna Constituio em vigor subtrada pela von-tade do governo federal, conjugada maioriacongressual de trs quintos que modifica otexto ao sabor dos interesses do mercado, de

    convenincias polticas casusticas e, sobretudo,da insuportvel presso norte-americana.No que diz respeito soberania nacio-

    nal, foram suprimidas da Constituio signi-ficativas normas de proteo economia dopas: controle da remessa de lucros do capitalestrangeiro; conceito de empresa nacional;domnio da Unio sobre o subsolo; monopliodo petrleo, monoplio sobre a pesquisa e alavra de recursos minerais e o aproveitamentodos potenciais de energia hidrulica; monoplioou controle estatal sobre as telecomunicaes.Tratou o texto constitucional de proteger a

    economia de aberturas to insensatas quantoapressadas que, afinal, ocorreram, acentuandoa dependncia externa que o pas ter enormedificuldade de reverter.

    As privatizaes selvagens alienaram opatrimnio pblico e empenharam o futuro,visto que haveremos de sofrer indefinidamentea remessa para o exterior de lucros de empresasque no exportam bens ou servios. No limite, aameaa mais grave foi a tentativa de privatiza-o de nossos rios, que agora parece afastada.Os rios existem sem hidroeltricas, mas estas

    no podem viver sem os rios. O ar, as florestas eos rios no so bens do Estado e nem de parti-culares. So bens pblicos, constitucionalmenteindisponveis; so direitos difusos, pertencem atoda a populao.

    Quanto aos direitos do cidado e dacidad, sua dimenso d bem a medida doregresso a que o pas continua, at hoje, sendosubmetido. Como se sabe, um dos grandes es-foros dos socialismos deste sculo consistiu emdesmercantilizaraspectos essenciais da relaode trabalho. A educao universal e gratuita, o

    Solenidade de entrega de um dos substitutivos do relator Bernardo Cabrala Afonso Arinos e Ulysses Guimares (Constituinte Gabinete do Presidente 26 de agosto de 1987)

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    MUSEUDAREPBLICA

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    sistema pblico de sade, as vrias formas deprevidncia e seguridade consagraram direitosque passaram a fazer parte significativa daremunerao do trabalho; o mercado, ou seja,a fora patronal, deixou de ser a principal regu-ladora do comportamento dos seres humanoscomo trabalhadores.

    Compatvel com esses progressos dahumanidade, a Constituio de 1988 consa-grou esses direitos, especificamente em seuCaptulo II. As reformas realizadas, ou aindaem andamento e, agora, sob novo patrocnio,objetivam reduzir ou suprimir esses direitos.Trata-se regressivamente de empreender umesforo global de remercantilizao das relaesde trabalho.

    Tornam-se mercantis as prestaes deeducao, a sade pelo sistema de seguroprivado, a previdncia comandada por fundos

    de penso, apenas para citar alguns exemplos.Os direitos sociais so substitudos pelo perfilda demanda de servios em um mercado emexpanso. O mesmo processo de encolhimentoocorre com a cidadania poltica.

    As formas clssicas de supresso dosdireitos polticos so as ditaduras ou tiranias.Desgraadamente, nosso pas experimentoutodas. Mas o neoliberalismo, oferece soluesmais sutis. Os anurios polticos revelam quenunca houve um nmero to grande de de-mocracias liberais na histria contemporneacomo agora (excetuando episdios em curso na

    Frana e na Itlia). Para alguns comentadores,trata-se de uma avassaladora onda de demo-cratizao que penetrou na Amrica Latina, nafrica e nos antigos pases do Leste Europeu.Contudo, nunca a forma democrtica estevetodissociada da substncia democrtica quea ela d vida.

    A elite do poderbusca impor um sistemapoltico que se assenta em chefias de governoidentificadas com a globalizao predatria,uma administrao pblica baseada em agn-cias regulatrias que, a experincia de outros

    pases nos permite afirmar, se tornam indepen-dentes de tal forma que sobre elas no recaemcontroles de nenhuma natureza

    E, finalmente, um Poder Legislativoesvaziado de suas atribuies, submetido aogarrote vil das medidas provisrias, ameaadopor reformas partidria eeleitoralrestritivas soberania popular e pela imposio da perda demandato por infidelidade partidria impostapor um Judicirio ao qual falecem poderespara tanto.

    A economia mundial se retrai, e os novos

    romanos j demonstram sinais de exausto aomanter suas conquistas guerreiras no Iraque eno Afeganisto. A chamada Ata Patritica o santo e a senha para ampliar as perseguiesem Guantnamo aos suspeitos de sempre, etambm sempre em prejuzo das liberdades civisna Amrica. O petrleo alcana preos inespe-

    rados, e a carncia de alimentos assombra omundo (Um fantasma ronda a Europa...).1

    Aqui, em nossas praias, temos a cons-tante ameaa soberania da Amaznia e aColmbia de Uribe como ponta-de-lana dosinteresses norte-americanos, j agora respal-dados pelo ressurgimento da desarquivada 4Frota. Internamente, a ao macarthista daPolcia Federal e do Ministrio Pblico, s quaissetores do Judicirio se associam.

    Vida que segue

    Releio o texto e verifico que imprimi a ele umtom pessimista, longe da minha forma habitualde ver e sentir o mundo. Com isso, pareceu-meter desconsiderado as conquistas democrticase sociais que vieram com a redemocratizao ea Constituio em vigor.

    De certa forma, ao realar os recuos daConstituio, posso passar a impresso de que,longe de minha vontade, anistiei, por assimdizer, os que revogaram, pela fora, a Constitui-o de 1946, os quais, entretanto, no foramanistiados pelas sucessivas leis de anistia: que

    a anistia no foi recproca e os torturadores, ouo que resta deles, no foram anistiados.

    Os subrbios do autoritarismo se ex-pressam no apenas nas milhares de escutaspoliciais, muitas e muitas clandestinas, naespetacularizao das prises, sempre cobertaspor uma rede de televiso, ou na denncia doMinistrio Pblico do Rio Grande do Sul contra oMovimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra(MST), que procura restaurar procedimentosprprios da ditadura militar tentativa canhes-tra de repristinar a revogada lei de segurana

    nacional do regime militar. claro que sonhamos com a voltado irmo do Henfil e devemos render nossashomenagens aos que lutaram pela redemocrati-zao do pas. E ficar alertas. Vida que segue.

    1 Primeira frase do ManifestoComunista,de Karl Marx e FriedrichEngels, publicado em 1948.

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    Das invenes humanas, ela a maiscomplexa e sutil, mistificadora e hipcrita,

    verdadeira e cruel. Ostenta os rasgos ut-picos mesmo os que nascem para seremgestos e smbolos , oculta os vnculosideolgicos at os mais necessrios edissimula a sua essncia: o poder, na formaque ele exercido por pessoas, instituiese formaes sociais do tope. (Fernandes,1989, p. 360)

    bastante razovel que um artigo sobrea Constituio de 1988 relembre as expectativasque sobre ela recaram desde a sua promulga-

    o e lamente as frustraes relativas ao seudescumprimento at ento. A universalizaodos direitos sociais ali prevista no se realizousob o falso argumento da impossibilidadefinanceira do Estado, e mesmo os direitos deorigem liberal vida, liberdade e propriedade se aplicam parcela da populao que possuimeios privados para defend-los.1

    A ineficcia das Constituies na suapretensa funo de ordenar a vida social no entretanto uma novidade. Desde o Imprio, adicotomia Brasil Legal versus Brasil Real anima

    Florestan

    Fernandes,a RevoluoBurguesa

    e a ForaNormativa daConstituioGisele Silva Arajo

    as anlises sobre este pas, embora o tema noconstitua em absoluto uma particularidade

    nacional. Ainda no sculo 19, Ferdinand Las-salle denunciava as cartas constitucionais comomeras folhas de papel, reunio de propsitosretricos que nada podem diante das forasreais de poder (Lassalle, 1933). O problemano estaria ento no descaso com a legalidade,mas nas irreais exigncias e esperanas quesobre ela se depositam.

    Dizer das perdas e ganhos da sociedadebrasileira com a Constituio de 1988 remeteportanto ao seu confronto com a realidadeque lhe deu origem e que a opera. Trata-se de

    invocar o chamado processo de modernizaoatravs do qual vrias sociedades incorporaramo modo de vida e as instituies desenvolvidasde forma pioneira na Europa Ocidental, e a elasadaptaram suas tradies.

    Ler a Constituio de 1988 sob a ticada modernizao brasileira se torna tarefa re-lativamente fcil quando o autor de uma dasobras capitais no tema da passagem do Brasil ordem moderna foi tambm membro daAssemblia Constituinte de 1987-88. FlorestanFernandes, mais de uma dcada depois de pu-

    1 Embora o 1 doArt. 5 da Constituiodetermine que todos osdireitos fundamentais tmaplicabilidade imediata,a doutrina jurdica legitimao descumprimento dosdireitos sociais em funode restries oramentrias.Cf. Arajo, Santos, 2008.

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    blicar A Revoluo Burguesa no Brasil: Ensaio deInterpretao Sociolgica (1975), foi Deputadoconstituinte pelo Partido dos Trabalhadores (PT)e seus artigos de jornal da poca foram reunidosna coletnea A Constituio Inacabada: ViasHistricas e Significado Poltico (1989).

    No ltimo artigo ali publicado, Florestan

    Fernandes atesta a ineficcia das Constituies.Seu diagnstico de que as classes dominan-tes ou simplesmente os de cima, nos seustermos tm acesso privilegiado ao Estado, epodem ento agir ignorando a existncia depreceitos constitucionais sem serem impor-tunados, ou mesmo desconstitucionalizar aConstituio. Florestan seguia assim toda umatradio de leitura do Brasil pela dicotomiaLegal versus Real.

    Sabia ele, entretanto, que esta no erauma especificidade de 1988, nem tampouco

    do Brasil. Ontem e hoje, aqui e alhures, asformas polticas continuavam inteis quandoconfrontadas com substncia social refratria.Os tempos ento pareciam no ser outros.Depois dos esforos constitucionais, dos quaisele participara em aparente paradoxo com suaprpria apreciao, conclui que permaneciaTudo como dantes no quartel de Abrantes(Fernandes, 1989, p. 371).

    No entanto, se a legalidade no pro-duzia as mudanas que dela se esperavam, elatampouco era incua. As Constituies serviamde fato para encobrir as reivindicaes seculares

    de igualdade, cumprindo a funo inversa depreservar o status quo hierrquico e desigual.Ter uma Constituio avanada significava daruma resposta meramente simblica, uma subli-mao de desejos insatisfeitos de descoloniza-o, a melhor maneira de manter intocvel opas real (Fernandes, 1989, p. 350).

    Por que Florestan Fernandes participariada Constituinte de posse de diagnstico todefinitivo? Ao que tudo indica, aquela erauma face persistente da histria, mas no umacondenao sumria. Seus vrios artigos de

    jornal, escritos ao sabor das derrotas e vitriasna Constituinte, expem avaliaes ora mais,ora menos pessimistas.

    O fio da meada destas oscilaes noest neles, mas na tese da Revoluo Burguesano Brasil (1975), obra tambm elaborada emdilogo com uma realidade em transformao:uma parte escrita antes do Ato Institucional N5, a outra depois.

    A anlise de Florestan Fernandes para oprocesso de modernizao do Brasil tem rele-vncia em si, mas tambm importante porque

    ruma contra a mar. Ela se ope a teorias quepareceram mais interessantes a alguns setores,que tm hoje largo trnsito na mdia e queidentificaram o Estado como o grande vilodos males do Brasil. Retomar Florestan iluminaaspectos pouco ressaltados sobre a Constituiode 1988, e permite corrigir o alvo da crtica.

    Burgueses: os donos do Estado

    Segundo a interpretao mais difundida e quetem como livro seminal Os donos do Poder(1958), de Raymundo Faoro, as carncias dopas tm origem na herana ibrica. Portugalteria sido uma porta de entrada torta para omoderno, condenando-nos perptua reprodu-o de um Estado ampliado, cujo funcionalismopblico se apropria das energias libertrias dainiciativa privada em proveito pessoal. No

    esta a concluso de Florestan.Embora a sociologia tomasse como mo-delo clssico de modernizao uma revoluocom revoluo, moda da Frana de 1789,o socilogo paulista via aqui um andamentoreformista, j apontado por personagens doImprio e da 1 Repblica. Para Florestan, avinda da Famlia Real outra efemride deste2008 em que se comemoram os 20 anos daConstituio teria precipitado uma revoluosem revoluo: a Independncia transforms-tica realizada em 1822.

    Sem mostrar-se como tal, e portanto

    encapuzada, a revoluo da independnciafincou a primeira estaca da modernidade noEstado e nas instituies jurdicas brasileiras,enquanto na sociedade s havia o latifndio, osenhor de engenho e a escravido.2 Ao Estadocaberia pois estar frente de uma sociedadeque, pela sua iniciativa privada, reproduzia adominao patriarcal tpica da ordem senhorial.Era ele, portanto, o nico portador da novidade.

    A revoluo encapuzada da Indepen-dncia, entretanto, teria ainda outro efeito. Ainternalizao da metrpole em 1808 trazia ao

    Brasil as prticas de importao e exportaode mercadorias que antes eram monoplioportugus. Iniciou-se um lento processo detransformao do senhor de terras em agentecapitalista em burgus, nos termos de Flo-restan.

    Seria fraca, no entanto, uma burguesiaque no rompia com a ordem senhorial e quese inseria no capitalismo internacional em po-sio subserviente, exportadora e importadora,agente interno do renovado estatuto colonial.Incapaz ento de estabelecer seu domnio di-

    2 Sobre as duas correntesna interpretao do Brasil,ver, de Luiz Werneck Vianna,Weber e a interpretao doBrasil. Para uma excelenteleitura do Brasil que retomae vai alm de FlorestanFernandes, ver, do mesmoautor, A Revoluo Passiva:Iberismo e americanismono Brasil, em particular,o captulo Caminhos edescaminhos da revoluopassiva brasileira (WerneckVianna, 1997)e A Transio: Da Constituinte Sucesso Presidencial(Werneck Vianna, 1989).

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    Eleio para presidente da Assemblia Nacional Constituinte (Constituinte Sesso de

    2 de fevereiro de 1987)

    DUDABENTES/AGIL/ARQUIVOHISTRICODOMUSEUDAREPBLICA

    retamente no plano econmico e promover amodernizao, valer-se-ia da poltica.

    Ocupou ento as estruturas do Estado,tornando-o instrumento do desenvolvimentocapitalista dependente e do controle das de-mandas dos de baixo. A transio para a ordemsocial competitiva no Brasil, se fez, portanto,

    atravs da autocracia burguesa: a modernizaoseria obra de um Estado fechado democrati-zao, privatizado pelos interesses dominantesnada libertrios (Fernandes, 1975).

    Para Florestan, portanto, no era aburocracia do Estado como se esta pudessese isolar totalmente das foras econmicas ,que roubava a cena da iniciativa privada; aocontrrio, era a prpria burguesia que erguiaum Estado autoritrio para levar a frente seusinteresses sem o incmodo assdio das classesdominadas.

    Houve evidentemente variaes nestearranjo ao longo do sculo 20. A 1 Repblicaliberal teve como protagonistas os fazendeirosde caf paulistas que controlaram os de baixopela polcia e pela poltica dos governadores.Vargas so dois: o da ditadura do Estado Novoe o eleito democraticamente, morto pelo fecha-mento da poltica j em curso.

    No perodo subseqente recrudescemas demandas sociais, repelidas pelo autorita-rismo que se instala com a ditadura militar.No o caso de detalhar aqui este histrico.O importante a ressaltar que 1964 responde

    por mais um ciclo da autocracia burguesa: aocupao do Estado pelas classes dominantes

    para promover nova rodada de desenvolvimentocapitalista. A Constituio de 1988, ao reunirde forma praticamente pioneira os direitos civis,polticos e sociais, parecia ento pr um termoa tal andamento.

    1988: sublimao ou disputa

    A Assemblia Constituinte de 1987-1988tinha por misso reconstruir o Brasil Legal:a ditadura militar parecia ter domesticado amobilizao popular, extirpando suas energiasrevolucionrias, de modo que a Constituiopoderia cumprir a sua tradicional funo sim-blica de manter tudo como antes.

    No entanto, as lutas sociais, que pare-ciam dormitar no subconsciente de uma massasilenciosa de cidados apticos, estavam de fatofervilhando no substrato da sociedade. Subiram

    rapidamente superfcie (Fernandes, 1989: p.89), e ameaaram construir institutos jurdicoscapazes de modificar o corao do pas real,como os que pretendiam a facilitao da secu-larmente obstada reforma agrria.

    A Constituinte tornou-se um campo dedisputa. Dizia Florestan, que enquanto as eliteseconmicas e polticas das classes dominantesquerem brecar o processo constituinte, osde baixo no s querem explodir a bastilha,mas tambm partir de uma posio avanadana prtica de uma democracia de participaoampliada (Fernandes, 1989, p. 308).

    Embora o Legislativo fosse montado ma-joritariamente pelo poder econmico, as classesdominantes perceberam que os parlamentarespodiam sucumbir s presses populares. Assim,lanaram mo de organizaes especialmentecriadas para influir na Constituinte, como aUnio Democrtica Ruralista (UDR), a UnioBrasileira dos Empresrios (UBE) e o Centro,entre outros expedientes,3 de forma que aConstituio ficasse contida em uma camisa--de-fora, pela qual a reproduo do pasreal permanecesse inatingvel (Fernandes,

    1989, p. 351).No havia, por parte das classes domi-nadas, a viso utpica de que poderiam exercerde pronto a soberania do povo, ditando a simesmas suas prprias leis. Mas assediaram aConstituinte atravs de institutos como o dainiciativa popular, pretendendo construir basesdemocrticas para as lutas pela universalizaodos direitos. A Constituio deveria, ento,refletir todas as classes e ser extensa, contendoum rol mximo de normas constitucionais,protegendo de forma exaustiva os estratos

    3 Embora Florestan nomencione, a literatura aponta,neste sentido,a criao do IL InstitutoLiberal, do IEDI Institutode Estudos para oDesenvolvimento Industriale do PNBE Pensamento

    Nacional das BasesEmpresariais.

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    mais sacrificados do pas (Fernandes, 1989,p. 88-89).

    Os avanos da Constituinte foramobstados ainda por fatores externos. O pasperifrico e satelizado sofreu forte intervenodos Estados Unidos quanto aos termos de suaConstituio. As regras vm de fora e so

    estabelecidas pelo sistema capitalista mundialde poder. Ocorre que aqui elas encontramsolo frtil. O particularismo cego, entreguistae egosta dos estratos dirigentes das classesdominantes (Fernandes, 1989, p.365), resul-tante do modo como se desenrolou a revoluoburguesa no Brasil, no oferece resistncia eaceita de bom grado aquelas imposies.

    O pndulo, ento, haveria de balanarmuitas vezes contra a democracia, anulandorupturas fundamentais que podiam ter tidolugar na Constituinte. O resultado concreto, no

    entanto, no foi uma pea homogeneamenteconservadora, obscurantista ou reacionria(Fernandes, 1989, p. 360). Conciliadora, aConstituio contm ameaas aos privilegiados.

    Sem perderem qualquer regalia, elesassistem horrorizados rotinizao de liber-dades individuais e coletivas ou de direitossociais, e universalizao do acesso a meioslegais que a exclusividade convertia em fontede odioso despotismo (Fernandes, 1989, p.360-1). Tratava-se, doravante, de garantir quea Constituio parcialmente ganha em dispu-tas minuciosas no se convertesse, em seus

    aspectos mais promissores, em letra morta(Fernandes, 1989, p. 309-310).

    Tempestade e esperana

    Passados 20 anos da Constituio, e emboraos meios legais inditos tenham sido aciona-dos,4 vrias daquelas normas foram anuladasexplcita ou tacitamente. Logo aps a promul-gao, Florestan v no horizonte nuvens queanunciam tempestade. A internacionalizaoda economia pressupe que as burguesias na-

    tivas e a comunidade internacional de negcioscaminhem juntas (Fernandes, 1989, p. 371).Renovavam-se os meios autocrticos, de formaa permitir que os rumos do pas continuassema ser dirigidos de fora.

    Alm disso, desrespeitando os direitosconstitucionalizados e negligenciando o Es-tado Social desenhado pela Constituio, asclasses dominantes optaram pela violnciainstitucional, pelo controle policial das classespopulares, e pelo aumento exponencial do en-carceramento (Fernandes, 1989, p. 361).5 Parte

    dos juristas do pas se esmera em justificar oinjustificvel: constroem princpios extra-cons-titucionais para legitimar o descumprimento denormas expressas na Constituio, baseando-sena alegao tecnicista da restrio financeira.

    Para Florestan, j que o prprio parla-mento representao do povo no defende

    a Constituio, cabe sociedade civil resistirdiretamente sabotagem constitucional daselites no poder (Fernandes, 1989, p. 371). AConstituio no vale em si e por si. Ela sser um recurso para a extino da autocraciaburguesa caso os de baixo, despertando umaconscincia de classe crtica, convertam aConstituio em valor, mobilizando-a nas suaslutas polticas cotidianas (Fernandes, 1989, p.362).

    Para refutar o argumento de Lassallede que as Constituies so meras folhas de

    papel, Konrad Hesse sustentou a existncia deuma vontade de Constituio (Hesse, 1991).Hesse, no entanto, no desmente Lassalle. Afora normativa da Constituio depende deagentes reais que sustentem tal vontade. NoBrasil, diante da autocracia burguesa que seapropriou do Estado, esta tarefa est nas mosdos de baixo. S em semelhante contexto1934, 1946 ou 1988 deixaro de provocarparalelos melanclicos, que fazem prever acon-tecimentos indesejveis (Fernandes, 1989, p.362).

    REFERNCIASARAJO, Gisele Silva. Democracia substancial e procedimental

    como fundamentos da legitimidade constitucional: a

    utilizao de argumentos sociolgicos da clssica teoria

    constitucional nas teorias polticas contemporneas.

    2005. Monografia (Graduao em Direito) Faculdade

    de Direito, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio

    de Janeiro.

    . e SANTOS, Rogerio Dultra dos. A doutrina jurdica

    e a legitimao do descumprimento da Constituio,

    2008, mimeo.

    FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formao do patronato

    poltico brasileiro. Porto Alegre: Editora Globo, 1958.

    FERNANDES, Florestan. A Revoluo Burguesa no Brasil: Ensaio de

    Interpretao Sociolgica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

    . A Constituio inacabada: Vias Histricas e Significado

    Poltico. So Paulo: Estao Liberdade, 1989.HESSE, Konrad. A Fora Normativa da Constituio. Porto Alegre:

    Sergio Antonio Fabris, 1991.

    LASSALLE, Ferdinand. Que uma Constituio? So Paulo:

    Edies e Publicaes Brasil, 1933. Disponvel em

    http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/constituicaol.html.

    Acesso em 23 de agosto de 2008.

    WERNECK VIANNA, Luiz. A Transio: Da Constituinte Sucesso

    Presidencial. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1989.

    . A Revoluo Passiva: Iberismo e americanismo no Brasil. Rio

    de Janeiro: Revan, 1997.

    . Weber e a Interpretao do Brasil, disponvel em

    http://www.acessa.com/gramsci/?id=85&page=

    visualizar, acessado em 10 de agosto de 2008.

    4 Florestan j indicavaa judicializao da polticacomo sendo causada, entre

    outras coisas, pelo usodos meios previstos naConstituio, como Aode Declarao deInconstitucionalidadee Ao Popular.

    5 No artigo A Constituiode 1988: conciliao ouruptura?, publicadooriginalmente na Folha deSo Paulo em 04/10/1988,Florestan Fernandes afirma:... os de cima terode recorrer violnciainstitucional ou deveroaprender, por fim, aconviver com e a respeitaros de baixo. (Fernandes,1989, p. 371).

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    A transio poltica brasileira da ditadura paraa democracia, que se desdobrou na Anistia,na Constituinte e nas eleies diretas, acaboumarcada por ambigidades e ambivalncias porcausa das tentativas de refluxo e reciclagem dacontra-reforma por parte do antigo Centro

    e da tutela das Foras Armadas.Apesar das contenes e amarras que

    marcaram o processo de transio, a presenade foras populares e a incidncia de movi-mentos sociais no plano da institucionalidadedeixaram marcas no contedo e no carterprogramtico da nossa Constituio.

    Esse componente popular se projetacomo uma sombra, um espectro de democraciaque ronda uma revoluo democrtica inconclu-sa. O que explica os diversos ziguezagues, comoo que levou ao impedimento de Collor e nova

    carga de energia popular na eleio de Lula,sempre amortecida entre as continuidades dasseqelas do domnio neoliberal, dos intentos degolpes institucionais e da morbidez corruptorada pequena poltica arrivista.

    A recomposio das bases de nossocapitalismo no conseguiu anular o impulsonascido do poder constituinte das lutas pelademocratizao fundamentado na extensode direitos. A luta pela cidadania integral e adinmica progressiva de superao das desi-gualdades ainda encontram referncias positi-

    espera

    da realrevoluo

    democrticaPedro Cludio Cunca BocayuvaAssessor do Ncleo de Direitos Humanos da Federao de rgos para Assistncia Social e Educacional (Fase)

    vas e afirmativas para a mobilizao do podersoberano das classes populares como nicasustentao para a progresso de direitos e aradicalizao da democracia no Brasil.

    O dilemaNo podemos avanar na autoconscincia e naorganizao autnoma dos sujeitos coletivossem passar pelo resgate e pela interpretaoprtica dos elementos de transformao conti-dos na verso original da Carta Magna de 1988.Ao afirmarmos que vale o que est escrito, noscolocamos na linha de resgate e libertao daspotencialidades presentes, na perspectiva deampliao e reconhecimento de direitos comoresultados ainda presentes, como foras iner-ciais da intensa participao popular organizada

    no processo constituinte.Refletir sobre as restries, os avanose os retrocessos ligados ao processo da Cons-tituio a nica condio de repensarmosa centralidade do acesso e da promoo dosdireitos, fundamentais para uma estratgia deampliao da democracia como valor universal.

    Os elementos de farsa e restrio gera-dos e transformados por fora das lutas deixamum legado, uma base de reconhecimento de di-reitos polticos, econmicos, sociais e culturais,que serve para o questionamento mais fundo

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    da nossa dinmica institucional que vai muitoalm da substituio do entulho autoritriopela judiciarizao da poltica e pela privatiza-o e mercantilizao da coisa pblica.1

    A criminalizao de movimentos sociais,a defesa da impunidade dos torturadores, aapropriao dos fundos pblicos, a degradao

    dos direitos e a desnacionalizao fazem partede um processo que s pode ter resposta na viada Constituio e dos atores polticos capazesde resgatar o potencial e a trajetria de lutaspela democracia.

    A atual relao de foras entre as classesdominantes e as classes populares exige prticasde resistncia e construo de alternativas cujopotencial de avano se relaciona com os novosdireitos inscritos na Constituio Cidad.

    Levantar essa perspectiva de reflexonecessria no nos livra de exame mais profun-

    do das limitaes e contradies que encerrama polmica sobre o processo constituinte. Asformas restritivas, que derivam do poder da cha-mada Repblica Constitucional, bloqueiam,na estrutura do Estado e na sociedade civil, aprogresso do potencial emancipatrio e dopoder constituinte popular.

    No meio da fragmentao e da preca-rizao da vida social, a nica ponte para ligaruma frente nica dos sujeitos populares, pararealizar as reformas sociais estruturais e garan-tir a ampliao dos direitos reside no carterunificador do sentido programtico e no valor

    tico normativo expresso nas lutas inconclusasque se escrevem nas ambivalncias de nossaConstituio. O fundamento de legitimidadedo arcabouo institucional e legal deve sairdas formas abstratas dos princpios para oterreno de normas efetivas, condicionando aao estatal de maneira mais favorvel para aredefinio de polticas.

    A luta contra as desigualdades dependede realizarmos o federalismo de lugares, demodo a garantir a cidadania integral. O pro-jeto poltico de democracia progressiva s se

    realizar por meio de plataformas e polticassustentadas por um bloco popular, que precisada autoconscincia e da reflexo sobre as ques-tes da ordem republicana para nos ajudar aromper com a nostalgia imperial e a lgicado estado de exceo permanente.

    A nfase na mercantilizao da vidasocial desenvolve-se contra uma cultura demo-crtica (com base no exerccio e na promoode direitos) e promove o fascismo social apartir da construo de contextos e imagensque barram a demanda coletiva por direitos. O

    corpo das multides destitudas visto comoameaa pelos dispositivos que tentam impedira passagem para um perodo popular e demo-crtico em nossa histria republicana.

    O que vale do que est escrito?

    O aniversrio de 20 anos da chamada Consti-tuio Cidad pode e deve ser um momento dereflexo. Diante de tantas emendas (mais de 62at maro de 2008), que geram um mal-estarda Constituio, segundo Samuel RodriguesBarbosa (1999), deveramos arriscar a emendada reviso geral, precedida de plebiscito?

    Por fora de todo o ataque ao patri-mnio estatal que solapa as bases materiaisdo desenvolvimento autnomo nacional, nosrestaria apenas assumir o esgotamento da foranormativa de longa durao da Constituio?

    Nessa linha, Fbio Konder Comparato(2008) insiste no carter patrimonialista e nalgica oligrquica aberta na dcada de 1990,que alienou a populao do processo de decisoem matrias decisivas, tais como as questestrabalhistas e previdencirias ou o tempo dedurao dos mandatos eletivos.

    A maioria das mudanas usadas paradesqualificar os princpios constitucionais foiresultado legal do intento de superao donacional desenvolvimentismo e do getu-lismo processo no qual Fernando HenriqueCardoso foi muito mais longe do que Fernando

    Collor de Mello.Desde ento, o uso da prerrogativa das

    medidas provisrias, o espetculo das CPIs e adisputa de aes diretas de inconstitucionali-dade fazem parte de um quadro mais geral demorbidez, corruptibilidade e casusmos, querepresenta o cenrio material e poltico doimprio do globalismo financeiro e do indivi-dualismo possessivo.

    A esse processo da sociedade polticacorresponde, na sociedade civil, a substituiodo cidado e da cidad pelo consumidor(a), o

    proletariado pelo precariado e a transformaoda questo social urbana e da questo agrriaem casos de polcia. A cultura do medo seinstala com mais facilidade num ambientede explorao da economia da insegurana,mobilizada pelo discurso dos jogos de guerracontra as periferias e os(as) jovens (conduzidopor torturadores, paramilitares, tropas de elitee especialistas em tecnologia) que ganha astelas e a audincia.

    Pode parecer a conseqncia lgica deum raciocnio crtico, necessariamente pessi-

    1 Para essa reflexo, podemossugerir a recuperao dasreflexesde Raymundo Faoro (1981).

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    mista, que tenhamos de propor uma sada nadireo de uma nova Constituinte, uma vez queo processo da anterior esteve marcado pelasrestries da sua soberania, em um quadro dederrota da emenda das Diretas J. At mes-mo porque uma reforma restrita da poltica,ou uma continuidade de reformas do tipo da

    tributria, s deve levar gua ao moinho dacontra-reforma constitucional permanente. Nadialtica negativa do argumento crtico maisslido, o vcio de origem marca a fragilidadeda criatura (a Constituio de 1988), que seconverteu numa caricatura.

    Ser que, por isso, podemos realizaruma manobra institucional, por dentro dalgica das emendas, para deter, em definitivo,esses atentados ao poder soberano do povo?Bastaria estabelecer o instituto da reviso gerale, por meio desse, realizar um plebiscito, de

    modo a convocar uma Assemblia Constituintecom funes exclusivas, eliminando o vcio deorigem do Congresso Constituinte de 1986,que produziu a Constituio de 1988. Comoveremos, mesmo que esse objetivo possa serlogicamente correto, para ampliar o poder

    instituinte e o controle democrtico, precisobuscar os elementos contraditrios e umacorreta avaliao das disputas em crise, comoa crise de hegemonia dentro de uma transiodemocrtica inconclusa, em um quadro detransio paradigmtica global.

    Devemos buscar a resposta que relacio-

    ne o poder constituinte soberania popular,como base de uma democracia participativa,dentro das disputas reais e da dinmica pro-cessual da crise de hegemonia. Isso significaum tipo de crise que no pode ser resolvidano plano de uma batalha s, pela guerra demanobra direta. Para o bem ou para o mal, aquesto do valor da Constituio s pode sermedida em sua relao com o processo histricoda transio democrtica.

    Cabe como far a Ordem dos Advoga-dos do Brasil (OAB), no seu congresso nacional

    em novembro deste ano medir o papel daConstituio de 1988 na qualidade de instru-mento de defesa e ampliao de direitos diantedos problemas da democratizao, no quadroda atual reestruturao capitalista global, comtodas as implicaes e todos os processos de

    Residncia oficial do presidente da Cmara dos Deputados 24 novembro de 1987

    ANDRDUSEK/AGIL/ARQUIVOHISTRICODOMUSEUDAREPBLICA

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    crise do Estado e dos paradigmas polticosclssicos.

    Isso exige percepo da luta pelos di-reitos sob a tica do pragmatismo radical, daacumulao de foras e das contradies quefazem com que a crise no gere estabilizaoda dominao. Em vez de vermos um problema

    no carter programtico da Constituio, nodevemos ver a a sua fora? Em vez de vermos,nos impasses, a fora oligrquica e corporativa,no podemos identificar elementos de umacrise de legitimidade? Em vez de vermos apenasos recuos, no podemos perceber disputas econquistas? De todo modo, no se resolvem asbatalhas sobre os direitos coletivos e a demo-cracia, sobre os modos de governar e organizaro poder do Estado, sobre as polticas e o gastopblico, sobre a tributao, as desigualdades,a propriedade, o trabalho e a previdncia sem

    antes definir um patamar de conquistas que fo-ram obtidas, mesmo que permeadas de recuose derrotas parciais.

    A construo da democracia e a po-tncia poltica da cidadania no podem pres-cindir das conquistas parciais escritas no textooriginal. Alis, esse esclarecimento sobre oque foi escrito pelo constituinte sob a pressoda cidadania (movimento pela participaopopular) abriu brechas decisivas, sem as quaisno se pode avanar. Controvrsia semelhantemarcou o debate sobre as reformas de basee a ampliao da democracia antes de 1964,

    face aos limites e s restries da Constituiodo ps-guerra.

    Existe o risco de se tentar avanar semter por base a superao sustentada real, o quepode produzir mais regresso que avano. Aquesto da mobilizao para o resgate das con-quistas democrticas passa pela capacidade dedefesa organizada de direitos. O conhecimentose entrelaa e amplia o interesse. Por isso, asbases subjetiva e objetiva da Constituio de-pendem do arco de foras capaz de lhes darsustentao material e simblica. Os direitos

    so sustentados se pudermos responder aosquestionamentos sobre quem tem interesse emdefender o artigo 6 (dos direitos sociais), quemtem interesse em defender a funo social dapropriedade, quem tem interesse em defendero instituto da lei de iniciativa popular.

    As derrotas no se resolvem por saltossem que as foras sociais estejam em movi-mento. Estamos longe de uma frente nicade mobilizao popular, estamos longe deum cenrio sem contradies e opacidades. Anitidez boa para ensinar lies reais, muitas

    vezes amargas, como a que aprendemos noreferendo sobre o estatuto do desarmamento/comrcio de armas.

    Para avanar na cultura dos direitos, preciso aprender a defend-los e conhec-los,conhecer e se apropriar da Carta, conhecerseus princpios, reafirmar sua base normativa

    potencial de carter programtico. Precisamosreagir contra o esbulho perpetrado pela sanhaneoliberal das emendas questionando os defei-tos de base, o que s pode ser realizado comuma cultura poltica que ponha na ordem dodia o ato de fazer valer o que foi escrito, nicacondio de avanar e superar.

    Resgate necessrio

    No aniversrio da Constituio Cidad, o quevale resgatar o poder e a legitimidade que

    lhe foi dada por uma potncia soberana sem-pre contraditria, sempre em gestao, queprecisa se pr em movimento, tendo moo que foi escrito 20 anos atrs. Porque, paraa Constituio do espao da cidadania, vale oque est escrito!

    O Congresso Nacional, a magistratura,o Ministrio Pblico e as organizaes sociaisdevem assumir a responsabilidade de avaliaros resultados da implementao do programademocrtico, expresso na Carta de 1988. Esseprograma foi o resultado de grandes mobili-zaes pela participao popular e de grandes

    disputas sobre a natureza e o carter dasnormas que refundaram a institucionalidadedo regime democrtico depois de mais de 20anos de ditadura.

    Como ponto de corte da transio de-mocrtica, o processo constituinte inseriu o re-conhecimento dos direitos econmicos, sociaise culturais no centro das normas orientadorasdo funcionamento das instituies do Estado edos direitos e deveres da cidadania.

    Avaliar o resultado substantivo dos direi-tos e a legitimidade de nossas instituies exige

    leitura crtica do quadro de desregulamentao,de descumprimento e da no-efetivao dosdireitos nascidos da Assemblia Constituinte.A questo da universalizao do acesso aosdireitos como fundamento e objetivo de reali-zao de um projeto nacional baseado na so-berania democraticamente realizada, na formarepresentativa e nas formas participativas, oprincipal indicador para a avaliao do estadoda democracia no Brasil.

    Outro indicador importante deve serconstrudo para avaliar as tenses imanentes

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    ao compromisso democrtico de 1988, ad-vindas dos golpes e das revises sofridas pelaConstituio por fora das polticas de ajuste,das medidas provisrias e das modificaessubstantivas derivadas da agenda de aberturainternacional, sob a gide das contra-reformasconservadoras em favor do modelo neoliberal.

    Na comemorao de 20 anos da Cons-tituio Cidad, so necessrias mobilizaes eaudincias pblicas que levem em conta todoo esforo histrico realizado pelas foras so-ciais engajadas na defesa de direitos humanoscivis, polticos, econmicos, sociais, culturais eambientais.

    As atividades sobre a questo social eo estado dos direitos no Brasil devem pautar oquestionamento sobre a consistncia e a legiti-midade de nosso ordenamento constitucional,na perspectiva de reconstruo de estratgias

    para implementar um desenvolvimento funda-mentado na efetivao da justia social.Os temas do pacto federativo, do or-

    amento, dos fundos e das polticas pblicas,da participao democrtica, do sistema deproteo, da garantia e promoo dos direitoshumanos, do acesso ao sistema de justia, dosconflitos e da violncia do Estado e na socie-dade, da crise do Estado, dos problemas darepresentao poltica, do colapso e da crisedo modelo de desenvolvimento concentradorde renda e poder, do direito informao e comunicao, das questes da cincia e da

    tecnologia, dos problemas das discriminaesracial, sexual, de gnero e de gerao devem serpostos em debate. Relacionam a estrutura e osprocessos de nossa democratizao inconclusasob o olhar crtico da reflexo sobre a qualidadede nossa democracia.

    A questo das desigualdades e das se-gregaes social, espacial, tnica, de gnero ede gerao devem servir de guia para o debatesobre a Constituio como instrumento materiale simblico, objetivo e subjetivo, de viabilizaoda transformao das realidades encontradas

    em nossa vida cotidiana.O problema da legitimidade e da le-galidade do ordenamento jurdico-poltico setraduz nos conflitos sobre o cumprimento eo descumprimento do estado democrtico dedireitos, nos termos definidos pelo compro-misso com a ampliao da cidadania comoconjunto de prticas. A questo constitucionalda democracia depende do poder vivo da suaapropriao permanente pela soberania popularcomo fundamento das aes pela exigibilidadee pela justiciabilidade do direito ao desenvol-

    vimento, baseadas na realizao do bem-estarindividual e coletivo.

    O impulso da democratizao se re-laciona afirmao prtica do direito a terdireitos, da traduo concreta do ideal da igualliberdade como fator simblico e objetivo dademocratizao. A questo da efetivao do

    Estado e do estatuto dos direitos deve guiar aao tico-poltica, tomando como princpio osistema de garantias e a orientao normativado processo de efetivao material e da publici-zao das prticas de uma cultura democrticaenraizada na vida social e poltica de um pas.

    A agenda dos movimentos de direitoshumanos e da cidadania organizada deve incluira tarefa de avaliao do estado de cumprimentodos direitos, de enfrentamento dos desafioslanados em 1988, de modo a produzirmos amudana de rumos para avanar, efetivamente,

    na democratizao. Essa deve ser uma maneirade superarmos as desigualdades, a segregao,a discriminao e a injustia social em todasas suas formas, no plano do poder decisrioe na vida cotidiana, nos diferentes contextosterritoriais da cidade e do campo.

    REFERNCIAS

    FAORO, R. Assemblia Constituinte: a legitimidade recuperada.

    So Paulo: Brasiliense, 1981.

    BARBOSA, S. R. O mal-estar da constituio. Adunicamp Revista

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    1999. Disponvel em: . Acesso em: 14 ago.

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    14 ago. 2008.

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    Angola encontra-se em um momento de consolidao da paz e

    de transio poltica, econmica e social, vinda de um contexto

    de guerra e destruio para um de reconstruo e desenvolvimen-

    to. Para isso, conta com os investimentos do Estado angolano

    e de doadores internacionais e multinacionais. Espera-se que a

    transio de um modelo de gesto pblica centralizada para

    uma gesto descentralizada produza, a curto e mdio prazos,

    mudanas que possam refletir na melhoria das condiesde vida das populaes dos municpios e regies mais pobres e distan-

    Paz,governana,reconstruo,democracia eeleies em

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    tes, e que as prximas eleies sejam capazesde legitimar os(as) titulares de cargos polticos.

    Em busca da paz

    Angola viveu um processo poltico complexo,principalmente a partir de 1975. Nessa po-

    ca, apesar da independncia, no conseguiuorganizar o processo eleitoral quando haviaapenas trs partidos nacionalistas (MPLA, FNLAe Unita).

    Seguiu-se um perodo de guerra aps aindependncia e, em 1992, organizou-se umprocesso que permitiria que as diferentes for-maes polticas concorressem, possibilitandoo jogo de alternncia do poder por meio daseleies. O processo correu bem do ponto devista organizacional, mas acabou mal pela no--aceitao dos resultados. Conseqentemente,

    houve uma nova guerra civil, que terminou hseis anos.Desde o fim dessa guerra, que devastou

    o pas, comearam a ser lanadas as bases paraAngola caminhar em busca da paz duradourae encontrar um modelo de desenvolvimentoque proporcione populao oportunidades derealizao pessoal em funo das suas aspira-es sociais. Para isso, a promoo da culturade tolerncia e do respeito s diferenas temsido estimulada internamente.

    Hoje, a nao parece estar madura.Essa conquista do povo angolano , tambm,

    resultado de uma vivncia e do aprendizadopor conta prpria. Por isso, acreditamos queo pas tem condies de avanar. Os princi-pais elementos do Estado (Foras Armadas ePolcia Nacional) esto quase consolidados. Oque falta a legitimao dos(as) titulares doscargos polticos, e isso depende do processoeleitoral em curso.

    Governana

    Existe certa preocupao e empenho em rela-

    o melhoria do sistema de governana dopas, que sempre funcionou de forma muitacentralizada at recentemente, todas asdecises eram tomadas pelo Governo Central,com alguma participao, nos ltimos anos,dos governos provinciais. As instituies admi-nistrativas locais (municipal e comunal) eram,nesse contexto, extenso e reproduo dasestruturas centrais do Estado, quer nas suasformas organizativas, quer no modo de funcio-namento. A manuteno da segurana pblicae o controle sobre toda a extenso territorial

    estiveram, at agora, como preocupao prio-ritria do governo.

    Com a publicao dos Decretos-leis 1/07(para Cabinda) e 2/07 de 3 de janeiro (para todoo pas), sobre a descentralizao administrativa,comea a haver maior clareza sobre as respon-sabilidades governamentais locais. Tais decretos

    criaram as bases e constituem um passo visvelpara a descentralizao administrativa.

    Neste contexto, cidados e cidads,bem como grupos organizados da sociedadecivil, podem participar das atividades de de-senvolvimento da zona territorial, desde quebem treinados e interligados. Por outro lado,tal participao proporciona populao maisexperincia em processos de anlise da situaodo municpio, na elaborao de planos pluria-nuais de desenvolvimento municipal, na eleiodos(as) representantes e em debates perma-

    nentes de anlise sobre o progresso (fator a serconsiderado em todo o programa de reformaadministrativa por constituir um dois eixos dosucesso do desenvolvimento municipal).

    Reconstruo

    Nos ltimos anos, o processo de reconstruode Angola tem caminhado a passos largos.Aos poucos, por todo o pas, vo se erguendoescolas, postos de sade, estradas vo sendoreabilitadas. Enfim, est em andamento umintenso programa de reabilitao e reconstruo

    estrutural. Andando pelo pas, seja nas reasurbanas ou rurais, visvel a quantidade deconstrues j prontas ou em curso.

    A esta altura, ningum critica o governoem relao ao volume de investimento para es-sas obras. As crticas so direcionadas questoda sua qualidade e durabilidade, bem como dopossvel aproveitamento poltico que o partidono poder pode tirar dessas realizaes.

    Democracia e eleies

    Muito ainda precisa ser feito para o estabele-cimento e a normalizao do sistema demo-crtico no pas. Foram aprovados os partidose as coligaes partidrias que iro concorrers prximas eleies marcadas para setembroprximo, encerrou-se a primeira legislaturaangolana (Assemblia Nacional), a ComissoNacional Eleitoral est avananda na organiza-o do prximo pleito e os partidos entraram,oficialmente, em 5 de agosto, na fase da cam-panha eleitoral.

    Em 15 de julho, realizou-se a ltima

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    sesso parlamentar da legislatura vigente, queesteve no poder por 16 anos. Nesse perodo,209 deputados, sendo 179 homens e 30 mu-lheres, freqentaram a casa, aprovando, emmdia, 13 leis e 31 resolues por ano.

    A principal dificuldade apresentada foia questo das residncias dos deputados e,sobretudo, o seu funcionamento, em tempo deguerra. Entretanto, para a populao angolana,o fim da primeira legislatura representa (e deverepresentar), seguramente, o incio de um novociclo poltico, que comea aps as prximaseleies que, se espera, cumpra a normalidadeconstitucional de quatro anos de mandato.

    As listas dos partidos polticos que iroparticipar das eleies j foram fechadas e divul-gadas. Inicialmente, o Tribunal Supremo (TS) an-

    golano apresentou Comunicao Social umalista com 98 partidos polticos devidamentelegalizados. Na ocasio, a instituio divulgoutambm um total de 29 siglas de formaespolticas que no foram considerados legais.

    Em 25 de julho, por despacho presiden-cial, foi criado o Tribunal Constitucional (TC)com objetivo de se encarregar dessa matriajurdico-constitucional. Dos 98 partidos polticoslegalizados pelo TS, 34 partidos e coligaesapresentaram candidaturas para disputar opleito eleitoral. Desses, apenas 14 partidos e

    * d gg ib

    Ado Domingos Adriano;Analdina Silvina Eduardo;

    Konde Emmanuel;

    Massamba Ngengo

    Dominique e Moises

    Cheteculo Piedade Festo,

    funcionrios(as) da ONG

    Development Workshop

    (DW), e Loureno

    Mabonzo, responsvel

    pela rea tcnica da

    Administrao Municipal

    de Cabinda

    coligaes foram aprovados. Para estas eleies,os partidos recebero um financiamento, apro-vado pelo Conselho de Ministro, avaliado em 1milho 275 milhes de kwanzas equivalentea US$ 17 milhes.

    As figuras Rafael Massanga Sakaita, filhodo falecido fundador da Unita, Jonas Savimbi,e Welwitchia dos Santos Pego (Tchiz), filhado atual presidente de Angola e do partido nopoder/MPLA, Jos Eduardo dos Santos, serooutro ponto de forte interesse e que merecera ateno do pblico quando for constituda aprxima legislatura. Ambos esto em posiesnas quais, dificilmente, deixaro de ser eleitosdeputados.

    Por outro lado, devemos admitir que pai-ra entre parte da populao angolana e mesmo

    de estrangeiros (poucos) certo receio sobre osresultados das prximas eleies. Aterrorizadoscom a experincia de 1992, do Qunia e do Zim-babwe, algumas pessoas pretendem coincidir asfrias com a data das eleies. Contudo, at omomento, isso tem ficado apenas em conversasde bastidores porque, segundo algumas fontes,na TAAG e em outras companhias de viagensque operam em Angola, ainda existem poucasreservas e muitos lugares disponveis.

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    e n t r eV i s t a

    e n t r e V i s t ae n t r eV i s t a

    e n t r e V i s t a

    Bete

    MendesQuem Elizabete Mendes de Oliveira? Pergunta difcilde responder, mas pensar em coragem, resistncia econtradio podem ser boas pistas. Muito cedo, aaprendiz de ativista percebeu a cultura como valiosoinstrumento para fortalecer sua ao poltica eexpressar sua emoo, evidente ao primeiro olhar. Efoi o que ela fez pela vida afora.

    Queria ser promotora pblica, filsofa, sociloga,bailarina e pianista. Poderia ter sido escritora.

    Mas foi como atriz que a jovem, com cerca de20 anos, filha de um militar, reuniu foras paralutar contra a ditadura e, paralelamente, trilhar umacarreira de sucesso.

    Deputada federal por dois mandatos, Bete participouda Assemblia Constituinte que criaria, h 20 anos,

    nossa Constituio mais festejada. No fim dadcada de 1980, denunciou para a Presidncia

    da Repblica e para a mdia seu torturador dapoca de revolucionria. O episdio trouxe

    tona o debateque hoje esquenta o Congresso ea sociedadesobre uma possvel reviso da Leida Anistia. Seria interessanteum debate sobre uma possvelreviso constitucional, e no spara essa matria. Deveria haverum movimento buscando maisparticipao da sociedade.Acho interessante que haja um

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    Democracia Viva (DV) Fale umpouco sobre sua infncia e famlia.Bete Mendes Nasci em Santos, uma

    cidade da qual me orgulho muito, porquefoi uma cidade de resistncia pela sua orga-nizao sindical. Foi uma das ltimas cidadesa ter eleies diretas, era considerada rea

    de segurana nacional no perodo da nossaredemocratizao. Nasci em 11 de maio de1949, vou completar 60 anos em 2009. NasciElizabete Mendes de Oliveira, era gmea. Meuspais batizaram minha irm de Izabel, ela faleceucom 1 ms de idade porque tinha insuficinciacardaca. O interessante que Elizabete e Izabelsignificam o mesmo.

    DV Seu pai trabalhava em qu?Voc tem irmos?Bete Mendes Meu pai era suboficial da

    Aeronutica, ele servia na Base Area de Santos,

    e depois foi transferido para a Base Area doGaleo, no Rio, de onde foi transferido paraa Base Area de So Paulo, no Campo dosAfonsos. Moramos tambm um perodo emSo Vicente, cidade limtrofe de Santos. Tenhoum irmo, Marcos Mendes, 13 anos maisnovo, e uma irm do segundo casamento daminha me.

    Minha irm tem um nome muito especial:Ptsiqui, por minha responsabilidade. Quandominha me e seu marido quiseram batiz-la,pediram que eu escolhesse o nome. E eu jentrando um pouco no meu ativismo , abso-

    lutamente anrquica e espontanesta, estavamuito ligada causa indgena e era amiga dosirmos Villas Bas. Fui casa deles em So Pauloe pedi uma lista de nomes indgenas. Ptsiqui masculino e significa fada da floresta na ln-gua da nao G. Hoje, ela mdica, cirurgiplstica, e todos a chamam de Pit.

    DV Seu pai era um militarde esquerda ou de direita?Qual a origem de sua famlia?Bete Mendes Ele no tomava partido,

    vem de uma famlia tradicional de So Paulo, e

    minha me filha de ndia. Cheguei a conhecerminha av, tenho verdadeira paixo por ela,que era guarani, linda. Meu pai nunca foi umapessoa repressora, autoritria. Ele se espantavamuito com minhas reaes, eu tinha um galopemuito pessoal. Desde muito pequena, o amorpela arte e pela poltica caminharam juntos.

    DV Quando isso comea?Bete Mendes Com 5 anos de idade,

    q