revista democracia viva 19

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DEMOCRACIA VIVA 19 NOV 2003 / DEZ 2003 Imagens do inconsciente Luiz Carlos Mello Mundo pós-Cancún Mark Ritchie Nebulosidades em relações inter-raciais Laura Moutinho O impacto do acordo com o FMI Alex Jobim Farias, Pedro Quaresma e Júlio Miragaya

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Page 1: Revista Democracia Viva 19

D E M O C R A C I A V I V A 19NOV 2003 / DEZ 2003

Imagens do inconscienteLuiz Carlos Mello

Mundo pós-CancúnMark Ritchie

Nebulosidades em relações inter-raciais

Laura Moutinho

O impacto do acordo com o FMI

Alex Jobim Farias, Pedro Quaresma e Júlio Miragaya

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E D I T O R I A L

Apublicação de mais um número da Democracia Viva coincide

com as avaliações sobre o primeiro ano do governo Lula – inaugurado com aquela mágica festa da posse. Há

uma crescente crítica ao continuísmo da política macroeconômica, seguida até aqui, emanada de setores

mais organizados e militantes da sociedade civil brasileira. Sobretudo, causa um mal-estar enorme a conti-

nuidade de políticas de estabilidade. A sensação é ainda mais amarga porque o tal continuísmo vem

recebendo aplausos dos que mais temiam a conquista do poder estatal pelo Partido dos Trabalhadores.

O que mais incomoda numa perspectiva de cidadania ativa é que o desconforto com o que

vem acontecendo não está levando a um arregaçar as mangas e ir à luta. A mágica do encontro entre povo e

nação – simbolizada na chegada de Lula à Presidência da República – parece que nos paralisou. Estamos

dando tempo? Até quando? Já dizia a canção: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Certo, aconte-

ceram mobilizações neste ano, mas não foram elas que influíram na agenda política. Foi o próprio governo que

protagonizou algumas iniciativas de participação, como a consulta do PPA (Plano Plurianual de Investimen-

tos) e o processo das grandes conferências. No geral, porém, estivemos mais ausentes do que ativos.

O problema é que governo nenhum age no vazio. Expressão de correlação de forças políticas,

o poder estatal funciona empurrado, aqui e em qualquer parte, governo de direita ou de esquerda, sobretudo nos

regimes democráticos. Com o governo Lula não é diferente. Fruto de uma aliança que trouxe para o centro do

poder político estatal a expressão mais avançada da relação trabalho e capital da história brasileira, o governo

opera numa contradição visível. É um ganho, sem dúvida, pois ao menos não temos a elite proprietária se

articulando para desestabilizar o governo ou fazendo o que melhor sabe: armando golpes para não ceder seus

seculares privilégios. Mas é uma aliança que por si só não gera a mudança necessária para o Brasil da inclusão, da

liberdade e dignidade humanas para todas e todos os brasileiros. A cidadania militante, aquela que com autonomia

age e pressiona, é mais indispensável do que nunca. Os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil,

profundamente identificados com as bandeiras dos direitos humanos, da justiça social, da liberdade e igualdade,

com respeito às diversidades que temos como povo, são desafiados a dar um novo passo. Trata-se de criar o

ambiente indispensável para que o governo não fique preso nas contradições da própria aliança política que o

levou ao poder. Precisamos acreditar que a nossa participação pode fazer uma enorme diferença.

A tarefa é complexa, mas possível. Não podemos é adiá-la. O Ibase quer dar a sua contribuição

autônoma, crítica e engajada. Queremos pensar a nossa realidade com suas múltiplas facetas, como faz o grande

parceiro do Ibase e da revista Democracia Viva desde a primeira hora, Alcione Araújo, nosso entrevistado. De

suas reflexões sobre a cultura no Brasil emergem pistas para o radicalismo que precisamos praticar. Radicalismo

que é uma expressão prática na história de Manoel Conceição. Precisamos de um radicalismo que combine a

clássica agenda de esquerda com as novas lutas por identidade feminina, étnica e de juventude, como bem formula

Mary Castro. Não podemos parar, pois o FMI continua na nossa porta (artigo dos companheiros da Rede

Brasil) e a vitória em Cancún aponta o possível (Mark Ritchie). Aliás, não fosse um grande movimento cidadão,

a nossa Petrobras não teria sido possível (Giuseppe Bacoccoli). Enfim, as razões para não esperar são muitas.

Cândido GrzybowskiSociólogo, diretor do Ibase

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S U M Á R I O

ENTREVISTA

Alcione Araújo

NACIONAL

Lógica perversa do FMI

3 ARTIGOPor um comércio global sustentávelMark Ritchie

12 ARTIGOAlcance e limites das políticas deidentidadeMary Garcia Castro

22 ARTIGO50 anos de histórias e desafiosGiuseppe Bacoccoli

28 NACIONALA lógica perversa do acordo com o FMIAlex Jobim Farias, Pedro Quaresmae Julio Miragaya

36 VARIEDADES

38 ESPECIALManoel Conceição Santos – a luta e amilitância de um trabalhadorRogério Almeida

46 PELO MUNDO

48 INTERNACIONALImigrante, cidadania suspeitaBeatrice Verri Whitaker

52 ENTREVISTAAlcione Araújo

62 RESENHAS

66 ESPAÇO ABERTOZonas de sombra e silêncioLaura Moutinho

74 CULTURAImagens que revelam o inconscienteLuiz Carlos Mello

80 ÚLTIMA PÁGINANani

ARTIGO

Comércio global sustentável

Ibase – Instituto Brasileiro deAnálises Sociais e EconômicasAv. Rio Branco, 124 / 8º20148-900 Rio de Janeiro/RJTel.: (21) 2509-0660 Fax: (21) 3852 [email protected] - www.ibase.br

Conselho CuradorRegina NovaesJoão GuerraCarlos Alberto AfonsoMoacir PalmeiraJane Souto de Oliveira

Direção ExecutivaCândido GrzybowskiFrancisco MenezesJaime Patalano

Coordenadores(as)Erica RodriguesIracema DantasItamar SilvaJoão Roberto Lopes PintoJoão SucupiraLeonardo MélloMoema MirandaNúbia Gonçalves

Assessora da Direção ExecutivaMaria Nakano

D E M O C R A C I A V I V AISSN: 1415149-9

Diretor ResponsávelCândido Grzybowski

Conselho EditorialAlcione AraújoAri RoitmanEduardo Henrique Pereira de OliveiraJane Souto de OliveiraRegina NovaesRosana Heringer

Coordenação EditorialIracema Dantas

SubeditorMarcelo Carvalho

RevisãoAnaCris BittencourtMarcelo Bessa

Assistentes EditoriaisFlávia MattarJamile Chequer

ProduçãoGeni Macedo

DistribuiçãoMaria Edileuza Matias

Projeto GráficoMais Programação Visual

DiagramaçãoImaginatto Design e Marketing

Ilustração da CapaEscultura de Lúcio Noeman; pintura (alto, à direita)de Ênio Sérgio; pinturas (mandalas) de FernandoDiniz (acervo Museu Imagens do Inconsciente).

Ilustração da ediçãoPinturas do Museu Imagens do Inconscientefotografadas por Marcus Vini

FotolitosRainer Rio

ImpressãoJ. Sholna Produções Gráficas

Tiragem4.300 exemplares

[email protected]

Page 4: Revista Democracia Viva 19

NOV 2003 / DEZ 2003 3

A R T I G OMark Ritchie*

Por um comércioglobal sustentávelO Fórum Social Brasileiro esteve voltado

para três dimensões específicas do mun-

do que estamos tentando criar.1 Primei-

ro, a das cidadanias individual e coletiva

– nosso papel e responsabilidade dentro

do desenvolvimento humano sustentá-

vel. Segundo, a questão sobre como pro-

duzimos e tornamos disponíveis os pro-

dutos de que necessitamos para

sobreviver – sem esquecer aqueles com

quem compartilhamos o planeta agora

e no futuro. Neste artigo, será focaliza-

do o terceiro aspecto: os elementos-chave das relações – recíprocas ou no conjunto – entre

Estados-nação, instituições internacionais e povos, a nova situação e os desafios que se configu-

raram depois da 5a Reunião Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Cancún,

especialmente à luz das crescentes ameaças de unilateralismo, mercantilismo, nacionalismo

neoconservador e militarização.

O objetivo deste artigo é simplesmente o de iniciar um debate, enfocando apenas um dos

elementos-chave da ordem internacional – o comércio e a principal instituição de elaboração de

políticas do setor, a OMC. Usando a OMC como exemplo, serão investigados alguns dos pensa-

mentos que emergiram do seio da sociedade civil sobre as formas de reformular o sistema

global, de maneira que tanto os Estados-nação como as agências internacionais possam nos dar

um melhor auxílio na tarefa coletiva de construir um desenvolvimento humano social, econômi-

co, ecológico e politicamente sustentável.

1 Texto produzido a partir depaper para o ciclo de semi-nários Agenda Pós-neoliberal(no Fórum Social Brasileiro2003), organizado pelo Ibaseem parceria com ActionAid,Fundação Rosa Luxemburgo eAttac Brasil.

JOSÉ

ALB

ERTO

DE

ALM

EID

A

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4 DEMOCRACIA VIVA Nº 19

Em primeiro lugar, uma opinião geral sobrecomércio, a OMC e a legislação e política decomércio como um sistema mais amplo. Odesenvolvimento e a preservação, ao máximopossível, das culturas, das comunidades e daseconomias locais são fundamentais. Criar edefender um alto grau de diversidade econô-mica, social, cultural, artística, política e bioló-gica é tanto uma questão básica de direitoshumanos como de sobrevivência humana. Atendência a pensar dessa forma é cada vez mais

intensa, à medida que o te-mor vai aumentando diantedo desconhecimento sobre osriscos relacionados à predo-minância atual de um modode vida baseado na indústriacentrada no hidrocarboneto.

Um bom exemplo deequilíbrio entre apoio ao co-mércio local e benefícios datroca de produtos e serviçosa longa distância é o selo decertificação de comércio jus-to utilizado em inúmeros pro-dutos e commodities, quevão desde bolas de futebolaté o café. Outro exemplo é aConvenção sobre DiversidadeBiológica, que determina ascondições de comércio visan-do proteger nossa herançagenética. Um terceiro exem-plo é a Bolsa Amazônia, quepromove o comércio queprotege especificamente aecologia na bacia do rio Ama-zonas. O que há em comum

entre cada uma dessas disposições sobre co-mércio justo é um conjunto de regras de co-mércio estabelecido de comum acordo. Há for-te convicção de que o comércio pode e deveser organizado de forma a promover o desen-volvimento humano sustentável. A solução paraisso seria por meio do comércio de importa-ção e exportação baseado em normas estabe-lecidas que sejam monitoradas e cumpridas.

Uma vez que o comércio, na maior par-te das vezes, é realizado por empresas (e nãopor governos), a chave para a elaboração denormas consistentes – e que num momentoposterior podemos ver seu cumprimento – es-taria na combinação de forças, mesmo de ne-gócios bem instruídos, consumidores consci-entes, governos nacionais e agências/institui-ções internacionais progressistas. Dados os

atuais desequilíbrios em âmbito mundial emtermos de poderio econômico e militar, essesacordos têm de ser forjados e buscados emtodas as esferas e em combinações diversas, afim de proteger o âmbito local e promover asustentabilidade econômica, ecológica e soci-al. Regras de comércio bem elaboradas tam-bém são importantes para o enfrentamentode alguns conflitos internos de ordem econô-mica, como a guerra entre Iraque e Kuweit,que culminou na Guerra do Golfo.

De fato, sabemos como estruturar ocomércio para que seja sustentável, mas issonão acontecerá por acidente ou pela magiadas “mãos invisíveis” ou dos punhos cobertoscom luvas de veludo. O comércio, como todosos outros negócios, tem de ser administradoem prol da sustentabilidade – preços justos,lucros e salários para que cada pessoa possaestar contribuindo com o produto final. O co-mércio sustentável inclui o crescimento contí-nuo em termos da produção de produtos commaior qualidade e a baixo custo para o meioambiente – portanto, para o público consumi-dor e a sociedade como um todo. Sabemostambém como estruturar regimes internacio-nais, instituições e processos de resolução decontrovérsias que podem contribuir para a re-dução do número de vezes que uma dada na-ção opta pelo caminho do conflito armadodiante de disputas no campo da economia.

Comércio organizado

Podemos ser otimistas quanto à próxima faseda política de comércio mundial por cinco ra-zões principais. Primeiro, graças à feliz conver-gência de muitos fatores, e mesmo pela im-portante liderança do governo brasileiro, aOMC inicia um processo de transição, passan-do de meramente uma extensão dos acordosneocoloniais pós-Segunda Guerra Mundial –nos quais uns poucos países ditavam ordens àmaioria – para uma nova maneira de operarque pode ajudá-la a se tornar uma verdadeirainstituição da economia internacional. A reu-nião ministerial da OMC em Cancún foi a pri-meira vez na história dessas conversações so-bre comércio – desde a Conferência de Havana,em 1947 – que as negociações chegaram per-to de ser realmente globais.

Cerca de cem países do mundo em de-senvolvimento engajaram-se num debate verda-deiro sobre os dois assuntos mais importantesque estavam em discussão – agricultura e os te-mas de Cingapura – em duras negociações com

O comérciotem de seradministradoem prol dasustentabilidadepreços justos,lucros e saláriospara que cadapessoa possa estarcontribuindo como produto final

A R T I G O

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NOV 2003 / DEZ 2003 5

As instituiçõesque elaboram

políticas decomércio têm

produzido partedo mais avançadopensamento e da

retórica nessaárea. Infelizmente,na prática, nunca

cumpriram suamissão progressista

POR UM COMÉRCIO GLOBAL SUSTENTÁVEL

as duas dúzias de países industrializados quecompõem a Organização para a Cooperação eo Desenvolvimento Econômico (OCDE). Comoórgão do sistema global das Nações Unidas,as instituições que elaboram políticas de co-mércio (como a primeira dessas instituições, aOrganização Internacional do Comércio, aConferência das Nações Unidas para o Comér-cio e Desenvolvimento (Unctad) e mesmo opreâmbulo da OMC) têm produzido parte domais avançado pensamento e da retórica nes-sa área. Infelizmente, na prática, nunca cum-priram sua missão progressista de pleno em-prego, justiça e processo democrático globais.

Em segundo lugar, a OMC tornou-se ainstituição de economia internacional sobre aqual a sociedade civil e cidadãos e cidadãs indi-vidualmente detêm mais informação e na qualsuas ações de exigibilidade (advocacy) têm sidoas mais eficazes. A natureza altamente reserva-da e antidemocrática do Acordo Geral de Tari-fas e Comércio (Gatt, na sigla em inglês), oantecessor da OMC, combinada com as conse-qüências bastante negativas sofridas por pro-dutores, classe trabalhadora e pelo meio ambi-ente, resultantes das negociações anteriores,fez da OMC o alvo provavelmente do maior mo-vimento mundial desde a guerra do Vietnã.

Tanto por meio da ação direta e orga-nizada de exigibilidade como da participaçãoampliada pelo trabalho de parlamentares, ci-dadãos e cidadãs do mundo todo vêm contri-buindo na definição de uma agenda e influ-enciando no próprio processo. Somente agoraestamos começando a compreender o proces-so de lobby e exigibilidade mundiais e, comcerteza, somos fracos em muitos aspectos.Porém, entre todas as ações de exigibilidadecidadã mundial do momento, a ação perantea OMC é a mais avançada. As lições tiradas deoutras importantes iniciativas da cidadaniamundial, como o boicote à Nestlé, o Tratadode Minas Terrestres e a Convenção sobre Di-versidade Biológica, começam a se fundir e ase amalgamar, depois de quase 20 anos deação de exigibilidade cidadã perante o Gatt ea OMC, para então tomar a forma de uma es-trutura de efetiva ação de exigibilidade cidadãglobal. Essa estrutura que está se formandonão é sinônimo de democracia global, mas ain-da assim é importante.

A terceira razão tem a ver com a estruturada OMC. Nela, é necessário haver consenso emmuitas áreas para que as negociações possamprosseguir e isso a torna uma instituição idealpara a construção de acordos verdadeiramente

globais – aqueles que são bons tanto para oNorte como para o Sul. A Índia esteve pratica-mente isolada na sua posição quanto aos te-mas de Cingapura, durante a reunião ministe-rial da OMC, realizada anteriormente em Doha,no Catar. Em Cancún, a Índia integrou umaenorme coalizão. O ativismo cidadão sobre es-sas questões foi crucial para que os governospudessem perceber o que estava em jogo e com-preender que havia espaço para resistir. Porém,essa resistência teria sido inútil, caso a Índianão tivesse se posicionadocom firmeza em Doha. Se, porum lado, a pressão e o des-respeito sofridos pelos paísesque exercem seu direito dedizer não aos Estados Unidose à União Européia ainda se-jam extremamente fortes – in-suportáveis para alguns –, poroutro lado, a reunião deCancún mostrou que algunsgovernos, em especial quan-do se articulam numa amplacoalizão, conseguem exercerseus direitos dentro dessemodelo de consenso.

A quarta razão parasermos otimistas é que, en-tre as agressões generaliza-das da parte de alguns in-tegrantes do governo esta-dunidense ao sistema inter-nacional, há a reivindicaçãode alguns pela extinção daOMC ou, simplesmente, queela seja ignorada. Essa ame-aça contra todo o sistemadas Nações Unidas – atécontra os direitos econômi-cos, sociais e humanos, os tratados ambien-tais, instituições e agências – é a mais séria emais perigosa que já vi em toda a minha vida.A ameaça à própria sobrevivência da OMCcriou uma atmosfera, pela primeira vez, pro-pícia à realização de um diálogo aprofunda-do sobre sua reformulação.

Quinta e última razão, porque é pro-funda a compreensão, a solidariedade e a co-operação ativa global no momento – no Nor-te, no Sul, no Leste e no Oeste. Isso é percep-tível em relação tanto à sociedade civil como àconstrução de relações entre governos. É anossa chance de aproximarmos lições, experi-ências, estímulo, energia, sabedoria, informa-ção e recursos dos companheiros de todo o

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A R T I G O

2 A 11a Conferência Ministerialda Unctad será realizada emSão Paulo, em junho de 2004.

planeta num momento de participação e, as-sim, prosseguir cada vez mais para o progres-so do desenvolvimento humano sustentável epelos direitos humanos.

Cancún pode ser considerado um su-cesso. Esse ponto de vista tem sido criticadopor algumas pessoas que acreditam queCancún foi um fracasso, uma vez que os go-vernos perderam a chance de avançar em ques-tões importantes e de preocupação para omundo em desenvolvimento. Se Cancún seconstituiu verdadeiramente num novo come-ço ou meramente em outra oportunidade quese deixou escapar, somente daqui a cinco oudez anos será possível avaliar melhor. O im-portante, entretanto, é que nós, que acredi-tamos no sistema multilateral, devemos to-mar esse caminho que se vê através da janelaaberta em Cancún, apropriando-nos domomentum que foi gerado, para avançar nodesenvolvimento humano sustentável. A His-tória nos julgará, não pelo que fizemos emCancún, mas pelo que fizermos de Cancún.

Trabalho a cumprir

Mas o que isso significa em termos concretospara cidadãos e cidadãs e movimentos soci-ais? Creio que existem seis tarefas importan-tes à nossa frente.

Primeiro, temos de prosseguir na ori-entação geral de tornar as negociações real-mente globais. Isso significa dar apoio a todoe qualquer esforço para se obter um maiorengajamento de todos os países membros daOMC numa participação ativa nos debatesimportantes. Isso poderá demandar o desen-volvimento de uma relação de consultoria téc-nica com as ONGs e mesmo a realização detreinamento e elaboração de programas emateriais didáticos. Por exemplo, se as políti-cas agrícolas do governo federal estaduniden-se tendem a ser um tema de suma importân-cia, então o melhor a fazer seria dar capacitaçãoaos negociadores e seus assessores sobre oreal conteúdo e abrangência dessas políticasdo que ter uma retórica sobre política agrícolavazia e desprovida de instrução que tão fre-qüentemente ouvimos, tanto da parte dasONGs como de governos.

Segundo, temos de ampliar, de formasignificativa, nossos esforços em relação às pes-soas e às organizações, buscando elevar a cons-cientização, a análise crítica e a capacidade dedesenvolver propostas alternativas. Em algunssetores, como o da agricultura, há muitas

pessoas que já estão capacitadas nesses as-pectos. Entretanto, é preciso mais do que issopara que possam efetivamente produzir algoinovador e realizar ações de exigibilidade emarenas globais. Isso tem de ser buscado emtodas as esferas – na base (por exemplo, emcada grupo formado nas igrejas) e na mídiade massa (utilizando todos os meios disponí-veis). Trazer mais os nossos representantes,democraticamente eleitos, especialmente osparlamentares, para dentro do processo de ela-boração de políticas de comércio também fazparte desse esforço. A presença em Cancún, pelaprimeira fez, de um grande número de parla-mentares federais e estaduais, bem preparados,talvez tenha tido mais impacto no resultado dasreuniões do que a presença das ONGs.

Quanto à terceira tarefa, precisamosusar este momento na história da OMC – noqual parece haver uma abertura para um novopensamento e para a reformulação – e pressi-onar por reformas estruturais no modo deoperação dessa instituição. Por exemplo, umaboa maneira de começar seria por meio de umprocesso de revisão, aberto e público, dospotenciais candidatos ao cargo de diretor ge-ral e do estabelecimento de normas de proce-dimento de negociação que fossem monito-radas e cumpridas. A metodologia usada narealização das sessões de negociação – infor-malidade, participação limitada de represen-tantes e inexistência de documentação sobreas posições tomadas pelos negociadores – tor-na não-transparente o processo de negocia-ção. Executando-se a reformulação nos proce-dimentos, como a que foi proposta por váriospaíses membros antes de Cancún, essa situa-ção pode ser revertida.

Para a quarta tarefa, precisamos escla-recer qual é o papel de uma gama de institui-ções regionais e globais em relação à políticade comércio e dar um sentido a esse grupo deinstituições. Por exemplo, vários dos assuntosexplosivos levantados pelos governos do Ter-ceiro Mundo em Cancún, como os problemasdesastrosos enfrentados pelos produtores decafé e algodão no mundo em desenvolvimen-to, são questões relacionadas a commoditiesque normalmente seriam tratadas no âmbitoda Unctad.2 Um dos principais focos dessa reu-nião tratará do aspecto do suprimento no co-mércio. Em todo o globo, há muitas pessoassérias, mesmo líderes conservadores como oex-primeiro-ministro canadense, Brian Mulroney,pedindo por uma segunda Conferência de SanFrancisco, numa alusão à fundação das Nações

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POR UM COMÉRCIO GLOBAL SUSTENTÁVEL

Unidas em San Francisco há quase 60 anos. Osecretário geral da Organização das NaçõesUnidas (ONU), Kofi Annan, já pôs em anda-mento uma ampla revisão do sistema das Na-ções Unidas, que poderia formar a base deuma séria reforma de todo o sistema deBretton Woods.

Em quinto lugar, precisamos atacar al-guns problemas globais mais prementes, dosquais os governos parecem incapazes de tra-tar no momento. Por exemplo, a persistênciados baixos preços globais para o algodão, cafée outras commodities continuam sendo umentrave ao comércio e ao desenvolvimentosustentáveis. A natureza dramática das inter-venções dos governos da África Ocidental, quese encontram perigosamente dependentes dospreços mundiais para o algodão, sobre os quaisnão têm controle algum, foi um dos pontosculminantes da reunião de Cancún. Pequenosagricultores dos estados mexicanos de Chiapase Oaxaca falaram com eloqüência sobre a situ-ação desesperadora dos cafeicultores do mun-do inteiro. Temos experiência suficiente e so-mos capazes de apresentar soluções concretasque podem ser implantadas com ou semapoio governamental.

Como última tarefa, temos de encon-trar uma maneira de contribuir com o anda-mento da reformulação geral do sistema in-ternacional, de forma que contenha os ataquesdos neoconservadores e de outros opositorescontra o sistema das Nações Unidas como umtodo. Ainda que possamos ter muitas críticaspontuais sobre decisões tomadas pela OMC,temos de encontrar os caminhos que levem aoengajamento construtivo. Nossas críticas nãopodem servir de argumentação para aquelesque trabalham pela substituição do sistemada ONU por alguma forma de superpotênciagovernadora do mundo. Essa é uma das áreasde atuação mais importantes para a coopera-ção global e deve ser concretizada a partir deuma abordagem de total integração entreNorte/Sul e Leste/Oeste.

Mudança em vista

A OMC entrou num processo de mudança decomposição e enfoque, distanciando-se dopapel de ser apenas uma via pela qual os Esta-dos Unidos e a União Européia impõem seusacordos, para se aproximar de ser um lugaronde as políticas de comércio são avaliadas enegociadas em termos do seu alcance paraconcretizar metas de desenvolvimento.

Há dezenas de questões que emergi-ram antes e durante Cancún que exigem pro-postas concretas e campanhas mundiais paraque sejam implementadas. O que está faltan-do é um processo global que colete as me-lhores idéias em efervescência e as transfor-me em propostas concretas, talvez competiti-vas. Estas, depois, passarão pelos vários canaise processos na sociedade, no comércio e nosgovernos para constituir um consenso glo-bal. Com o surgimento do Fórum Social Mun-dial, estamos começando a caminhar em di-reção a um processo de produção de consen-so no âmbito da sociedade, o que cria aperspectiva real de algum dia irmos em dire-ção a um verdadeiro processo global.

Entretanto, a interpretação otimistados resultados da reunião ministerial deCancún e a oportunidade de termos um avan-ço global, que pode ser denominado de Mo-mento Cancún, não é a única interpretação dareunião ministerial. Aqueles que preferem ounilateralismo, o mercantilismo e o uso da for-ça sobre o cumprimento da lei estão tirandooutras lições de Cancún.

Dentro dos Estados Unidos, existemquatro grandes classificações das visões sobreo papel do comércio na política externa. Pri-meiro, há aqueles que estão no poder e apro-vam o unilateralismo como a forma mais efici-ente e efetiva de exercer o poder estadunidensepara manter o acesso privilegiado a matérias-primas, mercados e pontos estratégicos para oposicionamento avançado de forças militares.Há inúmeros congressistas e altos funcionáriosda Casa Branca que retirariam os Estados Uni-dos das Nações Unidas e da OMC imediata-mente, se pudessem fazê-lo impunemente.

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8 DEMOCRACIA VIVA Nº 19

Apoiamos osistema mundial,porém nãoapoiamos muitasdas açõesperpetradas porimportantesinstituições. Nossacrítica deve viracompanhadade sugestõesde reformas

Num segundo grupo, estão aqueles queacreditam que a forma mais eficiente de man-ter os Estados Unidos no poderio mundial émanifestando esse poder por meio do multila-teralismo e de instituições globais, como o sis-tema das Nações Unidas – que inclui a OMC.Uma vez que os recursos mundiais precisam sercompartilhados de forma mais eqüitativa e queisso requer uma redefinição do atual equilíbriode forças no mundo, é inaceitável essa suposi-ção de que o sistema multilateral deva ser usa-

do para manter o status quo.No entanto, pode-se acredi-tar numa articulação com pes-soas que vêem nesse pensa-mento a perspectiva de formaralianças táticas.

O terceiro grande gru-po acredita na cooperaçãomundial e no multilateralismocomo meio de alcançar o de-senvolvimento sustentável, osdireitos humanos, a justiça e aigualdade. Isso, às vezes, noscoloca numa posição difícil, jáque nos encontramos pelejan-do tanto contra os unilateralis-tas, que substituiriam o siste-ma global seguindo as ordensde Washington, como contraaqueles que apóiam o multila-teralismo, mas que o fazemprincipalmente para preservaresse inaceitável status quo.

Esse é um dilema terrí-vel para quem acredita firme-mente no multilateralismo e nacooperação mundial. Isso nosobriga a fazer duras críticas àsmuitas das ações praticadas

por essas instituições, quando percebemos quesua principal motivação está no desejo de man-ter o status quo. Todavia, nossa crítica deve serencaminhada de tal forma a nos distinguir dosataques feitos à ONU e à OMC com o propósitode destruir totalmente a idéia de um sistemainternacional. Temos de deixar claro que apoia-mos o sistema mundial, porém não apoiamosmuitas das ações perpetradas por importantesinstituições. Nossa crítica deve vir acompanhadade sugestões de reformas que fortaleçam o sis-tema como um todo, ao invés de enfraquecê-lo.

Um elemento-chave dessa corrente depensamento é o desenvolvimento de idéias so-bre as formas de reduzir o poder ou o escopode instituições globais que tenham extrapola-

do seus mandatos ou competências, ou quesejam obviamente incapazes de liderar. Impor-tantes demandas vindas das muitas vozes crí-ticas à globalização demonstram a necessida-de de reforma radical, até mesmo propostasde governos do tipo “enxugamento ou encer-ramento”, referindo-se ao escopo da OMC.Uma demanda conseqüente dessa posição é ado movimento global de produtores exigindoa “retirada da OMC da agricultura” como umaforma de resolver as muitas injustiças e pro-blemas relacionados à soberania e à seguran-ça alimentar que são, em parte, resultantes doatual acordo agrícola da OMC.

Há um quarto ponto de vista comparti-lhado por muitos amigos e aliados que acre-ditam que as instituições estão tão presas ainteresses especiais e tão comprometidas pe-las manobras da Guerra Fria há 50 anos, e aoutros elementos da luta geopolítica global,que muitas instituições globais devem simples-mente ser fechadas. Essa visão também é com-partilhada por alguns dos fundadores das prin-cipais instituições globais.

Há dez anos, o IATP reuniu os fundado-res das instituições de Bretton Woods que ain-da estavam vivos, para discutir sobre o que de-sejavam e o que pensavam do 50o aniversáriode fundação do Banco Mundial e do FundoMonetário Internacional (FMI). Durante as dis-cussões, alguns desses fundadores debatiamentre si sobre qual dessas instituições teria sedesviado em muito de sua missão original equal deveria ser fechada primeiro. A veemênciade suas críticas e a urgência com que manifes-tavam a necessidade de reforma fundamental,ou de extinção dessas duas instituições, erammuito mais fortes do que as defendidas noFórum Social Mundial ou em outros encontros.

Existe o grande perigo de que a tercei-ra e quarta correntes – somadas às nossasduras críticas às muitas ações realizadas pelosistema multilateral – sejam utilizadas por al-guns integrantes da administração Bush paraincrementar a contínua retirada dos EstadosUnidos das questões globais e promover aagenda unilateralista. Encontros como osfóruns sociais têm um papel vital na garantiade que nossas críticas não sejam apropriadase usadas para destruir o sistema no seu todo.

Situação insustentável

Muitas das regras globais administradas pelaOMC foram negociadas numa época em quea agenda neoliberal era proeminente. Estamos

A R T I G O

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NOV 2003 / DEZ 2003 9

Temos a chancede desbancar osdomínios tanto

neoliberal comoneoconservador

exatamenteporque estãorelacionados

agora

agora numa nova era – num tempo onde aagenda neoconservadora dos assuntos ex-ternos e militares está articulada às políticasneoliberais para os assuntos de negócios eda economia. Enquanto os seu efeitos de-sastrosos podem ser vistos em cada lugarejodo planeta, as chances de mudança comoresultado desse casamento arrasador sãoigualmente dramáticas. Sem os resultadoscruéis da sinergia entre comércio e o milita-rismo neoconservadores, a articulação entreo governo brasileiro e o G-20 em Cancúnnão teria sido possível. A combinação entrea perpetuação de políticas de comércio mer-cantilistas e “hegemonia global”, por meiode uma política externa militarizada, criouuma situação política quase insustentávelpara os Estados Unidos.

Enfraqueceu a parceria entre os Esta-dos Unidos e a Europa de forma drástica –impossibilitou que formassem um front sóli-do em Cancún. Significou que os Estados Uni-dos ignoraram os apelos desesperados depaíses sem recursos, como as nações depen-dentes do comércio do algodão na África Oci-dental, que deixaram perfeitamente claro que,sem uma flexibilização, não teriam razão paranegociar nada. Para completar, além dessasquestões específicas de política, havia tam-bém a arrogância e a cegueira decorrentes damotivação ideológica. Muitos integrantes dadelegação estadunidense, tanto do governocomo do setor empresarial, ficaram bastantesatisfeitos com o resultado de Cancún. Viramali a oportunidade para colher argumentosem favor de sua causa pelo futuro abandonodo processo multilateral e pelo uso das ne-gociações bilaterais e regionais, como a Áreade Livre Comércio das Américas (Alca), comoo espaço onde os Estados Unidos podemobter tudo o que querem sem ter de fazerconcessões, além das promessas de que seempenharão ao máximo.

Talvez sendo excessivamente otimis-ta, possamos afirmar: temos a chance dedesbancar os domínios tanto neoliberalcomo neoconservador exatamente porqueestão relacionados agora. Até há poucotempo, a separação dessas agendas – porexemplo, na administração anterior – tor-nava quase impossível reunir forças tantodentro como fora dos Estados Unidos parase criar um autêntico desafio a elas. Hoje,porém, podemos comemorar o início daverdadeira negociação do comércio no âm-bito da OMC – graças, em grande parte, aos

esforços empreendidos pelo Brasil e o G-20em Cancún – e agora estaremos nos ocu-pando de um debate concreto global sobreo papel das Nações Unidas, da força militare do unilateralismo.

Talvez tão importante quanto ter al-çado globalmente essas questões seja, aomesmo tempo, ver a sua projeção nos Esta-dos Unidos. Não há como fazer uma críticade todos os pormenores desse extenso de-bate hoje, mas é cabível dizer que nunca vi-vemos uma época de maiorperigo político nos EstadosUnidos – e isso inclui a deRichard Nixon e outros – enunca houve um momentode maior debate público so-bre o papel do governo nosassuntos internos e exter-nos, e o papel dos EstadosUnidos especificamente nasquestões globais. Como na-ção, fomos partidos ao meiosobre a guerra mantida pelaadministração Bush contra oIraque e continuamos pro-fundamente divididos hoje.O importante, entretanto,não são os números daspesquisas sobre a políticade guerra, mas a profundi-dade e o escopo do debateem que estamos engajados.Grande parte da sociedade– muito, muito mais do que jamais se tevenotícia – está engajada na discussão dequestões importantes sobre economia, co-mércio, direitos humanos, guerra e paz. Essedebate se intensificará à medida que entrar-mos nas próximas eleições.

Nossa agenda política externa e inter-na depois do neoliberalismo e do neoconser-vadorismo tem de ser um retorno à democra-cia e à prevalência da lei. E temos de dar umaênfase especial à garantia de que estamostodos, por meio de procedimentos democrá-ticos e dos direitos humanos, aptos a partici-par da criação de leis que nos governarão.

Nos Estados Unidos, as questões de raçasão o elemento definidor da vida pública. Atéhoje, apesar de anos de trabalho com afinco,sacrifício e grandes avanços, uma raça – grandeparte da classe governante pertence a essa raça– elabora a maioria das leis a que outros devemobedecer. Sabemos que o governo da elite pelaelite na realidade não trabalha para os que

POR UM COMÉRCIO GLOBAL SUSTENTÁVEL

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* Mark Ritchie

Economista, Institute for

Agriculture and Trade

Policy (IATP)

A R T I G O

estão no âmbito local e nacional. Não é difíciladivinhar que globalmente fariam o mesmo. Unspoucos elaborando leis, como insignificantes ins-trumentos de governança, em benefício de simesmos. A agenda pós-neoliberal é a democra-cia em todos os níveis – o detalhamento fica porconta daqueles que virão depois de nós. Porém,se, e somente se, tivermos êxito em suplantar odomínio desses poucos, que é imposto com ar-mas de destruição em massa e podem ser usa-das contra os muitos. Até que, de fato, suplan-temos essa elite e sua forma de governançaaterradora, continuaremos todos a ser aterrori-zados pela guerra civil em escala global.

Devemos rejeitar qualquer opção quenos leve em direção à guerra civil. É um futurodemasiado terrível para se imaginar. Devemosreagir a isso, tomando o caminho da demo-cracia, reiteradamente defendendo-a por meioda não-violência. Essa tem de ser a nossa agen-da pós-neoliberal e neoconservadora.

A reunião organizada pela IATP reuniuos fundadores da maioria das instituições cri-adas depois da Segunda Guerra Mundial, in-cluindo ONU, Organização das Nações Uni-das para Alimentação e Agricultura (FAO, nasigla em inglês), Declaração Universal dos Di-reitos do Homem e todas as agências deBretton Woods, como o Banco Mundial e oFMI. O motivo do encontro era o 50o aniver-sário da Conferência de Bretton Woods. A

mais importante lição do encontro foi quan-do insistiram firmemente em dizer que a fun-dação desse sistema deu-se, principalmentee acima de tudo, numa tentativa desesperadade encontrar um caminho para a paz mundiale assegurar a justiça econômica, social e polí-tica. Precisamos retomar esse foco primordial– este é o momento de maior abertura, masnão vai durar muito. Esse futuro democráti-co, porém, não nos será entregue nas mãos.Teremos de trabalhar dia e noite para superaraqueles que escolheram a guerra civil mundi-al como forma de defender seus privilégiosou como forma de resistência à exploração.

Talvez, a agenda pós-neoliberal paramuitos de nós seja rigorosamente a mesma deantes. Devemos continuar a usar a não-violên-cia assertiva e mesmo agressiva na luta pelasegurança, sustentabilidade e por um sentidode comunidade dentro de um contexto glo-bal. Devemos ser contrários à guerra civil lo-cal, nacional e global por meio da luta pelacontínua expansão da democracia e dos direi-tos humanos dentro da arena internacional.

A democracia – no local de trabalho,em nossas cidades e nações, na arena global –deverá ser ganha, depois ganha de novo e,novamente, ganha outra vez. Devemos fazerisso por nós mesmos e por outros que nuncaconheceremos. Devemos fazer isso por estemomento e por eras que jamais veremos.

O que fazer?

O projeto Agenda Pós-neoliberal tem oobjetivo de, a partir do reconhecimento dadiversidade de sujeitos e situações, criarcondições teóricas, políticas, metodológi-cas e operacionais para a produção coleti-va, sistemática e cumulativa de pensamen-to estratégico sobre modelos de desenvol-vimento humano democrático e sustentá-vel. A iniciativa é do Ibase, em parceria comAttac Brasil, ActionAid e Fundação RosaLuxemburgo.

Pretende também fortalecer a capaci-dade propositiva e de incidência dos dife-rentes sujeitos sociais que se engajam, mun-dialmente, na busca de alternativas à glo-balização neoliberal. Além disso, contribuirpara consolidar o processo do Fórum Soci-al Mundial como um espaço em que a di-versidade de sujeitos sociais se confronta,elaborando convergências e divergências eforjando uma cidadania de dimensões pla-netárias, portadora de utopias e de trans-formação social.

Durante o primeiro Fórum Social Brasi-leiro, realizado em Belo Horizonte, de 6 a 9de novembro deste ano, foi promovida suaprimeira atividade: o Ciclo de SemináriosAgenda Pós-neoliberal. O próximo encon-tro será em Mumbai, na Índia, durante o4o Fórum Social Mundial, de 16 a 21 de ja-neiro de 2004. Em março de 2004, será noFórum Social das Américas, em Quito, Equa-dor, e, em junho, na reunião da Unctad, emSão Paulo. Fechando o calendário, em no-vembro de 2004, acontecerá mais uma ro-dada na Reunião dos Países do Cone Sul.

Mais informações: www.ibase.br

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O Jornal da Cidadania é distribuídopara pessoas que têm pouco ou ne-nhum acesso à informação crítica ecomprometida com a democracia.Nossos leitores e leitoras são, espe-cialmente, estudantes e professorase professores de escolas públicas detodo o país. Mas também trabalha-doras e trabalhadores urbanos e ru-rais, líderes comunitários, morado-ras e moradores de comunidadespobres. São 60 mil exemplares dis-tribuídos gratuitamente.

Participe de mais esta iniciativa doIbase. Você pode ajudar com con-tribuições financeiras ou organizan-do um núcleo de distribuição.

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A R T I G OMary Garcia Castro*

Alcance e limitesdas políticasde identidade

ALE

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JÃO

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O teorema subjacente ao conheci-mento alquimista era de que have-r ia uma matér ia-pr ima comum ametais bastante diferentes entre si.Para a produção de um metal supe-rior, o ouro, haveria que combinar,por exemplo, cobre, ferro e prata.Chegar a tal matéria, transforman-do-a, exigia do alquimista experiên-cia nas técnicas de laboratório euma postura filosófica própria. Oalquimista seria um ativista, por umconhecimento militante. Ora, as ca-tegorias raça, gênero e geração têmem comum serem atributos com sig-nificados, histórias, políticas, cultu-rais e econômicas, organizados porhierarquias, privilégios e desigual-dades, aparados por símbolos par-ticulares e “naturalizados”. A com-binação de categorias como gênero,raça e geração na classe não é umasimples operação de somas de dis-criminações ou de linguagens pró-prias e pode dar origem a sujeitospolíticos mais ricos e criativos, alémdos esquemas duais das identida-des-alteridades e este é um desafio.(Castro, 1992, p. 59)

Se, por um lado, o debate sobre identi-dades veio enriquecer o conhecimento/ativismo sobre a multiplicidade do real ou osdiversos sistemas de desigualdade/iniqüidadesociais, por outro lado, há o risco de uma apre-ensão pós-moderna de tais sistemas – por raça/etnicidade, gênero e geração, por enfoquesparcializados, reformistas e fragmentados –,ou seja, de uma aposta em políticas de identi-dade deixando de lado a riqueza das identida-des na política. O desafio maior é como, aomesmo tempo, combater uma e todas as ini-qüidades sociais, combinando, portanto, po-líticas focalizadas e universais, fazendo o nexoentre distintos movimentos sociais e não per-dendo a perspectiva político-crítica sobre asociedade estruturada em classes sociais.

É preciso que a política de cotas nasuniversidades venha acompanhada de açõesafirmativas, bolsas para estudantes pobres emelhoria do ensino das escolas públicas. Masnão dá para usar a necessidade de tais políticasde afirmação universal de direitos para adiarainda mais o pagamento da dívida para com aspopulações afrodescendentes. Então, defenda-mos as cotas. Temos de estar conscientes que

As reflexões que se seguem estão divididasem cinco pontos: alcance e limites do conceitode direitos humanos; alerta sobre a perspecti-va de política de identidades e a riqueza dasidentidades (principalmente quando se rela-cionam na transversalidade das identidades napolítica); questões sobre o conceito de igual-dade; importância de investir também no con-ceito de geração; e, o desafio maior, a dialéticaentre direitos e o investimento em des/recons-trução de identidades ( investimento nacriatividade, reinventar-se, ir além da socieda-de de classes e de discriminações de várias or-dens, resgatando a força das linguagens iden-titárias; a riqueza do diverso e não-desigualem relações de descoberta tanto no plano doindividual, sexualizado/racializado e engendra-do por gerações e múltiplas referências comono plano de coletividades libertárias).1

Defendo a tese de que a alquimia raça-gênero-geração tem potencialidades de cola-borar na subversão cultural do sistema de clas-ses, indo, portanto, além da necessária – maslimitada – perspectiva de direitos humanos.2

Tal reprodução por diferentes desigualdadesvem sendo registrada por ativistas e intelectu-ais progressistas. Assim, por exemplo, nodossiê Assimetrias raciais no Brasil: alerta paraelaboração de políticas, recém-divulgado pelaRede Feminista de Saúde, registram-se váriasdesigualdades entre pessoas afrodescenden-tes e brancas, enfatizando-se que, em muitasdimensões, o gênero amplia distâncias.

Em 2001, as famílias afrodescenden-tes chefiadas por mulheres tinham um ren-dimento domiciliar médio de R$ 202. Já asque tinham como chefe um homem tam-bém afrodescendente estavam no patamarde R$ 208,60. Se uma mulher branca fosserecenseada como chefe, tal indicador subiriapara R$ 481,20. No caso dos homens bran-cos, um pouco mais, R$ 482,10. Entre as me-ninas afrodescendentes, dos 10 aos 14 anos,4,5% seriam analfabetas. As analfabetas en-tre as meninas brancas perfaziam 1,3%.

Esses dados são apenas uma amostrade ampla gama de indicadores contrapostosno dossiê para indicar hierarquias perversas,mesmo entre as pessoas pobres. Note-se queo dossiê sobre assimetrias raciais é elabora-do e divulgado por uma agência feminista, aRede Feminista de Saúde, o que é um grandeavanço, apontando para a possibilidade dodesafio maior desses tempos: a alquimia dosenfoques sobre identidades para um conhe-cimento e uma ação transformadores.

1 Adaptação de texto apresen-tado pela autora no Fórum So-cial Brasileiro, Belo Horizonte,em 8 de novembro de 2003. Otema proposto da mesa deconferências foi Justiça social,direitos humanos, igualdade en-tre homens e mulheres, gera-ções e superação do precon-ceito racial no Brasil.

2 É um ganho da modernida-de, em fases mais recentes,reconhecer a dialética entredireitos humanos, tendo comoreferência a humanidade, edireitos humanos de muitos,considerando suas singularida-des, tanto em termos de vul-nerabilidades negativas comode possibilidades, vivências elinguagens próprias. Isso ocor-re quando se sai dos concei-tos clássicos da virada doséculo de uma cidadania so-cial, civil e política, para lidarcom as desigualdades de umsistema de classe, mas ampli-ando o debate sobre cidada-nia cultural e entrelaçandouma na outra, reconhecendoas singularidades de muitos.E também quando se passa afazer referências aos direitoshumanos das mulheres, dos ho-mossexuais, dos negros, dos in-dígenas, dos migrantes, dascrianças, dos jovens, dos maisvelhos e de tantas outras po-pulações que, por construçõessociais pautadas em desigual-dades e iniqüidades sociais,são, em suas próprias classes,o outro ou a outra do outro e,assim, mais negativamentevulnerabilizados que outros.

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oferecer as cotas sem dispor de condiçõespara que as pessoas negras pobres tenhamum bom desempenho nas universidades é pre-parar uma profecia autocumprida: a deser-ção dos que não conseguirem atender às exi-gências das atividades de estudos em umauniversidade fortalece a posição daqueles queacham que a medida não daria mesmo certoe que tinham razão em não querer que en-trassem pelo sistema de cotas.

A militância identitária deve ser acom-panhada da militância clássica ou, como cha-mam os pós-modernos de forma crítica, da“grande narrativa da transformação social” – osocialismo. O maior desafio, diferentementedos que advogam o investimento exclusivo empolíticas de identidade focalizadas, é renovar a“grande narrativa” pelo socialismo ou, de for-ma mais modesta, considerando as urgênciasdo imediato, as políticas “universais e focaliza-das”. É preciso combinar o enfrentamento demúltiplos sistemas de reprodução de desigual-dades, além de não pararmos na crítica às dife-renças, por exemplo, entre pessoas brancas enegras em relação a um determinado indica-dor. É preciso avançar mais no questionamentoda reprodução de sistemas de exploração e dis-criminação, tanto de pessoas brancas como depessoas negras pobres, sem perder também aperspectiva de que as negras, com a maior pro-babilidade, serão mais discriminadas.

Segundo as feministas Barret e Ha-milton, num texto de 1987, “apreender a di-versidade sem perder-se na fragmentaçãovem se tornando um dos maiores desafiosdo trabalho de corte feminista hoje” (apudCastro, 1992, p. 57). Segundo o dossiê so-bre assimetrias raciais no Brasil, em “2001,os afrodescendentes representavam 69,3%dos 10% mais pobres da população, en-quanto os brancos representavam, apenas,32,3%. No extremo oposto, ou seja, entre ocentésimo mais rico da população, os afro-descendentes são apenas 8% e os brancos88,8%”. Ora, o percentual de 32,3% de pes-soas pobres brancas não é “apenas”, masuma alta proporção de pobres, e não have-ria como existir um projeto progressista con-tentando-se em diminuir a proporção depessoas pobres negras para que se igualas-sem a de pobres brancas. E é também limita-da a insinuação implícita de que se deveriaaumentar a proporção de afrodescendentesentre as classes mais ricas, deixando intactaa estrutura de classe, de acumulação e dis-tribuição de riquezas.

Diferença entre iguais

O vocábulo igualdade3 muitas vezes não dáconta da riqueza de linguagens das distintasidentidades. Também não dá conta do reco-nhecimento de tais singularidades e diferen-ças que colaboram para sociedades em que seapele menos para identidades fixas, mas, prin-cipalmente, para o direito de inventar, dereinventar formas de ser, estar e se relacionar,descobrindo sensações, maneiras de ser e decombinar corpos sem caminhos pré-mapedos.Tenho alergia aos manuais de gênero de tan-tas bem intencionadas ONGs que lutam pelosdireitos das mulheres.

Assim, por exemplo, o debate e oativismo pelos direitos ao homoerotismo ques-tiona, referindo-se à questão de gênero, o sis-tema de relações assimétricas somente entrehomens e mulheres. Quando algumas feminis-tas também questionam o conceito de igualda-de entre homens e mulheres, jogando com odireito de a mulher se reinventar de formasmúltiplas, estariam desestabilizando conceitose ênfases em identidades fixas. A radicalidadeestaria em ir além da igualdade de direitos.

O movimento negro vem resgatando asabedoria do conhecimento, da cultura africa-na no Brasil. Sua estratégia inclui uma críticaimplícita à sociedade de consumo e às tradici-onais divisões sexuais, com a polifonia eróticados orixás e tendo a expressão musical e cor-poral mais do que superestrutura, linguagemde comunicação que ressalta o valor do lúdico.Portanto, a questão se reduziria a um pensarpequeno, brigando apenas por igualdade en-tre pessoas negras e brancas, a contribuiçãosingular do Atlântico Negro (Gilroy apud Cas-tro, 2002), da cultura afro-brasileira?

Já o feminismo tem possibilidades queo ultrapassam como movimento social emdefesa das mulheres. Até em suas versõesinstitucionalizadas de corte liberal, contri-bui para uma política cultural orientada paraa construção de forças contra-hegemônicasao introduzir elementos desestabilizadores,por exemplo:

1. questionamento das diferenças de posiçãoentre homens e mulheres nas relações ca-pital/trabalho;

2. chamado à diferença, estabelecimento decombinações entre o público e o privado,que afetam formas de venda da força detrabalho – sugerindo, sem assumir, amaterialidade do princípio marxista de quehá várias populações no e para o capital;

A R T I G O

3 O conceito de igualdade éum ganho do léxico liberal,mas tem armadilhas que po-dem colaborar para reprodu-ções de códigos tradicionais,limitantes de mudanças e doexerc íc io da c r ia t i v idade.Muitos movimentos de mulhe-res afirmam que o projetomaior seria igualdade de di-reitos e liberdade de ser di-ferente e singular.

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3. questionamento dos princípios iluministas,como o de “sujeito universal” – homem emulher –, e de princípios genéricos, como“liberdade, igualdade e fraternidade”, pe-los quais se omitiriam contradições de in-teresse e violências entre “iguais”;

4. enfrentamento – não necessariamente as-sumido como tal – de uma razão dicotô-mica, como as separações entre a macro ea micropolítica da cotidianidade, entrecondições objetivas e subjetivas, entre arazão e os sentimentos e entre a esferapública e a privada.

O movimento de mulheres negras é umdos avanços mais importantes da última dé-cada do feminismo no Brasil. Nele, as mulhe-res jovens têm contribuído para uma outraforma de se expressar culturalmente, como,por exemplo, em um hip hop não-machista,no reconhecimento da beleza negra e no res-gate da auto-estima.

Os movimentos juvenis têm a potenci-alidade libertária da crítica, a busca por auto-nomia, a integração com o erótico, as artes e aindignação pelo injusto. Não por acaso, acio-nam um dos movimentos mais importantesdesses tempos, contra a globalização capita-lista e a hegemonia do Império. Será que tan-ta energia é fruto apenas do combate àsadultocracias, limitando-se a brigar por políti-cas públicas para as juventudes e pela criaçãode uma secretaria da juventude, sem criticar asformas de fazer políticas vigentes com o seucapital cultural juvenil, sem reconhecer a con-tribuição histórica que o movimento de juven-tude vem dando? Pensar assim também nãoseria pensar pequeno?

Em suma, tanto o reconhecimento daforça radical, das raízes de cada movimento,de cada identidade, como a aposta nohibridismo de movimentos – negro, feminis-ta e juvenil – ampliam os lugares de luta e deafirmação de direitos. É avançar na radicali-dade, sair do campo estreito da instituciona-lidade (e por várias frentes) e na unidade demuitos, além dos direitos – repito, válidossim, como são as políticas para grupos nasubalternidade –, mas na sonhada grandenarrativa reinventada de um socialismo hu-manista, questionando-se culturas calcadasno produtivismo e economicismo.

Seria benéfica à multiplicação e à am-pliação dos espaços da sociedade civil – en-tendida em sentido gramsciano como forçascontra o mercado – e de pressão por um Estadode bem-estar, hoje, a luta por um socialismo

humanista colorido. Um socialismo que englo-basse o direito à felicidade, ao gozo e àcriatividade como princípios de direitos hu-manos universais e que devem ser mais focali-zados, por mais que tenhamos de botar muitaenergia contra as barbáries cotidianas, quepedem ações imediatas.

Insisto na idéia de que há potenciali-dade em não se restringir ao campo dos direi-tos humanos de cada identidade – negros,mulheres, jovens e velhos, por exemplo – ain-da que tal reconhecimento de direitos sejaimportante. Chamo a atenção para o fato deque a vertente feminista marxista e os movi-mentos de mulheres com discurso de classe,assim como os movimentos sociais que relaci-onam gênero, raça e geração em diversos paí-ses da América Latina, teriam ampliado consi-deravelmente suas agendas e enriquecido suaspráticas a partir da década de 1970. Apren-deu-se com as feministas radicais e liberais atrabalhar com temas espúrios para correnteseconomicistas à esquerda, como a sexualida-de, a auto-estima e o individualismo não-nar-cisista ou egoísta, mas criativo. Reivindicou-seo querer, o reconhecimento de corpos no es-paço dos afetos, o direito ao prazer ou aosprazeres, para uma agenda política de esquer-da, combinando frentes de luta além dosguetos, especificidades e políticas de identi-dade essencializadas (ou referidas a naturali-zações das relações sociais/sexualizadas).

O caso dos jovens

Entre diferentes identidades na classe, mere-ce mais atenção a situação dos jovens, emparticular de jovens das classes populares ede jovens negros. Quando se desagrega a po-pulação por sexo, raça/etnicidade e geração,outras heterogeneidades são reveladas, con-firmando o reforço das desigualdades nacontemporaneidade brasileira e o anúncio deque essa é uma tendência que se acentua como livre jogo do mercado. São jovens negros enegras que apresentam as mais baixas taxasde atividade e mais altas taxas de desempre-go. Jovens negros e negras, entre 15 a 18anos, nas áreas metropolitanas no Brasil, têmtaxas de desemprego superior à média para apopulação adulta total (cerca de 8%), comuma variação entre 17% e 23%.

Mesmo no plano mais formal, liberal,de direitos humanos específicos, de investimen-to em identidades em si e de políticas focaliza-das em alguns segmentos, um dos grupos mais

ALCANCE E LIMITES DAS POLÍTICAS DE IDENTIDADE

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a descoberto tem a ver com a identidade/gera-ção, como o caso dos jovens. De acordo comdados do Instituto Brasileiro de Geografia eEstatística (IBGE), no Brasil, em 2002, 34,1milhões de pessoas se encontravam na faixaetária entre 15 e 24 anos, o que equivale acerca de 20% da população do país.

Quer pela representação quantitativa nocômputo geral da população, quer pelos direi-tos humanos dos jovens, estes fazem jus a se-rem considerados tanto em políticas universaiscomo sujeitos de políticas específicas. Contu-do, tal discussão deve ultrapassar a lógica dosenso comum pela qual se consideram políti-cas públicas como um elenco de programas.Falta aprofundar debates sobre perspectivas po-líticas em relação aos jovens, considerando ain-da sua diversidade e as desigualdades segun-do raça, gênero, classe e outras demarcaçõessociais. Não se encontram políticas públicas parajuventudes no atacado, predominando progra-mas e ações no varejo, ou seja, existem no Bra-sil programas isolados, políticas setoriais deação local no âmbito do Estado, mas que nãocontemplam a diversidade dos beneficiários emtermos de geração e não possuem uma orien-tação universalista. O desafio é refletir sobrepolíticas públicas de, para e com juventudes,levando em conta uma série de complicadoresque envolvem essa temática e a diversidade dedireitos humanos dos jovens – sociais, civis, po-líticos e culturais.4

O debate sobre políticas com juven-tudes, considerando que os próprios jovensdeveriam reivindicar direitos, passa pela for-mação política dos jovens no sentido deaprender a zelar pela coisa pública e acom-panhar e cobrar a ação do Estado – exercíciode cidadania civil e política e monitoramen-to do uso da coisa pública. Ironicamente,tanto no movimento feminista como no mo-vimento negro, os debates e até a apresen-tação de estatísticas com recorte também degeração deixam a desejar. No dossiê sobreassimetrias raciais, lê-se:

Em 2001, a taxa de ocupação das cri-anças e adolescentes entre 10 e 13anos era de 9%, quase duas vezesmais elevada que a taxa apresentadapelas crianças brancas, que era de4,9%. Na faixa etária entre 14 e 15anos, embora haja uma substantivaelevação da taxa de ocupação dosjovens brancos (16,8%), a taxa departicipação de afrodescendentespermanece superior (20,1%).

Ora, a faixa etária de 10 a 15 anos étempo de estudos, brincadeiras e diversão.Entre os 15 e 24 anos, para cada cem homensbrancos pobres, existem 110 mulheres bran-cas, 211 mulheres negras e 214 homens ne-gros pobres. Na faixa etária de 7 a 14 anos,por sua vez, para cada cem meninos brancospobres há 103 meninas brancas, 189 meninasnegras e 203 meninos negros pobres. Ou seja,na alquimia entre raça e gênero, algumas mu-lheres perdem mais do que as outras e nãonecessariamente os homens se destacam comoem melhor situação, o que nos alerta contrareferências generalistas e políticas públicaspara identidades em si, sem consideração àheterogeneidade que comporta cada uma.

Vive-se hoje, por outro lado, a emer-gência dos discursos sobre os direitos huma-nos e as práticas e discursos sobre violências,sendo que é comum sublinhar-se a participa-ção jovem nos dois discursos, como vítimasou algozes. Então, um primeiro direito huma-no é o da diversidade. Há vários tipos de jo-vens e é preciso dar espaço para que os jovensrepresentem seus direitos. Os jovens, princi-palmente pobres e negros, são “sujeitos peri-gosos”, e esse perigo é ligado à sua classe eidade. Tal perspectiva é mais comum nas notí-cias e nos estudos sobre violências e drogas.Mas também é presente quando se focaliza osjovens a partir de seus mais altos índices dedesemprego. Por outro lado, são poucas asreferências às cidadanias ou aos direitos ne-gados aos jovens, como o do exercício das brin-cadeiras, da diversão, da sua informação e for-mação cultural, assim como da reinvenção delinguagens próprias.

Cerca de 40% da população jovem noBrasil vivem em famílias em situação de po-breza extrema (famílias sem rendimentos oucom até meio salário mínimo de renda famili-ar per capita). Os que não estudam e não tra-balham correspondem a 20,4% do total dejovens entre 15 a 24 anos, no conjunto dasnove regiões metropolitanas do Brasil – o quesignifica mais de 11 milhões de jovens, sendoque, entre esses, cerca de 55% são classifica-dos como pretos ou pardos censitariamentesegundo estudo, ainda em andamento, daUnesco com dados da Pesquisa Nacional porAmostra de Domicílios (Pnad) de 2001. Nãoexistem políticas específicas para jovens quenão estudam e não trabalham.

Em pesquisas desenvolv idas pelaUnesco, quando se pergunta a jovens de bair-ros pobres quais políticas públicas propõem,

A R T I G O

4 Sobre políticas publicas de/para/com juventudes, verCastro e Abramovay (2003) epesquisas diversas da Unescono Brasil.

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é comum ouvi-los (entre 14 e 15 anos) de-clarar: “Queremos ter um trabalho”. O direi-to de ter tempo para brincar e para estudarnão é reconhecido pelos próprios adolescen-tes, ante suas necessidades e da família.Abdica-se da reivindicação do seu direito aestudar e não declaram que querem bolsasde estudo, condição para que só estudem. Abusca por trabalho é prioritária para jovenspobres: em algumas das entrevistas com jo-vens que estudam e não trabalham, perce-be-se que, se aparecer uma oportunidade detrabalho, o estudo é abandonado, mesmoque seja um trabalho de ganhos imediatos,mas sem perspectivas a longo prazo. Limi-tam-se expectativas de futuro e é favorecidaa perspectiva de garantir o presente, o quefacilita, ainda, o envolvimento em violênci-as. As condições de necessidades compro-metem o direito ao sonho, a ter expectativasquanto ao futuro.

Mulheres atuantes

O feminismo avançou muito nos planos jurí-dico, político e formal, em termos, principal-mente, de vis ibi l idade para violênciasnaturalizadas, tidas como coisas de marido emulher, por exemplo, ou de âmbito privado.Mas se reconhece que ainda nesse campo sãomuitas as lacunas, e, entre elas, destacam-seas relações de gênero entre jovens e a falta depolíticas educacionais que trabalham comconteúdos curriculares e práticas tradicionaisnas escolas (Ver Abramovay e Rua, 2002, eCastro e Abramovay, 2002).

Graças a estudos de corte feminista,sabe-se, por exemplo, que: a cada hora, setemulheres são vitimadas em situações de vio-lência doméstica no Brasil;5 vem ocorrendoum rejuvenescimento das mortes por compli-cações obstétricas diretas, sendo que, em1994, só na região Sudeste, do total de mu-lheres em idade reprodutiva que morrerampor essas complicações, 12% tinham entre 15e 19 anos; no Brasil, cerca de 15% dos óbitosde mulheres entre 15 e 19 anos ocorreramem virtude de abortos, quando em 1980 acifra foi de 8% (Berquó, 1999).

A fecundidade entre mulheres jo-vens, na faixa entre 15 e 19 anos, vem cres-cendo com mais intensidade a partir da dé-cada de 1980. Pesqu i sa quant i ta t i varealizada entre 1989 e 1990 indicou que,no Rio de Janeiro, em 58% dos casos, a pri-meira gravidez de jovens entre 15 e 19 anos

não foi planejada e que, em quase 70% doscasos, as jovens não usaram nenhum méto-do anticoncepcional na primeira relaçãosexual (Camarano, 1998).

Já outras pesquisas, de cunho mais an-tropológico, consideram que a gravidez entreadolescentes não se associaria necessariamen-te à falta de conhecimento sobre métodos decontrole de natalidade pela mulher e que, paramuitas jovens, o corpo é uma fronteira de po-der, e a gravidez, um poder simbólico de múl-tiplos sentidos. Principal-mente entre as jovensmães de 15 a 19 anos, commaior probabilidade sedestacam as pobres e asque são classif icadascomo pretas ou pardas. Oque, no imaginário juve-nil feminino, representaseu corpo e a gravidez épouco explorado em ter-mos de políticas educaci-onais preventivas ou desocialização quanto às po-líticas de gênero, raça, ge-ração e sexualidade.

A maior probabi-l idade entre a metadedos nascidos v ivos demães entre 15 e 19 anosé a de quem vive em famí-lia sem a presença do paibiológico. A gravidez en-tre adolescentes tem umperfil social próprio: em1996, mais da metade dasadolescentes de 15 a 19 anos sem nenhumano de escolaridade já tinham se tornadomães; já entre aquelas que tinham de 9 a 11anos de escolaridade, a proporção baixa para4%. A taxa de fecundidade das jovens commais baixo rendimento (menos de um saláriomínimo) era de 128 por mil mulheres; entre asjovens com rendimentos mais altos (dez salá-rios mínimos ou mais), a taxa de fecundidadebaixa para 13 por mil.

Mesmo no feminismo, é ainda tema depouco investimento as culturas juvenis e, ne-las, as identidades femininas jovens. Isso serelaciona também ao fato de as mulheres jo-vens ainda não se constituírem em um coleti-vo feminista, sujeito social de pressão social.Em resumo, frisa-se a invisibilidade de um su-jeito coletivo que represente interesses e ne-cessidades das mulheres jovens.

O feminismoavançou muito

nos planos jurídico,político e formal,

em termos,principalmente,

de visibilidadepara violências

naturalizadas

5 Dados coletados no UBM-bo-letim pela Internet. Acessoem: 8 mar. 2002.

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Existe um vazio mesmo no plano de polí-ticas públicas por uma educação que colaboreem questionar a sexualidade tradicional, queinvista na auto-estima das mulheres jovens e naformação de uma massa crítica juvenil. Na mídia,a violência é gratificada e o reconhecimento so-cial da mulher passa pela coisificação do seucorpo, em especial, se jovem. Então, como pediràs jovens, em particular às que vivem em bairrospobres, afrodescendentes, dominadas por múl-tiplas violências, desempoderadas, sem perspec-tivas, que se recusem a serem tratadas como coi-sas, cachorras no pornofunk, quando seuscorpos são fronteiras, a última, a única de poder,o poder da sedução, ainda que seja um poderque a reduz a mais uma dominada, violentada?

A R T I G O

O universo feminino juvenil – suas re-ferências culturais, os sentidos de seus corpos– é silenciado por uma educação tradicionalou por valores de uma adultocracia bem in-tencionada, mas distante de tal universo. Ostempos são propícios para o desenvolvimentode um capital cultural político juvenil, com ori-entação feminista própria, para que as jovenssejam sujeitos políticos por seus direitos.

De fato, nestes tempos muito se falada reinvenção da esperança, com a eleiçãode um candidato das esquerdas. Mesmo queo que tenhamos, na prática, sejam políticassociais com alguma abertura e uma políticaeconômica alinhada ao grande capital e in-teresses das grandes potências e agências

Tênue fronteira

Na terceira linha do romance Cem anos desolidão, de Gabriel García Márquez, lê-se:“O mundo era tão recente, que muitas coi-sas não tinham nomes, e para indicá-las eranecessário apontar”. Esse era o Gênesis. Emoutro período, no Apocalipse, o que tomouseis gerações, a cidade de Macondo foi ata-cada por duas pragas: a da insônia e a daperda da memória (el olvido). As pragas fo-ram trazidas por uma mulher, Rebeca. Paraevitar a perda da memória, coisas e senti-mentos foram rotulados com seus respecti-vos nomes e significados, explicando paraque elas serviam. Foi quando se deram con-ta da possibilidade de que viesse ocorreroutro problema: um dia as coisas seriam lem-bradas pelas inscrições, pelas etiquetas, peloque havia sido escrito sobre elas, mas nãopelos seus sentidos, por seus objetivos, ouseja, pelo que elas serviam.

Foi um velho cigano de pele escura,Melquíades, quem salvou a cidade deMacondo das duas pragas, servindo umapoção mágica de suas alquimias que combi-nava ingredientes múltiplos. A porção fezcom que as pessoas retomassem suas lem-branças e, assim, se livrassem da perda dememória (recuerdos contra el olvido). Taltexto instituinte da identidade latino-ameri-cana flutua por entre linhas da minha dis-cussão mais pedestre e abreviada sobre atênue fronteira entre possibilidades e riscosda perspectiva de enquadrar o feminismo, oconhecimento e o ativismo do movimentonegro e dos movimentos juvenis por pro-gramas relacionados a políticas de identida-de. Ou como movimentos restritos a políti-cas de identidade, direitos humanos e porigualdade com um outro que não é muitoquestionado, mas tido como parâmetro.

O trecho pinçado do romance de GarcíaMárquez chama a atenção para a história epara o modo como os conceitos deveriam es-

tar ancorados na materialidade de tempos eespaços, considerando-se, portanto, relaçõessociais e jogos de poder. Então, cabe mesmoaos movimentos no aqui e agora por focos,direitos e igualdades. Mas a materialidade dasopressões, explorações e iniqüidades na distri-buição de bens e riquezas várias é também adinâmica da sua reprodução. Então, é limita-do ater-se a cotas, direitos e focos.

O texto sugere que significados, nomese conceitos devem não estar claramente liga-dos uns a outros e apontar para projetos eobjetivos, mas podem ser usados para taisfins, o que alerta para a importância de secultivar certa insônia. Especialmente em tem-pos em que bandeiras de movimentos pro-gressivos e da esquerda são apropriados eressignificados por diferentes agências, comoé o caso dos princípios de cidadania, socieda-de civil, direitos humanos e direitos das mu-lheres, dos negros e dos jovens, democracia,participação e associativismo e redes.

Tal vocabulário estabelece uma línguafranca que camufla significados, interesses efunções, que podem ser parte de um discur-so orientado para a defesa do mercado, me-tamorfoseando políticas em defesa de espe-cíficos grupos e temas – inclusões desse oudaquele grupo no mercado – em políticas deidentidade, em referências fragmentadas,boas para reivindicar direitos, leis e progra-mas, mas não necessariamente para trans-formações ou para a emergência de não-identidades (ou de identidades libertárias,coletivas, que possam chegar a endereçar-separa uma humanidade colorida e diversifica-da, sem assimetrias). E, se é de esquerda quese fala, como reivindica Hobsbawn (1996),em última análise o projeto é para a humani-dade, remodelada e referenciada no embateentre classes, o que não autoriza leituras re-ducionistas ou a perda de referências a múl-tiplas dinâmicas de subordinação.

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financiadoras internacionais, ou seja, conser-vadoras. É urgente investirmos na configura-ção de movimentos sociais que conjuguemradicalidade crítica com proposição, pressãoe acompanhamento de políticas, além de in-vestimento na crítica cultural e política des-tes tempos, o que pede atenção sobre o esta-do de distintas juventudes.

Sobre identidades

O escritor marxista L. A. Kauffman, em artigopublicado na Socialist Review, traça a históriadas políticas de identidade nos Estados Uni-dos, ressaltando como, no período das lutaspelos direitos civis nas décadas de 1950 e1960, tais políticas renovaram a esquerda,enfatizando-se, então, que identidades “querindividuais quer coletivas deveriam constituir-se em principio central para um ponto de vistae prática política radical” (Kauffman, 1999, p.67). Segundo ele, naquele momento sepolitizou uma série de temas desconsideradosnas formas clássicas de fazer política como asexualidade, as relações interpessoais, o esti-lo de vida e a cultura. O self, as experiênciassubjetivas e o quotidiano tornaram-se sítiosde contestação política.

Para alguns, tal enfoque apontou parauma síntese entre o pessoal e o polí-tico. A politização de temas antes vis-tos como externos à política teriaaberto a possibilidade para desafiosmais radicais a formas de dominaçãoe exclusão, tais como o racismo, osexismo, a homofobia. (p. 67)

Mas Kauffman sugere que, em tem-pos recentes, permutou-se sentidos de polí-ticas de identidade para o que ele chama de“antipolíticas de identidade”, afastando-se doterreno da contestação sobre estruturas e ins-tituições de poder, como o Estado, e ganhan-do terreno uma introspecção apolítica, ou seja,fora da contestação da coisa pública, o queresultaria, por outro lado, na difusão de ener-gias políticas. Tal tendência, em expansão nosEstados Unidos há algum tempo, seria apon-tada por vários autores como obstáculo aodesenvolvimento de uma frente política maisprogressista, um projeto de esquerda contra aglobalização neoliberal.

A crítica ao papel das instituições na-cionais e internacionais na reprodução dasdiscriminações e desigualdades seria deixa-da de lado no discurso sobre desigualdades

e por inclusão, tendendo-se, portanto, a umcerto culturalismo. Por outro lado, fixar iden-tidade no que se é, ou de onde se vem, aomesmo tempo em que enriquece o ser porestar, pode também ameaçar projetos, mu-danças, a ousadia na invenção de identidadese no questionamento da fina fronteira entreidentidade e estereótipo.6

No fim da década de 1970 e durante adécada de 1980, nos Estados Unidos e emoutros lugares, proliferaram progressivamen-te políticas de identidades difusas e tambémmais filtradas, ou seja, divorciadas da tradi-ção histórica de fazer política nomeando an-tagonismos institucionais, como, no caso daAmérica Latina, o Estado, instituições capita-listas e agências do capitalismo internacio-nal. Assim, perdeu-se gradativamente aquelejogo de cintura de circular entre a micro e amacropolítica.

Focalizar identidades tem sido defato eficaz e “empoderante” quandoas po l í t i ca s de ident idade sãoconstruídas como uma afirmação ati-va de experiências, dignidade e di-reitos de pessoas que historicamen-te foram marginalizadas e excluídas,como os povos de cor, os gays e aslésbicas e os chamados “deficientesfísicos”. Tomando por empréstimo aspalavras de Michelle Cliff, este tipode políticas envolveria não somente“exigir uma identidade que me foiroubada e sobre a qual eu fui ensi-nada a desprezar”, através da educa-ção e outros referentes, mas tambémnecessitaria um confronto direto comgrupos e instituições que por diver-sos meios suportaram ou toleraramtais formas de discriminação, ódio eexclusão. (Kauffman, 1999, p. 76)

Algo mais complexo e irônico ocorrehoje: muitas agências internacionais, porexemplo, apóiam programas contra discri-minações específicas e estimulam organiza-ções não-governamentais por políticas deidentidades, mas são agentes ativos na sus-tentação de um cenário de economia políti-co-cultural que colabora para a reproduçãodas exclusões sociais.

Note-se que a preocupação de Kauffmannão é jogar fora a perspectiva de políticas deidentidade, mas, ao contrário, estimular o de-safio “das sínteses radicais entre as políticasde identidades dos novos movimentos sociais

6 Pela minha experiência fe-minista nos grupos de refle-xão, no fim da década de1960 e no início da de 1970,menos que uma individualiza-ção autocontida, limitada aoeu, ao nós, às coisas de ami-gas, lembro-me da combina-ção de planos de luta e dequestionamentos. Discutíamossobre nós, sobre o privado, eestávamos no público, ou, àsvezes, nem podíamos tão pu-blicamente – contra a dita-dura militar.

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e a tradição de privilegiar a esfera públicacomo arena de pugna política, que vem dossocialistas e dos anteriores movimentos soci-ais, juntando também o transformar-se com omovimento de transformar o mundo” (p. 79).Reivindica-se, portanto, certa insônia contra adespolitização das políticas de identidade ousua retirada do campo da esquerda e sua forçacomo estilo para renová-la.

Quando cidadania, em vez de qualifi-car, passa a substituir o discurso de classe, ea recorrência à democracia tende a ocultar adeclaração de um projeto socialista, ou seja,um projeto de transformação social, camu-fla-se um roubo histórico, volta a praga daperda de memória. Por exemplo, não neces-sariamente hoje, na América Latina, todas ascorrentes do feminismo adotam o projeto deconfrontar o capitalismo em seu formato ne-oliberal. Ao contrário, cada vez mais se am-plia o campo da tendência que advoga, naexpressão de Emir Sader, “dar cara humanaao capitalismo”, contentando-se com umalinguagem quase neutra, sobre diversidade,diferenças e desigualdades.

O problema, entretanto, não é políti-co-ideológico, já que a história estaria indi-cando limites para tal tendência, consideran-do a escalada de turbulências no cenário daeconomia política e da cultura-aumento deviolências diversas, desemprego e pobreza,entre outras coisas. Além de um desencantoquase estrutural que desafia os bem-intenci-onados cursos sobre gênero para estimular aauto-estima, os programas de requalificação(bem, esses dão vale-transporte e merenda)e as políticas de cotas, quando não se questi-ona a continuidade do benefício e a qualida-de do serviço prestado.

Mais do que na década de 1960, a re-ferência hoje à política de identidades requerqualificações; saber o lugar da solidariedade;saber como se lida com a alteridade; combina-ção entre diversidade e assimetria de recursose de poder; a questão das alianças entre ossubalternos no resgate da nação, da sua ven-da; a importância da reconstrução das esquer-das; e a necessária análise dos cenários da eco-nomia política, considerando o aumento donúmero de pobres e ancorando-se, portanto,princípios em tempos e processos.

É quando o enfoque de raça não énecessariamente alternativo ao de classe, maso qualifica e o amplia. É quando a preocu-pação com gênero vai além dos direitos dasmulheres ou dos homossexuais e questiona

economicismos, chamando a atenção para pro-jetos que transitem entre mudanças nas rela-ções sociais no privado e no público. É quando,mais do que beneficiar os jovens com um pro-grama educacional específico, se discute a qua-lidade desses programas para o exercício da au-tonomia, da criatividade e se considera culturatambém como uma necessidade material.

Foi um cigano de pele escura que sal-vou Macondo, e foi uma velha mulher indíge-na – que, aliás, nem tem nome no romance deGarcía Márquez – que cuidou da jovem mu-lher branca, Rebeca, que, desmemoriada emsua insônia vazia, difundia a praga, el olvido. Ea velha indígena não falava com Rebeca, sobreseu passado, não falava sobre o que ela foi,mas contava a Rebeca sobre seu futuro, sobreo que ela poderia ser, reencantos e lhe davaprojetos pelos quais sonhar, nas poções má-gicas, identidade a construir.

Algumas correntes do feminismo, domovimento negro e entidades de grupos jo-vens hoje, por cooptação com poderes an-tes criticados, como agências do capitalis-mo transnacional,7 viriam a se distanciar dooriginal libertário que, na década de 1970,defendiam, investindo em utopias, critican-do tanto a esquerda como a direita por víci-os da modernidade, mas posicionando-secom as esquerdas na luta contra as ditadu-ras na América Latina por apostar no socia-lismo. Eram movimentos sociais críticos so-bre identidades fixas, alertando para aimportância, mas também para os limites,dos direitos no imediato.

Práticas de institucionalismos estariamafastando saberes que foram enriquecidos pormovimentos sociais, em seu perfil mais pro-missor de conhecimentos e práticas por en-gendramentos informados na radicalidade ouem buscas de identidades ou de não-identi-dades, transitando, combinando referênciasmúltiplas em materialidade na classe, na raça,no gênero e na geração, contribuindo, por-tanto, para juntos desenhar caminhos, proje-tos socialistas renovados, afins com essa ou-tra América, a América mestiça pela qual lutouJosé Martí. O que se estaria arriscando, emnome de um alinhamento instrumental, seriaum constituinte de uma identidade latino-americana por uma rede de movimentos soci-ais vários, de conhecimento prático de protes-to, de crítica a poderes.

Não faço críticas às ONGs. A ênfase dedistintas organizações em temas como cida-dania e a preocupação com o fortalecimento

A R T I G O

7 E ainda outros grupos que,por pragmatismo, optarampor negociar com poderes oufazer parte da maquinariadecisória em Estados neolibe-rais para melhor conseguirprogramas e leis para as mu-lheres, os negros e os jovens.

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* Mary GarciaCastro

Pesquisadora da

Organização das Nações

Unidas para Educação,

Ciência e Cultura no

Brasil (Unesco), membro

da diretoria da União

Brasileira de Mulheres,

pesquisadora associada

do Centro de Estudos

Migratórios (Cemi) da

Universidade Estadual

de Campinas (Unicamp)

e professora aposentada

da Universidade Federal

da Bahia (UFBA)

da sociedade civil, ao contrário, não faz comque sejam nítidas as diferenças das ONGs emrelação a movimentos sociais e movimentospopulares. São válidos ares novos dos tem-pos. Mas insisto na tal plasticidade de eti-quetas sujeitas a distintos conteúdos, práti-cas e instrumentalização por projetos políticosnão necessariamente libertários e radicais.

Por outro lado, sem tanta mídia e, emalguns casos, sem fundos de agências inter-nacionais, em práticas diversas e em sítiosdistintos, um feminismo estaria se insinu-ando no Brasil, gestado na relação com omovimento negro e as redes de entidadesjuvenis. É híbrido porque se combina comoutros movimentos, muitas vezes em parti-dos, sindicatos, em terreno bem demarca-do, à esquerda. Uma inter-relação ao mes-mo tempo movimentista e classista, isto é,com compromisso com a classe trabalhado-ra e a flexibilidade para criação de estratégi-as, formas de ação dos movimentos sociais,o que exc lu i re ferênc ias genér icas enaturalizadas a mulheres e homens, negrose brancos, jovens e velhos ou adultos.8

Tal orientação timidamente viria se afir-mando na região, em Organizações de BaseComunitária (OBC), ONGs de pequeno portecom orientação advocatícia, entidades quecombinam orientações alquímicas ou um sa-ber ativista enredado. Mas tal saber ativistamilitante é ainda uma promessa, ou seja, épreciso reconhecer e brigar pelos direitos dasidentidades e colaborar em projetos de soci-edades além das fronteiras identitárias, quan-do essas representam não a diversidade ouas diferenças criativas, mas desigualdadespautadas em assimetrias.

Não basta referir-se a múltiplas iden-tidades e desigualdades sociais e advogarsua alquimia para uma ação transformadorade mentalidades e ambiências. Cada identi-dade se realiza por sistemas de discrimina-ções e ideologias que lhe são apropriadas.Portanto, não basta reacessar o debate so-bre classes sociais, mas também não o subs-t i tu i r e enr iquecê- lo , cons iderando amultiplicidade do real.

Como afirma Telles, as desigualdadesraciais no Brasil não são “meramente o resul-tado da escravidão ou de grandes desigual-dades de classe, mas de uma contínua práti-ca social preconceituosa, de cunho racial. Anoção popular sobre raça é transmitida atra-vés de estereótipos da mídia, de piadas, dasredes sociais, do sistema educacional, das

práticas de consumo, dos negócios e pelaspolíticas do Estado” (2003, p. 306). Ao mes-mo tempo, é preciso fortalecer as agências eos sujeitos políticos pelos direitos de cadaidentidade, colaborar em redes entre movi-mentos sociais e difundir a pedagogia mili-tante contra todas as discriminações.

Como bem adverte Hobsbawn (1996),se de esquerda se trata, o projeto revolucio-nário é para a humanidade. Ora, tal projetoteria maior possibilidade se fossem conside-radas nas estratégias organizacionais das es-querdas necessidades simbólicas e materiaisde distintas identidades de classe. Por outrolado, os projetos reivindicatórios de identi-dades específicas, como das mulheres e dosafrodescendentes, assim como dos jovens edos mais velhos, de classe, pouco avançam seestão restritos a políticas de identidades. Nodebate sobre estratégias de esquerda contrao neoliberalismo, ressalta-se a importância dearticular redes e frentes. Deve-se insistir nosrecuerdos, nas lutas clássicas contra a socie-dade capitalista pautada em classes, combi-nando-as com a riqueza das linguagenslibertárias de diversas identidades, e ocuparespaços na política formal, brigar por direi-tos, justiça social, igualdades, sim, mas cui-dado com o olvido. E que a institucionalida-de não nos faça abdicar da radicalidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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8 Sobre a idéia de organizaçõescom orientação movimentista eclassista, ver Therborn (1995).

ALCANCE E LIMITES DAS POLÍTICAS DE IDENTIDADE

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22 DEMOCRACIA VIVA Nº 19

A R T I G OGiuseppe Bacoccoli*

Neste ano, a Petrobras – e, por conseguinte, a indústria brasileira do petróleo – está

comemorando 50 anos de existência, demonstrando mais uma vez todo o atraso

brasileiro nesse setor. De fato, o poço do coronel Drake, marco inicial da era indus-

trial no setor petrolífero, foi perfurado na Pensilvânia, Estados Unidos, em 1859.

Portanto, há 144 anos. Ainda no século XIX, o petróleo, como importante insumo

para iluminação, lubrificação e combustão, já contribuíra para a formação de pode-

rosos grupos industriais tanto nos Estados Unidos como na Europa. No início do

século XX, com o advento dos motores a explosão, tornara-se também o combustí-

vel automotivo que, durante as duas grandes guerras, provou ser o insumo estraté-

gico essencial. Os poderosos grupos do petróleo passaram a explorá-lo fora dos

seus países de origem, controlando a produção das mais importantes jazidas. Ainda

antes da Segunda Guerra Mundial, essas empresas já controlavam boa parte da pro-

dução do México, da Venezuela e do Oriente Médio.

50 anosde histórias e desafios

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O petróleo impulsionava o desenvolvimento daspotências industriais. Por isso, e apesar dacartelização das empresas, denominadas “as seteirmãs”, o preço do petróleo manteve-se baixodurante boa parte do século XIX, com valoreshistóricos da ordem de US$ 2 por barril (bbl).Diante dos interesses dessas empresas em ou-tros setores industriais, convinha garantir o su-primento de energia abundante e barata.

No Brasil, as primeiras notícias sobreexploração de petróleo remontam ao Segun-do Império. Em 1897, o paulista EugênioFerreira de Camargo perfurou, na localidadede Bofete, o primeiro poço brasileiro. Essepoço foi seco, assim como os muitos poçosperfurados por entidades públicas e os pou-cos perfurados por iniciativa privada, no Bra-sil, antes da descoberta de petróleo emLobato,1 na Bahia, em 1939 – 80 anos de-pois da descoberta do coronel Drake. Mesmoquando inexistiam no Brasil restrições paraas atividades das multinacionais do petróleo,estas se estabeleceram apenas para importare revender derivados a partir do petróleo pro-duzido e refinado no exterior. Considerandoinimaginável que um país com as dimensõese as características geológicas do Brasil nãotivesse petróleo em seu subsolo, esse desin-teresse das multinacionais foi logo interpre-tado como proposital. As multinacionais nãoteriam interesse em explorar o petróleo bra-sileiro, nem pretendiam dotar o Brasil de umparque de refino.

As grandes empresas petrolíferas teri-am enviado silenciosamente muitas expediçõesgeológicas ao Brasil para avaliar, entre outros,o potencial petrolífero da Bacia do Paraná. Osrelatórios dessas expedições, pelo que sabe-mos, não descartavam a possível ocorrênciade petróleo no subsolo brasileiro. Apenas in-formavam quanto às reais características geo-lógicas das bacias brasileiras, colocadas numgrau inferior de prioridade quando compara-das com outras existentes no mundo, comono México, na Venezuela ou no Oriente Mé-dio, onde seria possível produzir maiores quan-tidades de petróleo a menores custos. Obser-ve-se que, ante o reduzido preço entãopraticado no mercado internacional, muitasdas atuais jazidas brasileiras, até mesmo as daBacia de Campos, seriam antieconômicas. Nãose tratava, portanto, de descartar a presençade petróleo no Brasil, nem de desinteresseproposital das multinacionais, e sim de umamera escala de prioridade para quem dispu-nha de todas as bacias do mundo.

Saga de risco

A indústria do petróleo caracteriza-se comoatividade que requer conhecimento, tecnolo-gia, disponibilidade financeira e aceitação deriscos. Assim, afora as louváveis iniciativas dealguns empreendedores brasileiros, o Estadofoi sempre obrigado a intervir, em maior oumenor grau, nesse tipo de atividade. Entre asiniciativas do capital privado nacional, são dese lamentar aquelas conduzidas por empreen-dedores menos escrupulosos, que, em nomede pretenso nacionalismo, aproveitavam-se daboa fé das pessoas, vendendo ações de com-panhias petrolíferas de fachada. O elevadograu de desconhecimento das característicasda indústria também favorecia a proliferaçãode toda a sorte de charlatões e aventureiros.Quanto ao Estado, as atividades de explora-ção de petróleo foram conduzidas inicialmen-te pelo Serviço Geológico e Mineralógico doBrasil (SGMB), depois substituído pelo Depar-tamento Nacional da Produção Mineral(DNPM) e, após Lobato, pelo Conselho Nacio-nal do Petróleo (CNP). Todas essas entidadesrealizaram trabalhos de excelente qualidadetécnica, dentro da crônica limitação de recur-sos do Estado brasileiro.

A descoberta de Lobato – após um lon-go e memorável embate entre os empreende-dores baianos, que acreditavam na presençado petróleo nessa localidade, e os tecnocratasdo DNPM, que tinham boas razões técnicaspara duvidar – acabou comprovando finalmen-te a existência do petróleo no subsolo pátrio.Mesmo assim, considera-se bastante impro-vável que, na época, o petróleo de Lobato, as-sim como aquele que viria a ser descobertopelo CNP em outros campos do RecôncavoBaiano, pudesse vir a ser explorado economi-camente. Com exceção do Campo de ÁguaGrande, que, por suas significativas dimen-sões, poderia ter-se revestido de interesse eco-nômico, a ocorrência de Lobato e mesmo a dopoço de Candeias2 seriam acumulações me-nores, de interesse quase que acadêmico, des-providas de atratividade para a indústria.

Após a Segunda Guerra Mundial, osmilitares brasileiros, que regressavam do tea-tro europeu de operações, haviam se conven-cido da importância estratégica do petróleo.Pouco depois, no início da década de 1950,o país lutava para investir no estabelecimen-to das indústrias de base, favorecendo o sur-gimento de um parque industrial. Nessecontexto, nascia um dos maiores movimentos

1 No poço de Lobato (locali-zado nas cercanias de Salva-dor, Bahia, em terras que, noséculo XVI, pertenciam ao fa-zendeiro Vasco RodriguesLobato), é descoberto oficial-mente petróleo no Brasil, em1938. A partir da descoberta,é criado o Conselho Nacionaldo Petróleo, e as jazidas mi-nerais passam a ser conside-radas propriedade estatal.

2 Em Candeias, no RecôncavoBaiano, foi descoberto, em1941, o primeiro poço de ex-ploração comercial.

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de mobilização jamais registrado na nossahistória. O movimento O Petróleo é Nossoalastrou-se por todo o país, congregando atémesmo facções tidas como antagônicas. Es-querdistas, nacionalistas, estudantes, milita-res e intelectuais juntaram-se no movimentoque acabou resultando no estabelecimentodo monopólio estatal do petróleo, na criaçãoda Petrobras e na mobilização nacional parasuportar tais objetivos. Assim, em outubrode 1953, a Petrobras surgia da vontade de

um povo, convencido da re-levância da questão do pe-tróleo como determinantede seu futuro.

Parece difícil enten-der, a princípio, como umaempresa estatal, derivadade notável mobilização po-pular nacionalista, decidis-se buscar no exterior o res-ponsável pela condução dassuas atividades de explora-ção. De fato, a Petrobrascontratou o geólogo esta-dunidense Walter Link, ex-gerente de exploração daStandard Oil, para atuar àfrente do seu Departamen-to de Exploração, entre1954 e 1961. Essa questãopermanece polêmica, pois,mesmo naquela época, nãofaltavam geólogos brasilei-ros treinados dentro doCNP para assumir a posição.Por outro lado, a contrata-ção de Walter Link espelha-va a evidente preocupaçãodo governo com a sensível

questão da exploração e a responsabilidadede colocar a tarefa em mãos de pessoa indubi-tavelmente capacitada.

Walter Link remeteu todos os técnicosbrasileiros para cursos de especialização em uni-versidades estrangeiras e passou a conduzir asatividades de exploração quase que exclusiva-mente com um time de profissionais estrangei-ros, principalmente estadunidense. A língua ofi-cial no Departamento de Exploração da Petrobrasera o inglês e todos os procedimentos técnicos eadministrativos passaram a ser os mesmos utili-zados nas grandes empresas multinacionais. Em1961, Walter Link enviou uma série de docu-mentos para o presidente da Petrobras dandoconta dos resultados pouco animadores de seis

anos da avaliação das bacias sedimentares bra-sileiras. Esse conjunto de documentos, mais tar-de conhecido como Relatório Link, acabaria tor-nando-se motivo de uma acalorada discussão.De um lado, nacionalistas e esquerdistas afir-mando que Link, a serviço dos interesses multi-nacionais, procurava demonstrar mais uma vezque o Brasil não tinha petróleo. De outro, aque-les que acreditavam na lisura e competência dogeólogo estadunidense, encarando com prag-mático realismo suas conclusões.

Novamente, a questão da economicida-de do petróleo brasileiro, no contexto do mer-cado da época, merece ser lembrada para me-lhor situar e entender algumas conclusões doRelatório Link. De fato, Link conhecia as desco-bertas de petróleo já efetuadas na Bahia, assimcomo o potencial de outras bacias costeirascomo a de Sergipe-Alagoas. Mas, com o preçoa US$ 2/bbl, esse petróleo seria escasso, insufi-ciente para as necessidades nacionais e caro,com custo de extração superior ao do petróleoimportado. Quanto às grandes bacias interio-res, como a do Amazonas, do Parnaíba e doParaná, Link menciona problemas geológicos etecnológicos, na época quase intransponíveis.E afirmava nada poder dizer quanto às baciasmarítimas, ainda inexploradas, recomendandoà Petrobras dedicar-se ao refino, importando opetróleo barato, e, se o desejasse, explorar pe-tróleo no exterior, em áreas mais atrativas.

Walter Link e sua equipe deixaram opaís em 1961 debaixo de campanhas de pro-testo dos sindicatos, de alguns partidos polí-ticos e da imprensa. Ressalte-se, à luz da his-tória, que a questão fundamental não consistiaem afirmar ou negar a presença do petróleobrasileiro, e sim em avaliar a possibilidade devir a descobri-lo e produzi-lo em quantidadessuficientes e em condições economicamenteatrativas. O petróleo brasileiro, assim comoaquele de outras províncias hoje produtivas,como a do Mar do Norte, só se tornou econo-micamente atrativo a partir dos dois choquesdo petróleo, de 1973 e de 1979 (e até a atualprodução dessas áreas não sobreviveria à prá-tica de preços internacionais deprimidos, di-gamos, inferiores a US$ 10/bbl). Nesse con-texto, as conclusões do Relatório Linkemergem como corretas. Além do mais, WalterLink trouxe à Petrobras algumas boas práticas,hoje perpetuadas e ainda presentes em cadaum dos muitos êxitos registrados pela esta-tal, entre elas: a importância de se investir notreinamento e na capacitação dos profissio-nais, o decidido apoio à transferência e ao

O movimentoO Petróleo éNosso alastrou-sepor todo o país,congregando atémesmo facçõestidas comoantagônicas,e acabouresultandona criaçãoda Petrobras

A R T I G O

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desenvolvimento de tecnologia de ponta, a pa-dronização dos procedimentos técnico-adminis-trativos e a manutenção de um rigoroso sistemade conseqüências com base na competência eefetiva contribuição de cada empregado.

100% brasileira

Já sob a liderança de brasileiros, a Petrobraspassou a apresentar sucessivos recordes deprodução a partir de seus campos na Bahia eem Sergipe. A produção subiu, muito emboraninguém tenha perguntado a que custos. Emuma atmosfera pré-64, os sindicatos ganha-ram força e influíram na própria gestão daempresa. Como uma resposta à era Link, con-tratou-se a consultoria de técnicos soviéticos,especializados em exploração e produção. Mas,em que pese seu relevante conteúdo técnico,o relatório da missão russa pouco acrescen-tou ao potencial petrolífero das bacias brasi-leiras. Às vésperas dos acontecimentos demarço de 1964, no comício da Central do Bra-sil, os sindicatos petroleiros atuavam decisiva-mente para acelerar as mudanças.

A partir dos governos militares, a áreapetrolífera foi considerada estratégica e desegurança nacional, e a Petrobras passou a sercomandada com braço forte pelas Forças Ar-madas, que, após a intervenção nos sindica-tos e o afastamento dos empregados indese-jáveis, permaneceriam nos postos-chave dacompanhia cerca de 20 anos. A identidade daestatal com os governos dos militares atingiuseu auge quando o general Geisel fez de suasrealizações na Presidência da empresa o tram-polim para alcançar a Presidência da Repúbli-ca. Infelizmente, a partir dessa época, muitosdos segmentos da opinião pública nacional,que outrora sustentaram a Petrobras, passa-ram a vê-la como parte integrante de um go-verno de exceção e autoritário.

Em 1968, com o início das atividadesexploratórias no mar, a produção dos camposterrestres encontrava-se em franco declínio. Ospequenos campos logo descobertos no marpouco contribuíram para o aumento da pro-dução e, além do mais, não se revestiam deatratividade econômica. Mais uma vez os ge-rentes ordenavam: “Vamos colocar esses cam-pos em produção! Mesmo que antieconômi-cos, aprenderemos muito ao fazê-lo”.

No início da década de 1970, a depen-dência do petróleo importado era da ordemde 80%, e a Petrobras reduziu seus investi-mentos em exploração e produção, aumentou

seus investimentos no parque de refino e crioua Braspetro, subsidiária destinada à exploraçãoe produção de petróleo no exterior. Boa partedas recomendações do Relatório Link acaba-ram sendo cumpridas. Esse era o cenário rei-nante quando, em 1973, o primeiro choque dopetróleo elevou subitamente o preço do pro-duto no mercado internacional a US$ 10/bbl(valor histórico). A Petrobras e o Brasil parece-ram que pouco se importaram.

Em 1974, a Petrobras descobriu o Cam-po de Garoupa, o primeirona Bacia de Campos, mas,em que pesem as expecta-tivas muito favoráveis, aprodução dessa bacia só seiniciou alguns anos depois.Em 1979, o segundo e maisforte choque do petróleoelevou o preço do barril nomercado internacional paramais de US$ 40 (valor his-tórico; valor atual corrigi-do superior a US$ 60).

Esse segundo choqueteve conseqüências extre-mamente desastrosas paraa Petrobras e para o país,apesar de, paradoxalmente,também ter oferecido asmelhores oportunidades dedesenvolvimento do setorbrasileiro do petróleo. A Pe-trobras estava investindopouco em exploração e pro-dução e importava o petró-leo, antes barato, para refiná-lo em seu bem desenvolvidoparque industrial. Ou seja, aprópria empresa não acredi-tava na potencialidade do petróleo brasileiro,optando por um modelo de importação de umpetróleo mais barato que o aqui produzido. De-pois do segundo choque, no entanto, o Brasilnão tinha mais como pagar pelo valor da impor-tação do petróleo e começou a endividar-se parafazê-lo. O racionamento de combustíveis, mes-mo que fosse em fins de semana, realimentavaas críticas contra a Petrobras.

Em 1976, o então presidente Geisel au-torizou a Petrobras a celebrar os contratos derisco de exploração com as empresas multina-cionais. Apesar dos elevados preços do barrilno mercado internacional, as empresas multi-nacionais investiram relativamente pouco noBrasil e praticamente nada descobriram além

O segundo choquedo petróleo teve

conseqüênciasdesastrosas para

a Petrobras e parao país, apesar de

ter oferecidoas melhores

oportunidades dedesenvolvimento

do setor brasileirodo petróleo

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de um campo de gás na Bacia de Santos. Emmeio à crise, e justamente quando se pretendiaatrair tecnologia e capital de risco do exterior, ogoverno do estado de São Paulo, por intermé-dio do consórcio Paulipetro, resolveu investirnuma fracassada aventura na Bacia do Paraná.

Apesar das grandes descobertas feitaspela Braspetro no exterior, entre as quais semenciona a do Campo de Majinoon no Iraque,o Brasil não conseguiu desta feita aliviar suadependência externa com o petróleo produzi-do no exterior. Numa negociação pouco trans-parente, a Braspetro acabou perdendo seusdireitos até no campo iraquiano.

No fim da década de 1970, a Bacia deCampos entrou em produção com resultadosmuito promissores. Em 1980, a pedido do go-verno, a Petrobras decidiu investir na exploraçãoe na produção do petróleo no Brasil em níveisjamais vistos. O Plano Qüinqüenal de Explora-ção (1981-1985) previu triplicar os investimen-tos para atingir a meta de 500 mil bbl/dia em1985. Mesmo dentro da Petrobras, alguns ge-rentes opuseram-se a esse plano, consideradodemasiadamente grandioso e irrealizável. Àépoca, esses opositores desconheciam o realpotencial da Bacia de Campos, que, de fato,suportaria a execução de todo o plano e seutotal cumprimento. Em 1984/85, o Brasil nãosó atingiu a produção do 500 mil bbl/dia comotambém descobriu os primeiros campos gigan-tes de águas profundas, Marlim e Albacora. ABacia de Campos foi responsável pela contínuaelevação da produção até os atuais níveis e, embreve, essa bacia deverá ser responsável pelatão sonhada auto-suficiência. As elevações dosníveis de preços praticados no mercado inter-nacional vieram a favorecer decididamente essaprodução, principalmente nas águas profun-das da Bacia de Campos.

A Petrobras entrou numa nova era, pas-sando a privilegiar os investimentos do setorupstream, em exploração e produção, sobre osinvestimentos de downstream, de refino. Emdecorrência, outras bacias passaram também aresponder muito favoravelmente. A bacia ter-restre do Solimões já apresenta uma expressivaprodução de petróleo e de gás, e a bacia terres-tre Potiguar já atingiu produção superior aos100 mil bbl/dia. Após muitos indícios de petró-leo encontrados nos poços da Amazônia, des-de Nova Olinda, em 1955, o sonho de se des-cobrir petróleo nessa região acabou seconcretizando em 1986, com as descobertasno Rio Urucu, na Bacia do Solimões. Noupstream, a Petrobras soube colher seus atuais

melhores resultados com desenvolvimento decapacitações, uso de tecnologia de ponta e,sobretudo, com a coragem em aplicar signifi-cativos investimentos em áreas de alto risco.Mesmo agora, após a abertura do setor de pe-tróleo em 1997, a Petrobras continua sendo aempresa que registra o maior e mais significati-vo volume de descobertas nas áreas marítimasdas bacias de Campos, Santos e Espírito Santo,onde trabalha lado a lado com numerosas con-correntes multinacionais exatamente por suaaudácia e competência.

Novo tempo

Com o fim da intervenção militar e o advento dademocracia, a empresa passou a ser alvo demuitas críticas. Perdido o apoio outrora dadopelos nacionalistas e pela esquerda, a empresaficou à mercê dos crônicos inimigos doestadismo e do monopólio. A par disso, a Pe-trobras crescera muito constituindo uma gran-de empresa de petróleo, admirada e respeitadaem todo o mundo. Para alguns segmentos dasociedade, no entanto, a empresa passou a serconsiderada como mais uma multinacional dopetróleo, com os mesmos defeitos das demais.Tudo passou a ser alvo de críticas: desde o su-posto corporativismo dos seus empregados eseus altos salários, até seus procedimentos degestão, seus lucros, escassos ou excessivos, suasdemandas e seus procedimentos. As críticas maisveementes voltaram-se para o monopólio. Vistacomo fruto de uma “política retrógrada”, pas-sou a receber apelidos pejorativos como o depetrossauro e a ter sua competência constante-mente questionada, apesar dos muitos e óbvi-os bons resultados operacionais. Os inimigosdo monopólio acusam: “Se a Petrobras é com-petente, não precisa do monopólio; se é incom-petente, não o merece”.

No fim da década de 1990, quando anova Lei do Petróleo veio efetivamente acabarcom o monopólio da Petrobras, permitindo queoutras companhias, mesmo multinacionais,pudessem competir livremente, quase não hou-ve resistência nem um amplo debate da ques-tão. O monopólio da Petrobras terminou qua-se que silenciosamente, como acabou, tambémsilenciosamente, a ditadura militar. Nem osempregados, com todo o seu corporativismo,mobilizaram-se contra essa mudança, pois oque realmente temiam era a privatização.

Competente, madura, bem administra-da e respeitada, a Petrobras não se abateu. Aempresa já havia se capacitado e detinha todas

A R T I G O

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* GiuseppeBacoccoli

Pesquisador visitante da

Coordenação dos

Programas de Pós-

graduação em

Engenharia (Coppe) da

Universidade Federal do

Rio de Janeiro (UFRJ)

as ferramentas necessárias para competir numambiente de livre mercado, sem o monopólio.A plantinha que acabava de germinar em 1953transformara-se numa sólida árvore frondosa,capaz de resistir sozinha às intempéries.

Dizem que a Petrobras perdeu o mono-pólio de direito, mas não o perdeu de fato. Issonão deixa de ser verdade, considerando que émuito difícil competir no Brasil com uma em-presa que há meio século dedica-se de corpo ealma à questão do petróleo. Se a Petrobras ain-da não é a líder mundial da tecnologia, certa-mente é líder absoluta no conhecimento dosproblemas brasileiros do petróleo, desde aintrincada geologia das bacias sedimentares atéas características do seu petróleo, os anseiosdo mercado e às nuances ambientais deste ce-nário de dimensões continentais.

Caminho trilhado

Ao longo do seu percurso, a Petrobras caracte-rizou-se por três fases distintas de gestão: a damissão, a dos resultados físicos e a dos resulta-dos financeiros. Na primeira, que perdurou atéo início da década de 1970, a Petrobras traba-lhou simplesmente obedecendo à missão quelhe fora confiada, independentemente dos cus-tos e dos resultados. Embora muitos a criti-quem, essa primeira fase foi a que consolidouas raízes da companhia, o vestir a camisa dosseus empregados e a capacitação na cadeia pro-dutiva da indústria do petróleo. Na segundafase, que perdurou da década de 1970 até oinício da década de 1990, os gerentes da com-panhia passaram a acompanhar os seus resul-tados físicos. O importante era saber quantosmetros se perfuravam, quantos poços, quantosbarris se produziam, quantos barris se refina-vam etc. Pouca atenção era dada aos resulta-dos financeiros dessas operações. A empresafoi também criticada por isso, por não ser ren-tável e por não visar aos lucros. Finalmente, naterceira fase, foram criadas as Unidades de Ne-gócio, e a Petrobras passou a buscar resultadosfinanceiros, obtendo lucros semelhantes aosdas maiores companhias de petróleo. Tambémestá sendo criticada por isso, por se afastar damissão e buscar lucros.

A Petrobras também teve sempre de con-viver com o fato de ser “petro” e ser “bras” aomesmo tempo. Não raro, atuou simultaneamen-te como operadora e reguladora. Como “petro”,teria de ser uma empresa de petróleo competiti-va; como “bras”, teria de ser braço da nação bra-sileira na busca do bem comum e dos objetivos

sociais. Da mesma forma, os objetivos imediatose os estratégicos tinham de ser combinados numaharmonia nem sempre possível.

O Brasil é hoje um dos poucos paísesem desenvolvimento e o único do hemisfé-rio sul a dominar por completo o saber fazerpertinente a toda a cadeia produtiva da in-dústria do petróleo. Desde os primeiros le-vantamentos geológicos e geofísicos numabacia sedimentar até a perfuração e a pro-dução dos poços, o transporte e o refino dopetróleo e a distribuição final, dominamoshoje todo o conhecimento, sem precisar deajuda externa. Poucos países, mesmo entreos grandes produtores de petróleo, acumu-laram tantos conhecimentos.

Estatal ou privada, a Petrobras terá con-dições de continuar operando como uma gran-de empresa de petróleo. Analisando os cená-r ios, algumas companhias de petróleoconcluíram que o esgotamento do produto oua competição por fontes alternativas não re-presentam efetivas ameaças a médio prazo.Entre seus desafios futuros, menciona-se,como o mais grave, o grau de aceitação porparte da nação. Analogamente, podemos afir-mar que, independentemente de seus êxitosoperacionais, a maior ameaça à Petrobras resi-de num eventual recrudescimento da rejeiçãoda mesma sociedade que há 50 anos lutavanas ruas, mobilizada, para criá-la.

Agrava essa ameaça a insatisfação deseu cliente final, o consumidor. O petróleo quehoje jorra abundantemente do subsolo brasi-leiro não tem sido ainda utilizado em benefíciodireto do povo brasileiro. Apesar dos preçosbaixos praticados pela Petrobras na saída dasrefinarias, os preços finais dos derivados, atre-lados a valores internacionais em dólar e agra-vados pelos impostos, são muito elevados paraquem ganha salários irrisórios, com valores es-táveis em reais. Além disso, e em que pese aboa qualidade dos produtos produzidos pelaPetrobras, a total desregulamentação do setore uma fiscalização muito deficiente favorecemas freqüentes e criminosas adulterações.

Enquanto deveríamos festejar a aproxi-mação da tão sonhada auto-suficiência, algunsprodutos básicos, como o gás de cozinha, o óleodiesel e a própria gasolina, chegam ao mercadofreqüentemente adulterados e sempre a preçosinacessíveis para a maioria da população. Este éo principal desafio: fazer com que o “petro” e o“bras” se reencontrem naquelas premissas quemobilizaram a nação no início da década de1950, exatamente há meio século.

50 ANOS DE HISTÓRIAS E DESAFIOS

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N A C I O

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N A C I O N A LAlex Jobim Farias*, Pedro Quaresma** e Júlio Miragaya***

A lógica perversado acordo com o FMI

ALEXANDRE RAJÃO

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N A LEm dezembro de 2003, encerrou-se o acordoentre o governo brasileiro e o Fundo Monetá-rio Internacional (FMI), firmado, em novem-bro de 1998, pelo governo de FernandoHenrique Cardoso (FHC) e por ele renovadoem 2001 e 2002. O atual governo avalia aoportunidade de assinar um acordo mais umavez. Os defensores da assinatura de um novoacordo argumentam que não há outro cami-nho, pois, sem o aval do FMI, os investidoresnão teriam segurança em investir ou manterseus investimentos no Brasil. Ademais, dizem,o Brasil precisaria do dinheiro do FMI para fa-zer face aos seus compromissos externos em2004. Dessa forma, fica claro que a renovaçãodo acordo não tem como objetivo melhorar odesempenho da economia nacional e, conse-qüentemente, as condições de vida da popu-lação brasileira, mas sim atrair a confiança do“mercado”. Mas o país não tem feito outracoisa, nos últimos anos, além de agradar omercado financeiro em detrimento da econo-mia produtiva e dos trabalhadores.

O acordo com o FMI não é somente dis-ponibilização de dinheiro, mas o compromissodo governo de implementar políticas que aten-dam aos interesses dos investidores, mesmoque em detrimento dos interesses do país. Háanos, a economia brasileira vem apresentandodesempenho sofrível em conseqüência da op-ção de nos subjugarmos às chantagens do“mercado”, em busca de uma suposta estabili-dade. Mas que estabilidade é essa, com a mai-or taxa de desemprego de nossa história, coma queda contínua da renda dos trabalhadorese com o atual índice de violência urbana?

É preciso fugir dessa lógica perversa.No período de janeiro a agosto de 2003, nãoobstante o superávit primário do setor públi-co ter sido de quase 5% do Produto InternoBruto (PIB), o déficit nominal chegou a 5,3%,pois os gastos com juros da dívida pública atin-giram nada menos que R$ 102,4 bilhões, 68%a mais que os gastos com juros no mesmo

período de 2002. Tal valor corresponde a10,2% do PIB ou cerca de 30% da receita fiscaldas três esferas de governo.

Conseqüências

A assinatura de acordos com o FMI e, conse-qüentemente, a adoção do receituário daspolíticas econômicas recomendadas pelo fun-do têm invariavelmente resultado no aprofun-damento da recessão e na inviabilização dosprojetos nacionais soberanos de desenvolvi-mento. A crise social sem precedentes vividarecentemente pela Argentina é o caso maisemblemático do fracasso das políticas econô-micas liberais nos países em desenvolvimen-to. Desde 1998, o Brasil tem recorrentementeassinado acordos com o FMI e, como resulta-do das políticas econômicas aplicadas ao país,se encontra desde então com a economia pra-ticamente estagnada.

As políticas econômicas dos acordoscom o FMI têm se caracterizado pela combina-ção das seguintes medidas: (a) o ajuste nascontas públicas, com a fixação de metas eleva-das de superávit primário (diferença entre re-ceitas e despesas, excetuando as despesas fi-nanceiras); (b) controle da inflação a partir doprograma de metas inflacionárias (utilizaçãodas taxas de juros como mecanismo de garan-tir o alcance de metas de inflação fixadas eanunciadas pelo Banco Central).

Ambas as medidas têm contribuído parao grave quadro recessivo da economia brasilei-ra. O superávit primário privilegia as despesasfinanceiras em detrimento dos investimentospúblicos e demais despesas do orçamento pú-blico, inviabilizando o investimento públiconecessário para o projeto nacional de desen-volvimento. As metas inflacionárias obrigam ogoverno a elevar as taxas de juros da dívidapública, aumentando as despesas financeirasdo governo e comprometendo o crédito, o con-sumo e o investimento privado.

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Os mais recentes resultados apresen-tados pela economia brasileira vêm compro-var a temeridade de se renovar o acordo como FMI. Como resultado da retração dos in-vestimentos acentuada pela política mone-tária, vários indicadores econômicos relati-vos à atividade econômica têm apresentadouma piora sensível em 2003 em relação a2002. Em primeiro lugar, temos os índicesde desemprego. Em agosto, a taxa de desem-prego do Instituto Brasileiro de Geografia eEstatística (IBGE) atingiu 13% contra 11,7%em agosto de 2002. De forma semelhante,comparando o período janeiro–julho, o ren-dimento médio do trabalho caiu 11%, e aprodução da indústria de transformaçãoapresentou uma queda de 0,5% em 2003em relação a 2002. Esses resultados podemser atribuídos claramente à política mone-tária, dado que tanto a produção industrialcomo os índices de desemprego ensaiavamuma recuperação no primeiro trimestre de2003, tendência claramente revertida a par-tir do mês de maio, quando, com o intuitode conferir “credibilidade” ao mercado fi-nanceiro e ao programa de metas inflacio-nárias, o Banco Central passou a diminuiras taxas de juros em um ritmo muito inferi-or ao da queda das taxas de inflação. Alémdisso, a maior queda da produção industri-al se deu no setor de bens de capital (má-quinas e equipamentos), confirmando as-sim a crônica paralisação dos investimentos.

O superávit primário é justificado peloFMI como uma forma de reduzir a relação en-tre a dívida pública e o PIB. Ocorre que nemisso está sendo alcançado, apesar dos eleva-dos superávits primários obtidos pelo setorpúblico. Em agosto, a dívida líquida do setorpúblico atingiu R$ 891,335 bilhões, ou seja,57,7% do PIB, contra 57,2% em julho e 56,5%em dezembro de 2002. No entanto, o superá-vit primário, que representa a parcela das re-ceitas do setor público não convertida em ser-viços públicos para a população, acumulou,entre janeiro e agosto, R$ 49,3 bilhões (4,91%do PIB), comparativamente a R$ 37,4 bilhões(4,41% do PIB) em igual período de 2002.

Ao contrário das despesas orçamentá-rias, as despesas financeiras não são limitadaspelos acordos com o FMI. Assim, entre janeiroe agosto de 2003, o setor público efetuou opagamento de R$ 102,4 bilhões (10,2% doPIB) em juros nominais e de R$ 155,7 bilhões(10,53% do PIB) nos 12 meses desde que oacordo foi assinado. Esse desembolso é,

portanto, muito superior ao do mesmo pe-ríodo de 2002, quando o pagamento efe-tuado em juros nominais foi de R$ 60,7 bi-lhões (7,17% do PIB). Desse modo, cabedestacar que, ao contrário do que é alarde-ado, o setor público apresenta um déficitcrescente no resultado entre as receitas eas despesas. O déficit nominal, que no pe-ríodo entre janeiro e agosto de 2002 era de2,75% do PIB, alcançou 5,29% no mesmoperíodo em 2003. Considerando os 12 me-ses em que o acordo está em vigor, o déficitacumulado foi de 5,74%.

Dessa forma, o orçamento público éo maior prejudicado pelo acordo com o FMI.Em primeiro lugar, isso ocorre porque os re-cursos públicos estão sendo destinados pre-ferencialmente para o pagamento dos jurosao mercado financeiro. Somando-se a isso,temos o contingenciamento de recursos efe-tuado pelo governo federal. Assim como ha-via sido feito em fevereiro de 2003, por oca-sião da elevação da meta de superávit pri-mário acordada com o FMI, o Ministério doPlanejamento, Orçamento e Gestão anun-ciou um novo corte de recursos dos diferen-tes ministérios, por causa da queda da arre-cadação, nos meses de julho e agosto, so-bretudo do Imposto sobre Produtos Indus-trializados (IPI), imposto de importação eContribuição Provisória sobre MovimentaçãoFinanceira (CPMF), impostos extremamentecorrelacionados ao nível da atividade eco-nômica. Assim, o total das despesas de cus-teio e investimento do governo federal, queera de R$ 62 bilhões na Lei Orçamentáriaaprovada para 2003, passou a R$ 48,3 bi-lhões, após as revisões ao longo do ano.

Como conseqüência das políticas fis-cais e monetárias, temos observado, portan-to, uma clara transferência de renda para osetor financeiro da economia, em detrimen-to do que havia sido a tônica do debate po-lítico-eleitoral de 2002, em que a popula-ção colocou claramente o desejo de mudançae de reorientação da política econômica dosetor financeiro para o setor produtivo, ge-rador de empregos e renda. Tomando comoexemplo os lucros divulgados pelos princi-pais bancos do país no primeiro semestre de2003, podemos compreender a gravidade dasituação. Segundo os balanços dessas insti-tuições, os lucros do setor bancário atingi-ram R$ 6,1 bilhões, ou seja, apresentaramum crescimento de 11,8% em relação aomesmo período. Somente o Itaú apresentou

N A C I O N A L

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um lucro de R$ 1,49 bilhão (crescimento de42,24% em relação a 2002), enquanto oBradesco teve um lucro de R$ 1,03 bilhão(crescimento de 13,6%). Somados os lucrosdesses dois bancos apenas, temos a quantiade R$ 2,52 bilhões, um valor superior ao doorçamento público destinado à infra-estru-tura no mesmo período (R$ 2,32 bilhões).

Finalmente, a renovação do acordo como FMI só faria algum sentido diante das neces-sidades no balanço de pagamentos. No en-tanto, a estagnação da economia tem contri-buído claramente para a melhora nas contasexternas e a obtenção de saldos recordes nabalança comercial, a ponto de o próprio presi-dente Lula ter admitido, em pronunciamentoa investidores financeiros em Nova York (an-tes de ser anunciada a celebração de um novoacordo), que o país estava em condições dedispensar os recursos do FMI. Cabe lembrarque os recursos do fundo não têm se traduzi-do em benefícios para o país, mas na garantiade que os ganhos financeiros da especulaçãoglobal com a dívida pública (em reais) possamser convertidos em dólares e remetidos ao ex-terior (em dólares).

Espaço para avanços

O governo argumenta que exigirá melhorescondições no acordo, ou seja, que negociaráalguns avanços, como a não-classificação dosinvestimentos das empresas estatais comogastos do governo (uma caracterização real-mente absurda) e também a inclusão de al-gumas cláusulas sociais. Trata-se de uma típi-ca tentativa de “dourar a pílula”. Mas, se oFMI aceitasse essas condições, estaria tudoresolvido? Obviamente não, pois o essencialpara o FMI está sendo mantido: as famosascondicionalidades. As autoridades governa-mentais, quando eram oposição, faziam umacaracterização crítica do papel do FMI nomundo atual. Teria o Fundo mudado? Veja-mos a descrição desse processo.

A decisão de se criar o FMI – junta-mente com o Banco Mundial e a Organiza-ção Internacional do Comércio, posterior-mente Acordo Geral de Tarifas e Comércio(Gatt) e, recentemente, Organização Mun-dial do Comércio (OMC) – foi tomada em1944 na famosa Conferência de BrettonWoods, nos Estados Unidos, tendo sido im-plantadas em 1947 as duas primeiras des-sas três instituições. A função básica do FMIera zelar pela manutenção da estabilidade das

taxas de câmbio, socorrer países com dese-quilíbrios no balanço de pagamentos e ga-rantir a provisão de liquidez, quando neces-sário. Mas, passado meio século, o quadromundial sofreu profundas alterações. O ce-nário atual é o de persistência da crise glo-bal do sistema capitalista, que se arrastadesde a década de 1970. Ela se caracterizapela financeirização crescente das relaçõeseconômicas e pelo estrangulamento da eco-nomia real; tem como eixo a ofensiva do ca-pital financeiro e das corporações contra osdireitos sociais e trabalhistas dos povos detodo o mundo, com o objetivo de reduzirainda mais o custo do fator trabalho. Nestecenário, os Estados Unidos assumem o pa-pel de responsáveis por impor essa nova or-dem, pisoteando o direito internacional e asoberania das nações e ameaçando o siste-ma multilateral de governança global, já re-cheado de imperfeições.

E qual tem sido o papel do FMI nestecontexto? Na prática, ele deixou de ser umorganismo multilateral voltado para a defe-sa da paridade cambial, para o socorro aospaíses com graves desequilíbrios externos epara a questão da liquidez internacional etornou-se uma agência do capital financei-ro, dos credores internacionais e do Tesouroestadunidense. Dedica-se a impor programasde ajuste estrutural aos países periféricosque com ele fazem acordo e a recomendarpolíticas macroeconômicas de inspiração in-variavelmente recessiva, direcionadas para oatendimento dos interesses estritamentecorporativos dos bancos e trustes e absolu-tamente incompatíveis com as necessidadesde crescimento econômico, geração de em-prego e distribuição de renda.

Alternativas

Um país como o Brasil, dada a gravidade dasquestões sociais que precisa resolver, neces-sita de um projeto nacional de desenvolvi-mento com políticas alternativas às que vêmsendo propostas pelo FMI. O projeto sobe-rano de desenvolvimento, em sintonia coma política externa de afirmação desempenha-da pelo governo Lula, exige que as políticaseconômicas (fiscal, monetária e comercial)sejam formuladas autonomamente, sem a in-gerência do FMI.

Nesse sentido, só devem ser conside-radas aceitáveis as metas que sejam defini-das com a sociedade brasileira, almejando o

A LÓGICA PERVERSA DO ACORDO COM O FMI

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projeto nacional de desenvolvimento. Metasque visam ao superávit primário ou às taxasde inflação isoladamente não contribuempara aquele projeto, antes o tornam inviável.Na verdade, como pudemos observar ao lon-go dos últimos anos, a estabilidade de pre-ços não tem se concretizado no desenvolvi-mento, ao contrário do que prometiamaqueles que defendem o FMI.

Torna-se, assim, cada vez mais eviden-te: a retomada dos investimentos é de fun-damental importância para dar estabilidadeao desenvolvimento. E essa retomada sóocorrerá a partir de uma política pública vol-tada para esse fim. Não há crescimento eco-nômico sem reativação da demanda e seminvestimento produtivo. E não há investi-mento produtivo sem ampliação do crédito.O crédito é o instrumento econômico quepermite a antecipação dos recursos monetá-rios, possibilitando a ocorrência das transa-ções necessárias para que se possa realizar aprodução e o consumo. Em um país com al-tas taxas de desemprego e com a produçãoestagnada, a acessibilidade ao crédito favo-rece a trajetória para o funcionamento ple-no da economia, a ampliação da riqueza e odesenvolvimento social e econômico. Umpaís como o Brasil não pode manter umarelação crédito produtivo/PIB tão irrisória(27% contra 70% no Chile, 110% nos Esta-dos Unidos e 160% na Alemanha). A reto-mada do desenvolvimento passa, ainda, pe-los investimentos em infra-estrutura, empre-gadores de força de trabalho e garantidoresde um melhor ambiente econômico para aampliação dos investimentos.

Além disso, a priorização do financia-mento interno se constitui num importanteinstrumento de promoção da soberania eco-nômica. A história recente do Brasil nos per-mite concluir que a vulnerabilidade externadecorrente da centralidade da necessidade dedivisas tem figurado ao longo dos anos comoum dos principais obstáculos ao livre desen-volvimento do país. Se o país deseja se empe-nhar em um processo soberano de desenvol-vimento, é necessário estimular as transaçõesem moeda nacional, que não pressionem obalanço de pagamentos, dispondo das divi-sas (dólares) para adquirir aquilo que for es-tritamente necessário para o país, por exem-plo, os produtos cuja tecnologia ainda nãosomos capazes de produzir. E um processo dedesenvolvimento autônomo ainda deve in-cluir, obviamente, o estímulo a uma ciência e

a uma tecnologia dominadas e desenvolvi-das internamente, reduzindo, desse modo,nossa dependência externa.

Portanto, é necessária a ação do Ban-co Central para que se amplie o crédito, oque passa pela confrontação dos interessesdaqueles que lucram com a dívida pública.Com a ampliação do crédito, a política mone-tária poderia, assim, desempenhar sua ver-dadeira função: garantir a circulação da pro-dução e da renda, e não sua acumulação econcentração, como as elevadas taxas de ju-ros têm propiciado. Diante do descalabro dasfinanças públicas, é indispensável discutir afixação de um teto para o gasto orçamentá-rio com as dívidas financeiras.

Outra forma de política econômica é ocontrole de capitais. Essa medida, que vemsendo adotada em alguns países, sendo ocaso mais recente o da Argentina, pode fun-cionar de diversas maneiras e tem um papelestratégico em uma economia global em queocorre o predomínio hegemônico e políticode uma divisa sobre todas as outras. Funcio-na, ainda, no sentido de conter a volatilidadecambial e os seus efeitos nocivos sobre a eco-nomia. Também nesse caso, é indispensáveldiscutir a fixação de um percentual máximodas exportações de capital para o serviço dadívida externa ou, ainda mais coerentemen-te, um percentual máximo do saldo da balan-ça comercial para aquele serviço, induzindoos países credores a que diminuam signifi-cativamente suas barreiras comerciais.

Finalmente, cabe destacar que a não-re-novação do acordo está profundamente asso-ciada à reorientação da política econômica e ànecessidade de ampliação do debate franco edemocrático de políticas alternativas, que vi-sem à construção de um projeto soberano dedesenvolvimento, capaz de conduzir à resolu-ção dos graves problemas sociais do país e pre-servar a sintonia com os compromissos presen-tes no debate político que elegeu o presidenteLula. Não se trata de deixar de renovar com oFMI. O que não faz sentido é continuar execu-tando as políticas contidas em seu receituário,como a manutenção das elevadas taxas de su-perávit primário, ao longo do mandato do pre-sidente Lula.

Condições políticas

A atual política externa brasileira tem sidoconsiderada o ponto alto do governo Lulaaté aqui. Posicionou-se contrária à guerra

N A C I O N A L

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do Iraque e à política unilateral estaduni-dense de combate ao terror; tem tentadocolocar a justiça social e o combate à fome eà miséria como temas prioritários em diver-sos foros internacionais (por exemplo, oWorld Economic Forum e a reunião do G-8,em Evian, na França); tem articulado os paí-ses em desenvolvimento no sentido de con-trabalançar o poder dos países mais ricos,como no caso do G-3 (Brasil, África do Sul eÍndia) e o G-22 (grupo de países em desen-volvimento interessados no avanço substan-cial das negociações em agricultura na ro-dada de Doha da OMC); tem procuradorevitalizar a integração latino-americana,engajando recursos do Banco Nacional deDesenvo lv imento Econômico e Soc ia l(BNDES) na integração física com países fron-teiriços, contrariando os Estados Unidos;tem tentado negociar uma Área de Livre Co-mércio das Américas (Alca) não-abrangen-te, com o intuito de evitar a negociação detemas aos quais o Brasil é sensível; faz daaproximação de países africanos uma desuas prioridades.

A visita a Cuba, justamente no regres-so de uma viagem aos Estados Unidos, semtocar publicamente na questão da violação dosdireitos humanos pelo regime cubano, serviupara a mídia carimbar, com o rótulo de inde-pendente, a política externa brasileira e real-çar a sua diferença em relação à política exter-na do governo FHC.1 Até agora, de fato, apolítica externa do atual governo tem feito jus-tiça ao discurso anti-hegemônico do presiden-te Lula no dia de sua posse: “A democratiza-ção das relações internacionais semhegemonias de qualquer espécie é tão impor-tante para o futuro da humanidade quanto odesenvolvimento e a consolidação da demo-cracia no interior de cada estado”.2

Quando se passa à comparação dasrespectivas políticas econômicas domésticas,no entanto, fica muito mais difícil, se não im-possível, identificar qualquer sinal de ruptu-ra substantiva entre os governos Lula e FHC.Mais do que isso, em certos aspectos, a po-lítica econômica do governo Lula tem sidomais ortodoxa do que a de FHC, como mos-tra a adoção da meta de superávit primáriode 4,25% do PIB. A renovação do acordo como FMI seria decorrência da manutenção domodelo econômico herdado do governo FHC,já que essa instituição tem sido o seu princi-pal avalista. Levando-se em conta que o FMIé um dos principais agentes da hegemonia

estadunidense no plano econômico, é fla-grante a contradição entre a orientação geralanti-hegemônica da política externa do go-verno Lula e a renovação de um acordo com oFMI. Exige-se que a política econômica acom-panhe a sua política externa quanto ao cará-ter de inovação que exibe.

Votos não faltaram ao presidente Lulapara tanto. Consagrado pela segunda maiorvotação obtida em regimes presidencialistas,não caberiam qualificações no que tange aoclamor por mudanças que se expressou nasurnas. Tais qualificações, contudo, não so-mente foram feitas, como também foramabraçadas por integrantes do governo quechegaram a afirmar que seria estelionato elei-toral se o governo Lula não adotasse ocontinuísmo na política econômica. Um dosprincipais argumentos nesse sentido é de quea coalizão de esquerda que elegeu Lula nãoteria obtido assentos suficientes no Congres-so para consolidar a ruptura. Bobagem. Oatual governo precisou cooptar setores dadireita justamente para implementar as re-formas constitucionais pregadas pelo “mer-cado”, e é essa agenda que esgarça e so-brecarrega a articulação política de susten-tação do governo, levando à reedição devários vícios do atual sistema político brasi-leiro, como o troca-troca de partidos e a com-pra de votos. Constituições devem ser está-veis por definição, e a quantidade de votosnecessária para a sua modificação não podeser considerada como precondição políticade governabilidade.

Não é só da esquerda que se ouvemcríticas à ortodoxia da política econômica dogoverno Lula. O empresariado nacionalsoma-se ao coro generalizado da sociedadebrasileira por uma redução mais rápida dastaxas de juros. Não é por falta de apoio do-méstico, portanto, que a mudança de mode-lo econômico não foi implementada. O mo-delo econômico não foi mudado porque oatual governo optou pela sua manutenção,respondendo à crise de endividamento quevive o Brasil com a surrada política de con-quista de confiança dos mercados financei-ros internacionais. Em suma, ao ganhar aseleições, a cúpula petista substituiu a coali-zão de alguns setores do empresariado comtrabalhadores, que levou Lula à vitória, porum pacto com a banca internacional,3 polí-ticas ortodoxas e reformas em troca do fimda especulação que elevou a cotação do dó-lar na virada do ano.

1 Por outro lado, o governoLula foi acusado de omissãopor não tocar publicamentena questão de violação dosdireitos humanos em Cuba.

2 Grifo nosso. A transcrição dodiscurso de posse do presi-dente Lula pode ser encontra-da no portal do Ministério dasRelações Exteriores:<www.mre.gov.br>.

3 O v ice-pres idente JoséAlencar é um símbolo dessacoalizão ou, pelo menos, desua tentativa; os ministros LuizFernando Furlan e RobertoRodrigues também o são.

A LÓGICA PERVERSA DO ACORDO COM O FMI

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Já foi dito que a história não se repetea não ser como farsa. Infelizmente, esse nãoparece ser o caso brasileiro, que, ao que tudoindica, segue os passos da Argentina pré-criseao não perceber que a política ortodoxa aca-ba por minar a política de conquista de con-fiança da qual é fruto: adota-se a austeridadefiscal para que se poupem recursos para opagamento da dívida pública, que leva àrecessão econômica ao inibir os gastos e in-vestimentos públicos, a qual, por sua vez, levaà diminuição da arrecadação fiscal, a qual levao governo em questão a praticar mais auste-ridade, que provoca mais recessão... É o cír-culo vicioso recessivo ortodoxo experimenta-do pela Argentina recentemente. Não hácomo satisfazer o mercado quando se adotaessa política, porque ela não leva à estabili-zação da relação dívida pública/PIB.

Hoje, a despeito do esforço de integra-ção sul-americana empreendido pelo governoLula, parece haver uma grande distância entreos governos Lula e Kirchner. Isso prejudica aArgentina, porque o FMI passou a exigir dessaque seguisse o exemplo de austeridade brasi-leiro. Ainda assim, Kirchner conseguiu negoci-ar um acordo com o FMI em que foi estabeleci-do um superávit primário de 3% do PIB em

2004 e nada mais de concreto para os anosposteriores (os credores e o FMI queriam umameta mais ambiciosa para garantir o pagamen-to da dívida a ser reestruturada). Além disso,também resistiu a pressões do FMI para esta-belecer um cronograma de aumento das tarifasde serviços privatizados. Kirchner está certo, nãoquer sacrificar, em prol do pagamento da dívi-da argentina, o incipiente crescimento obtidoe, visivelmente, descarta o modelo de conquis-ta de confiança com a recusa de aumento dastarifas de serviços privatizados.

A crise do neoliberalismo na AméricaLatina enseja a guinada do governo Lula nadireção das verdadeiras mudanças. Há apoiodoméstico para tanto; as conseqüências doneoliberalismo já estão bem demonstradaspelas crises brasileira e argentina; a autorida-de do FMI, principal instrumento da consoli-dação de políticas neoliberais, viu-se abaladapela sua inépcia em solucionar a sucessão decrises internacionais iniciadas na Ásia em1997, e essas mesmas crises também abala-ram a crença dogmática na globalização comopanacéia para o desenvolvimento econômi-co. Só falta a esse governo entender melhoro momento histórico em que vivemos e viraro leme na direção certa.

De olho nas multilaterais

A Rede Brasil sobre Instituições FinanceirasMultilaterais4 é uma rede de organizaçõesda sociedade civil, sem fins lucrativos, não-partidária e com finalidade pública. Funda-da em 1995, reúne atualmente 64 organi-zações5 filiadas com o objetivo comum deacompanhar e intervir em questões relati-vas às ações de instituições financeiras mul-tilaterais (IFMs) no Brasil, como o GrupoBanco Mundial, o Banco Interamericano deDesenvolvimento (BID) e o Fundo Monetá-rio Internacional (FMI).

O conjunto de organizações filiadasinclui movimentos sociais, entidades sindi-cais, institutos de pesquisa e assessoria, as-sociações profissionais e ONGs de todas asregiões do país, com atuação em âmbitolocal, regional e nacional. Essas organiza-ções trabalham em diversos temas e seto-res das políticas públicas, como educação,saúde, trabalho, seguridade social, infân-cia, infra-estrutura, meio ambiente, agri-cultura, reforma agrária, urbanização, pla-nejamento econômico, entre outros.

Os principais objetivos da Rede Brasil são:• manter um espaço coletivo de socializaçãode informações e de discussão sistemáticasobre as políticas e os projetos desenvolvidospelo governo brasileiro com recursos finan-ceiros e/ou aporte técnico de IFMs;• promover a articulação de estratégias deação comuns perante o governo brasileiro –Executivo, Legislativo e Judiciário – e as IFMs;• contribuir para a democratização dos pro-cessos de formulação das políticas públicasno Brasil financiadas por IFMs, por meio deampla participação da sociedade civil e doCongresso Nacional;• exercer influência tendo por fim a demo-cratização, participação e transparência dosprocessos relativos à elaboração e à imple-mentação das políticas das IFMs, bem comoà transformação da própria estrutura depoder dessas instituições.

Mais informações:[email protected]

*Alex JobimFarias

Federação de Órgãos

para Assistência Social

e Educacional (Fase)

**PedroQuaresma

Instituto Políticas

Alternativas para

o Cone Sul (Pacs)

***Júlio Miragaya

Conselho Regional de

Economia do Rio de

Janeiro (Corecon)

4 A atual coordenação nacio-nal da Rede Brasil é formadapor: Alex Jobim Farias, daFederação de Órgãos paraAssistência Social e Educacio-nal (Fase); Guilherme Carvalho,do Fórum da Amazônia Ori-ental (Faor); Hélio Meca, doMovimento dos At ingidospor Barragens (MAB); IaraPietricovsky, do Instituto deEstudos Soc ioeconômicos(Inesc); Júlio Miragaya, doConselho Regional de Eco-n omia do R io de Jane i ro(Corecon); Magnólia Said, doCentro de Pesquisa e Assesso-ria (Esplar); Mário Mantovani,do Fórum Brasileiro de ONGse Movimentos Sociais para oMeio Ambiente e Desenvolvi-mento; e S í l v ia MarquesCalichio, do Fórum Mato-grossense de Meio Ambientee Desenvolvimento (Formad).

5 A lista das instituições quefazem parte da Rede Brasilestá disponível no endereço<www.rbrasil.org.br>

N A C I O N A L

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V A R I E

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V A R I E Flávia Mattar

Dívida histórica

Dados da Fundação Palmaresapontam que, 115 anos depois daabolição da escravidão, cerca de2 milhões de pessoas vivem em743 comunidades quilombolas es-palhadas pelo Brasil. Estima-seque grande parte seja analfabeta.Com experiência de 11 anos na al-fabetização de jovens e adultos(as),a Fundação Banco do Brasil, pormeio do programa BB Educar,aceitou o desafio de ajudar a mu-dar essa realidade.

A idéia inicial é capacitarvoluntários(as) de sete comunida-des do Rio de Janeiro, Minas Ge-rais e Pernambuco para atuaremcomo multiplicadores(as). Os(as)futuros(as) alfabetizadores(as) fo-ram escolhidos(as) por membrosdas próprias comunidades das quaisfazem parte.

O objetivo inicial é que, após acapacitação dos(as) multiplica-dores(as), 500 quilombolas da co-munidade Campinho, no Rio deJaneiro, sejam beneficiados(as). Omesmo ocorrerá com 660 negrose negras das comunidades deGurutuba e Brejo dos Criolos, emMinas Gerais, e 200 de Castainho,Imbé, Estivas e Curiquinho dosNegros, em Pernambuco.

Frente contra opreconceito

Em 8 de outubro foi lançada, emBrasília, a Frente Parlamentar pelaLivre Expressão Sexual, que con-tou com a adesão inicial de 54 par-lamentares. A iniciativa partiu dequatro deputadas: Iara Bernardi(PT-SP), Laura Carneiro (PFL-RJ), Maria do Rosário (PT-RS) eFátima Bezerra (PT-RN).

“Com a Frente, passamos a teruma bancada que coordenará açõespara a aprovação de projetos rele-vantes e para a apresentação denovos projetos”, comemora Cláu-dio Nascimento, presidente doGrupo Arco-Íris e secretário deDireitos Humanos da AssociaçãoBrasileira de Gays, Lésbicas e Tra-vestis (ABGLT).

A idéia é estimular adesões deparlamentares. “O número de ade-sões é relevante, é o lançamentode uma frente que carrega muitoestigma”, diz Marcelo Cerqueira,presidente do Grupo Gay da Bahia(GGB). A Frente se dedicará à vo-tação, até o fim de novembro, doprojeto no 1.151/95, que prevê aunião legal de pessoas do mesmosexo. “O presidente da Câmara,deputado João Paulo Cunha (PT-SP), já se comprometeu com isso”,finaliza Cláudio.

Engajamento cultural

O Museu de Arte Moderna (MAM)de São Paulo está de portas abertasà diversidade. Alunos(as) com de-ficiência auditiva da Divisão deEducação e Reabilitação dos Dis-túrbios da Comunicação (Derdic/PUC-SP) foram capacitados(as)para conduzir, utilizando a línguabrasileira de sinais (Libras), 800estudantes surdos(as) da rede mu-nicipal de ensino nos caminhos daarte. O projeto Aprender paraEnsinar, com duração prevista atéo fim deste ano, poderá ter conti-nuidade em 2004.

Os(As) 21 jovens estudantes daDerdic, cursando a sétima e a oita-va séries, aprenderam na sede doMAM desde noções básicas de arteaté a identificação de diferentesmodalidades artísticas. As crian-ças e os(as) adolescentes da redemunicipal, entre 6 e 18 anos, es-tão tendo a oportunidade de co-nhecer e obter informações sobreo Jardim das Esculturas, a reservatécnica do MAM e as exposiçõesem cartaz.

A Derdic prioriza famílias eco-nomicamente desfavorecidas, ofe-recendo atendimento educacionale clínico especializado.

www.derdic.org.br

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D A D E S D A D E S

Debate aberto

O Laboratório de Políticas Públi-cas (LPP) da Universidade do Es-tado do Rio de Janeiro (Uerj) lan-çou, recentemente, Outro Brasil,site que tem como proposta con-tribuir com os debates sobre polí-ticas públicas alternativas. Nomesde peso – como o do economistaCésar Benjamin, do cientista polí-tico Emir Sader e da economistaLaura Tavares – são responsáveispelo acompanhamento da conjun-tura brasileira, abordando os prin-cipais processos políticos, econô-micos e sociais em curso no país.

Além disso, Outro Brasil reú-ne estudos, documentos e mani-festos sobre temas relevantes, ela-borados pela universidade e pormovimentos sociais e sindicais. Acada quatro meses poderão serconferidas pesquisas sobre os con-flitos sociais no país, apresenta-das na forma de cronologia. Tra-ta-se da parte nacional do estudodos conflitos sociais na AméricaLatina, elaborado pelo Observa-tório Social da América Latina(Osal), um programa do Conse-lho Latino-americano de Ciênci-as Sociais (Clacso).

www.outrobrasil.net

Nova relação no mundoglobalizado

O Encontro Indígena InteramericanoPreparatório sobre a Sociedade daInformação reuniu em Brasília, de8 a 10 de outubro, importantespensadores(as) e mensageiros(as)de povos do Brasil e das Américas.O compromisso foi o de contribuirpara uma autêntica sociedade dainformação e da comunicação, ba-seada nos princípios de igualdadena diversidade e respeito pleno aosdireitos humanos.

Durante o evento, foi constitu-ída a declaração com seis passosfundamentais para promover a in-clusão de indígenas no processo daCúpula Mundial da Sociedade da In-formação (CMSI) – em dezembro,na Suíça. Entre as reivindicaçõesestão: assegurar e apoiar a partici-pação e a consulta aos povos; a ins-talação de comissões nacionais in-tegradas não só por indígenas, comopelo governo e pela sociedade ci-vil; e participação no desenho, ges-tão e avaliação de educação adequa-da para fortalecer suas identidades,saúde, moradia e segurança alimen-tar, considerando sua visão própriade desenvolvimento.

Tabaco na mira

Você sabia que a indústria do taba-co tem como público-alvo prefe-rencial jovens e mulheres? Esta-tísticas recentes, de acordo com aorganização Cemina (Comunica-ção, Educação e Informação emGênero), revelaram que o númerode meninas fumantes é maior doque o de meninos.

Diante dessa constatação,Cemina lançou o projeto Hip Hopna Linha de Frente contra o Taba-co. Foi gravado um CD com cincoraps – “Questão de bom senso”,“Propaganda enganosa”, “O capi-talismo acima do ser humano”,“Falso prazer” e “Reflexo do ví-cio” – que será distribuído gratui-tamente para rádios e DJs.

O CD contou com a direçãodo DJ Fábio ACM, produção mu-sical de Mister Zoy (Rádio VivaRio AM) e a consultoria de DefYuri (Viva Favela). A iniciativatem o apoio da Organização Mun-dial de Saúde (OMS), Rede de De-senvolvimento Humano (Redeh),Viva Rio, Portal Bocada Forte,Dyak Produções, Trocando Idéiae Secretaria de Saúde do Estadodo Rio de Janeiro. As músicas es-tão disponíveis em MP3 no site<www.cemina.org.br/hiphoptabaco>.

Mais informações:(21) 2262-1704

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38 DEMOCRACIA VIVA Nº 19

E S P E C I A LRogério Almeida*

a luta e a militância de umManoel Conceição

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Santos,trabalhador

Uma das maiores expressões

empenhada na reforma agrá-

ria do Brasil veio ao mundo

na primeira metade do sécu-

lo passado. Anos em que

Vargas, Lampião e Prestes engrossavam o caldo de nossa história e a Segunda Gran-

de Guerra tomava forma. Nosso personagem, Manoel Conceição Santos, nasceu em

1935, em Pedra Grande, interior do município de Coroatá, Maranhão. Filho e neto

de camponeses, o mais velho de seis irmãos. Negro, trabalhador rural e nordestino.

Nascido em um dos estados mais pobres da nação, tinha tudo para ter morrido de

uma dessas enfermidades que vitimam milhares de crianças pelos sertões do Brasil.

Mas a rude realidade o talhou para desafinar o coro dos contentes e a cons-

truir uma história de 41 anos de coerência e trabalho estabelecidos em princípios

humanistas e socialistas. Manoel Conceição Santos, ou Mané, como prefere ser

tratado, se constitui numa reserva moral da esquerda. No chão palmilhado por

Mané, há marcas de prisão, tortura, sangue, amor, exílio, trabalho em educação

popular, construção do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Tra-

balhadores (CUT), militância na Ação Popular Marxista Leninista (AP), da qual che-

gou a fazer parte da coordenação, além da fundação do primeiro sindicato de

trabalhadores rurais no Maranhão, o de Pindaré Mirim. A caminhada começa a

sinalizar desgastes. No fim de dezembro de 2001, Mané teve um princípio de

derrame. Tem tido de cumprir uma dieta rigorosa.

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40 DEMOCRACIA VIVA Nº 19

Aos 68 anos, o líder camponês mora na cida-de de Imperatriz, a segunda do estado doMaranhão, terra banhada pelo rio Tocantins,situada lá pelas bandas do Bico do Papagaio(divisa entre Tocantins, Maranhão e Pará), re-gião onde mais se mata gente empenhada pelareforma agrária no Brasil. Mané coordena aorganização não-governamental Centro deEducação e Cultura do Trabalhador Rural(Centru), que tem sede em Recife, Pernambuco.

A ONG Centru, fundada em 1985, tem adiretoria formada somente por trabalhadoresrurais. O empenho na organização de traba-lhadores e trabalhadoras rurais no projeto daCentral de Cooperativas Agroextrativistas doMaranhão (CCAMA), baseado na socioecono-mia solidária e no desenvolvimento sustentá-vel, tem funcionado como motivador do traba-lho de Mané dos anos recentes. Os projetostratam de organização popular, meio ambien-te, desenvolvimento de sistemas agroflorestaise discussão e proposição de políticas públicasvoltadas para o pequeno produtor rural.

Tudo isso ocorre numa região desenha-da pela implantação de grandes projetos comoa Ferrovia de Carajás, pela destruição do cerra-do para a implantação do cultivo de soja e paraalimentar os fornos das siderúrgicas, além deuma floresta de eucalipto da Companhia Valedo Rio Doce, que deveria favorecer a implemen-tação de uma fábrica de papel, atualmente es-tagnada. A perspectiva é o socialismo, acreditaMané. “Não basta ganhar governo. Temos quetrabalhar organicamente,” avalia.

Há cerca de dez anos, o Centru adqui-riu, no município de João Lisboa, uma área de10 hectares de terras ocupados pelo gado epor uma horta com base em agrotóxicos. Aidéia era consolidar um espaço de formaçãopolítica do trabalhador rural com alojamento,auditório, área de produção de várias árvoresfrutíferas, madeira e hortas, o que os douto-res chamam de sistema agroflorestal.

Foram dias de trabalho duro. Primeiro,superar o uso do veneno da terra, retirar o pasto.Lá nem bicho se via mais, passarinho não piavapelas bandas do que é, atualmente, uma experi-ência reconhecida em toda a região e tambémfora dela. Hoje, o espaço é chamado de Centrode Estudos do Trabalhador Rural (Cetral) e rece-be visitas de trabalhadores rurais de outros esta-dos, professores e pesquisadores. É o ninho dedebate e de desenvolvimento de experiências doCentru/CCAMA e de outras cooperativas agroex-trativistas. Possui espaço de alojamento, salãopara reuniões e seminários e refeitório.

No terreno da Cetral se desenvolve umatecnologia que não agride o meio ambiente. Sãocultivadas 39 espécies frutíferas, entre elas,acerola, caju, banana, abacaxi, coco, jaca, goia-ba, cupuaçu e murici. Entre as madeiras, podemser encontradas cedro, ipê, inharé, copaíba,mogno, paricá e nim. No caso das leguminosasusadas para adubação verde, existe farta produ-ção de feijão-guando, mucuna preta, sabiá, semfalar da mata nativa de palmeira de babaçu.

O lugar onde antes imperava o uso deagrotóxico e era raro encontrar alguma ave epequenos animais desponta, hoje, como umareferência de produção equilibrada. A espinhadorsal da filosofia do Cetral é que o espaçosirva como modelo demonstrativo de sistemasagroflorestais, formador de agentes agroflo-restais, agricultores familiares, sistemas agros-silvopastoris, com integração de pequenos emédios animais.

Os animadores do projeto explicam queo objetivo do projeto é barrar a devastação naAmazônia Legal e no cerrado maranhense. En-tre alguns de seus apoiadores, estão o FundoMundial para o Meio Ambiente, o InstitutoSociedade, População e Natureza (ISPN) e oPrograma das Nações Unidas para o Desenvol-vimento (Pnud).

Resistência popular

Helciane Araújo, jornalista e professora da Uni-versidade Federal do Maranhão (UFMA), defen-deu, em 2000, no mestrado em Políticas Públi-ca/UFMA, a dissertação Memória, mediação ecampesinato: estudo das representações deuma liderança (Manoel Conceição) sobre as for-mas de solidariedade assumidas por campone-ses na chamada Pré-Amazônia Maranhense. Apesquisadora disse que procurou “analisarcomo o líder camponês, a partir da posição dopresente, interpreta o seu passado, quais asrepresentações que ele tem da história que vi-veu. Com a leitura de suas representações so-bre seu passado, percebemos o quanto o agen-te social camponês mudou, exigindo tambémuma mudança de postura daqueles que ten-tam compreendê-lo, mudança esta que develevar a uma ruptura com os conceitos cristaliza-dos”. E ela complementa: “Infelizmente, osmaranhenses não conhecem essa história eManoel Conceição não assiste em vida ao seureconhecimento, sequer entre seus parceiros”.

“Manoel é a própria resistência do mo-vimento popular no Maranhão, mas não é umaresistência cristalizada, congelada, colada em

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princípios dos anos 1960 ou dos anos 1970.Pela sua experiência de vida, Manoel conse-gue ter uma visão cosmopolita da realidadebrasileira e da realidade maranhense e perce-be que as estratégias de luta do presente nãopodem ser as mesmas de anos atrás”, observaHelciane Araújo. “Vejo que Manoel hoje falanão apenas de uma posição, mas de múltiplasposições: do partido, da ONG, da cooperativa.Sendo que, como coordenador de uma ONG eda cooperativa, se define como um ambienta-lista”, diz a pesquisadora. Helena Heluy, de-putada estadual (PT/MA), comunga da afirma-ção de Araújo sobre o não-reconhecimentoda trajetória de Mané por seus pares de movi-mento popular e partido em âmbito estaduale nacional. “A história de Mané é fantástica”,encerra a procuradora aposentada do Minis-tério Público e histórica militante dos direitoshumanos no Maranhão.

A primeira bandeira defendida porMané era um melhor preço para a produçãodo campo no Vale do Pindaré, de onde suafamília foi expulsa várias vezes. O Sindicato deTrabalhadores Rurais de Pindaré foi fundadoem 18 de agosto de 1963, sob orientação doMovimento de Educação de Base (MEB). Emjulho de 1968, cinco anos após iniciar sua luta,um atentado ao sindicato vitima Mané. Em se-guida, foi levado para a cadeia, onde, apesarde baleado no pé, não teve atendimento mé-dico. Oito dias se passaram, tempo necessáriopara a perna gangrenar. Levado para um hos-pital em São Luís, teve a perna amputada.

Apesar disso, Mané lembra um capítu-lo engraçado durante o atentado. O médicoJoão Bosco havia chegado da capital para tra-tar de um surto de malária. “O coitado nãoconhecia nada. Estava em nossa assembléia.

Quando começaram os tiros, correu varandocerca. Caiu dentro do mato umas dez horas damanhã. Só apareceu umas três da tarde. Mor-to de fome”, lembra, sorrindo.

Em um relato dado a Ana Galano,1 Manédescobre que a amputação poderia ter sido evi-tada não fosse a falta de perícia médica em SãoLuís. Ainda no mesmo depoimento, narra quetrês secretários do governo Sarney o haviamprocurado oferecendo assistência médica, casa,emprego, uma perna mecânica e carro. A per-muta consistiria em ajuda política. Do episó-dio, nasce a célebre frase “Minha perna é mi-nha classe”, quando o camponês recusaemprego e a perna mecânica, que vem a adqui-rir após a cotização do movimento popular. Osindicato de Pindaré, nessa época, aglutinavacerca de 4 mil trabalhadores e trabalhadoras.

Muitas almas sucumbiram durante a di-tadura. As lembranças de amigos ainda povoama memória. No entanto, um nome não conse-gue recordar. Justo o de uma jovem que o levounuma madrugada de São Paulo para o Rio deJaneiro, após a perda da perna. “Estendo o meuafeto a todos a partir da lembrança dessa moça.É Beatriz o nome da jovem”, resgatou da memó-ria dias depois da nossa conversa. Lembra de RuiFrazão, dado como desaparecido pelo regime,fala com carinho de Herbert de Souza, o Betinho.Sobre Jair Ferreira de Souza, ex-secretário geralda AP, diz: “Cabra porreta. Muito solidário. Nu-tro grande respeito por ele. Já é falecido. Temum companheiro que gostaria muito de poderajudá-lo. Acho que o nome é Duarte PachecoBrasil, mora em São Paulo. É jornalista”, recupe-ra da memória o líder camponês.

O militante popular aprendeu as primei-ras letras com a velha cartilha do abc e a Bíbliana Assembléia de Deus, resquícios de quando

MANOEL EM SUA CASA NO EXÍLIO EM GENEBRA/SUIÇA, COMDOM FRAGOSO, BISPO DE CRATÉUS

COM MARIO CARVALHO DE JESUS, ADVOGADO DA FRENTENACIONAL DO TRABALHO (FNT), SÃO PAULO, EM FRENTE À CASADE PADRE DOMINIQUE BARBÉ, OSASCO, ONDE FOI PRESO EM 1975

1 O relato dado a Ana MariaGalano foi transformado nolivro Essa terra é nossa (Vozes,1980) e é resultado de 20 ho-ras de depoimento colhido emParis em 1979.

MANOEL CONCEIÇÃO SANTOS, A LUTA E A MILITÂNCIA DE UM TRABALHADOR

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era evangélico. De 1976 a 1979, a contragos-to, viveu o exílio na Suíça – uma cicatriz de mar-ca profunda. Sair obrigado do país para ele foi“um desaforo”. Não tinha alternativa. Teve deoptar entre se manter vivo e morrer. Sua vidaaté hoje é dedicada ao movimento popular.Ex-companheiros, que optaram pelo poderinstitucionalizado, ocupando cargos em mi-nistérios ou secretarias do governo, aindamesmo quando o PT não havia ganho o poderfederal, respeitam e admiram Mané. O lídercamponês foi preso nove vezes. “Fui preso noPindaré. Depois segui para São Luís, Rio deJaneiro, Salvador, Maceió, Recife e Fortaleza.Enquanto nos outros quartéis a tortura comiasolta, em Fortaleza a tortura era psicológica.Fiquei misturado com presos comuns.”

Tortura nos quartéis

Foi durante os governos de Médici e Geiselque Mané conheceu a realidade dos porõesda ditadura. Prisão e tortura são assuntos quenão o animam; gosta mesmo é de política. Ain-da assim deixa escapar que Romeu Tuma eraum dos que comandavam a pancadaria nossubterrâneos do que se convencionou chamarde anos de chumbo.

No requerimento2 entregue ao gover-no paulista, Mané afirma:

No 2 de janeiro de 1972 fui presoem Trufilândia, região do Vale doPindaré Mirim, e levado para o Dops[Departamento Estadual de OrdemPolítica e Social] de São Luís, capitaldo Maranhão. Mais de um mês de-pois, fui seqüestrado por agentes doDoi-Codi [Destacamento de Opera-ções de Informações – Centro de Ope-rações de Defesa Interna], às 4 horas

da madrugada, e colocado numavião. Só fui saber do meu destinoquando o avião pousou no Rio deJaneiro e fui entregue ao Comandodo I Exército e levado para o Quartelde Polícia do Exército, na Tijuca. Ar-rancaram a minha perna mecânicae fui colocado nu dentro de uma“cela geladeira” (cubículo), onde eraalimentado apenas com pão e água;defecava e urinava no mesmo localem que me encontrava.

Fui torturado inicialmente na cadeirado dragão, que é uma cadeira de fer-ro, com braços e um buraco no as-sento. Depois de amarrado na cadei-ra, os torturadores enfiavam umabarra de ferro, viravam para que fi-casse com se fosse um pau-de-arara.Nessa posição era espancado comcassetete e recebia choques elétricospor todo o corpo. Em seguida era re-tirado da cadeira do dragão e espan-cado com palmatória, cassetete deborracha, murros e golpes de caratêem todas as partes do corpo. Nu esem a perna mecânica, eu não resis-tia em pé e caía, sendo que numaocasião fraturei o maxilar do lado di-reito. Outra vez, fui colocado numcarro e levado para um local que ti-nha piscina, onde fui amarrado comos braços atados às pernas e, comoum porco, jogaram-me três vezes naágua e quase morri afogado.

No mesmo local, fui colocado numposte entremeado aos braços, comas mãos algemadas e sem a pernamecânica, onde fui espancado por

RECEBENDO O TÍTULO DE CIDADÃO IMPERATRIZENSE E MEDALHAFREI EPIFÂNIO D’ABADIA DO PREFEITO JOMAR FERNANDES

2 Alguns dados foram colhi-dos do livro Essa terra é nossae do requerimento de indeni-zação baseado na Lei Estadu-al 10.726/2001, encaminhadoao governo do estado de SãoPaulo em 2002 e deferido nodia 17 de setembro de 2002.

LANÇAMENTO DE SEU LIVRO: ESSA TERRA É NOSSA, EDITORA VOZES,RECIFE, 1980

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horas. Quando fui retirado, estavaroxo de espancamentos, palmatóriase golpes de caratê. Tive de ser hos-pitalizado, me davam banho de gelopara espalhar o sangue coaguladono corpo. Depois que melhorei, fuiretirado do hospital e levado para oquartel onde as torturas continuaramcom a mesma brutalidade e semprecom um capuz na cabeça. Amarram-me numa grade e prenderam meupênis com uma corda para impedirde urinar e nessa situação fui deixa-do por dias, sem comer e sem beber.Quando fui retirado da grade, cheiode dor, encontrava-me sem quais-quer condições de me movimentar.Depois que melhorava era novamen-te dependurado no mesmo lugar, nasmesmas condições e espancado comos mesmos aparelhos e com a mes-ma violência durante horas e horas.E assim continuaram as torturas du-rante os sete meses em que fiqueidesaparecido no Rio de Janeiro.

Após três anos e meio de prisão, Manéfoi julgado em Fortaleza, em maio de 1975,pela Auditoria Militar. Foi condenado a trêsanos de cadeia e à cassação de direitos políti-cos por dez anos, mesmo sem nunca ter vota-do ou mesmo possuir título de eleitor. “Comoeu já estava há mais de três anos preso, fuilibertado. Depois, a minha advogada apelouda sentença na instância superior em Brasília,e fui absolvido por unanimidade pelo Supre-mo Tribunal Militar, em 1976.”

No requerimento encaminhado ao go-verno do estado de São Paulo, Mané narra ain-da que: “Em maio de 1975, após a minha li-bertação, fui para a casa do bispo dom AloísioLorscheider, então presidente da CNBB [Con-ferência Nacional dos Bispos do Brasil]. Eu eraum cabra marcado para morrer. Doente, ame-açado de morte e precisando de tratamentomédico, o bispo possibilitou a minha vindapara São Paulo, onde fui recebido pelo domPaulo Evaristo Arns e pelo pastor presbiterianoJaime Wrigth, que providenciaram a minhainternação no hospital Santa Catarina.”

Após recuperação no hospital, Manéfoi levado por amigos para descansar em Vi-nhedo e, depois, para Osasco, na casa do pa-dre Domingos Barbe, onde ficou até ser se-qüestrado por policiais do Dops no dia 28 deoutubro de 1975. No Dops paulista, as tortu-ras recomeçaram. Foram 48 dias, conta Mané:

“Eles fizeram questão de dizer que a minhaprisão não tinha nada com a Justiça. O pro-blema é nosso. A Justiça foi incapaz de fazero seu julgamento”.

Mané só foi libertado depois da visitado advogado Mário Carvalho de Jesus. No Bra-sil e no exterior, aconteciam manifestaçõespela libertação do líder camponês. Até o papaPaulo VI enviou telegrama para o presidenteGeisel, exigindo a sua libertação. Mané saiudo Dops no dia 11 de dezembro de 1975. Sobproteção das igrejas Católica e Presbiteriana eda Anistia Internacional, seguiu para o exílioem Genebra, na Suíça. Enquanto o líder cam-ponês estava preso, um grupo suíço organi-zou o Comitê Internacional Manoel Concei-ção, mais tarde conhecido como Comitê emSolidariedade ao Povo Brasileiro. Além da Su-íça, países como Inglaterra, França, Alemanhae Itália organizaram manifestações e elaboramdocumentos exigindo a libertação de Mané.

De volta ao Brasil

Sindicatos, igrejas, Anistia Internacional e ogoverno suíço colaboraram para a sobrevivên-cia de Mané durante o exílio. Os dias fora doBrasil eram dedicados à agitação política empaíses da Europa, África e até do Oriente Mé-dio. Quando os dias no exílio se anunciavamno fim, com seus companheiros organizou umencontro internacional de refugiados. A idéiade criação do PT e da CUT surgiu do encontro.A orientação deveria ser socialista. No fim de1979, já no Brasil, o nosso guerreiro integroua comissão de criação do PT.

Produzido por Lula, Jacó Bittar e OlívioDutra, que compunham o grupo dos autênti-cos, o primeiro manifesto do PT foi considera-do “meio fraco”. Sem disfarçar o orgulho,Mané recorda que aglutinou, junto com PauloMatos Skromov, um outro grupo, que gerouuma segunda proposta de manifesto – a queserve de guia até hoje. “Motivamos um deba-te mais amplo. O manifesto foi gerado nessadiscussão de grupos de trabalho”, afirma. Adivergência é companheira de berço do PT.Obreirismo, linguagem pseudo-radical, lega-lismo e parlamentarismo foram acusaçõestrocadas pelas diferentes teses defendidas nafundação do partido, conta Perseu Abramo,no jornal Movimento de fevereiro de 1980, aonarrar a fundação do partido.

Depois de Mário Pedrosa e Apolôniode Carvalho, segue o nome de Manoel Con-ceição Santos no livro de fundação do Partido

MANOEL CONCEIÇÃO SANTOS, A LUTA E A MILITÂNCIA DE UM TRABALHADOR

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dos Trabalhadores, no Colégio Sion, em SãoPaulo, 1980. Na ocasião do lançamento domanifesto de fundação do PT, Mané dividiu amesa com Sérgio Buarque de Holanda, LéliaAbramo, Mário Pedrosa e Moacir Gadotti, querepresentava o educador Paulo Freire na oca-sião. Mané colaborou diretamente na organi-zação do PT em Pernambuco, Paraíba e RioGrande do Norte, além de animar núcleos noCeará, na Bahia e em Sergipe. Com a certezade que não sairia vitorioso, encarou uma can-didatura ao governo de Pernambuco em 1982.“Na propaganda da TV, só a foto. Aí alguémdava o currículo: trabalhador rural, preso nãosei quantas vezes, expulso do país. Fiz o maiorsucesso na periferia de Recife”, conta o lídercamponês. Tentaria também uma candidaturaao Senado e à Câmara Federal pelo Maranhão,também sem sucesso.

Uso coletivo da terra

Mané sonha com uma sociedade diferente esempre trabalhou por isso. Em São João dasMangabeiras, sul maranhense, labuta comoutras famílias na construção de uma área deuso coletivo da terra. Na área, há terra reserva-da para uso das famílias e uso da cooperativa.“Não podemos labutar tanto, e o atravessadorganhar tudo. Na minha cabeça, não cabe essahistória de propriedade da terra. A terra paranós é dos animais que nela vivem. Quandochegamos, estava tudo aí. Que história é essade propriedade privada? Essa terra é nossa!”

Apesar da idade e de toda a vidadedicada ao movimento popular, prossegueincansável. Mantém as mesmas convicções deantes quando iniciou a caminhada, nos idosde 1962, quando os militares ensaiavam ogolpe. “Para a história, esse tempo não signi-fica nada”, sentencia Mané – um colaboradorna organização do Movimento dos Trabalha-dores Rurais Sem Terra (MST) no Maranhão.

Mané reconhece a importância do MST, em-bora tenha se desligado do movimento pordivergir da metodologia: “Os segmentos deoposição devem equacionar as diferenças. Nin-guém deve queimar ninguém, ato comum emalgumas relações internas do movimento po-pular. Devemos entender que o adversário seencontra do outro lado”.

Sobre o cenário atual do movimentosindical, faz a seguinte leitura: “A conjunturatem empurrado o movimento sindical para aprática que considero como novo peleguismo.O peleguismo da negociação, de fechar a boca.Devemos trabalhar a edificação da socioeco-nomia solidária. Pois é certo que, se o capita-lismo puder arrancar o nosso olho, ele arran-ca. Já está acontecendo isso”. Sobre a CUT,vaticina que “a Central não deve pensar ape-nas em garantir emprego dentro de estruturacapitalista, onde, cada vez mais, menos genteé necessária na linha de produção. O horizon-te deve ser o de um projeto que se contrapo-nha ao capitalismo”.

A família

O orgulho se estampa no rosto de Mané quan-do ele se refere aos filhos: “Amo e admiro to-dos”. Mariana, fruto do segundo casamentocom a advogada Denise Leal, foi concebida emSão Paulo. Nasceu na Suíça, após a saída docárcere. Acaba de concluir o curso de Agrono-mia em São Luís. Entre os filhos, Mariana foi aque o líder camponês mais esteve próximo.“Acredito que ela siga as pegadas deixadas pormim.” O único homem entre os rebentos levao nome do pai, fruto do primeiro relaciona-mento, com Maria Rita Pinto Santos.

Manoelzinho, como é conhecido, traçaum belo perfil do pai: “A predisposição parasempre recomeçar presente em Manoel Con-ceição é de uma grandeza incomensurável.Tamanha solidez ideológica, no entanto, não

EM FRENTE DA SEDE DO CENTRU-MA E DENTRO DA ÁREA ONDE A ENTIDADE DESENVOLVE O SISTEMA AGROFLORESTAL-SAF

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* Rogério Almeida

Jornalista, cursa o

Programa Internacional

em Formação de

Especialistas em

Desenvolvimento de

Áreas Amazônicas

(Fipam), no Núcleo

de Altos Estudos

Amazônicos (Naea) da

Universidade Federal

do Pará. E-mail:

[email protected]

Cerrado é vida

Construir um modelo de desenvolvimentoque respeite o ser humano e o meio ambi-ente, contemple a agricultura familiar epromova a solidariedade. Esse é o objetivode um projeto com nome pomposo: Proje-to de Desenvolvimento Sustentável e Soli-dário (PDSS) – O Cerrado é Vida. Os coor-denadores são trabalhadores e trabalhado-ras rurais do Maranhão, organizados emsindicatos, associações de pequenos pro-dutores e cooperativas.

A região é o cerrado maranhense, oestee sul do estado, área de transição da Ama-zônia, região marcada pela monocultura dasoja, onde japoneses, russos e holandeses,gaúchos e paranaenses foram os coloniza-dores. Além da soja, colaboram para a der-rubada do cerrado uma floresta de eucaliptoda Companhia Vale do Rio Doce (CVRD),carvoarias (que também usam o babaçu paraprodução de carvão) e siderúrgicas. A re-gião está agendada para ser cenário de no-vas hidrelétricas e expansão da sojicultura.

O marco histórico do projeto foi o Diado Trabalhador Rural, comemorado em 25de julho, em 2002, em São Raimundo dasMangabeiras, sul maranhense, município de15 mil habitantes. A comemoração dessadata prometia uma maratona: seminário,teatro, almoço, carreata, bingo de bezer-ro, ato público, lançamento da pedra fun-damental do projeto e forró. A coordena-ção ficou por conta da CCAMA, do Centrue do Sindicato dos Trabalhadores Rurais deSão Raimundo das Mangabeiras.

À mesa estavam Manoel Conceição San-tos, animador do projeto e homenageadodo dia, ladeado pelo sindicalista Joaquim

Souza, coordenador geral do Centru, pelaparceira de luta de velha data e presidenteda Coopevida, Sonia Maria Miranda, e porMarciano Miranda, presidente do sindicatodos Trabalhadores Rurais de Mangabeiras.Na platéia, estudantes, trabalhadores e tra-balhadoras rurais de municípios vizinhos,pesquisadores da Universidade Federal doMaranhão (UFMA), religiosos, representan-tes do movimento popular de estados vizi-nhos como Pará e Tocantins, representantedo Fórum Carajás, articulação de entidadespopulares dos estados de Tocantins,Maranhão e Pará, representantes do Bancodo Brasil e do Banco do Nordeste, do Servi-ço Brasileiro de Apoio às Micro e PequenasEmpresas (Sebrae), Pólo Sindical (Fetaema) eda Confederação dos Trabalhadores na Agri-cultura (Contag).

O projeto Cerrado é Vida propõe umanova racionalidade no trabalho com a terra.A idéia é desenvolver uma produção diversi-ficada, consorciando arroz, milho e feijãocom frutas e madeiras permanentes e ou-tras atividades, como caça, pesca e sistemasagropastoris de pequenos animais. O proje-to busca um modelo de desenvolvimentoque não privilegie somente o aspecto eco-nômico, mas que promova a integraçãoentre a natureza e o ser humano.

Diante da necessidade de criação dealternativas concretas, o projeto Cerrado éVida atua para que os trabalhadores sejamos autogestores de suas experiências. Atu-almente, incorporam essa idéia oito coo-perativas e oito sindicatos dos trabalhado-res rurais, sob a coordenação da CCAMA esob a assessoria do Centru.

tem conseguido ocultar totalmente, sobretu-do, nos últimos dez anos, as suas profundasmarcas de decepção, frente à vulnerabilidadede expressiva ou talvez majoritária parcela dehistóricos companheiros e companheiras que,com relativa facilidade, encantam-se com osapelos do consumismo e com a ilusão dopseudopoder de um estado neoliberal e bur-guês; esquecendo-se dos nominais e anôni-mos companheiros que, para ver brotar a es-perança, regaram-na com o próprio sangue. Aimportância que Manoel Conceição atribuiu econtinua atribuindo ao movimento popular,ou melhor, à classe trabalhadora só é igual àque ele atribui à sua própria vida”.

Raquel, a outra filha com Maria Rita, édirigente sindical em Boqueirão, Piauí. Os cin-co netos que Mané possui são de Raquel. Amais velha da prole correu o país atrás de

trabalho. Fez parte do rebanho de nordesti-nos que seguiram para a cidade grande embusca de dias menos doridos. Antes de seguiro caminho de volta para o interior do Piauí,morou em São José dos Campos, São Paulo.Rosa Rocha Albuquerque é nome da caçula,fruto de um relacionamento com a alagoanaNeide, na época, secretária da Diocese em Re-cife, Pernambuco. Rosinha, como a chama,deseja cursar História e Antropologia.

Ter abandonado os filhos sem poderajudá-los, colaborar na educação ou aninhá-losprovocou, no peito do militante, profunda dor,que só se dissipa quando a história é conversarcom os companheiros trabalhadores no campoou na cidade. Sobre as mães de seus filhos, con-sidera-as guerreiras. Tiveram um papel funda-mental na educação das crianças, enquanto se-guia a vida de militante, fugido ou preso.

MANOEL CONCEIÇÃO SANTOS, A LUTA E A MILITÂNCIA DE UM TRABALHADOR

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M U N D O P E L O M U N D O P E

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Jamile Chequer

Sem água, sem comida

A organização Fundo Mundial paraa Natureza (WWF, na sigla em in-glês) publicou recentemente umrelatório enfatizando a necessida-de de aumentar a produção mundi-al de alimentos para acompanharo crescimento demográfico do pla-neta. A expectativa é de que, nospróximos 50 anos, tenhamos mais2 bilhões de pessoas.

O documento mostra ainda quepaíses como China, Paquistão,Austrália e Espanha alcançaramou estão próximos de alcançar olimite das fontes de água renová-veis. O diretor do Programa dasÁguas da inst i tuição, JamiePittock, revelou que, se não utili-zarmos de maneira mais adequadaa água destinada para as planta-ções, teremos sérias conseqüênci-as para alcançar a meta de dimi-nuir pela metade o número depessoas famintas até 2015.

Os(as) governantes precisamdistribuir melhor – e de formamais justa – a água entre os(as)agricultores(as). “Governos de-vem fazer mais do que promessas.Junto com a indústria alimentíciae consumidores, devem começaruma nova revolução na agricultu-ra. Algo que garanta suprimentode comida e água para todas aspessoas”, finaliza Jamie.

Orçamento latino

Com o objetivo de produzir infor-mações para que as práticas asso-ciadas ao orçamento público sejammais transparentes, acaba de serlançado o Índice de TransparênciaOrçamentária (ITO) na AméricaLatina. A primeira versão surgiuao longo dos anos de 2000 e 2001,e apenas cinco países compunhamo quadro estudado. Hoje, o projetocontempla dez países. No Brasil, oIbase foi o responsável pela pes-quisa, que teve o apoio da Funda-ção Ford e recursos da FundaçãoOpen Society Institute.

“Participação no orçamentonão é uma qualidade da sociedadena América Latina”, constata Jú-lio Silva, pesquisador do Ibase. NoBrasil, a percepção das pessoasestá mais apurada pelas práticasde orçamento part ic ipat ivo epelo processo recente do PlanoPlurianual (PPA). “Isso mostra queé possível que a sociedade partici-pe do orçamento, apesar de nãoestar efetivamente qualificada”,diz Júlio. O Brasil é o país maisbem colocado na região em ter-mos de percepção de participação,com 20%. México tem 16%; Co-lômbia, 15%; Chile, 14%; Nicará-gua, 12%; Argentina, 11%; Peru,7%; Costa Rica, 8%; El Salvador,5%; e Equador, 3%.

Ciência 1 x 0 hepatite

A luta contra a hepatite C ga-nhou mais uma aliada: uma novadroga (Biln 2061) desenvolvidapor cientistas na empresa alemãBoehringer Ingelheim. Ela evita aduplicação do HCV, vírus da hepa-tite, que pode causar danos per-manentes no fígado e até levar àmorte. Não há vacinas contra adoença. A transmissão se dá pelocontato com sangue infectado oupor sexo sem camisinha.

Cerca de 170 milhões de pes-soas no mundo têm HCV. As dro-gas atuais podem causar efeitoscolaterais desconfortáveis. “A Biln2061 parece ser segura e bem to-lerada”, declarou para a revistaNature o vice-presidente sênior daempresa, Paul Anderson.

Porém, ainda são necessáriosmais testes para verificar possí-veis problemas a serem desenvol-vidos ao longo do tempo, como oaumento da reprodução viral ou aresistência do HCV à droga. Mes-mo assim, estudiosos(as) chegarama dizer que os resultados a curtoprazo são extraordinários.

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L O M U N D O P E L O M U N D O P E L O M U N D O

Aborto declarado

O estado do Texas, Estados Uni-dos, está com novas regras para oaborto. Proposto pelo Conselhode Saúde da Mulher, aquelas quequiserem fazer um aborto terãode fornecer documento de identi-dade ou assinar protocolo com-provando a idade. A proposta foifeita, entre outras razões, paraque não aconteçam mais abortosem menores de idade sem o con-sentimento de pais e mães.

Porém, a proposta vem cau-sando indignação em quem defen-de o direito ao aborto. Um dosartigos delega aos(às) médicos(as)a função de garantir que tomarãomedidas para manter a vida e asaúde da criança nascida viva. Ou-tro artigo estabelece que as mu-lheres recebam informações sobreo aborto um dia antes de entrar naclínica. Defensores(as) do direitoao aborto propõem, nesse caso,que as mulheres rubriquem todasas seções de um formulário dizen-do que receberam todas as infor-mações obrigatórias.

As regras estarão abertas a co-mentários até o início de dezembrode 2003. No mês seguinte, o con-selho definirá a medida definitiva.

Mochila no pós-guerra

O Fundo das Nações Unidas paraa Infância (Unicef) começou emnovembro de 2003 uma campa-nha para que as crianças liberianasvoltem às aulas. Há expectativade que 75 mil meninos e meninaspeguem seus livros para estudar.Algumas crianças estudarão pelaprimeira vez.

Serão treinados(as) 20 milprofessores(as) e melhoradas3.700 escolas. Serão distribuídosmilhares de kits escolares comlivros, giz, lápis e guias paraprofessores(as). “Crianças quecresceram conhecendo nada alémda guerra precisam de educação eum futuro em seu país. Educaçãoestabelece um caminho além dapobreza”, afirma Carol Bellamy,diretor executivo do Unicef.

É um momento delicado naLibéria. O acordo de paz foi re-cém-assinado em outubro, e o paíspassa por uma fase de transforma-ções. Para Bellamy, essa é umabrava campanha em um momentode fragilidade do processo de paz.“É certo que os primeiros dividen-dos da paz sejam pagos às crian-ças, que suportaram tanto pormuito tempo e têm o futuro emsuas mãos”, justifica.

Censura na cara

A bruxa está solta na África. Nocomeço de outubro, os governosde Zimbábue, Nigéria e Camarõesfecharam rádios privadas e jornaise prenderam editores(as) e repór-teres. Isso foi considerado por di-versas organizações, entre as quaisRepórteres Sem Fronteiras, comoum esforço para eliminar o direitode informação.

A velha discussão de até onde ojornalismo pode ir nas investiga-ções sobre os governos voltou àtona. Na maior parte das vezes,qualquer suspeita publicada é moti-vo para repressão e censura. Re-centemente, o Instituto de Mídiado Sudeste da África (Misa, na si-gla em inglês) lançou campanhapara chamar a atenção para viola-ções contra jornalistas da regiãoda Comunidade em Desenvolvi-mento do Sul da África (Sadc, nasigla em inglês). Sadc jornalistassob o fogo: grite por uma mídialivre e aberta é o tema.

A delegação do Misa tem visi-tado os países para mapear a si-tuação da mídia. A maior preo-cupação é com o Zimbábue, ondejornalistas precisam ter registro nogoverno antes de trabalhar.

Fonte: www.ips.org

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I N T E R NI N T E R N A C I O N A LBeatrice Verri Whitaker*

Imigrante,cidadania suspeita

EMYGDIO DE BARROS

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A C I O N A LDesde a formação da República, a França lidacom a situação dos imigrantes. Até o fim daSegunda Grande Guerra, eles são originários,sobretudo, da própria Europa. O contexto mudapor necessidade de reconstrução e de desen-volvimento econômico do país. Inicia-se, assim,uma fase de importação massiva da mão-de-obra das antigas colônias, que durará até a cri-se da década de 1970. Essa primeira fase épermeada de convenções sobre a mão-de-obrae de acordos bilaterais com as ex-colônias e comos demais países de emigração. Progressiva-mente, os imigrantes vão se beneficiando dalegislação de proteção social, como as pessoasde cidadania francesa. Mas a mudança da con-juntura intervém nos debates nacionais e inter-nacionais. Estabelece-se, então, que a duraçãoe o tipo de estadia de pessoas estrangeiras emsolo francês seriam critérios para definir os di-reitos de uns em relação aos outros. A seleçãoe a hierarquização dos direitos dos indivíduos,em função das nacionalidades, são acentuadase, em seguida, sistematizadas pelo Estado fran-cês.1 Os direitos dos indivíduos são, dessa for-ma, condicionados à nacionalidade.

Segundo Viet, “entre 1948 a 1981, deum total de 2,35 milhões de imigrantes assa-lariados, mais de 1,4 milhão foram regulariza-dos”.2 Ter situação irregular significa não ob-ter documentação necessária para trabalhar,ficando impossibilitado de gozar dos mesmosdireitos que a população francesa. Resta-lhes,então, o trabalho clandestino. Esse fenômenopermanece até hoje, criando um exército dereserva dócil e à mercê das chantagens dospatrões e da política de austeridade dos su-cessivos governos. Ou seja, a França acomodaa população imigrante às necessidades da eco-nomia capitalista, em detrimento dos direitosdos indivíduos. Com o apoio da União Euro-péia (UE), a política de imigração da Françaserve, de certa maneira, como referência paraos países tradicionalmente mais progressistasda região para enrijecer as medidas concer-nentes às pessoas estrangeiras.

É nesse contexto que nasce, em marçode 1996, em Paris, o Movimento dos Sem-Pa-péis. Isso foi um marco histórico, consistindono único movimento que se mantém até hoje,com altos e baixos. Defendendo-se como po-dem, os sem-papéis recorrem às greves defome coletivas, ocupações de locais públicos,manifestações de rua etc. Por vezes, longe dasolidariedade militante dos partidos políticosde esquerda ou mesmo das ONGs progressis-tas, seguem a luta com dificuldades.

De vez em quando, algumas vozes seerguem em sua defesa. A sucessão de perse-guições e condenações de indivíduos e asso-ciações que apóiam os sem-papéis motivoualguns cientistas, personalidades políticas,do teatro e do cinema, representantes deONGs etc. a lançarem o “Manifesto dos De-linqüentes da Solidariedade”, em maio de2003. Trata-se de uma resposta ao projetode lei sobre imigração proposto pelo gover-no Chirac. É um apelo à desobediência civildiante das acusações e da criminalização cres-cente dos que lutam pela solidariedade aosimigrantes. Segundo o texto do documento,“a cada ano na França, apesar do artigo 21da lei3 sobre a entrada e a estadia dos es-trangeiros, centenas de associações e milha-res de cidadãos acolhem, ajudam, informamsobre seus direitos aos estrangeiros”. Maisde 15 mil pessoas e mais de 300 organiza-ções assinaram o manifesto. Em outubro de2003, várias centenas de pessoas reunidasem Paris denunciaram o projeto de lei emdiscussão no Senado,4 reafirmando as de-terminações contidas no manifesto.

Adotado pelo Parlamento em julhode 2003, esse projeto de lei transforma imi-grantes em defraudadores potenciais: cúm-plices dos patrões, se estes os empregamclandestinamente; caso reclamem o estatu-to de asilado, tendo bebês, tornam-se sus-peitos; tornam-se suspeitos também de ca-samento “branco” (falso), quando se casamcom uma pessoa francesa etc. São corriquei-ras e coerentes com a política européia defechamento das fronteira as prisões e as de-portações de estrangeiros extracomunitári-os nesses últimos anos.

A França protege cada vez menos aspessoas refugiadas que pedem asilo. Infrin-gindo convenções internacionais ou mesmotratados bilaterais, as medidas repressivassão acompanhadas de campanhas antiimi-grantes sutis, para influenciar uma parte dasociedade e, conseqüentemente, as institui-ções. Um dos clichês mais hipócritas utiliza-dos por certos políticos da esquerda ou dadireita é o do “perigo de invasão dos estran-geiros na Europa, pois não se pode socorrertoda a miséria do planeta”. No entanto, sabe-se que o maior fluxo migratório se dá nointerior mesmo dos continentes dos paísesdo Sul. O mesmo fenômeno se dá com aspessoas refugiadas, “pois eles acolhem noseu solo 12 dos 14 milhões de refugiadosde que conta o planeta”.5

1 MERCKLING, Odile. Immigrationet marché du travail. Ciemi:L’Harmattan, 1998.

2 VIET, Vincent. La Franceimmigrée. Paris: Fayard, 1998.

3 “Toda pessoa que […], poruma ajuda direta ou indireta,facilitar ou tentar facilitar aentrada, a circulação ou a es-tadia irregular de um estran-geiro na França ou no espaçointernacional citado será pu-nida com prisão de cinco anose com multa de 30 mil euros”,Artigo 21 da Ordenança de 2de novembro de 1945.

4 O artigo 17 do projeto delei prevê o confisco, para pes-soas físicas ou jurídicas, detodos os seus bens, móveis ouimóveis.

5 NOIRIEL, Gerard. Réfugiés etsans-papiers. Pluriel: HachetteLitteratures, 1998.

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Tais atitudes facilitam a tarefa de neo-nazistas e partidos de extrema-direita. Eles pre-gam a “prioridade de emprego aos nacionais”,a “expulsão das alunas de turbante das escolaspúblicas” etc. E influenciam uma parte da po-pulação em direção aos seus impulsos nacio-nalistas e de superioridade cultural (até mes-mo étnica) européia, levando certos políticos adefender as mesmas idéias e banalizando sen-timentos xenófobos. É indicativo o fato de ogoverno francês conduzir uma ofensiva contraas mulheres com a idéia de uma lei contra oturbante das meninas nas escolas públicas,penalizando-as e estigmatizando a populaçãomuçulmana. Enquanto isso, dirigentes das es-colas privadas deleitam-se com as expulsões dasmeninas: mais receita para seus orçamentos.

A ofensiva contra as mulheres imigran-tes é favorecida por uma legislação que proí-be a regularização das esposas de homenspolígamos – estes devem escolher uma delascomo esposa, as outras devem sair do país. Osdispositivos de regularização favorecem, so-bretudo, as mulheres casadas, as mães de fa-mília e as filhas de imigrantes, em detrimentodas mulheres solteiras, divorciadas, separadasou repudiadas. Elas perdem seus papéis fran-ceses quando decidem separar-se dos mari-dos. Tal situação gera situações dramáticas porcausa da chantagem dos maridos, companhei-ros, pais ou irmãos sobre elas.6

Continente ou fortaleza?

As dificuldades de imigrantes na França não éexceção, mas é a regra na UE. Os deslocamen-tos de povos em busca de melhores dias é umaconstante na história. Em meados do séculoXIX, iniciou-se na Europa um grande movimen-to de população proveniente da Itália, Irlanda,Polônia e Bélgica para vender a força de traba-lho na França, Alemanha, Suíça, Grã-Bretanhae mesmo em outros continentes. A SegundaGrande Guerra e a crise da década de 1970mudaram a situação da mão-de-obra européia.As autoridades incentivaram a imigraçãoextracomunitária para limitá-la e, em seguida,controlá-la e expulsá-la segundo as necessi-dades do sistema. A liberdade de circulação ede instalação das pessoas torna-se, assim, umareivindicação primordial nas lutas pela eman-cipação dos indivíduos.

As últimas décadas caracterizam-se porum contexto de circulação de capitais e merca-dorias, submetendo os países do Sul às exigên-cias do sistema financeiro internacional e dos

organismos internacionais – Fundo MonetárioInternacional (FMI), Organização Mundial doComércio (OMC) e Banco Mundial. Essa situa-ção, que incitou a multiplicação da dívida exte-rior e privatizou os serviços públicos, provocoua exclusão de populações inteiras do acesso aosdireitos fundamentais – saúde, educação, ha-bitação – levando 1,3 milhão de seres huma-nos a viver abaixo do limite da pobreza. É adesordem mundial que se instala.7 Os paísesdo Terceiro Mundo vivem a maior crise de suashistórias, culminando com a implosão do “so-cialismo real” nos países do Leste Europeu, fa-zendo aumentar os fluxos migratórios de po-pulações inteiras desses países em direção aospaíses da Europa Ocidental.

Diante de tal conjuntura, é normal queos povos procurem fugir da fome e da miséria.Anormal é o número de imigrantes mortos emsolo europeu na tentativa de entrar num doscontinentes mais ricos do planeta. Um fatochocante, acontecido em 2000, foi a mortepor asfixia de 58 imigrantes asiáticos dentrode um caminhão frigorífico, quando tentavamentrar na Grã-Bretanha pelo túnel sob o Canalda Mancha. Na costa grega, 800 curdos foramabandonados num barco em novembro de2001. Em 2002, foram contabilizados mais de60 mortos na costa de Tarifa, Espanha. A essesse somam mais de 900 imigrantes mortos naságuas do estreito de Gibraltar – contabilizadosapenas os cadáveres que apareceram nas cos-tas e que são detectados pelos guardas civis.Além dessas mortes, há ainda aquelas dentrodas prisões, por suicídios suspeitos.8 Em ju-lho de 2003, enquanto 15 chefes dos Estadoseuropeus se reuniram na estação chique dePorto Carrasco, centenas de imigrantes vindosda África em dois navios pereciam pouco apouco ao largo do porto de Sfax, Tunísia, e nacosta de Lampedusa, uma ilha italiana. A mai-oria morreu. Em outubro de 2003, 85 somali-anos procuravam chegar à Itália de navio. So-mente uma dezena foi resgatada bastantedebilitada nas costas da Sicília, Itália.

Desde os acordos de Schengen, assina-dos por cinco países europeus, em 1985, ins-taura-se na prática a Europa policiada, fechadaaos estrangeiros. A aparição do Sistema de In-formação de Schengen (SIS), dispositivo defichamento dos estrangeiros, vai transformá-los em sujeitos suspeitos, potencialmente peri-gosos. É a Europa-fortaleza. São exigidos vistosde entrada aos países da UE nos controles defronteira (aeroportos, estações, portos etc. sãoreforçados). São exercidas enormes pressões

6 WHITAKER, Beatrice Verri. Donneimmigrate e mondializzazione.In : Donne in movimento. Pisa: BFSedizione, 2002.

7 TOUSSAINT, Eric. La bourseou la v ie . Par i s : Ed i t ionsSyllepse, 1998. Segundo dadosdo Pnud.

8 La Inmigración. El País, 16jun. 2002.

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sobre os profissionais das empresas de viagempara que assumam atribuições de polícia. Asmedidas de controle e vigilância de informa-ções não cessam de multiplicar-se. O Europol,organismo policial europeu criado em 1994,estende suas competências em 1999 para ocontrole dos fluxos de imigração com o pretex-to da busca de filões mafiosos.9 Itália e Espanhautilizam o Europol como instrumento de caçaaos imigrantes. Esse organismo passa progres-sivamente de uma missão de informação e deanálise para uma missão ativa em todos os do-mínios da segurança.

Governos e autoridades européias mul-tiplicam as reuniões de cúpula, culminandocom acordos, convenções e tratados. Os go-vernos dos Estados passam a estudar os me-lhores argumentos diante dos eleitores, a fimde modificar, adaptar ou elaborar suas legisla-ções internas. Instalam-se os dispositivos deregularização de estrangeiros, de condiçõesdraconianas, para permanecerem em solo eu-ropeu. Em suma, instala-se a banalização dalógica repressiva e de suspeição, favorecendocomportamentos conservadores e fascistas dediferentes setores da população.

O Tratado de Amsterdã (1998) confir-ma as diretivas do Tratado de Maastricht(1992), que prevê a harmonização da políticade controle da imigração entre os Estados. Ospaíses mais abertos em relação à entrada dosimigrantes são obrigados a submeter suaspolíticas às disposições de Schengen e dasnovas legislações. A Itália é um dos exemplosmais significativos: em 1998, pressionado peloprimeiro-ministro francês da época, LionelJospin, o governo italiano assina a sua adesãoa Schengen. Paralelamente, os aparelhos decontrole policial estão em constante progres-so. Um dos exemplos é o dispositivo doEurodac, que consiste na utilização do méto-do de comparação das impressões digitais daspessoas, mesmo de jovens a partir de 16 anos,que pedem asilo aos países da UE.

Depois do atentado de 11 setembro de2001, o Europol vem cumprindo missões paradesenvolver o controle da Europa, sob a dire-ção dos ministros europeus. A sucessão de lí-deres da UE não cessa de atacar imigrantes erefugiados de maneira cada vez mais centrali-zada. No primeiro semestre deste ano, váriospaíses da UE fretaram aviões, intensificandoassim os “vôos agrupados” para a expulsãode imigrantes extracomunitários. Em nome daluta anticlandestina ou antiterrorista, aprova-ram a criação de um banco de dados comum

para os vistos. Trata-se de um fichário com osvistos concedidos pela UE, contendo os dadosbiométricos dos indivíduos (impressões digi-tais, íris dos olhos etc.). Nos próximos anos,140 milhões de euros poderão ser emprega-dos no projeto.10

Num discurso baseado na integração deimigrantes na sociedade européia, na luta con-tra o trabalho clandestino e contra o tráfico depessoas, os líderes da UE tomam medidas quenão fazem outra coisa senão favorecer o traba-lho não-declarado a fim de baixar o custo daforça de trabalho, de fazer subir os preços dostraficantes de imigrantes e de provocar fortesdivisões sociais entre trabalhadores de origensdiferentes. Na realidade, os imigrantes são umaespécie de cobaias da política de flexibilidadeexigida pelos patrões: arrocho salarial, aumen-to das horas de trabalho e perda de conquistassociais importantes. A própria legislação traba-lhista européia discrimina os direitos entre na-cionais e estrangeiros.

Os dirigentes da UE encontram-se numasituação contraditória: nem dão conta dos18 milhões de imigrantes estabelecidos no con-tinente, nem conseguem viabilizar a Europa-for-taleza, amplamente difundida pelos meiosneofascistas por meio do slogan “imigraçãozero”. Alem do mais, a Organização das NaçõesUnidas (ONU) e autoridades da Organização paraa Cooperação e o Desenvolvimento Econômico(OCDE) têm advertido as populações européiasda necessidade de importar 50 milhões de imi-grantes antes de 2050 a fim de assegurar cresci-mento econômico estável e as pensões das pró-ximas gerações.11 Ao mesmo tempo, os governosdevem enfrentar a chegada de novos imigran-tes, cujas cifras estão sempre aumentando. Como desenvolvimento da mundialização, as guer-ras e os conflitos regionais não cessam de proli-ferar. As populações vítimas de tais conflitos –kosovares, curdos, afegãos, iraquianos, palesti-nos, chechenos etc. – também não cessam defugir dos perigos de guerra.

Os 450 milhões de europeus dos 25países da UE encontram-se presos numa arma-dilha. Ou lutam pela igualdade dos direitosentre os povos presentes no solo europeu paraconstruir uma relação de forças ou transfor-mam-se em inimigos da população estrangei-ra, correndo o risco de perderem seus direitos.Não há outra alternativa senão lutar contra estanova ordem mundial, exigindo a abertura dasfronteiras aos povos, pela livre circulação e ins-talação dos indivíduos e pela igualdade dosdireitos entre nacionais e estrangeiros.12

9 Le Monde, 1 jun. 2002.

10 Site do Parlamento Europeu.

11 La Inmigración. El País, 16jun. 2002.

12 FASTI. Droits de l’homme, laFasti accuse: Corlet, 1999. Essaé a posição da Federação dasAssociações de Solidariedadecom os Trabalhadores Imigran-tes (Fasti) , uma ONG queagrupa, desde 1966, cerca de70 associações locais espalha-das pela França. Participa dascampanhas pelo direito ao asi-lo com outras organizações(Anistia Internacional, Liga dosDireitos Humanos, Gisti etc.),editando o jornal de campa-nha Confluencias.

* Beatrice VerriWhitaker

Representante da

Federação das

Associações de

Solidariedade com os

Trabalhadores Imigrantes

(Fasti) no Fórum Social

Mundial

IMIGRANTE, CIDADANIA SUSPEITA

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E N T R EV I S T A

E N T R E V I S T APor Marcelo Carvalho

Conhecemos partes avulsas de certasregiões do Brasil: ritmos, costumes, pen-samentos, religiosidades etc. A idéia dotodo ninguém pode ter, pois o Brasil éum país que, por suas contradições, es-capa-nos constantemente. O escritor edramaturgo Alcione Araújo, mineiro deJanuária, morador do Rio de Janeiro, éum desses teimosos que não abando-nam a idéia impossível (mas sedutora)de Brasil, de compreender o país pelapalavra, pela ficção, pela dimensão hu-mana da realidade.

Sua obra teatral está reunida em trêsvolumes sob o título geral de Teatro deAlcione Araújo (Civilização Brasileira,1999). São 12 peças, entre elas Há vagaspara moças de fino trato (1974), a maisantiga incluída nessa coleção, A prima-dona (1990) e Sob neblina use luz baixa(1976). Entre as suas obras televisivasestá o roteiro do seriado Malu mulher,um marco da TV brasileira.

É cronista de Democracia Viva, escrevesemanalmente para o Estado de Minase pôs o ponto final em dois roteiros paracinema: Hotel Brasil e Orquestra demeninos . Em seu único romancepublicado, Nem mesmo todo o oceano(Record, 1998), recompõe a atmosferade nosso passado recente sob a ditaduramilitar. Está escrevendo agora o quepoderá ser seu segundo romance(garante já ter quatro capítulos) e acoletânea de ensaios sobre filosofia Trêsdamas infiéis, sobre a palavra, a imageme a cultura. Que venham à luz.A

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OUTUBRO/2000 53NOV 2003 / DEZ 2003 53

Já podemos análisar o Ministérioda Cultura no governo Lula?Alcione Araújo – Ainda não dá porque

não expuseram nenhum projeto até agora.Estamos vindo de oito anos de governo FHCsem projetos definidos e ainda não há – ounão foi mostrada – uma política cultural es-tabelecida. É preciso contemplar toda a po-pulação de 173 milhões de habitantes doBrasil, não dá mais para fazer política públi-ca para uma minoria. O que existe são asações que se apóiam nas leis de renúnciafiscal, que outorgam aos empresários a es-colha dos projetos artísticos que serão pro-duzidos no país. Quer dizer, esses projetostêm de ser convenientes às estratégias demarketing das empresas. Por um lado, asleis de renúncia fiscal viabilizam projetos.Mas, por outro, são uma espécie de filtroideológico que domestica a produção cultural.Em um país como o nosso, o mercado nãopode ser a instância definidora da produçãocultural. A baixa escolaridade da populaçãobrasileira faz com que suas preferências es-téticas reproduzam o que tem sido ofereci-do, que é, basicamente, os valores veicula-dos pela televisão e pela indústria de entre-tenimento. O papel do Estado é fundamentaltanto na cultura como na educação.

Aliás, os três ministérios que acompanhomais de perto – Cultura, Educação e Meio Am-biente – parecem ainda estar se articulando.Eu os vejo sempre na defensiva, tentando im-pedir que determinada lei seja aprovada. Quaisas políticas que vão emanar desses ministérios?Como as pessoas que querem produzir cine-ma, teatro ou música farão quando seus pro-jetos não forem do agrado dos empresários?O Estado precisa ter compromisso com a áreacultural, ter uma política cultural que seja in-dependente do capitalismo hegemônico, umapolítica pública que beneficie a produção crí-tica e alternativa ao establishment.

Na verdade, meu olhar está voltado muitomais para o cidadão. A questão não é a de queo Estado tenha obrigação de dar dinheiro parao artista. Em geral, são os artistas e produto-res que falam sobre políticas públicas para acultura, o que acaba por eclipsar um direitoconstitucional de acesso aos bens culturais.O que o Estado faz – ou deveria fazer – éfinanciar os artistas para assegurar ao cida-dão esse direito constitucional, pois as pes-soas não estão participando da vida culturaldo país, apenas da indústria do entreteni-mento. Mesmo assim, são apenas 80 milhões

de espectadores passivos, ou seja, metade dapopulação. O Brasil é muito grande e com umapopulação de baixa escolaridade.

Como seria o caráter geral dessapolítica cultural?Alcione Araújo – Precisa ser pensada es-

trategicamente, para os próximos 20, 30 anos,para que, assim, sobreviva aos solavancosconjunturais da política. Não dá para pensarem projetos de quatro anos para um país como tamanho e a complexidade do Brasil. Do con-trário, estaremos presos aos eventos, que aca-bam sendo fatos políticos e eleitorais. Esse es-pírito precisa até extrapolar: é preciso pensar opaís a médio e longo prazos. Basta de atenderapenas a demandas circunstanciais e emergen-ciais. Ao pensar dessa forma, a primeira ques-tão que se coloca é a da educação e da cultura.

Qualquer revolução que se pense hoje nomundo passa por aí. É preciso pensar a univer-sidade, mas não só. Temos também de aprimo-rar a educação como um todo, oferecer a maissublime das fruições estéticas e, ao mesmo tem-po, contemplar as manifestações culturais queemanam espontaneamente nos mais diversosrincões do país. É preciso respeitar a diversida-de, vencer a fala estética do eixo Rio–São Paulo.

Veja o caso do cinema. Há muitos filmesque as empresas não financiam. Quem nãoestá no padrão global está fora. Não tenhonada contra a Rede Globo entrar no mercadode cinema, mas é preciso também que tenha-mos filmes pernambucanos, brasilienses, opaís é muito diversificado. É empobrecedora auniformização. Conseguiram uniformizar amaneira de se vestir, de se falar, os valores,tudo no Brasil ficou muito parecido.

Você citou os ministérios da Cultura,da Educação e do Meio Ambiente.E quanto ao resto do governo?Alcione Araújo – Desconfio de alguns va-

lores instalados no Ministério do Desenvolvi-mento, da Indústria e do Comércio Exterior,por exemplo. O ministro da Agricultura, Pecu-ária e Abastecimento disse que o mercado éque vai definir se teremos ou não soja transgê-nica. Ora, elegemos nossos dirigentes para queeles apontem os caminhos, e não para que de-volvam a questão a uma população de baixaescolaridade e mal informada que não acom-panha as inovações técnico-científicas e nãosabe as conseqüências que isso pode ter.

Saímos do governo passado, dos oito anosde FHC, pior do que estávamos. Certo, houvea estabilização da moeda, mas hoje já acholimitada essa interpretação do mundo pela

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E N T R E V I S T A

economia, sabia? Esse discurso de colocar ocapital como sujeito da história já se esgotou.Eu quero o ser humano como sujeito da história.

Apesar disso, não estou desesperançadocom relação ao governo Lula. Mas gostaria deque a mesma altivez que ele tem demonstradonas questões de política externa também sedemonstrasse na política interna. Internamen-te, as políticas estão tímidas, e a demanda dopaís é enorme. Educação, cultura e meio am-biente são partes integrantes da cidadania.E são exatamente os três ministérios que cui-dam dessas áreas os menos contemplados.Os ministérios mais poderosos são os de In-dústria e Comércio e Agricultura, com as expor-tações e o agrobusiness. Em nome dessas duasatividades, estamos sacrificando questões am-bientais muito sérias, como os transgênicos.

Qual a relação entre arte ecomunicação?Alcione Araújo – Antes de falar sobre

isso, é preciso tentar esboçar uma distinçãoentre arte e comunicação. Não é uma tarefafácil. Poucos se arriscam a racionalizar algoque se esquiva ao abraço da razão. O concei-to de arte é radicalmente subjetivo, variávelao longo da história e só se permite enunciarse imerso na cultura de origem da própriaobra. Já a comunicação, do grito primal à so-ciedade da informação, é primordialmente,embora não estritamente, produção da ra-zão, sobretudo na instituição de sistemas decodificação/decodificação.

Grosso modo, pode-se dizer que arte, comocriação ou como fruição, é, primordialmente,produção e percepção de subjetividades; acomunicação, do ponto de vista do emissorou do receptor, é, primordialmente, produçãoe percepção de, digamos, objetividades. Emambas as idéias, mencionei “primordialmen-te”. Isso significa que tanto a arte pode seutilizar de alguns elementos de comunicação,como a comunicação pode, eventualmente, sercriativa, original, sensível e buscar atingir asubjetividade – nesse caso, o exemplo extre-mo é o da propaganda subliminar. Em termossemiológicos, poderíamos dizer que a arteopera com signos originais, criados para umaexpressão singular, única, que se oferece amúltiplas percepções. A comunicação operacom signos decodificáveis, saturados, buscan-do um entendimento estrito, unívoco ecoletivizado. O comunicador procura o pata-mar que o nivele com a sua audiência. A artenão necessariamente procura isso. O criadoroferece a sua criação no nível, na forma e no

sentido em que ela lhe ocorreu. Como sem-pre, não existe nada isolado na natureza nemna sociedade dos homens – por isso, a Teoriada Complexidade afirma que cada fato influ-encia e é influenciado por todos os demaisfatos, até mesmo os mais remotos.

A arte e a comunicação são osfundamentos da cultura?Alcione Araújo – É evidente que arte e

comunicação são destacados elementos decultura. Mas são várias as culturas. A palavracultura vem de agricultura. É o cultivo, a plan-tação ou a criação de determinados bens ouprodutos, concretos ou imaginários, abstra-tos ou utilitários. Na biologia, por exemplo,cultura significa o cultivo de células e tecidosvivos. Para a antropologia, cultura é o conjun-to de costumes, crenças, valores e processosprodutivos que caracterizam um grupamentosocial. Há também a distinção meramente ver-nacular, como a de cultura oficial, que é o con-junto de atitudes, linguagens, conhecimentos,costumes etc. difundidos, direta ou obliqua-mente, pelos meios de comunicação manti-dos ou utilizados pelo Estado. Por mais quehaja distinções, todas essas culturas sãointerdependentes. E o que nos interessa aquié a Cultura – entendida como produção doimaginário, produção simbólica ou produçãodo espírito –, que, com a passagem do tempoe as mudanças da sociedade, foi se dividindonas chamadas cultura popular, cultura eruditae cultura de massa.

Afinal, qual é a origem dacultura brasileira?Alcione Araújo – Sem rigor cronológico

e considerando que, na época, o tempo eralasso, distendido, e a repercussão dos fatosera lentíssima, pode-se dizer que, quandoCabral avistou essas terras, no início do sécu-lo XVI, as universidades de Bolonha e Coimbra,por exemplo, já funcionavam há séculos.Gutenberg já inventara a imprensa, MarcoPolo já chegara à China e o Império Romanotinha virado pó. São Tomás de Aquino já con-c luíra a Suma Teológica, reescrevendoAristóteles de modo a torná-lo útil ao catoli-cismo. Dante unificara a língua italiana comA divina comédia. A catedral de Chartres,construção complexa e sofisticada, já estavapronta, louvando a Deus com as altas torresapontadas para o céu. Tudo isso – e muitomais – já existia na velha Europa, enquantonossos ancestrais indígenas corriam peladospor essas praias, com as “vergonhas” balan-çando aos ventos tropicais. Cabral, porém,

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limitou-se a fincar o marco simbólico de pro-priedade da coroa portuguesa. E nada maisaconteceu até que os jesuítas aportaram poraqui na segunda metade do século.

A discussão sobre cultura passanecessariamente pela religião?Alcione Araújo – É evidente. A cultura

começa a ser engendrada no espírito, searado domínio religioso, que determina valores,princípios e condutas. Recebe influências dasrelações econômicas, do poder político, dasformas de trabalho, da agricultura e das for-mas de alimentação, da geografia e até dascondições climáticas. Justamente para a dou-trinação religiosa, a catequese ou evangeliza-ção dos gentios, como se dizia, cá estava, pois,a linha de frente da poderosa Igreja Católica.Atravessara o Atlântico para converter índiosao catolicismo. Tarefa ingrata quando se pen-sa que o indígena era tão integrado à nature-za que se sentia parte dela. Sua arraigadacosmogonia, como não podia deixar de ser,fora construída, ignora-se em quantos milênios,no âmbito da própria natureza. Era impossívelpara o indígena assimilar a visão católica orto-doxa européia. Era difícil para os jesuítas –versados em teologia, mas não em antropolo-gia – compreenderem uma cultura tão dife-rente da européia. Para um indígena, que sóconhecia o tupi-guarani, ouvir conversas emportuguês e missas em latim era um espan-to, perplexidade pura. Apesar dos esforços– remember Anchieta, com o seu trilíngüe(português, espanhol e tupi-guarani) Autode São Lourenço, com o qual se torna o pri-meiro dramaturgo brasileiro – a catequesedo indígena é um fracasso.

Os(As) índios(as) rejeitaram avisão católica do mundo?Alcione Araújo – Sequer entenderam.

Havia um evidente choque cultural, e os jesu-ítas não se deram conta. Índios e padres sim-plesmente não se entendiam. Os catequiza-dores fizeram uma mudança de rota e seconcentraram no que era a sua real vocação:a preparação da elite, ou seja, a educação dobranco europeu, portugueses e outros even-tuais imigrantes. Era o branco europeucatequizando o branco europeu. E não ape-nas do ponto de vista religioso. Os jesuítasincumbiram-se de toda a educação, carregadade profunda densidade humanista e lastreadana cultura universal. Essa é uma tarefa que con-tinuam a realizar até hoje – os colégios religi-osos ainda mantêm a reputação de melhoresdo país –, e eles se tornaram, na verdade, em

eficientes especialistas na educação da elitebrasileira, que, por acaso ou ironia, é uma dasmais predadoras do mundo.

Segundo a professora Vanilda Paiva, espe-cialista na área, os portugueses, sendo pou-cos, fizeram muitos filhos nas índias e os cria-ram, sempre que possível, como portugueses.Até hoje, a primeira geração é considerada por-tuguesa. Foi essa a fórmula que aplicaram paramultiplicar seu contingente conquistador, ape-sar de todas as contradições. Seus filhos nãopassaram necessariamente por colégios de eli-tes, mas lutaram lado a lado no desbravamentodo país e na conquista do território.

Os jesuítas fracassam com os(as)índios(as) e passam a cuidar daeducação dos(as) brancos(as). O queaconteceu com os(as) negros(as)?Alcione Araújo – Quando os negros, vin-

dos da África, começaram a desembarcar no Bra-sil, os jesuítas nem olharam para o lado deles.Não tomaram conhecimento. Sequer cogitaramcatequizá-los. Na visão dos jesuítas, seriainimaginável educar negros vindos de outrocontinente para serem escravos – ou seja, eramuma mão-de-obra baratíssima, de etnia pou-co conhecida, oriunda de uma cultura ágrafa.Os negros não eram, portanto, escolarizados.Com eles, houve uma das mais agressivas su-balternidades que o mundo já viu. Há poucomais de cem anos, havia aqui seres humanosque eram propriedade privada dos seus senho-res, obrigados à cega obediência e a trabalhosforçados, de dia e de noite, sob castigos deanimalesca brutalidade: mutilações, troncos eaçoites. As pessoas, nem mesmo as da Igreja,não os reconheciam como seres humanos. Paraos jesuítas, o fracasso com os índios ficara comolição bem aprendida. Com os negros, preferi-ram manter-se coniventes com o poder branco,de cujos rebentos tornaram-se preceptores.Assistiam a tudo em resignado silêncio, quan-do não indiferença. Esse desprezo pelo negroterá enorme repercussão, então inavaliável, nahistória social e cultural do país.

Mas isso não mudou coma Abolição?Alcione Araújo – Com o fim gradual da es-

cravatura, por meio de leis sucessivas (Ventre Li-vre, Sexagenários etc.), o negro alforriado nãotinha emprego, não tinha terra, não tinha profis-são urbana, não tinha escolarização para si nempara seus descendentes, não tinha o que comer.Assim, nasce a histórica marginalização, a misériae o abandono. O negro perde a proteção do seusenhor e ninguém mais se interessa pela sua

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sobrevivência. E inexistia lei que lhe assegurasseo mínimo para sua manutenção. Ser negro tor-na-se sinônimo de ser miserável, vadio e delin-qüente. E nenhuma escola lhe abriu as portas.

E, no entanto, o(a) negro(a)deu grande contribuição àcultura brasileira.

Alcione Araújo – Certamente. Das três etniasque, então, povoavam o Brasil, a indígena é aprimeira a ser afastada do processo de cons-trução do povo que habitaria essa banda daAmérica. Para ser exato, há quem diga que apopulação nordestina é pura miscigenação;os indígenas teriam desaparecido na fusão comos brancos, tornando-se todos “brancos”.Mas, em geral, as tribos, fugindo da escraviza-ção, dos seqüestros, das doenças contagio-sas, dos estupros e da matança gratuita,embrenhavam-se nas matas, levando suas cren-ças, o conhecimento da natureza e suas práti-cas culturais. Contribuíram modestamente paraa formação cultural do povo emergente.

Registre-se que o desinteresse pela acumu-lação, decorrência do costume de colher ape-nas o necessário e indispensável para a sobrevi-vência, pois, a qualquer tempo, tudo na natu-reza – frutos, caças, peixes etc. – continuariadisponível, em vez de lição de vida, serviu paraaguçar a cobiça do branco. Mais: essa virtuosainocência foi entendida como indolência pelobranco, cuja permanência por aqui era abrevia-da o quanto possível – o Brasil era lugar deenriquecimento rápido, através da rapinagemou de quaisquer outros meios. Para um euro-peu, viver de verdade era só na Europa – embo-ra, para o pobre, a vida na Europa fosse umhorror, e, aqui, com calor, praias, mulheres índi-

as e negras, podia-seter um paraíso.....

Já os negros, de-pois da Abolição, emlastimável precarieda-de, sem trabalho esem escolarização,aglutinavam-se emnúcleos periféricosaos centros semi-urbanizados, ondedesenvolviam os ritu-ais de suas crençasreligiosas, a culinária,a música, a dança etc.

Tudo na semiclan-destinidade, pois vá-rias dessas práticas,especia lmente as

religiosas e festivas, eram proibidas pela Igre-ja e reprimidas pelas autoridades policiais.O samba, hoje motivo de orgulho do brasilei-ro, nasceu quase na clandestinidade e vítimade repressão. Já os portugueses e seus des-cendentes nativos, herdeiros da cultura bran-ca européia, se apossaram do país, do pontode vista econômico, político, religioso e cultu-ral. O apartheid cultural vem de longe. Para aelite, o país era um simulacro da Europa. Bas-tava fechar os olhos para ver igrejas, mostei-ros, universidades, teatros, orquestras, ópe-ras, museus e modas do velho mundo.

Como a cultura branca européia semistura à cultura brasileira?Alcione Araújo – Bem, o caldo de cultu-

ra europeu era muito denso para ser absorvi-do por um povo em formação, que não viveraa Idade Média, a Inquisição, o Renascimento,o Iluminismo e nem a Revolução Francesa.Os portugueses que estavam aqui ou vinhampara cá, embora brancos e europeus, eram, nasua maioria, aventureiros em busca de fortunarápida e não deveriam participar ativamentedo que chamamos de cultura européia, embo-ra preservassem esse legado no imaginário.

Porém, no início do século XIX, uma surpre-sa muda o rumo da história. Napoleão invadePortugal, obrigando a família real, para não serender, a fugir para o Brasil. Incerto sobrequando teria chances de retornar, d. João VI,com uma astúcia até hoje mal avaliada, criauma nova figura na história da diplomacia: ado Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves,com corte provisória no Brasil. Napoleão nãotinha como alcançar o rei no outro lado doAtlântico – não dispunha de esquadra capazde fazer frente à britânica, que, em defesa deseus interesses, presentes e futuros, prote-gera a travessia da realeza fujona. A mesmaincerteza quanto à data do seu retorno à Eu-ropa levou d. João a, digamos, tentar trazer aEuropa para os trópicos. Pelo menos aquiloque podia consolar um monarca desterradono lado de cá do Atlântico e criar as condi-ções mínimas de segurança, higiene, civilida-de, educação, cultura etc. para que o Rio deJaneiro pudesse ser considerado, pelo me-nos, um arremedo de Lisboa.

Como foi refazer aqui a culturaportuguesa, uma cultura elaboradadurante séculos e séculos?Alcione Araújo – Pode não ter sido uma

intenção consciente, mas foi o que aconteceu.E começou já no desembarque. Na bagagem,d. João trouxe uma tipografia que, além da

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função prática de publicar textos e livros, ti-nha o valor simbólico de reparar a truculênciada Coroa, que mandara destruir e queimaras tentativas anteriores de se instalar aquiuma gráfica, para não propagar idéias quepoderiam ser contrárias aos interesses doEstado. Essa parte da bagagem do prínciperegente propiciou a criação da ImpressãoRégia, que passou a imprimir a Gazeta doRio de Janeiro, uma espécie de Diário Ofici-al, mas nem por isso poupada de implacávelcensura. Apesar de ser editada aqui, a Gaze-ta do Rio de Janeiro estava longe do espíritocrítico e combativo do Correio Braziliense, oprimeiro periódico brasileiro que começaraa circular meses antes, editado em Londrespor Hipólito José da Costa.

Outras façanhas que contribuíram para aidéia de trazer um pouquinho da Europa paracá foram os diversos estabelecimentos de en-sino que d. João fundou, com olhos postosna criação de uma elite militar e civil locais: aAcademia de Marinha, a Academia de Arti-lharia e Fortificações, a Academia Médico-Ci-rúrgica da Bahia e a Escola Real de Ciências,Artes e Ofícios, mais tarde Academia de BelasArtes. Essas instituições significavam algumprogresso, mas eram quase nada se as com-pararmos com o que acontecia à volta do Bra-sil. Na América espanhola, já existiam, desdeo século do descobrimento, as universidadesde Santo Domingo, do México e do Peru, ejornais circulavam desde o século anterior –decorrências da presença dos vice-reinados,que, então, não tínhamos aqui. Na Américainglesa, já funcionavam há quase dois sécu-los as universidades de Harvard, Princeton,Dartmouth, Brown, Columbia e Pensilvânia.Em termos de educação e cultura, éramos dosmais atrasados do Novo Mundo.

A presença da família real ajuda avencer esse atraso?Alcione Araújo – Éramos, para os portu-

gueses, uma distante colônia d’além-mar. Alémde arrancar as riquezas nativas, não tinhaminteresse nesta terra. Não fosse a bendita in-vasão de Napoleão, teria sido outro o nossodestino. O atraso da colônia era muito gran-de, e Portugal esperava que a ausência da fa-mília real não fosse duradoura. Apesar disso,a presença do príncipe regente, da burocraciado Estado e da aristocracia trouxe uma brisade progresso jamais vista, nem repetida emtempo algum, por estas bandas. Foi d. Joãoque revogou a proibição, exarada por sua mãe,d. Maria I, de se implantar aqui uma indústria

têxtil, concedeu licença para a instalação deuma fábrica de vidro, criou uma fábrica depólvora e uma fundição de artilharia, fundouo Banco do Brasil, a Biblioteca Pública, atualBiblioteca Nacional, o Jardim Botânico e, maistarde, mandou vir a missão artística francesapara ensinar aos nativos o que era a arte.

Como foi isso?Alcione Araújo – D. João parecia querer

recriar um pedacinho da Europa no Brasil. Edevia achar que, em termos artísticos, era preci-so que alguém nos ensinasse o que era arte.Porém, é bom lembrar, a influência cultural fran-cesa estava presente por toda a Europa. As cor-tes alemã e russa falavam francês. O romantis-mo alemão é, até certo ponto, uma reaçãocontra a dominância cultural francesa – domesmo modo que o populismo russo. Imagi-ne, então, como era em Portugal! Mas o Bra-sil não era, então, um deserto artístico e cul-tural. Antes da chegada dos franceses, jáhavia trabalhos expressivos em pintura, es-cultura, talha e ourivesaria em Minas Gerais,Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco. Alei-jadinho e Mestre Valentim, por exemplo, jáhaviam deixado suas marcas no patrimônioartístico e cultural do país, em que pese adefasagem de estilos em virtude do relativoisolamento em relação à Europa.

A missão, dirigida por Lebreton, não eraformada por desconhecidos ou iniciantes.Alguns já tinham notoriedade para além daFrança. Incluía os pintores Nicolas Taunay eJean Baptiste Debret; o escultor AugusteTaunay; o gravador Pradier; o arquitetoGrandjean de Montigny, entre outros. Na ver-dade, a missão cumpriu um papel, não porensinar a visão francesa de arte, mas por trans-mitir técnicas que poderiam ser – e acabaramsendo – transgredidas. E, sobretudo, preparara inserção do Brasil, como criador e fruidor, naprodução artística ocidental. Afinal, nosso an-cestral branco europeu fazia parte daquelemundo nascido na Grécia e que fundara a cul-tura ocidental. Com os artistas da missão fran-cesa, que viriam a ser os professores da EscolaReal de Ciências, Artes e Ofícios, o neoclassi-cismo instalava-se, de armas e bagagem, noBrasil, enquanto a Europa se atirava nos bra-ços do romantismo. O simulacro da Europabrasileira surgia, como sempre, atrasado.

A visão francesa de arte e culturafoi assimilada?Alcione Araújo – Naquele momento, não.

Da efervescência criada pela missão francesanão participavam os negros, ainda escravos.

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Muito menos os índios, há mais de um século,desde a corrida do ouro e pedras preciosas,vítimas de genocídio que, de resto, prossegueainda hoje, com os que querem expulsá-losde suas próprias terras. O Brasil se moderni-zava, se preparava para fazer parte do mun-do e da cultura ocidentais através da mino-ria branca européia e sua descendência, emcujas mãos a renda, o conhecimento e o po-der sempre se concentraram.

Essas são as origens dosprivilégios e desigualdadesdo Brasil de hoje?Alcione Araújo – Sim, a partir desse

quadro inicial da formação miscigenada dapopulação brasileira, as elites abrigam-seem seus privilégios, e a grande massa émantida distante dos valores educacionais,culturais e econômicos universais, isto é, deorigem européia. É uma segregação queainda perdura, hoje, com contornos deapartheid. Por isso, o Brasil não desenvol-veu um público para a chamada “alta” cul-tura. A maior parte da população sempreesteve do lado excluído da sociedade, afas-tada pelo apartheid econômico, social e cul-tural, da mesma forma que os negros assis-t iam às missas conf inados numa áreacercada da igreja. O que poderia mudar essequadro seriam políticas públicas menosperversas que permitissem escolarizar e for-mar cidadãos e profissionais, além de umadistribuição de renda menos perversa. Seesse avanço não se efetivar, o país terá duasculturas conflitantes numa mesma geogra-fia, se já não as tem. E os enfrentamentos,via violência urbana, vão se ampliar.

Nada foi feito, nem aconteceunada que mudasse esse quadro?Alcione Araújo – Nem a Independência,

em 1822, nem a República, em 1889, alteraramexpressivamente esse quadro. Com a imigra-ção, iniciada no fim do século XIX e que seestendeu até a Segunda Guerra Mundial, che-ga, sobretudo no sul do país, uma massa dejaponeses, italianos, alemães, poloneses etc.,sem que se interrompa o fluxo de portugueses.A população dos centros urbanos ganha no-vas feições. Os recém-chegados, que não par-ticiparam da história do país, muito menos daformação de sua elite, fazem a sua inserçãopelo trabalho, na agricultura ou no processode industrialização. A contribuição dos imi-grantes é fundamental, não apenas para odesenvolvimento econômico, mas para a vidaintelectual e a produção cultural.

Então, na educação e na cultura,nada muda no Brasil?Alcione Araújo – Muda. Não sei se

muda para o que, hoje, desejaríamos. Mashouve mudanças. Ocorre, por exemplo, umamudança substancial na orientação doutri-nária da educação brasileira, assim como nada cultura, após a Segunda Guerra Mundial.O eixo de referência da educação e da cultu-ra brasileiras era, até então, europeu, parti-cularmente francês, beneficiando-nos comum legado que incluía as conquistas doIluminismo, os ideais da Revolução Francesae o seu histórico lastro humanista e intelec-tual. Quando o eixo de referência cruza oAtlântico, da França para os Estados Unidos,esquecemos, no Velho Mundo, o clássico tri-pé dos compromissos fundamentais da uni-versidade com a formação do profissional ea formação do cidadão. Esquecemos tambémo ideal aristotélico de humanidade integral,peculiar à longa tradição do humanismo eu-ropeu, do francês em particular, e passamosa comer poeira na estrada desbravada pelopragmatismo americano.

Mas há uma diferença: nos Estados Uni-dos, a família e também a escola e a Igrejaintroduzem os jovens no mundo da cultura,assim como no exercício da cidadania. Apenasintroduzem, mas é melhor do que nada. A vi-tória dos aliados impõe ao mundo o poderiodos irmãos do Norte.

A educação brasileira encontra no prag-matismo americano um novo modelo, comnotório predomínio da ciência e da tecnolo-gia – afinal, foram justamente a ciência e atecnologia que lhes trouxeram a supremacia,quer pelo impacto da explosão de duas bom-bas atômicas no Japão, quer pela criação an-terior das indústrias automobilística, cinema-tográfica e, mais tarde, televisiva, acolhidas debraços abertos por todo o mundo. Isso semfalar na Coca-Cola!

Entramos, portanto, numa novaera. Deixamos a velha Europa epassamos a acolher as influênciasamericanas.Alcione Araújo – Exatamente. Como dis-

se, desde o fim da Segunda Guerra os ameri-canos vêm consolidando a sua liderança comtal ímpeto e truculência que se tornaram, coma globalização e o neoliberalismo contempo-râneos, um império hegemônico.

Hoje, curiosamente, o primeiro item da suapauta de exportações não é mais a indústria ae-roespacial, mas a indústria de entretenimento,

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com os produtos audiovisuais, fundamentaispara a implantação da cultura de massa. Talindústria começou a se instalar no Brasil nasegunda metade do século XX, quando o paísalcançou um certo desenvolvimento econô-mico e a população atingiu um índice de cres-cimento demográfico que o tornara apto aviabilizar investimentos em modernos meiosde comunicação de massa.

Acumulando a experiência adquiridacom o rádio, o grande divulgador da músi-ca popular brasileira, e sustentação da in-dústria fonográfica, chegamos às redes na-cionais de televisão, de enorme capilarida-de, capazes de atingir todos os recantosde um país continental.

Quando as práticas culturais tradicionais –ler, ir ao teatro e ao cinema, ouvir música, visi-tar museus de arte, até mesmo ler jornais –começavam a se disseminar, a entrada da tele-visão foi verdadeiro estupro em uma socieda-de sem antídotos culturais para resistir.

Hoje, com os dados acumulados em maisde 30 anos de pesquisas semanais sobre oshábitos e costumes da população brasileira,a televisão produz uma programação rigo-rosamente ajustada às classes sociais, faixasetárias, níveis de renda e de escolarizaçãoda população.

Com essa estratégia, mantém cativa umaaudiência de tal proporção que faz da tele-visão – um conjunto de empresas privadas,beneficiárias de concessões públicas, que,no entanto, visam a altíssimos lucros e usamde todos os meios para defender seus inte-resses – a mais importante referência cultu-ral do país.

A audiência cativa da televisão brasileiranão tem, proporcionalmente, paralelo no pla-neta. É formada, sobretudo, pelas camadasmais humildes da população, na qual grassama baixa escolaridade e o analfabetismo. Essepúblico humilde, tendo abandonado pro-gressivamente outras formas de entreteni-mento e práticas culturais, se rendeu ao in-discutível fascínio – que começa pela sofisti-cada tecnologia de geração e transmissão –da televisão, renunciando, aos poucos, à suainserção cultural. Estava instalada, e com vo-racidade avassaladora, a indústria de entre-tenimento no Brasil. E, com ela, ruiu um dospilares do capitalismo – a concorrência me-lhora a qualidade do produto. Com a baixaescolaridade da maior parte da população,quanto pior a qualidade da programação,maior a audiência.

Até que ponto a tecnologiaamericana influenciou a educaçãoe a cultura brasileiras?Alcione Araújo – Nos Estados Unidos, a

religião cumpriu um papel que foi além doestritamente religioso. Não apenas colaborouna gênese do capitalismo, como estimuloua alfabetização, a leitura da Bíblia, a inter-pretação dos textos, a formação musical etc.A escola cumpriria outra etapa, oferecendo oensino das ciências, da história da humani-dade, da cidadania etc., além de práticas cul-turais peculiares ao país – bandas, corais, des-fi les, competições esportivas, trabalhoscomunitários. Desse modo, a juventude po-dia ter uma razoável formação, sem depen-der muito da família. É isso que faz a evolu-ção de uma geração a outra.

Para as camadas mais pobres da popula-ção brasileira, ou seja, para a maioria dos bra-sileiros, a Igreja e a escola não oferecem taispossibilidades, e o jovem depende mais donível cultural de sua família, que, em geral, ébaixo. Secular periferia do mundo, a maioriadas famílias brasileiras não teve educação for-mal e está alijada do mercado cultural tradi-cional. Já a televisão, como o meio, por exce-lência, de veiculação da indústria de entrete-nimento, arrebatou uma audiência formadade pessoas que não tinham adquirido os há-bitos culturais tradicionais. Os valores mo-rais, éticos e estéticos da indústria de entre-tenimento tornaram-se, como já disse, a re-ferência – para a massa, a única referência –para um povo de baixa escolaridade, afasta-do da cultura tradicional e despreparado parauma fruição estética enriquecedora.

A influência da educação estritamente es-colar americana – objetiva, funcional e prag-mática – acabou sendo prejudicial. E o equí-voco reside no fato de os responsáveis pelaeducação no Brasil retirarem dos currículosas disciplinas de humanidades, substituindo-as por outras ligadas às ciências e à tecnolo-gia. Se não bastasse, os currículos de ensinomédio, justamente aqueles que formam osadolescentes, foram se tornando meros re-ceituários de preparação aos exames vestibu-lares. Com isso, perde-se a melhor época parase plantar as sementes do discernimento, es-tabelecer-se o compromisso com os valoresfundamentais do pacto de convivência soci-al, despertar o imaginário e liberar a sensibi-lidade, exercitar a criatividade e aprender alidar com a sexualidade, entender a amizadee iniciar-se no amor.

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Cite uma conseqüência importantedessa situação.Alcione Araújo – A inadequada repro-

dução do modelo americano criou uma es-quizofrênica separação entre educação e cul-tura. Expulsaram a cultura da escola. O jovemsó entenderá a si próprio e o mundo até ondea sua intuição alcançar. E, sem esse entendi-mento, não conseguirá estabelecer uma in-terlocução. Quem não consegue verbalizar oque sente, quem não tem possibilidade deparlamentar, de dialogar, substitui, no seudesespero, a falta de palavras pela truculência.É a linguagem que compreende. Se é grave aexistência de um apartheid social, muito maisgrave é o apartheid cultural. Por isso, só sevai resolver a violência urbana, com a qualtemos temerariamente convivido, com a subs-tituição do armamento dos bandidos e dapolícia pela interlocução.

A educação e a cultura abrem as portaspara a interlocução. A educação é irmãinseparável da cultura, insisto. Afastá-las ématá-las de inanição – é limitar o ser humanoaos números de sua produção, à sua face maisfria, à parte mais dura do seu coração. É in-concebível que alguém possa formar-se, porexemplo, médico, engenheiro, advogado, con-cluído o chamado curso superior, sem nuncater lido um romance, ouvido uma sinfonia, vis-to uma exposição, assistido a uma peça de te-atro etc. No entanto, é o que acontece. Mudoas perguntas sem mudar as respostas: que ci-dadão é esse? Que profissional é esse?

Responda você: que cidadão éesse? Que profissional é esse?Alcione Araújo – Esse cidadão é a vítima

de um modelo educacional que renunciou aosfundamentos universais da formação – do pro-fissional, do cidadão e do ser humano – para setornar o vencedor de uma maratona de ades-tramento para a produção. Não assegurar atodo cidadão e cidadã o direito constitucionalde acesso à produção cultural, não aproximar aeducação da cultura, é deixar queimando o ras-tilho que vai detonar a bomba.

Pela Constituição de 1988, é obrigaçãodo Estado oferecer a todos a educação con-vencional necessária. Mas apenas ela é insu-ficiente. É preciso mais. Muito mais. É precisoque a educação seja motivo de orgulho dapopulação brasileira. O conhecimento da ci-ência, da história e da própria língua que elafala e ama é necessidade tão fundamental quese tornou direito, leis. Cumprir a lei é obriga-ção do cidadão, assim como do governante.

Os governantes deveriam se orgulhar de fa-zer escolas, distribuir merenda e pagar comdecência aos professores. O bom governantesabe que só a educação possibilitará o saltoque o país precisa dar para vencer o atrasoem relação aos países ditos do Primeiro Mun-do. Investir na educação e na cultura permiteentrarmos, de fato, no século XXI. A culturaprecisa começar na escola. Só assim, a educa-ção ganha um significado mais profundo emais amplo porque vai formar profissionais,cidadãos e seres humanos.

Como você acha que deveriaser a educação?Alcione Araújo – Bem, não sou educador.

Tudo o que disse é palpite de curioso. É atépresunção sugerir coisas aos educadores. Façoisso como homem da cultura, que assiste, per-plexo e impotente, ao lento desaparecimentodo público da cultura. Imagine que o filme demaior sucesso nos últimos 20 anos, Carandiru,teve cerca de 4 milhões de espectadores, numpaís de 173 milhões de habitantes. O númerode espectadores corresponde a apenas 2,3%da população e foi considerado um estrondo-so sucesso. Voltando, gostaria que a educa-ção e a cultura fossem entendidas como fru-tos da mesma árvore sagrada do conhecimen-to, e não que elas coexistam em esquizofrêni-ca separação, como agora.

Cultura é tudo o que foi tocado pela mão epelo espírito criador da humanidade. A mesaque o engenho do ser humano extrai do tron-co da árvore é cultura, assim como o romance,produção de um mundo simbólico que enri-quece o nosso imaginário. Educação e culturasempre andaram juntas. A educação é o braçosistematizado da cultura, é a ordenação do quese deve tratar em cada faixa etária para dareficiência ao aprendizado, com professores ha-bilitados a transmitir a quantidade e especifi-cidade de saber para uma pessoa de determi-nada idade. E esse professor, hoje desvaloriza-do, é também referência de valores morais eéticos, de atitudes etc.

Por que você escreve?Alcione Araújo – Não estou certo de que

saiba explicar isso. Embora possa intuir as ra-zões pelas quais as pessoas lêem o que escre-vo, as razões por que escrevo estão em mim.Profundamente em mim. Lá onde, segundo Lorca,esconde-se a obscura raiz do grito. São áreas depenumbra, sem nitidez nem definição, escas-samente iluminadas, onde costumamos nos es-conder de nós próprios. Às vezes, a psicanálisenos ajuda a percorrer nossos labirintos tateando

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em direção à luz. Mas, às vezes, a entrega aoescrever faz a mesma coisa. Tenho o costume– talvez seja mania, ou melhor, obsessão – desempre me perguntar se estou bem, se estouà altura do que me propus, se estou satisfei-to com o meu desempenho, se o desafio estáestimulante, sobretudo no aspecto profissi-onal. Costumo renunciar imediatamente aoque não estiver me agradando ou subtrain-do-me algo da alegria de viver, ainda que hajaperdas. No entanto, jamais me passou pelacabeça deixar de escrever. Nada a ver com aqualidade do que escrevo, mas com o prazerque me proporciona.

Entendo o que Mallarmé queria dizerquando afirmou que a vida foi feita para sertransformada em livro, assim como entendo aperplexidade de Aldous Huxley ao perguntarcomo alguém pode viver sem escrever. Vivoimpregnado de teatro, bêbado de literatura,encharcado de cinema, grávido de filosofia egratificado por exercer o que, para mim, é amelhor profissão do mundo: a que permiteganhar a vida com prazer e oferecer ao leitor/espectador vivências do que ele não viveu. Cadaqual só fala do seu lugar, disse Lacan. Por ‘lu-gar’, entenda-se um patamar existencial, emo-cional, intelectual; passagem transitória poronde o trajeto singular da vida conduz cadaum. O quanto se move a vida – do ponto devista existencial, emocional e intelectual – esselugar move-se. Por analogia, o escritor perce-be o mundo do seu lugar e escreve – escreveré a sua fala – do seu lugar. Tem voz própria,olhar inconfundível e sensibilidade única.

A arte de escrever é pessoal ou não é nada.Daí a contrafação na busca desenfreada dosucesso, na troca da qualidade pela quantida-de, na submissão ao mercado, tão em vogahoje. Parafraseando Lacan, quem fala fora doseu lugar desafina. Nelson Rodrigues dizia queescrever é fácil ou impossível. Não acho fácilnem impossível. Acho que é preciso trabalhar,trabalhar e trabalhar. Quando achar que estápronto, recomece a trabalhar. Como disseDrummond, se, ao final, não tiver o frescorinaugural de que acabou de ser escrito, todoo empenho terá sido em vão. Acho que escre-vo porque não encontrei nada mais interes-sante para dedicar a vida.

Como fazer da leitura umaatividade ao mesmo tempoprazerosa e reflexiva?Alcione Araújo – O indispensável é que

o leitor, iniciante ou não, tenha o máximo deprazer com o que lê. Se não houver prazer, a

bata lha de con-quista do leitor es-tará perdida. Mas,por favor, entenda:quando digo prazer,não estou sugerin-do que são legíti-mas quaisquer con-cessões para agra-dar o leitor. Achotambém que é umequívoco avaliar umlivro de ficção poralgum ensinamentoespecífico. O que sepode, eventualmen-te, aprender comuma obra de arte éalgo geral, tão difu-so que nem se percebe que se está aprenden-do. Pois é aí, na dobra descuidada do progra-ma, na falta de objetivo didático, que flutu-am as lições indizíveis, os exemplos que secolhem na imobilidade perplexa, a solidarie-dade que se denuncia na lágrima furtiva, é aíque começa uma aula que não se anuncia,não tem programa preestabelecido, nem tem-po de duração: a vida.

Em que aspectos a leitura podecontribuir para a plena formaçãohumana, política e social?Alcione Araújo – A literatura é uma for-

ma de se adquirir vivências do que não seviveu. A leitura é um permanente movimen-to de se aproximar e se afastar das persona-gens, de se emocionar e criticar as suas ati-tudes. O desenvolvimento dessa capacidadede compreender o ser humano conduz àmaturidade à medida que se afasta dos jul-gamentos afoitos, das condenações precipi-tadas e absolvições inconsistentes. A leituraajuda ser humano a compreender a si mes-mo, a identificar-se com ele e avaliar-se. Essahumanização é a reconquista de um valorque vem se perdendo numa sociedade queprivilegia o dinheiro em detrimento dos va-lores humanos. A visão do ser humano quea grande literatura oferece é aristotélica: oser humano é, e suas circunstâncias, ou seja,as condições objetivas que o circundam ecriam as suas circunstâncias dizem respeitoao quadro social e às forças políticas que oenvolvem. A compreensão das relações deinteresse e das relações políticas pode seruma grande contribuição à percepção do lei-tor sobre o jogo do poder.

Fotos: Marcus Vini

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R E S E N H A

Cidade das mulheresRuth LandesUFRJ352 págs.

A editora da Universidade Federal do Riode Janeiro (UFRJ) lança a edição revisadado livro Cidade das mulheres (1ª ediçãoamericana, 1947; no Brasil, 1967), de RuthLandes, com esclarecedor prefácio deMariza Correia e introdução de Peter Fry,que nos auxiliam a entender os meandrosda realização da pesquisa. Foram preserva-dos, nesta nova versão, os três artigos con-tidos na primeira edição, respectivamente“Matriarcado cultural e homossexualidademasculina”, “O culto fetichista no Brasil” e“Escravidão negra e status feminino”.

É um livro para ser lido em constantediálogo com o período em que foi produzidaa pesquisa, procurando contextualizá-la.Landes veio como parte de um “pacote” deparcerias entre centros de pesquisas brasi-leiros e estadunidense entre 1938 e 1939. Aautora foi a única daquele grupo a não estudar

os índios, e sim os negros. A escolha deLandes deve-se, antes de tudo, a um concei-to prévio, divulgado nos Estados Unidos: aausência de conflitos raciais no Brasil.

A autora conheceu o pesquisadorÉdison Carneiro em Salvador, responsávelpor tornar abertas as portas dos candom-blés tradicionais da Bahia para que ela –uma jovem branca estadunidense america-na – pudesse entrar em contato com a co-munidade negra, suas culturas e seu fazercotidiano. Por intermédio de Landes, che-gamos à Mãe Menininha do Gantois, aindasem fama; vemos um Martiniano Bonfim in-satisfeito com os rumos do candomblé; co-nhecemos a trajetória de Joãozinho daGoméia e a discriminação enfrentada por serfilho de prostituta e homossexual.

É um texto de fácil leitura, escritocomo um diário de campo e que demonstraos arranjos sociopolíticos e culturais e asarticulações empregadas pelos afrodescen-dentes. Além disso, é um dos livros primor-diais para os estudos antropológicos noBrasil. Entre outros fatos, explicita pela pri-meira vez que, ao contrário do que ocorriana sociedade patriarcal brasileira, o candom-blé nagô era dominado pelo poder das mu-lheres, e o candomblé de caboclo, peloshomossexuais. A autora relaciona a lideran-ça masculina nos cultos à homossexualida-de e à prostituição masculina. Há uma cons-tante tensão entre os pais-de-santo e asmães-de-santo. Logo, Landes expõe umacontradição e uma tensão no interior da-quele mundo até então estudado sob umaótica fortemente influenciada por NinaRodrigues, que, incensada pelas teoriasracialistas do século XIX, via no candom-blé a representação do atraso imposto pelosangue africano.

Peter Fry, na introdução do livro,chama a atenção para três aspectos quemarcam a primazia do trabalho de Landes e

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que contribuíram para o acirramento dascríticas a Cidade das mulheres: a discus-são sobre “o status das mulheres na socie-dade brasileira”; “o lugar da África na in-terpretação da cultura negra no NovoMundo”; e “a relação entre homossexuali-dade masculina e religiosidade afro-brasi-leira”. Para Landes, a matrifocalidade não éuma característica específica do “mundo docandomblé”, mas algo que constitui o perfildas mulheres pobres. Assim, era muito maisa condição social em que se encontravamas mulheres do candomblé, e não necessa-riamente um aspecto religioso ou mesmo ra-cial, que as fazia responsáveis por gerir asociedade em que estavam inseridas, em-bora, segundo Landes, o poder das mulhe-res naquelas comunidades religiosas fosseefetivo há mais de um século e meio.

Desse modo, a matrifocalidade seriade cunho social, e não racial. Antes deLandes já havia uma arena de contenda nainterpretação sobre os negros na Bahia, en-carnada nos estudos de Frazier e Herskovits.Sua abordagem de gênero avança para alémda participação das mulheres no culto e in-daga a respeito do seu poder decisório. Ofeminino para Landes não está apenas nasmulheres, mas também em homens homos-sexuais. Isso dá ao seu trabalho maior ampli-tude, visto que as relações de gênero sãopostas para além das mulheres, ultrapassan-do o sexo. A homossexualidade feminina tam-bém é tangenciada por Landes.

Além da manutenção da tradição docandomblé, Landes estuda um momento emque ocorre uma ressignificação das religi-ões afro-brasileiras na Bahia. Há a entradade um expressivo número de pais-de-santoassumidamente homossexuais, que buscamnesse espaço o empoderamento muitas ve-zes negado na sociedade em geral. O can-domblé, assim, ascende ao seu lugar de re-presentação social, funcionando, ainda,

como uma agência de prestígio e mesmo deauxílio a outros subalternizados naquelasociedade, prostitutas e meninos e meni-nas em situação de abandono.

Iniciadas em décadas anteriores, aspolíticas de branqueamento foram sistemati-zadas por meio do incentivo à imigração euro-péia durante a ditadura varguista. Ilustrativanesse sentido é a conversa da autora com umaimportante autoridade do governo, que expres-sa sua repulsa à grande presença de sangueafricano no Brasil, tão provocador do atrasodo país a ponto de justificar uma ditadura paramudar os rumos. Percebe-se, nesse breve co-lóquio, a manutenção das teorias raciais eu-ropéias do século XIX ainda campeando naárea governamental. Os negros são vistoscomo assustadores e perigosos a partir doolhar do Rio para a Bahia. Na Bahia, por suavez, são interpretados pela elite intelectuali-zada como cordatos, mansos e possuidoresde uma cultura exótica.

Desse modo, o livro, muito mais do queapresentar o candomblé da Bahia, pode serutilizado para enriquecer o debate sobre a exis-tência de um racismo demarcado no Brasil,embora as conclusões da autora procuremdemonstrar a ausência de tensões raciais. Éfácil entender essa premissa se levarmos emconta que, tendo vindo de uma experiênciado segregado Sul dos Estados Unidos, assis-tir às festas religiosas com participação debrancos e negros levam-na a corroborar asteses de que o Brasil teria encontrado o cami-nho da paz entre as raças.

Cidade das mulheres é parte obriga-tória da bibliografia de quem se propõe a es-tudar as relações raciais no Brasil e a consti-tuição da Bahia como campo de estudo dasreligiões de matrizes africanas.

Joselina da SilvaPesquisadora do Centro de Estudos Afro-

Brasileiros da Universidade Cândido Mendes

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Educação ambientale gestão participativaem unidades deconservaçãoCarlos Frederico B. Loureiro,Marcus Azaziel e Nahyda FrancaIbase/Ibama43 págs.

A Modernidade é marcada por uma profun-da tensão entre construir e destruir, resul-tante, em grande parte, de uma dinâmicasocial produtora de contradições e confli-tos. A mudança se tornou constante, asdesigualdades entre diferentes se acentua-ram e os remanescentes de natureza e cul-tura foram disputados por forças econômi-cas, sociais e políticas que desejavamdevorar os testemunhos de ecossistemas eda história humana.

Ao mesmo tempo em que engen-drou os destruidores, a Modernidade ge-rou os protetores, dois componentes que

se espalharam por um mundo ocidentali-zado. Assim, nasceram os conservacionis-tas e os defensores do patrimônio cultu-ral, no século XIX.

Com relação à natureza, o movimen-to de proteção está associado à criação deparques, unidades destinadas a manteramostras representativas de ecossistemasoutrora utilizados, sem maiores cuidados,como fontes de recurso. No Brasil, essa pre-ocupação concretizou-se com a criação doParque Nacional de Itatiaia, em 1937.

Com o tempo, outros mais nascerampor força de diplomas legais, grande partefruto da ação do movimento conservacio-nista. Demorou-se a notar que a simplesimplantação de unidades de conservaçãonão era suficiente para os fins pretendi-dos. As forças de destruição (e os confli-tos sociais em torno dos recursos) conti-nuavam ignorando ou não incorporandoao seu cotidiano esses redutos de nature-za a serem preservados ou utilizados deforma sustentada. Era necessário, com ur-gência, um trabalho de educação e de ge-renciamento democráticos.

Essa foi a percepção de CarlosFrederico B. Loureiro, Marcus Azaziel eNahyda Franca ao organizarem Educaçãoambiental e gestão participativa em uni-dades de conservação. Conscientes de quea crise socioambiental tem origem na estru-tura desigual e injusta da sociedade brasi-leira – e não em forças naturais –, os auto-res não se limitaram à proteção formal deamostras significativas de ecossistemas.

Afastando-se das propostas liberale revolucionária para tratar dos conflitos einjustiças socioambientais, eles caminhampela trilha de uma democracia radical, o quepressupõe a participação dos diversos ato-res sociais, não com o objetivo de camuflaras desigualdades ou pleitear a utopia dasociedade perfeita. Antes, entendem os

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R E S E N H A

conflitos como inerentes a uma sociedadecom interesses antagônicos e buscam nãoeliminá-los pela via de um grande eventoredentor, como a revolução armada, mascontribuir para que os explorados se forta-leçam e os gerenciem em seu benefício.

Impõe-se, pois, a necessidade de umprocesso de organização, que deverá serpromovido pela via de uma educação aten-ta aos conflitos derivados da apropriaçãodesigual dos recursos naturais. Os educa-dores comprometidos com essa propostadevem ter em mente o desenvolvimento dascamadas pobres da sociedade para que pos-sam alcançar qualidade de vida melhor eecologicamente sustentável.

A força desse roteiro, aberto para aformação de conselhos gestores de unida-des de conservação, res ide no r igorconceitual com que foi concebido. Os au-tores partem de premissa teórica consis-tente, da qual fazem derivar conceitoscomo desenvolvimento sustentável, edu-cação, educação ambiental, vulnerabilida-de socioambiental, ambiente, conflito so-cial e gestão participativa.

Muitos trabalhos bons param nesseponto, mas os autores de Educação ambi-ental e gestão participativa em unidadesde conservação vão mais longe, oferecen-do uma metodologia que apresenta concre-tamente os passos a serem dados em dire-ção à tomada de consciência, a uma práxisdialógica, à participação e à gestão.

Arthur SoffiatiDoutor em História Social pelo IFCS/UFRJ

e professor da UFF

“A busca por novas formas

de governabilidade demo-

crática passa pelo poder

local e pela ampliação

da esfera pública, pois é

na ação na territorialidade

local, articulada às questões

políticas do Estado-nação,

que os conflitos e tensões

são mais visíveis e os atores

sociais se relacionam

mais intensamente”

Carlos Frederico B. Loureiro, MarcusAzaziel e Nahyda Franca, no livro

Educação ambiental e gestão partici-pativa em unidades de conservação

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ESPAÇOE S P A Ç O A B E R T OLaura Moutinho*

Miscigenação, sensualidade e sexo “inter-racial”1 são tidos como algumas das características

que marcam a especificidade brasileira. Na tese de doutorado sobre relacionamentos afetivo-

sexuais “inter-raciais”,2 o ponto de partida foi o cotejamento dessa representação sobre Bra-

sil3 com as estatísticas realizadas por demógrafos e sociólogos de orientação quantitativa, que

apontam para um padrão marital homogâmico presente na sociedade brasileira. As mesmas

análises, que somente operam com relações maritais formais, identificaram a predominância do

par homem “negro”/mulher “branca” no país onde se veicula que a “mulata é a tal”. Um certo

paradoxo parece emergir do cruzamento dessas afirmações: no mesmo país que valoriza, em

diferentes âmbitos, a mestiçagem e a “mistura”, parece existir tabu com relação aos casamentos

“inter-raciais”. Em um nível, o desejo e o sexo “heterocrômico” são “desejáveis”; em outro, ao

menos o casamento (e por que não dizer também o desejo e o sexo?) aparece como “indesejável”.

Zonas de sombrae silêncio

1 Nesta análise, utilizo aspasnas classificações de “cor” e“raça”. Por meio desse pro-cedimento procuro, seguindoa sugestão de Fry (1996), res-saltar que “raça”, antes de serum conceito científico, é his-tórico, culturalmente construídono interior de uma certa con-cepção “nativa”, e não deveser concebido e utilizado deforma unívoca.

2 Ver Moutinho (2001).

3 Parte do levantamento dapesquisa foi possibilitada pelabolsa do 10o Concurso de Do-tações para Pesquisa sobre oNegro no Brasil, do Centro deEstudos Afro-Asiáticos/Funda-ção Ford, 1998.

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ABERTOSegundo Néstor Perlongher, “os agenciamen-tos do desejo seriam sociais, transindividuais,intersubjetivos. O desejo não ficaria restritoao individual subjetivado, mas percorreria ten-sões de força que atravessam diretamente ocampo social” (1987, p. 251). No tema em aná-lise, “raça” ou “cor” se circunscrevem comoum tensor que agrega fluxos libidinais em di-mensões necessariamente paradoxais: a) emum eixo, o desejável (o da representação na-cional, grosso modo operado pelo casal ho-mem “branco”/mulher “mestiça”), em outro,o desejo tabu (em geral, referido ao homem“negro” com a mulher “branca”); b) sua cons-tituição atravessa como um continuum o cor-po social: mobiliza desde uma argumentação“racista” e “exótica” até a que arregimentavalores “modernos” e “igualitários”; c) agre-gado às assimetrias de gênero, o vetor “cro-mático” opera sentidos e significados eróti-cos do caleidoscópio social de forma singular.

As interações experimentadas no tra-balho de campo, bem como o exercício dedocência, possibilitaram-me vivenciar umconjunto de situações que suscitam algumaspercepções, cuja reflexão gostaria de alinha-var a seguir. No interior dessas redes foi pos-sível, inicialmente, identificar certas narrati-vas sobre retraimento, constrangimento eauto-exclusão, que, vale destacar, apareceramde forma freqüente e variada nas narrativasdas pessoas entrevistadas sobre o tema, mar-cados por nuanças específicas de acordo coma rede de sociabilidade em jogo. Além disso,identificou-se no campo dos afetos e praze-res, uma margem de manobra, à qual os entre-vistados puderam recorrer para lidar com odesprestígio da “cor negra”. Vejamos algu-mas situações.

Branca de elite

Beto é filho de um homem “negro” com umamulher “branca”, classifica-se como “more-no”, possui 22 anos e é morador da Zona Oes-te. Estuda em um dos cursos de alto prestígiode uma universidade igualmente prestigiosado Rio de Janeiro. Ao ser perguntado se jáhavia namorado alguém dessa rede de socia-bilidade, respondeu “sim”, mas apressou-seem justificar que já conhecia a menina antesde entrar na universidade, explicitando da se-guinte forma seu conflito:

[...] eu não sei, pode ser uma coi-sa minha, tem uma retração tam-bém da minha parte porque antes[de entrar para a faculdade] éaquele negócio, eu não tinha olhosabertos [...], não esquentava acabeça, ia para qualquer lugar.[...] Acho que vou ter que fazeranálise depois daqui, tem tantacoisa que eu não consigo enten-der, mas eu não sei qual é a rea-ção que pode ter de repente.. .“esse cara vem me encher o saco”[...]. As patricinhas... eu não vejoqualquer possibilidade de elassaírem com um cara preto se po-dem sair com um branco.

A inserção em redes de sociabilida-de tidas como “branca” e de “elite” envol-ve diferenciadas questões. Atributos “ra-ciais” e de prestígio, identificados comu-mente como de “classe”, mesclam-sefortemente nesses casos. Ao estudar osarranjos afetivos “heterocrômicos”, ficouclaro que a percepção e o uso da categoriade “cor/raça” não podem ser dissociadosdos atributos de prestígio social e, comooutros autores já apontaram, variam de acor-do com o contexto em que são utilizados.Como Fry (1996) demonstrou, existem “mo-dos” de classificação de “cor” que são va-riáveis e mais freqüentes em determinadasclasses e segmentos sociais urbanos.

Foi em uma universidade tida como“branca” e de “elite” da Zona Sul cariocaque foram feitas observações de modo in-tenso. Inúmeras variáveis marcam a constru-ção desse olhar. O primeiro entrevistado foiToni, um rapaz de 20 anos que se classificacomo “negro”, também matriculado em umcurso de prestígio e que namorava uma “bran-ca” na universidade. É egresso de camadasmédias/altas da Zona Norte e se tornou, doissemestres depois, meu aluno: o “único ne-gro da turma!”. Certo dia, estava ministran-do uma aula sobre questão “racial”, tendocomo base um artigo de Peter Fry intitulado“O que a Cinderela Negra tem a dizer sobre a‘política racial’ no Brasil”. O rapaz aparente-mente não “agüentou” a discussão, respon-deu à chamada e saiu da sala. Discuti com osalunos as principais questões do texto e pro-pus, como exercício reflexivo, pensarmos

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como a questão “racial” era vivida e pensadana faculdade onde estudavam.

Falamos das oposições que estrutu-ram as redes de sociabilidade naquele espa-ço, até que alguém lembrou, com ar de críti-ca, indignação e denúncia: “Toni é o úniconegro da turma!”. Ato contínuo, uma meni-na retorquiu: “O que é isso? Ele não é negro,é moreno”. A afirmação foi uma surpresa, poiso próprio rapaz se classificara como “negro”e eu própria o percebia como tal. Outro gru-

po redargüiu, e ela respon-deu: “Geeeente, ele é comonóóós!”. Percebi, nesse mo-mento, que o rapaz em focohavia se inserido e era bemaceito pelo grupo. Uma in-serção que significava par-tilhar certos valores e ethosque indicam um processode pertencimento e igualda-de e uma percepção diferen-ciada da alteridade “racial”,ou, em outros termos, a“cor” parece ser, dada aproximidade, eventualmen-te eclipsada, ainda quenão-diluída.4

Juliana, uma bela jo-vem “negra” de 19 anos, emuma conversa informal, tam-bém é vista como a “únicanegra” da sua turma – fre-qüenta um outro curso dealto status da universidade.Vi-a várias vezes sentada nochão em animadas conver-sas com seus colegas. De

fato, a questão “racial” não se colocava paraela de modo relevante. Vejamos como ela re-sumiu sua experiência na universidade. Oriun-da de uma família de camadas altas do interiordo estado do Rio de Janeiro, afirmou que“sempre conviveu com brancos, sem proble-ma”. Disse, expressando-se com um ar quemisturava justificativa e constrangimento,não saber se o problema é dela ou não, mas“nunca senti o preconceito” – isso incluía nãosomente as interações sociais em geral comotambém o mercado dos afetos. Supõe que issotalvez se deva ao fato de “sempre ter convivi-do com brancos” e por causa do seu “meiosocial”. Esses dois fatores seriam, na per-cepção da entrevistada, a causa de sua “tran-qüila” inserção na universidade. Em outraspalavras, a “cor”, em sua narrativa, aparece

nesse caso submergida a seu pertencimentoa uma família de camadas altas, à convivênciacom “brancos”, de modo a neutralizar a sen-sação de preconceito e a discriminação.

A despeito das distintas classificaçõesde “cor” que as pessoas recebem em diferen-ciados espaços de sociabilidade e sua articu-lação com status, a vivência da “raça” no am-biente familiar é um importante norteador dapercepção e vivência das relações “raciais”na vida social articulada, como visto, a ou-tras variáveis.

Nessas histórias, destaca-se a diferen-ça de “cor” e da posição de classe no interiordessa rede. Entretanto, como demonstrado aseguir, creio que, mais do que diferença declasse, o que está aqui em questão são certosatributos de status valorizados nessa rede desociabilidade. O primeiro rapaz mencionado(Beto) declarou se sentir “discriminado” e“constrangido” no contato com amigos e“paqueras”. Embora se classifique como “mo-reno” e seja oriundo de camadas altas da ZonaOeste carioca, acredita que sua sensação defalta de lugar ocorre em razão da sua “cor”.

De fato, a “cor” foi uma questão vivi-da de forma especialmente latente em seumeio familiar – o que parece explicar, em par-te, a força com que a “raça” orienta sua vi-são de mundo –, mas creio que, no universoem questão, há ainda um outro fator extre-mamente relevante que apareceu em sua fala:ser associado aos alunos do Pré-Vestibularpara Negros e Carentes (PVNC), em váriosmomentos distintos, acabou por enfatizar suapercepção da “diferença racial”. Leiamos afala de Beto sobre isso:

[. . .] o cara olhou para minhacara e achou que eu era do pré-vestibular, pô, a minha roupa éessa aqui, igual a que todo mun-do está usando, qual o proble-ma? Então, só pode ser isso: pô,esse cara é preto, o cara é maismoreninho... Deve ter vindo dealgum pré-vestibular carente des-ses daí, entendeu?

Vale assinalar que, apesar de o rapazutilizar a categoria “carente”, ele acaba porenfatizar a referência à “raça”. Toni, o outrorapaz, classifica-se como “negro”, mas pos-sui uma inserção diferenciada – manipulacom eficiência uma série de atributos de pres-tígio. Além disso, entre outras coisas, estáciente (e lança mão), como discuti em outro

A vivência da‘raça’ noambiente familiaré um importantenorteador dapercepção evivência dasrelações ‘raciais’na vida social,articulada aoutras variáveis

4 Processo s imi lar pareceacontecer nas situações deamizade e intimidade entrepessoas de sexo diferente.Claudia Rezende (2001) iden-tifica essa tendência em suaanálise sobre amizade entrejovens e adultos pertencentesàs camadas médias urbanascariocas. Rezende recorre àamizade pa ra ana l i sa r ainter-relação entre as dife-renças de gênero e sua cone-xão com a noção de pessoa,buscando compreender a“dinâmica de negociação dasidentidades e alteridades”.

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ABERTOESPAÇONOV 2003 / DEZ 2003 69

momento, do erotismo atribuído à “cor ne-gra”. Para os dois, entretanto, não é fácil cir-cular por esse espaço.

Uma outra lógica explicativa da rela-ção entre “negros” e “brancos”, assim comoa possibilidade de discriminação “racial”,apareceu de forma recorrente nas entrevis-tas realizadas na universidade, seja com “ne-gros”, seja com “brancos” de camadas mé-dias: a questão da (ausência de) convivênciade “brancos de elite” e da “Zona Sul” do Riode Janeiro com “negros” em posições (e pro-fissões) de prestígio social. Vejamos outrafala de Beto:

[...] aqui [referindo-se tanto àZona Sul como à universidade],as pessoas estão acostumadas aver um cara preto como ascenso-rista, é um não-sei-o-quê. Vocênão vê o cara como um vizinhoteu, como um cara que estuda nomesmo colégio, que vai aos mes-mos lugares, que tenha as mesmaspretensões. [...] Elas [as pesso-as] parecem ter uma certa difi-culdade em [fazer] amizade, en-tendeu? Porque, às vezes, estátodo mundo conversando e tal,mas ‘aquele’ você não chamapara ir para lugar nenhum, con-versa só algumas coisas. Eu achoque a pessoa não tem referênciaque seja igual a ele, que faça asmesmas coisas que ele [...].

Profissão da cor

Chamou a atenção como a narrativa de Betonão é isolada. A justaposição da “cor/raça” ede uma profissão de baixo status e qualifica-ção evidencia que tanto no que tange às pos-sibilidades de interação entre os diferentesgrupos de “cor” como de se manter relacio-namentos afetivo-sexuais “heterocrômicos”,o convívio (ou não) com “negros” (em umasituação de igualdade e prestígio social) apa-rece como uma categoria central para justifi-car as possibilidades de interação em termosde amizade, sexo e amor, assim como de com-partilhar as redes de solidariedade existen-tes. Vejamos mais um exemplo.

Tuzzi tinha 23 anos por ocasião da en-trevista, classificava-se como “branco” e já eraformado em desenho industrial pela mesmauniversidade no ano em que foi entrevistado.

Sempre morou no bairro do Catete, Zona Suldo Rio de Janeiro. Estudou em colégio públicoe, embora vivesse na Zona Sul, uma área deelite, disse que “conviveu com pessoas quenão tinham muita grana”. Acha que esse fatoro influenciou positivamente. Sua vida social éativa desde os 15 anos. Tinha vários grupos: ogrupo do colégio, o da rua e o da praia. Nocolégio, normalmente “ficava bebendo em bare depois ia para o baile funk” em favelas – comoos bailes dos morros do Fogueteiro (Rio Com-prido), Chapéu Mangueira (Leme), Serro Corá(Cosme Velho), Morro Azul (Flamengo), SantaMarta (Botafogo), que eram “da moda” quan-do ele era adolescente. Disse-me que, com ogrupo da rua, ia para os forrós.

Tuzzi afirmou que “nunca” teve “ne-nhuma barreira de namorar mulher negra”.Enfatizou inúmeras vezes ao longo da entre-vista que, na sua rede de sociabilidade, “issoera normal”. Sua namorada, inclusive, é “mo-rena, bem morena”. Em parte, atribui esse fa-tor à vivência com pessoas de distintas “co-res” proporcionada pela formação em escolapública e nos bailes funks. Disse-me que

esse papo da mídia, da beleza serbranca, na época eu não questio-nava essas coisas porque eu fre-qüentava esses lugares. Esse erameu mundo, eu não tinha consci-ência dessas coisas que aparecemna mídia, da beleza ser branca,porque meu mundo era outro. [...]Ah, o baile funk... Aí, depois euentrei na faculdade... “Pô, cadêas meninas negras?” Não tem!Embora eu já soubesse que nãotinha... Mas, pô, o pessoal aquié diferente. [...] Então, é que euvi que meu grupo era um grupodiferente. [.. .] Convivendo [nafaculdade] é que você vê como écomplicado ter um relacionamen-to com uma negra. Nas boites daZona Sul, por exemplo, você nãovê negro. E quando você traz issopara a realidade... “Seu amigoestá namorando uma negra”. Aí,rola aquela diferença. Porquevocê não está acostumado a con-viver com aquilo. [...].

Essa lógica, que foi recorrente nas en-trevistas, parece similar à apresentada por al-guns entrevistados acerca dos constrangi-mentos vividos contra seus relacionamentos

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ABERTO

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ESPAÇOnas redes familiares e de parentesco.Também nesse depoimento, não se perce-bem acusações pessoalizadas de “racismo”.Mais uma vez, alguma referência exterior àspessoas (como a convivência, por exemplo)foi utilizada para justificar as situações dediscriminação com base na “cor” (às vezes,agregadas à “classe”, uma interpretaçãolocal que se refere a uma série de elementosde prestígio social).

Os casos anteriormente mencionadostangenciam várias das questões presentes naliteratura clássica – notadamente aqueles quepodem ser identificados sob a rubrica “a inte-gração dos negros na sociedade de classe” –construídas à luz da polarização, assimilaçãoou resistência dos valores da sociedadeabrangente. Mas merecem, acredito, umenquadramento distinto. A questão, aqui, nãoparece se encaixar no estereótipo dos “ne-gros socialmente brancos” ou do “negro dealma branca”, uma idéia presente em váriosautores clássicos como Donald Pierson,Florestan Fernandes, entre outros5 e cele-brada como o sintoma de um desejo de “em-branquecimento” por parte de “negros” e“mestiços”. Faz-se necessário analisar essaquestão com cuidado. Seria o caso de per-guntar o que significa esse “desejo deembranquecer”: trata-se de “branquear” aprole? Trata-se de desejar uma mulher ou ho-mem “brancos”? Ou de incorporar o que senomeou de “hábitos brancos”?

Por oposição, podemos perguntar oque seriam hábitos “negros”? Candomblé ousamba, por exemplo? Nesse sentido, a análi-se de Maggie (1992) identificou um maior nú-mero de “brancos” e imigrantes entre os acu-sados de feitiçaria no período de repressãoaos chamados cultos afro-brasileiros, assimcomo da análise de Fry (1982) acerca da in-corporação de símbolos étnicos como sím-bolos de nacionalidade e do recurso, identi-ficado em artigo recente, em que o autorafirma que

talvez seja assim porque os sím-bolos de identidade negra foramfreqüentemente retirados de forado Brasil, tais como o reggae noMaranhão, hip hop no Rio deJaneiro e em São Paulo e, f i-nalmente, a própria África, es-pecialmente na Bahia, [...] comos grupos “afro” de carnaval.(Fry, 2000, p. 105)

As trajetórias dos dois rapazes menci-onados (Toni e Beto) são marcadas por con-flitos que podemos classificar como de “cor”e “classe”. No entanto, a inserção e opertencimento de Toni em especial (mas tam-bém de Juliana) não excluem a auto-identifi-cação como “negro”, tampouco a expressãode “orgulho étnico”. Como apontou AngelaFigueiredo (1999), um projeto ascensional nãoé atualmente percebido e vivido em oposiçãoao “orgulho étnico-racial”. Mas no campo dosafetos e desejos, que se configura no foco dapresente análise, veremos como os atributoseróticos e de prestígio relacionados à “cor” eà “classe” podem ser manipulados (ou não) evividos. Além disso, talvez seja novamente ocaso de perguntar o que significa “orgulhoétnico-racial”: apenas se classificar como “ne-gro” ou se classificar com um discurso queindica que a pessoa está “assumindo a suacor”? Ou, ainda, como desejava Abdias doNascimento na peça Sortilégio, “assumir” a“cultura negra” como um ato de defesa con-tra a aculturação? Há um verdadeiro abismoentre essas percepções de identidade “raci-al”. Com propriedade, Figueiredo defende aemergência de uma “‘nova identidade negra’nas duas últimas décadas” (1999, p. 119). Apublicidade e a produção de bens de consu-mo parecem ser, nesse sentido, os principaissímbolos dessa mudança social.6 Algo que,como afirmou Márcia Lima (2001), ainda nãoaparece refletido nos dados sobre desigual-dade e mobilidade social.

Acusação e denúncia

Na verdade, a principal forma que a idéia de“embranquecimento” tomou entre as pes-soas entrevistadas – como em NelsonRodrigues, Abdias do Nascimento, FlorestanFernandes, Roger Bastide e Costa Pinto, guar-dadas as diferenças anteriormente apontadasentre os autores – foi a de categoria de acu-sação e denúncia. Essas acusações se imis-cuem, ainda, no mundo dos afetos com recla-mações de homens e mulheres “negros” e“mestiços” de que aqueles que ascendem pre-ferem os(as) brancos(as). O cerne dessa ques-tão, assim como sua possibilidade de solu-ção, evoca novamente a questão do convíviocom “negros” em posição de igualdade (eprestígio social), anteriormente mencionada.

Além dos aspectos relativos aos“constrangimentos e exclusões”, pude iden-tificar espaços de manobra que os “negros”

5 Para uma análise crítica daquestão nos referidos autores,ver Figueiredo, 1999.

6 Sobre publicidade, ver Fry(2002).

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recorrem nessa rede de sociabilidade. Nessestermos, é destacado aqui mais um aspectopresente nessa intrincada lógica de relação.Ortner e Whitehead (1981) destacam que asestruturas de gênero devem ser pensadascomo estruturas de prestígio. A associaçãoentre o masculino com o domínio público nãoesgota, para as autoras, a complexidade des-sa relação. As estruturas de prestígio sãomostradas como aquelas que vêm a hierar-quizar as relações nesse domínio. Mais queestar desempenhando um papel no domíniopúblico, interessa saber de que modo essepapel aloca o indivíduo na estrutura de pres-tígio. Pela análise realizada, creio que se podeafirmar que o prestígio social (dado por opo-sição ao estigma que a “cor” evoca) é, igual-mente, estruturador das relações entre “bran-cos” e “negros”: no âmbito das relaçõesafetivo-sexuais “heterocrômicas”, a “cor” éum elemento central na construção dos gêne-ros masculino e feminino.

Essas observações me parecem inte-ressantes quando as articulamos às intera-ções entre masculinidade, “cor” e atributosde prestígio social no mercado dos afetos eprazeres do espaço supracitado. Toni possui,segundo ele mesmo e outra entrevistada,“status na faculdade”. Não está circunscritoa um espaço único: circula com desenvoltura,possui boas relações com os professores eprofissionais vistos como decisivos nessecontexto e sabe que isso atrai as mulheres,sendo, portanto, uma importante moeda detroca no mercado dos afetos e prazeres local.Atrelado ao prestígio adquirido, o rapaz per-cebe, como vários outros entrevistados per-ceberam, que “a diferença atrai”; trata-se dopotencial erótico/afetivo da diferença de“cor”, “classe” e prestígio, da atração que osestereótipos eróticos e estéticos associadosà “cor negra” ressaltam e do espaço de mani-pulação que os atores possuem. Vejamoscomo outros entrevistados lidam com odesprestígio da “cor negra”, seus constran-gimentos e o espaço de manobra que conse-guem criar no interior desse quadro de desi-gualdade social. A narrativa a seguir é, nessesentido, dramática.

Lídia estava com 33 anos por oca-sião da entrevista, é “negra”, fazia pós-gra-duação na área de humanas, é casada comum médico “branco” (“dedicado e muitoprofissional”) e “se esconde” em certas si-tuações “para não prejudicá-lo”, por exem-plo, não o acompanhar em entrevistas para

empregos ou alguma outra situação que, deacordo com seu cálculo, possa acarretarprejuízo profissional. Eles são muito “com-panheiros” e reconhecem as possibilida-des de discriminação que uma mulher “ne-gra” e um homem “branco” podem sofrer.Assim, preferem se precaver. Além disso,sendo seu marido um médico, na sua per-cepção a situação piora, pois existe uma“mística” em torno dessa profissão, demodo que, se ela o acompanhasse em al-gumas “situações profis-s ionais”, poderia vir a“prejudicá-lo”. No churras-co de formatura do marido,por exemplo, sentiu os“olhares” de estranhamentodos seus amigos quando elachegou. Ela acha que, quan-do a vêem com o marido, aspessoas pensam: “É o es-trangeiro com uma negra” ou“O que um branco dessesvai querer com uma negra?”.Foram essas percepções queos levaram a “manter certascoisas separadas”.

Na fala de Lídia, nãohá menção de tensão “raci-al” na relação dela com omarido, nem com seus ami-gos íntimos: o problema sealoca nas relações profissi-onais dele. Tanto que a en-trevistada explicitou seu cui-dado e carinho no momentode prepará-lo para uma en-trevista, por exemplo, cuidando das roupas eajudando em tudo que seria necessário naprodução de uma “boa aparência”. Mas deixaexplícito seu receio de que sua “cor” venha a“contaminar” seu prestígio profissional e,para tanto, encontrou um espaço de manipu-lação desse estigma visando contornar a dis-criminação e os problemas que poderiam en-frentar em seus relacionamentos.

Toni, que, como demonstrei, possui“boa” inserção em uma rede de sociabilidade“branca” e de “elite”, afirmou, ao relatar a rea-ção dos amigos do casal ao seu namoro, quevários deles, de ambos os lados, afastaram-se:

[...] as pessoas que eram próxi-mas saíram, nós tínhamos amigosdos dois lados que saíram. [...] Seafastaram de nós. [...] Da mes-ma turma, colegas dela, muitas

O prestígiosocial (dado

por oposição aoestigma que

a ‘cor’ evoca)é, igualmente,

estruturadordas relações

entre ‘brancos’e ‘negros’

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ESPAÇO

colegas dela... quando a gentecomeçou a namorar, a [fulana]tinha uma obsessão pela discri-ção que eu não entendia. Depois,eu vim ver o quão cruéis as pes-soas são... [...].

As falas acima se equilibram entre oconstrangimento social, a auto-exclusão e amanipulação dos atributos de estigma, visan-do à proteção de si e do relacionamento. Asdiscussões e análises propostas nestas pági-nas visam, em primeiro lugar, abrir uma escu-ta aos entrevistados sobre seus dramas, con-flitos e as soluções encaminhadas – algobastante controlado na literatura que tratoudo tema. Em segundo lugar, demonstrar as di-versas estruturas de prestígio que incidemsobre a classificação de “cor” quando o mun-do dos afetos e prazeres alcança a esfera

familiar, de parentesco e as redes de amizadee solidariedade. Nesse ponto, destaco a re-corrente ênfase dos entrevistados em não uti-lizar a “raça” ou o “racismo” como definidorda pessoa. Por fim, visa enfatizar que – aocontrário da chave explicativa de DonaldPierson e Florestan Fernandes, guardadas asdiferenças entre os autores – as referênciasutilizadas pelos informantes, mais que se ateràs diferenças de “classe”, referem-se às es-truturas de prestígio que articulam “raça” agênero e, em algumas situações, ao erotismo.Além do desprestígio (e constrangimentos)imposto pela “cor negra”, os entrevistadosrevelaram espaços de manobra e manipula-ção das estruturas de estigma e prestígio quenos permitem compreender alguns dos equi-líbrios evocados nas situações de desigual-dade social com base na “raça”.

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* Laura Moutinho

Doutora em

antropologia pela

Universidade Federal do

Rio de Janeiro (UFRJ),

professora visitante do

Instituto de Medicina

Social (IMS) da

Universidade do Estado

do Rio de Janeiro (Uerj)

e pesquisadora

vinculada ao Centro

Latino-Americano em

Sexualidade e Direitos

Humanos (Clam) do

IMS/Uerj.

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C U L TC U L T U R ALuiz Carlos Mello*

IMAGENS que

Fernando Diniz Fernando Diniz

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U R Arevelam o inconsciente

Fernando Diniz Ênio Sérgio

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Quem visitar o Museu de Imagens do Incons-ciente1 irá se confrontar com imagens inquie-tantes (e muitas vezes belas) que compõem oseu acervo estimado em 300 mil obras, acu-muladas em seus 55 anos de existência. Omuseu nasceu em 1952, com a produção dosateliês de atividades expressivas como pintu-ra, modelagem e xilogravura. Essas obras fo-ram estudadas em diferentes áreas, como an-tropologia, psicologia, psiquiatria, história daarte e religião, com o intuito de decifrar osmisteriosos processos que se desdobram nointerior de indivíduos que vivenciaram um pro-fundo mergulho no inconsciente.

Inconformada com os métodos violen-tos de tratamento psiquiátrico em uso comoeletrochoque, coma insulínico e a lobotomia,a drª Nise da Silveira encontrou na terapêuticaocupacional uma outra forma de tratamentopara as pessoas esquizofrênicas. Fundou, en-tão, em maio de 1946, o Serviço de Terapêuti-ca Ocupacional no Centro Psiquiátrico Pedro IIdo Rio de Janeiro, que progressivamente atin-giu 17 atividades, entre elas, sapataria, cestaria,teatro, jardinagem, música, carpintaria, enca-dernação e recreação.

O ateliê de pintura foi aberto em 9 desetembro de 1946. Tinha como monitor o ar-tista Almir Mavignier, hoje pintor de renomeinternacional e professor de arte. Sua partici-pação foi fundamental ao oferecer – e tam-bém ao descobrir – as melhores condições paraque os internos pudessem criar livremente semque houvesse qualquer interferência.

O Centro Psiquiátrico naquela épocatinha 1.500 internos, em sua maioriaesquizofrênicos crônicos que normalmente fi-cavam abandonados nos pátios do hospital.Nesses pátios e nasenfermarias, foi sendodescoberto (e reunidono ateliê) um grupo deesquizofrênicos cujaprodução logo come-çou a se destacar.

As oficinas daterapêutica ocupacio-nal foram atraindo,para seus diversos se-tores, pessoas aban-donadas nos pátios dohospital psiquiátricoao azar da não-ação,numa vida completa-mente incógnita portrás de seus uniformes.

Na luta pela mudança do ambiente hospitalar,foram surgindo, quase ao mesmo tempo, se-res excepcionais como Emygdio, Raphael,Adelina, Isaac, Carlos, Fernando, Abelardo,Octávio e Lúcio, possuidores de uma capaci-dade de expressão extraordinária.

Três meses após a inauguração do ate-liê, já havia material suficiente para organi-zar uma pequena exposição. Assim, em 22de dezembro de 1946, foi inaugurada noantigo Centro Psiquiátrico Nacional, atualInstituto Municipal Nise da Silveira, a pri-meira mostra de imagens pintadas pelos do-entes. A exposição despertou grande inte-resse, sendo logo transferida, em fevereirode 1947, para o edifício-sede do Ministérioda Educação, localizado no Centro da cida-de, possibilitando acesso ao grande públi-co. Para surpresa da drª Nise, os psiquiatrasbrasileiros se interessaram menos por essaprodução do que os críticos de arte e o pú-blico em geral. Escreveram sobre as obras,nos jornais da época, Antônio Bento, RubemNavarra, Mark Berkosvitz e outros.

Entre eles, destacamos Mário Pedrosa,crítico de arte do jornal Correio da Manhã, cujacompreensão sobre o assunto aparece de for-ma clara e profunda.

O ar t i s ta não é aque le que sa idiplomado da Escola Nacional deBelas Artes, do contrário não have-ria artista entre os povos primitivos,inclusive entre os nossos índios. Umadas funções mais poderosas da arte– descoberta da psicologia moderna– é a revelação do inconsciente, eeste é tão misterioso no normal comono chamado anormal. As imagens do

Emygdio de Barros

1 Visitação pública de se-gunda a sexta-feira, das 9 às16 horas.

Rua Ramiro Magalhães, 521 –Engenho de Dentro – Rio deJaneiro-RJ – CEP 20730-460.

Tel./fax: (21) 2596-8460

C U L T U R A

[email protected]

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inconsciente são apenas uma lingua-gem simbólica que o psiquiatra tempor dever decifrá-las. Mas ninguémimpede que essas imagens e sinaissejam, além do mais, harmoniosas,sedutoras, dramáticas, vivas ou be-las, enfim, constituindo em si verda-deiras obras de arte.

Engenho de Dentro

Em 1949, o crítico de arte francês Leon Degand,então diretor do Museu de Arte Moderna deSão Paulo, visita, a convite de Mário Pedrosa,a seção de Terapêutica Ocupacional. Degandfica impressionado com a qualidade artísticadas obras, propondo, então, uma exposiçãopara o público de São Paulo. A seleção realiza-da por ele e Mário Pedrosa teve como título 9artistas de Engenho de Dentro e foi inaugura-da em 12 de outubro de 1949. No prefácio docatálogo, a drª Nise afirma:

O diretor do Museu de Arte Moder-na de São Paulo visitou o estúdio depintura e escultura do Centro Psiqui-átrico do Rio e não teve dúvida ematribuir valor artístico verdadeiro amuitas das obras realizadas por ho-mens e mulheres aí internados. Tal-vez esta opinião de um conhecedorde arte deixe muita gente surpreen-dida e perturbada. É que os loucossão considerados comumente seresembrutecidos e absurdos. Custaráadmitir que indivíduos assim rotula-dos em hospícios sejam capazes derealizar alguma coisa comparável às

criações de legítimos artistas – quese afirmem justo no domínio da arte,a mais alta atividade humana.

A exposição 9 artistas de Engenho deDentro teve enorme repercussão de público ena imprensa. Destacamos crônicas de SérgioMilliet, Quirino da Silva, Osório Borba, Jorgede Lima e Flávio de Aquino.

Além do reconhecimento do valor ar-tístico do acervo por artistas e especialistasem arte, o museu realizou, ao longo de seus54 anos de existência, mais de cem exposi-ções no Brasil e no exterior, dando maior ên-fase ao aspecto científico da coleção por meiodas pesquisas desenvolvidas pela drª Nise eseus colaboradores. O museu enviou repre-sentação para três congressos mundiais depsiquiatria: Paris, 1950; Zurique, 1957; e Riode Janeiro, 1993.

As exposições sempre atraíram grandepúblico, pelo fascínio das formas ou pela reve-lação do inconsciente, destacando-se Imagensdo inconsciente (no Museu de Arte Modernado Rio de Janeiro, por ocasião do centenáriode C. G. Jung, em 1975), Os inumeráveis esta-dos do ser (no Paço Imperial do Rio de Janeiro,em 1987, e em Roma, em 1996, como repre-sentante dos países de língua portuguesa, porocasião das comemorações dos 50 anos da Or-ganização das Nações Unidas/ONU) e Arqueo-logia da psique (na Casa França-Brasil, Rio deJaneiro, em 1993, e em outras capitais brasi-leiras). Em 2000, na Mostra do Redescobrimen-to no Parque Ibirapuera (SP), participamos doMódulo imagens do inconsciente, que inseriu,de forma definitiva, esses artistas dentro dahistória das artes brasileiras.

Emygdio de Barros Emygdio de Barros

IMAGENS QUE REVELAM O INCONSCIENTE

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As imagens produzidasno ateliê levantavam questõese interrogações que não en-contravam resposta na forma-ção psiquiátrica acadêmica.Essas questões impulsiona-ram a drª Nise para a busca deconhecimento e aprofunda-mento dos processos que sedesdobravam no interior da-queles indivíduos, reveladospor meio das imagens e sím-bolos. Após visita ao museu,em 1974, Ronald Laing, expo-ente da psiquiatria inglesa,deixou escrito que o trabalholá realizado representa umacontribuição de grande im-portância para o estudo cien-tífico do processo psicótico.

Essas pesquisas, con-trariamente à visão psiquiátri-ca predominante, nunca pro-

curaram descobrir patologia nas produções,mas sim penetrar nas dimensões e nos mistéri-os dos processos do inconsciente. As imagensconstituem material sadio, universal, e, muitasvezes, sua compreensão se faz por meio da pes-quisa comparada com as histórias da religião,da arte, mitologia etc., numa verdadeira arque-ologia da psique.

No acervo do Museu de Imagens do In-consciente, temos centenas de exemplos des-ses paralelos, constituindo numa verdadeiraviagem pelo tempo, desde o período neolítico,passando pela civilização egípcia, indo-persa egrega, até a alquimia na Idade Média. A emer-gência em nossos dias de conteúdos e símbo-los, que fazem parte da história humana emdiferentes épocas e locais, comprova ahistoricidade e a atemporalidade da psique.

Mandalas

A ferramenta principal para a prática terapêu-tica e a compreensão das imagens que surgi-am espontaneamente nos ateliês veio pormeio da psicologia junguiana. A drª Nise ob-servou que as formas circulares ou próximasdo círculo apareciam em grande quantidadena pintura das pessoas esquizofrênicas. Comointerpretar esta aparente contradição: pesso-as definidas como seres partidos (esquizo =cisão, phrenis = pensamento) produzindo,de forma espontânea, o símbolo universal daunidade, o círculo?

Em 1954, depois de reunir centenasdessas imagens, drª Nise escreve carta ao pro-fessor Jung, enviando fotografias e levantan-do questões sobre sua significação e origem.A resposta afirmativa foi imediata: erammandalas, que representavam o potencialautocurativo existente na psique como formade compensar a dissociação. Drª Nise viu-sediante de uma abertura nova para a compre-ensão da esquizofrenia. Esse encontro trou-xe de forma definitiva a psicologia junguianapara o Brasil.

Como fazer essas forças curativas ma-nifestarem-se no ambiente hostil que nor-malmente é o hospital psiquiátrico? Confir-mava-se, mais uma vez, a importância doambiente favorável e do afeto para que oprocesso de cura pudesse acontecer. Em seuespaço de trabalho, nunca houve grades, eas pessoas que o freqüentavam eram cha-madas pelo nome. Era o afeto catalisador –assim chamado pelo monitor nas oficinas,como também a utilização do animal na te-rapia –, numa analogia à química, que assimclassifica as substâncias que aceleram a ve-locidade das reações.

Em 1981, a doutora publicou o livroImagens do inconsciente, traduzido para oinglês. Durante a sua produção, à medida queo trabalho evoluía, o texto era enviado junta-mente com as fotografias das imagens parasubmetê-lo à apreciação de Marie-Louise vonFranz, uma das mais importantes colabora-doras de Jung. Em quase todas as suas res-postas, breves e sintéticas, vinham elogios:“É muito reconfortante saber que alguémcompreendeu tão bem Jung do outro ladodo mundo. E eu admiro a clareza e a coragempela qual você diz o que deve ser dito”.

Em 1956, a drª Nise fundou a Casa dasPalmeiras, uma experiência piloto em psiqui-atria que tem como princípio evitar o ciclo dereinternações e que é destinada ao tratamen-to e à reabilitação, funcionando em regimede externato. A experiência lá desenvolvidaabriu portas para o surgimento de diversostipos semelhantes de instituições, sempre emregime de externato, implantando uma novapolítica de saúde mental que procura evitaras onerosas e cruéis internações, colaboran-do para a extinção gradual das instituiçõesasilares. Iniciativas como o Espaço Aberto aoTempo, no Rio de Janeiro, e os Centros deAtenção Psicossocial (Caps), inicialmente or-ganizados em Campinas, São Paulo e Santos,espalham-se pelo país.

Lúcio Noeman

C U L T U R A

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* Luiz CarlosMello

Diretor e curador do

Museu de Imagens do

Inconsciente

Seu trabalho renovador na psiquiatriaencontrou muitas dificuldades. Por seu espíritocombatente, denunciando as formas agressivasde tratamento e internação, foi perseguida e boi-cotada. Por falta de recursos, muitas vezes os tra-balhos no ateliê eram feitos em jornais, nos diári-os oficiais que pegava na administração, para queos freqüentadores não deixassem de desenvolversuas atividades. A incompreensão do seu traba-lho pioneiro no uso de cães e gatos como co-terapeutas levou-a a enormes sofrimentos com odesaparecimento e o envenenamento de animais.Naquela época, manteve correspondência compesquisadores americanos estadunidenses sobrea relação ser humano/animal. Um deles, o psica-nalista estadunidense Boris Levinson, comentousobre a morte dos animais: “Sem dúvida, paramuitos desses doentes, os animais eram sua úni-ca linha de vida para a saúde mental”.

O Museu de Imagens do Inconscien-te encontra-se à disposição do público paravisitas, estudos e pesquisas. Promove expo-sições em sua sede e fora dela, cursos, visi-tas orientadas, apresentação de vídeos e gru-po de estudos. No museu, pode-se constatara importância de Nise da Silveira, que, peloseu trabalho revolucionário, acumulou aolongo da vida títulos e prêmios em diferen-tes áreas do conhecimento: saúde, educa-ção, arte e literatura. Seu trabalho e seusprincípios inspiraram a criação de museus,centros culturais e instituições psiquiátricasno Brasil e no exterior.

No dia 14 de agosto de 2003, o Con-selho do Instituto do Patrimônio Históricoe Artístico Nacional aprovou, por unanimi-dade, o tombamento das principais cole-ções do museu.

O bem versus o mal

Lúcio, um escultor extraordinário, participouda exposição 9 artistas de Engenho de Den-tro. Suas obras representavam guerreiros paraprotegê-lo na sua luta cósmica contra as for-ças do mal. Foi lobotomizado na mesma épocado evento, apesar de todas as investidas deNise da Silveira contra tal cirurgia. O médicoresponsável pela operação publicou artigo naRevista de Saúde Mental, onde apresentavao hemisfério cerebral antes e depois da ope-ração. Drª Nise, posteriormente, publica namesma revista a produção plástica de Lúcioantes e depois da operação. Seus trabalhostornaram-se irreconhecíveis, regredindo àmais primária condição. O alienista responsá-vel por esse procedimento escreveu no pron-tuário, numa entrevista com Lúcio, após aoperação: “Ele diz: enfiaram ferros na minhacabeça e transformaram a luta entre o bem eo mal numa luta de gato e rato”.

Esse exemplo de destruição de umindivíduo foi denunciado por Nise daSilveira de diversas maneiras: em livros,palestras e no 1o Congresso Mundialde Psiquiatria. Ela não só se negava arealizar tais práticas como também ascombatia com todas as suas forças.“A beleza das imagens do inconscien-te é denúncia. Denúncia do asi lo, doexercíc io burocrát ico das profissõespsiquiátricas e da sociedade que culti-va tais deformidades”.

Essa operação, feita há tantos anos,não é coisa do passado. A Comissão deDireitos Humanos da Câmara dos De-putados, no ano de 2000, formou ca-ravanas que visitaram instituições psi-quiátricas por todo o Brasil. Elas cons-tataram a realização de neurocirurgiasno estado de Goiás.

IMAGENS QUE REVELAM O INCONSCIENTE

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