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5/8/2014 Claro! Online - Consciência Vigiada: A história de Débora http://www.eca.usp.br/babel/exibir2.php?edicao_id=5&materia_id=58 1/5 Buscar Consciência Vigiada: A história de Débora Por Nilbberth Silva - Edição U-turn - dezembro de 2011 “Babilonia, a grande” (Crédito: publicações da Sociedade Torre de Vigia) A rua estava cheia de gente, como no Carnaval; mas em vez de dançar, as pessoas estavam pegando fogo e caindo em um abismo. Algumas pessoas derretiam. Outras viam suas línguas caírem em chamas. O fogo descia do céu e as testemunhas de Jeová contemplavam os ímpios sendo destruídos sem sentir nenhum dó. Era assim que Débora (nome fictício) imaginava o final do Armagedom, descrito pela sua mãe quando era menina. A grande guerra acabaria com o mundo em 1975, quando a moça tivesse 20 anos. Cristo venceria; depois o fogo exterminaria quem não fosse testemunha de Jeová. - Mas mãe, o Moacir não é testemunha de jeová, mas é tão bonzinho. Ele vai ser Nesta Edição A ilusão está nos olhos 80 dias Consciência Vigiada Consciência Vigiada: A história de Leila Consciência Vigiada: A história de Débora Contramão Fernando Bonini, um rascunho sem arte final Herdeiros de um estigma Lanny Gordin está com fome Paradoxais almas gêmeas Mãe militante estudante O Dia das Mães que não acabou O Olimpo do Piauí O pênalti que não foi Pé no chão, sonhos nas alturas Sem piedade, sem remorso, sem freio Um passo, uma vida Mulheres reais Uma Santa chamada Cecília Un día me cambio Anteriores Anônimos - junho de 2013 Metrópole - junho de 2011 Acredito - dezembro de 2012 U-turn - dezembro de 2011 Home | Expediente | Home Atual

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Buscar

Consciência Vigiada: A história de DéboraPor Nilbberth Silva - Edição U-turn - dezembro de 2011

“Babilonia, a grande” (Crédito: publicações da Sociedade Torre de Vigia)

A rua estava cheia de gente, como no Carnaval; mas em vez de dançar, as pessoas

estavam pegando fogo e caindo em um abismo. Algumas pessoas derretiam.

Outras viam suas línguas caírem em chamas. O fogo descia do céu e as

testemunhas de Jeová contemplavam os ímpios sendo destruídos sem sentir

nenhum dó.

Era assim que Débora (nome fictício) imaginava o final do Armagedom, descrito pela

sua mãe quando era menina. A grande guerra acabaria com o mundo em 1975,

quando a moça tivesse 20 anos. Cristo venceria; depois o fogo exterminaria quem

não fosse testemunha de Jeová.

- Mas mãe, o Moacir não é testemunha de jeová, mas é tão bonzinho. Ele vai ser

Nesta Edição

A ilusão está nos olhos

80 dias

Consciência Vigiada

Consciência Vigiada: A história de

Leila

Consciência Vigiada: A história de

Débora

Contramão

Fernando Bonini, um rascunho sem

arte final

Herdeiros de um estigma

Lanny Gordin está com fome

Paradoxais almas gêmeas

Mãe militante estudante

O Dia das Mães que não acabou

O Olimpo do Piauí

O pênalti que não foi

Pé no chão, sonhos nas alturas

Sem piedade, sem remorso, sem

freio

Um passo, uma vida

Mulheres reais

Uma Santa chamada Cecília

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destruído e a gente não vai ter dó dele? Nem a senhora que é mãe dele?

- A Bíblia diz que não. As outras pessoas tiveram tempo para servir a Jeová e não

quiseram!

Moacir nunca aceitou ser testemunha de Jeová. Quando ia para o salão, virava de

costas para quem falava. A mãe ameaçava:

- Eu não vou lavar sua roupa.

- Eu lavo.

- Você não vai comer.

- Eu não como.

Débora acalmava o horror do Armagedom pensando no Paraíso futuro. Lá seria

bom: ninguém mais ficaria velho ou doente; o cacho de uvas seria tão grande que

dois homens não conseguiriam carregá-lo. A menina descansaria da rotina de cultos

e trabalho na vizinhança.

- Você vai ter muita coisa para fazer no Paraíso, Débora. Nós teremos que enterrar

os mortos da guerra que não forem comidos pelos urubus.

Conteúdo:

Pequena testemunha

Servindo no reino

Tudo ou nada

Pela porta da frente

Pequena testemunha

Tuc! Paf! Puf! Débora voltava do salão do reino das testemunhas de jeová levando

coques, beliscões e puxões de orelha da mãe. A menina, com cinco anos em 1960,

achava justo. Não conseguia ficar quieta na reunião: entrava no culto atrasada,

ficava olhando para os lados, sorria, balançava as pernas, levantava para ir ao

banheiro, sentava no chão. Os anciãos reclamavam.

A menina cresceu testemunha de Jeová, em um cômodo onde moravam onze

pessoas; ela tinha vindo de navio, junto com a carga para São Paulo e passaria os

primeiros 20 anos da vida caminhando três vezes por semana até o salão do reino

no bairro do Jardim Peri Alto, em São Paulo, onde morava. A mãe não a deixava

conversar com ninguém fora do circuito salão- escola-campo de pregação.

Para evitar, dentro do possível, a própria destruição, Débora não afanava dinheiro.

“Jeová vai ver se eu roubar!”, dizia para as outras crianças. Pelo mesmo motivo,

não cantava o hino nacional quando ia para o Ginásio. Fazia questão de afrontar a

professora, mostrando que não tinha compromisso com o país nem sua ditadura

militar. Acabou indo para a diretoria e passou a mexer a boca toda manhã, fingindo

que cantava.

O cunhado abusava dela – atraia com um doce, ou um pouquinho de dinheiro.

Levava para a casa. Débora fazia o que ele pedia. Não entendia aquilo, nem sabia o

que era sexo: em casa não havia palavrão. A mãe não acreditava nela. Além disso,

ele era um ancião, um líder da comunidade. Cumpria obedecer.

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Além de ter medo do Armagedom, Débora temia ser dissociada. Uma de suas irmãs

foi dissociada três vezes, grávida de homens diferentes. A mãe espancava a filha

barriguda, expulsava de casa e ela voltava para pedir ajuda. Para ser aceita na

congregação, passava por um castigo, como todo dissociado: chegar pouco antes

da cerimônia, ficar calada e sair sem conversar com ninguém.

Aos 15 anos, Débora começou a trabalhar em uma fábrica de tecidos. Quarta a

noite deveria ter aulas no Salão do Reino; sábado e domingo, ia pregar de porta em

porta até as 11h da manhã. Às 19 estava ao salão. Encaixava nesse intervalo o

tempo para se cuidar e arrumar a casa. A diversão era visitar outros salões. Ir ao

cinema, só raramente e com os jovens da religião.

Em 1972, o irmão caçula pegou cirrose. A barriga inchava, cheia de água: aquilo não

tinha cura. Os anciãos faziam longas visitas:

- Aguenta um pouco. Estamos em 1972. Recebemos informações de que em 1975

o Armagedom não vai começar: nós já estaremos na Nova Ordem. Se os médicos

conseguirem fazer você aguentar um pouco, você vai passar com vida para o

Paraíso!

O jovem morreu antes.

Servindo no Reino

Todos os dias Débora via aquele jovem de terno no começo da fila do ônibus. A

moça sabia que aquele não era TJ; não era homem para ela. Um dia, pregando de

casa em casa, tocou a campainha do rapaz. Quando atendeu, Débora quis fugir.

-Essas revistas são suas por tanto – foi tudo o que conseguiu dizer.

Para sua surpresa, ele aceitou.

Débora casaria com o jovem um ano depois – queria mesmo fugir da casa da mãe.

A ausência generalizada de homens na religião e o jeito reservado do marido

fizeram-no ser promovido a ancião em menos de um ano. E quando eles

compraram um fusca e um sobrado em uma rua asfaltada, anos mais tarde, o

salário dava, contado, para comer. Tudo o que Débora precisava era esperar o

Armagedom, que fora remarcado. Agora ela poderia deixar de trabalhar para realizar

um sonho: ser divulgadora da religião, sustentada pelo marido.

Foram para a congregação do Peri Alto. Lá, Débora era esposa de ancião e tinha

mais responsabilidades. Hábil e sempre disponível, virou uma faz-tudo: agendava

ônibus, decorava o salão para os congressos, limpava o lugar. Todos os dias

levantava cedo, arrumava a casa e o almoço, colocava o filho na escola, regia

estudos bíblicos. Seu telefone tocava muito.

Além de se destacar, Débora, com 28 anos, era mais jovem que as outras

mulheres. Começou a ouvir comentários nas rodinhas em que se envolvia:

“Por que você não arruma essas unhas? Para de roer, que coisa feia!”

“Para de mascar chiclete, Débora”.

“Por que você balança tanto as pernas?”

Um mês depois de entrar no salão, as mulheres estavam esperando a reunião de

anciãos terminar. Débora perguntou a idade de uma senhora que estava se

convertendo.

- Nossa, eu sou mais nova que você.

O comentário doeu fundo na mulher. Ela interrompeu aos prantos a reunião de

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anciãos, dizendo que tinha sido chamada de velha. As suas amigas entraram

também. Os homens retiraram o marido de Débora da reunião e decidiram ali o

destino: ela seria advertida e ficaria seis meses sem poder responder ás perguntas

didáticas dos estudos bíblicos. Ele nunca mais poderia participar de congressos.

Foi a vez de Débora chorar e implorar: eles estavam ensaiando há quatro meses o

próximo congresso, em Ribeirão Pires. O casal participou, já que ninguém mais

conseguiria desempenhar a parte deles. Mas não ficaram até o final.

Em outra reunião, levantou a mão umas vinte vezes, querendo comentar. Foi

ignorada. Pediu revisão do caso por um uma autoridade. Nada. Escreveu para a

central das Testemunhas de Jeová no Brasil. Foi ignorada.

Tudo ou nada

Débora continuou a achar que os anciãos tinham sido injustos. Propôs então uma

estratégia ao marido: ficar um tempo sem ir ao salão até que sentissem falta. Afinal,

quando as pessoas faltam em reuniões é dever dos anciãos procurar por elas. O

marido discordou.

- É tudo ou nada, Débora: ou continuamos a ir ou deixamos de ir, até que eles se

desculpem.

Débora escolheu a segunda opção. E todas as pessoas importantes, com excessão

do marido e filho, deixaram de falar com ela: a costureira, a diarista, os amigos do

salão, os irmãos. Em menos de uma semana a mãe arrumou as malas e foi morar

em um espaço alugado: não queria ficar com quem não ia mais ao salão do reino. O

telefone e a campainha não tocavam. Débora chorava o dia todo.

Demorou três meses até que alguém telefonasse: era uma TJ de outro salão,

oferecia emprego, sem saber que a conhecida havia saído do salão do reino. Estava

vindo ao Brasil um figurão, o governador da Ilha dos Açores e pré-candidato à

presidência de Portugal. D. Maria da Conceição, uma senhora de 60 anos que

cuidava da Câmara de Comércio Brasil-Portugal, precisava de ajuda para preparar o

jantar comemorativo. A portuguesa cuidava também do Conselho da Comunidade

Portuguesa, uma instituição folclórica que fazia jantares em homenagens a

autoridades e festas para os santos.

Pela porta da frente

Débora (crédito: arquivo pessoal)

O almoço teve sucesso e Débora chamou a atenção. O bico de metade de um dia

passou a durar dois, uma semana, um mês. A portuguesa ofereceu a ela o emprego

de organizadora do Conselho. A primeira festa que organizou foi a chegada da

padroeira, Nossa Senhora de Fátima.

A cada homenagem, a consciência de Débora doía um pouco. A Torre de Vigia não

permite colocar homens ou santos no centro das atenções. Porém, quando

organizou a chegada da santa pela segunda vez, percebeu que não acreditava mais

naquela religião cheia de incongruências.

Pelas homenagens, Débora poderia ser dissociada, enquadrada nos pecados de

idolatria e apostasia. Por isso, resolveu sair antes que a expulsassem. Um dia, o

advogado da comunidade portuguesa deu uma ideia, que Débora executou.

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Ela marcou uma reunião com os anciãos e pediu a dissociação voluntária. Eles se

recusaram: não conheciam motivos para isso. Ela então retirou do bolso da blusa

um gravador e exibiu para os homens, que começaram a tremer de medo:

- Vocês vão me dissociar por livre e espontânea vontade no dia e hora em que o

salão estiver mais cheio. Caso contrário, estou instruída a processá-los.

No dia certo, Débora vestiu um terninho. Já ganhava melhor, então arrumou-se

com esmero, e foi bem maquiada. Ficou perto da saída do salão. Sorriu largo ao

ouvir os anciãos lerem sua dissociação. Quando a carta terminou, saiu pela

barulhenta porta da frente.

Débora era querida no trabalho. Progrediu lá por 20 anos: organizou a inauguração

do Monumento a Cabral na frente da assembléia legislativa paulista, ganhou

medalha, conheceu primeiros-ministros e empresários, viajou o Brasil, virou fã do

São Paulo Futebol Clube. Estudou, entrou na faculdade, arranjou emprego e vagas

em hospital para muitas testemunhas de Jeová.

Hoje, paga sozinha o plano de saúde, a conta de água, luz e telefone da mãe. Está

feliz porque a velhinha de 94 anos veio passar um tempo em sua casa. “Se eu não

tivesse condições financeiras, ela viria a morar comigo só por amor de mãe?” ,

pergunta-se Débora.

Ela até permite que a mãe seja levada ao salão, mas nunca vai lá – fica com

enxaqueca e dores - até acamada. Quando a mãe fechar os olhos para sempre,

Débora quer apagar da agenda os contatos das Testemunhas de Jeová a quem

ainda dirige a palavra. “Eles foram substituídos por pessoas com amor

incondicional”.

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