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Universidade Estadual de Maringá 07 a 09 de Maio de 2012 1 RELIGIÃO E EDUCAÇÃO NOS QUADERNI DEL CARCERE DE ANTONIO GRAMSCI GOMES, Jarbas Mauricio (UEM) ARNAUT DE TOLEDO, Cézar de Alencar (UEM) Introdução O presente texto tem o objetivo de analisar a relação entre religião e educação na organização política e cultural da Itália a partir dos Quaderni del Carcere (QC) de Antonio Gramsci (1891-1937). A partir da analise das principais fontes de influência cultural dos trabalhadores identificou os elementos necessários à organização e a efetivação da revolução proletária, como conseqüência, elaborou uma das principais obras políticas da primeira metade do século XX. Herdeiro e defensor do marxismo explorou os fundamentos do materialismo histórico e adaptou suas categorias analíticas ao seu tempo, ressignificou conceitos e se manteve fiel ao método de investigação por ele postulado. Entre as análises realizadas por Gramsci se destaca a leitura histórica do desenvolvimento político e cultural da Itália. A influência religiosa operada pelo catolicismo é um assunto recorrente nas páginas dos Quaderni del Carcere (QC) 1 . Ela se constituiu num tema de pesquisa na medida em que é possível identificar que Gramsci atribuía à religião uma posição de destaque no processo de formação cultural dos italianos, em especial dos camponeses e, em consequência da migração para os centros industriais em busca de trabalho, dos operários dos centros urbanos. A matriz teórica marxista de Gramsci e sua filiação ao socialismo, e posteriormente ao comunismo, são elementos suficientes para postularmos a hipótese de que ele condenava a religião e considerava sua ação dispensável. Nesse 1 Os textos dos Quaderni del Carcere serão citados a partir da Edizione Critica dell’Istituto Gramsci a cura de Valentino Gerratana (2007) com tradução livre do italiano para o português. As menções aos Quaderni serão feitas pela abreviatura QC e as citações serão indicadas pelos números do Caderno, do parágrafo e da página (QC 1, § 1, p. 1).

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Universidade Estadual de Maringá 07 a 09 de Maio de 2012

1

RELIGIÃO E EDUCAÇÃO NOS QUADERNI DEL CARCERE DE

ANTONIO GRAMSCI

GOMES, Jarbas Mauricio (UEM)

ARNAUT DE TOLEDO, Cézar de Alencar (UEM)

Introdução

O presente texto tem o objetivo de analisar a relação entre religião e educação na

organização política e cultural da Itália a partir dos Quaderni del Carcere (QC) de

Antonio Gramsci (1891-1937). A partir da analise das principais fontes de influência

cultural dos trabalhadores identificou os elementos necessários à organização e a

efetivação da revolução proletária, como conseqüência, elaborou uma das principais

obras políticas da primeira metade do século XX. Herdeiro e defensor do marxismo

explorou os fundamentos do materialismo histórico e adaptou suas categorias analíticas

ao seu tempo, ressignificou conceitos e se manteve fiel ao método de investigação por

ele postulado. Entre as análises realizadas por Gramsci se destaca a leitura histórica do

desenvolvimento político e cultural da Itália.

A influência religiosa operada pelo catolicismo é um assunto recorrente nas

páginas dos Quaderni del Carcere (QC)1. Ela se constituiu num tema de pesquisa na

medida em que é possível identificar que Gramsci atribuía à religião uma posição de

destaque no processo de formação cultural dos italianos, em especial dos camponeses e,

em consequência da migração para os centros industriais em busca de trabalho, dos

operários dos centros urbanos. A matriz teórica marxista de Gramsci e sua filiação ao

socialismo, e posteriormente ao comunismo, são elementos suficientes para postularmos

a hipótese de que ele condenava a religião e considerava sua ação dispensável. Nesse

1 Os textos dos Quaderni del Carcere serão citados a partir da Edizione Critica dell’Istituto Gramsci a cura de Valentino Gerratana (2007) com tradução livre do italiano para o português. As menções aos Quaderni serão feitas pela abreviatura QC e as citações serão indicadas pelos números do Caderno, do parágrafo e da página (QC 1, § 1, p. 1).

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sentido postulamos os seguintes questionamentos: Qual era a posição de Gramsci em

relação à religião e sua ação educacional? Qual era o papel dos intelectuais religiosos na

organização política e cultural dos italianos?

Para responder aos questionamentos foram levantadas duas hipóteses. Uma, de

ordem geral, refere-se à temática dos intelectuais e da organização da cultura nas

elaborações teóricas dos QC. Ela pressupõe que as questões relativas à formação

cultural e a ação dos intelectuais, na elaboração e difusão da cultura, assumiam um

papel importante na teoria gramsciana. A outra hipótese, de caráter específico, é

direcionada à questão religiosa e a formação cultural dos subalternos. A partir dela,

considera-se que Gramsci julgava a modernização da religião prejudicial ao

desenvolvimento cultural dos proletários italianos e que a religião servia de instrumento

de dominação da burguesia sobre eles.

A análise se desenvolveu pela leitura direta do texto dos QC na língua original, o

italiano, mediada pela contextualização histórica do período em que Gramsci produziu

suas idéias e dos períodos históricos por ele analisados. As análises foram orientadas

por leituras tradicionais de seu pensamento, contrapondo as interpretações obtidas pela

leitura direta ao crivo das análises teóricas consagradas e estabelecidas mediante o

debate e a crítica das principais categorias do pensamento gramsciano.

1. Os educadores brasileiros e a leitura de Gramsci

Na última década se intensificou o movimento de reaproximação dos intelectuais

brasileiros com o pensamento de Gramsci. Essa retomada pode ter relações com o

momento político e econômico, diante da crise econômica do capital e da possibilidade

de ruptura com o seu modelo econômico, ou ser conseqüência da visibilidade obtida

pela esquerda no cenário político nacional e internacional.

Essa reaproximação pode não ser apenas uma reação ao imediatismo do

momento histórico e ter origem na maturidade intelectual atingida no Brasil. Determinar

os motivos e a origem dessa retomada é um trabalho de difícil resolução, mas, ela tem

sido endossada pela publicação da nova edição brasileira da obras de Gramsci, iniciada

em 1999, e pelo crescente fluxo de livros e trabalhos publicados sobre Gramsci.

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A presença do pensamento de Gramsci na história da educação brasileira é

datada, remonta o fim da década de 1970 e se relaciona à trajetória e projeção

intelectual de Dermeval Saviani que se tornou, na década de 1980, uma referência para

análise educacional e a elaboração de uma educação voltada às necessidades próprias do

Brasil. Foi pela leitura das Obras de Saviani que os educadores brasileiros se

aproximaram e apropriaram, ainda que indiretamente, das principais concepções

gramscianas.

O primeiro espaço institucional destinado ao estudo de Gramsci na área da

educação foi o Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade de São Paulo

(PUC-SP). Nele, a turma de doutorandos de 1978, sob a coordenação e orientação de

Saviani, iniciou os estudos da obra de Gramsci. Os frutos dessa iniciativa se

multiplicaram quando esses professores difundiram o pensamento de Gramsci nos

cursos de Graduação e pós-graduação em diferentes regiões do país.

Essa experiência demarcou a criação de um espaço institucional de discussão da obra de Gramsci e determinou os princípios metodológicos, por meio dos quais os seus textos passaram a ser lidos no campo da história da educação no Brasil. As leituras desenvolvidas sobre Gramsci, naquele momento, estavam atreladas a convicções teóricas preestabelecidas a respeito do trabalho intelectual, que tinham como fundamento a compreensão dos problemas enfrentados no campo da história da educação [...] (GOMES, 2012, p. 64).

Saviani figura como um dos responsáveis pela difusão das ideias de Gramsci no

campo da educação e pela criação de um espaço institucional destinado ao seu estudo

(NOSELLA, 1988; SECCO, 2002; SAVIANI, 2005; BIANCHI, 2007). A forma de

apropriação do pensamento de Gramsci pelos educadores brasileiros é importante

porque determina como ele foi lido e interpretado na educação e, como a educação

brasileira passou a ser pensada e ressignificada a partir de sua leitura.

A leitura de Gramsci estava circunscrita pelas condições materiais daquele

momento. A falta de material e de acesso aos seus textos impedia a contextualização de

suas ideias ao lugar e ao momento histórico em que foram produzidas, limitando o

entendimento das categorias gramscianas. Revolucionário e marxista (MARTINS,

2008), deveria ser lido a partir da matriz teórica de suas ideias, no entanto, o cenário

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político e econômico favoreceram interpretações orientadas por matrizes teóricas

estranhas aos fundamentos de suas análises (GOMES, 2012).

As críticas à apropriação de seu pensamento apontam a descontextualização

(NOSELLA, 2004), o esvaziamento da perspectiva revolucionária (MAGRONE, 2006)

e do conteúdo político (SECCO, 2002; LIGUORI, 2007; MAGRONE, 2006). As

leituras da área educacional apresentavam Gramsci como um pedagogo, preocupado

com questões relacionadas à formação geral e a formação para o trabalho (MAGRONE,

2006).

A moda gramsciana pegou, alimentada também pela concepção revolucionária de Gramsci [...]. Essa teoria revolucionária chegou inclusive a forçar uma imagem de Gramsci ‘humanista’, de um revolucionário diferente e até bem comportado. Em certos círculos, Gramsci adquiriu também os contornos de um ‘educador’ no sentido restrito do termo (NOSELLA, 2004, p. 30).

Ao se distanciar da perspectiva revolucionária e política as análises esvaziaram

os conceitos de Estado, hegemonia, sociedade política, sociedade civil e revolução que

passaram a ser secundários (MAGRONE, 2006). O Gramsci, educador situado na

sociedade industrial, passou a ser empregado nos debates sobre a educação brasileira

durante as décadas de 1980 e 1990, o que originou um período em que Gramsci foi

amplamente empregado, mas pouco pesquisado no campo da educação (NOSELLA,

2004).

Como forma de superação dessa visão, recorremos à leitura do próprio Gramsci

e as indicações metodológicas que ele mesmo deixou para aqueles que se dedicassem a

analisar os textos dos QC (BARATTA, 2004; GOMES, 2012). Gramsci tinha

consciência das condições em que elaborou os cadernos e, por isso mesmo, apontou em

diversos deles, QC 4, 8 e 11, advertências e orientações sobre para a leitura dos

manuscritos.

As notas contidas neste caderno, como nos demais, foram escritas ao correr da pena, como rápidos apontamentos para ajudar a memória. Todas devem ser revistas e verificadas minuciosamente, já que certamente contêm inexatidões, falsas aproximações, anacronismos. Escritas sem ter presentes os livros a que se referem, é possível que,

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depois da verificação, devam ser radicalmente corrigidas porque o contrário do que foi escrito é que é verdadeiro (QC 11, p. 1365).

Na primeira década dos anos 2000 as pesquisas sobre os fundamentos do

pensamento gramsciano foram reavivadas e os estudiosos insistiram na necessidade de

uma leitura contextualizada (NOSELLA, 2004), na aplicação de um método adequado

de análise (BARATTA, 2004) e na valorização do conteúdo político de suas

proposições (MAGRONE, 2006; DEL ROIO, 2005). As pesquisas sobre o pensamento

educacional gramsciano voltaram suas análises para os conceitos fundamentais, a partir

dos quais Gramsci discutiu e analisou a função da educação na sociedade italiana.

2. As edições dos Quaderni del Carcere

As primeiras décadas do século XX forneceram as condições favoráveis para

que Gramsci vivesse um período de profundas transformações na organização social,

política, cultural e econômica da Itália. Suas origens e seu engajamento político

influenciaram sua trajetória de vida e, consequentemente, as escolhas teóricas pelas

quais norteou suas análises.

A fortuna de sua herança intelectual se tornou objeto de disputa entre os

pensadores de diferentes matrizes teóricas. Primeiro, os comunistas se apropriaram de

seus escritos para reafirmar a posição teórica do movimento revolucionário e do Partido

Comunista (PC). Posteriormente, inclusive no Brasil, liberais, culturalistas buscaram em

Gramsci fundamentos teóricos para justificar suas posições diante da organização da

sociedade industrial (LIGUORI, 2007; COUTINHO, 2009). A disputa pela sua herança

intelectual teve inicio após sua morte em 1937, quando o PC tomou conhecimento da

existência dos QC e confiou a Palmiro Togliatti (1893-1964) a responsabilidade de

estudá-los, organizá-los e publicá-los (GERRATANA, 2007b).

Com o auxílio de Felice Platone (1889-1955), Togliatti estudou os QC por cerca

de uma década e, mediante as dificuldades de acesso aos QC optou por agrupar os

textos de Gramsci por temática (MORDENTI, 1996). Quando foram publicados, entre

os anos de 1948 e 1951, os QC se limitavam a uma coletânea, com textos selecionados e

organizados por Togliatti. Denominada posteriormente de Edição Togliatiana, ou

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Temática, era uma publicação parcial que omitia textos importantes para a

compreensão do pensamento de Gramsci, em especial aqueles que poderiam abalar a

confiança dos trabalhadores em relação aos dirigentes do PC. Os fundamentos desse

trabalho eram políticos e Gramsci era apresentado como dirigente político do Partido

Comunista Italiano (PCI), dedicado à crítica dos fundamentos da filosofia liberal. Essa

imagem atendia as necessidades de afirmação moral do PC e do PCI diante do fracasso

da revolução proletária no Ocidente (MORDENTI, 1996).

Tal visão de Gramsci e de seus escritos passou a ser questionada por muitos dos

estudiosos de seu pensamento e a Edição Temática foi contestada. Com o intuito de

reestabelecer a originalidade do pensamento de Gramsci, foi confiada a Valentino

Gerratana (1919-2000) a coordenação de novos estudos sobre os QC. Ele organizou

uma edição que se propôs reproduziu os manuscritos dos QC como haviam sido

deixados por Gramsci. Esse trabalho originou a Edição Crítica. Publicada pela primeira

vez em 1975, apresentava os textos dos manuscritos carcerários fundamentada no

trabalho de datação dos períodos de redação de cada QC (GERRATANA, 2007b;

MORDENTI, 1996).

Os QC são um conjunto composto de trinta e três cadernos, vinte e nove

dedicados à análise de temas previamente selecionados e quatro com exercícios de

tradução (GERRATANA, 2007a). Os QC são uma obra inacabada, com características

próprias. Na elaboração dos cadernos, a partir do QC 8 Gramsci reagrupou as notas que

tratavam da mesma temática em cadernos separados, originando os Cadernos Especiais.

O QC 12, Os intelectuais e a organização da cultura é um dos QC que os educadores

brasileiros têm o maior contato e é um exemplo de Caderno Especial. Ele, como outros

especiais, é caracterizado pela revisão dos textos escritos em cadernos anteriores,

complementados por novas reflexões e organizados de acordo com uma lógica

expositiva.

Essa característica permitiu a classificação dos textos dos QC em três grupos:

Textos A, B e C. Os Textos A são de primeira redação, produzidos como um conjunto

de notas esparsas, foram revisados e inseridos em novas articulações em cadernos

posteriores ao QC 8. Essa articulação dos Textos A ficou conhecida como Textos C, ou

seja, textos de segunda redação que aparecem, sobretudo, nos Cadernos especiais. Os

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textos que permaneceram com uma única redação foram denominados de Textos B

(GERRATANA, 2007b).

A Edição Critica dos QC se tornou o principal instrumento de estudo do

pensamento gramsciano e revelou a necessidade de revisitar os QC em sua íntegra,

reforçando a perspectiva de que o pensamento de Gramsci é datado e sua leitura deve

ser contextualizada. A classificação dos textos em A, B e C permitiu a compreensão da

evolução do pensamento gramsciano e a publicação integral de do conteúdo dos QC

revelou que a crítica gramsciana se estendia aos fundamentos do pensamento socialista

(BARATTA, 2004).

A Edição Crítica dos QC não foi traduzida para o português, sendo acessível

apenas aos estudiosos e pesquisadores que dominam a língua italiana. A obra de

Gramsci foi parcialmente traduzida para o português a partir da Edição temática de

Togliatti e foi publicada no Brasil na segunda metade da década de 1960. Em 1999 teve

início a publicação da Nova Edição Brasileira das obras de Gramsci. Essa Edição

incorporou as contribuições da Edição Crítica, mas manteve o estilo de coletânea

temática. Ela foi organizada por Carlos Nelson Coutinho, Luis Sérgio Henriques e

Marco Aurélio Nogueira e apresenta aos leitores os Cadernos Especiais, reunidos por

temas, acompanhados de coletâneas de Textos vinculados à suas temáticas. Tal

organização apresentou os textos B e C, mas exclui os textos A. Coletâneas dos Escritos

Pré-carcerários e das Cartas do Cárcere também compõem a Nova Edição

(COUTINHO, 2006).

Ainda que se reconheça o mérito dessas iniciativas editoriais, o acesso dos

estudiosos e educadores brasileiros aos QC é limitado e não permite a apreensão de duas

características fundamentais para a compreensão do pensamento de Gramsci: 1) a

fragmentariedade estrutural, marcada pela descontinuidade e a ruptura (BARATTA,

2004); 2) a unidade teórico-metodológica de análise, marcada pela perspectiva

revolucionária fundamentada no materialismo histórico (MARTINS, 2008). Uma

análise do pensamento gramsciano que desconsidera uma dessas características pode

conduzir a leituras equivocadas que deixam escapar a perspectiva política e

revolucionária de seu pensamento.

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2. Fundamentos do pensamento educacional de Antonio Gramsci

Gramsci é um marxista que parte da realidade material para discutir a formação

da consciência humana. Suas análises sobre a educação e a escola italiana estão

inseridas num contexto amplo, no qual estão presentes a organização econômica e

política da sociedade. As análises gramscianas sobre educação possuem uma relação

intrínseca com concepções como as de Estado, hegemonia e bloco histórico. Nos QC,

com destaque para os QC 1, 4, 12, 19 e 22, a educação foi analisada a partir da realidade

vivenciada na Itália durante transição para o século XX.

A influência do capitalismo, matriz econômica e organizacional da sociedade

italiana, do liberalismo enquanto filosofia e concepção de mundo e a instalação do

fascismo como regime político, são fatores que circunscreveram os temas analisados por

Gramsci. Filiado ao marxismo e compromissado com a revolução proletária, investigou

os fundamentos dos modelos educacionais presentes na Itália e o papel da educação na

formação intelectual e cultural dos grupos subalternos (GOMES, 2012).

As concepções de Estado, Sociedade Política e Sociedade Civil são o ponto de

partida para a compreensão de seu pensamento. Ele defendia que a educação praticada

na Itália nas primeiras décadas do século XX atendia as demandas da organização social

do capital, seguindo os ideais do liberalismo (QC 22). Para Gramsci a educação italiana

estava interessada na formação do trabalhador, na qualificação dos proletários para sua

atuação no campo da produção material (MANACORDA, 2008; NOSELLA, 2004).

Gramsci defendia uma educação desinteressada, voltada para o desenvolvimento

das habilidades físicas e intelectuais que permitisse aos homens atuarem

conscientemente nas diferentes esferas do Estado, a Sociedade Política e Sociedade

Civil (MANACORDA, 2008; NOSELLA, 2004; ARNAUT DE TOLEDO; GOMES,

2011b) A distinção dentre estas duas formas de sociedade era, para Gramsci, uma

distinção meramente teórica e fazia a aplicação prática das concepções marxistas de

Estrutura e Superestrutura (LIGUORI, 2007).

A base real para o desenvolvimento da forças materiais se encontra nas relações de produção que possuem a capacidade de promover a estruturação econômica da sociedade. A superestrutura é de ordem

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política e jurídica e, estando implantada sobre a base econômica, tem a finalidade de promover a consciência social. A superestrutura atua no campo da organização social pela formação da consciência política e ideológica dos indivíduos e dos grupos sociais e tem como objetivo promover a unidade econômica pelo desenvolvimento das forças produtivas, para que atendam às necessidades e às demandas geradas por uma dada organização social (GOMES, 2012, p. 85).

Gramsci inovou na interpretação da concepção de Estado e defendeu a relação

entre Sociedade Política e Sociedade Civil. A primeira responsável pela organização

ideológica e a segunda pela organização dos meios para a produção das condições

materiais necessárias à sobrevivência do homem (QC 6, § 88). A compreensão da

estrutura do Estado é fundamental para a análise da concepção gramsciana de educação,

porque é a produção material da vida que determina a formação dos intelectuais e o

sistema educacional.

[...] Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial do mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político [...] Pode-se observar que os intelectuais ‘orgânicos’, que cada nova classe cria consigo e elabora em seu desenvolvimento progressivo, são na maioria dos casos, ‘especializações’ de aspectos parciais da atividade primitiva do tipo social novo que a nova classe deu à luz (QC 12, § 1, p. 1513-1514).

A formação dos intelectuais e da consciência são resultados direto da educação,

seja ela formal ou informal. A análise gramsciana do fenômeno educativo considerava a

organização material da sociedade e se relacionava à organização capitalista da

produção e ao modelo político estabelecido (MANACORDA, 2008). Gramsci analisou

a Reforma Gentile, promovida pelo fascismo entre os anos de 1922 e 1943 e

fundamentada nas ideias liberais. Gramsci enfatizava que a proposta educacional

fascista era um instrumento a serviço da manutenção da subalternidade da classe

trabalhadora, porque impedia o desenvolvimento da autonomia intelectual e da

consciência política e social (ARNAUT DE TOLEDO; GOMES, 2011a).

A reforma educacional fascista era fundamentada na educação espontânea e

Gramsci a acusava de abandonar os estudantes à própria sorte, negligenciando a

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intervenção dos professores no desenvolvimento estudantes. Para ele, a intervenção do

professor se fazia necessária e deveria disciplinar, orientar e conscientizar. Pela

educação os grupos subalternos operariam a critica à própria concepção de mundo e ao

sistema político e econômico hegemônico (ARNAUT DE TOLEDO; GOMES, 2011a).

A educação tinha o papel de instrumentalizar e disciplinar os trabalhadores para

operar a revolução proletária. Mas, para isso, era necessário superar o modelo educativo

oficial proposto e praticado pelo Estado italiano. A formação imediata de intelectuais

oriundos dos estratos sociais ligados ao proletariado era uma necessidade estratégica

para a ação revolucionária dos socialistas. A educação era um momento estratégico da

luta pela hegemonia e permitiria aos proletários formar intelectuais originados de suas

necessidades enquanto classe social (MANACORDA, 2008; NOSELLA, 2004;

SCHLESENER, 2007; GOMES, 2012). As análises e a crítica gramsciana à educação

italiana são decorrentes da condição intelectual assumida por ele no movimento

socialista italiano.

Gramsci, na condição de dirigente, assumiu a organização política das classes trabalhadoras e identificou a incapacidade dos operários e camponeses italianos para se organizarem politicamente. Mediante as dificuldades inerentes à criação de uma nova ordem social, a hegemonia proletária, concebeu a luta pela hegemonia como um momento educativo. A necessidade urgente de pôr em ordem a ação de oposição das classes trabalhadoras perante a organização do capital, fez com que o debate sobre a educação e a formação cultural das classes operárias se estabelecesse como um tema de maior importância para as reflexões de Gramsci que, relacionou a formação cultural e os processos educativos ao desenvolvimento da Itália e acenou que a estrutura vigente naquele momento era incapaz de promover o desenvolvimento das classes subalternas rumo à emancipação do trabalhador (GOMES, 2012 p. 84).

A percepção de que cada momento histórico e grupo social produziam

intelectuais de acordo com as suas demandas (QC 12, § 1), dava à Gramsci a certeza de

que o movimento socialista deveria formar seus próprios intelectuais, da mesma forma

com que o capitalismo havia formado os seus. Gramsci defendia que a formação de uma

nova ordem econômica carecia de uma nova organização política, ou seja, ao

reorganizar o mundo da produção, a sociedade civil precisaria de novos intelectuais para

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suprir suas demandas, tanto no campo da produção quanto no campo da superestrutura,

isto é da sociedade política (GOMES, 2012).

A unidade histórica de uma organização social em que as forças materiais são

modeladas pela concepção de mundo hegemônica era denominada de bloco histórico

(QC 7, § 21) e expressava a correlação de forças entre a produção material e a

organização política (PORTELLI, 1977). A formação do bloco histórico é um momento

educativo por excelência, porque nela se institui uma hegemonia, seja por meio da

conquista do consenso, seja pela ação da força, normalmente endossada pela capacidade

coercitiva do Estado.

[...] Pode-se medir a ‘organicidade’ dos diversos estratos intelectuais, sua conexão mais ou menos estreita com um grupo social fundamental, fixando uma gradação das funções e das superestruturas de baixo para cima (da base estrutural para o alto). Por enquanto, podem-se fixar dois grandes ‘planos’ superestruturais: o que pode ser chamado de ‘sociedade civil’ e ‘sociedade política ou Estado’, esses correspondem à função de ‘hegemonia’ que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de ‘domínio direto’ ou de comando, que se expressa no Estado e no governo ‘jurídico’. Estas funções são precisamente organizativas e conectivas [...] (QC 12, § 1, p. 1518-1519).

Gramsci entendia a organização dos proletários lhes permitiria estabelecer um

bloco histórico capaz de operar a crítica sobre o Estado burguês (PORTELLI, 1977).

Tal ação teria o potencial de fissurar a organização política e econômica do capitalismo,

expondo suas contradições e possibilitando ao proletariado lutar pela hegemonia e

instituir a ditadura do proletariado. A atuação dos intelectuais assume no pensamento de

Gramsci um papel central, porque eles são responsáveis pela ação educativa e, ao

mesmo tempo, produto da educação presente em um bloco histórico.

3. Religião e educação no pensamento de Gramsci

Ao analisar o desenvolvimento histórico e a formação dos grupos de intelectuais

italianos, Gramsci evidenciou a existência de dois grupos que se distinguiam em

conseqüência da revolução científica e do estabelecimento do capitalismo. O primeiro

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grupo de intelectuais, remanescente da antiga ordem feudal, ligava-se à religião, em

especial ao catolicismo (LA ROCCA, 2009b). O segundo, ligado à ascensão do

capitalismo representava a nova ordem socioeconômica e promovia sua organização

produtiva e política (QC 12, § 1).

Denominados, respectivamente, de intelectuais tradicionais e intelectuais

orgânicos (QC 12, § 1), esses grupos eram os responsáveis pela luta hegemônica entre

duas organizações sociais: o Estado Laico e a Igreja (LA ROCCA, 2009a). Para o

capitalismo se consolidar como bloco histórico, os intelectuais orgânicos do capitalismo

deviam promover o consenso e estabelecer bases para o exercício da hegemonia (QC 1,

§ 44), assimilando os intelectuais tradicionais remanescentes da antiga ordem feudal,

em geral religiosos defensores da concepção religiosa de mundo (QC 12, § 1).

Gramsci defendia que a influência dos intelectuais religiosos se perpetuava sobre

os estratos mais simples da sociedade italiana e determinava a sua formação cultural

(LA ROCCA, 2009b) . Essa influência sobre os italianos era resultado da ação contínua

dos religiosos que defendiam uma concepção de mundo própria, em relação às

demandas do novo Estado, anticlerical e religioso que se formava na Itália (LA

ROCCA, 2009a; GOMES, 2012). O catolicismo foi responsável pela organização ético-

política da Itália e os religiosos assumiram a atividade educativa dos grupos sociais

subalternos. Em muitos casos a religião era a única formação educativa ofertada em

regiões pobres ou agrárias, como era o caso das regiões ao sul da Itália (PORTELLI,

1984; LA ROCCA, 2009b).

Marxistas e socialistas assumiam em relação a religião uma visão negativa e, aos

moldes liberais, imaginavam um Estado sem religião, livre de sua influência na cultura

e na política do Estado (LA ROCCA, 2002). Não era essa a perspectiva gramsciana, ele

“[...] valorizava a religião por sua capacidade de difusão cultural e de agregação das

classes subalternas e, em especial, reconhecia a importância dos grupos sociais que se

encontravam sob a tutela da Igreja para o êxito da Revolução proletária [...] (GOMES,

2012, p. 115). Para Gramsci, a religião era uma concepção que dependia da presença de

três elementos: a) a crença na existência da divindade transcendental; b) o sentimento

humano de dependência à divindade que governa o cosmos; c) o sistema de culto que

estabelece a relação entre o homem e a divindade (QC 6, § 41).

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Gramsci defendia que ao não cumprir esses requisitos, a religião se tornava um

conjunto de normas sociais nocivas que limitavam o uso das faculdades humanas e

serviam de instrumento de alienação(LA ROCCA, 2009b). Entendida como uma grande

utopia de ordem metafísica (QC 11, § 62), a religião oferecia instrumentos para o

desvelamento do mundo e à compreensão de fatos histórico ou naturais que estavam

distantes da capacidade analítica de grande parte dos homens (QC 3, § 76).

Gramsci evidenciou a reorganização do catolicismo diante das novas

configurações das sociedades política e civil. Fato comprovado pela ação educativa

coordenada pelo clero, em especial pelos padres da Companhia de Jesus que mantinham

a unidade da fé do povo italiano por meio da difusão da concepção religiosa de mundo.

A perspectiva educativa inaugurada pelos padres da Companhia de Jesus assumiu caracteres próprios. De acordo com Gramsci, serviram para fortalecer a fé dos cristãos na Igreja e na figura do papa, ao mesmo tempo coibiam as ações e os comportamentos revolucionários. Tal direcionamento refletiu como um freio para os ideais revolucionários, considerados subversivos aos olhos do papado, que reforçava sua hegemonia após a separação do poder em poder religioso e poder estatal. Gramsci percebia que a atividade dos jesuítas tinha como objetivo elaborar estratégias e agir de tal forma que a diretrizes papais pudessem ser postas em prática (GOMES, 2012, p. 176).

A organização política dos Jesuítas e sua erudição foram o subsídio do Vaticano

e do papado durante a instituição do Estado Laico italiano. Gramsci atribuía a eles o

mérito de organizar a ofensiva política do catolicismo, denominada de Ação Católica

(QC 6, § 183; QC 20, § 2). Nela os intelectuais religiosos protagonizavam uma série de

conflitos internos, em que conservadores e modernizadores defendiam suas concepções

de mundo e disputavam a hegemonia do poder político (QC 20, § 4) e do poder

educativo da religião (PORTELLI, 1984; STACCONE, 1991; LA ROCCA, 2009a).

Gramsci via a religião como o principal inimigo da revolução socialista e era

cauteloso em relação à educação por ela promovida, considerava que a concepção

religiosa de mundo era responsável por fornecer os fundamentos mitológicos e

epistemológicos para a elaboração do senso comum presente na cultura dos grupos

subalternos (QC 11, § 13; QC 24, § 4; QC 27, § 1-2). O senso comum seria o resultado

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da apropriação da concepção religiosa de mundo cristalizada na cultura popular (QC 1,

§ 65).

Na defesa de que os proletários deveriam superar a religião e o senso comum

para elaborar uma filosofia genuína da classe operária, a filosofia da práxis. Para tanto,

propõe no QC 11 § 12 uma reflexão filosófica que permitiria aos proletários se

aproximarem dessa forma de saber sistematizada. Para ele a prática da filosofia

proporcionaria aos proletários a consciência de sua capacidade intelectual, a perspectiva

crítica sobre sua concepção de mundo e a superação do preconceito em relação ao ato

de filosofar (GOMES, 2012).

Gramsci acreditava que lutar pela hegemonia, o proletariado devia elaborar uma

concepção de mundo que lhe era própria, uma filosofia original, a filosofia da práxis. O

QC 11 oferece o instrumental para identificar a influência da concepção de mundo

dominante no pensamento popular e para promover a superação da tradição cultural

italiana fundamentada na religiosidade.

Uma filosofia da práxis só pode se apresentar, inicialmente, em atitude polêmica e crítica, como superação da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto existente (ou mundo cultural existente). E portanto, antes de tudo, como crítica do ‘senso comum’ (e isto após se basear sobre o senso comum para demonstrar que ‘todos’ são filósofos e que não se trata de induzir ex novo uma ciência na vida individual de ‘todos’, mas de inovar e tornar ‘critica’ uma atividade já existente); e, posteriormente, como crítica da filosofia dos intelectuais, que deu origem à história da filosofia e que, enquanto individual, (e, de fato, ela se desenvolve essencialmente na atividade de indivíduos singulares particularmente dotados), pode ser considerada como ‘culminâncias’ de progresso do senso comum, pelo menos do senso comum dos estratos mais cultos da sociedade e, através desses, popular (QC 11, § 12, p. 1383)

A ação educacional exercida pelos intelectuais religiosos era considerada nociva

para o desenvolvimento da estratégia revolucionária e para o desenvolvimento histórico

da Itália, porque a internalização da concepção religiosa de mundo tolhia dos homens a

capacidade intelectual (QC 20). Para Gramsci, a educação italiana sempre esteve a

serviço da religião e foi o instrumento de disseminação de sua concepção de mundo, de

controle da capacidade intelectual dos homens e de manutenção da hegemonia religiosa.

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Ao propor uma nova concepção de educação, fundamentada na filosofia e no ato

de filosofar, Gramsci pensava na conquista da hegemonia, na superação do senso

comum e das concepções de mundo aviltantes que solaparam dos grupos subalternos a

capacidade intelectual e crítica, reduzindo-os a uma mera mercadoria a serviço do

capital. Para conceder ao proletariado a oportunidade de elaborar uma filosofia genuína

e original, era necessário que a educação fosse emancipatória e, com vistas na

construção de um novo bloco histórico, permitisse aos trabalhadores se apropriarem ou

desenvolverem as aptidões físicas e intelectuais comuns aos intelectuais burgueses e

religiosos, para que os trabalhadores, em condição de igualdade, elaborem uma

concepção de mundo que lhes permita lutar pela hegemonia e organizar o Estado para

atender as demandas do maior grupo social presente na sociedade.

Conclusão

As análises de Gramsci sobre a educação estão fundamentadas no

desenvolvimento histórico da sociedade italiana e se concentram na organização

educacional do Estado italiano nas primeiras décadas do século XX. Suas análises são

elaboradas a partir de uma perspectiva revolucionária e partem do movimento real de

produção da vida material e da concepção de que o Estado é uma unidade composta por

duas sociedades distintas, a sociedade civil, responsável pela organização e produção da

existência material, e a sociedade política, a quem cabe o papel de dar forma ideológica

e política ao mundo produtivo.

Gramsci identificou que a educação italiana se encontrava dividida e orientada

por duas perspectivas que concorriam entre si. De um lado a educação tradicional,

fundada na concepção religiosa de mundo e, de outro, a educação moderna, organizada

de acordo com os interesses da sociedade burguês-capitalista. Religiosos e burgueses

lutavam pela hegemonia com o objetivo de determinar a concepção de mundo que

fundamentaria a organização do Estado italiano que se formara. Impulsionada pelas

revoluções, a concepção burguês-capitalista tornou-se hegemônica e passou a educar os

grupos sociais subalterno para suprir as demandas do mundo produtivo. Mesmo

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derrotada, a religião continuou a influenciar culturalmente os grupos subalternos,

reivindicando para si o direito de educá-los.

Ligada ao mundo da produção, a educação é organizada de acordo com as

necessidades da sociedade civil e a ela está submetida. Gramsci, no entanto, defendia

que a educação deveria ser desinteressada e não ser submetida ao mundo da produção

ou comprometida com a formação do trabalhador ou do homem religioso. Nos QC a

educação é entendida como um elemento agregador, que tem o potencial de desenvolver

ou limitar as habilidades físicas e intelectuais dos homens.

Revolucionário, Gramsci defendia uma nova organização do Estado baseada nas

necessidades do proletariado. Para tal era necessário promover a superação do senso

comum e das concepções de mundo hegemônicas, em especial da religiosa. Para tal,

propôs a filosofia como exercício intelectual que permite ao homem simples exercer a

crítica sobre a sua concepção de mundo visando a sua superação. Essa ocorreria quando

os proletários, amparados por um processo educativo que lhes permita o

desenvolvimento das habilidades intelectuais, promovessem uma reflexão filosófica

genuína, original dos grupos subalternos, a filosofia da práxis. Ela permitiria a

superação da concepção de mundo hegemônica pela elaboração de uma concepção de

mundo voltada para a organização do Estado, que por sua vez consolidaria a hegemonia

do proletariado.

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