gramsci filosofia e educacao

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Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 8, n. 1, p. 13-40, jan./jun. 2013 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/praxiseducativa> 13 Gramsci, filosofia e educação Gramsci, philosophy and education Gramsci, filosofía y educación Marcos Francisco Martins * Resumo: Este artigo apresenta uma interpretação da concepção de Gramsci sobre filosofia e educação, bem como da articulação desses conceitos na práxis e no paradigma teórico-metodológico por ele formulado. São utilizados principalmente os textos da maturidade teórico-metodológica de Gramsci, os Cadernos do Cárcere, bem como alguns de seus comentadores que têm forte repercussão no Brasil. O texto é dividido em duas partes: na primeira, é discutida a concepção gramsciana de filosofia e na segunda, a de educação. Na conclusão, são resgatadas as teses centrais que devem ser levadas em consideração para o que se acredita ser uma boa interpretação do legado filosófico e pedagógico-educativo, resultante do pensamento e da ação de Gramsci, o qual enfrentou as contradições da realidade italiana de sua época na tentativa de colaborar com a superação das relações sociais capitalistas. Palavras-chave: Educação. Filosofia. Gramsci. Abstract: This paper presents an interpretation of Gramsci’s conception of philosophy and education, as well as the articulation of such concepts in practice and in his theoretical-methodological paradigm. Texts produced mainly in Gramsci’s theoretical- methodological maturity were used such as the Prison notebooks, as well as the writings of some of his reviewers who have strong impact in Brazil. The text is divided into two parts: the first discusses the Gramscian conception of philosophy while the second focuses on his conception of education. In the conclusion, the focus is on central issues which must be taken into account in order to develop a good interpretation of the philosophical and pedagogical-educational legacy originated in Gramsci’s thoughts and actions, once he faced the contradictions of the Italian reality of his time in an attempt to cooperate with the overcoming of capitalist social relations. Keywords: Education. Philosophy. Gramsci. Resumen: Este artículo presenta una interpretación de la concepción de Gramsci sobre filosofía y educación, así como de la articulación de esos conceptos en la praxis y en el paradigma teórico-metodológico por él formulado. Se utilizan principalmente DOI:10.5212/PraxEduc.v.8i1.0001 * Professor da Universidade Federal de São Carlos - UFSCar - campus Sorocaba/SP - Bolsista de Produtivi- dade em Pesquisa - CNPq. E-mail: <[email protected]>

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  • Prxis Educativa, Ponta Grossa, v. 8, n. 1, p. 13-40, jan./jun. 2013Disponvel em:

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    Gramsci, filosofia e educao

    Gramsci, philosophy and education

    Gramsci, filosofa y educacin

    Marcos Francisco Martins*

    Resumo: Este artigo apresenta uma interpretao da concepo de Gramsci sobre loso a e educao, bem como da articulao desses conceitos na prxis e no paradigma terico-metodolgico por ele formulado. So utilizados principalmente os textos da maturidade terico-metodolgica de Gramsci, os Cadernos do Crcere, bem como alguns de seus comentadores que tm forte repercusso no Brasil. O texto dividido em duas partes: na primeira, discutida a concepo gramsciana de loso a e na segunda, a de educao. Na concluso, so resgatadas as teses centrais que devem ser levadas em considerao para o que se acredita ser uma boa interpretao do legado los co e pedaggico-educativo, resultante do pensamento e da ao de Gramsci, o qual enfrentou as contradies da realidade italiana de sua poca na tentativa de colaborar com a superao das relaes sociais capitalistas.Palavras-chave: Educao. Filoso a. Gramsci.

    Abstract: This paper presents an interpretation of Gramscis conception of philosophy and education, as well as the articulation of such concepts in practice and in his theoretical-methodological paradigm. Texts produced mainly in Gramscis theoretical-methodological maturity were used such as the Prison notebooks, as well as the writings of some of his reviewers who have strong impact in Brazil. The text is divided into two parts: the rst discusses the Gramscian conception of philosophy while the second focuses on his conception of education. In the conclusion, the focus is on central issues which must be taken into account in order to develop a good interpretation of the philosophical and pedagogical-educational legacy originated in Gramscis thoughts and actions, once he faced the contradictions of the Italian reality of his time in an attempt to cooperate with the overcoming of capitalist social relations.Keywords: Education. Philosophy. Gramsci.

    Resumen: Este artculo presenta una interpretacin de la concepcin de Gramsci sobre losofa y educacin, as como de la articulacin de esos conceptos en la praxis y en el paradigma terico-metodolgico por l formulado. Se utilizan principalmente

    DOI:10.5212/PraxEduc.v.8i1.0001

    * Professor da Universidade Federal de So Carlos - UFSCar - campus Sorocaba/SP - Bolsista de Produtivi-dade em Pesquisa - CNPq. E-mail:

  • Marcos Francisco Martins

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    textos de la madurez terico-metodolgica de Gramsci, los Cuadernos de la Crcel, as como algunos de sus comentadores con ms in uencia en Brasil. El texto se divide en dos partes: en la primera se discute la concepcin gramsciana de losofa, mientras en la segunda, la de educacin. A modo de conclusin, se rescatan las tesis centrales las cuales deben ser llevadas en consideracin para lo que se cree como buena interpretacin del legado los co y pedaggico-educativo, resultante del pensamiento y de la accin de Gramsci, quien se enfrent a las paradojas de la realidad italiana de su poca en el intento de colaborar con la superacin de las relaciones sociales capitalistas.Palabras clave: Educacin. Filosofa. Gramsci.

    Criar uma nova cultura no signi ca apenas fazer individualmente descober-tas originais; signi ca tambm, e sobretudo, difundir criticamente verdades j descobertas, socializ-las por assim dizer; e, portanto, transform-las em base de aes vitais, em elemento de coordenao e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multido de homens seja conduzida a pensar co-erentemente e de maneira unitria a realidade presente um fato los co bem mais importante e original do que a descoberta, por parte de um gnio los co, de uma nova verdade que permanea como patrimnio de peque-nos grupos intelectuais. (GRAMSCI, 1999, p. 95-96).

    Sobre a filosofia de Gramsci

    Gramsci dialogou com as principais correntes los cas presentes na cultura italiana e europeia de sua poca. Em sua maturidade, contribui, particu-larmente, para atualizar o materialismo histrico e dialtico e para rea rmar a importncia revolucionria desse paradigma terico-metodolgico, tendo identi- cado-o como loso a da prxis.

    Em sua vida e em seu legado terico, Gramsci entendeu a loso a como concepo de mundo (GRAMSCI, 1999, p. 96). Compreendeu a loso a como uma maneira de indivduos e grupos sociais conceberem a realidade e nela orientarem a ao. Disso resultou a to propalada, e s vezes mal interpretada, assertiva gramsciana de que [...] todos os homens so lsofos (GRAMSCI, 1999, p. 93), pois qualquer ser humano tem uma concepo de mundo, seja resultante da prpria autonomia do sujeito, seja incutida nele por meios diversos.

    Muito embora Gramsci entenda por loso a as concepes de mundo, essas no so concebidas por ele apenas e to somente como produtos da subjetividade ou da intersubjetividade. Pelo contrrio, entende-as como forjadas no calor das relaes sociais que se desenvolvem em uma concreta formao econmica e social, e tm papel importante na consolidao ou na superao do modo de produo e reproduo da vida social vigente.

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    Destarte, as loso as so, ao mesmo tempo, produtos e produtoras das relaes sociais, e emergem no devir histrico de uma formao econmica e social. Eis uma caracterstica marcante do marxismo gramsciano: as formaes econmicas e sociais no so determinadas exclusivamente pelos movimentos da estrutura, mas na dialtica relao da base material com a superestrutura social. Foi por essa concepo que o conceito de loso a amadureceu1 em Gramsci, tendo, porm, suscitado alguns equvocos.

    Bobbio, p. e., interpretou enviesadamente o dialtico legado de Gramsci, pois o entendeu como um autor que teria [...] colocado o verdadeiro centro, o teatro da histria [...] (BOBBIO, 1982, p. 33) na [...] sociedade civil, [que] em Gramsci, no pertence ao momento da estrutura, mas ao da superestrutura. (BOBBIO, 1982, p. 32, grifo do autor). Essa interpretao bobbiana da relao entre estrutura e superestrutura em Gramsci supe que na determinao da totalidade scio-histrica a base material perderia completamente seu peso (cf. MARTINS, 2008a, 2008b), sendo o mbito superestrutural o primeiro e o ltimo determinante da realidade concreta, o que seria su ciente para torn-lo um idealista identi cado com Hegel e Croce, e no com Marx, Engels e Lnin, como apontam os textos de sua maturidade terica e sua prxis.

    Diferentemente da interpretao de Bobbio, pode-se observar na obra terica e na prtica social de Gramsci que ele interpretou as determinaes scio-histricas luz do estgio de desenvolvimento do capitalismo de seu tempo, que era consideravelmente diferente daquele vivido no europeu sculo precedente. Na realidade europeia vivida por Marx e Engels, o sculo XIX, e a de Lnin, a Rssia das duas primeiras dcadas do sculo XX, o poder encontrava-se concentrado no estado, que se constitua como um mecanismo predominantemente coercitivo (LNIN, 1986, p. 15-22) por meio do qual a classe dominante economicamente burguesia garantia a reproduo do modo de vida pela fora dos aparelhos da sociedade poltica (cf. GRAMSCI, 2001, p. 262). Contudo, na primeira metade do sculo XX, nos pases capitalistas mais desenvolvidos, essa dinmica de funcionamento das relaes sociais alterou-se na medida do desenvolvimento das foras produtivas e das mudanas no modo de produo e reproduo da vida social, as quais incidiram sobre a estrutura e a superestrutura. Essas alteraes modi caram a conformao do estado, em particular, e das relaes sociais, em geral, exigindo novas estratgias aos que pretendiam promover a superao do capitalismo, como o prprio Engels mencionou, na Introduo de As lutas de classes em Frana:

    1 A formao inicial de Gramsci foi liberal. A loso a dos dois maiores expoentes do neo-idealismo e do liberalismo, Benedetto Croce e Giovanni Gentile, constitui o seu referencial terico para analisar a Itlia mod-erna e no as ideias positivistas e naturalistas de Guglielmo Ferrero e Filippo Turati, representantes do Partido Socialista Italiano. (LOSURDO, 2006, p. 292).

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    [...] se as condies da guerra entre as naes se modi caram, tambm para a luta de classes no se modi caram menos. O tempo dos ataques de surpresa, das revolues levadas a cabo por pequenas minorias conscientes frente das massas inconscientes, j passou. Sempre quando se trata de uma transforma-o completa da organizao social so as prprias massas que devem estar metidas nelas [...] Isto foi o que a histria dos ltimos cinquenta anos nos ensinou. (MARX, 1984, p. 26-27).

    Seguindo a indicao de Engels2, Gramsci perscrutou a realidade e sua prxis o levou a atualizar a forma de luta do proletariado, de acordo com as novas condies scio-histricas das sociedades capitalistas avanadas. Desenvolvendo o [...] que Ilitch [Lnin] no teve tempo de aprofundar (GRAMSCI, 2000b, p. 262), Gramsci observou que o estado havia alterado sua con gurao, ampliando-se e abarcando, alm dos aparelhos de fora da sociedade poltica, os aparelhos privados de hegemonia (sociedade civil), que so necessrios para manter a prevalncia dos interesses burguesia na dinmica de funcionamento das relaes sociais (GRAMSCI, 2005, p. 84). Assim, o estado, no sculo XX, segundo Gramsci, no deixou de ser um instrumento de classe a servio da burguesia, mas mudou sua estratgia de ao e sua con gurao (GRAMSCI, 2000b, p. 262): foi alm da utilizao da fora e da coero, agindo para cimentar concepes de mundo que pudessem orientar a vida individual e coletiva dos integrantes da totalidade social, de acordo com os interesses e as necessidades da burguesia como classe dominante, com vistas a mant-la como classe hegemnica3. Incorporados ao Estado, os instrumentos e processos da sociedade poltica, pela fora, e os da sociedade civil, pela promoo do consenso, articulam, segundo Gramsci, uma trama privada com vistas consolidao da hegemonia das classes dominantes e dirigentes, isto , educa as massas (MANACORDA, 1990, p. 125-126). Disso resultou uma realidade em que a classe dominante ampliou sua hegemonia para alm do mbito econmico e poltico, alastrando-se para outras dimenses: tica, cultural, esttica, psicolgica, social, religiosa etc. (cf. Americanismo e fordismo GRAMSCI, 2001, p. 237-282). Ou seja,

    2 Engels mencionou, em As lutas de classes em Frana, que Porm, a histria tambm no nos deu razo e demonstrou que os nossos pontos de vista dessa altura eram uma iluso. E foi ainda mais alm: no s destruiu o nosso erro de ento como revolucionou totalmente as condies em que o proletariado tem de lutar. O modo de luta de 1848 est hoje ultrapassado em todos os aspectos. E este um ponto que merece ser examinado mais de perto [...] (MARX, 1984, p. 16, grifo nosso).3 Lnin e o leninismo so, portanto, por detrs da cifrada linguagem carcerria, os pontos de referncia de Gramsci na elaborao do conceito de hegemonia. (MANACORDA, 1990, p. 104) Mais do que isso, se pode dizer que Antonio Gramsci, sem nenhuma dvida, foi o terico marxista que mais insistiu sobre o conceito de hegemonia; e o fez reclamando-se particularmente de Lnin. Alis, diria mesmo que, se se quer ver o ponto de contato mais constante, mais enraizado, de Gramsci com Lnin, esse me parece ser o conceito de hegemonia. A hegemonia o ponto de con uncia de Gramsci com Lnin. (GRUPPI, 1978, p. 1).

    Tiago Macambira

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    A novidade da concepo gramsciana de hegemonia distinguir os dois mo-dos pelos quais ela se manifesta: um pelo domnio, outro, pela direo moral e intelectual. Um grupo social bsico domina quando liquida ou submete o grupo adversrio; dirige quando se pe frente dos grupos a ns ou aliados. O domnio supe o acesso ao poder e o uso da fora, compreendendo a funo coercitiva; a direo intelectual e moral se faz atravs da persuaso, promove a adeso por meios ideolgicos, constituindo a funo propriamente hegem-nica. (CARDOSO, 1978, p. 73, grifo do autor).

    Se a passagem ao socialismo no sculo XIX, bem como na primeira e na segunda dcada do sculo XX, tentou-se fazer pelas recomendaes e tradies do marxismo originrio (MARX; ENGELS, 1997, p. 44 e 67), isto , por meio de uma guerra de movimento, pela revoluo entendida como assalto ao poder, a nova realidade exigiu que a revoluo se desenvolvesse utilizando-se tambm4 da estratgia da guerra de posio (GRAMSCI, 2000b, p. 24), da luta em todos os espaos e ambientes sociais para contradizer a concepo de mundo burguesa seus conceitos, valores, verdades, hbitos sociais etc. e para disseminar outra loso a afeita s classes subalternas, com o objetivo de angariar fora su ciente para forjar um bloco social capaz de impor novas dinmicas sociais e, assim, produzir uma verdadeira reforma moral e intelectual 5.

    Em outros termos, pode-se colocar essa questo da seguinte forma: para Gramsci, muitas loso as emergiram das necessidades do processo de consolidao da burguesia como classe dominante economicamente e dirigente sob o ponto de vista tico-poltico e cultural, o que tornava cada vez mais um imperativo forjar loso as coerentes com as necessidades de as classes subalternas libertarem-se da submisso tico-poltica, explorao econmica e da alienao social que as caracteriza como classe social subalterna. De fato,

    Comea a car claro, para Gramsci, que a luta de classe no se resolve na fbrica, nem na conquista do poder poltico atravs do enfrentamento fsico com a burguesia. Existe, difusa na sociedade, uma concepo do mundo e da vida, que d fora e sustentao s relaes sociais que intercorrem entre operrios e burguesia, entre operrios e camponeses, entre latifundirios e trabalhadores assalariados do campo, entre norte e sul do pas [...] Amplia-se, assim, enormemente o campo de anlise, forando Gramsci a ver a esfera do poltico dentro de um contexto maior, dentro de uma totalidade que abrange,

    4 Gramsci no rejeita a guerra de movimento em favor da guerra de posio, pois assim se tornaria um idealista, um socialista utpico na luta social, o que no coaduna com seu legado terico e militncia poltica.5 Pode haver reforma cultural, ou seja, elevao civil das camadas mais baixas da sociedade, sem uma anterior reforma econmica e uma modi cao na posio social e no mundo econmico? por isso que uma reforma intelectual e moral no pode deixar de estar ligada a um programa de reforma econmica; mais precisamente, o programa de reforma econmica exatamente o modo concreto atravs do qual se apresenta toda reforma intelectual e moral. (GRAMSCI, 2000b, p. 19).

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    alm das foras produtivas e de suas organizaes, tambm as foras ideol-gicas e culturais, que desenvolvem um papel oculto importante na formao e conservao dos sistemas sociais. (STACCONE, 1995, p. 70, grifo do autor).

    Percebe-se que esse entendimento gramsciano sobre a dinmica de funcionamento das formaes econmicas e sociais no originrio exclusivamente de suas re exes tericas, de suas meditaes de gabinete, ou melhor, de seus pensamentos nas celas das prises fascistas que frequentou, mas tambm, e principalmente, de sua prxis. Destaque-se, com relao sua prxis, o aprendizado resultante do fracassado processo para tentar implantar a revoluo na Itlia durante o binio vermelho (1919 e 1920), aps o qual Gramsci superou as anteriores concepes tericas e a prtica poltica: o limitado sardismo da fase da juventude, o socialismo voluntarista que o caracterizava na chegada a Turim e mesmo a convico do inexorvel sucesso da guerra de movimento empreendida pelos Conselhos de fbrica.

    Na verdade, a derrota da revoluo na Itlia teve profundas implicaes tericas e consequncias tico-polticas importantssimas ao amadurecimento de Gramsci e ao desenvolvimento do movimento socialista e comunista italiano. Nesse transcurso, Gramsci concebeu sua noo de loso a na dialtica viso que tem da relao entre estrutura e superestrutura, segundo a qual a con gurao das relaes sociais acompanha os resultados da correlao de foras que se estabelece entre as classes sociais fundamentais no modo de produo capitalista. Amadurecido com essa dialtica concepo, Gramsci, com suas formulaes, mormente as desenvolvidas no crcere, corroborou a tese marxiana da relao entre ser e pensar: Para a loso a da prxis o ser no pode ser separado do pensar, o homem da natureza, a atividade da matria, o sujeito do objeto; se se faz esta separao, cai-se numa das muitas formas de religio ou na abstrao sem sentido. (GRAMSCI, 1999, p. 175).

    Essa noo da interao entre ser e pensar, com implicaes ontolgicas, antropolgicas6, epistemolgicas e axiolgicas, possibilitou a Gramsci entender que as concepes de mundo se apresentam como determinadas e determinan-tes da vida concreta, e que nesse jogo de interatuao entre objetivo e subjetivo na realidade scio-histrica emergem diferentes loso as, desde as mais elabo-radas, coerentes e sintticas, at as que se caracterizam por serem vises super- ciais e sincrticas de mundo, mas todas elas com uma mesma origem, pois so produto de [...] um devir histrico [que faz com que] Na realidade, [...] exist[am] diversas [...] concepes de mundo. (GRAMSCI, 1999, p. 96).6 O seu [de Gramsci] conceito de homem um conceito relacional (o homem o conjunto das relaes sociais), mas, na realidade, alguma coisa a mais: um conceito estruturado. No entanto, as relaes que o indivduo estabelece e aquelas nas quais est inserido tm um componente sincrnico e um diacrnico; tm uma relao com a estrutura social e uma dimenso histrica. O homem pode, portanto, ser de nido, como um bloco histrico. As relaes sociais esto entrosadas nas formas e nas estruturas sociais (vizinhana, famlia, relaes de trabalho, grupos sociais fundamentais, extratos sociais etc.) (RAGAZZINI, 2005, p. 146).

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    Gramsci identi ca pelo conceito de senso comum as concepes de mun-do que expressam vises super ciais, ingnuas, a-crticas e incoerentes da reali-dade, e que misturam noes de cincias, de experincias individuais, princpios religiosos etc. O senso comum a

    [...] concepo de mundo absorvida acriticamente pelos vrios ambientes so-ciais e culturais nos quais se desenvolve a individualidade moral do homem mdio. O senso comum no uma concepo nica, idntica no tempo e no espao: o folclore da loso a [...] seu trao mais fundamental e mais caracterstico o de ser uma concepo (inclusive nos crebros individuais) desagregada, incoerente, inconsequente, conforme a posio social e cultural das multides das quais ele a loso a [...] Os elementos principais do senso comum so fornecidos pelas religies e, consequentemente, a relao entre senso comum e religio muito mais ntima do que a relao entre senso comum e sistemas los cos dos intelectuais [...] Predominam no senso co-mum os elementos realistas, materialistas, isto , o produto imediato da sensao bruta, o que, de resto, no est em contradio com o elemento religioso, ao contrrio; mas estes elementos so supersticiosos, acrticos [...]. (GRAMSCI, 1999, p. 114-115).

    Para Gramsci, o senso comum a [...] loso a dos no lsofos (GRAMSCI, 1999, p. 114), amplamente difundida e aceita pelo coletivo social. Contudo, Gramsci no se deixou levar pela neutralidade dos conceitos, pois para ele, o senso comum, no mbito do modo de vida capitalista, expressa uma concepo de mundo adequada classe dominante e dirigente, pois resultante da dinmica social, ao mesmo tempo em que a retroalimenta, visando a consolid-la. Isso porque o senso comum difundido por diferentes meios mdia, escola, literatura, teatro, religio, relaes familiares etc. , ao ponto de ser absorvido, apreendido acriticamente pelos indivduos e pelos grupos sociais para que possa lhes servir como orientao frente aos dilemas da vida individual e aos problemas que a formao econmica e social enfrenta coletivamente, estabelecendo limites ao padro de comportamento e ao desenvolvimento moral; p. e.: ao difundir a indiferena e a passividade poltica e mesmo ao justi car a ordem econmica, social, poltica e cultural vigente.

    Assim entendido, o senso comum, para Gramsci, no se reduz a uma ideia amplamente aceita ou a uma formulao ingnua sobre o homem e suas relaes, pois uma concepo de mundo com interesses e compromissos que visam ao consentimento social em relao dominao e direo de uma classe sobre as demais, por meio da implantao de um conformismo ativo, de forma a torn-las subalternas. , portanto, um dos elementos que interatuam na realidade concreta, participando do processo de determinao dos rumos histricos da formao econmica e social, conforme reconheceram Marx e Engels com a

    Tiago Macambira

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    Tiago Macambira

    Hoje, pela mdia

  • Marcos Francisco Martins

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    [...] proposio da loso a da prxis que [diz] [...] que as crenas populares ou as crenas do tipo das crenas populares tm a validade das foras materiais. (GRAMSCI, 2000b, p. 53).

    Embora Gramsci tenha entendido a loso a como concepo de mun-do e, nesse sentido, o senso comum tambm uma loso a, a loso a dos no lsofos , ele a reconhece como [...] uma ordem intelectual, o que nem a religio e nem o senso comum podem ser. A loso a a crtica e a superao da religio e do senso comum. (GRAMSCI, 1999, p. 96). H entre loso a e senso comum similaridades e distines.

    Entre as similaridades est o fato de que tanto a loso a quanto o senso comum so concepes de mundo elaboradas na trama de contradies do devir histrico das relaes sociais e so difundidos por diferentes meios, com vistas ou a conservar a con gurao societria vigente ou a super-la. Mas h tambm distanciamentos signi cativos entre eles. Diferentemente do senso comum, a -loso a, para Gramsci, uma ordem intelectual (GRAMSCI, 1999), o que a afasta do acriticismo e da incoerncia que caracterizam o senso comum.

    A pretenso da loso a se tornar um novo senso comum, mas reno-vado e sujeito a novas re exes e crticas para ser superado novamente. Nas palavras de Gramsci (1999, p. 100-101),

    Talvez seja til distinguir praticamente entre a loso a e o senso comum, para melhor indicar a passagem de um momento para o outro. Na loso- a, destacam-se notadamente as caractersticas de elaborao individual do pensamento; no senso comum, ao contrrio, destacam-se as caractersticas difusas e dispersas de um pensamento genrico de uma certa poca em certo ambiente popular. Mas toda loso a tende a se tornar senso comum de um ambiente, ainda que restrito [...] Trata-se, portanto, de elaborar uma loso a que - tendo j uma difuso ou possibilidade de difuso, pois ligada vida prtica e implcita nela - se torne um senso comum renovado com a coerncia e o vigor das loso as individuais. E isto no pode ocorrer se no se sente, permanentemente, a exigncia do contato cultural com os simples.

    A loso a tambm , como o senso comum, uma concepo de mundo com interesses e compromissos com as classes fundamentais. So as contradies sociais que mobilizam as foras necessrias ao surgimento das loso as, e no capitalismo das modernas sociedades ocidentais, no h loso a sem a marca da luta entre as classes fundamentais. por isso, portanto, que no se pode destacar a loso a da poltica; ao contrrio, pode-se demonstrar que a escolha e a crtica de uma concepo de mundo so, tambm elas, fatos polticos. (GRAMSCI, 1999, p. 97). Nesse sentido, para Gramsci, a luta de classes est na origem das loso as, e essas retroalimentam a mesma luta que a precedeu

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    logicamente (as loso as so concepes de mundo de homens e mulheres que vivem concretamente os dramas das contradies sociais e em suas vidas vo desenvolvendo suas concepes de mundo), por meio de um processo dialtico, que incapaz de ser explicado pela teoria da causalidade, porque esse paradigma no alcana a relao recproca entre os elementos que interatuam na realidade para produzi-la e reproduzi-la (cf. Cadernos los cos LNIN, 1972).

    Em se tratando, particularmente, das loso as que se pretendem org-nicas s classes subalternas, elas devem identi car e desenvolver o [...] ncleo sadio do senso comum, que poderia ser chamado de bom senso e que merece ser desenvolvido e transformado em algo unitrio e coerente (GRAMSCI, 1999, p. 98), impactando epistemolgica e tico-politicamente a realidade scio-histrica. E isso porque, ao partir do senso comum, de seu ncleo sadio, o bom senso, possvel elaborar uma nova concepo de mundo, que precisar ser difundida em todos os espaos e ambientes sociais, mas priorizando como alvo os indiv-duos e grupos sociais das classes subalternas para que, identi cadas com a nova loso a, a ela se articulem para superar seus comportamentos individuais e cole-tivos, fazendo-os caminhar na direo da transformao radical das estruturas e superestruturas sociais, promovendo [...] um grande progresso los co, j que implica e supe necessariamente uma unidade intelectual e uma tica adequada a uma concepo do real que superou o senso comum e tornou-se crtica [...] (GRAMSCI, 1999, p. 104).

    Papel importante nesse processo de elaborao de concepes de mundo, eivado pela luta de classes, desempenham os intelectuais7, que para Gramsci no se restringem a indivduos, especialmente os diplomados, como recorrentemente eles so identi cados, mas podem ser tambm organismos sociais coletivos. Intelectuais so todos os que se mobilizam para conceber e/ou disseminar uma concepo de mundo articulada aos compromissos com as classes sociais vigentes (tarefa dos intelectuais orgnicos a elas, isto , daqueles que manifestam compromisso vital com a consolidao como classe social hegemnica) ou mesmo com os grupos sociais que so remanescentes de formaes econmicas e sociais pretritas, mas que ainda continuam articulados (intelectuais tradicionais, como, p. ex., eram os clrigos catlicos poca de Gramsci na Itlia do princpio do sculo XX8).

    7 Todo grupo social, nascendo no terreno originrio de uma funo essencial no mundo da produo econmica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe do homogeneidade e conscincia da prpria funo, no apenas no campo econmico, mas tambm no social e no poltico (GRAMSCI, 2000a, p. 15).8 Todo grupo social essencial, contudo, emergindo na histria a partir da estrutura econmica anterior e como expresso do desenvolvimento dessa estrutura, encontrou pelo menos na histria que se desenrolou at aos nossos dias categorias de intelectuais preexistentes, as quais apareciam, alis, como representantes de uma continuidade histrica que no foi interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais modi -

    Tiago Macambira

    Tiago Macambira

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    So trs, basicamente, as tarefas dos intelectuais orgnicos classe dominante e dirigente ou s classes subalternas: a cient co- los ca, a educativo-cultural e a tico-poltica (MARTINS, 2011a). A primeira tarefa dos intelectuais orgnicos a de compreender a dinmica socioeconmica, poltica e cultural das sociedades em que vivem, para estarem preparados para formular uma concepo de mundo que seja condizente com os interesses e necessidades da classe a que est organicamente vinculado. A tarefa educativa-cultural identi ca o trabalho que os intelectuais orgnicos desenvolvem para disseminar e cimentar as concepes de mundo, tornando-as referncia na delimitao de comportamentos individuais e coletivos. A tarefa tico-poltica a que os intelectuais orgnicos desenvolvem na mobilizao de indivduos e grupos sociais com vista a articul-los em torno da concepo de mundo forjada, que visa a adequar a subjetividades s funes prticas. Em sntese, para Gramsci, a [...] tarefa dos intelectuais determinar e organizar a reforma moral e intelectual, isto , adequar a cultura funo prtica [...] (GRAMSCI, 1999, p. 126). por isso que, para Gramsci, os intelectuais so os funcionrios da superestrutura (GRAMSCI, 2000a, p. 20).

    Contudo, o trabalho dos intelectuais s ser producente se as loso as que formularam se disseminarem a tal ponto de se tornarem vontade, transfor-marem-se em uma fora social que opera objetivamente na histria, isto , em ideologia.

    [...] nesse ponto, coloca-se o problema fundamental de toda concepo de mundo, de toda loso a que se transformou em um movimento cultural, em uma religio, em uma f, ou seja, que produziu uma atividade prtica e uma vontade nas quais ela esteja contida como premissa terica implcita (uma ideologia, pode-se dizer, desde que se d ao termo ideologia o signi cado mais alto de uma concepo de mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econmica, em todas as manifestaes de vida individuais e coletivas) isto , o problema de conservar a unidade ideolgica em todo o bloco social que est cimentado e uni cado justamente por aquela determinada ideologia. A fora das religies, e notadamente da Igreja Catlica, consistiu e consiste no seguinte: elas sentem intensamente a necessidade de unio doutrinria de toda a massa religiosa e lutam para que os estratos intelectualmente superiores no se destaquem dos inferiores. (GRAMSCI, 1999, p. 98-99).

    caes das formas sociais e polticas. A mais tpica dessas categorias de intelectuais a dos eclesisticos, que monopolizaram durante muito tempo [...] alguns servios importantes: a ideologia religiosa, isto , a loso a e a cincia da poca, com a escola, a instruo, a moral, a justia, a bene cncia, a assistncia, etc. A categoria dos eclesisticos pode ser considerada como a categoria intelectual organicamente ligada aristocracia fundi-ria [...] Mas o monoplio das superestruturas por parte dos eclesisticos [...] no foi exercido sem luta e sem limitaes; e nasceram [...] outras categorias [...] Dado que estas vrias categorias de intelectuais tradicionais sentem com esprito de grupo sua ininterrupta continuidade histrica e sua quali cao, eles se pem a si mesmos como autnomos e independentes do grupo social dominante. (GRAMSCI, 2000, p. 16-17, grifo nosso).

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    Assim compreendido, o conceito de ideologia em Gramsci no se reduz ao simples conjunto de ideias que indivduos e organizaes sociais manifestam de diferentes formas, e nem muito menos, cincia das ideias ou falsa conscincia9, pois uma concepo de mundo originria das contradies sociais que ganha materialidade na dinmica histrica das relaes sociais, na medida em que se torna capaz de orientar as aes individuais e coletivas. Para Gramsci, as ideologias no so aparncia ou falsa conscincia, mas constituem um terreno contraditrio, no qual os con itos sociais tanto podem ser ocultados quanto esclarecidos. (DORE, 2006, p. 336). Da que A maneira pela qual o conceito de ideologia [...] passou a signi car [...] deve ser examinado historicamente [...] (GRAMSCI, 1999, p. 208).

    Na verdade, Encontro a categoria explicativa da produo ideolgica nas sociedades de classe na re exo gramsciana, no seu conceito de hegemonia. (CARDOSO, 1978, p. 72). A ideologia est presente na dialtica relao entre as classes fundamentais pelo domnio e pela direo, e nela se apresenta como uma concepo de mundo que se expressa no apenas como ideia, mas como vontade coletiva. E se conseguir se constituir efetivamente como vontade coletiva, ter mais condies de interferir na disputa pela hegemonia entre as classe.

    Assim sendo, a ideologia em Gramsci no se resume a uma concepo da classe dominante e dirigente que, por meio dos aparelhos ideolgicos do estado, consolida suas necessidades e interesses sobre todos os grupos da totalidade social. H na concepo de ideologia de Gramsci espao para ideologias das classes subalternas, in uenciado que foi pela tese leninista de que [...] no podia haver cultura socialista sem revoluo e nem [...] a edi cao do socialismo sem a elevao do nvel cultural das massas (JESUS, 2005, p. 51). A propsito disso, parte da contribuio de Gramsci ao desenvolvimento do conceito de ideologia refere-se identi cao que ele faz de seus tipos.

    9 Recorrentemente, so feitas comparao entre a concepo de ideologia de Gramsci e a de Marx, esta tomada como sendo sinnimo de falsa conscincia, uma concepo presente em A ideologia alem. Mas, a ideologia em Marx no se restringe ao signi cado de falsa conscincia. De um lado, pode-se dizer que, no referido texto, o que Marx est a fazer dirigindo uma crtica aos irmos Bauer, sem a preocupao de de nir o conceito de ideologia expressa e cabalmente. No fosse assim, seria difcil compreender outras passagens das obras de Marx e Engels, como a seguinte, que aparece na Crtica loso a do direito de Hegel: A arma da crtica no pode, decerto, substituir a crtica das armas; a fora material s ser derrubada pela fora material; mas a teoria em si torna-se tambm uma fora material quando se apodera das massas. (MARX, 2008, p. 14). Ou mesmo a que est no Prefcio Para a crtica da economia poltica: [...] pelas formas ideolgicas [que] os ho-mens tomam conscincia deste con ito e o conduzem at o m (MARX, 1991, p. 30). O que tais passagens indicam, bem como uma leitura mais atenta das demais obras dos marxistas originrios, que a concepo de ideologia de Marx e Engels no se reduz falsa conscincia, pelo contrrio, demonstra a importncia da ideologia para a luta revolucionria. Gramsci retomou o conceito do marxismo originrio e, inspirado por Lnin, o desenvolveu a partir dos novos desa os que o desenvolvimento do capitalismo imps aos que pretendiam sua superao.

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    necessrio, por conseguinte, distinguir entre ideologias historicamente orgnicas, isto , que so necessrias a uma determinada estrutura, e ideologias arbitrrias, racionalsticas, voluntaristas. Enquanto so historicamente necessrias, as ideologias tm uma validade que validade psicolgica: elas organizam as massas humanas, forma o terreno no qual os homens se movimentam, adquirem conscincia de sua posio, lutam etc. Enquanto so arbitrrias, no criam mais do que movimentos individuais, polmicas, etc. [A] Validade das ideologias recorda[r] a frequente a rmao de Marx sobre a solidez das crenas populares [...] Outra a rmao de Marx a de que uma persuaso popular tem, com frequncia, a mesma energia de uma fora material [...] que muito signi cativa. (GRAMSCI, 1999, p. 238, grifo nosso).

    Como se percebe, as ideologias arbitrrias so interpretadas negativamente por Gramsci. As orgnicas, pelo contrrio, so as que se forjam segundo as necessidades de certa estrutura social, podendo ter signi cado positivo, como o caso das ideologias do proletariado, por exemplo. Desta feita, na viso gramsciana, as loso as podem operar objetivamente na histria quando se tornam ideologias.

    Para que as classes subalternas construam ideologias operantes objetiva-mente na histria, elas devem passar por um processo chamado por Gramsci de catrtico. Segundo ele,

    Pode-se empregar a expresso catarse para indicar a passagem do momento meramente econmico (ou egosta-passional) ao momento tico-poltico, isto , a elaborao superior da estrutura em superestrutura na conscincia dos homens. Isto signi ca, tambm, a passagem do objetivo ao subjetivo e da necessidade liberdade. A estrutura, de fora exterior que esmaga o homem, assimilando-o e o tornando passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova forma tico-poltica, em origem de novas iniciativas. A xao do momento catrtico torna-se assim, parece-me, o ponto de partida de toda loso a da praxis, o processo catrtico coincide com a cadeia de snteses que resultam do desenvolvimento dialtico. (GRAMSCI, 1999, p. 314-315).

    Pelo conceito de catarse (MARTINS, 2011b), mais uma vez Gramsci manifesta a complexidade do pretendido processo de transformao radical das relaes sociais capitalistas, que passa por transformaes estruturais e, ao mesmo tempo, dialeticamente, por superaes ao nvel das conscincias individuais e coletivas. Desse modo, o desenvolvimento da luta poltica, que deve envolver as massas subalternas, implica um processo de elevao das conscincias, articulando ao aspecto objetivo o subjetivo nessa empreitada que

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    [...] correspondem a diversos momentos da conscincia poltica coletiva [...] O primeiro e mais elementar o econmico-corporativo [...] [quando] sente-se a unidade homognea do grupo pro ssional e o dever de organiz-la, mas no ainda a unidade do grupo social mais amplo. Um segundo momento aquele em que se adquire a conscincia da solidariedade de interesses entre todos os membros do grupo social, mas ainda no campo meramente econmico. J se pe neste momento a questo do Estado, mas apenas no terreno da obteno de uma igualdade poltico-jurdica com os grupos dominantes [...] Um terceiro momento aquele em que se adquire a conscincia de que os prprios interesses corporativos [...] superam o crculo corporativo, de grupo meramente econmico, e podem e devem tornar-se os interesses de outros grupos subordinados. Esta a fase mais estreitamente poltica, que assinala a passagem ntida da estrutura para a esfera das superestruturas complexas; a fase em que as ideologias geradas anteriormente se transformam em partido, entram em confrontao e lutam at que uma delas, ou pelo menos uma nica combinao delas, tenda a prevalecer, a se impor, a se irradiar em toda a rea social, determinando, alm da unicidade dos ns econmicos e polticos, tambm a unidade intelectual e moral [...] criando, assim, a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma srie de grupos subordinados. (GRAMSCI, 2000b, p. 41).

    Assim sendo, [...] a conquista da hegemonia e o nascimento de um grupo social para a histria esto ligados a uma dialtica que atravessa essencialmente a autorrepresentao que aquele grupo possui de si mesmo [...] (FINELLI, 2001, p. 02) sem desconsiderar que

    [...] no campo das experincias concretas, na interlocuo crtica com a cul-tura e no embate com os projetos polticos existentes no movimento real da histria que, para Gramsci, se chega progressivamente compreenso de si mesmo, elaborao de uma prpria concepo de mundo, de uma teoria do conhecimento e construo de mtodos [...] Para Gramsci, de fato, como para Marx, o pensamento parte integrante da realidade e existe uma ligao inseparvel entre o agir e o conhecer. (SEMERARO, 2001, p. 96).

    Interessa, por m, observar que essa compreenso dialtica da articulao entre estrutura e superestrutura, da qual resulta a concepo politizada de loso- a foi, tambm, o caldo cultural que levou Gramsci a combater vrias loso as e ideologias de sua poca. Entre as concepes de mundo que Gramsci combateu h uma, em especial, entre elas que se apoderou dos militantes com os quais o revolucionrio italiano da Sardenha cerrou leiras: o materialismo vulgar, que inspirou a positivizao do marxismo desenvolvida por muitos dirigentes socia-listas e comunistas, como Guglielmo Ferraro e Filipo Turati, dirigentes do Par-tido Socialista Italiano, bem como de Bukharin. Em geral, o que identi ca essas concepes de mundo a assertiva segundo a qual o sujeito nada pode frente

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    determinao da estrutura econmica, pois entendida como determinante do sujeito em todas as suas dimenses. Eis uma tese rechaada por Gramsci.

    Gramsci sustentou a crtica ao mecanicismo marxista inspirando-se, sobretudo, na juventude, na [...] loso a dos dois maiores expoentes do neo-idealismo e do liberalismo, Benedeto Croce e Giovanni Gentile (LOSURDO, 2006, p. 292). Mas essa perspectiva implicava outro problema, qual seja fundar o marxismo em bases especulativas, tendo como decorrncia que o sujeito pode tudo, independentemente de sua situao concreta de vida. Da a crtica de Gramsci dirigida a tais correntes de pensamento.

    O caminho los co seguido por Gramsci foi o de sustentar sua con-cepo de mundo na mxima ontolgica da dialtica do marxismo originrio: O concreto concreto porque sntese de mltiplas determinaes, isto , unidade do diverso. (MARX, 1991, p. 16), e como mtodo adotou a refern-cia epistemolgica maior desse mesmo paradigma terico metodolgico: anlise concreta de situaes concretas (cf. MARX, 1991, p. 16-17). Assim, obviamente, as in uncias croceanas e gentilianas foram superadas posteriormente, tornando a concepo los ca de Gramsci caracterizada pela radicalidade do conceito de dialtica, sem abandonar o [...] princpio bsico do materialismo histrico: o de que a produo e reproduo da vida material, implicando a produo e reprodu-o das relaes sociais globais, fator ontologicamente primrio na explicao da histria. (COUTINHO, 1999, p. 123).

    Princpios e finalidades da educao em Gramsci

    Ao sustentar-se ontolgica, axiolgica e epistemologicamente no marxis-mo, mas em um marxismo que prima pela dialtica, Gramsci enfrentou di cul-dades para formular sua proposta educativa. Sua concepo de educao, assim como sua loso a, tem a marca da luta de classes e se forjou sob a gide da dialtica relao entre estrutura e superestrutura.

    O conceito de educao em Gramsci desenvolveu-se acompanhamento seu amadurecimento terico do neo-idealismo ao materialismo histrico e dial-tico. Se at o binio vermelho o seu conceito de educao era bastante marcado pela noo de cultura desinteressada, posteriormente a esse evento e, principal-mente, no crcere, Gramsci formulou as linhas gerais de sua proposta educativa, fundada no trabalho como princpio educativo e na revoluo das relaes so-ciais capitalistas como nalidade. Dessa forma, a re exo sobre a educao feita por Gramsci traz a marca da intencionalidade de um comunista revolucionrio porque se articula como uma estratgia de passagem ao socialismo nas socieda-des ocidentais.

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    Ocorre que, nas modernas sociedades ocidentais, Gramsci observou que a estrutura constitui poderosos mecanismos de reproduo (polticos e ideol-gicos) da vida social, sendo a escola um deles, e tambm a Igreja, os meios de comunicao etc. Esses instrumentos da sociedade civil mediatizam a determi-nao em ltima instncia das relaes sociais de produo e, justamente por isso, acabam con gurando-se com duplo papel no complexo superestrutural: podem ser utilizados para consolidar a hegemonia em vigor, espelhando as con-cepes de mundo das classes dominantes e dirigentes at torn-las uma ideo-logia e ciente na reproduo das relaes sociais, cimentando as condies para o fortalecimento do bloco histrico vigente, ou ser utilizados para combat-lo, difundindo por todos os meios sociais uma nova viso de mundo forjada pelas classes subalternas e seus intelectuais orgnicos, com vistas a construir uma nova civilizao. Nesse sentido, o problema da revoluo tambm um problema de educao. (GRISONI; MAGGIORI, 1973, p. 33).

    Muito embora seja a educao um processo superestrutural, segundo a concepo madura do revolucionrio italiano da Sardenha, a educao no se desvincula da realidade material. Na verdade, a educao faz a mediao entre a realidade material e a superestrutura social, implicando no ensino e na aprendi-zagem de novas prticas sociais de acordo com a estrutura econmica, poltica e ideolgica vigente. por isso que Saviani, inspirado em Gramsci, entender por educao a [...] produo no indivduo singular da humanidade que produzida histrica e coletivamente pelo conjunto dos homens. (SAVIANI, 1992, p. 21).

    Dessa forma entendida, a educao em Gramsci eminentemente pol-tica, assim como a poltica passa a ser vista como comportando uma dimenso educativa. A educao poltica porque interage no processo de produo e di-fuso de concepes de mundo e na transformao dessas em vontade coletiva. Por sua vez, a poltica, nas sociedades ocidentais, tem uma dimenso educativa porque, para reproduzir as relaes sociais ou mesmo para super-las necess-rio desenvolver-se, tambm, como um processo educativo, e no apenas baseada na coero. Eis porque Gramsci considera que Toda relao de hegemonia necessariamente uma relao pedaggica (GRAMSCI, 1999, p. 399).

    Contudo, a educao no perde sua identidade na poltica, e nem a pol-tica deixa-se identi car cabalmente como educao. Nas sociedades ocidentais, elas so processos que tm suas prprias identidades, mas que, ao se efetivarem, interagem, intercomunicam-se, interferem mutuamente, perpassam-se dialetica-mente.

    Alm disso, deve-se ressaltar que poltica e educao no so processos complemente autnomos em relao dinmica que se manifesta na base mate-rial. Pelo contrrio, ambas articulam-se com a estrutura social, particularmente

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    com o modo pelo qual os homens de determinada formao econmica e social historicamente produzem e reproduzem, pela prtica produtiva, scio-poltica e cultural simblica que desenvolvem, na interao com os demais homens e com a natureza, as condies de existncia, isto , com o trabalho (cf. MARTINS, 2008c). Ora, o ato de agir sobre a natureza transformando-a em funo das necessidades humanas o que conhecemos com o nome de trabalho. Podemos, pois, dizer que a essncia do homem o trabalho. (SAVIANI, 2007, p. 154). Eis porque, em Gramsci, [...] o trabalho informa todo o processo educativo-esco-lar, desde a primeira infncia. (NOSELLA, 1992, p. 82). Em outras palavras, o trabalho constitui-se, para Gramsci, como o princpio educativo fundamental. Mas trabalho compreendido na acepo marxista originria exposta, e no na compreenso que recorrentemente se tem dele como simples emprego, atividade laborativa desenvolvida nos moldes do modo de produo capitalista.

    De fato, a tese gramsciana da unio trabalho e educao no uma ori-ginalidade, pois fora apresentada por Marx e Engels de passagem em algumas obras, por Lnin e mesmo por posteriores pensadores e protagonistas do socia-lismo. Contudo, principalmente nos cadernos 12 (Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a histria dos intelectuais) e 22 (Americanismo e fordismo), Gramsci desenvolve uma viso da articulao entre trabalho e educao de ma-neira inovadora em relao s formulaes anteriores, pois inserida na nova rea-lidade das sociedades ocidentais e permeada pela intencionalidade da revoluo socialista nesse novo contexto. Nos referidos Cadernos, o que se percebe que, para Gramsci, o trabalho guarda centralidade na vida social e, como tal, articula--se dialeticamente com os demais processos sociais em particular, com a edu-cao , sendo deles determinantes e sendo por eles retroalimentado. De fato, A a rmao do trabalho como princpio educativo um tema que pertence essncia do socialismo. (JESUS, 2005, p. 61).

    Ocorre que a concepo burguesa de educao e de seu principal instru-mento educativo, a escola, tambm se interessa em articular educao e trabalho, mas da forma que lhe convm, isto , com a educao escolar e no escolar10 sendo formadoras da mo de obra necessria ao sistema produtivo burgus. Nesse sentido, a educao apregoada pela burguesia imediatista e interessada, ou melhor, interesseira, pois quer apenas formar os homens de acordo com suas necessidades como classe dominante e dirigente. Foi isso que motivou a crtica de Gramsci, na segunda dcada do sculo XX, s propostas pro ssionalizantes para as escolas italianas. Nesse momento, a concepo gramsciana foi marcada

    10 [...] [n]o Caderno 12 [...] A noo de escola [...] tomada no seu sentido mais amplo, isto , refere-se a todo tipo de organizao cultural para a formao de intelectuais; essas organizaes so criadas e sustenta-das historicamente pelas diferentes prticas ou foras produtivas da sociedade. (NOSELLA, 1992, p. 108).

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    pela oposio ao pro ssionalismo, pela defesa da educao desinteressada 11, uma educao e uma escola comprometidas com a formao e difuso de uma cul-tura geral humanstica e propedutica. Mas cultura no no neutro sentido de [...] saber enciclopdico, no qual o homem visto apenas sob a forma de um recipiente a encher e entupir de dados empricos (GRAMSCI, 2004, p. 57), pois esta no interessante ao proletariado pelo restrito impacto tico-poltico que dela decorre, e sim entendida como [...] organizao, disciplina do prprio eu interior, apropriao da prpria personalidade, conquista da conscincia superior [...] (GRAMSCI, 2004, p. 58), com vista a elevar a conscincia de si e do mundo, rearticulando a prpria personalidade e inovando as prticas sociais, conceben-do-se como protagonista do prprio destino, condio necessria superao do capitalismo e construo de uma nova civilizao, o socialismo.

    Porm, essa posio em favor de uma educao e de uma escola desinteressada amadurece em Gramsci no perodo do ps-guerra. Nele, a concepo educativa gramsciana marcada pela problemtica dos conselhos de fbrica e dos desa os em se construir um estado proletrio. Assim, a nfase ao aspecto cultural como reivindicao de contedo para a formao proletria passa a ser articulado com a necessidade de o partido e o sindicato sustentarem iniciativas educacionais concretas, tendo como princpio o moderno trabalho industrial e como referncia o embrio do futuro estado proletrio presente em germe nos conselhos de fbrica. Comea, portanto, a ganhar mais clareza no desenvolvimento do pensamento gramsciano a ideia da necessria unidade entre cultura e trabalho, humanismo e tecnologia como caractersticas de um almejado processo de formao para o proletariado. Foi essa compreenso que orientou o grupo em torno da revista Ordine Nuovo a criar, no nal de 1920, uma escola de cultura e de propaganda socialista, pautada na experincia e nos desa os dos conselhos de fbrica. Entretanto, posteriormente, com a ascenso do fascismo, Gramsci viu-se com a necessidade de reorientar as propostas educacionais, tornando-as mais imediatistas e mesmo interessadas em formar quadros para o partido em todas as partes, para elevar a conscincia das massas, obscurecida pela propaganda e cooptao. Tendo em vista a represso do fascismo, a nica forma possvel pensada por Gramsci foi a de construir uma escola por correspondncia, com a nalidade de promover uma primeira formao, no to aprofundada, no perodo de represso, visando ao posterior aprofundamento e aprimoramento com a pretendida abertura poltica resultante da queda do fascismo.

    Mesmo preso, com o endurecimento do fascismo, Gramsci fundou uma escola no crcere junto com amigos e militantes para atender s necessidades dos

    11 Para Nosella (1992, p. 14), por [...] desinteressado [entende-se] (cultura desinteressada, escola e formao desinteressadas) que conota horizonte amplo, de longo alcance, isto , que interessa objetivamente no apenas a indivduos ou a pequenos grupos, mas coletividade e at humanidade inteira.

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    encarcerados: desde os analfabetos, at os letrados, mas que precisavam do de-bate cient co- los co para no embrutecerem seus coraes e mentes frente limitada situao de encarcerado.

    As re exes tericas, o embate poltico na militncia e a prxis poltica de Gramsci criaram um rico caldo que fez amadurecer a sua proposta educa-tiva, fazendo-a desenvolver-se at atingir a concepo de educao e de esco-la desenvolvidas no crcere: a escola unitria. Ela considera a centralidade do trabalho nas relaes sociais, e o que Gramsci prope que a escola seja um meio pelo qual os homens de uma determinada formao econmica e social possam conhecer amplamente o mundo do trabalho, seus processos, mtodos, tcnicas e nalidades, nas suas vrias modalidades, para que tenham as condies de, apropriando-se desses conhecimentos e dessas habilidades historicamente produzidos, superar o modo de produo capitalista da vida social em busca da construo de uma nova civilizao. Inspirada no processo produtivo mais evoludo sua poca, a indstria moderna, sobretudo na racionalizao e dis-ciplina que a caracterizava, considerando, inclusive, as crticas a ela pela alienao que promove com a separao entre trabalho intelectual e trabalho manual, por exemplo, a escola unitria de Gramsci recomenda a unio em um mesmo proces-so escolar do saber, isto , do tradicional ensino humanista (NOSELLA, 1992, p. 20) e propedutico, com o fazer, que orientado, nas modernas sociedades, pela racionalizao cient ca e tecnolgica.

    A nalidade do processo educativo propugnado por Gramsci a forma-o de homens integrais, algo bem prximo da formao omnilateral proposta pelo marxismo originrio12. De fato, [...] Gramsci, ao delinear o tipo de homem harmoniosamente desenvolvido, que j fora indicado por Marx e Engels, [...] voltou a propor, embora consciente de sua aproximao [...] (MANACORDA, 1990, p. 107). Obviamente, pela sua base de referncia no materialismo histrico e dialtico, a integralidade da formao humana proposta por Gramsci articula--se com a necessidade, sobretudo, das classes subalternas, de produzir novos in-telectuais, intelectuais prximos do povo, aptos a sentir o que o povo sente para poder produzir concepes de mundo que se transformem em vontade coletiva, entendida por Gramsci como fora material da histria. Da a necessidade do vnculo orgnico, vital, entre intelectuais e povo, os indivduos e grupos sociais integrantes das classes subalternas (GRAMSCI, 1999, p. 221-222).

    A escola unitria proposta por Gramsci tem como objetivo, tambm, for-mar esse intelectual orgnico s classes subalternas. Assim, ela deve ser universal,

    12 H um debate signi cativo sobre a melhor forma de identi car proposta educativa de Marx e Engels. Cf., por exemplo, os argumentos de Frigotto (1991) e de Saviani (1989 e 2007), que identi cam a proposta educativa marxista originria, in uenciados por Lnin, com o termo politecnia, e de Nosella (2007), que, inspirado em Manacorda (1991), prefere o termo omnilateral.

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    pblica, gratuita, obrigatria e de perodo integral, com vistas a superar, sob o ponto de vista do contedo e do mtodo, a escola tradicional e religiosa, as es-colas pro ssionalizantes burguesas e mesmo as escolas de partido, que visavam a formar quadros para o processo revolucionrio e mesmo para depois de sua efetivao com a instituio do socialismo, algo que o prprio Gramsci defendeu nos primrdios da dcada de vinte do sculo passado. A escola unitria [...] de-veria seguir esta linha: escola nica inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre de modo justo o desenvolvimento da capacidade de trabalhar ma-nualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual. (GRAMSCI, 2000a, p. 33). De fato, Gramsci, no joga fora a gua com a criana dentro, pois resgata a importncia da desinteressada formao humanstica, que herana do ensino tradicional, sem deixar de question-lo e neg-lo principalmente por seu autoritarismo, e, tambm, recupera a interessada pro ssionalizao do ensino, sobretudo, das escolas burguesas, no deixando de criticar seu imediatismo. Faz isso integrando-as de uma nova forma, a forma da escola unitria. Eis [...] dois temas centrais da re exo pedaggica gramsciana: a opo metodolgica entre espontaneismo e autoritarismo, e a opo conteu-dstica entre instruo intelectual tradicional e a instruo moderna tecnolgica. (MANACORDA, 1990, p. 66).

    Sob o ponto de vista do contedo, a proposta gramsciana de escola unitria pretendia socializar universalmente os conhecimentos historicamente produzidos, at mesmo porque, se eles so interpretados como resultantes da produo coletiva da humanidade, devem ser apropriados no privadamente, mas coletivamente pelo conjunto dos homens para que possam dispor, igualmente, das mesmas condies no processo de luta pela existncia e, tambm, para conseguirem elevar suas conscincias, transformando qualitativamente suas prticas produtivas, scio-polticas e culturais-simblicas individuais e coletivas. Assim, o patrimnio cultural, los co, cient co e tecnolgico deveria compor o contedo da escola unitria, o qual seria desenvolvido por um mtodo que partisse [...] das experincias concretas de todos, valorizando-as e estudando-as coletivamente, de forma que o grupo todo se torne educador de si mesmo, organicamente, elevando o nvel cultural de cada um e do conjunto (NOSELLA, 1992, p. 72), por meio um processo racional, em que a disciplina (disciplina externa ao educando articulada sua autodisciplina) nos estudos, nas re exes e nas aes fosse motivada, juntamente com o estmulo autonomia e liberdade de criao, as quais deveriam ser exercitadas. A nfase metodolgica varia, em Gramsci, conforme o desenvolvimento psicolgico do educando: enquanto na fase infantil, a disciplina, a autodisciplina e a interveno externa do educador deveria sem temperada com o afeto, dando liberdade criatividade para combater o dogmatismo e estimular a expanso autnoma e responsvel

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    da personalidade, e no o ativismo pregado pelo escolanovismo, que resulta em conformismo, na juventude, [...] fase decisiva, na qual se tende a criar os valores fundamentais do humanismo (GRAMSCI, 2000a, p. 39), maior estmulo deveria ter [...] a autodisciplina intelectual e autonomia moral necessrias a uma posterior especializao, seja ela de carter cient co (estudos universitrios), seja de carter imediatamente prtico-produtivo (indstria, burocracia, comrcio) (GRAMSCI, 2000a, p. 39). Ou seja, ao jovem da escola unitria deveria incidir menor interveno externa, mas dele ser cobrada maior racionalidade que educa a fantasia abstrata, tornando-a concreta , disciplina, autonomia moral e elevao da conscincia.

    Portanto, [...] com base na evoluo psicolgica do homem que estabe-lece princpios educativos metodolgicos diferenciados para o ensino de 1, 2 e 3 graus (GRAMSCI, 2000a, p. 81), considerando que os processos educativos diferenciados devem seguir [...] os dados subjetivos do desenvolvimento psico-lgico dos jovens e, tambm, [...] os dados objetivos dos ns a serem alcana-dos, que o de introduzir na vida social os jovens, dotados de certa autonomia intelectual e de uma capacidade de criao intelectual e prtica ao mesmo tempo, e de orientao independente. (MANACORDA, 1990, p. 158).

    Em relao aos tempos escolares, Gramsci (2000a, p. 37) observa queA escola unitria deveria corresponder ao perodo representado hoje pelas escolas primrias e mdias [...] O nvel inicial da escola elementar no deveria ultrapassar trs-quatro anos e, ao lado do ensino das primeiras noes instru-mentais da instruo (ler, escrever, fazer contas, geogra a, histria), deveria desenvolver sobretudo a parte relativa aos direitos e deveres, atualmente ne-gligenciada, isto , as primeiras noes do Estado e da sociedade, enquanto elementos primordiais de uma nova concepo do mundo que entra em luta contras as concepes determinadas pelos diversos ambientes sociais tradi-cionais, ou seja, contra as que poderamos chamar de folclricas [...] O resto do curso no deveria durar mais de seis anos, de modo que, aos quinze ou dezesseis, j deveriam estar concludos todos os graus da escola unitria.

    Da resulta que o processo de formao da escola unitria ganharia con-tornos de uma escola viva, articulada ao patrimnio histrico-cultural e, ao mesmo tempo, organicamente comprometida com a superao dos problemas vivenciados pela sociedade resultante do desenvolvimento das foras produti-vas da moderna sociedade industrial. Nessa escola, instruo, que se refere preocupao com os contedos, e educao, que se relaciona ao [...] pro-blema da ordem intelectual e moral (MANACORDA, 1990, p. 178) deveriam estar unidos, pois A escola unitria [...] deveria assumir a tarefa de inserir os jovens na atividade social, depois de t-los elevado a certo grau de maturidade e capacidade para a criao intelectual e prtica e a certa autonomia na orientao

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    e na iniciativa. (GRAMSCI, 2000a, p. 36) A escola proposta partiria do senso comum, criticando-o com os instrumentais racionais, com o intuito de super-lo como concepo de mundo e como orientador da prtica social, do que resulta-ria a elevao da conscincia que os indivduos e os grupos sociais tm de si e do mundo, bem como a transformao das prticas sociais individuais e coletivas.

    Assim, o per l de aluno a ser formado seria o de um intelectual no tra-dicional, pois O velho tipo de intelectual [que] era o elemento organizador de uma sociedade de base predominantemente camponesa e artes; [...] [mas] um novo tipo de intelectual: organizador tcnico, o especialista da cincia aplicada (GRAMSCI, 2004, p. 424). Ou seja,

    O modo de ser do novo intelectual no pode mais consistir na eloquncia, motor exterior e momentneo dos afetos e das paixes, mas numa insero ativa na vida prtica, como construtor, organizador, persuasor permanente, j que no apenas orador puro mas superior ao esprito matemtico abs-trato; da tcnica-trabalho, chega tcnica-cincia e concepo humanista histrica, sem a qual permanece especialista e no se torna dirigente (espe-cialista + poltico). (GRAMSCI, 2004, p. 53).

    A escola unitria seria, portanto, o instrumento que possibilitaria a formao prvia integral e nica que todos os indivduos de determinada formao econmica e social deveriam ter para adquirirem as condies de ser governantes e governados. Por isso, [...] deve-se no multiplicar e hierarquizar os tipos de escola pro ssional, mas criar um tipo nico de escola preparatria (primrio-mdia) que conduza os jovens at os umbrais da escolha pro ssional, formando-o, durante este meio tempo, como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige. (GRAMSCI, 2000a, p. 49). No Ensino Superior, chegariam homens e mulheres no pro ssionalizados precocemente, como pretendiam as escolas pro ssionais burguesas, mas sujeitos com elevada conscincia de si e do mundo, bem como aptos a desenvolverem qualquer aptido tcnico-pro ssional que, autonomamente, julgar procedente para si. Nesse sentido, O advento da escola unitria signi ca o incio de novas relaes entre trabalho intelectual e trabalho industrial no apenas na escola, mas em toda vida social. (GRAMSCI, 2000a, p. 40). Eis algo bastante diferente da reforma de Gentile, criticada por Gramsci porque restringiu aos trabalhadores escola elementar e ao ensino pro ssionalizante.

    Em relao ao Ensino Superior, a proposta educativa de Gramsci no poderia ser forjada seno de forma semelhante proposta de escola elementar e mdia. Ela tambm nasceu da prpria experincia de Gramsci nesse nvel de ensino (MANACORDA, 1990), de sua crtica universidade tradicional, tradio burguesa universitria e s reformas educacionais, emergindo da

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    intencionalidade revolucionria de Gramsci de produzir uma nova civilizao, o que, segundo ele, exige tambm uma nova cultura. Toma como referncia para a re exo sobre o nvel superior [...] a ausncia de in uncia da universidade na vida cultural [italiana] (MANACORDA, 1990, p. 119). Prope, ento, uma universidade capaz de romper o distanciamento entre professor e aluno, que tenha uma didtica que no se reduza retrica e nem trabalhe com a perspectiva epistemolgica da verdade instituda, herana religiosa; prope, ainda, a difuso de valores humansticos e o exerccio da pesquisa dos problemas vigentes, de forma a colaborar com a construo de uma nova cultura, que necessria construo de uma nova sociedade. Essa nova instituio , de fato, uma [...] escola de alta cultura, de elaborao crtica e cient ca, imprescindvel a qualquer hegemonia. (JESUS, 2005, p. 75).

    Toda a concepo educativa de Gramsci o aproximou e o afastou de Rousseau. Aproximou porque Gramsci entendeu que a criana e o jovem devem ser formados eles no so adultos em miniatura! sem o imediatismo das escolas burguesas e sem considerar que trazem em si, inatamente, dons naturais13, como concebia a viso tradicional, sobretudo, religiosa, de educao. De fato, No se levou em conta que as ideias de Rousseau so uma violenta reao contra a escola e os mtodos pedaggicos dos jesutas e, enquanto tal, representam um progresso [...] (GRAMSCI, 2000a, p. 62). Alm disso, Gramsci, com essa concepo, est prximo de Rousseau porque entende que o processo educativo deveria se desenvolver de forma articulada ao desenvolvimento infantil e juvenil, com vista a formar amplamente os educandos, para prepar-los para enfrentar os desa os que a vida lhes impuser. Ou seja, assim como em Rousseau, para Gramsci, a decorrncia do processo formativo da criana, do indivduo, o Emlio, que ele esteja preparado para viver em sociedade, isto , se transforme em cidado e, assim, produza uma sociedade diferente,

    [...] democrtica [que], intrinsecamente, no pode signi car apenas em que um operrio manual se torne quali cado, mas em que cada cidado possa se tornar governante e que a sociedade o ponha, ainda que abstratamen-te, nas condies gerais de poder faz-lo: a democracia poltica tende a fazer coincidir governantes e governados (no sentido de governo com o consenti-mento dos governados), assegurando a cada governado a aprendizado gratui-to das capacidades e da preparao tcnica geral necessrias a essa nalidade. (GRAMSCI, 2000a, p. 50).

    Por outro lado, Gramsci afasta-se de Rousseau por no compreender o homem apenas como um ser naturalmente bom, ou mau, mas como resultante

    13 No tampouco por acaso que Gramsci retoma aqui uma de suas antigas expresses: o homem como formao (ou criao), que j encontramos no artigo de 1916, intitulado Socialismo e cultura, dentro de um severo contexto antiespontanesta, mas perpassado de idealismo: o homem sobretudo esprito, isto , cria-o histrica e no natureza (MANACORDA, 1990, p. 74).

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    de um conjunto de fatores (econmicos, sociais, polticos, culturais, los cos, psicolgicos, ticos, estticos etc.) e foras histrico-sociais que dialeticamente nele incidem e o produz tal qual .

    De forma coerente, Gramsci identi ca, sob o signo da equao inatismo = renncia a educar, os conceitos de natural, casual, catico, mecnico; natureza, isto , ambiente, quer dizer causalidade e caos. Por isso a educao para ele uma adaptao ao ambiente, sim, mas tambm e, sobretudo, uma luta contra esse ambiente, para no permitir que esse in ua casualmente, me-canicamente, talvez mesmo atravs de seus aspectos menos evoludos, e por isso como autoridade, como presso. O problema coloca-se como uma opo entre naturalidade e autoridade, isto , interveno humana, na pres-suposio de que no se pode falar da natureza do homem, mas to-somente de um ambiente historicamente determinado. (MANACORDA, 1990, p. 81).

    A educao propugnada por Gramsci exige a interveno do educador, que deve fazer a mediao entre o jovem e a sociedade, estimulando o desenvol-vimento da autonomia intelectual e moral do educando. Para a escola unitria de Gramsci, o desenvolvimento do ser infantil e juvenil no deve acontecer de for-ma espontnea, delimitada apenas e to somente pelo interesse e pela atividade da criana. De fato, a partir das formulaes Rousseau,

    [...] formou-se uma espcie de igreja, que paralisou os estudos pedaggicos e deu lugar a curiosas involues [...] A espontaneidade um dessas involu-es [...] Na realidade a gerao educa a nova gerao, isto , forma-a; a edu-cao uma luta contra os instintos ligados s funes biolgicas elementares, uma luta contra a natureza, a m de domin-la e criar o homem atual sua poca. No se leva em conta que o menino, desde quanto comea a ver e a tocar [...] acumula sensaes e imagens, que se multiplicam e se tornam complexas com o aprendizado da linguagem. A espontaneidade, se analisa-da, torna-se cada vez mais problemtica. De resto, a escola [...] somente uma frao da vida do aluno, o qual entra em contato tanto com a socieda-de humana quanto com a societas rerum, formando-se critrios a partir dessas fontes extraescolares muito mais importantes do que habitualmente se cr. A escola nica, intelectual e manual, tem ainda esta vantagem: a de colocar o menino em contato, ao mesmo, tempo, com a histria humana e com a his-tria das coisas, sob o controle do professor. (GRAMSCI, 2000a, p. 62-63).

    Deixar a criana desenvolver-se pela sua prpria natureza, espontaneamente, possibilitar que tenha a personalidade orientada pela catica noo de mundo que traz consigo e que est na realidade como senso comum e folclore, que expres-sam, a seu modo, a intencionalidade presente na dinmica das foras e estruturas sociais vigentes. Ou seja,

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    Toda a atitude de respeito espontaneidade, em sua aparncia de respeito pela natureza da criana, , na realidade, renncia a educar, a formar o homem segundo um plano humano; o abandono completo da criana ao autori-tarismo, ou seja, presso exercida objetivamente pelo ambiente. Esta a concluso amadurecida a que chega Gramsci. (MANACORDA, 1990, p. 75).

    A intencionalidade da proposta da escola unitria reside no fato de que as crianas e jovens tenham sua formao dirigida para os ns que so indis-pensveis para a construo de uma nova civilizao, a sociedade socialista, da a compreenso gramsciana de que o professor [...] antes de tudo, representa a conscincia crtica da sociedade. (JESUS, 2005, p. 79). Ou seja, Gramsci [...] desloca a nfase, dos professores como indivduos singulares, para todo o com-plexo social. (MANACORDA, 1990, p. 245).

    Todavia, para ser implantada, essa proposta de escola unitria exige que a sociedade tambm se desenvolva por outros meios, com princpios e nalidades distintos da sociedade capitalista. Assim se constitui, no legado gramsciano, a dialtica tenso entre promover mudanas na escola para transformar a socieda-de ou promover as transformaes sociais para mudar a escola. Nas palavras de Betti, tem-se que

    Desde suas primeiras intervenes no Ordine Nuovo, Gramsci insiste no carter poltico do problema educacional, e manifesta uma convico de que o problema da escola, da difuso da instruo, um aspecto decisivo para uma reforma democrtica de toda a vida social do pas; assim mesmo, est convencido de que a luta por uma escola nica para todo o povo abre uma perspectiva socialista e representa um componente essencial da luta poltica sustentada pela classe operria para a a rmao de sua hegemonia. (BETTI, 1981, p. 170).

    Gramsci tem, portanto, uma viso ampla de educao: compe-se de todos os processos sociais que mediatizam a vida social e se caracterizam por processos de ensino e aprendizagem que se desenvolvem na escola e fora dela. por essa concepo que Gramsci critica a educao burguesa, a educao fascista e religiosa, bem como encontra sustentao para forjar a concepo de escola unitria, que articula os processos de ensino-aprendizagem com a dinmica real da vida social, para promover as condies necessrias construo de uma nova civilizao. Uma escola que deve prover [...] a formao para a capacidade de agir ao mesmo tempo intelectualmente e manualmente (isto , no mundo contemporneo, tecnicamente, industrialmente), em uma organizao educativa unitria, vinculada s instituies produtivas e culturais da sociedade adulta. (MANACORDA, 1990, p. 285).

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    Consideraes finais

    guisa de concluso, resta retomar algumas ideias que perpassaram este texto e que merecem ser reforadas quando se trata de discutir o legado de Gramsci, em particular, suas formulaes sobre loso a e educao.

    O fato de que Gramsci nunca tenha escrito um livro, mas haver vrios livros publicados com textos do comunista revolucionrio nascido na Sardenha torna imperativo a rmar que a abra terico-metodolgica de Gramsci no pode ser lida e interpretada isoladamente, porque forma uma totalidade que, para ser bem compreendida, exige ser tomada integral e historicamente. Apenas assim se ter condies de acompanhar o desenvolvimento e o amadurecimento dos conceitos e da prpria prxis desenvolvida por Gramsci ao longo de sua vida, at chegar ao perodo da maturidade intelectual representada pela produo re-alizada no crcere. Dessa tese decorre uma orientao leitura dos textos de Gramsci, que so assistemticos pelas condies em que foram produzidos, mas que no podem ser apropriados indebitamente, como fazem alguns liberais e idealistas, pois essas concepes e prxis contradizem o legado de Gramsci.

    As diferentes edies dos Cadernos do crcere de Gramsci, sua obra de matu-ridade, colaboraram muito, cada qual sua maneira, para que atualmente se tenha melhores condies de entender e interpretar o legado terico do marxista revo-lucionrio da Sardenha. Contudo, a leitura da obra de Gramsci ainda permanece mais complicada do que a de autores que escreveram, revisaram e publicaram seus livros. Assim, a exigncia da boa hermenutica de no ler a obra fora do contexto, no caso do legado de Gramsci, exige alguns procedimentos, princi-palmente os quatro seguintes: conhecer o contexto histrico em que ele viveu; identi car os embates ticos, polticos, ideolgicos e culturais que travou, sobre-tudo, no interior do movimento comunista italiano e internacional; reconhecer os autores com os quais dialogou; familiarizar-se com as polmicas tericas que enfrentou no momento em que redigia seus textos. Dessa forma se ter melho-res condies para bem entender a obra de Gramsci, ou seja, para interpret-lo imperativo se ter como referncia a realidade histrica por ele vivida seus limites, possibilidades e contradies e a posio que adotou frente aos desa- os que enfrentou. Em outras palavras, pode-se dizer que, embora os escritos gramscianos sejam fragmentrios, eles guardam coerncia poltica, ideolgica e terica interna, coeso que se estende para a prxis por ele desenvolvida, do que decorre poder interpretar a vida concreta de Gramsci e sua produo terica como uma totalidade articulada.

    Em geral, os conceitos formulados por Gramsci so profundamente con-taminados pela noo dialtica e politizada que ele tem da relao entre estrutu-ra e superestrutura. Em particular, a loso a e a educao ganham, no legado

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    gramsciano, tonalidades polticas com princpios e nalidades bem de nidos, quais sejam aqueles do paradigma terico-metodolgico materialista histrico e dialtico, e tornam-se, assim, processos e produtos das relaes sociais.

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    Recebido em 12/04/2012Verso nal recebida em 12/08/2012Aceito em 16/08/2012