estado ampliado em gramsci

17
31 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 29, p. 31-43, nov. 2007 Rita Medici GRAMSCI E O ESTADO: PARA UMA RELEITURA DO PROBLEMA Recebido em 15 de agosto de 2007. Aprovado em 25 de agosto de 2007. 1 Como já reconhecem alguns dos estudos mais recentes: conferir, entre outros, Baratta (2003, p. 77-117). I. INTRODUÇÃO Sem dúvida, examinar com profundidade o problema do Estado no pensamento de Antonio Gramsci é algo que não se pode enfrentar no es- paço de um ensaio. De fato, para tratar a questão, dever-se-iam aprofundar todos os aspectos de uma problemática que comportaria uma pesquisa so- bre os próprios fundamentos do pensamento filo- sófico-político gramsciano. Considero algo esta- belecido que se possa falar de Gramsci como um filósofo político e também, seguramente, um filó- sofo, não tendo aqui a possibilidade de demonstrá- lo; para isso, remeto ao meu livro, intitulado Giobbe e Prometeo, no qual descrevi por que podemos, sem dúvida, pensar que Gramsci seja um pensa- dor com perfil filosófico e não simplesmente um teórico da política (MEDICI, 2000, p. 61-109). Um pensador que se insere de modo original na tradição de pensamento da filosofia política mo- derna e contemporânea, naquele “ius publicum europaeum” do qual, na mesma época em que este pensava e trabalhava, alguém tinha decretado a crise irreversível. Tratava-se, pelo contrário, de uma tradição de pensamento que tinha ainda mui- to a dar, como a própria obra de Gramsci e sua fortuna crítica sucessivamente e largamente de- monstraram. Aquilo que pretendo afirmar não é que Gramsci seja simplesmente um epígono de Hobbes, Locke e Rousseau, muito embora tenha com esses pen- Pretende-se reler o problema do Estado no pensamento de Gramsci, analisado em seu tempo de forma já clássica por Massimo Salvadori e Christine Buci-Gluksmann, na convicção de que, na realidade, o perfeito alinhamento de Gramsci à tradição marxista da “extinção” do Estado, sustentado quase unanimemente pela crítica gramsciana contemporânea, deva ser reavaliado e até mesmo revogado. A exegese do texto de Gramsci será também levada avante valendo-se de instrumentos de análise lexical, destacando a presença, nos Quaderni del carcere, da expressão “vida estatal”, da qual Gramsci faz amplo uso. Dessa expressão, podem decorrer elementos esclarecedores da concepção gramsciana de Estado, úteis para uma reconsideração da complexa reflexão sobre o problema “histórico” da democracia, com seu difícil equilí- brio entre crítica, renovação e exclusão das formas tradicionais da democracia moderna. PALAVRAS-CHAVE: Antonio Gramsci; Estado; filosofia; marxismo; política; sociedade civil. sadores, e em particular com Rousseau, algum tipo de afinidade, como julgou Carlos Nelson Coutinho e como também demonstrei (COUTINHO, 2006, p. 152-157; MEDICI, 2000, p. 70-77). Sua inserção no sulco daquela tradição vem, de fato, em primeiro lugar, por meio da me- diação fundamental de Hegel e sobretudo de Marx. Por isso, seu pertencimento ao marxismo torna- se um elemento indispensável de sua reflexão e influencia de modo substancial seu perfil filosófi- co, aquele de uma filosofia “política” (que se ocu- pa, pois, de alguns de seus temas clássicos, como o nexo entre Estado e sociedade civil), mas tam- bém de uma filosofia compreendida de modo mais geral. Creio, portanto, que não podemos mais duvidar de uma “filosofia” dos Quaderni e nos Quaderni, que, contudo, não sendo de tipo tradi- cional, é todavia inegavelmente uma filosofia 1 . Pelo contrário, penso que Gramsci, sob um olhar mais atento e visto em uma perspectiva histórica adequada, pode, a esse propósito, revelar-se um dos mais inovadores filósofos italianos da primei- ra metade do século XX. Das vertentes teóricas, filosoficamente rele- vantes, que foram até aqui individualizadas, cer- tamente o tema do Estado, em primeira instância, coloca-se sobre a vertente filosófico-política, e

Upload: marcia-silva

Post on 24-Jun-2015

3.001 views

Category:

Documents


18 download

TRANSCRIPT

Page 1: Estado ampliado em gramsci

31

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 31-43 NOV. 2007

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 29, p. 31-43, nov. 2007

Rita Medici

GRAMSCI E O ESTADO:PARA UMA RELEITURA DO PROBLEMA

Recebido em 15 de agosto de 2007.Aprovado em 25 de agosto de 2007.

1 Como já reconhecem alguns dos estudos mais recentes:conferir, entre outros, Baratta (2003, p. 77-117).

I. INTRODUÇÃO

Sem dúvida, examinar com profundidade oproblema do Estado no pensamento de AntonioGramsci é algo que não se pode enfrentar no es-paço de um ensaio. De fato, para tratar a questão,dever-se-iam aprofundar todos os aspectos de umaproblemática que comportaria uma pesquisa so-bre os próprios fundamentos do pensamento filo-sófico-político gramsciano. Considero algo esta-belecido que se possa falar de Gramsci como umfilósofo político e também, seguramente, um filó-sofo, não tendo aqui a possibilidade de demonstrá-lo; para isso, remeto ao meu livro, intitulado Giobbee Prometeo, no qual descrevi por que podemos,sem dúvida, pensar que Gramsci seja um pensa-dor com perfil filosófico e não simplesmente umteórico da política (MEDICI, 2000, p. 61-109).Um pensador que se insere de modo original natradição de pensamento da filosofia política mo-derna e contemporânea, naquele “ius publicumeuropaeum” do qual, na mesma época em queeste pensava e trabalhava, alguém tinha decretadoa crise irreversível. Tratava-se, pelo contrário, deuma tradição de pensamento que tinha ainda mui-to a dar, como a própria obra de Gramsci e suafortuna crítica sucessivamente e largamente de-monstraram.

Aquilo que pretendo afirmar não é que Gramsciseja simplesmente um epígono de Hobbes, Lockee Rousseau, muito embora tenha com esses pen-

Pretende-se reler o problema do Estado no pensamento de Gramsci, analisado em seu tempo de forma jáclássica por Massimo Salvadori e Christine Buci-Gluksmann, na convicção de que, na realidade, o perfeitoalinhamento de Gramsci à tradição marxista da “extinção” do Estado, sustentado quase unanimementepela crítica gramsciana contemporânea, deva ser reavaliado e até mesmo revogado. A exegese do texto deGramsci será também levada avante valendo-se de instrumentos de análise lexical, destacando a presença,nos Quaderni del carcere, da expressão “vida estatal”, da qual Gramsci faz amplo uso. Dessa expressão,podem decorrer elementos esclarecedores da concepção gramsciana de Estado, úteis para umareconsideração da complexa reflexão sobre o problema “histórico” da democracia, com seu difícil equilí-brio entre crítica, renovação e exclusão das formas tradicionais da democracia moderna.

PALAVRAS-CHAVE: Antonio Gramsci; Estado; filosofia; marxismo; política; sociedade civil.

sadores, e em particular com Rousseau, algumtipo de afinidade, como julgou Carlos NelsonCoutinho e como também demonstrei(COUTINHO, 2006, p. 152-157; MEDICI, 2000,p. 70-77). Sua inserção no sulco daquela tradiçãovem, de fato, em primeiro lugar, por meio da me-diação fundamental de Hegel e sobretudo de Marx.Por isso, seu pertencimento ao marxismo torna-se um elemento indispensável de sua reflexão einfluencia de modo substancial seu perfil filosófi-co, aquele de uma filosofia “política” (que se ocu-pa, pois, de alguns de seus temas clássicos, comoo nexo entre Estado e sociedade civil), mas tam-bém de uma filosofia compreendida de modo maisgeral. Creio, portanto, que não podemos maisduvidar de uma “filosofia” dos Quaderni e nosQuaderni, que, contudo, não sendo de tipo tradi-cional, é todavia inegavelmente uma filosofia1.Pelo contrário, penso que Gramsci, sob um olharmais atento e visto em uma perspectiva históricaadequada, pode, a esse propósito, revelar-se umdos mais inovadores filósofos italianos da primei-ra metade do século XX.

Das vertentes teóricas, filosoficamente rele-vantes, que foram até aqui individualizadas, cer-tamente o tema do Estado, em primeira instância,coloca-se sobre a vertente filosófico-política, e

Page 2: Estado ampliado em gramsci

32

GRAMSCI E O ESTADO: PARA UMA RELEITURA DO PROBLEMA

naturalmente é deste que, acima de tudo, queroocupar-me. Conservo (e procurarei demonstrá-lo) que, por uma série de razões muito precisas, otema nos conduz inevitavelmente a uma dimen-são mais ampla, filosófica no sentido mais geral,da pesquisa gramsciana dos Quaderni.

II. GRAMSCI (MARX) E O ESTADO

A doutrina oficial do marxismo sobre o temado Estado, como é sabido, foi formulada porFriedrich Engels, retomando a temática saint-simoniana do desaparecimento do Estado comoanulação da dimensão do político como tal e dogoverno da sociedade como simples “administra-ção das coisas”2. Se isso respondia plenamente àvisão que Marx tinha do problema, permanece aindahoje um ponto problemático. Mas, certamente,Marx, ao final de 1845, tinha ligado a existênciado Estado ao domínio de classe, sem posterior-mente colocar em dúvida essa análise: o comu-nismo como superação da alienação capitalistaprevia o desaparecimento de tal domínio conjun-tamente com as classes. Isso deveria ser acom-panhado pela abolição da propriedade privada e dadivisão do trabalho, com o fim de obter a supera-ção de todos os fenômenos alienantes conectadosà produção de mercadorias. Era prevista, também,a abolição do Estado considerado orgânico aodomínio de classe, sobre a qual Marx fala, semlugar a dúvidas, no Manifesto de 1848. Em umtexto mais tardio, entretanto, Crítica ao Progra-ma de Gotha, a fórmula que Marx adota é a da“transformação” do Estado “de um órgão sobre-posto à sociedade em um órgão totalmente su-bordinado a ela”3. Sem fazer uma inútil guerra decitações, tratar-se-ia, na realidade, de compreen-

der se, para Marx, o desaparecimento (ou aboli-ção) do Estado coincidiria ou não com o desapa-recimento do “político” enquanto função separa-da e específica; se sua concepção do comunismoprevê aqui uma sobrevivência qualquer da dimen-são política enquanto tal, uma vez superada, parausar as palavras de Marx, “a limitada forma bur-guesa” – essa é uma bela expressão que se en-contra nos Grundrisse (MARX, 1970, v. II, p.112-113)4 – ou auspicia sem condescendência ototal desaparecimento.

De todo modo, o que aqui importa é que atradição marxista do século XIX se referirá prin-cipalmente a Engels, tanto ao Anti-Dühring, noqual retomava recapitulando as análises de Marxsobre a gênese do Estado, quanto à Origem dafamília, da propriedade privada e do Estado5,em que se fala da “extinção” do Estado como deum ponto firme sobre o qual nenhum entre osteóricos marxistas mais importantes (com exce-ção dos social-democratas alemães) colocará emdiscussão, nem mesmo Lenin. É essa concepção“ortodoxa” que Gramsci encontra no arsenal teó-

2 Na terceira parte de seu Antidühring, Engels escrevia: “Oproletariado apodera-se do poder do Estado e antes detudo transforma os meios de produção em propriedade doEstado”. Dessa forma, suprime toda diferença de classe e,para isso, suprime também o Estado. De fato, não apenasnão existiriam mais classes sociais mantidas na opressão,como também não seria mais necessária a força repressivado Estado. A intervenção do Estado nas relações sociaistorna-se supérflua em todos os campos: “no lugar do go-verno sobre as pessoas surge a administração das coisas e adireção dos processos produtivos. O Estado não é ‘aboli-do’: se extingue” (ENGELS, 1950, p. 305, sem grifos nooriginal).3 Sobre a complexidade do problema e também de algumasdiscrepâncias entre as concepções de Marx e Engels a res-peito, ver Danilo Dolo em sua “Introdução” a I marxisti elo Stato, o qual observa que precisaria ser mais bem verifi-

cado “se é realmente verdade” que as obras de Marx “docu-mentam uma completa adesão [...] à teoria da extinção doEstado não apenas em sua fase juvenil, como também namaturidade” (ZOLO, 1977, p. IX-LIV, XXIV).4 Comparando o mundo antigo, no qual o homem “é sem-pre o fim da produção”, ao mundo moderno, no qual “aprodução se apresenta como fim do homem e a riquezacomo a finalidade da produção”, Marx observa: “in fact,uma vez cancelada a limitada forma burguesa, o que é ariqueza senão a universalidade das necessidades, das capa-cidades, dos gozos [...] criada no intercâmbio universal? Oque é senão o pleno desenvolvimento do domínio do ho-mem sobre as forças da natureza [...]? O que é senão aexteriorização absoluta de seus dotes criativos [...] na qualo homem não se reproduz em uma dimensão determinada,mas produz a própria totalidade?” Por isso, também, se o“infantil mundo antigo” se apresenta como uma coisa maiselevada, isso “é satisfatório de um ponto de vista limitado”(MARX, 1970, v. II, p. 112-113).5 “O Estado não existe desde a eternidade. Existiram socie-dades que o ignoraram e que não tiveram nenhuma idéia doEstado ou do poder estatal. Em um determinado grau dodesenvolvimento econômico [...] ligado à divisão da socieda-de em classes, [...] o Estado tornou-se uma necessidade”.Avizinha-se, entretanto, a passos rápidos, um estágio daprodução no qual as classes, tornadas obstáculo à produção,cairão; com elas cairá também o Estado. A sociedade reorga-nizada como uma associação livre dos produtores relegará oconjunto da máquina estatal ao posto que merece, “isto é, aomuseu das antiguidades, ao lado da roca de fiar e do machadode bronze” (ENGELS, 1963, p. 203-204).

Page 3: Estado ampliado em gramsci

33

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 31-43 NOV. 2007

rico do marxismo e é com ela que sua pesquisadeve acertar as contas. Na reconstrução dessaproblemática do Estado em Gramsci e do temarelacionado de sua crítica à democracia, pretendoapoiar-me na leitura que fizeram, em um momen-to anterior dos estudos gramscianos, dois estudi-osos cujas obras permanecem pequenos “clássi-cos”. Falo de Massimo Salvadori, com Gramsci eil problema storico della democrazia, de 1970, ede Christine Buci-Gluksmann, com seu Gramsciet l’État, de 1975.

III. O TEMA DO ESTADO NA CRÍTICAGRAMSCIANA: LENINISMO ORTODOXOOU CRÍTICA ORIGINAL DA DEMOCRA-CIA BURGUESA?

No início de seu livro, Buci-Glucksamann ob-servou justamente que, colocando o centro dapesquisa gramsciana no tema do Estado, são re-tomadas todas as grandes questões que estavampostas nas primeiras três décadas do século XIX:crise do Estado liberal, natureza do Estado fascis-ta, problemas do Estado socialista soviético. Suaconvicção é que a questão do Estado é funda-mental, principalmente nos Quaderni del carcere,na medida em que, segundo ela, Gramsci passoude uma concepção da hegemonia em termos declasse, típica de sua elaboração juvenil, para umaconcepção de hegemonia “em termos do Estado”(BUCI-GLUCKSMANN, 1976, p. 17). A seguir,como Buci-Glucksmann admite, o ponto de vistagramsciano sobre o tema do Estado muda comrelação às análises formuladas na década de 1920,em um momento no qual a revolução parecia imi-nente e Gramsci lutava para fundar também naItália um Estado de tipo soviético. Partilho dessaafirmação, assim como também estou de acordocom Buci-Glucksmann quando sublinha que, ar-ticulando de uma maneira nova o conceito de Es-tado com relação à sociedade, Gramsci soube evitartanto as velhas concepções socialdemocráticasquanto à teoria stalinista do Estado como puraForça. Essa reflexão original de Gramsci desem-boca naquela que ficou conhecida como a “con-cepção ampliada” do Estado, com a inclusão, den-tro do próprio Estado, dos aparelhos hegemônicos.

Por outro lado, parece-me menos convincen-te a tese que, a partir daí, Buci-Glucksmann pre-tende demonstrar, de que isso antecipa uma “re-tomada leninista” da idéia da “extinção” do Estadona sociedade comunista e que os Quaderni, emseu conjunto, devam ser lidos como uma “conti-

nuação do leninismo” em condições históricas di-versas e com novas conclusões políticas (BUCI-GLUCKSMANN, 1976, p. 23). Do mesmo modo,estou em desacordo também com outra tese, maisde uma vez repetida por ela: a de que se poderiaencontrar em Gramsci um ponto de vista filosófi-co “materialista”, o que não surpreende, na medi-da em que a autora reivindica abertamente, aindaque em chave crítica, a leitura do marxismo pro-posta por Louis Althusser. Sobre esse tema, te-nho a opinião contrária e destaco que, na reflexãofilosófica dos Quaderni, são repelidas exatamen-te as versões materialista e economicista da teoriamarxista. Em particular sobre a questão filosófi-ca, o distanciamento entre Gramsci e Lenin é, ameu ver, evidente, seja pelos acenos diretos – eledefine a filosofia de Lenin como “ocasional”(MEDICI, 2000, p. 9-37; GRAMSCI, 2001, p.886) –, seja indiretamente, com a demolição críti-ca que Gramsci faz, no Quaderno 11, daimpostação dada por Bukharin às questões filosó-ficas em seu Manual popular de sociologia mar-xista, impostação coerente com a tradição domarxismo russo, da qual Lenin, com seu Materia-lismo e empirocriticismo, de 1908, forneceu, aomesmo tempo, um complemento e uma síntese6.

Prescindindo dessa questão da presumida “or-todoxia leninista” de Gramsci, não se pode es-conder que a pesquisa de Buci-Glucksmann so-bre o tema do Estado teve uma importância fun-damental para uma melhor compreensão do pen-samento gramsciano. A estudiosa francesa, pelaprimeira vez, colheu a importância desse concei-to de “Estado ampliado”, o fato de que existamem Gramsci dois momentos diversos nos quaisse articula o “campo estatal” – o Estado em senti-do estrito, que se identifica com o governo e seuaparelho coercitivo, e o Estado em sentido ampli-ado, que é composto pelo conjunto de meios dedireção intelectual e moral, isto é, pelos aparelhoshegemônicos (BUCI-GLUCKSMANN, 1976, p.89-140). Concordo com a análise de Buci-Glucksmann e com sua tese central sobre a exis-tência, em Gramsci, de uma nova concepção doEstado. Parece-me, entretanto, que esse conceitode “Estado ampliado” permanece, ainda, como algo

6 Aqui, considero que, confutando e rejeitando o ponto devista teórico de Bukharin, Gramsci implicitamente rejei-tasse também a impostação dada aos problemas filosóficospelo próprio Lenin.

Page 4: Estado ampliado em gramsci

34

GRAMSCI E O ESTADO: PARA UMA RELEITURA DO PROBLEMA

a ser esclarecido – uma vez que seja verdade,como acredito, que isso não conduza de fatoGramsci a simplesmente aderir à clássica teoriamarxista da “extinção” do Estado7 – sobretudonaquilo que diz respeito, nessa concepção “ampli-ada”, ao modo em que se deverá compreender arelação de distinção entre “sociedade política” (oEstado em sentido estrito) e “sociedade civil”, dis-tinção que, como Gramsci adverte, é“metodológica” e não “orgânica” (GRAMSCI,2001, p. 1590). Esse problema da relação entresociedade civil e Estado tem se revelado sempreuma vexata quaestio dos estudos gramscianoscontemporâneos8.

IV. GRAMSCI E O PROBLEMA DA DEMOCRA-CIA

Em seu livro, Salvadori tenta reconstruir a re-flexão em torno do problema da democracia comoapresentada em Gramsci. Em um capítulo funda-mental, intitulado Centralismo e democrazia nel“moderno Principe”, Salvadori destaca, com for-ça, a importância da idéia de “reforma intelectuale moral” para a concepção gramsciana. Essa “re-forma” comporta uma maturação das massas e éo elemento que “propriamente impede ainstrumentalização das massas por parte dos diri-gentes” (SALVADORI, 1970, p. 54). Salvadoricoloca, de modo justo, no centro dessa proble-mática, a convicção de que Gramsci acredita queseja possível superar historicamente a divisão en-tre dirigentes e dirigidos, governantes e governa-dos. É evidente que apenas é possível superar essadivisão criando as premissas de ordem intelectualpara que as massas possam adquirir a mentalida-

de de dirigentes. A superação da divisão entregovernantes e governados, que é um processodestinado a ocupar toda uma época histórica, de-verá, por isso, ser preparada por um tipo particu-lar de direção política. O partido revolucionário,segundo Gramsci, deve pretender a transforma-ção de todos os filiados em dirigentes, preparan-do assim as condições para que a divisão entregovernantes-governados seja superada(SALVADORI, 1970, p. 55-56). Essa idéia do de-saparecimento da divisão entre dirigentes e dirigi-dos deve ser aproximada da proposta gramscianapresente no Quaderno 11, no qual, refletindo so-bre o relativo “infortúnio” do pensamento mar-xista (tornando-se patrimônio das massas apenasem sua forma mais pobre e dogmática) e pergun-tando-se “como se tornam populares as novasconcepções de mundo”, Gramsci indica, na filo-sofia marxista, em sua versão filosoficamente mais“elevada” de “filosofia da práxis”, o instrumentopara promover um “progresso intelectual de mas-sa” (GRAMSCI, 2001, p. 1384-1385). São pro-postas de fundamental importância que, no perío-do transcorrido desde a redação dos Quaderni,não foram realizadas senão minimamente, consti-tuindo aquilo que, sem hesitar, chamarei de a par-te “utópica” (no sentido positivo do termo) daproposta política e estratégica gramsciana9.

Continuando com seu exame, Salvadori justa-mente insiste sobre a importância que Gramsciatribui ao funcionamento do partido em dois mo-dos diversos, segundo um centralismo que podeser “democrático” ou “burocrático”. Com pala-vras muito duras, Gramsci critica o segundo modo,o burocrático, com base no qual um partido serevela “puro executor, não deliberante”, “tecnica-mente um órgão de polícia”. Tais afirmações sãoacompanhadas por uma crítica mais geral da bu-rocracia, segundo Gramsci, “a força consuetudi-nária e conservadora mais perigosa” (GRAMSCI,1953, p. 26, 51). Para completar seu raciocínio,Salvadori ressalta a reivindicação (motivo cons-tante do pensamento gramsciano) do valor políti-co revolucionário da verdade: “na política de mas-sa – escreve Gramsci – dizer a verdade é umanecessidade política”. Sem verdade, sem “assu-mir coletivamente as responsabilidades” que des-

7 Sobre isso, concordo com as opiniões expressas porDomenico Losurdo, que observa que Gramsci é o autormarxista que se demonstra mais crítico às tendências anár-quicas e a coisa “se compreende bem”: de fato, “fazer coin-cidir o fim o domínio burguês com o fim do Estado” com-porta uma forma de mecanicismo “que faz das instituiçõespolíticas uma simples superestrutura da economia”; não é,pois, de surpreender-se que, entre oscilações e contradi-ções, Gramsci “se tenha esforçado por redimensionar,reinterpretar ou colocar em discussão a tese da extinção doEstado” (LOSURDO, 1997, p. 181, 198, 190).8 Sobre esse problema, remeto à boa reconstrução textualfeita por Guido Liguori, da qual, entretanto, não partilho asconclusões, que reportam, mais uma vez, toda a problemáti-ca gramsciana do Estado à clássica concepção marxista, dederivação engelsiana, sobre a “extinção” (LIGUORI, 2004,p. 208-226). Uma reproposição dos termos dessa questãoencontra-se ainda em Dore Soares (2000, p. 55-112).

9 Para o caráter particular da “utopia” gramsciana, remetoa meu ensaio “L’‘utopia’ gramsciana ta antropologia epolitica” (MEDICI, 2006, p. 193-205).

Page 5: Estado ampliado em gramsci

35

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 31-43 NOV. 2007

ta derivam, as classes subalternas, ainda que se-jam uma nova força dirigente, tornar-se-ão ape-nas “um novo suporte para uma nova casta degovernantes” (SALVADORI, 1970, p. 56-57;GRAMSCI, 1952, p. 168). Salvadori prossegueem sua investigação ressaltando como na concep-ção gramsciana é abertamente afirmado o caráter“totalitário” (no significado positivo que esse ter-mo tem para Gramsci) que deve ter a política le-vada avante pelo partido “moderno Príncipe”;Salvadori se limita a observar que esse carátertotalitário é uma necessidade e está relacionadocom a teoria gramsciana da hegemonia.

Salvadori não comenta de nenhuma maneiraessa afirmação e passa a examinar a críticagramsciana ao parlamentarismo, visto por Gramsciem termos negativos tanto no partido como noEstado. Como conclusão de sua pesquisa, o estu-dioso afirma peremptoriamente que a concepçãode democracia de Gramsci é plenamente“antiparlamentar e antiliberal” e se situa no interi-or de uma problemática de tipo “sovietista”(SALVADORI, 1970, p. 58-60). Sobre esse con-junto de questões, algumas considerações se fa-zem necessárias. Para nós, já habituados a consi-derar o totalitarismo segundo a ótica de HannaArendt, é difícil aceitar de modo simples o usopositivo que Gramsci faz do adjetivo correspon-dente. Existe também o problema de estabelecerque coisa exatamente Gramsci pensava, depoisde 1930, da democracia “sovietista” e, em parti-cular, de seu grau efetivo de realização prática naUnião Soviética daqueles anos. Sabemos muito daopinião de Gramsci sobre a realização do socialis-mo na União Soviética no período no qual escre-ve nos Quaderni; mas nada se sabe do que Gramscipensava no último período de sua vida, da metadede 1935 até abril de 1937, quando interrompida aredação dos Quaderni, em função de suas condi-ções de saúde, cada vez mais precárias, permane-cendo em um silêncio que duraria até sua morte.

Temos, entretanto, para o período de 1929 a1935, a possibilidade de encontrar quais eram al-guns de seus pontos de vista sobre o socialismo ea democracia na União Soviética por meio de umaleitura atenta e também de uma certa decodificaçãodaquilo que escreveu em certas notas dosQuaderni sobre algumas questões. Em primeirolugar, deve ser assinalada aquela sobre a instruçãoe a organização escolar na qual Gramsci expressaopinião precisa, criticando abertamente a “escolaúnica” de impostação tecnológica adotada recen-

temente na União Soviética e pronunciando-se porum tipo alternativo de formação escolar (que de-nomina de “escola unitária”), capaz de articular osaber técnico e a formação cultural de tipohumanista com base no ideal pedagógico daquiloque chama de um “moderno Leonardo” (MEDICI,2000, p. 95; DORE SOARES, 2006, p. 99-122).Não se deve evitar a importância dessa questãodevido à estreita correlação existente em Gramscientre processos formativos e processoshegemônicos, entre pedagogia e política; assimcomo não deve ser subvalorizada a funçãoeducativa que Gramsci reconhece ao Estado en-quanto tal, quando, por exemplo, escreve que “odireito é o aspecto repressivo e negativo de toda aatividade positiva de deseducação promovida peloEstado” (GRAMSCI, 2001, p. 1571, sem grifosno original).

Geralmente, no que diz respeito ao giro nasdireções burocrática e totalitária do regimestalinista, tem-se, em Gramsci, se não claras afir-mações, indícios claríssimos: uma crítica, embo-ra indireta (na medida em que o nome de Stalinnão comparece), no parágrafo 130 do Quaderno8, intitulado Statolatria; ou ainda uma considera-ção mínima sobre uma questão secundária na qual,em poucas linhas, livra-se daquele que já era ochefe indiscutível do comunismo internacional(GRAMSCI, 2001, p. 1728-1730). Enfim, o maissignificativo de tudo: há, nos Quaderni, um signi-ficativo e pesadíssimo silêncio sobre Stalin, o que,a meu ver, não deixa dúvidas sobre o quão efeti-vamente distante Gramsci estava de aprovar a te-oria e a prática do stalinismo, colocando-se emforte oposição com este10.

V. DA FILOSOFIA POLÍTICA À ANTROPOLO-GIA: POVO, AÇÃO, “VIDA ESTATAL” NOSQUADERNI DEL CARCERE

Irei agora examinar rapidamente a modalidadede reflexão que Gramsci, já nos anos vividos emTurim, desenvolvia a respeito do tema da nacio-nalidade, em relação aos vários povos do planeta,tanto os capitalistas como os coloniais. Trata-sede uma reflexão complexa, já capaz, com os ins-

10 A importância dessa noção de “estatolatria” foi assina-lada também por Coutinho, que a reivindica analiticamenteem sua reconstrução da concepção gramsciana do “Estadoampliado”, destacando também a distância das posiçõesgramscianas do modo de pensar de Stalin sobre essa ques-tão (COUTINHO, 2006, p. 106-112).

Page 6: Estado ampliado em gramsci

36

GRAMSCI E O ESTADO: PARA UMA RELEITURA DO PROBLEMA

trumentos de pesquisa ainda imperfeitos queGramsci possuía nessa fase, de dar conta da dife-rença entre as ribombantes palavras da ideologia eos duros fatos da realidade do domínio e da ex-ploração colonial. Veja-se, por exemplo, o que es-creve em um artigo de 15 de abril de 1916 – Laguerra e le colonie –, no qual se encontra umacrua descrição das conseqüências da colonizaçãofrancesa na Argélia (a mais importante das colô-nias francesas de fato “tem uma administraçãoanárquica e arbitrária, um sistema de justiça penalinqualificável, enormes arbítrios policialescos, tor-turas medievais”); isso porque a França predicou,acima de tudo, os princípios democráticos da igual-dade, da liberdade e da fraternidade, superiores àsraças e às cores, mas esses princípios não foramtransportados dos confins da mãe pátria às colô-nias (GRAMSCI, 1980, p. 257).

Trata-se de uma reflexão que vê o entrelaça-mento do tema da nacionalidade com aquele, paraGramsci tão importante quanto, de seu “tornar-seEstado”, e que deve prestar contas às realidadessociais, políticas e culturais que cada povo repre-senta e com suas aspirações à independência na-cional, a principal, complicada (e irresolvida),questão da política européia do século XIX, nógórdio que apenas a espada da guerra mundialsaberá cortar. Existia, em Gramsci, e não deixaráde existir com o passar dos anos, uma atençãoforte à particularidade, compreendida tambémcomo riqueza e variedade das expressões cultu-rais, sociais, lingüísticas11. Uma sensibilidade tes-temunhada pela própria simpatia que nutria, emsua juventude, pela questão da autonomia de suaSardenha, apesar de o autonomismo ter sido rapi-damente superado com sua adesão ao socialismo.Não há no sardo, filho da pequeníssima burgue-sia, aquela atitude presente no grande burguês ale-mão deraciné, o qual, como intelectual cosmopo-lita – alimentado em seus anos juvenis por aquelesideais iluministas que eram muito vivos em suaRenânia –, saudava como um fato absolutamentepositivo do desenvolvimento capitalista a perda, a

superação daquilo que chamava o “idiotismo” tí-pico do homem do medievo, aquela limitação queresultava, no sistema social feudal, nos vínculosexclusivos que duravam para cada um toda a vida,com um mesmo lugar, com uma mesma realidadesocial e com um exclusivo ramo de trabalho.

É evidente que, sobre isso, o ponto de vista deGramsci será completamente diverso e a provapode ser, por exemplo, sua opinião sobre as lín-guas populares e seus dialetos, que não são umvalor absoluto, mas uma etapa – que deve serconservada e ao mesmo tempo superada – dodesenvolvimento social e individual. Veja-se, porexemplo, como, escrevendo a sua irmã Teresina,falando do filho dela, exorta-a a não cometer omesmo erro feito com a pequena Edmea, filha doirmão Gennaro, sobre cuja educação Gramsci emsua letra demonstra preocupação. Ele recomendaque não se cometa a tolice de impedir o meninode falar livremente o sardo, que além de tudo nãoé sequer um dialeto, mas uma língua em si: deoutro modo, o menino “não terá contato com oambiente geral e terminará por aprender dois jar-gões, nenhuma língua” (GRAMSCI, 1996, v. 1,p. 61)12. Aqui, o ponto de vista de Gramsci serevela muito distante do de Marx, salvo sobre umponto: aquele no qual saúda positivamente a perdadaquilo que, em sua linguagem, Marx definia jus-tamente como o “idiotismo do ofício”. A propósi-to daquele processo de esvaziamento progressivodo conteúdo do trabalho humano que caracterizao desenvolvimento capitalista e que se torna parti-cularmente evidente no taylorismo fordista,Gramsci parece seguir pontualmente as análisesmarxianas e parece ter quase debaixo dos olhosos capítulos 12 e 13 de O capital (“Divisão dotrabalho e manufatura” e “Maquinismo e grandeindústria”) quando escreve certas notas doQuaderno 22.

De todo modo, é possível individualizar, a par-tir dos anos de L’Ordine Nuovo, um itinerário dematuração e aprofundamento percorrido pela re-flexão de Gramsci sobre este tema das nações edos povos em relação ao Estado, itinerário que setorna evidente nos escritos do cárcere, quando a“geopolítica” gramsciana se torna complexa e se

11 Sobre a complexidade da concepção que Gramsci faz daquestão da linguagem como veículo de comunicação e sobrea dificuldade proposta pela necessidade de uma comunica-ção ao nível do movimento comunista internacional, fatode realidade e línguas nacionais, considerações sugestivassão formuladas por Francisco Fernández Buey, que obser-va, por outro lado, como está presente em Gramsci umtipo de “obsessão” pela linguagem da comunicaçãointerpessoal (BUEY, 2001, p. 194-203).

12 Gramsci prossegue escrevendo “Recomendo-te, de todocoração, não cometer tal erro e deixar que teus filhos absor-vam todo o sardismo que quiserem e se desenvolvam es-pontaneamente no ambiente natural no qual nasceram” (car-ta a Teresina Gramsci, de 26 de março de 1927).

Page 7: Estado ampliado em gramsci

37

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 31-43 NOV. 2007

afina com relação à simplista oposição Oriente/Ocidente que teve lugar, pela primeira vez, nosescritos juvenis com base na entusiástica adesãoao outubro soviético. Nos anos vividos em Tu-rim, a atenção ao horizonte internacional é quasecompletamente absorvida por essa polaridade,enquanto, ao invés, o problema colonial permane-ce no fundo. Com relação a isso, é também pos-sível encontrar no jovem Gramsci traços débeisda concepção que desse problema tinha o socia-lismo, o qual, em alguns momentos, não deixoude justificar o empreendimento colonial com adúbia tese da “civilização” dos povos até entãoprimitivos. No já citado artigo de 1916, Gramsciacena em um certo ponto à “benéfica função docapital”, que seria, entretanto, “anulada pelo fatode que os interesses industriais franceses recaempesadamente sobre os indígenas”. Por outro lado,observava que, por toda parte, a civilização capi-talista “lançou suas sementes para a germinaçãodas raças e dos povos atrasados” e prevê que “aguerra européia rapidamente dará lugar à guerradas colônias” (GRAMSCI, 1980, p. 257-258).

Trata-se, de todo modo, de uma linguagemmuito difundida em uma parte do socialismo mar-xista que atribui ao capital uma “função civilizatória”e que era certamente favorável a posições livre-cambistas e fortemente contrária ao protecionis-mo. Ecos desse ponto de vista são perceptíveisnos escritos gramscianos redigidos durante seusprimeiros anos em Turim. Um ponto de vista e umalinguagem, entretanto, que Gramsci rejeita comforça poucos anos depois, como se torna evidenteno artigo de 7 de junho de 1919, La guerre dellecolonie, em que a análise e o ponto de vistagramsciano são agora claramente de estampaleninista e internacionalista: “Hoje a revolta arde nomundo colonial: é a luta de classe dos homens decor contra os brancos exploradores e traidores”(GRAMSCI, 1987, p. 69). Assim, nos Quaderni,resulta evidente que Gramsci tomou uma clara dis-tância daquele modo de pensar, no qual, por exem-plo, com observações que ficaram famosas, rejeitae critica as palavras que o filósofo socialista italia-no Antonio Labriola pronunciou a propósito de hi-potético habitante da Papua. À pergunta feita hámuitos anos por um aluno – “Como faria para edu-car moralmente um papuano?” –, Antonio Labriolateria respondido: “Provisoriamente o faria escra-vo”. A réplica de Gramsci é fortemente crítica.Sublinha que, naquela posição, especifica-se “umpseudo-historicismo, um mecanismo extremamente

empírico e muito próximo do mais vulgarevolucionismo” e conclui que o modo de pensarimplícito na resposta de Labriola “não parece, por-tanto, dialético e progressivo, mas acima de tudomecânico e reacionário” (GRAMSCI, 2001, p.1366).

Essa severa réplica ao próprio Labriola, ao qualGramsci, em outra passagem dos Quaderni, ti-nha atribuído um importante reconhecimento re-lativo a sua afirmação sobre a autonomia filosófi-ca do marxismo – o qual não teria necessidade deser ecleticamente completado com outras filoso-fias, possuindo já todos os conteúdos teóricosnecessários (idem, p. 1507-1508) –, assinala ocaminho percorrido para diferenciar-se claramentedaquelas posições “filocoloniais” do velho socia-lismo. Depois de ter colocado em discussão a“necessidade” da escravidão dos povos historica-mente imaturos, conclui observando que “um povoou um grupo social atrasado tenha necessidadede uma disciplina exterior coercitiva [...] não sig-nifica que deva ser escravizado, a menos que sepense que toda coerção estatal é escravidão”(idem, p. 1368, sem grifos no original). Gramsciunificará depois sua concepção do domínio coma categoria compreensiva dos “subalternos”, umconceito extremamente inovador sobre o qual ape-nas recentemente tem sido apreciada plenamentetoda a sua importância teórica. O que importaobservar é que a questão dos povos e das nacio-nalidades se encontra, já nos anos juvenis, direta-mente entrelaçada com sua conclusão política,com o “fazer-se Estado”. A importância emGramsci da temática relativa ao Estado é particu-larmente evidente na dura polêmica com os anar-quistas, conduzida por ele e por outros nas colu-nas de L’Ordine Nuovo e, de modo mais geral, nainovadora reflexão que leva a cabo sobre atemática dos conselhos de fábrica como críticada democracia parlamentar burguesa, que lhe pa-rece em estado falimentar e, conjuntamente, comotentativa de delinear uma democracia operária detipo sovietista.

Esse problema da nacionalidade se conecta,portanto, de modo direto com o tema do Estado,com relação ao qual, como disse, não há acordoentre os intérpretes de Gramsci. Como ilustreiacima, alinho-me com aqueles estudiosos que acre-ditam não se encontrar nos Quaderni gramscianosa clássica proposta marxiana relativa à “extinção”do Estado. O Estado, para ele, permanece, por-que, em primeiro lugar, Gramsci não adere à con-

Page 8: Estado ampliado em gramsci

38

GRAMSCI E O ESTADO: PARA UMA RELEITURA DO PROBLEMA

vicção de que, na sociedade comunista, tornar-se-á supérflua a função do político enquanto tal.Em segundo lugar, existe em Gramsci,freqüentemente de maneira implícita, mas algu-mas vezes explícita, a idéia da “vida estatal” comovida “ética”, sem que seja fácil mais uma vez es-tabelecer a ascendência precisa desse ponto, quecertamente se apresenta como genericamente“hegeliano”. “Vida estatal” é uma expressão da qualGramsci faz um amplo uso nos Quaderni e indicaum modo de ser autêntico de um povo em suaexpressão mais alta, precisamente a estatal. Comoemerge claramente do já citado parágrafo 130 doQuaderno 8, intitulado Statolatria, no qual a ex-pressão é usada por Gramsci repetidamente. Cri-ticando como necessariamente transitória uma fasede “estadolatria”, na qual o Estado no senso res-trito (ou “sociedade política”) domina sobre a “so-ciedade civil” em uma alusão bastante transpa-rente à Rússia soviética, Gramsci indica a via aseguir e o objetivo a alcançar na criação de uma“complexa e bem articulada” sociedade civil econclui: “tornar espontânea a vida estatal”(GRAMSCI, 2001, p. 1020-1021, sem grifos nooriginal).

Nos escritos do cárcere, a geopolítica deGramsci se torna mais complexa e afinada. DerekBoothman observou que, nos Quaderni, é alargadaa visão para um Norte/Sul que não é estritamentegeográfico e uma relação cidade/campo como re-lação internacional entre áreas mais ou menos de-senvolvidas. Por outro lado, destaca aindaBoothman que os apontamentos de Gramsci so-bre o mundo islâmico – situação fluida; tensõesentre pan-arabismo e tendências nacionalistas; la-ços entre intelectuais e povo fundados sobre ofanatismo religioso –, em sua provisoriedade (es-ses temas não foram reelaborados por seu autor),são muito atuais. Falando da situação na China,Gramsci depois observava como o eixo da eco-nomia mundial estava se deslocando do Atlânticoao Pacífico, com uma perda da importância daEuropa na cena mundial. Interessantes são, tam-bém, as observações sobre a Índia, da qualGramsci destacava a característica de um “entor-pecimento social”, enquanto o ghandismo era vistopor ele como movimento antiimperialista que de-veria ser, entretanto, compreendido no interior dacategoria de “revolução passiva”13.

VI. ESTADO, SOCIEDADE CIVIL, HISTÓRIAMUNDIAL

Por conseguinte, torna-se problemático afir-mar que a concepção presente nos Quaderni deuma “ampliação” do Estado (“Estado ampliado” éa expressão tornada célebre por Buci-Gluksmann),em seu desenvolvimento, conduza necessariamen-te a uma absorção do Estado e de suas funções nasociedade civil. Por outro lado, como observaLosurdo, deve-se ter presente que, para Gramsci,a sociedade civil é também “Estado”, portanto,resta saber “até que ponto a ‘reabsorção da soci-edade política na sociedade civil’ comporta o ad-vento de uma sociedade realmente sem Estado”(LOSURDO, 1997, p. 191-192). Penso que nãodeve ser excluído um desenvolvimento no senti-do oposto, no qual o conjunto da sociedade civilseja “estatalizado”, desenvolvendo funções de tipoestatal “compreendido integralmente”. Nessa di-reção, parecem ir algumas observaçõesgramscianas sobre a necessidade de uma “novaconcepção do direito”, contidas no parágrafo 11do Quaderno 1314. Veja-se, além disso, o que es-creveu a propósito do “indiferente jurídico”, noparágrafo 7 do mesmo caderno: “Questões do di-reito, cujo conceito deverá ser estendido, com-preendendo também aquelas atividades que hojecaem sob a fórmula do ‘indiferente jurídico’ e quesão do domínio da sociedade civil, que opera sem‘sanções’ [...] mas que nem por isso deixa de exer-cer uma pressão coletiva e obter resultados obje-tivos de elaboração nos costumes, nos modos depensar [...], na moralidade etc.” (GRAMSCI, 2001,p. 1556). São afirmações que parecem não ape-nas privilegiar as razões da sociedade com rela-ção aos indivíduos, mas, também, submeter asinstâncias da sociedade civil com relação à esferaestatal; afirmações nas quais talvez não seja im-possível reconhecer os traços da idéia hegelianada superioridade da esfera estatal como lugar daverdadeira “eticidade”.

Por outro lado, é convicção de Gramsci queos indivíduos singulares podem, ou ainda devam,

14 A propósito de uma concepção de direito que seja“essencialmente renovadora”, Gramsci escreve: “essa nãopode ser encontrada, integralmente, em nenhuma doutrinaprecedente [...] Se todo Estado tende a criar e a manter umcerto tipo de civilização e de cidadão [...] tende a fazerdesaparecer certos costumes e atitudes e a difundir outros,o direito será o instrumento para esse fim [...] e deve serelaborado para que seja [...] muito eficaz e produtor deresultados positivos” (GRAMSCI, 2001, p. 1570-1571).

13 Utilizei, para esta reconstrução, as observações deBoothman (2006).

Page 9: Estado ampliado em gramsci

39

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 31-43 NOV. 2007

tomar em suas mãos os próprios destinos indivi-duais, reconciliando-se com a história geral e, as-sim, como escreve, “participar ativamente da pro-dução da história do mundo” (GRAMSCI, 2001,p. 1376). Aquilo que se afirma é a necessidade deuma convergência construtiva entre “indivíduos”e “história universal”. Para que essa convergên-cia se realizasse, seriam necessárias muitas medi-ações que não serão aqui analisadas e que dareicomo pressupostas: do grupo social ao partidopolítico, do lugar de origem à nação da qual se fazparte com graus diversos de consciência. Lendoaquela passagem do Quaderno 11 acima citada,não se pode deixar de experimentar uma certaperplexidade perante aquele sentido de uma dis-tância não preenchida entre o indivíduo e a histó-ria, na medida em que a afirmação de Gramscipressupõe um conjunto de mediações muito com-plexo, que resulta quase impossível de ser defini-do em termos teóricos. E ainda é inegável que,não apenas na passagem citada, mas de modo maisgeral nos Quaderni, é possível reencontrar umponto de vista que retém possível uma conver-gência positiva entre os destinos dos indivíduos ea história em seu conjunto: Gramsci está conven-cido de que os indivíduos podem e devem tomarem suas mãos o próprio destino, reconectando-ocom a história mundial, que chamei proposital-mente com uma terminologia de sabor hegelianode “história universal” (apesar de a idéia de umahistória universal ser muito antiga e poder ser re-metida aos primeiros filósofos cristãos, tendo sidodepois renovada pelos filósofos do século XVIII).

Essa afirmação gramsciana referente à neces-sidade da instauração de um nexo positivo entreindivíduos e história universal postula, por outrolado, como coisa necessária na medida em que odiscurso possua sentido, a existência de uma co-nexão racional – e racionalmente descritível – en-tre o agir humano e as circunstâncias históricas.Em outras palavras, presume-se que os objetivose a finalidade a que o agir humano se propõe (nocaso, a instauração de uma ordem social e políti-ca radicalmente renovada em termos intelectuaise morais) possam ser efetivamente alcançados.Não se pensa que possa haver uma distorção dasfinalidades a que o agir humano se propõe. O pro-blema é apenas aquele, muito complexo e de lon-go fôlego, de uma adequada formação das cons-ciências que torne possível o aparecimento de umavontade coletiva capaz de fundar a “nova ordem”.Uma vez que tal vontade coletiva esteja já forma-

da, passando por uma correta impostação do pro-blema das relações de força, será possível ter aconseqüência positiva do surgimento de uma novaordem. Isso assinala certamente o máximo da dis-tância entre o ponto de vista de Gramsci e o deSartre, um autor com o qual, a meu ver, o pensa-mento gramsciano registra, por outro lado, signi-ficativas convergências na direção de uma releiturada teoria marxista em chave antiobjetivista eantimaterialista (MEDICI, 2000, p. 92-102).

Sartre, em sua Critique de la Raisondialectique, de 1960, depois de um decênio dediscussões críticas do marxismo materialista-dialético, chegou a uma releitura e interpretaçãodo materialismo histórico de Marx que era, aomesmo tempo, um desenvolvimento e uma trans-formação. Como é notado, a teoria sartriana dahistória, exposta na primeira parte da obra, deulugar a discussões acesas e, segundo alguns, co-locava-se completamente fora do âmbito teóricomarxista (era essa, por exemplo, a opinião deGaraudy, que, nessa fase, era um áspero oponen-te de Sartre e defensor da ortodoxia)15 . Em reali-dade, a questão era mais sutil. Não se pode negar,de fato, que, em certos aspectos, Sartre fosse umleitor lúcido e atento de Marx, que colhia comatenção certas características filosóficas da con-cepção histórica marxiana; enfim, provavelmentese possa concordar com o que, em seu tempo,escreveu Pietro Chiodi, para quem, inserindo nodiscurso marxiano sobre a história o tema da “pe-núria”, Sartre obteve “uma radicalização e umaampliação histórica das teses marxianas” (CHIODI,1963, p. 107-108). Sartre, examinando a históriano âmbito do agir humano mais concreto, aqueleque por meio do trabalho faz a mediação com amaterialidade, descobria que, do encontro dapráxis humana com a matéria, com a passagematravés do campo do prático-inerte que se geranesse encontro, da práxis humana brota uma“antipráxis” que produz a “contrafinalidade”, en-quanto toda a dialética histórica, nesse nível dahistória material, revela-se dominada por uma“antidialética” que distorce os fins humanos, tor-nando-os radicalmente “outros”. O exemplo éaquele dos camponeses chineses que, derruban-do os bosques para obter um espaço cultivável

15 Em Questions a J.-P. Sartre, de 1960, Garaudy definiua Critique como “ensaio sobre os fundamentos do anti-marxismo”.

Page 10: Estado ampliado em gramsci

40

GRAMSCI E O ESTADO: PARA UMA RELEITURA DO PROBLEMA

maior, provocam as desastrosas aluviões que lhesflagelam ciclicamente.

Gramsci, ao invés, depois de ter rejeitado odeterminismo e o economicismo do velho mar-xismo da Segunda Internacional, parece ainda ali-mentar, em certa medida, um otimismo racionalistado qual não é fácil particularizar sua gênese, masque indubitavelmente apresenta roupagenshegelianas no momento no qual, voltando, pareceafirmar uma racionalidade unilinear do processohistórico. Apesar disso, o próprio Gramsci, nosanos de sua formação, foi influenciado por Sorel,por ele admirado devido a sua capacidade de lerMarx sem preconceitos, o qual, introduzindo naprocessualidade histórica o fator imponderável do“hazard”, tinha quebrado o nexo determinista en-tre socialismo e história moderna, decretando amorte do “socialismo científico”16. Não há dúvi-da, como vimos, de que Gramsci postula comopossível, e mesmo necessária, uma reconciliaçãoentre indivíduo e história universal, o que Lukács,com uma expressão feliz, descreveu como “umainseparável concomitância operativa entre o ho-mem singular e as circunstâncias sociais de seuagir” (LUKÁCS, 1976, p. 327, grifos meus). Len-do integralmente a página assinalada, percebe-seque o mestre húngaro colocou o problema demodo impecável. Mas, do ponto de vista deGramsci, isso não resolve a questão, e não é, se-não, um ponto de partida. Enquanto, na reflexãode Lukács, encontrará espaço – “entre os conjun-tos problemáticos” que constituem a articulaçãodo “ser social” – também o momento do“estranhamento”, a ausência em Gramsci destafundamental problemática marxiana poderia tor-nar possível a recaída em uma idéia da históriauniversal como grande afresco, movimento gran-dioso e complexo no qual tudo, cedo ou tarde,termina por encontrar seu posto e uma razão semdesarmonias, contrastes, contradições não resol-vidas.

Em Marx, o capitalismo era visto como prota-gonista de uma “universalização” empírica da his-tória e da sociedade humana. Tinham lugar, as-sim, pela primeira vez na história, indivíduos“empiricamente universais” (MARX, 1967, p. 25).Mas a universalidade capitalista é alienada na me-dida em que se realiza dentro do quadro das rela-

ções sociais caracterizadas pelo domínio do capi-tal e pela inversão fetichista entre coisas e pesso-as. Apenas o comunismo poderá constituir a su-peração da alienação capitalista como realizaçãode uma sociedade sem classes (mas também semdinheiro, nem capital, nem divisão do trabalho,abolidos enquanto fonte da divisão da sociedadeem classes). A idéia marxiana da sociedade co-munista, embora seja concepção pouco sistemá-tica que apresenta elementos contraditórios em suasvariantes textuais – como fez notar Agnes Heller,que apontou a presença em Marx de duas diver-sas teorias das contradições, das quais poderiamderivar duas diferentes concepções do comunis-mo (HELLER, 1980, p. 81-94) –, é, seja comofor, uma concepção filosófica em sentido forte.Qualquer que seja a precisa paternidade filosófi-ca, trata-se de uma forma de utopia racional quenão está desprovida de antecedentes iluministas.Uma herança iluminista que está presente ainda naprópria idéia de “história universal” que, retoman-do de Hegel, Marx retraduz na “universalidadeempírica” e na interdependência planetária que ocapitalismo produz na história humana que o co-munismo deverá adquirir, libertando-a de seu in-vólucro alienado. O ponto de vista de Gramscisobre essa questão parece ser caracterizado porum ir e vir entre Marx e Hegel e recentemente setendeu a falar novamente de um forte influxo so-bre Gramsci da filosofia clássica alemã. Por exem-plo, examinando a concepção gramsciana do co-munismo, Michele Martelli afirma que, em con-clusão, pode-se dizer que nela opera “a tripla liçãode Kant, Hegel e Marx” (MARTELLI, 2001, p.232)17.

Existe um nexo evidente entre a própria idéiade uma história como “história universal” e aque-la simplesmente iluminista de “cosmópolis”, deuma cidade do mundo na qual o gênero humanose reencontraria unificado para além das diferen-ças. Sobre a questão do cosmopolitismo, todaviaparece ampliar-se posteriormente a distância en-tre Marx e Gramsci. De fato, o cosmopolitismo

16 Ver, em particular, o ensaio de 1898, “La necessitàe il fatalismo nel marxismo” (SOREL, 1973, p. 96-124).

17 A pesquisa que Michele Martelli conduz em seulivro aponta para a importância de Hegel (embora no âmbi-to da fundamental mediação marxiana) para a reflexão deGramsci, esclarecendo como seu ponto de vista foi condu-zido a revalorizar as posições do filósofo de Stuttgart,embora fosse crítico das formas que o hegelianismo assu-miu nas leituras de Croce e Gentile (MARTELLI, 2001, p.107-188).

Page 11: Estado ampliado em gramsci

41

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 31-43 NOV. 2007

como característica (negativa) da análise queGramsci leva adiante nos Quaderni sobre a histó-ria dos intelectuais italianos, historicamente inca-pazes de unir-se ao povo, dificilmente deixa so-breviver uma idéia positiva de um “outro”cosmopolitismo, aquele universalismo cosmopo-lita apresentado na idéia marxiana do comunismo.Como já observou J. P. Diggins, a visão críticaque Gramsci tem do cosmopolitismo – relaciona-da com sua particular leitura do humanismo comomovimento cultural aristocrático que continua eacentua a separação entre os intelectuais e o povo– é muito original, porque antes dele prevalecia aidéia de que uma visão cosmopolita “tivesse efei-tos libertadores”, devido a muitos dos princípiosdo Iluminismo estarem baseados na expectativade uma “civilização universal em evolução” e, emgrande parte do pensamento ocidental, ocosmopolitismo era visto como um estágio maisavançado, “superior ao liberalismo e ao naciona-lismo”18.

VII. PARA UMA NOVA CONSCIÊNCIA

Deixando de lado essas divergências entreGramsci e Marx, a efetiva realização desse nexoentre indivíduo e história universal, do modo comoo primeiro a postula, apresenta-se como altamen-te problemática, embora permaneça estritamenteno interior de seu horizonte teórico. De fato, pa-rece-me que, na realidade histórica de nosso tem-po, deva-se encontrar, ao invés, a preponderânciadaqueles processos que Gramsci chama de“moleculares”, ou seja, os processos caracteriza-dos preponderantemente pela ausência de consci-ência. Enquanto um dos objetivos que perseguia“seu” marxismo, compreendido como “filosofiada práxis”, era exatamente tornar-se conscientedos processos históricos nos quais estamosimersos. Ainda a respeito da força política – osujeito histórico “moderno Príncipe” no qual de-veria encarnar-se a vontade coletiva do povo-na-ção –, nosso esforço, segundo Gramsci, deve sero de “dedicar-se sistematicamente e pacientemen-te” a tornar “sempre mais homogênea, compacta,

consciente de si própria” tal força (GRAMSCI,2001, p. 1558). Essa consciência parece-me umadas idéias-força gramscianas e um aspecto de suapesquisa pleno de potencialidades. De fato, per-gunto-me até quando o “vazio” de consciênciacaracteriza o mundo contemporâneo. A partir daausência de controle por parte dos homens sobreseus próprios processos produtivos, devido àquelefenômeno real e concreto ao qual Marx se referiacom o termo filosófico de “estranhamento”, o fatode um “poder estranho” dominar os homens, aoinvés de ser por eles dominado (e que se apresen-ta em última instância como “mercado mundial”),é tal também porque falta a capacidade de tornar-se consciente do processo que o produziu, umprocesso de separação e hipostação de forças hu-manas. Forças que os homens que as produziramtiveram “estranhadas” de si, deixando de estar emcondições de compreender a gênese e muito me-nos de reapropriá-las.

Um vazio de consciência que caracteriza demodo forte e trágico também os processos histó-rico-políticos atuais, marcados pela estratégia daadministração Bush da “guerra preventiva” , naqual se torna claro que o marine americano, ins-trumento ativo de uma máquina bélica de potên-cia militar esmagadora, age também como um in-divíduo em total vazio de consciência, sem co-nhecer minimamente a história do país para o qualfoi enviado a combater com base em uma propa-ganda ideológica grosseria e falsa (“levar a demo-cracia”), nem estar sequer em condições elemen-tares para apontar países como Iraque ou o Irãem um mapa. A guerra, sempre constante nega-ção da história humana (porque, parafraseando oManifesto de Marx e de Engels, pode-se dizer que“toda a história percorrida é história das guerras”),teve em seu tempo sua “lucidez”. Os espartanoscombatiam os atenienses, os atenienses combati-am os persas, inimigos bem visíveis eparticularizáveis enquanto tal. O indivíduo e a co-letividade combatiam um inimigo que era tal porrazões precisas, evidentes tanto ao chefe supre-mo como ao último dos hoplitas. Foi a partir decerto ponto que a guerra se tornou mais comple-xa e mais difícil de explicar a si e aos outros, comose vê, por exemplo, no célebre diálogo entre osatenienses e os habitantes da ilha de Melo, queTucídides transmitiu em sua História da Guerrado Peloponeso. Estamos ainda em um mundo, oantigo, que não conhece nenhuma regulamenta-ção pacífica das relações entre os Estados. A paz

18 Prossegue Diggins: “Até mesmo Marx, um herdeiro doIluminismo, pensava em termos de leis universais válidaspara todas as sociedades em estágios símiles de desenvol-vimento histórico. Sua famosa argumentação segundo a qualos trabalhadores não tinham pátria expressava a esperançade que o proletariado fosse capaz de um cosmopolitismoque seria derivado [...] da experiência concreta” (DIGGINS,1990, p. 174-177).

Page 12: Estado ampliado em gramsci

42

GRAMSCI E O ESTADO: PARA UMA RELEITURA DO PROBLEMA

é apenas, segundo a notada expressão, “uma tré-gua entre uma guerra e outra”. Mas prontamenteas razões, por assim dizer, “naturais” da guerracomeçam a tornar-se menos claras, a turvar-sepor causa da vontade imperial de Atenas, apenasmascarada sob um verniz de racionalidade. Des-de então, muita água passou sobre as pontes e,num processo plurissecular, os homens iniciarama compreensão de que as relações entre os Esta-dos podem e devem ser subtraídas ao Estado denatureza de uma guerra de todos contra todos.

Não podemos ocultar que é um processo gra-

BARATTA, G. 2003. Le rose e i quaderni. Ilpensiero dialogico di Antonio Gramsci. 2ª ed.Roma : Carocci.

BOOTHMAN, D. 2006. Gli appunti del 1930 sullageopolitica. In : MEDICI, R. (org.). Gramsci,il suo il nostro tempo. Bologna : IstitutoGramsci Emilia-Romagna.

BUCI-GLUCKSMANN, C. 1976. Gramsci e loStato. Roma : Riuniti.

BUEY, F. F. 2001. Leyendo a Gramsci. Madri : ElViejo Topo.

CHIODI, P. 1963. Sartre e il marxismo. Milano :Feltrinelli.

COUTINHO, C. N. 2006. Il pensiero politico diGramsci. Milano : Unicopli.

DIGGINS, J. P. 1990. Il cosmopolitismo e laricerca dell’“intellettuale organico”. Il fardellodi Antonio Gramsci. In : TEGA, W. (org.).Gramsci e l’Occidente. Trasformazioni dellasocietà e riforma della politica. Bologna :Cappelli.

DORE SOARES, R. 2000. Gramsci, o Estado ea escola. Ijuí : UNIJUÍ.

_____. 2006. L’educazione e la scuola unitaria nei“Quaderni del cárcere”. In : MEDICI, R. (org.).Gramsci, il suo il nostro tempo. Bologna :Istituto Gramsci Emilia-Romagna.

vemente involutivo este que coloca a guerra nocentro da estratégia das relações internacionais coma máscara ideológica de uma dupla missãocivilizadora (levar a democracia aos países quenão a têm). A exigência que encontramos emGramsci, de uma reconciliação indispensável en-tre indivíduo e história universal, revela-se justa-mente atual porque torna evidentes aquelas con-tradições entre exigência de consciência e faltadessa, que, como vimos, caracteriza ainda boaparte dos processos históricos e políticos con-temporâneos.

Rita Medici ([email protected]) é Professora do Dipartimento di Filosofia na Università di Bologna(Itália).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ENGELS, F. 1950. Anti-Dühring. Roma :Rinascita.

_____. 1963. L’origine della famiglia, dellaproprietà privata e dello Stato. Roma : Riuniti.

GRAMSCI, A. 1952. Passato e presente. Torino :Einaudi.

_____. 1953. Note sul Machiavelli, sulla politicae sullo Stato moderno. Torino : Einaudi.

_____. 1980. Cronache torinesi. A cura di SergioCaprioglio. Torino : Einaudi.

_____. 1987. L’Ordine Nuovo 1919-1920. A curadi Valentino Gerratana e Antonio A. Santucci.Torino : Einaudi.

_____. 1996. Lettere dal carcere. A cura di Anto-nio A. Santucci. Palermo : Sellerio.

_____. 2001. Quaderni del carcere. A cura diValentino Gerratana. Torino : Einaudi.

HELLER, A. 1980. La teoria dei bisogni in Marx.8ª ed. Milano : Feltrinelli.

LIGUORI, G. 2004. Società civile/Stato. In :FROSINI, F. & LIGUORI, G. (orgs.). Leparole di Gramsci. Per un lessico dei Quadernidel carcere. Roma : Carocci.

LOSURDO, D. 1997. Antonio Gramsci dal libe-ralismo al “comunismo critico”. Roma :Gamberetti.

Page 13: Estado ampliado em gramsci

43

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 31-43 NOV. 2007

LUKÁCS, G. 1976. Per l’ontologia dell’esseresociale. Roma : Riuniti.

MARTELLI, M. 2001. Etica e storia. Croce eGramsci a confronto. Napoli : La Città del Sole.

MARX, K. 1970. Lineamenti fondamentali dellacritica dell’economia politica. Firenze : LaNuova Italia.

MARX, K. & ENGELS, F. 1967. L’ideologiatedesca. Roma : Riuniti.

MEDICI, R. 2000. Giobbe e Prometeo. Filosofiae politica nel pensiero di Gramsci. Firenze :Alinea.

_____. (org.). 2006. Gramsci, il suo il nostro tem-po. Bologna : Istituto Gramsci dell’Emilia-Romagna.

SALVADORI, M. L. 1977. Gramsci e il proble-ma storico della democrazia. 3ª ed. Torino :Einaudi.

SARTRE, J-P. 1963. Critica della ragionedialettica. Teoria degli insiemi pratici. L. I :Dalla praxis individuale al pratico-inerte. Mila-no : Feltrinelli.

ZOLO, D. (org.). 1977. I marxisti e lo Stato.Milano : Il Saggiatore.

Page 14: Estado ampliado em gramsci

227

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 227-230 NOV. 2007ABSTRACTS

* * *

GRAMSCI AND THE STATE: TOWARD A RE-READING OF THE PROBLEM

Rita Medici

Our intention is to present a re-reading of the problem of the State in Gramsci’s thought, in the wakeof Massimo Salvadori and Christine Buci-Gluksmann now-classic analyses, guided by our convictionthat Gramsci’s supposedly perfect alignment to the Marxist perspective on the extinction of the State– sustained almost unanimously by contemporary Gramscian criticism – should be re-evaluated andeven revoked. We work exegetically with Gramsci’s text, using tools of lexical analysis and payingparticular attention to the presence of the expression “state life” of which he makes ample use in his

Page 15: Estado ampliado em gramsci

228

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 227-230 NOV. 2007

in his Quaderni del carcere. Several elements capable of clarifying the Gramscian conception ofthe State flow from this expression. They are useful in our reconsideration of his complex reflectionson the “historic” problem of democracy, with its fragile balance between critique, renovation andexclusion of the traditional forms of modern democracy.

KEYWORDS: Antonio Gramsci; Marxism; philosophy; politics; civil society; the State.

* * *

Page 16: Estado ampliado em gramsci

233

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 233-236 NOV. 2007RÉSUMÉS

* * *

GRAMSCI ET L’ÉTAT: POUR LA RELECTURE DU PROBLÈME

Rita Medici

Nous envisageons de relire le problème de l’État en suivant la pensée de Gramsci, déjà étudiée deson temps de façon classique par Massimo Salvadori et Christine Buci-Gluksmann, car nous sommessûrs que, en réalité, le parfait alignement de Gramsci à la tradition marxiste de la « disparition » de

Page 17: Estado ampliado em gramsci

234

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 233-236 NOV. 2007

l’État, soutenu quasi à l’unanimité par la critique gramscienne contemporaine, doit être réévaluévoire révoqué. Pour l’exégèse du texte de Gramsci nous nous appuyerons sur des instruments d’analyselexical, et mettrons en valeur la présence, dans les Quaderni del carcere, de l’expression « vie del’État » dont Gramsci se sert beaucoup. De cette expression découlent des éléments clarifiant laconception gramscienne d’État, utiles à la mise en question de la complexe réflexion sur le problème« historique » de la démocratie et son difficile équilibre entre critique, renouvellement et exclusiondes formes traditionnelles de la démocratie moderne.

MOTS-CLÉS: Antonio Gramsci; marxisme; philosophie; politique; société civil; État.

* * *