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Política e Ideologia: Gramsci Stuart Hall, Bob Lumiey, Gregor McLennan I Introdução Não há uma teoria sistemática da ideologia na obra de Antonio Gramsci, embora certamente seja verdade que existam muitas passagens e comen- tários extremamente sugestivos. Uma explicação razoavelmente coerente destas muitas e variadas percepções da questão só é possível se invocarmos o caráter densamente imbricado dos principais conceitos de Gramsci. Não se deve permitir que a tarefa da abstração teórica encubra a marca caracte- rística die seu pensamento. A primeira parte deste artigo será, portanto, um perfil da problemática gramsciana, uma problemática que, argumentar-se-á, volta-se precipuamente para as perspectivas e análises políticas, e não para os princípios epistemológicos gerais. Um estudo concreto e historicamente específico é da mais alta importância nos textos de Gramsci. No que diz respeito ao nosso tópico presente, a base de tal especificidade é indicada pela injunção de Gramsci de que a ideologia deve ser estudada como uma superestrutura.^ Ora, esta última tarefa não pode ser empreendida sem uma compreensão da abordagem gramsciana ao complexo estrutura/supe- restrutura, cuja base é formada pelos conceitos de hegemonia, sociedade civil, o Estado, o partido e os intelectuais. Sem esses conceitos, a ideologia como Gramsci deve ter concebido não poderia ser "pensada"; ela ocupa sua posição de extrema importância unicamente se subordinada às concep- ções políticas em torno das quais o pensamento de Gramsci está orientado. Já sugerimos que aqueles que procuram uma "filosofia" em Gramsci ficarão decepcionados. Contudo, é fato bem sabido que ele fala do marxis- mo como a "filosofia da praxis", dedicando a última terça parte de Cader- nos do Cárcere a questões filosóficas. Esta justaposição aparentemente es- tranha de assertivas baseia-se numa avaliação das chamadas tendências "his- toricistas" de Gramsci; e o problema geral do historicismo será abordado mais adiante através de uma análise específica da maneira pela qual P O L f r i C A E I D E O L O G I A 61 Gramsci é apropriado por Louis Althusser e Nicos Poulantzas. A perspecti- va "estruturalista" destes últimos parece oferecer uma posição epistemo- lógica em oposição aos momentos mais "organicistas" de Gramsci. Contu- do, fica evidente que eles concordam sej- esta última uma figura teórica de desenvolvimento bastante diferente do decano por demais nefasto do his- toricismo, Georg Lukács. Uma contradição a mais, ao que parece. Argumentaremos que, particularmente no caso de Poulantzas, esses autores não são explícitos em relação a um débito fundamental para com Gramsci quanto a conceitos de importância crucial para seus próprios projetos teóricos. Argumentaremos também que o problema do historicis- mo em Gramsci não é absolutamente uma questão bem definida. É certa- mente verdade que em algumas de suas generalizações filosóficas Gramsci tende a reduzir ou sugerir uma redução de ideologias como "concepções de vida" de classes fundamentais organicamente ligadas a algum objetivo histórico a longo prazo. É igualmente plausível dizer que Gramsci tende a relativizar os critérios de validade teórica para suas condições históricas de aprovação. Estas "falácias" parecem refletir as principais restrições contra o his- toricismo feitas por Althusser e Poulantzas. Todavia, o inigualável sentido de Gramsci das formas materiais e da produção da ideologia e da luta po- lítica, a restrição antipsicologística de que a ideologia é um assunto epis- temológico e estrutural,^ e o valor duradouro de seus próprios conceitos específicos (na pior das hipóteses, como ocorrem em seu estado "práti- co"), todas essas realidades asseguram a complexidade, a natureza parcial do historicismo de Gramsci. Se, além disso, puder ser demonstrado que os conceitos de Gramsci encontram-se por trás de alguns dos principais pontos das análises de Althusser, uma útil tarefa anti-reducionista terá sido realizada. Dito isso, não afirmamos que Gramsci nos oferece uma rigorosa teoria da ideologia, ou mesmo do que quer que seja. De modo particular, toda a questão do marxismo como ciência (ou ideologia) e a delicada questão da relevância de Gramsci para a estratégia comunista na Europa Ocidental de hoje, para mencionar apenas dois prementes problemas teóri- cos e políticos, permanecem abertas e urgentes. II A matriz conceituai de "Cadernos do Cárcere" Em Cadernos do Cárcere, Gramsci raramente utiliza o termo ideologia, mas antes uma gama de termos que servem mais ou menos como equivalentes: "filosofias", "concepções do mundo", "sistemas de pensamento" e formas de consciência. Ele também emprega noções como "senso comum", que embora não sejam equivalentes a ideologias referem-se a seus substratos. Esses termos têm aplicações e formas de referência distintas desde o globa-

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Stuart Hall, Bob Lumley, Gregor McLennan

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Política e Ideologia: Gramsci

Stuart Hall, Bob Lumiey, Gregor McLennan

I Introdução

Não há uma teoria sistemática da ideologia na obra de Antonio Gramsci, embora certamente seja verdade que existam muitas passagens e comen­tários extremamente sugestivos. Uma explicação razoavelmente coerente destas muitas e variadas percepções da questão só é possível se invocarmos o caráter densamente imbricado dos principais conceitos de Gramsci. Não se deve permitir que a tarefa da abstração teórica encubra a marca caracte­rística die seu pensamento. A primeira parte deste artigo será, portanto, um perfil da problemática gramsciana, uma problemática que, argumentar-se-á, volta-se precipuamente para as perspectivas e análises políticas, e não para os princípios epistemológicos gerais. Um estudo concreto e historicamente específico é da mais alta importância nos textos de Gramsci. No que diz respeito ao nosso tópico presente, a base de tal especificidade é indicada pela injunção de Gramsci de que a ideologia deve ser estudada como uma superestrutura.^ Ora, esta última tarefa não pode ser empreendida sem uma compreensão da abordagem gramsciana ao complexo estrutura/supe­restrutura, cuja base é formada pelos conceitos de hegemonia, sociedade civil, o Estado, o partido e os intelectuais. Sem esses conceitos, a ideologia como Gramsci deve ter concebido não poderia ser "pensada"; ela ocupa sua posição de extrema importância unicamente se subordinada às concep­ções políticas em torno das quais o pensamento de Gramsci está orientado.

Já sugerimos que aqueles que procuram uma " f i losof ia" em Gramsci ficarão decepcionados. Contudo, é fato bem sabido que ele fala do marxis­mo como a "f i losofia da praxis", dedicando a última terça parte de Cader­nos do Cárcere a questões filosóficas. Esta justaposição aparentemente es­tranha de assertivas baseia-se numa avaliação das chamadas tendências "his-toricistas" de Gramsci; e o problema geral do historicismo será abordado mais adiante através de uma análise específica da maneira pela qual

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Gramsci é apropriado por Louis Althusser e Nicos Poulantzas. A perspecti­va "estruturalista" destes últimos parece oferecer uma posição epistemo­lógica em oposição aos momentos mais "organicistas" de Gramsci. Contu­do, fica evidente que eles concordam sej- esta última uma figura teórica de desenvolvimento bastante diferente do decano por demais nefasto do his­toricismo, Georg Lukács. Uma contradição a mais, ao que parece.

Argumentaremos que, particularmente no caso de Poulantzas, esses autores não são explícitos em relação a um débito fundamental para com Gramsci quanto a conceitos de importância crucial para seus próprios projetos teóricos. Argumentaremos também que o problema do historicis­mo em Gramsci não é absolutamente uma questão bem definida. É certa­mente verdade que em algumas de suas generalizações filosóficas Gramsci tende a reduzir ou sugerir uma redução de ideologias como "concepções de vida" de classes fundamentais organicamente ligadas a algum objetivo histórico a longo prazo. É igualmente plausível dizer que Gramsci tende a relativizar os critérios de validade teórica para suas condições históricas de aprovação.

Estas "falácias" parecem refletir as principais restrições contra o his­toricismo feitas por Althusser e Poulantzas. Todavia, o inigualável sentido de Gramsci das formas materiais e da produção da ideologia e da luta po­l í t ica, a restrição antipsicologística de que a ideologia é um assunto epis­temológico e estrutural,^ e o valor duradouro de seus próprios conceitos específicos (na pior das hipóteses, como ocorrem em seu estado "prát i ­co " ) , todas essas realidades asseguram a complexidade, a natureza parcial do historicismo de Gramsci. Se, além disso, puder ser demonstrado que os conceitos de Gramsci encontram-se por trás de alguns dos principais pontos das análises de Althusser, uma útil tarefa anti-reducionista terá sido realizada. Dito isso, não afirmamos que Gramsci nos oferece uma rigorosa teoria da ideologia, ou mesmo do que quer que seja. De modo particular, toda a questão do marxismo como ciência (ou ideologia) e a delicada questão da relevância de Gramsci para a estratégia comunista na Europa Ocidental de hoje, para mencionar apenas dois prementes problemas teóri­cos e polít icos, permanecem abertas e urgentes.

II A matriz conceituai de "Cadernos do Cárcere"

Em Cadernos do Cárcere, Gramsci raramente utiliza o termo ideologia, mas antes uma gama de termos que servem mais ou menos como equivalentes: " f i losof ias", "concepções do mundo" , "sistemas de pensamento" e formas de consciência. Ele também emprega noções como "senso comum" , que embora não sejam equivalentes a ideologias referem-se a seus substratos. Esses termos têm aplicações e formas de referência distintas desde o globa-

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lizante Weltanschauung até a forma particular de consciência. A complexa concepção de Gramsci de ideologia tem que ser reconstruída a partir desses termos, e tem que ser situada no campo de conceitos que ele utiliza para analisar a formação social. É precisamente neste particular que ele dá sua maior contribuição parsfc^teoria marxista através da introdução de concei­tos como "hegemonia" e "intelectual orgânico", e sua reconceituação de outros, particularmente "Estado" e "sociedade c iv i l " . A ideologia ganha novo significado em seus textos como uma " força material" na história, muito distante da teoria da ideologia da II Internacional como um simples reflexo da base económica; mas ao mesmo tempo Gramsci explora as formas específicas da organização e propagação da ideologia e da cultura como um aspecto da luta de classes.

Estrutura e superestrutura

O ponto de partida para a exploração de Gramsci lhe é fornecido pelo mo­delo marxista fundamental de estrutura e superestrutura. Em seus textos, a estrutura, o "mundo da economia", está sempre presente; seus movimen­tos estabelecem parâmetros para os desenvolvimentos na superestrutura, mas é apenas a "mola propulsora da história em última instância". ' As análises de Gramsci da relação entre estrutura e superestrutura pouco devem à economia polít ica marxista. Seu débito é para com Marx, o histo­riador do 18 Brumário, e não ao Marx de O Capital. Gramsci utiliza termos de "análise polí t ico-histórica", tais como "bloco histórico" e movimentos "orgânicos" e "conjunturais". Todavia, estes termos não se referem sim­plesmente ao nível superestrutural. O "b loco histórico", por exemplo, re-fere-se tanto à estrutura na qual as classes são constituídas ao nível econó­mico (sobre esta base, Gramsci distingue entre classes "fundamentais" e frações de classe), como ao nível pol í t ico no qual as classes e as frações de classe se combinam."* De modo semelhante, Gramsci emprega'"orgânico" e "conjuntura l " para distinguir movimentos na superestrutura de acordo com o grau em que estes movimentos têm uma base na transformação e reorganização do modo de produção.'

Tem sido dito frequentemente que Gramsci examina a formação das superestruturas isoladas, fornecendo análises inteiramente polít ico-cultu-rais da história.* Embora isso seja verdade em termos de ênfase, a intenção de Gramsci é romper tanto com a tradição culturalista/idealista representa­da por Croce quanto com o determinismo económico da II internacional. Uma série de conceitos utilizados em Cadernos do Cárcere contornam o modelo topográfico simples de base e superestrutura (por exemplo, bloco histórico, hegemonia) e abrem o caminho para um entendimento das com­plexas articulações da formação social. Um dos conceitos-chave é "socieda­de c iv i l " .

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Sociedade civil é um conceito d i f íc i l de ser isolado, e Gramsci mostra-se, quanto a ele, mais vago do que o habitual. Por exemplo, num trecho sobre os intelectuais, a sociedade civil é chamada de um "nível da superes­t rutura" , ' ' enquanto que em alguns outros exemplos o termo também se refere à estrutura.* Os tradutores ingleses dos Cadernos admitem alguma perplexidade quanto às diversas aplicações feitas por Gramsci. ' Uma ma­neira prática de se compreender sociedade civil é vê-la como um conceito que designa a esfera intermediária que inclui aspectos da estrutura e da superestrutura. É a área do "conjunto de organismos comumente chama­dos 'pr ivados ' " ; daí o conceito incluir não apenas associações e organiza­ções como os partidos polít icos e a imprensa mas também a famíl ia, que combina funções ideológicas e económicas. Portanto, a sociedade civil, nas palavras de Gramsci, "situa-se entre a estrutura económica e o Estado". É a esfera dos interesses "pr ivados" em geral. Mas esta noção de sociedade civil não pode ser assimilada à dos teóricos polít icos do século X V I I I , que a concebiam como totalmente separada do Estado. Quando Gramsci aplica a fórmula "Estado = sociedade polít ica + sociedade c iv i l " , ele está indican­do a verdadeira relação entre o formalmente "púb l i co" e "pr ivado". Isto o leva a decompor as ideias abstratas da Política e do Direito. No caso desse úl t imo, Gramsci escreve que o bloco dominante precisa subordinar as outras classes às exigências do processo produtivo não apenas baixando de­cretos, mas mediante uma permanente transformação de valores e costu­mes morais na sociedade c iv i l . ' " Consequentemente, a sociedade civil é o terreno sobre o qual as classes brigam pelo poder (económico, pol í t ico e ideológico). É neste ponto que a hegemonia é exercida, e no qual os termos das relações da estrutura e da superestrutura são decididos.

A pol í t ica, ela própria descrita por Gramsci como um "nível da supe­restrutura", é o momento-chave nas relações de estrutura e superestrutura. É o "momento puramente po l í t i co" que "marca a passagem da estrutura para a esfera das superestruturas complexas" " e no qual a natureza das relações de classe é definitivamente constituída e contestada numa rela­ção de forças permanentemente variável. A intenção de Gramsci ao escre­ver os Cadernos é uma teorização do nível pol í t ico através de uma reflexão sobre sua própria experiência e sobre a história da Itália. Para ele, o nível pol í t ico tem suas leis próprias, diferentes do económico, e sua própria "atmosfera incandescente" ,sendo através de uma análise do pol í t ico que Gramsci concebe a ideologia.

Nesse contexto, as ideologias não são julgadas segundo um critério de verdade e falsidade, mas segundo sua função e eficiência em aglutinar classes e frações de classe em posições de domín io e subordinação. A ideo­logia contribui para "cimentar e unif icar" o bloco s o c i a l . G r a m s c i esta­belece duas distinções correlatas concernentes à ideologia. A primeira dis­tinção é entre maneiras sistemáticas de pensar (" f i losof ia" e " ideologia".

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segundo o seu uso) e formas de pensamento agregadas e internamente con­traditórias ("senso c o m u m " e " fo lc lore" ) . A segunda distinção é entre ideologias orgânicas, semi-orgânicas e não-orgânicas, isto é, de acordo com o grau em que as ideologias correspondem às potencialidades e ao movi­mento de classes fundamentais na história, e de acordo com sua capacidade para análises concretas de situações. A "verdade" de uma ideologia, para Gramsci, está em sua capacidade de mobilização polít ica e, finalmente, em sua realização histórica.'*

A inadequação teórica desta concepção, que tende a assimilar de modo pragmático o materialismo histórico a outras ideologias, será tratada na seção seguinte. Mas assinalemos aqui que Gramsci está abrindo um novo campo com respeito à compreensão marxista da ideologia, que se imobili­zara com a famosa formulação de A Ideologia Alemã-."As ideias da classe dominante são em todas as épocas as ideias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é ao mesmo tempo a força Ideo­lógica d o m i n a n t e . " " Gramsci sustenta a importante concepção de Marx segundo a qual a ideologia burguesa dominante apresenta-se a si mesma como universal. Quaisquer manchas de "status e posição" que pressupõem uma desigualdade inerente entre os homens serão lavadas. O poder do bloco governante de falar em nome do " p o v o " , da "nação", "humanida­de" , e assim por diante, é uma pré-condição para a fundação de seu pró­prio Estado e a garantia de sua sobrevivência.'* Todavia, Gramsci rompe com a concepção de ideologia como simples reflexo de relações a nível económico e como a expressão uniforme da classe dominante. Embora a ideologia dominante seja necessariamente sistematizada e se apresente como universal, ela não emana automaticamente da classe dominante, mas é geralmente o resultado da relação de forças entre as frações do bloco dominante.' ' ' Por isso, Gramsci concebe a apropriação diferencial das ideias dominantes dentro do próprio bloco governante e dentro da classe dominada. A primeira tem sua base no fracionamento do bloco dominante e numa divisão do trabalho entre funções intelectuais e funções mais prá­ticas; a segunda, no complexo processo de acumulação, transformação e rejeição das ideias dominantes pelas classes subordinadas.

Hegemonia

Isto nos leva ao conceito gramsciano de hegemonia. Aplicações recentes do conceito apresentaram tendências para assimilá-lo à "dominação ideo­lógica" e para instrumentalizá-lo ao sugerir uma simples relação de do­minação e subordinação.'* Deve, portanto, ficar claro que hegemonia, para Gramsci, inclui o ideológico mas não pode ser reduzido àquele nível, e que ela se refere à relação dialética de forças de classe. A dominação e a subor­dinação ideológicas não são compreendidas isoladamente, mas sempre como um aspecto, embora crucialmente importante, das relações das

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classes e das frações de classes em todos os níveis: económico e pol í t ico, bem como ideológico/cultural. O conceito de hegemonia é elaborado por Gramsci para analisar essas relações dentro das classes e entre as classes. O conceito implica a organização de anuência "espontânea" que pode ser conseguida, por exemplo, quando o bloco dominante faz concessões eco­nómicas que "entretanto não afetam seus interesses essenciais", combina­das com outras medidas que promovem formas de consciência que aceitam uma posição de subordinação (a que Gramsci refere-se como consciência seccional e corporat iva) . " O conceito permite uma análise que distingue os níveis da formação social e os mantém em combinação. Daí Gramsci utilizar "hegemonia po l í t ica"^" ou "hegemonia em f i losof ia"^ ' para indi­car a instância dominante daquela hegemonia. Este uso mais especificado do conceito não é teorizado por Gramsci, embora abra caminho para uma noção mais complexa e articulada de hegemonia.

Gramsci reconhece em Lênin a origem do conceito de hegemonia,^^ mas a ideia que este úl t imo fazia de hegemonia é muito mais restrita ao nível pol í t ico. Lênin definiu-a em termos da liderança do proletariado em sua aliança com o campesinato pobre. Gramsci sustenta esta utilização, como pode ser constatado em sua aprovação leninista dos jacobinos, mas ampliou seu alcance porque para ele a hegemonia tinha que ser disputada no terreno da sociedade civil. A frequente referência de Gramsci à "hege­monia ét ico-pol í t ica" indica esta amplitude; a hegemonia do bloco domi­nante é vista não apenas a nível pol í t ico, mas como afetando todos os aspectos da vida e do pensamento da sociedade.

Gramsci não possui uma teoria da ideologia tal como é imposta pela classe dominante nem uma teoria espontânea, imanentista, como Lukács. Ele combina elementos de ambas, mas assim o faz trabalhando numa pro­blemática diferente da simples totalidade. Onde a maioria dos teóricos da ideologia pensam apenas no pensamento sistemático, ou se aplicam ao má­ximo para sistematizar formas de ideologia a f im de ressaltar sua coerência, Gramsci tem plena consciência da maneira pela qual a ideologia é uma "re­lação vivida". Sua experiência pessoal da cultura dos camponeses da Sar-

denha^' e como organizador revolucionário na década de 1920 ensinou-lhe a importância de «nfrentar o problema de como as ideias são apropriadas e a relação entre estas ideias e formas de ação e comportamento. Ele é talvez o primeiro marxista a examinar seriamente a ideologia em seus "n í ­veis mais baixos" como sendo a acumulação de "conhecimentos" popula­res e as maneiras de ocupar-se com a vida cotidiana - o que ele chama "senso comum" .

O senso comum, os intelectuais e o partido

Para Gramsci, o pensamento baseado no senso comum é ao mesmo tempo uma formação histórica e específica de cada classe. Isso evidencia-se em

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sua explicação do desenvolvimento do conceito a partir de um termo dos filósofos empíricos dos séculos XVI I e X V I I I que lutavam contra a teolo­gia até seu uso posterior como uma confirmação da opinião aceita e não como sua subversão.^* Todavia, as breves notas de Gramsci sobre o senso comum consistem de observações gerais sobre uma maneira de pensar. Ele o caracteriza como sendo inerentemente eclético e desarticulado. Devido ao fato de que o senso comum não é sistemático e não explicita sua pró­pria maneira de raciocinar, ele pode combinar ideias que são contraditórias sem ter consciência desse fato. Como consequência, o senso comum acumula "conhecimentos" extraídos de ideologias anteriores e de uma série de classes sociais:

" ( O senso c o m u m ) ... é e s t r a n h a m e n t e e c l é t i c o ; ele c o n t é m e l e m e n t o s da Idade da Pedra e p r i n c f p i o s de u m a c iênc ia mais a d i a n t a d a , p r e c o n c e i t o s de todas as fases passadas da h i s t ó r i a a n í ve l local e In tu i ções de u m a f u t u r a f i l o s o f i a q u e será a da raça h u m a n a u n i d a m u n d i a l m e n t e " .

Gramsci identifica a ausência de uma "consciência da historicidade" e, consequentemente, do autoconhecimento como o principal aspecto que condena o pensamento baseado no senso comum a uma posição de depen­dência e subordinação. Noções populares como "natureza humana" efeti­vamente não levam em conta a possibilidade de mudança e "natural izam" a ordem social.^* O processo de "naturalização", que para Marx era fun­damental na Economia Política burguesa, é considerado por Gramsci um mecanismo-chave do pensamento baseado no senso comum. É justamente na "material idade" e na trivialidade que cercaram a noção de "natureza humana" que podemos ver a articulação íntima da "estrutura em domi­nância" das esferas "superior" e " in fer io r " da ideologia.

A relação entre a ideologia dominante e o senso comum, não á, toda­via, hierarquicamente f ixada, mas impelida pelas contradições de classe em seu interior. A primeira pode intervir "posit ivamente" no pensamento po­pular a f im de recompor seus elementos e acrescentar novos, ou "negativa­mente" ao estabelecer limites a seu desenvolvimento, ao mesmo tempo em que lhe deixa a restrita liberdade de elaboração interna.^'' Os termos destas relações são frequentemente afetados por outros fatores, como linguagem, que podem tornar-se um meio de autodefesa e de orgulhosa auto-afirmação por parte das massas. Assim, uma dialética funciona tanto como a infra-estrutura para o folclore e para o paroquialismo quanto como um meio de resistência, que podemos chamar de os pólos negativo e positivo do corpo­rativismo.^* No entanto, as contradições entre as maneiras de pensar per­manecem e se manifestam dentro do próprio senso comum entre ideias tomadas das ideologias dominantes e as espontaneamente geradas através da experiência da solidariedade de classe. Nos momentos de conf l i to aberto, estas contradições abrem uma fenda entre "a consciência superfi-

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ciai, explícita ou verbal" e a consciência " impl íc i ta em atividade".^' Estes momentos frequentemente são indícios de uma crise na hegemonia do bloco dominante.

Embora a dinâmica das ideologias seja afirmada por Gramsci através de seu posicionamento como um nível das superestruturas, ela nunca deixa de ser consistente. Gramsci introduz a categoria de " inte lectual" para designar aqueles que têm como tarefa a organização, disseminação e con­servação das habilidades e ideias associadas mais com o trabalho mental do que com o trabalho manual. Para analisar a formação de ideologia e cultura com relação às classes, ele faz uma distinção entre "intelectuais orgânicos", que têm funções firmemente baseadas nos interesses de uma classe funda­mental, e "intelectuais tradicionais", que pertencem a classes e a estratos que são como que resíduos de uma prévia formação social. '" As duas cate­gorias possuem um valor conceituai diferente, no sentido de que o " inte­lectual orgânico" refere-se a uma filiação de classe definida, ao passo que o "intelectual tradicional" sugere uma ausência daquela filiação. A ques-tão-chave refere-se à função no sistema, mas Gramsci é sensível à relação diferencial de níveis da superestrutura com a estrutura e, conseqiientemen-te, à importância de subideologias, que ele vê como particularmente impor­tantes entre "intelectuais tradicionais". Esta perspectiva explica um grau de filiação a um grupo ou organização que pode entrar em confl i to com a aliança devida a uma classe fundamental. Referindo-se à Igreja (o locus classicus do "intelectual tradicional"), ele fala das "necessidades internas de um caráter organizacional", e que

"se para t o d a lu ta i deo lóg ica quiséssemos e n c o n t r a r u m a exp l i cação o r ig ina l ime­d i a t a na e s t r u t u r a , s e r í a m o s apanhados d e s p r e v e n i d o s " .

A categoria do " inte lectual" em Gramsci lhe permite analisar a organi­zação e a produção da ideologia como uma prática específica não redutível às classes às quais os intelectuais estão ligados. Consequentemente, as ideias não expressam classes, mas compreendem um campo no qual o con­f l i to de classes se dá sob formas particulares. Através de organizações como a Igreja, a imprensa e os partidos polít icos (órgãos da sociedade civil) e através do Estado (quanto ao bloco dominante) os intelectuais desempe­nham um papel de liderança na batalha para ganhar apoio espontâneo para uma das classes fundamentais.'^

Na organização da hegemonia na sociedade capitalista, o bloco domi­nante mobiliza os órgãos tanto da sociedade civil como do Estado. Gramsci chamou a atenção para os aspectos do governo de classe que não são coer­citivos, enquanto marxistas anteriores a ele, inclusive o próprio Marx e Lênin, viam o Estado, de modo geral, como a violência organizada da classe dominante. Gramsci fala da influência "educativa positiva" das es-

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colas e da influência "educativa repressiva e negativa" dos t r ibunais . " A relação vital, não obstante, para Gramsci, é entre o Estado e a sociedade civi l ; isto é, em que medida o bloco dominante pode manter a sociedade ci­vil sob sua hegemonia. Em últ ima análise, o bloco dominante mantém o poder por causa de seu controle sobre os aparelhos repressivos (polícia e exército), que lhe permitem manter outras classes submetidas, mesmo quando tenha perdido a hegemonia sobre elas."* Consequentemente, a "guerra para tomar" o poder estatal é um corolário imperativo da "guerra de posição", na qual as classes se movimentam para tomarem as posições vantajosas na sociedade civil. Contudo, a posição central do Estado na manutenção do governo de classe é radicalmente reconcebida por Grams­ci. Para ele, o desenvolvimento crucial da sociedade civil no Ocidente altera a relação do Estado para com o resto da superestrutura, de modo que ele se torna uma mera "tr incheira avançada" das defesas. Isto acontece porque a sociedade civil forma o "sistema de fortalezas e de fort ins avançados" que proporcionam a garantia a longo prazo de estabilidade para o bloco dominante. '* Isto leva Gramsci a reconceitualizar uma estratégia para o partido revolucionário baseada na conquista da hegemonia polít ica antes da tomada do poder.'* Já que o bloco dominante estabelece o terreno po­l í t ico e organiza cada vez mais sua hegemonia na sociedade civil, o partido tem que explorar o terreno e construir uma estratégia correspondente. Fundamental para isto é o desenvolvimento de intelectuais orgânicos pelo partido e o afastamento de intelectuais tradicionais do bloco dominante. A hegemonia baseia-se num "consentimento" voluntário e espontâneo, mas assume formas diferentes, de acordo com as relações de classe que ela materializa. Por exemplo, a Igreja mantém sua influência sobre as massas mediante imposições externas: impedindo a liberdade de pensamento de seus intelectuais e impedindo que as próprias massas saiam da confusão do pensamento baseado no senso comum para acederem a formas mais siste­máticas de pensamento. Contrastando com isso, a luta revolucionária do partido pela hegemonia marca um rompimento com formas anteriores de hegemonia. Os marxistas procuram elevar os níveis culturais e eliminar a opressão cultural institucionalizada na rígida divisão de trabalho intelec­tual e manual na sociedade capitalista. Gramsci propõe que o partido não atue mecanicamente do exterior sobre o pensamento popular, mas que entre na mentalidade do pensamento baseado no senso comum para revelar suas contradições:

N ã o se t r a t a de i n t r o d u z i r a p a r t i r de zero u m a f o r m a c i e n t í f i c a de p e n s a m e n t o na v ida de t o d o m u n d o , mas de renovar e t o r n a r " c r í t i c a " u m a a t i v i dade já e x i s t e n t e . ' " '

A relação do partido com as massas não é a de um mecanismo de sentido único, mas uma dialética entre liderança e espontaneidade. Devido ao fato

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de Gramsci não trabalhar com uma consciência verdadeira/falsa ou um mo­delo ciência/ideologia, seu pensamento é dirigido para as possibilidades contraditórias dentro de formas espontâneas, não-sistematizadas, de pensa­mento e ação. E aqui ele faz uma avaliação positiva de apelos a atitudes emocionais e morais, rejeitando uma noção racionalista de persuasão pela lógica pura. '* Gramsci vê a espontaneidade em si mesma condenada porque dividida por contradições internas e incapaz de fornecer uma expli­cação sistemática do mundo; mas quando "educada e expurgada de contra­dições que lhe são estranhas", aquela espontaneidade é, para Gramsci, o motor da revolução."

A ideologia, como concebida em Cadernos do Cárcere, é obrigatoria­mente polít ica. É através da polít ica que a "relação entre o senso comum e o nível superior da filosofia é assegurada","*" ocupando-se a polít ica essen­cialmente com concepções do Estado. As análises de Gramsci da consciên­cia seccional/corporativa e do pensamento baseado no senso comum tem por objetivo revelar a incapacidade deste para compreender o papel do Es­tado capitalista, resultando disso seu fracasso em perceber o pol í t ico como o nível crucial da formação social. A consciência corporativa e o senso co­mum partilham um campo de pensamento especificamente não-teórico e frequentemente antiteórico. Neste particular, "sent imento", "experiência pessoal" e percepção empírica imediata são predominantes. Os comentá­rios de Gramsci sobre o "subversivismo" do camponês aclaram estes aspec­tos como uma resposta de classe "negat iva":

Essas pessoas não apenas d e i x a m de ter u m a c o n s c i ê n c i a precisa de sua p r ó p r i a i d e n t i d a d e h i s t ó r i c a , mas não t ê m consc iênc ia n e m m e s m o dos . . . l im i t es exa tos de seu adversár io . E x i s t e u m a a n t i p a t i a pe lo o f i c i a l i s m o — a ún i ca f o r m a pela qua l o Es tado é p e r c e b i d o . * '

Existem, contudo, aspectos "posit ivos" na consciência corporativa e no senso comum (Gramsci refere-se ao elemento de solidariedade de classe e à "suspeita arraigada" presente no anticlericalismo popular). Todavia, estes aspectos permanecem necessariamente subordinados e defensivos.

Toda a força da obra de Gramsci está em insistir quanto à importância da teoria para a análise das formações sociais, precisamente porque o não-teórico não consegue ir além das aparências imediatas, não podendo conse­quentemente identificar o " in imigo" , a não ser de maneira vaga. O marxis­mo é, para Gramsci, num importante sentido, diferente de qualquer outra ideologia porque permite um entendimento do terreno sobre o qual as lutas de classe têm lugar. Cadernos do Cárcere é notável como uma obra teórica que de modo polémico ataca a influência persistente da ideologia dominante sobre partes do movimento operário. Ao fazê-lo, Gramsci reco­loca toda a questão da ideologia em relação ao nível pol í t ico.

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I I I A ideologia e o problema do historicismo

As concepções de Gramsci de polít ica e formação social em geral, como temos procurado indicar, são tentativas para explicar objetos complexos. É importante ter em mente que sua obra é dirigida contra um marxismo mecanicista e economicista, e a ideologia, correspondentemente, não pode para Gramsci, em nenhum sentido, ser reduzida a um epifenômeno irrele­vante. Nem pode ser interpretada de modo psicologístico como uma pro­cura dos interesses t ipo " judeu sujo" de indivíduos de determinadas classes (dominantes).*^ Teses de fatalismo e de conspiração não desempenham papel de espécie alguma em sua obra. Correspondentemente, para Gramsci tampouco existem "interesses" pré-dados para a classe operária. Ao mesmo tempo em que reconhece o conforto moral que um economismo fatalista pode oferecer às massas em períodos politicamente adversos, ele assinala constantemente a necessidade de uma perspectiva pol í t ica geral — uma que necessariamente implique um reconhecimento da importância da ideologia. Sua preocupação específica com o senso comum como sendo o substrato das ideologias revela uma análise basicamente oposta a qualquer dicotomia simples entre as "ideias" e a economia. A ênfase sempre repetida na com­plexa unidade de estrutura e superestrutura deixa claro que Gramsci (cor-retamente, em nosso ponto de vista) rejeita qualquer hierarquia causal uni-linear. O próprio ponto de vista economicista tem suas raízes na experiên­cia prática, é uma consequência material da luta cotidiana do trabalho assa­lariado com e sob o capital, sendo uma tarefa fundamental do partido mar­xista superar as dualidades e os regionalismos do que Gramsci chama de consciência "corporat iva". A ideologia não é um " a r d i l " imposto pela classe dominante a f im de iludir eternamente os trabalhadores e desse modo impedir a classe de cumprir seu papel histórico (supostamente) pre­determinado. As ideologias têm como base realidades materiais e são elas próprias forças materiais. Entretanto, as concepções materialmente funda­mentadas da classe operária não são inevitavelmente condenadas a con­tinuarem corporativas. O senso comum e a experiência prática podem e de­vem ser trabalhados. Eles contêm elementos de "bom senso" e de instinto de classe*' que podem ser transformados numa perspectiva socialista coe­rente porque aquela luta corporativa do dia-a-dia, embora Caracterizada por relações de dominação e subordinação, é ela mesma um fenómeno contraditório.

A ideologia, pois, para Gramsci, possui, como a formação social da qual é parte necessária, uma identidade complexa e contraditória. Ao con­trário de Althusser, por exemplo, Gramsci não oferece uma definição epis­temológica em acréscimo a uma explanação do papel social material da ideologia. As ideologias como ideologias, para Gramsci, não são nem verda­deiras nem falsas, embora possam ser certamente coerentes em maior ou

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menor grau. A ideologia é vista principalmente como o "c imento" que aglutina a estrutura (na qual a luta de classes económica tem lugar) e o do­mínio das superestruturas complexas. Todavia, se e até que ponto as ideo­logias conseguem desempenhar esse papel, isto nunca é pré-dado. Segue-se daí que há sempre uma certa abertura no terreno da ideologia, e particular­mente no que diz respeito ao senso comum. Esta abertura é o espaço no qual trabalha o partido comunista: romper com as limitações teóricas da consciência corporativa (sob cuja influência as massas necessariamente " tomam emprestadas" suas concepções do mundo da classe dominante),** para atingir o nível exigido de coerência e espaço polít ico-cultural para o exercício da hegemonia. Somente quando isso é obtido - e só pode ser o produto da unidade diferencial de práticas políticas, económicas e intelec­tuais - é que se pode dizer que a concepção de vida em pauta é genuina­mente "orgânica". Portanto, a adesão das massas é em última instância a "validação" de uma ideologia. Mas o argumento de Gramsci acerca da fun­ção intelectual objetiva de certos estratos "técnicos" orgânicos ao moder­no capitalismo, e sua sempre repetida sugestão de que esses estratos devem ser conquistados pelo partido pol í t ico, são significativos. Estes pontos de vista mil i tam contra qualquer explicação da adesão das massas recorrendo ao espontaneísmo ou à noção a priori de uma classe-sujeito privilegiada. É interessante notar que sempre que Gramsci se refere à "validade psico­lógica" que a adesão das massas confere à ideologia sua explicação funda-menta-se em termos antes metafóricos que literais.*' O reconhecimento de que o próprio partido precisa funcionar de modo análogo a um "coletivo-intelectual"** a f im de adequar-se à complexidade do bloco estrutura/su­perestrutura acentua seu sentido agudo de que a história só se faz em situa­ções histórico-políticas concretas.

A esta altura, é relevante abordar novamente o problema do "histor i­cismo" de Gramsci, pois a formulação feita acima da "adesão das massas" sugere o t ipo de concessões ao relativismo que Althusser e Poulantzas, entre outros, consideram características da tendência historicista. Em su­ma, recapitulando, os historicistas são acusados de reduzirem a complexi­dade de uma totalidade social a uma essência simples e uniforme, e de re­duzirem a validade de posições teóricas às condições históricas do período que as ideias presumivelmente "expressam". Ora, esse conceito acarreta uma desarticulação a priori da base e da superestrutura (ou níveis de uma formação social) numa "unidade expressiva" que pode ser definida seja economicamente, culturalmente ou espiritualmente. Por exemplo, a "es­sência" de um período ou processo poderia ser considerada como o nível das forças produtivas, que, de acordo com um esquema teleologicamente definido, regula a marcha para uma série de estágios históricos "progressis­tas". E na seção anterior vimos como uma apropriação "cul tural ista" de Gramsci - em contraste com a posição "economíst ica" - é realizada. To-

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davía, opondo-se diametralmente à do economismo, a apropriação cultura­lista é excessiva exatamente no sentido oposto. Alternativamente, a histó­ria poderia ser vista como um movimento em que a classe mais progressis­ta é a que é potencialmente capaz do maior grau de auto-realização na história. Assim, para Lukács, por exemplo, o proletariado é a primeira clas­se capaz (no socialismo/comunismo) de chegar à autoconsciência total e, consequentemente, à auto-realização na história, pois a história nada mais é do que a unidade expressiva de consciência e prática. Formalmente oposta ao economismo, esta concepção, com uma evidência que dispensa demonstração, partilha com as outras duas um essencialismo que desafia a verificação racional. É a natureza fundamentalmente abstrata, e até mesmo mística, destas ideias de processos, essências, objetivos e sujeitos de classes que preocupa as escolas marxistas francesas teoricamente "rigoro­sas". Numa ciência não há lugar para concepções, mesmo que sejam pol í t i ­ca ou moralmente "progressistas".

Ora, Gramsci sem dúvida por vezes manifesta a tendência de se expres­sar ele próprio em termos historicistas. Na seção seguinte deste artigo, este problema recebe uma elaboração textual mais ampla em resposta a certas construções estruturalistas das posições de Gramsci. É suficiente indicar por enquanto a existência deste problema e sugerir a base ou elementos de uma avaliação dele.

As ideologias são, como vimos, "concepções de v ida" . Este é um con­ceito, poder-se-ia argumentar, que se aproxima da noção de Lukács de "visão do mundo" ou "consciência de classe". Ademais, Gramsci argumen­ta que ideologias orgânicas são aquelas vinculadas às "classes fundamentais" e mediadas (outro exemplo de um "b loco" ) por um partido pol í t ico." ' ' De fato, em certo momento Gramsci sugere que existe um partido para cada classe: algo que confere ao nível pol í t ico pouca autonomia. Ora, está claro que há neste caso uma posição que poderia ser interpretada como impli­cando "sujeitos" de classe autónomos, cada um com suas ideias orgânicas historicamente sucessivas. A necessidade das ideologias é, portanto, justi­ficada por sua expressão e como a essência dó próprio processo histórico. Dissemos que as principais reflexões de Gramsci têm como premissa a ideia de que a totalidade social é complexa, mas parecem surgir dúvidas sobre esta assertiva quando a tese acima vem acompanhada de uma seleção dos comentários filosóficos de Gramsci. Por exemplo, Gramsci afirma que as atividades da economia, da polít ica e da filosofia " fo rmam um círculo homogéneo".** Isto poderia ser considerado como implicando uma harmo­nia pré-dada entre níveis sociais, e parece enfraquecer a reivindicação de qualquer complexidade real ou teórica. A noção de uma unidade essencial entre história e praxis humana é levada mais adiante com argumentos dos quais damos a seguir exemplos representativos:

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Parece que p o d e ex is t i r u m a o b j e t i v i d a d e e x t r a - h i s t õ r i c a e e x t r a - h u m a n a . IVIas q u e m é o j u i z de ta l ob je t i v i dade? . . . O b j e t i v i d a d e s ign i f ica sempre " h u m a n a ­m e n t e o b j e t i v o " , o que p o d e ser sus ten tado c o m o c o r r e s p o n d e n d o e x a t a m e n t e a " h i s t o r i c a m e n t e s u b j e t i v o " ; e m ou t ras palavras, o b j e t i v i d a d e s ign i f i ca r ia " s u b -j e t i v o u n i v e r s a l " .

S ó c o n h e c e m o s a real idade e m relação ao h o m e m , e já q u e o h o m e m é u m vir -a-ser h i s t ó r i c o , c o n h e c i m e n t o e rea l idade são t a m b é m u m vir-a-ser, b e m c o m o a o b j e t i v i d a d e . * '

Evidentemente, à luz destas observações hegelianas e um tanto mistificado-ras, não se poderia esperar que o próprio marxismo estivesse livre de crité­rios relativistas:

Mas até m e s m o a f i l o s o f i a da p rax i s é u m a expressão de c o n t r a d i ç õ e s h i s t ó r i c a s . ' "

O i m a n e n t i s m o hegel iano torna-se h i s t o r i c i s m o , mas só é h i s t o r i c i s m o a b s o l u t o c o m a f i l o s o f i a da p rax is — h i s t o r i c i s m o a b s o l u t o e h u m a n i s m o a b s o l u t o . "

O problema, então, de se o marxismo é uma ciência ou uma ideologia é um dos mais espinhosos em Gramsci. A diferença entre ciência (social) e ideologia não parece ser uma diferença qualitativa. (O caso das ciências na­turais é mais problemático). Assim, não há um sentido explíci to em que o marxismo como uma concepção de vida seja diferente do, digamos, calvi-nismo. Na verdade, as ideologias genuinamente orgânicas (e o marxismo parece figurar entre elas) aparentemente só diferem nas circunstâncias his­tóricas sobre as quais repousa a adesão em massa.

Podemos começar a lançar dúvidas sobre as acusações "historicistas" em primeiro lugar lembrando outros pronunciamentos gerais de Gramsci e, mais importante, argumentando que seus principais conceitos são ininte­ligíveis se estas acusações forem corretas.

A a f i r m a t i v a , apresentada c o m o u m p o s t u l a d o essencial d o m a t e r i a l i s m o h is tó ­r i c o , segundo a qua l t o d a f l u t u a ç ã o de p o i f t i c a e Ideo log ia p o d e ser apresentada e e x p o s t a c o m o u m a expressão i m e d i a t a da e s t r u t u r a deve ser con tes tada e m t e o r i a c o m o sendo u m i n f a n t i l i s m o p r i m i t i v o .

Nem mesmo os comentários filosóficos de Gramsci são teoricamente uni­formes. Por exemplo, não há dúvida de que ele confere considerável auto­nomia às ciências," e sua argumentação contra Bukharin não é, como por vezes se alega, uma rejeição da cientif icidade. Antes, ao denunciar o meca­nicismo deste ú l t imo, Gramsci argumenta que cada ciência é específica, sendo portanto impossível gerar um modelo geral e normativo de prática científ ica. Um critério positivista, como o adotado por Bukharin, na verdade estorva aquilo que se propõe facilitar: uma explicação do "mé todo" int r ín­seco da ciência. Gramsci conclui que aquilo que em exposições posteriores

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tornou-se conhecido como "ciência em geral" é uma noção metafísica ou filosófica, e que não pode cobrir diferenças dentro das ciências naturais individuais, tanto quanto não o pode em relação às diferenças entre ciên-ciais naturais e sociais. Gramsci sustenta que entre estas últimas há uma diferença irredutível em método e objeto. Os que estão familiarizados com a recente autocrítica de Louis Althusser (para maiores detalhes ver a con­clusão deste artigo e o artigo sobre Althusser nesta coletânea) ficarão im­pressionados com a curiosa semelhança com estas ideias de Gramsci.

Todavia, é acima de tudo para os substanciais conceitos de Gramsci sobre o materialismo histórico que nos devemos voltar para obter um quadro menos simplista de seu historicismo. Esta argumentação será mais detalha­da logo adiante. De modo semelhante, a ênfase de Gramsci sobre as formas materiais da ideologia, sua falta de conteúdo uniforme, e sobretudo sua produção social (os intelectuais) afastam-nos mais uma vez de posições filosóficas simples (gerais).

É a insistência sobre a especificidade histórica (e rao relativismo histó­rico) que mil i ta contra qualquer categorização genérica. Isto não significa que contestemos - especialmente no que diz respeito a suas observações filosóficas - o fato de que Gramsci adota às vezes posições próximas do humanismo e mesmo do pragmatismo.** Contudo, é preciso reconhecer que os melhores exemplos desta tendência estão presentes numa polémica contra o positivismo e o economismo teórico dentro do marxismo. É intei­ramente justificável falar-se da unidade dos níveis de uma formação social neste contexto, embora o próprio termo empregado por Gramsci de "c í r ­culo homogéneo" ' ' seja certamente um exagero. De modo geral, Gramsci nunca questiona a complexidade de níveis sociais unificados.

A perspectiva que a identificação de classe, partidos e ideias hegemó­nicas oferece não apresenta absolutamente quaisquer implicações de uma teleologia prévia. Antes, estas concepções facil i tam uma análise material e teoricamente consistente do que é específico sobre conjunturas históricas e, consequentemente, sobre a relação de um partido marxista para com tal situação prática. A esta altura é crucial assinalar que uma explicação de fatores "relat ivos" a uma conjuntura não implica uma necessária relati­vização dos conceitos utilizados numa análise deste t ipo. Os conceitos, é obvio, são conceitos gerais, mas não se referem a entidades gerais. Para Gramsci, a ideologia em geral não existe. Existem apenas concepções cujos papéis polít icos dependem do efeito material que provocam em situações específicas. Gramsci não está interessado nas "Hocubrações arbitrárias dos ind iv íduos" , ' * mas no papel social e pol í t ico que as ideias desempenham. Se for este o caso, pareceria mais exato sustentar que Gramsci trata da função prático-social das ideologias às expensas de teses filosóficas, em vez de erroneamente procurar uma unidade entre sua especulação filosó­fica e sua contribuição ao trabalho substancial do materialismo histórico.

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Esta preocupação com a análise específica das ideologias — sua relação com a formação de classe económica e a existência e o grau da hegemonia exercida sobre uma conjuntura - é considerada por Gramsci como uma precondição teórica a intervenções práticas por parte de marxistas. Esta posição não pode ser reduzida às falácias do historicismo (o humanismo, e principalmente o economismo), pois ela as extrapola de modo expl íc i to e convincente.

IV A apropriação estruturalista de Gramsci: Althusser

Já nos referimos à natureza complexa do "histor ic ismo" de Gramsci. Esta questão torna-se mais complexa quando examinamos a relação entre Gramsci e os "marxistas estruturalistas" (referindo-nos aqui especificamen­te a Althufser e Poulantzas). O marxismo estruturalista opõe-se diametral­mente ao "histor ic ismo" — na verdade, é construído com base em seu des­mantelamento sistemático. A relação de Gramsci com o "histor ic ismo" é extremamente complexa. Como sugerimos, em vários aspectos importan­tes, Gramsci não é absolutamente um "historicista", se tivermos em mente alguém como Lukács como uma figura representativa desta tendência. Consequentemente, a relação de Althusser e Poulantzas com Gramsci não deve ser simples nem direta.

Gramsci frequentemente referia-se ao materialismo histórico como uma "f i losofia da praxis". Ele de maneira clara levava esta designação a sério — a referência não pode ser completamente explicada como sendo um eufemismo para "marx ismo" adotado por Gramsci para escapar aos olhos do censor da prisão. Assim, quando os estruturalistas se ocupam de Gramsci neste nível fi losófico geral, ele se torna objeto de críticas agudas. Contudo, mesmo neste caso Althusser delineia algumas distinções críticas. Ele está sempre encontrando dificuldades para "excetuar" Gramsci da crít ica geral de historicismo tal como dirige a Lukács, Korsch e Sartre. Althusser também toma mui to cuidado em distinguir a posição de Gramsci quanto ao status do "materialismo histór ico" como uma "f i losofia da praxis" dos conceitos importantes deste úl t imo, que são focalizados para merecer uma atenção favorável e positiva. Estas distinções são de grande importância para a definição de alguns dos parâmetros dentro dos quais a abordagem estruturalista de Gramsci tem sido realizada. Mas, acima de quaisquer referências específicas a Gramsci ou de quaisquer reconhecimen­tos a sua contribuição, pode-se ver claramente que Gramsci desempenhou uma função geradora e ocupa uma posição fundamental em relação â obra do marxismo estruturalista como um todo.

A relação entre Gramsci e os estruturalistas revela, contudo, uma desi-qualdade significativa. Uma espécie de "gráf ico" poderia ser fei to, o qual não somente representaria de modo mais acurado esta relação, mas de al-

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tornou-se conhecido conno "ciência em geral" é uma noção metafísica ou filosófica, e que não pode cobrir diferenças dentro das ciências naturais individuais, tanto quanto não o pode em relação às diferenças entre ciên-ciais naturais e sociais. Gramsci sustenta que entre estas últimas há uma diferença irredutível em método e objeto. Os que estão familiarizados com a recente autocrítica de Louis Althusser (para maiores detalhes ver a con­clusão deste artigo e o artigo sobre Althusser nesta coletânea) ficarão im­pressionados com a curiosa semelhança com estas ideias de Gramsci.

Todavia, é acima de tudo para os substanciais conceitos de Gramsci sobre o materialismo histórico que nos devemos voltar para obter um quadro menos simplista de seu historicismo. Esta argumentação será mais detalha­da logo adiante. De modo semelhante, a ênfase de Gramsci sobre as formas materiais da ideologia, sua falta de conteúdo uniforme, e sobretudo sua produção social (os intelectuais) afastam-nos mais uma vez de posições filosóficas simples (gerais).

É a insistência sobre a especificidade histórica (enão relativismo histó­rico) que mil i ta contra qualquer categorização genérica. Isto não significa que contestemos - especialmente no que diz respeito a suas observações filosóficas - o fato de que Gramsci adota às vezes posições próximas do humanismo e mesmo do pragmatismo.** Contudo, é preciso reconhecer que os melhores exemplos desta tendência estão presentes numa polémica contra o positivismo e o economismo teórico dentro do marxismo. É intei­ramente justificável falar-se da unidade dos níveis de uma formação social neste contexto, embora o próprio termo empregado por Gramsci de "c í r ­culo homogéneo" ' ' seja certamente um exagero. De modo geral, Gramsci nunca questiona a complexidade de níveis sociais unificados.

A perspectiva que a identificação de classe, partidos e ideias hegemó­nicas oferece não apresenta absolutamente quaisquer implicações de uma teleologia prévia. Antes, estas concepções facil i tam uma análise material e teoricamente consistente do que é específico sobre conjunturas históricas e, consequentemente, sobre a relação de um partido marxista para com tal situação prática. A esta altura é crucial assinalar que uma explicação de fatores "relat ivos" a uma conjuntura não implica uma necessária relati­vização dos conceitos utilizados numa análise deste t ipo. Os conceitos, é obvio, são conceitos gerais, mas não se referem a entidades gerais. Para Gramsci, a ideologia em geral não existe. Existem apenas concepções cujos papéis polít icos dependem do efeito material que provocam em situações específicas. Gramsci não está interessado nas "Hocubrações arbitrárias dos ind iv íduos" , ' * mas no papel social e pol í t ico que as ideias desempenham. Se for este o caso, pareceria mais exato sustentar que Gramsci trata da função prático-social das ideologias às expensas de teses filosóficas, em vez de erroneamente procurar uma unidade entre sua especulação filosó­fica e sua contribuição ao trabalho substancial do materialismo histórico.

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Esta preocupação com a análise específica das ideologias — sua relação com a formação de classe económica e a existência e o grau da hegemonia exercida sobre uma conjuntura - é considerada por Gramsci como uma precondição teórica a intervenções práticas por parte de marxistas. Esta posição não pode ser reduzida às falácias do historicismo (o humanismo, e principalmente o economismo), pois ela as extrapola de modo expl íc i to e convincente.

IV A apropriação estruturalista de Gramsci: Althusser

Já nos referimos à natureza complexa do "histor ic ismo" de Gramsci. Esta questão torna-se mais complexa quando examinamos a relação entre Gramsci e os "marxistas estruturalistas" (referindo-nos aqui especificamen­te a Althufser e Poulantzas). O marxismo estruturalista opõe-se diametral­mente ao "histor ic ismo" — na verdade, é construído com base em seu des­mantelamento sistemático. A relação de Gramsci com o "histor ic ismo" é extremamente complexa. Como sugerimos, em vários aspectos importan­tes, Gramsci não é absolutamente um "historicista", se tivermos em mente alguém como Lukács como uma figura representativa desta tendência. Consequentemente, a relação de Althusser e Poulantzas com Gramsci não deve ser simples nem direta.

Gramsci frequentemente referia-se ao materialismo histórico como uma "f i losofia da praxis". Ele de maneira clara levava esta designação a sério — a referência não pode ser completamente explicada como sendo um eufemismo para "marx ismo" adotado por Gramsci para escapar aos olhos do censor da prisão. Assim, quando os estruturalistas se ocupam de Gramsci neste nível fi losófico geral, ele se torna objeto de críticas agudas. Contudo, mesmo neste caso Althusser delineia algumas distinções críticas. Ele está sempre encontrando dificuldades para "excetuar" Gramsci da crít ica geral de historicismo tal como dirige a Lukács, Korsch e Sartre. Althusser também toma mui to cuidado em distinguir a posição de Gramsci quanto ao status do "materialismo histór ico" como uma "f i losofia da praxis" dos conceitos importantes deste úl t imo, que são focalizados para merecer uma atenção favorável e positiva. Estas distinções são de grande importância para a definição de alguns dos parâmetros dentro dos quais a abordagem estruturalista de Gramsci tem sido realizada. Mas, acima de quaisquer referências específicas a Gramsci ou de quaisquer reconhecimen­tos a sua contribuição, pode-se ver claramente que Gramsci desempenhou uma função geradora e ocupa uma posição fundamental em relação â obra do marxismo estruturalista como um todo.

A relação entre Gramsci e os estruturalistas revela, contudo, uma desi-qualdade significativa. Uma espécie de "gráf ico" poderia ser fei to, o qual não somente representaria de modo mais acurado esta relação, mas de al-

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guma maneira também explicaria quando e por que a obra de Gramsci é particulamente pertinente aos estruturalistas e quando nâío o é. A represen­tação gráfica desta relação também contribui para o estabelecimento dos principais pontos de convergências e divergências entre as duas posições. Em seu ensaio fundamental sobre "Contradição e Superdeterminação" (em For Marx, 1969) Althusser mostra-se preocupado em definir a natureza das "con­tradições" dentro de uma formação social. Seu argumento é o de que uma formação social não é uma simples "totalidade expressiva": as contradições não surgem necessariamente em todos os níveis da formação social ao mes­mo tempo, nem penetram todos os níveis simultaneamente a partir de al­guma "contradição pr incipal" alojada de algum modo simples "na base (e-conômica)". As contradições possuem sua especificidade própria. O ponto de importância é a maneira pela qual as contradições que surgem de "cor­rentes absolutamente dessemelhantes", para usar uma frase de Lênin, po­dem efetivamente "mergulhar" ou "fundir-se" numa importante unidade de ruptura, constituindo assim o âmbito de uma decisiva conjuntura po­l í t ica. Esta questão é "pensada" por Althusser principalmente com refe­rência a Lênin e 1 9 1 7 . " Mas o terreno de preocupações não é absolutamente estranho ao que Gramsci explorou nos Cadernos do Cárcere - por exemplo, sua discussão de como distinguir entre aspectos "orgânicos" e "conjuntu­rais" de uma crise nas relações de forças de classe em "The Modern Prince". '*

À medida que Althusser evoluía para o período de Lire "Le Capita/", ele passou a preocupar-se com uma série diferente de questões - não sem relação umas com as outras, mas propostas com uma ênfase teórica significa­tivamente distinta. Ele estava preocupado em identificar a natureza da "imensa revolução teórica de Marx" em O Capital. Esta questão é "pensa­d a " mediante o auxí l io de uma sériede conceitos característicos: a distinção entre ideologia e ciência; a natureza da "prática teór ica"; a função do mar­xismo; a teoria da "causalidade estruturalista". Muitos desses conceitos são desenvolvidos em confronto direto com o terreno conceituai do "histor i ­c ismo". Nesse ponto, Althusser encontra-se o mais distante possível de Gramsci. Embora não haja, como veremos um pouco mais detalhadamente logo adiante, uma condenação generalizada, a crít ica do "histor ic ismo" de Gramsci constitui um elemento central no longo e importante ensaio em Lire "Le Capitai" consagrado á proposição de que o "marxismo não é um h is to r i c i smo" / '

Depois disso surgiram dois desenvolvimentos significativos na obra de Althusser. O primeiro é o importante "Ensaio sobre os A I E " , no qual Althusser mais uma vez voltou sua atenção para a análise concreta da ins­tância ideológica e para a função dos "aparelhos ideológicos do Estado" ao reproduzir a hegemonia de uma ideologia dominante em formações sociais particulares.*" O segundo é aquele notável trabalho de auto-esclarecimento e modificação representado por Essays in Self-Criticism (1974). Não é

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possível fazer-se aqui uma avaliação completa deste últ imo volume. Mas é importante notar o seguinte: Althusser modif icou muito a distinção simples ideologia/ciência estabelecida em sua obra inicial. Ele admitiu o "teoricis-m o " da algumas das posições adotadas; ele abandonou a ideia de uma "prá­tica teór ica" auto-suficiente; a fi losofia é agora definida, não como uma "garantia epistemológica" mas como uma intervenção na " luta de classes em teor ia" . Embora o caráter cientí f ico das aberturas teóricas de Marx não possa ser reduzido às condições históricas que as tornaram possíveis, estas condições já não são consideradas irrelevantes para quando e como tais " rupturas" acontecem. Althusser continuou insistindo em que essas modificações - nem todas fundamentadas com segurança - não atingiram os pontos essenciais em sua crít ica do humanismo e do historicismo. Mas a mudança de ênfase e as substanciais reavaliações tiveram o efeito de, uma vez mais, remover algumas das barreiras entre o "marxismo estruturalista" e a obra de Gramsci. Por exemplo, elas tornaram possível para os teóricos estruturalistas reconhecerem o que os crít icos do " teor ic ismo" de Althusser sempre argumentaram: que, na atenção que Gramsci dá à especificidade do "po l í t i co " , seu ataque a todas as formas de reducionismo económico e sua insistência sobre a necessária complexidade do complexo estrutura-superestrutura, encontramos já examinadas — apesar da terminologia mui­to diferente da empregada pelos estruturalistas - precisamente aquelas questões sobre "a autonomia relativa" e a "sempre pré-dada complexa uni­dade de uma formação social" que com razão acredita-se constituírem a "imensa revolução teór ica" de Althusser. Assim, seja Gramsci um "histo­ricista" ou não, algo levou-o, em Cadernos do Cárcere, a registrar com for­ça, clareza e consistência notáveis, seu necessário rompimento com o mar­xismo concebido seja como um reducionismo económico ou como uma teoria de formações sociais como "totalidades expressivas". E isso foi um rompimento com aquilo que Althusser definiu como a essência do "histori­cismo" - bem como de sua imagem refletida no espelho, o economismo.

Resumindo a questão: se Gramsci continua sendo um "historicista", então seu historicismo rompeu com aquilo que os estruturalistas definiram como sendo a essência da problemática do historicismo. É, portanto, um "histor ic ismo" com o qual os estruturalistas são obrigados a se conciliar - a levar em conta, e não simplesmente ignorar. Gramsci é o caso limite do "histor ic ismo" para o marxismo estruturalista.*' Esta questão, longe de estar encerrada, continua sendo um encontro aberto e não concluído, um dos encontros mais importantes no campo da teoria marxista contemporâ­nea. Objetivamente falando, esta é a posição na qual a problemática de Gramsci e a de Althusser e Poulantzas se defrontam. A maneira pela qual Althusser e Poulantzas efetivamente negociaram suas posições pessoais particulares dentro desta conjuntura teórica em diferentes pontos de suas obras é assunto para uma investigação mais detalhada. Existem apenas

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referências esparsas a Gramsci nos primeiros ensaios de Altliusser {A Favor de Marx). Todas essas referências assinalam sua importância geralmente contrastando diretamente com Lukács, o arqui-historicista. Gramsci é "de outra estatura". Este aspecto é reconhecido especificamente em relação à consciência de Gramsci quanto à necessidade de uma "elaboração da es­sência particular dos elementos específicos da superestrutura". A "hege­monia" é também especificamente citada como um novo conceito, uma "solução notável". Nos últ imos ensaios daquela antologia, Althusser come­ça a desenvolver uma teoria da ideologia - primeiro através da distinção ideologia/ciência, depois em termos da "maneira como os homens 'vivem' as relações reais de suas condições de existência" ou como uma "relação imaginária para com as relações reais de existência": aqui a 'ideologia' está sendo "pensada" por Althusser de modo geral sem favorecer a obra de Gramsci . " As "grandes teses sobre filosofia marxista" de Gramsci são uma vez mais identificadas em Lire "Le Capital" como sendo de considerável significado. Gramsci é evidentemente identificado com aqueles teóricos marxistas - Lukács, Luxemburg, Korsch - que contr ibuíram para o desen­volvimento do marxismo como um "humanismo e um historicismo revolu­cionário", afirmando que é "avançando 'os homens' . . . que ao final acabam sempre t r iunfando" (p. 120). Althusser reconhece que um certo apoio para esta interpretação pode ser descoberto na própria obra de Marx. Mas ele insiste em que Marx deve ser interpretado "sintomaticamente", atentando-se para as problemáticas que se modificam de acordo com diferentes perío­dos de sua obra e os "cortes epistemológicos" que diferenciam um perío­do de outro. Todavia, como se poderia prever, é exatamente aí que surgem as maiores críticas feitas a Gramsci. A apreciação de Althusser é cautelosa - para que suas "observações necessariamente esquemáticas não desfigu­rem o espírito desta obra de génio extremamente delicada e su t i l " (p. 126). Ele fazia uma distinção entre a visão "histor icista" de Gramsci do materia­lismo dialético e da função da filosofia no marxismo e suas "descobertas" no campo do materialismo histórico. A distinção leva Althusser a preconi­zar uma "interpretação sintomática" também de Gramsci. Suas afirmações humanistas são "precipuamente críticas e polémicas" (p. 127). A obra so­bre ideologia está positivamente isenta. O aspecto comentado aqui - a atenção de Gramsci para a função da ideologia em "fundamentar e uni f icar" todo um bloco social, preservando sua "unidade ideológica" e seu enraiza­mento da ideologia na superestrutura — leva ao ensaio sobre os À IE e ao Politicai Power and Social Classes, de Poulantzas (1973). Mas a ênfase de Gramsci sobre o aspecto histórico do "materialismo Tíistórico" é compa­rada desfavoravelmente à ênfase de Marx sobre o aspecto materialista. Esta é a essência da crít ica de uma filosofia da praxis: a de que ela promo­ve a fusão do conhecimento e do " rea l " . Assim, o marxismo torna-se não um conhecimento cient í f ico, mas meramente outra das grandes ideologias

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orgânicas.*' A problemática de Gramsci é cortada por mais de uma via: mas quando o historicismo aporta, tudo o mais na argumentação "subme-te-se a sua le i " .

Há ainda um outro aspecto em relação ao tratamento de Gramsci em Lire "Le Capitar'que exige mais um comentário. Em nota de pé de página, Althusser critica o uso que Gramsci faz do conceito de "sociedade c iv i l " , declarando que este devia ser eliminado do vocabulário teórico marxista. Posteriormente, Poulantzas se mostraria ainda mais rigoroso quanto a ele. Mas, como vimos, o conceito de "sociedade c iv i l " á de importância funda­mental para Gramsci - uma questão mais d i f íc i l por causa da ambiguidade de algumas de suas formulações e da dificuldade de localizá-lo com preci­são na topografia estrutura/superestrutura de Gramsci. Verifica-se nesse particular mais do que uma simples discordância. Consequentemente, vale a pena aprofundar um pouco mais essa questão, não apenas em virtude da luz que ela poderia lançar sobre Gramsci, mas pelo que ela revela sobre Althusser e Poulantzas.

Não há mistério quanto à hostilidade com a qual os althusserianos consideram o conceito de "sociedade c iv i l " . * " Este conceito desempenhou um papel proeminente tanto na economia polít ica clássica como na teoria polít ica do século X V I I I , mas de modo mais significativo em Hegel. Todos os três utilizam-no para referir-se à esfera do " individual ismo" burguês por excelência - o terreno do individualismo possessivo, das relações mercantis de contrato entre "simples cidadãos",de "direitos e liberdades" individuais burgueses, acima de tudo o terreno das necessidades económicas e do ho­mem económico per se (homo economicus). Para os economistas polít icos é a arena económica como tal. Hegel o via como aquela "egoíst ica" esfera de particularidade que tinha que ser guindada a uma universalidade mais ampla - a da cidadania polít ica - pelo Estado. Marx frequentemente abor­dava todos os temas propostos por esta problemática. Sua freqiiente crít ica à economia polít ica é a de que esta vê as relações de mercado como a es­sência das relações económicas capitalistas, ignorando por completo a produção da mais-valia: fo i esse conceito que l imitou a economia polít ica clássica, aos olhos de Marx, a seu "aspecto burguês". A "naturalização" do mercado é demolida em algumas das observações mais irónicas de Marx em O Capital sobre uma teoria económica baseada no modelo de Robinson Crusoe. Ele confrontou diretamente o uso que Hegel faz do conceito em, inter alia, a Crítica da Filosofia do Direito de HegeL Marx atacou a no­ção de que a destruição do capitalismo podia ser encarada como uma luta apenas pelos "direitos polít icos burgueses" — em Sobre a Questão Judaica. Em A Ideologia Alemã ainda podemos ver Marx utilizando o conceito, mas agora com um significado próprio mais abrangente:

Esta c o n c e p ç ã o da soc iedade depende de nossa capac idade de e x p o r o processo real de p r o d u ç ã o , c o m e ç a n d o a p a r t i r da p r ó p r i a p r o d u ç ã o mate r ia l da v i d a , e

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de c o m p r e e n d e r a f o r m a de In te rcu rso l igada a esta e cr iada p o r este m o d o de p r o d u ç ã o ( is to é, a soc iedade c iv i l e m t o d o s os seus d i fe ren tes estágios c o m o ba­se para t o d a a h i s t ó r i a ) . * '

Os estruturalistas querem insistir — corretamente, ao que nos parece — que o Marx de O Capita/ abandonara esta problemática. Eles querem eliminá-la do vocabulário teórico marxista porque preservá-la é sustentar, no discurso marxista, os ecos "humanistas" de uma referência á esfera das "necessida­des dos seres humanos".** O marxismo,argumentam os estruturalistas, é uma "teoria sem sujeito". A presença da "sociedade c iv i l " na obra de Gramsci é, portanto, considerada como um indicio impl íc i to deste "humanismo" remanescente (embora esta atribuição não seja, em nossa opinião, susten­tada por nenhum dos usos deste conceito que Gramsci faz. Mas se o con­ceito já não preserva, em Gramsci, seu significado do século X V I I I , a que se refere ele? Tentamos anteriormente dizer como o conceito, para nós, parece funcionar no discurso de Gramsci. Neste ponto queremos indicar por que também gostaríamos de dizer que isso não é incompatível com a problemática de Marx em O Capital, mesmo que Gramsci não use o concei­to exatamente da mesma maneira.

No volume I de O Capital Marx explicitamente avança a economia po­lítica ao insistir em chegar, por trás das relações de troca do mercado, até à "morada ocul ta" da produção capitalista, na qual a mais-valia é gerada e a força de trabalho explorada. Marx evidentemente não elimina por com­pleto o momento das relações de mercado e da " t roca" . Em Grundrisse e também no vol. 1 de O Capital, ele demonstra como o capital se repro­duz um ri tmo crescente e se realiza através do longo circuito da acumula­ção do capital - um r i tmo que exige a articulação entre diferentes "mo­mentos", entre diferentes formas de capital, incluindo a esfera "dependen­t e " da circulação e da troca. Tendo estabelecido o primado da determina­ção da produção sobre todo o circuito do capital, no volume II de O Capi­tal ele retoma as questões-chave da circulação e reprodução. As relações de circulação e troca são também relações capitalistas - necessárias, embora não determinantes. A esfera da troca articula-se com a esfera da produção, não de modo desconexo e for tu i to , mas através de mecanismos específicos. É na esfera da circulação que as mercadorias se tornam "trocáveis" através da "passagem das formas" para a mais abstrata e universal das mercadorias — o bem que tem a capacidade de mediar todas as trocas de bens — o di­nheiro. É através desta "metamorfose" - M - D - M' - que as mercado­rias encontram sua expressão "equivalente" em termos de dinheiro — os preços. Mas é também nesta esfera que o capital aluga a "força de trabalho l ivre", através do mecanismo do mercado de trabalho (isto é, onde o capi­tal compra aquela valiosa mercadoria que precisa fazer trabalhar na produ­ção — a força de trabalho). E ainda nesta esfera que o capital paga ao traba-

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lhador individual os meios para sua subsistência, o custo da reprodução de sua força de trabalho. Ambas estas funções absolutamente vitais para o capital são pagas com o capital - elas são a "parte variável" do capital, produzida pela força de trabalho, que o capital adianta para a reprodução da força de trabalho. Mas esta "parte variável" aparece na esfera da troca (ainda através da mediação do dinheiro) sob a forma de uma relação eco­nómica particular - a relação de salário - o capital sob a " forma de sa­lário". Na medida em que o capitalismo é um modo de produção baseado no "trabalho l ivre", distribuível aos ramos da produção somente através do mercado, e um modo de produção económica no qual o trabalhador é separado dos meios de existência, ele exige uma esfera de troca, embora essa esfera dependa das relações de produção capitalista. As relações de troca são, pois, as "formas fenomenais" das "relações reais" de produção. Marx utiliza frequentemente este argumento em O Capital, mas a referên­cia específica que temos em mente aqui é o capítulo sobre " A Compra e Venda da Força de Trabalho", volume I de O Capital (parte 2 , capítulo V I ) . Marx já não utiliza o termo "sociedade c iv i l " para designar essa fase do circuito do capital, mas certamente pensa sua relação como uma parte das relações económicas do capitalismo, retendo, se não o termo, pelo me­nos o espaço conceituai que este designava.*''

Mas Marx diz várias outras coisas importantes sobre as relações ca­racterísticas desta esfera de circulação e troca. Ele sugere que ela tem a função ideológica de ocultar seus reais fundamentos - a geração e a ex­propriação da mais-valia na produção. A "esfera ruidosa" da troca dissimu­la a "morada ocu l ta" da produção capitalista. É necessário abandonar a primeira e penetrar na segunda para "forçar o segredo da realização dó lucro" (p. 176). Isto ocorre não simplesmente porque a primeira coloca sobre a última o aviso: "Proibido a entrada a não ser a negócios". Um me­canismo ideológico específico está presente. Trata-se do mecanismo de representação ou reapresentação. Pois as trocas do mercado parecem aos agentes envolvidos trocas "livres e equivalentes". Elas parecem trocar "equivalente por equivalente". Assim, se tanto na teoria económica como na "experiência" o trabalhador "v ive" a sua relação para com o capitalis­mo exclusivamente nos termos e categorias com os quais é apresentado na esfera do mercado, a fonte de sua exploração (na produção) se tornará invisível. O trabalhador "v iverá" - experimentará - as relações explora­doras da produção capitalista como se elas fossem "trocas entre equivalen­tes". Se e quando estas "trocas livres" se tornam o objeto da luta de clas­ses, elas obviamente serão restringidas á tentativa de "devolver a sua pró­pria equivalência" relações que na realidade são não-equivalentes, explo­radoras em seus fundamentos. Tais lutas Lênin chamava de "economicis­tas" e Gramsci chamava de "corporativistas" - como dizia Gramsci, elas não "atingem o essencial".

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Mas Marx diz algo mais sobre essa esfera. Dela, diz ele, surgem as principais relações das superestruturas políticas e jurídicas da sociedade burguesa, bem como os temas e discursos ideológicos chave. Esta esfera "é de fato um verdadeiro Paraíso dos direitos inatos do homem. Somente nela governam a Liberdade, a Igualdade, a Propriedade e Bentham". Isto surge precisamente do fato de que essa "esfera ruidosa" é a esfera (depen­dente) da troca individual - e consequentemente a sede e a origem das l i ­berdades políticas e jurídicas, "possessivas e individualistas", da sociedade burguesa (todas baseadas no sujeito individual) e daquelas ideologias indivi­dualistas que caracterizam o "senso c o m u m " burguês. Assim, "Liberdade, porque tanto o comprador como o vendedor de uma mercadoria, digamos força de trabalho, são coagidos [isto parecem ser coagidos] somente por sua livre von tade. . . o acordo a que chegam é apenas a forma pela qual ma­nifestam sua vontade comum. Igualdade, porque cada um entra em relação com o outro, como com um simples possuidor de mercadoria, trocando equivalente por equivalente. Propriedade, porque cada um dispõe apenas daquilo que é seu. E Bentham porque cada um olha somente para si mes­m o " (p. 176). Em suma, para adotar uma frase do próprio Althusser, essa "esfera ruidosa" fornece a base para aquelas práticas e formas ideo­lógicas superestruturais nas quais os homens são forçados a "viver uma re­lação imaginária" de equivalência e individualismo para suas condições reais (não-equivalentes, coletivas) de existência. Esta não á apenas uma das pouquíssimas passagens de O Capital em que Marx assinala explicitamente a articulação entre os níveis económico, polí t ico-jurídico e ideológico de uma formação social. É também o local onde, longe de simplesmente abandonar tudo o que Hegel, Locke e Adam Smith queriam dizer com o termo "sociedade c iv i l " , Marx o adota e, repensando-o, agora no terreno conceituai transformado do capital e seu circuito, elabora um novo concei­to. Ele já não é a sede e a fonte do individualismo. É apenas a esfera indi-vidualizante do circuito das vias do capital para expandir a reprodução. O "individualismo", portanto, não é a origem do sistema - seja de fato ou em teoria. Ele é o que o capital produz como uma de suas "formas fenome­nais" necessárias - um de seus efeitos necessários, mas dependentes. O que mais diferencia a designação de Marx deste novo espaço teórico é seu uso como um conceito para referenciar algumas das complexas relações entre base e superestrutura. Identificar as "formas imediatas" do capital nesse estágio em seu circuito é começar a retraçar aquilo que Gramsci chamava a "passagem" da base para a "complexa esfera das superestrutu­ras".

Althusser por vezes parece estar a ponto de apreender isto, mas recua num momento cr í t ico. Se retivermos o conceito de "sociedade c iv i l " , diz ele, temos que reconhecer que ele não tem nenhuma existência económi­ca, mas é apenas um "efeito combinado de direito e ideologia político-le-

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gal sobre o económico". Esta interpretação não pode ser comparada com a de Marx no capítulo citado anteriormente. Poulantzas compartilha esta in­terpretação de Althusser - novamente identificando este conceito com o nível do jur íd ico-pol í t ico e do ideológico apenas. Mas Marx está demons­trando claramente a acumulação de efeitos - económico, pol í t ico- jur ídi­co, ideológico - nesta instância única.

Gramsci, como já vimos, faz um uso mui to diferente do conceito de "sociedade c iv i l " . Primeiro, sem que seja precisamente o mesmo que Marx esboçou, Gramsci de fato parece estar muito próximo da formulação provisória de Marx; pelo menos no sentido de encarar "sociedade c i v i l " como um conceito que marca o eietto acoplador de base e superestrutura. Mas Gramsci também o emprega num segundo sentido, mais amplo em concepção, menos diretamente atribuível à formulação de Marx em O Capital, e pertencendo de modo menos ambíguo aos conceitos desenvolvi­dos por Gramsci para "pensar" a especificidade da instância polít ica e para articular o conceito de hegemonia. Gramsci faz uma distinção crít ica entre a "dominação" de uma aliança da classe dominante sobre uma formação social mediante força e coerção e a "d i reção" ou liderança de uma tal ali­ança mediante consentimento. Para esse úl t imo momento ele reserva o ter­mo "hegemonia". Esse momento é caracterizado pela capacidade de um bloco dominante ampliar sua esfera de liderança e autoridade sobre a socie­dade como um todo e ativamente ajustar a vida económica, civil e cultu­ral, as instituições educacionais, religiosas e outras ao seu domínio. Muitas destas esferas estão aparentemente longe da autoridade direta do Estado, da sociedade polí t ica e da economia; em seu segundo uso, estas são algu­mas das áreas que Gramsci inclui sob a designação vaga de "sociedade c iv i l " .

Ora, a função da ideologia dominante e dos aparelhos estatais ideo­lógicos em "consolidar e unif icar" uma formação social sob a hegemonia de uma aliança de classe particular é uma questão para a qual Althusser voltou sua atenção <no artigo sobre os A I E . Mas seu desagrado da distinção sociedade civil/Estado leva-o a abandoná-la, declarando ser a distinção pu­ramente legalística sob o capitalismo, e não de importância real. Isto o obriga a designar todos os "aparelhos ideológicos" como aparelhos do Es­tado; Althusser os chama de "aparelhos ideológicos do Estado". Ele argu­menta não ter nenhuma consequência o fato de que alguns desses apa­relhos sejam diretamente organizados pelo Estado, e que outros sejam organizados por particulares, uma vez que todos funcionam "debaixo da ideologia dominante".** Esta definição é tautológica. E também serve para dissimular certas distinções críticas. Existem diferenças entre aparelhos diretamente coordenados pelo Estado e os que não o são. Estas diferenças são importantes - elas afetam a maneira pela qual tais aparelhos funcio­nam, como se articulam com o Estado; podem também fornecer a base de

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significativas contradições internas entre diferentes aparellios dentro do complexo do Estado e do bloco dominante. Por exemplo, no caso da Grã-Bretanha, as funções de imprensa (propriedade privada) e da televisão (indiretamente coordenada pelo Estado) são diferentes por causa de suas diferentes maneiras de inserção; e estas diferenças têm efeitos pertinentes — por exemplo, na maneira pela qual diferentes aspectos da luta de classes são ideologicamente veiculados por cada uma. O papel ideológico da Igreja, por exemplo, difere dependendo de se ela é ou não a base organizacional de uma "religião de Estado" - como fo i revelado claramente pela preocu­pação de Gramsci com o Catolicismo na Itália. A complexa posição dos sindicatos tampouco é resolvida ao se designá-los simplesmente, para todas as finalidades práticas, como "aparelhos de Estado", pois isto dissimula o " t rabalho" que o Estado precisa realizar, e o faz incessantemente, ativa­mente, para hegemonizar as instituições corporativas e defensivas da classe operária. Assim, uma designação por demais apressada dos sindicatos à es­fera do Estado obscurece a questão crít ica da articulação entre capitalismo moderno e democracia social. O mesmo, de um ângulo diferente, poderia ser di to sobre a famíl ia. Os momentos em que as funções para a reprodu­ção do capital e da força de trabalho, até agora executados pela famíl ia como uma instituição "pr ivada" , são tomadas pelo Estado são momentos de transição fundamentais e exigem uma análise cuidadosa. Althusser sem­pre insistiu sobre a necessidade de especificidade como parte da "necessá­ria complexidade" do conceito marxista de totalidade. Mas a oposição ao conceito de "sociedade c iv i l " possui o efeito teórico, no presente caso, de precisamente levar-nos a abandonar a especificidade por uma generaliza­ção muito mais conveniente. Repetindo, Althusser insiste sobre o primado da "análise concreta de uma situação concreta". Mas é o uso que Gramsci faz da distinção entre Estado e sociedade civi l , e entre diferentes momen­tos e tipos de combinação dentro das diferentes formas de hegemonia, que oferece a verdadeira recompensa para a análise de conjunturas específicas.

Identificamos um dos problemas que assediam o ensaio de Althusser sobre os A IE - dissolução da distinção público-privado, absorção demasia­do rápida de todos os aparelhos no terreno do Estado, e tendência para ver as funções de "reprodução" do Estado para o capital como demasiadamen­te não-problemáticas. Um problema de natureza bastante semelhante pode também ser identificado em Politicai Power and Social Classes, de Poulan­tzas, que segue Althusser de perto e que também demonstra uma tendência para absorver tudo sob o guarda-chuva do Estado capitalista. Em um nível mais geral, o fundamental ensaio sobre os A IE parece-nos impensável sem a referência à obra de Gramsci. Todo o problema da ideologia foi repensado com as categorias de Gramsci sempre em mente. A lista de Althusser dos AIE é um empréstimo direto dos Cadernos do Cárcere. A ideologia é pensa da, menos em termos de seu contraste com a ciência, mais em termos de

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seu efeito prático-social na consolidação de um bloco dirigente sob uma ideologia dominante. Esta é uma concepção mui to gramsciana. Althusser define todo o terreno apresentado nesse ensaio como sendo o da "reprodu­ção" - os aparelhos destinados a "reproduzir as relações de produção". Mas não estamos longe da noção de Gramsci de que as superestruturas são destinadas a "ajustar" a sociedade às necessidades a longo prazo de capital. A centralidade dada por Althusser ao sistema educacional como um A I E — com a famí l ia, o par A I E chave, substituindo o par Igreja-família ^ corres­ponde à discussão de Gramsci do papel da escola e do sistema educacional na elaboração desvarias categorias de intelectuais.*' Ambos dão à educação uma posição fundamental na complexa natureza das superestruturas no ca­pitalismo moderno - e posteriormente Poulantzas se apoia basicamente no sistema educacional como um A I E para reproduzir a distinção primordial entre trabalho intelectual e manual.'"' "Gramsci" , reconhece Althusser, "é o único que percorreu alguma distância no caminho que estou t o m a n d o . . . " Infelizmente, "ele não sistematizou suas intuições..." A primeira meta­de do ensaio sobre os A I E poderia ser representada como uma tentativa de levar a cabo esta "sistematização inexistente" de Gramsci. Althusser efetua isso não extrapolando diretamente as " inst i tuições" de Gramsci, mas reco­locando os conceitos de Gramsci no terreno estruturalista mais f irme da "reprodução". Essa recolocação de Gramsci indubitavelmente empresta sistematização e rigor a Gramsci. Por vezes ela também tende a tornar o tra­balho dos A I E em prol do capital menos problemático do que é em Gramsci, com um efeito mais necessário e funcional. E em geral essa perspecti­va centraliza o argumento mais numa "teoria geral" da ideologia, menos na análise de conjunturas históricas particulares. Neste trabalho de transfor­mação e transposição, que Althusser empreende, existem igualmente ga­nhos e perdas. Talvez o ponto de convergência isolado mais significativo entre o Althusser do ensaio sobre os A I E e Gramsci seja a f irme fixação do conceito de " ideologia" nas práticas e estruturas das superestruturas. Gramsci sempre pensa o problema da ideologia desta maneira. Para Althus­ser, ele representa uma mudança de ênfase - mudança esta louvável - em comparação com algumas de suas posições anteriores. Aqui o argumento não é apresentado tanto para provar ou não provar uma linha de descen-, dência teórica direta, ou fabricar " influências" abertas. A questão'é de­monstrar a ínt ima convergência das duas problemáticas. Para colocar a questão metaforicamente, quando a mudança de ênfase com respeito à " ideologia" ocorre na obra de Althusser, Gramsci está claramente, no sen­t ido teórico, "à mão".

Resumindo, diríamos que se o Althusser de Ler "O Capital" eáeA Fa­vor de Marx é sempre respeitoso e positivo em sua apreciação das "brilhantes percepções" de Gramsci, o Althusser de "Os Aparelhos Ideológicos do Estado" trabalha num terreno que em grande parte foi delimitado pela

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primeira vez pelos conceitos de Gramsci, embora seu tratamento do pro­blema difira do de Gramsci no modo da formulação teórica e na direção (muito mais para Lacan e "a constituição do sujeito na ideologia" - o tema da segunda metade do ensaio sobre os A I E ) para a qual aponta um elemento do discurso de Althusser.

V A apropriação estruturalista de Gramsci: Poulantzas

Poulantzas é extensamente focalizado em outro ponto deste volume. Consequentemente, sua relação com Gramsci é tratada aqui de modo mais sumário — principalmente em termos do texto em que esta relação é de importância fundamental. Politicai Power and Social Classes, de Poulantzas. Esta obra objetiva aplicar um quadro marxista-estruturalista derivado de Althusser para desenvolver uma teoria "regional" da instância polít ica e do Estado capitalista. Sua preocupação central, portanto, é com a "relativa autonomia" do político', os tipos de regimes polít icos, a relação entre as classes e o Estado e questões concernentes à hegemonia e à ideologia do­minante. Estas são, obviamente, as matrizes de problemas para as quais também se volta a obra de Gramsci. Assim, por exemplo, Poulantzas abor­da a distinção entre as "classes fundamentais" e as diferentes alianças de classe que dominam o Estado - uma distinção também elaborada por Gramsci."" Ambos o fazem apoiados amplamente na análise de Marx sobre a Grã-Bretanha e em O 18 Brumário e Lutas de Classes na França (alguns dos pouquíssimos textos de Marx que Gramsci pôde citar e lembrar em detalhe na prisão). Poulantzas é o primeiro teórico marxista depois de Lênin e Gramsci a conferir ao conceito "hegemonia" uma posição funda­mental em sua teoria do Estado. Ele também compartilha com Gramsci (e, como argumentamos, com o Althusser posterior) uma preocupação com a função "consolidadora" da ideologia dominante numa formação social.

As muitas sobreposições e convergências, portanto, são claras. Eviden­temente, como nota Poulantzas, a teorização de Gramsci é muito menos sistemática do que a dele. Gramsci nunca faz aquilo que Poulantzas cha­ma de pleno avanço à teoria da "causalidade estrutural". (Para Althusser, isto significa o abandono da noção de uma cadeia causal e a tentativa de "pensar" a relação entre os diferentes níveis de uma formação social em termos de "uma causa imanente em seus efeitos no sentido spinoziano do t e r m o . . . Toda a existência de uma estrutura consiste em seus efeitos" {Reading Capital, p. 189) . Poulantzas define-a como a necessidade de teorizar "a autonomia específica de instâncias do modo de pro­dução capitalista" {Politicai Power and Social Classes, p. 139 ) . É evidente que Gramsci nunca utiliza esta linguagem "estruturalista". Ele não pensa uma formação social nos termos formais de relações entre "instâncias espe-

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cificamente autónomas". Por isso ele não tem uma teoria desenvolvida das diferentes regiões de uma formação social, e portanto das teorias apro­priadas para cada uma delas como teorias "regionais".''^ Mas ele insiste, em todos os seus textos, sobre a "autonomia relativa", a efetividade específi­ca, do pol í t ico e do ideológico; e opõe-se com vigor a todas as formas de reducionismo das superestruturas à base, seja do t ipo expressivo, econo­mista ou espontaneísta. Gramsci também, em Cadernos do Cárcere -como Poulantzas em Politicai Power — dá ampla atenção á polít ica e ao Estado. Por isso é di f íc i l pensar sobre a estrutura teórica do livro de Pou­lantzas, a não ser em relação ao campo para cuja abertura Gramsci contri­buiu decisivamente, mesmo quando se admite que a maneira de Poulant­zas teorizar essa área não é gramsciana, mas de caráter rigorosamente althus-seriano, sendo que sua expressão é de inspiração rigorosamente leninista. O problema, portanto, é que Poulantzas é sempre muito menos simpático a Gramsci do que o é Althusser: muito menos generoso em reconhecer seu débito teórico. Seu ataque ao "histor ic ismo" de Gramsci é muito mais purista do que o ataque de Althusser.'' ' E se alonga em detalhes para des­vincular sua obra de qualquer contaminação gramsciana.

Algumas destas distinções são autênticas e frutíferas. Outras são dis­tinções sem diferenças teóricas reais. Um exemplo das primeiras é o debate sobre "cesarismo" e "bonapart ismo" (isto é ainda muito mais desenvolvi­do no posterior estudo de Poulantzas, Fascism and Dictatorship). Estes são os termos empregados por Gramsci quando ele discute tipos diferentes de resolução polít ica para momentos de crise e ruptura - resoluções não he­gemónicas ou formas "excepcionais" do Estado capitalista. Gramsci os de­fine de maneira um tanto inconsistente; Poulantzas, corretamente, submete-os a um escrutínio mais sistemático. Poulantzas argumenta que o conceito gramsciano de "cesarismo" refere-se àquele momento excepcio­nal em que nenhuma das classes fundamentais consegue governar — quan­do há um equil íbrio de poder, um impasse. O fascismo, contudo, não é o resultado de um impasse entre classes, muito embora, sob o fascismo, o Estado capitalista de fato apresente certas características de "autonomia" que Gramsci identificava com uma "solução cesarista".''* Isto permite a Poulantzas distinguir entre tipos diferentes do Estado de exceção com mais cuidado do que Gramsci. Trata-se, portanto, de uma distinção úti l e produ­tiva.

O caso é bem outro no que tange à "hegemonia". ' " Poulantzas diz ut i ­lizar "hegemonia" para referir-se à "maneira pela qual um bloco no poder composto de várias classes ou frações politicamente dominantes pode funcionar". E ele distingue este conceito da maneira como Gramsci o ut i ­liza. Esta distinção parece ser falsa: decididamente, esta é uma das manei­ras segundo a qual Gramsci utiliza o conceito. Poulantzas faz objeçõesao fato de que Gramsci também utiliza "hegemonia" para referir-se às estraté-

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glas das classes dominadas. Ora, essa questão de se uma classe que não de­tém o poder do Estado pode ser "hegemónica" apresentou anteriormente problemas para o uso da obra de Gramsci. Em sua famosa troca de ideias com Anderson, E.P. Thompson também questionou esta utilização do con­ceito - adotando no caso paradoxalmente a posição de Poulantzas. Mas a questão fo i colocada de forma mais urgente e prática pela estratégia global do Partido Comunista Italiano e seu objetivo de conceber uma "hegemo­n ia " social - por exemplo, através do "Compromisso Histór ico" com a Democracia Cristã — antes de assumir o poder do Estado: uma estratégia para cuja construção, além do mais, o nome de Gramsci tem sido constan­temente invocado. Se qualquer destas aplicações pode realmente ser san­cionada com referência á obra de Gramsci, é uma questão aberta. Mas é certo que, em sua delicada distinção entre uma "guerra de movimento" (um assalto frontal ao poder estatal) e uma "guerra de posição" (a ocupa­ção e infiltração das trincheiras e fortificações da sociedade civi l) , Gramsci de fato considera o partido da classe operária como, pelo menos, um parti­do que exige uma "estratégia económica". '* Poulantzas, contudo, argu­menta, como Lênin, que as classes dominadas "não podem conquistar o domínio ideológico antes de conquistar o poder po l í t i co " (p. 204). A d i f i ­culdade é que Poulantzas não se contenta em reafirmar esta posição leni­nista mais clássica. Ele vai mais além ao atribuir o que considera um erro de Gramsci ao historicismo de Gramsci. Apesar de, diz ele, a problemática de Gramsci "ser á primeira vista oposta à tese de Lukács" - o proletaria­do ascendente como uma classe-sujeito, o portador de uma "visão do mundo" universal. Isto parece derrubar as muitas diferenças reais e concre­tas entre Gramsci e Lukács. Como o próprio Poulantzas reconhece em ou­tras ocasiões, Gramsci de fato aborda teoricamente a " rup tu ra " entre uma ideologia dominan te . . . e a classe politicamente d o m i n a n t e " . " De fato, essa atenção às " rupturas" é que fundamenta, teoricamente, a atenção de Gramsci à especificidade do pol í t ico e sua recusa em tolerar qualquer re­dução ou simples identidade entre base e superestrutura. Este é o terreno de uma importante e irreversível diferença teórica entre Gramsci e Lukács. Poulantzas fo i levado, por sua premência em atacar o "histor ic ismo" em todos os seus aspectos, a reduzir esta diferença — e assim a dar uma im­pressão distorcida da contribuição teórica característica de Gramsci.

Não se trata de uma visão lukácsiana de classes-sujeitos e visões do mundo imputadas. Trata-se de um conceito ampliado de hegemonia. Gramsci realmente usa, como tentamos demonstrar, o conceito de "hege­monia" num sentido amplo e abrangente. Ele o util iza - embora "não teoricamente" - para tratar de uma questão de suma importância na teoria marxista: a questão dos meios complexos e frequentemente indiretos pelos quais todo o tecido da sociedade capitalista - frequentemente por meio daquilo que Althusser chamou uma "harmonia às vezes incompleta" '* - é

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levado a conformar-se às necessidades a longo prazo do capital. Como já argumentamos, esta é a maneira de Gramsci abrir a questão que Althusser colocou em termos de "reprodução". Como também assinalamos, no mo­mento em que Althusser avança para esta questão, ele é obrigado a reconhe­cer toda a importância de Gramsci. Poulantzas utiliza uma definição mais restrita de "hegemonia". Ele tende a limitá-la ao terreno do político e do ideológico na medida em que ela f lu i do pol í t ico e do Estado. É esse trata­mento mais restrito, aliado à compulsão de atacar o "histor ic ismo", que produz sua "interpretação errónea" da problemática de Gramsci. ' '

Isso estabelece, então, uma conexão com certas outras características da obra de Poulantzas em geral. Sua tendência para "superpolit izar" os problemas atinentes leva-o a negligenciar o uso que Gramsci faz do concei­to "sociedade c iv i l " (também negligenciado nesse caso como "historicis­t a " ; ver as discussões anteriores sobre esse ponto). E isso, por sua vez, tende a levar Poulantzas (como argumentamos, também levou Althusser) a colo­car tudo no terreno do Estado. (Dizemos isto ao mesmo tempo em que reconhecemos plenamente a grande contribuição de Poulantzas para nossa conceitualização do Estado capitalista.) É possível que isto tenha algo a ver com outro aspecto da obra de Poulantzas neste livro: um certo "funciona­l ismo" em sua maneira de tratar o Estado e a ideologia. Quando Althusser expós-se ao mesmo problema, ele tentou remediá-lo ao invocar a " luta de classes"; mas no ensaio sobre os A I E , ele o faz principalmente em notas de pé de página, à parte e no pós-escrito, não estando tecido no centro da pro­blemática de seu texto. O apelo à " luta de classes" tem uma função muito mais central na obra de Poulantzas - ela é invocada em toda a parte de ma­neira generalizada. Mas permanece um sentido no qual ela está presente no discurso de Poulantzas de maneira (para empregar um metáfora althusse-riana) mais gestual do que teórica. Ora, embora o próprio termo nem sem­pre esteja presente no texto de Gramsci, seu conceito nunca está ausente. Para Gramsci não existe nenhum estado ou momento de "hegemonia" que não seja contestado; nenhum que não seja o resultado das alianças da classe dominante controlando a luta de classes; nenhuma "hegemonia" que não tenha que ser conquistada, assegurada, constantemente defendida. E isso acontece mesmo quando o palco da luta de classes esteja aparentemente muito distante do terreno do económico e do confronto direto entre as classes fundamentais, É algo desse género que leva Gramsci a falar da ne­cessidade de uma prática hegemónica exercida mesmo pelas organizações políticas das classes dominadas; o que o leva a identificar a luta contínife pela "hegemonia" mesmo quando o proletariado só pode lutar em terreno desfavorável - na "guerra de posição". Ele pode, então, estar errado ao falar da "hegemonia" das classes dominadas - estritamente falando, em seus próprios termos, trata-se de um conceito contraditório. Mas não está errado ao empregar o conceito "hegemonia" neste sentido ampliado, ou

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encará-lo como uma luta para conquistar as classes dominadas, na qual qualquer "resolução" envolve tanto limites (compromissos) como contra­dições sistemáticas. Poulantzas de fato tende a tratar "hegemonia" como uma "efetividade func ional" da dominação da aliança de classes no poder -isto é, a tratá-la de modo não problemático. Disto Gramsci jamais é culpado.

Daf, enquanto para Poulantzas a "hegemonia" se apresenta como um aspecto mais ou menos garantido da dominação do Estado capitalista por uma aliança da classe dominante, Gramsci tende a tratar o conceito de uma maneira mais contestada, mais conjunturalmente localizada. Para Gramsci, as classes porfem "governar" durante longos períodos sem serem "hegemó­nicas": o exemplo da Itália fo i capital neste caso. Pode haver "crises de he­gemonia" que não resultem num colapso do sistema. Pode haver mudanças no t ipo de hegemonia - momentos em que a "coerção" se afasta do "con­sentimento", ou vice-versa. De fato, essa distinção a mais que Gramsci traça entre formas "hegemónicas" e "não-hegemónicas" de dominação permi-te-nos de modo mais preciso periodizar concretamente momentos e for­mas diferentes do Estado capitalista e diferentes fases em qualquer uma das formas. Isto nos leva diretamente ao que Gramsci concebeu como cons­t i tu indo, por excelência, a especificidade da teoria marxista da política: a análise de conjunturas particulares, de momentos particulares de "hege­monia" e das relações das forças de classe que mantêm um t ipo de "equi­l íbr io instável" ou provocam uma ruptura nele. Também levou-o a conside­rar a natureza dos "compromissos" que permitem a um bloco dominante consolidar seu governo ao conquistar classes subalternas para o seu lado; e examinar não apenas qualquer "equi l íbr io de forças" particular, mas ainda o que a tendência predominante em tal equil íbrio consistia - oferecendo um terreno favorável ou desfavorável para a luta de classes, definindo assim a estratégia para o partido do proletariado. Longe disto constituir, para to­dos os propósitos práticos, uma perspectiva lukácsiana, com a atribuição de uma forma particular de "consciência de classe" a uma classe-sujeito in­diferenciada, os conceitos de Gramsci aqui parecem apontar diretamente para o terreno de Lênin: a "análise concreta de situações concretas". Sua aplicação na análise de toda uma variedade de conjunturas políticas pare­ce-nos rica em promessas - e mal começou.

Contudo, não é surpreendente — considerando o que argumentamos — constatar que Poulantzas também discorda da distinção que Gramsci faz entre "hegemonia" e "dominação", atacando Gramsci por este reservar o termo "hegemonia" para aqueles momentos em que o consentimento pre­valece sobre a coerção. Poulantzas faz objeções a esta distinção - funda­mental para Gramsci (preso ás dicotomias coerção/consenso, dominação/ direção, e t c ) . Ele critica Gramsci por dizer que existe sempre uma "com­plementaridade" entre aqueles dois elementos de poder pol í t ico ou estatal. O Estado, argumenta ele — em acréscimo — não pode ser "hegemónico";

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somente as classes dominantes podem ser "hegemónicas". Com respeito à primeira objeção, só podemos dizer que existe uma complementaridade entre coerção e consenso, e a distinção é f rut í fera. E notamos como o pró­prio Althusser considerou-a út i l quando, no artigo sobre os A I E , ele de­monstrou como os aparelhos de consenso também funcionam por coerção (por exemplo, a censura dos meios de comunicação) e os aparelhos de co­erção exigem consenso (a preocupação da polícia com sua imagem pública). Com respeito à segunda objeção, parece verdadeiro que o Estado como tal não pode ser "hegemónico". Mas o Estado desempenha uma função crucial em elevar a dominação de uma aliança de classe particular sobre uma for­mação social ao nível do consenso. Isto capta com precisão o conceito de como o Estado funciona para manter a "hegemonia" ao conquistar, assegu­rar e consolidar o "consenso" das classes dominadas. Esse também é o con­ceito de Marx do Estado como o ponto de "universalização" - a legitima­ção do governo de classe, o torná-lo invisível, ao dar a forma do "interesse geral" ao que são na realidade os interesses de frações de classe particulares. O próprio Poulantzas explorou e desenvolveu fecundamente este argumen­t o . ^ Mas reduzindo os dois "pó los" do poder do Estado - coerção e con­senso - e restringindo a "hegemonia" exclusivamente ás classes dominan­tes, Poulantzas parece negligenciar aquilo que em outos pontos ele tem dificuldade em acentuar: a saber, por que o Estado capitalista, baseado no sufrágio universal, é por excelência o lugar necessário para a generalização da dominação de classe. Assim, em sua pressa em se distinguir de Gramsci, Poulantzas parece negligenciar argumentos, implícitos em Gramsci e em geral bem desenvolvidos, que na verdade apoiam sua própria posição teóri­ca. É certo que Poulantzas reconhece a importância do "consenso" para a normalização da dominação no Estado capitalista, mas às vezes ele parece considerá-lo uma coisa automática. O tratamento que Gramsci dá ao pro­blema do Estado capitalista como, acima de tudo, um exercício na conquis­ta e manutenção do consenso dos dominados à sua própria dominação não nos permite nem por um momento negligenciar esse aspecto central da luta de classes e do poder do Estado. É certamente verdade que, como argu­menta Poulantzas, as "percepções" de Gramsci são provisórias e não siste­máticas. Althusser chama-as de "bri lhantes" - repetindo o termo que Marx aplicou a um ensaio inicial de Engels que o influenciara grandemente; a referência de Althusser pode ser encarada como um reconhecimento implí­ci to de um débito teórico.*' Poulantzas e Gramsci exibem aqui forças - e fraquezas - opostas. O que Gramsci perde ao nível da teorização sistemá­tica, ele ganha ao nível da análise conjuntural. O que Poulantzas ganha com seu rigor teórico, ele perde ao nível do específico e do concreto - a fonte de seu funcionalismo residual. As referências de Gramsci às lutas de classe e a conjunturas específicas — e o movimento entre conjunturas — são sem­pre detalhadas, i luminando formações sociais particulares. Poulantzas ten-

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de a recorrer a conjunturas particulares "em forma de ilustração" (pelo menos nesse livro) e a se sentir melhor quando trata de aspectos e funções sistemáticas, menos afinado com "momentos nas relações de força" . Gos­taríamos de dizer que os conceitos de Gramsci sempre conjunturais -não há funções "gerais" ou conceitos "gerais". Isto é ao mesmo tempo uma força e uma fraqueza. Poulantzas possui uma teoria de regiões mais desenvolvida - de instâncias regionais e da autonomia específica de níveis de uma formação social. Gramsci trabalha com um conceito de estrutura-superestrutura fundido ou acoplado. Poulantzas é certamente mais claro, mais rigoroso. Gramsci é mais dinâmico, menos f ixo na forma de uma combinatória de instâncias.

Não se trata, portanto, de uma questão direta de uma escolha teórica entre Gramsci e Poulantzas. Se, como argumentamos, Gramsci constitui algo como o caso limite para os marxistas estruturalistas, este encontro teórico é incompleto, como os Essays in Self-Criticism de Althusser revelam de maneira claríssima. O problema é que Poulantzas tende a fechar este debate teórico. E ele assim o faz através do mecanismo — somos quase tentados a chamá-lo de compu lsão-de não apenas atacar o "histor ic ismo", mas de reduzir todos os "historicismos" à figura de um único Inimigo, ge­ral e teórico; reduzi-los todos a seus elementos "historicistas", a sua lógica, para depois atacar a problemática historicista onde e quando ela surge. É isso que leva Poulantzas a superexagerar suas diferenças com Gramsci e, assim, a simplificar a natureza do marxismo de Gramsci.

A consequência desse procedimento reducionista, e do "p l i r i smo" teó­rico que o informa, é que ele deixa Poulantzas numa posição em que este não está livre para reconhecer seu débito intelectual e teórico para com Gramsci. Poulantzas apresenta Gramsci como uma figura mais reduzida do que o faz seu grande mentor, Althusseí. Nesse sentido, ele é mais althusse-riano do que Althusser. Esta tendência é discernível em outros textos -por exemplo, na "or todoxia althusseriana" mais mecânica do capítulo inicial de Poder Político e Classes Sociais. É particularmente di f íc i l susten­tar essa ortodoxia uma vez que o próprio Althusser insiste em reexaminar e redefinir constantemente sua própria posição - sempre, é claro, com seu t ipo pessoal de certeza polémica. De um modo geral, há um agudo contras­te entre Poulantzas e Althusser na maneira pela qual eles "apropr iaram" Gramsci. Nesse exercício, fo i Althusser quem mais se aproximou de dar o devido reconhecimento à complexidade necessária da obra de Gramsci. O fato de Gramsci ter sobrevivido a essa apropriação, conservando sua posi­ção independente, é um testemunho de sua permanente estatura como teó­rico e militante marxista.

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V I Conclusão

Este artigo empreendeu duas tarefas que, esperamos, contribuirão para a atual e ampla discussão de Gramsci. Em primeiro lugar, fo i explicado como o conceito " ideologia" relaciona-se e é apreendido na matriz teórica de Cadernos do Cárcere. Em segundo lugar, a ideia de que Gramsci era um his­toricista no sentido forte e simples foi rejeitada. A questão de se ele era um historicista, e até que ponto, levanta em qualquer sentido tantos problemas acerca da extensão do conceito de historicismo quanto acerca de Gramsci.

Argumentamos, com respeito â primeira tarefa, que não existe uma teoria "óbv ia " da ideologia na obra de Gramsci. Muito embora esta teoria possa ser construída a partir de seu "estado prát ico" nos Cadernos, o con­ceito somente se torna significativo na medida em que ele se subordina ao corpo de conceitos geral e politicamente inspirado de Gramsci. No centro deste corpo estão as noções de "hegemonia", "senso c o m u m " e os " inte­lectuais". Ora, para Gramsci esses conceitos existem para que se possa examinar conjunturas históricas específicas; ou, para falarmos em termos mais polít icos, para analisar o equil íbrio de forças dentro de conjunturas específicas. Trata-se, portanto, de conceitos de materialismo histórico. Consequentemente, não surpreende que Gramsci se preocupe mais com ideologias específicas do que com a questão da ideologia em geral. Isso não quer dizer que os conceitos de ideologia ou hegemonia não sejam conceitos gerais que podem ser definidos em nível geral (se — para Gramsci - eles têm valor l imitado naquele nível). Contudo, isto é o mesmo que in­sistir que ele não se refere a entidades gerais. A ideologia em geral não é, para Gramsci, um objeto legítimo de exame. E já que ele não aceita uma divisão entre o marxismo como ciência histórica e como filosofia (materia­lismo dialético),*^ a ideologia em geral não poderia ser reconhecida como um objeto legítimo para o marxismo. Consequentemente, embora Gramsci não possa ser encarado como um relativista em relação à condição da teo­ria (os conceitos não são inteiramente redutíveis às situações históricas às quais se referem), é certamente verdadeiro que o marxismo, para Gramsci, é de uma só vez e ao mesmo tempo uma teoria filosófica e histórica de fenómenos específicos, e somente específicos. A ideologia não é exceção.

Também argumentamos neste artigo que Althusser e Poulantzas, apesar de suas críticas às formas historicistas do marxismo (e Gramsci é aí incluído), têm maior débito teórico para com Gramsci do que eles (Pou­lantzas em particular) estão dispostos a admitir. Isto é especialmente ver­dadeiro no que diz respeito a questões referentes ao papel e à autonomia relativa da polít ica e do Estado. A relação de teóricos tais como Althusser para com o "histor ic ismo" complexo de Gramsci torna-se complexa quan­do consideramos as proposições apresentadas na recente-4tyfocr/'r/ca de Al ­thusser. Em vista disto, concluímos este artigo com um esboço desta posi-

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ção. Dissemos que Gramsci não se "a justa" bem ao critério historicista. Se, á luz da Autocrítica, este critério parece menos sólido do que acredi-tou-se antes, então a obra de Gramsci não somente escapa a uma conde­nação sumária das hostes anti-historicistas; ela pode ser recolocada numa posição central em discussões sérias daquelas questões teóricas do marxis­mo que continuam inadequadamente tratadas.

A crí t ica do historicismo fo i em grande parte baseada nos argumentos de Lire "Le Capital".^ Para os nossos propósitos, o mais importante desses argumentos é a afirmação de que o marxismo oferece uma epistemo­logia científ ica e única; uma epistemologia que separa em definit ivo o mar­xismo de qualquer forma de empirismo ou idealismo. O historicismo obvia­mente contém elementos de ambos. Se o caráter cient í f ico do marxismo pode ser demonstrado em termos teóricos gerais, seguir-se-ia que todas as formas ou elementos de historicismo nada têm que ver com o marxismo. Deve ficar expl íci to aqui que tal argumento fundamenta-se na noção de que a filosofia marxista é a única capaz de fazer tais distinções de cien­t i f icidade. O materialismo histórico, ao contrário, tem objetivo bem dife­rente: a análise de conjunturas concretas. (Alguns dos outros problemas de Lire "Le Capitai" estão indicados em outra parte desta coletânea, sendo portanto omitidos aqui.)

A autocrít ica de Althusser rejeita a ideia de uma filosofia científ ica. Ele reafirma a posição, implíci ta num marxismo mais " o r t o d o x o " e explí­cita em Gramsci, segundo a qual não existe ciência em geral nem uma dis­ciplina como filosofia na medida em que esta últ ima afirma ser o fiador ló­gico da "Ciência". Althusser argumenta que, apesar das afirmações em Lire "Le Capitai" no sentido contrário, um procedimento desse t ipo não pode escapar aos "problemas de conhecimento" (burgueses). Ora, no texto an­terior, a ideologia (em geral) é definida em oposição lógica à ciência (em geral). Contra esta posição "especulativa", Althusser sustenta agora que a ciência deve ser entendida como " o mínimo de generalidade necessário para poder apreender um objeto concreto".** Essa generalidade concei­tuai, além do mais, deve ser situada dentro do materialismo histórico.*' Se a autocrítica de Althusser está correta, então o divórcio generalizado entre ciência e ideologia como uma proposição epistemológica deixa de ser um princípio do marxismo, e com sua morte caem os argumentos que lhe são dependentes. Pelo menos uma parte do argumento contra o historicis­mo situa-se nesta categoria. Pois o historicismo implica uma oposição à separação entre materialismo dialético e histórico, concentrando-se sim­plesmente na redução dos conteúdos de teorias e ideologias à "expressão" de suas condições e seus efeitos históricos - aspectos que fatalmente cai­riam no eixo do marxismo fi losófico. Seria, então, o caso de que os histori­cistas estão, no final das contas, corretos?

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Felizmente, as coisas raramente são tão simples assim, e os debates teóricos não são exceção. Defendendo o que consideramos os conceitos fundamentais de Gramsci, não queremos dizer que a crít ica de historicismo está equivocada. Nem estamos sugerindo que não possa haver uma volta a uma interpretação " inocente" de Gramsci à luz da intervenção estrutura­lista. Em vez disso, argumentamos que isto envolve um perigo de classificar conceitos genuínos de materialismo histórico sob aquela categoria genera­lizada. Existe, portanto, uma necessidade de reexaminar, por exemplo, a ideia de que há uma equivalência teórica entre reduzir teorias e ideologias às suas condições históricas de existência e relacionar teorias e ideologias a tais condições. A segunda possibilidade, parece-nos, é uma proposição do marxismo; a primeira, não. Igualmente, o próprio Althusser opôs-se de modo intransigente ao historicismo, ao empirismo e ao idealismo, e quanto a isso o problema não é de fácil solução. De modo específico, z Autocríti­ca implica uma rejeição de apenas alguns dos aspectos da problemática ge­rada em Lire "Le Capital". Na verdade, pode-se argumentar de maneira plausível que a posição mais recente é internamente inconsistente (ou pelo menos é uma obra "de transição", à espera de tratamento mais conjpleto) e que, em consequência, uma teoria unicamente marxista do conhecimento e da ideologia em geral ainda é uma necessidade. É certo que a filosofia continua desempenhando, para Althusser, uma função teórica especial (ainda que rebaixada) em relação às ciências.

Estas importantes questões não podem ser apreciadas aqui. O que podemos afirmar é que ainda estão por ser feitos progressos no domí­

nio da autodefinição do marxismo. Quaisquer que sejam os problemas pre­sentes na perspectiva teórica de Althusser, sua afirmativa de que os concei­tos da ciência e da ideologia devem ser incluídos no materialismo histórico e não na filosofia não pode ser facilmente rejeitada. Trata-se de uma afir­mativa feita de maneira consistente e persuasiva por Gramsci na elaboração de seus conceitos científicos (em oposição aos filosóficos). Trata-se de uma contribuição que devemos reconhecer abertamente.

Este ensaio fo i impresso antes da publicação do longo estudo de Perry Anderson sobre Gramsci na New Left Review, 100. Não houve, portanto, oportunidade de incluir qualquer exame da interpretação de Anderson neste ensaio.

NOTAS

1. G r a m s c i , 1 9 7 1 , p. 3 7 6 . 2. 1 9 7 1 , p. 164 -5 . 3. 1 9 7 1 , p. 1 6 4 .

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4 . 1 9 7 1 , p. 6 0 . 5. 1 9 7 1 , p. 177 .

6. S e g u n d o N o r b e t o B o b b i o {Gramsci e la Concezione delia Società 'Civile', Fe l -t r i n e l l i , 1 9 7 1 ) , o uso que Grannsci faz de " sbc iedade c i v i l " marca u m c o r t e rad i ­cal c o m a t r a d i ç ã o m a r x i s t a . E n q u a n t o M a r x usa o t e r m o para designar " t o d o o c o m p l e x o das cond i ções mater ia is de v i d a " ( is to é, c o m o u m aspecto da base), Gramsc i m a n t é m a " soc iedade c i v i l " na s u p e r e s t r u t u r a . C o m base nessa in ter ­p r e t a ç ã o , B o b b i o faz u m a l e i t u r a dos " C a d e r n o s " e m q u e a d e t e r m i n a ç ã b da base sobre a s u p e r e s t r u t u r a é i n v e r t i d a , e as cond i ções " o b j e t i v a s " são t rans fo r ­madas e m i n s t r u m e n t o s po tenc ia i s da s u b j e t i v i d a d e de classe. A f r a q u e z a da in ­t e r p r e t a ç ã o se t o r n a ev iden te q u a n d o ele i d e n t i f i c a o uso a n a l í t i c o q u e Gramsc i faz de " s o c i e d a d e c i v i l " na sua o b r a h i s tó r i ca c o m o s i m p l e s m e n t e u m m e i o de i d e n t i f i c a r os b locos " p r o g r e s s i s t a " e " r e a c i o n á r i o " . B o b b i o está t e n t a n d o reco­locar Gramsc i n o m o d e l o h i s t o r i c i s t a , e consegue t o r n a r seus escr i tos bas tante se­me lhan tes aos de Lukács .

7. G r a m s c i , 1 9 7 1 , p. 12. 8. 1 9 7 1 , p. 5 2 . 9. 1 9 7 1 , p. 2 0 8 .

10. 1 9 7 1 , p. 2 6 5 . 1 1 . 1 9 7 1 , p. 1 8 1 . 12 . 1 9 7 1 , p. 139 . 13. 1 9 7 1 , p. 3 2 8 . 14 . 1 9 7 1 , pp . 3 7 6 - 7 . 15. M a r x , 1 9 7 0 , p. 6 4 . 16. 1 9 7 1 , p. 7 8 . 17 . 1 9 7 1 , p. 8 3 .

18 . Car l Boggs ( 1 9 7 6 ) t e n d e a fazer ambas as coisas. E m sua t e n t a t i v a de re fu ta r o e c o n o m i s m o da I I I n t e r n a c i o n a l , ele r e p r o d u z o o u t r o lado da mesma p r o b l e m á ­t i c a , is to é, o " h i s t o r i c i s m o " . Por e x e m p l o , sua e x p l i c a ç ã o da h e g e m o n i a é e m t e r m o s de " p e r m e a ç ã o " dos sistemas de va lo res : " H e g e m o n i a nesse s e n t i d o p o d e ser d e f i n i d a c o m o u m ' p r i n c í p i o o r g a n i z a d o r ' o u 'v isão de m u n d o ' . . . d i f u n d i d o p o r órgãos de c o n t r o l e i d e o l ó g i c o e soc ia l ização e m cada área da v i d a . " O c o n ­ce i t o de h e g e m o n i a de Gramsc i é, p o r t a n t o , r e d u z i d o a u m m o d e l o marcuseano de c o n t r o l e soc ia l . Charles W o o i f s o n ( 1 9 7 6 ) , e m seu a r t i g o " S e m i o t i c s o f W o r k -ing-Class S p e e c h " , d i z c l a r a m e n t e q u e " t o d a h e g e m o n i a n u m a soc iedade de clas­ses é necessar iamente l i m i t a d a e i n c o m p l e t a , e ex is te e m t e n s ã o " ; c o n t u d o , ele m i s t u r a h e g e m o n i a c o m d o m i n a ç ã o ideo lóg ica e s u b o r d i n a ç ã o .

19. 1 9 7 1 , p. 1 6 1 . 2 0 . 1 9 7 1 , p. 5 7 . 2 1 . 1 9 7 1 , p. 4 4 2 . 2 2 . 1 9 7 1 , p. 3 5 7 .

2 3 . Isso se t o r n a p a r t i c u l a r m e n t e ev iden te q u a n d o se lê as " C a r t a s da P r i s ã o " , de Gramsc i {Letters from Prison, N e w E d i n b u r g h R e v i e w Spec ia l E d i t i o n s , 1 9 7 4 ) .

2 4 . 1 9 7 1 , p. 3 4 8 . 2 5 . 1 9 7 1 , p. 3 2 4 . 2 6 . 1 9 7 1 . p. 3 5 5 . 27 . 1 9 7 1 , p. 4 2 0 . 28 . 1 9 7 1 , p. 3 2 5 . 29 . 1 9 7 1 , p. 3 3 3 . 3 0 . 1 9 7 1 , p p . 14 -15 . 3 1 . 1 9 7 1 , p. 4 0 8 . 3 2 . 1 9 7 1 , p. 12.

P O L I T I C A E I D E O L O G I A 97

3 3 . 1 9 7 1 , p. 2 5 8 . 3 4 . 1 9 7 1 , p. 2 7 5 - 6 . 3 5 . 1 9 7 1 , p. 2 3 8 . 3 6 . 1 9 7 1 , p. 5 7 . 3 7 . 1 9 7 1 , p. 3 3 1 . 3 8 . 1 9 7 1 , p. 3 3 9 . 3 9 . 1 9 7 1 , p. 1 9 8 . 4 0 . 1 9 7 1 , p. 3 3 1 . 4 1 . 1 9 7 1 , pp . 2 7 2 - 3 . 4 2 . 1 9 7 1 , p. 1 6 5 . 4 3 . 1 9 7 1 , p. 1 9 7 , p. 3 3 1 . 4 4 . 1 9 7 1 , p. 3 2 8 . 4 5 . 1 9 7 1 , p. 3 7 7 . 4 6 . 1 9 7 1 , p. 1 5 2 . 4 7 . 1 9 7 1 , pp . 152-3 . 4 8 . 1 9 7 1 , p. 4 0 3 . 4 9 . 1 9 7 1 , pp . 4 4 5 - 6 . 50 . 1 9 7 1 , p. 4 0 5 . 5 1 . 1 9 7 1 , p. 4 1 7 . 52 . 1 9 7 1 , p. 4 0 7 . 5 3 . 1 9 7 1 , pp . 4 3 2 - 4 0 . 5 4 . 1 9 7 1 , p p . 4 4 6 - 7 . 5 5 . 1 9 7 1 , p. 4 0 3 . 5 6 . 1 9 7 1 , p. 3 7 6 .

5 7 . T o d o o a r t i go de A l t h u s s e r " C o n t r a d i ç ã o e S u p e r d e t e r m i n a ç ã o " é re levante

q u a n t o a Isso. 58 . Ver , espec ia lmente , a seção i n t i t u l a d a " A n a l y s i s o f S i t u a t i o n s , Re la t i ons o f

F o r c e " , n o ensaio " T h e M o d e r n P r i n c e " , Prison Notebooks, pp . 1 7 5 - 8 5 . 5 9 . C a p í t u l o 5 de Lire "Le Capital". 6 0 . " I d e o l o g y a n d Ideo log ica l S ta te A p p a r a t u s e s : N o t e s t o w a r d s an I n v e s t i g a t i o n " ,

e m Lenin and Pftilosophy and Other Essays, N e w L e f t B o o k s , 1 9 7 1 . M e n c i o n a ­d o c o m o " o a r t i go sobre os A I E " .

6 1 . A l t h u s s e r d i z que o caso de Gramsc i é u m a " s i t u a ç ã o - l i m i t e " e m " M a r x i s m is n o t a H i s t o r i c i s m " , p. 1 3 1 .

6 2 . As p r ime i ras f o r m u l a ç õ e s de ideo log ia c o m o " re lações imaginár ias v i v e n c i a d a s " e n c o n t r a m - s e na seção I V d o ensaio de A l t h u s s e r " M a r x i s m o e H u m a n i s m o " , e m A Favor de Marx. F o r a m depo is desenvo lv idas e m Lire "Le Capital", mas espe­c i a l m e n t e n o ensaio sobre os A I E .

6 3 . " F i n a l m e n t e , assim c o m o seu uso p o l e m i c o e p r á t i c o d o c o n c e i t o , Gramsc i t a m ­b é m t e m u m a c o n c e p ç ã o v e r d a d e i r a m e n t e ' h i s t o r i c i s t a ' de M a r x : u m a c o n c e p ç ã o ' h i s t o r i c i s t a ' da relação entre a teoria de Marx e a história real". A l t h u s s e r e m " M a r x i s m is n o t a H i s t o r i c i s m " , p. 130 .

6 4 . A p r i m e i r a inves t ida c r í t i c a de A l t husse r sobre o c o n c e i t o de "soc iedade c i v i l " aparece n o c o n t e x t o de u m a discussão sobre " o f a n t a s m a d o m o d e l o hege l iano n o v a m e n t e " e a assim c h a m a d a " i n v e r s ã o " q u e M a r x fez de Hegel. V e r o ensaio " C o n t r a d i c t i o n a n d O v e r - D e t e r m i n a t i o n " , pp . 1 0 8 - 1 1 ; e Reading Capital, p p . 1 6 2 e segs.

6 5 . D a d o que a expressão " soc iedade c i v i l " aparece aqu i n o que (para esse t e x t o ) deve ser c o n s i d e r a d o c o m o u m a f o r m u l a ç ã o s e m i n a l , a l e i t u ra que A l t h u s s e r faz dessa expressão parece f o r ç a d a : " E v i d e n t e m e n t e , M a r x a inda está f a l a n d o de 'so­c iedade c i v i l ' (espec ia lmente e m A Ideologia Alemã ...), mas c o m o u m a alusão ao passado, para d e n o t a r o â m b i t o de suas descober tas , não para re -u t i l i za r o

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9 8 T E O R I A S

c o n c e i t o " . Ser ia mais e x a t o d izer q u e aqu i Marx realmente " u t i l i z a " o c o n c e i t o de m o d o transfigurado, i n d i c a n d o assim o â m b i t o de suas d e s c o b e r t a s . . .

6 6 . O a r g u m e n t o de A l t h u s s e r é q u e a re fe rênc ia à " s o c i e d a d e de necess idades" desa­parece d o d iscurso de M a r x : p o r t a n t o , ele não só i n v e r t e u , mas r o m p e u c o m , Hegel. C o n t u d o , descober tas teór icas não p o d e m ser l im i tadas a " f a z e r desapare­cer ve lhos c o n c e i t o s " , d e v e m t a m b é m retê- los, mas n u m a pos ição a l te rada d e n t r o d o d i s c u r s o : o u des ignando o espaço t e ó r i c o a q u e se r e f e r e m d i f e r e n t e ­m e n t e . A l t h u s s e r sabe d isso, pois t a n t o M a r x q u a n t o Hegel u t i l i z a m " a d i a l é t i ­c a " , e m b o r a , c o m o ele d e m o n s t r a , t e n h a s ign i f i cados d i f e r e n t e s para cada u m . S e m p r e que A l t h u s s e r a b o r d a a ques tão da " i n v e r s ã o " , parece ser c o m p e l i d o a f o r ç a r d is t inções , q u e são cor re tas e necessárias, a té u m p o n t o a b s o l u t o . Isso é d e v i d o a u m a u t i l i z a ç ã o d e m a s i a d a m e n t e r í g i d a de " c o r t e e p i s t e m o l ó g i c o " — o q u e o p r ó p r i o A l t h u s s e r reconheceu e m sua Autocrítica.

6 7 . Cf. Marx a Engels, 2 de ab r i l de 1 8 5 8 : " A c i r c u l a ç ã o s imples , cons ide rada e m si mesma - e é a s u p e r f í c i e da soc iedade burguesa, o b l i t e r a n d o as operações mais p r o f u n d a s das qua is emerge - não revela d i f e r e n ç a e n t r e os o b j e t o s de t r o c a , e x c e t o d i fe renças f o r m a i s e t e m p o r á r i a s . Esse é o reino da liberdade, igual­dade e propriedade baseada no 'trabalho'... O a b s u r d o , p o r u m lado , dos que p r e g a m a h a r m o n i a e c o n ó m i c a , os defensores m o d e r n o s d o l ivre c o m é r c i o . . . e m m a n t e r essa relação bas tan te super f i c ia l e abs t ra ta c o m o sua ve rdade e m con t ras ­te c o m as relações de p r o d u ç ã o mais desenvo lv idas e seu a n t a g o n i s m o . (Por o u t r o l a d o ) , o a b s u r d o dos p r o u d h o n i s t a s . . . e m o p o r as ideias de igua ldade e t c , co r responden tes a essa t r o c a de equ iva len tes ( o u coisas s u p o s t a m e n t e e q u i ­valentes) às desigualdades e t c , q u e r e s u l t a m dessa t r o c a e q u e c o n s t i t u e m sua o r i g e m . " Para u m a e x p o s i ç ã o mais d e t a l h a d a d o m e s m o a r g u m e n t o , ver os c a p í t u l o s 4 8 , 4 9 e 5 0 de O Capital, v o l . I l l , pa r te V I I I .

5 8 . I nespe radamen te , A l t h u s s e r descobre u m a c o n f i r m a ç ã o dessa r u p t u r a e m Grams­c i : " C o m o u m m a r x i s t a c o n s c i e n t e , G r a m s c i já hav ia ap resen tado essa ob jeção n u m a frase. A d i s t i n ç ã o e n t r e p ú b l i c o e p r i v a d o é u m a d i s t i n ç ã o ine ren te ao d i ­r e i t o burguês e vá l ida nos d o m í n i o s ( subo rd inados ) nos qua is o d i r e i t o burguês exerce sua " a u t o r i d a d e " . " ( " " Ideological S t a t e Appara tuses" " . p. 253 . ) E v i d e n t e ­m e n t e , A l t h u s s e r está c e r t o ao cons iderar q u e a d i s t i n ç ã o p ú b l i c o / p r i v a d o é p r i n c i p a l m e n t e I m p o s t a pe lo d i r e i t o burguês e q u e , p o r t a n t o , a f r o n t e i r a e n t r e eles está constantemente sendo alterada. Mas está e r r a d o se est iver a r g u m e n t a n ­d o q u e a ques tão de o n d e , e m q u a l q u e r m o m e n t o h i s t ó r i c o espec í f i co , essa f r o n ­te i ra f o i t raçada é i r re levante para Gramsc i . C o m o A l t h u s s e r observa, sem tecer c o m e n t á r i o s , na n o t a 5 , q u a n d o Gramsc i teve a ' "notáve l i d e i a " d e acrescentar a " I g r e j a , as Escolas, os s ind ica tos e t c . " aos apare lhos repressivos d o E s t a d o , "e le i n c l u i u . . . u m c e r t o n ú m e r o de ins t i t u i ções da sociedade civil". A s s i m , para G r a m s c i , a d i s t i n ç ã o p ú b l i c o / p r i v a d o c o n t i n u a v a sendo i m p o r t a n t e , e m b o r a não d e t e r m i n a n t e " n a ú l t i m a ins tânc ia ' " .

6 9 . V e r os ensaios d e Gramsc i " 'Os I n t e l e c t u a i s " , " S o b r e as Esco las " e " A m e r i c a n i s ­m o e F o r d í s m o " e m Cadernos do Cárcere.

7 0 . Esse a r g u m e n t o é d e s e n v o l v i d o d e t a l h a d a m e n t e e m P o u l a n t z a s , Classes in Con­temporary Capital ism, 1 9 7 4 .

7 1 . Ve r , espec ia lmente , Politicai Power and Social Classes, pp . 2 2 7 - 5 2 . 7 2 . S o b r e u m a " e s t r u t u r a reg iona l c o m o u m objeto de ciência", v e r Politicai Povver,

pp . 1 6 - 1 8 .

7 3 . Por e x e m p l o . Politicai Power, p p . 137-9 . 7 4 . Os t r e c h o s re la t ivos a " C e s a r i s m o " , " B o n a p a r t i s m o " e " F a s c i s m o " e n c o n t r a m - s e

p r i n c i p a l m e n t e e m Politicai Power, pp . 2 5 8 - 6 2 .

P O L f T I C A E I D E O L O G I A 9 9

7 5 . O c o n c e i t o de " h e g e m o n i a " " e as d i fe renças e n t r e sua u t i l i zação e o uso q u e Gramsc i faz desse c o n c e i t o são e x a m i n a d o s d e t a l h a d a m e n t e p o r Poulantzas e m Politicai Power, pp . 1 3 7 - 9 e 2 0 4 - 5 .

7 6 . Gramsc i e labo ra as d i s t i nções e n t r e " g u e r r a de p o s i ç ã o " e " g u e r r a de m a n o b r a " e m " N o t e s o n I t a l i a n H i s t o r y " , pp . 1 0 8 - 1 0 e e m " S t a t e a n d Civ i l S o c i e t y " , p p . 2 2 9 - 3 5 , a m b o s e m Prison Notebooks.

77. Politicai Power, p. 2 0 4 . 7 8 . A frase é d o ensaio sobre os A I E , p. 2 5 7 . 7 9 . O t r e c h o seguin te é u m b o m e x e m p l o d o q u e ele en tende p o r " r e d u ç ã o " : " P a r a

cap ta r a re lação e n t r e esses do is " m o m e n t o s " (" força" e "consenso") ele (Gramsc i ) u t i l i z a o s i g n i f i c a t i v o t e r m o ' c o m p l e m e n t a r i d a d e ' . D a í surge u m a c o n f u s ã o das áreas e m q u e a h e g e m o n i a é e x e r c i d a . . . sendo a f o r ç a exe rc ida pe lo E s t a d o na soc iedade ' p o l í t i c a ' , a h e g e m o n i a na 'soc iedade c iv i l " p o r m e i o da o rgan ização u s u a l m e n t e cons iderada c o m o p r i v a d a . . . Essa d i s t i n ç ã o é a chave para o m o d e l o c o m o q u a l o h i s t o r i c i s m o apreend ia as relações en t re o e c o n ó m i c o e o p o l í t i c o : v ia o p o l í t i c o (a l u t a de classes) c o m o o m o t o r , a f o r ç a , das ' leis e c o n ó m i c a s ' c o n c e b i d o de m o d o mecan ic i s ta ; e m ou t ras palavras, a p o l í t i c a é c o n c e b i d a c o m o o m o t o r d o ' a u t o n o m i s m o ' e c o n ó m i c o . " {Politicai Power, p. 26. )

A " c o m p l e m e n t a r i d a d e " e n t r e os m o m e n t o s de f o r ç a e consenso p e r t e n c e , e v i d e n t e m e n t e , a G r a m s c i . C o n t u d o , e le não a t r i b u i s i m p l e s m e n t e a f o r ç a à so­c iedade p o l í t i c a e o consenso à soc iedade c i v i l . P o r t a n t o , não se p o d e c o n c l u i r que Gramsc i pensa a re lação e n t r e o p o l í t i c o e o e c o n ó m i c o de m o d o h is to r ic is ­t a . Ser ia c e r t a m e n t e d i f í c i l reconc i l i a r q u a l q u e r l e i t u r a d e Gramsc i c o n s i d e r a n d o a p o l í t i c a c o m o o m o t o r das leis e c o n ó m i c a s a u t o m á t i c a s " c o n c e b i d o de mane i ­ra m e c a n i c i s t a " . A l é m d o mais, o m o v i m e n t o f i na l nesse r e d u c i o n i s m o parece opera r p o r trás de u m j o g o de palavras - a palavra " f o r ç a " - q u e não é c o n f i r ­m a d o p o r u m a l e i t u r a de Gramsc i ( i s to é, ele n u n c a u t i l i z a " m o m e n t o de f o r ç a " para se re fe r i r à p o l í t i c a c o m o " a f o r ç a " das leis e c o n ó m i c a s a u t o m á t i c a s ) . Re­s u m i n d o , q u a n t o mais o a r g u m e n t o avança, mais c l a r a m e n t e emerge o " h i s t o r i ­c i s m o " c o m o u m desv io t e ó r i c o — mas t a m b é m t a n t o mais nos d i s t a n c i a m o s de u m a l e i t u r a q u e se r e f i r a de m o d o reconhec í ve l à o b r a de G r a m s c i .

8 0 . P a r t i c u l a r m e n t e e m Politicai Power, p p . 2 1 0 - 2 8 ( " I d e o l o g i a P o l í t i c a Burguesa e L u t a de Classes") e pp . 2 7 4 - 3 0 7 ( " O Es tado Cap i ta l i s ta e o C a m p o da L u t a de Classes") .

8 1 . V e r Pour Marx, Maspero , 1 9 6 5 , p. 7 8 e 1 1 4 n . Genial e m f rancês , mas " b r i l l i a n t " " e m inglês, e m vez d o " g e n i a l " e m For Marx, p. 81 n. e p. 1 1 4 n .

8 2 . 1 9 7 1 , pp . 3 8 , 4 3 4 - 5 . 8 3 . V e r o a r t i g o sobre A l t h u s s e r nesta co le tânea . 8 4 . A l t h u s s e r , 1 9 7 6 , p. 112n., g r i f o n o o r i g i n a l . 8 5 . //»/£/., p. 124/7.

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Cultural Studies 9, B i r m i n g h a m .

A Teoria de Althusser sobre Ideologia

Gregor McLennan, Victor Molina, Roy Peters

I Introdução geral a Althusser

A obra de Louis Althusser tem sido a mais significativa contribuição para a teoria marxista em muitos anos. Nenhuma outra figura provocou tantos debates e controvérsias estimulantes. O fato de sua obra ter encontrado duras críticas não deve mascarar os efeitos benéficos gerais que seus impor­tantes textos exerceram sobre a reavaliação e o esclarecimento daquelas ideias que no contexto teórico e pol í t ico de hoje são consideradas os con­ceitos "básicos" do materialismo histórico. Todavia, nem todas as suas concepções podem ser aceitas. De fato, neste artigo, lançaremos dúvidas sobre algumas delas. Entretanto, não pode ser questionada a importância da contribuição de Althusser. De modo particular, ele tem insistido acer­tadamente em que uma crít ica do stalinismo e do economismo e uma interpretação exageradamente humanista de Marx devem ser fundamenta­das teoricamente, e que tal desenvolvimento pode revelar muitas interco-nexões submersas entre escolas aparentemente opostas do pensamento so­cialista. Na linguagem althusseriana, estas escolas partilham da mesma "problemática", ou série de questões e pressuposições. Através deste escla­recimento teórico, o objetivo de Althusser é deixar o marxismo mais bem equipado para um confronto com as principais filosofias antimarxistas.

Investindo igualmente contra a interpretação mecanicistada metáfora "base-superestrutura" e contra a visão essencialista ou hegeliana da totali­dade social, Althusser propõe um conceito bastante distinto do todo social (formação social). Isto será delineado sumariamente mais adiante. Althus­ser expõe a natureza fundamentalmente irracional de concepções da socie­dade que justificam uma visão "economicista" ou "tecnicista" da história; ou a assertiva da centralidade de agentes humanos, ou classes de agen­tes, como sujeitos autoconstituídos da história. Ambas estas concepções e sua consequente pol í t ica, argumenta Althusser, compartilham uma concep-

Page 23: Política e ideologia: Gramsci

Tí tu lo original: On Ideology

Tradução autorizada da edição inglesa, publicada em 1978 por Hutchinson & Co. (Publishers) L td . ,

de Londres, Inglaterra.

[Publicado originalmente em ^ 977 pelo Centre for Contemporary Cultural Studies, Universidade de Birmingham, como Working Paper in Cultural

Studies, n9 10].

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Capa: Érico

Composição: Zahar Editores S.A.

1980

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índice

Introdução 9

PARTE I TEORIAS

Stuart Hall O Interior daCiencia: Ideologia e a "Sociologia do Conhecimento" 15

Roisín McDonough A Ideologia como Falsa Consciância: Lukács 45

A relação e n t r e c o n h e c i m e n t o e ação, 48; A t e o r i a da consc iênc ia de classe, 49; O p r o l e t a r i a d o c o m o p o r t a d o r da ve rdade , 52; A c o n c e p ­ção h i s to r i c i s ta de i deo log ia . 54; A h o s t i l i d a d e c o n t r a as c iências na­tu ra i s , 56

Stuart Hall, Bob Lumiey e Gregor McLennan Polít ica e Ideologia: Gramsci 60

I. Introdução 60 I I . A matriz conceituai de Cadernos do Cárcere 61

E s t r u t u r a e supe res t ru ra , 62; H e g e m o n i a , 64; O senso c o m u m , os

in te lec tua is e o p a r t i d o , 65

I I I . A ideologia e o problema do historicismo 70 IV. A apropriação estruturalista de Gramsci: Althusser 75 V. A apropriação estruturalista de Gramsci: Poulantzas 86

V I . Conclusão 93

Gregor McLennan, Victor Molina e Roy Peters A teoria de Althusser sobre Ideologia 101

I. Introdução geral a Althusser 101 I I . Formação social e superestrutura 102