gramsci e a emancipaÇÃo do subalterno

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63 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 29, p. 63-78, nov. 2007 Marcos Del Roio GRAMSCI E A EMANCIPAÇÃO DO SUBALTERNO Recebido em 15 de agosto de 2007. Aprovado em 25 de agosto de 2007. Nos Cadernos do cárcere, Gramsci trabalhou com a noção de classes e grupos subalternos, conceito que vem sendo utilizado pelas Ciências Sociais e pela Historiografia atual. De forma correlata, apresentam-se os problemas do senso comum, do folclore e da religião. É importante questionar as implicações teóricas e políticas da elaboração de Gramsci, contextualizando-a no conjunto de sua produção teórico-política, até para que se conteste o uso corrente desse conceito e sua efetiva relação com Gramsci ou quanto pode esse autor ser considerado atual para a interpretação das condições das lutas sociais no capitalismo contempo- râneo. PALAVRAS-CHAVE: Antonio Gramsci; emancipação; classes subalternas. I. INTRODUÇÃO Grande número de conceitos (re)elaborados por Gramsci em seus Cadernos do cárcere, de uma ou outra maneira, nos últimos decênios, caiu no uso comum dentro e fora da academia, ainda que com significados muito diferentes daqueles usa- dos pelo intelectual revolucionário originário da Sardenha. Assim, não é tão simples saber do que se trata quando lemos referências sobre temas li- gados a hegemonia e sociedade civil, por exem- plo. Seja pelo caráter de work in progress da obra de Gramsci, seja mesmo por sua fragmentação ou ainda por sua enorme complexidade, sua obra foi disposta para muitos usos. Essa característica indica uma riqueza e uma possível permanência no tempo, mas também abre a possibilidade de ser apropriada ou decomposta por outras verten- tes culturais e políticas com as quais Gramsci não poderia se reconhecer. Certamente, a apropriação ou interpretação de maior impacto político e cultural foi feita com o conceito de sociedade civil. Um conhecido e in- fluente texto de Norberto Bobbio, de 1967, apre- sentou uma leitura da noção de sociedade civil em Gramsci como se esta fosse uma parte das su- pra-estruturas, de modo que haveria uma diferen- ça fundamental em relação ao uso do mesmo ter- mo em Hegel e principalmente em Marx, para quem a sociedade civil seria identificada com a infra-estrutura. Essa interpretação, a rigor, colo- ca Gramsci no campo teórico do liberalismo e até por esse motivo teve grande repercussão na dis- puta hegemônica, contribuindo para fazer do teó- rico marxista um autor quase inócuo desse ponto de vista. De fato, Bobbio (1969) foi um autor im- portante na indução da chamada crise do marxis- mo na Itália de fins dos anos 1970 aos anos 1980. Outra expressão de cunho gramsciano que caiu em uso nas Ciências Políticas e Sociais é indicada por classes subalternas ou grupos sociais subal- ternos, cujo estudo tornou-se uma tendência bas- tante influente na literatura científica. Desde os anos 1950, quando da primeira publicação dos Cadernos do cárcere, a Antropologia ou Ciência do Folclore, como se denominava, fez uso de Gramsci para avançar nos estudos e na interpre- tação da cultura popular. E. De Martino iniciou uma trajetória de estudos sobre as classes subal- ternas e sobre o folclore, particularmente do sul da Itália, que alimentou o debate sobre esse ponto até os anos 1970 (cf. ANGELI, 1995). A difusão da obra de Gramsci pelo mundo anglo-americano num momento de refluxo da in- fluência de seu pensamento na Itália e de frag- mentação do movimento político e cultural de crí- tica da economia política do capitalismo, que o movimento operário parecia encarnar, possibili- tou que seu pensamento fosse reapropriado e reordenado segundo uma perspectiva fortemente culturalista. Uma dessas posturas, vinculada aos assim chamados cultural studies, tende a obser- var a cultura como elemento determinante, en- quanto outra – que não exclui a primeira –, de clara inspiração pós-moderna, tende a encarar a fragmentação das classes subalternas como um pressuposto metodológico e como identidade his-

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 63-78 NOV. 2007

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 29, p. 63-78, nov. 2007

Marcos Del Roio

GRAMSCI E A EMANCIPAÇÃO DO SUBALTERNO

Recebido em 15 de agosto de 2007.Aprovado em 25 de agosto de 2007.

Nos Cadernos do cárcere, Gramsci trabalhou com a noção de classes e grupos subalternos, conceito que vemsendo utilizado pelas Ciências Sociais e pela Historiografia atual. De forma correlata, apresentam-se osproblemas do senso comum, do folclore e da religião. É importante questionar as implicações teóricas epolíticas da elaboração de Gramsci, contextualizando-a no conjunto de sua produção teórico-política, atépara que se conteste o uso corrente desse conceito e sua efetiva relação com Gramsci ou quanto pode esseautor ser considerado atual para a interpretação das condições das lutas sociais no capitalismo contempo-râneo.

PALAVRAS-CHAVE: Antonio Gramsci; emancipação; classes subalternas.

I. INTRODUÇÃO

Grande número de conceitos (re)elaboradospor Gramsci em seus Cadernos do cárcere, de umaou outra maneira, nos últimos decênios, caiu nouso comum dentro e fora da academia, ainda quecom significados muito diferentes daqueles usa-dos pelo intelectual revolucionário originário daSardenha. Assim, não é tão simples saber do quese trata quando lemos referências sobre temas li-gados a hegemonia e sociedade civil, por exem-plo. Seja pelo caráter de work in progress da obrade Gramsci, seja mesmo por sua fragmentaçãoou ainda por sua enorme complexidade, sua obrafoi disposta para muitos usos. Essa característicaindica uma riqueza e uma possível permanênciano tempo, mas também abre a possibilidade deser apropriada ou decomposta por outras verten-tes culturais e políticas com as quais Gramsci nãopoderia se reconhecer.

Certamente, a apropriação ou interpretação demaior impacto político e cultural foi feita com oconceito de sociedade civil. Um conhecido e in-fluente texto de Norberto Bobbio, de 1967, apre-sentou uma leitura da noção de sociedade civil emGramsci como se esta fosse uma parte das su-pra-estruturas, de modo que haveria uma diferen-ça fundamental em relação ao uso do mesmo ter-mo em Hegel e principalmente em Marx, paraquem a sociedade civil seria identificada com ainfra-estrutura. Essa interpretação, a rigor, colo-ca Gramsci no campo teórico do liberalismo e atépor esse motivo teve grande repercussão na dis-puta hegemônica, contribuindo para fazer do teó-

rico marxista um autor quase inócuo desse pontode vista. De fato, Bobbio (1969) foi um autor im-portante na indução da chamada crise do marxis-mo na Itália de fins dos anos 1970 aos anos 1980.

Outra expressão de cunho gramsciano que caiuem uso nas Ciências Políticas e Sociais é indicadapor classes subalternas ou grupos sociais subal-ternos, cujo estudo tornou-se uma tendência bas-tante influente na literatura científica. Desde osanos 1950, quando da primeira publicação dosCadernos do cárcere, a Antropologia ou Ciênciado Folclore, como se denominava, fez uso deGramsci para avançar nos estudos e na interpre-tação da cultura popular. E. De Martino iniciouuma trajetória de estudos sobre as classes subal-ternas e sobre o folclore, particularmente do sulda Itália, que alimentou o debate sobre esse pontoaté os anos 1970 (cf. ANGELI, 1995).

A difusão da obra de Gramsci pelo mundoanglo-americano num momento de refluxo da in-fluência de seu pensamento na Itália e de frag-mentação do movimento político e cultural de crí-tica da economia política do capitalismo, que omovimento operário parecia encarnar, possibili-tou que seu pensamento fosse reapropriado ereordenado segundo uma perspectiva fortementeculturalista. Uma dessas posturas, vinculada aosassim chamados cultural studies, tende a obser-var a cultura como elemento determinante, en-quanto outra – que não exclui a primeira –, declara inspiração pós-moderna, tende a encarar afragmentação das classes subalternas como umpressuposto metodológico e como identidade his-

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tórica marcada de positividade (cf. BUTTIGIEG,1999).

Muitos desses estudos, na verdade, referem-se à perspectiva teórica acoplada à elaboração deFoucault ou Derridà. Autores de grande impor-tância que ampliaram o campo de estudos sobreos grupos sociais subalternos são RaymondWillians e Edward Thompson, e mais recentemen-te Edward Said e Stuart Hall. Importante assinalara formação do grupo dos subaltern studies for-mado por intelectuais indianos como Ranajit Guhae Gayatri Spivak. Mais do que discutir a diferençaentre esses autores ou avaliar a contribuição decada um, cabe assinalar como o uso do conceitode “subalterno” se amplia enormemente. Parte-sede Gramsci como pressuposto, do camponêsmeridional particularmente, mas se vai adiante,com o mundo colonial e pós-colonial, o migrante,o refugiado (CURTI, 2006).

Não há dúvida de que a perspectivauniversalizante de Gramsci sugere, mesmo para ocapitalismo contemporâneo, uma ampliação e di-versificação do conceito de subalterno, como te-remos ocasião de discutir. Afinal, subalterno, doponto de vista etimológico, significa apenas o ou-tro inferior ou inferiorizado. Mas o que deve serpor agora destacado é que parte significativa des-ses estudos decorre de pressupostos teórico-metodológicos que se colocam num campo bas-tante distante de Gramsci, que partia de pressu-postos muito diferentes, quando não antagônicosa esses. Para Gramsci, a determinação essencialencontra-se nos fundamentos materiais da reali-dade em movimento contraditório. Dizer que acultura ou a política está em toda parte da vidasocial, inclusive na economia, não é o mesmo quenegar a determinação em última instância da re-produção da vida material dentro do complexo dedeterminações que compõe a totalidade.

A vida fragmentada das classes subalternas eravista por Gramsci como uma característica da pró-pria situação social em que se encontram essesagrupamentos, submetidos à exploração e à opres-são. Mas essa condição deve ser superada histori-camente, pois à medida que essas classes deixamde ser subalternas e passam a disputar a hegemonia,ganham organicidade e a perspectiva da totalidade.É patente a diferença entre a visão conservadoraque incorre o culturalismo e o pós-modernismo,limitados à defesa da identidade e dos direitos par-ticulares, e a visão revolucionária de Gramsci.

Claro que Gramsci não poderia prever o usoque foi feito dessa categoria de classes subalter-nas, mas isso não resolve a questão do motivopelo qual Gramsci passou a utilizá-la, aparente-mente em detrimento das noções mais consagra-das no âmbito do marxismo, como proletariado,classe operária, campesinato. Certamente que ahipótese de que seria para contornar eventuaisproblemas com a censura carcerária não é umaexplicação razoável. Talvez seja mesmo mais ten-tador afiançar que se tratou de um desenvolvi-mento em sua elaboração, que partiu daespecificidade da questão operária em direção aníveis sempre mais altos de complexidade e gene-ralidade, sempre em busca de explicação para amaterialidade da esfera subjetiva antagônica nodecorrer da História. Em busca dos elementos quepoderiam compor uma nova sociedade civilanticapitalista, a indeterminação e fluidez sugeridapela expressão classes ou grupos subalternos po-deria ser enriquecedora.

II. DE UM MERIDIONALISMO A OUTRO, COMA MEDIAÇÃO DA CLASSE OPERÁRIA

A experiência dos conselhos de fábrica foi cul-minância de uma vivência intensa de Gramsci na“Torino operária e socialista”. A luta operária pormelhores condições de vida e seu esforço para de-senvolver sua auto-educação e sua formação cul-tural à revelia da burguesia envolveram Gramsciem toda a profundidade de seu ser. A reflexão teó-rica que se desenrolou da experiência dos conse-lhos, particularmente pelas páginas do L’OrdineNuovo, estimulou em Gramsci a concepção de umarevolução que nascia da autonomia e da auto-orga-nização do processo fabril por iniciativa dos traba-lhadores, na qual os conselhos se constituiriam nosfundamentos de uma democracia operária. A influ-ência de Sorel é patente em Gramsci, mas tambémde Karl Korsch e de Rosa Luxemburg, quanto àênfase posta na auto-organização dos trabalhado-res e na centralidade da fábrica na luta política esocial. Em Torino, desenrolava-se, na verdade, oúltimo capítulo da revolução socialista internacio-nal originada na Rússia dos czares e que se difun-dira pelos chamados impérios centrais (Alemanhae Áustria-Hungria) (cf. DEL ROIO, 2005, cap. 1).

A derrota da revolução socialista internacionalcolocou a diversidade nacional em primeiro pla-no, como Lênin (1976) destacara precocementeem 1920. Foi paulatinamente, mas principalmentea partir de 1923, que Gramsci passou a buscar (e

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assim até o final de sua vida) as razões da derrotado biennio rosso e os novos caminhos da revolu-ção socialista na Itália e no mundo. Ampliandosempre seu ângulo de visão, encarando novos esempre mais complexos problemas, Gramsci ja-mais deixou de conceber a centralidade do traba-lho na reprodução da vida social e da fábrica nareprodução do capital, ainda que algumas leiturasdesse autor pretendam o contrário.

Já em 1919, Gramsci, numa perspectiva for-temente marcada pela guerra e pela revolução so-cialista internacional, notava que o campesinatose tornava uma força motriz da revolução socia-lista, fosse na Rússia ou na Itália. Percebia, então,que “quatro anos de trincheira e de exploração dosangue mudaram radicalmente a psicologia doscamponeses. Essa mudança se verificou princi-palmente na Rússia e é uma das condições essen-ciais da revolução. O que o industrialismo nãodeterminou com seu normal processo de desen-volvimento foi produzido pela guerra”(GRAMSCI, 1995, p. 93).

O marxismo de Gramsci se desenvolve emparalelo a esse novo meridionalismo. Mesmo pre-servando a consciência da importância da ques-tão camponesa, Gramsci se entrega à experiênciados conselhos de fábrica, defendendo ao máximoa centralidade da fábrica e do trabalho industrialna questão da transformação revolucionária, con-siderando ser esse o nicho principal da explora-ção do trabalho e da reprodução do capital. A der-rota operária e as circunstâncias da fundação doPCI, em meio ao avanço do fascismo, tornaramincontornável a situação de submissão de Gramscidiante da perspectiva teórica de Bordiga.

Bordiga seguia, de alguma maneira, a tradiçãosocialista de desprezar a questão camponesa, in-sistindo na exclusividade da classe operária comoforça da revolução. Ainda que originário de Napoli,Bordiga entendia que a revolução socialista seriaobra precisamente de um partido revolucionáriodotado do conhecimento científico da História, oqual deveria difundi-lo entre a classe operária afim de que essa cumprisse sua tarefa de derrubaro capitalismo. Quanto ao campesinato, importavaque se transformasse o mais rápido possível emproletariado, de modo que havia apenas a questãodo capitalismo na Itália, mas não uma questãomeridional como particularidade da questão agrá-ria e camponesa.

A partir de 1923, quando Gramsci abriu lutacontra Bordiga pela direção do PCI, por conta dasdificuldades no enfrentamento com o fascismo eprincipalmente pelos problemas de grandes dimen-sões que os comunistas italianos encontravam emseu relacionamento com a Internacional Comu-nista, ocorreu enfim o encontro com a teoria po-lítica de Lênin. O meridionalismo original deGramsci facilitou em muito a compreensão e tra-dução do pensamento de Lênin para as circuns-tâncias concretas da Itália. Ademais, a política defrente única sugerida pela Internacional Comunistae a palavra de ordem do “governo operário-cam-ponês” acabaram de propiciar para Gramsci umanova leitura da questão meridional e da relaçãoentre a classe operária e o campesinato.

Em fins de 1923, completada a ruptura comBordiga, Gramsci já tinha a clareza da importân-cia da questão meridional como questão nacionale da conexão que essa mantinha com a política defrente única que a Internacional Comunista pro-curava desenvolver desde 1921, ainda que de for-ma titubeante. Lamentava, então, o fato de que:“Nós não conhecemos a Itália. Pior ainda: faltam-nos os elementos adequados para conhecer a Itá-lia, assim como é realmente, de modo que nosencontramos na impossibilidade de fazer previ-sões, de nos orientarmos; de estabelecer linhas deação que tenham certa probabilidade de seremexatas. Não existe uma história da classe operáriaitaliana. Não existe uma história da classe campo-nesa” (GRAMSCI, 1964, p. 268-269).

Sem o conhecimento da história da particularluta de classes que forjou o capitalismo italiano,seria impossível a realização de uma frente únicaantifascista e anticapitalista, assim como a for-mulação de um projeto revolucionário centradona classe operária e na aliança operário-campone-sa. A relativa ignorância do processo histórico eraagravada pelo invólucro ideológico imposto pelasclasses dominantes italianas e alcançava em cheioa classe operária industrial do Norte por meio decerta concepção sociológica positivista, particu-larmente conservadora e discriminatória em rela-ção ao campesinato. O próprio campesinato me-ridional, por sua vez, era mantido submisso pormeio da religião católica e do domínio clerical.

Contudo, durante o período em que desempe-nhou o papel de dirigente político no movimentooperário italiano (e internacional), Gramsci não

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pode mais que conhecer a classe operária italianapor sua ação política e cultural e num momentohistórico muito particular de eclosão revolucioná-ria seguida de uma queda histórica de graves pro-porções. O movimento dos conselhos de fábricaque se conclui com séria derrota foi seguido pelamarcha triunfante do fascismo. A fase de resis-tência ao fascismo que se consolidava enquantoregime foi marcada pelo esforço de separar a classeoperária da tradição cultural e política do socialis-mo italiano, enquanto este representava sua su-bordinação dentro do campo ideológico da bur-guesia e era responsável, em alguma medida, peladerrota recente.

Uma das matrizes da formação cultural deGramsci é o meridionalismo, uma concepção po-lítico-cultural difusa e multifacetada, que teve emGaetano Salvemini uma personalidade de ponta.Salvemini era um socialista cuja concepção des-toava em muito daquela que prevalecia no PSI,exatamente por perceber no campesinato meri-dional um potencial voltado para a transformaçãosocial. No entanto, assim como Croce, Salveminiprestou entusiasmado apoio à participação da Itá-lia na guerra, o que fez com que Gramsci dele seafastasse. No pós-guerra, por meio de jovens in-telectuais que travam contato com o mundo ope-rário, começa a se formar um novo meridionalismo,de caráter revolucionário, que indica nocampesinato meridional uma força social propul-sora de mudanças indispensáveis.

Na qualidade de deputado comunista e de prin-cipal dirigente do PCI, Gramsci encontrava-seentão tomado pelo empenho de desenhar a estra-tégia da frente única para a Itália, que deveria en-contrar na aliança operário-camponesa o núcleogerador da revolução socialista. A fórmula políti-ca da frente única foi a chave para que Gramscinão só traduzisse Lênin para a particularidade daItália, mas que pudesse encontrar um novo lugarpra o campesinato na estratégia revolucionária.Esse sujeito revolucionário, tão importante quan-to o peso econômico e demográfico que desem-penhava, foi, mais tarde – nos Cadernos do cár-cere –, colocado num conjunto denominado como“classes subalternas”.

No ensaio inacabado de 1926, na verdade umaprofundamento das teses do III Congresso doPCI, realizado em Lyon no início daquele mesmoano, Gramsci aborda a questão meridional comoparticularidade da questão agrária na Itália, como

elemento da questão nacional, seguindo o métodoleniniano e fazendo, portanto, sua tradução. Pu-blicado no começo de 1930 – com o título de Al-guns temas da questão meridional –, o texto esta-va de fato voltado para atrair o novomeridionalismo, cujos intelectuais observavam nocampesinato do sul a força propulsora decisiva darevolução nacional e democrática, mas percebi-am também a importância do operariado seten-trional nesse processo (GRAMSCI, 1995).

Gramsci se colocava já o problema da unifica-ção das classes subalternas da Itália como umacontribuição à unificação do gênero humano. Aquestão meridional é então, de fato, uma questãointernacional. A reflexão de Gramsci, na mesmamedida que particulariza/nacionaliza a questãomeridional italiana, a internacionaliza. A unifica-ção das classes subalternas da Itália, contudo, deveunificar a classe operária dentro de uma perspec-tiva política e cultural que reconheça a necessida-de da aliança com o campesinato, num contextointernacional de atualidade da revolução socialis-ta.

Um conjunto de fragmentos ideológicos siste-matizados sob a forma de reformismo impedia aunificação da classe operária na perspectiva apre-goada por Gramsci e também impedia a aliançaoperário-camponesa. Já a canalização da rebeldiacamponesa em direção à ação políticatransformadora de suas condições sociais só po-deria ocorrer em caso de fratura na burocraciaestatal e no bloco intelectual que dava sustentaçãoàquela ordem social. Daí se segue a necessáriacrítica aos grandes intelectuais meridionais queelaboram a hegemonia burguesa na Itália, comCroce em primeiro lugar.

Na verdade, o debate travado entre Gramsci ea revista Quarto Stato era não só uma luta pelaconformação da frente única e da aliança operá-rio-camponesa, como uma disputa pela hegemoniano interior da coalizão das forças revolucionárias,situação na qual os intelectuais e a cultura desem-penhariam um papel essencial. É patente a analo-gia dessa disputa entre aliados com a disputa ocor-rida no processo revolucionário russo entre osmarxistas bolcheviques e os neonarodiniks.

Esse problema ganhava um destaque aindamaior na reflexão de Gramsci porquanto eram osintelectuais tradicionais, o meridionalismo conser-vador, a preservar o bloco agrário, e com ele odomínio dos industriais e banqueiros do Norte.

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Assim que, graças à mediação de um bloco inte-lectual conservador “o Mezzogiorno pode ser de-finido como uma grande desagregação social; oscamponeses, que constituem a grande maioria dasua população, não têm nenhuma coesão entre si”(idem, p. 174).

A possibilidade de uma revolução camponesa,dada a incapacidade dessa camada de gerar inte-lectuais orgânicos, estava em forjar uma aliançacom a classe operária por meio dos intelectuaismeridionalistas liberal-revolucionários da estirpede Gobbetti ou Dorso, aos quais – junto com oscomunistas – caberia cindir o bloco intelectualmeridional e lutar contra o capitalismo, aliando ocampesinato à classe operária.

III. DA ALIANÇA OPERÁRIO-CAMPONESA ÀSCLASSES SUBALTERNAS

Gramsci, um meridionalista de novo tipo, quedo Mezzogiorno só conhecia a Sardenha natal,extraordinariamente passou a ter ciência da enor-me diversidade cultural da Itália meridional ape-nas no cárcere, de seu caráter de rebeldia pré-política, de como era real a “desagregação soci-al”, mas de como muitas mediações estavam pre-sentes. Em carta enviada ainda em 1926, da pri-são de Ústica, Gramsci dizia a Tânia da possibili-dade de “fazer observações de psicologia e defolklore de caráter único”. Dizia que “quatro divi-sões fundamentais existem: os setentrionais, oscentrais, os meridionais (com a Sicília), ossardos”. Notava que os sardos viviam apartadosdos outros grupos, que os setentrionais não seorganizavam, os romanos se organizavam bem, eque “os meridionais são organizadíssimos, aoquanto se diz, mas entre eles há subdivisões: oEstado napolitano, o Estado pugliese, o Estadosiciliano” (GRAMSCI, 1996, p. 19).

Agora Gramsci já começa a notar importantesmediações na “desagregação social” dos subalter-nos, particularmente do Mezzogiorno. Havia dife-renças culturais e valorativas que distinguiam asdiversas regiões de origem dos segregados, o queseria um impeditivo para se colocar toda a Itáliameridional dentro de um mesmo enquadramento.As observações de Gramsci continuavam e clas-sificava até mesmo os prisioneiros políticos: “Osmais calmos serenos e comedidos são os campo-neses, depois vêm os operários, depois os artesãos,por fim os intelectuais, entre os quais ocorremexplosões imprevisíveis de loucura absurda e in-fantil” (idem, p. 32).

Mais tarde, aprofundando suas observações,Gramsci escrevia que eram quatro os Estados damarginalidade meridional, acrescentando o Esta-do calabrês aos três antes enunciados. Mas, des-sa vez, quase como uma nova descoberta, narra-va que “os sicilianos são um caso a parte; há maissemelhanças entre um calabrês e um piemontêsdo que entre um calabrês e um siciliano” (idem,p. 70).

O início da vida de prisioneiro foi uma experi-ência que provocou em Gramsci o renovado inte-resse por temas que ocupavam sua mente de es-tudante universitário em Torino, temas ligados àantropologia lingüística, ao folclore, à cultura ita-liana. As observações “etnográficas” que teve oca-sião de fazer no cárcere ofereceram também ummaterial empírico bastante rico para pensar a com-plexidade dos grupos subalternos da Itália. Pode-mos dizer então que essa pesquisa de campo for-çada – em que se misturavam prisioneiros políti-cos de diversas origens com marginais tambémde origens bastante diferentes – sugeriu a Gramscique as classes subalternas eram um universo muitoamplo e complexo. Dar-se conta dessa realidadeera imprescindível a fim de se realizar uma políti-ca revolucionária capaz de unificar esses grupose elevá-los culturalmente a um nível superior deconsciência crítica.

Essas observações que Gramsci identificavacomo sendo atividade “bizantina” certamente con-tribuíram para a formulação do projeto de pesqui-sa que pretendia desenvolver no cárcere. Assim,seu primeiro plano de estudo visava “uma pesqui-sa sobre os intelectuais italianos”, “uma lingüísti-ca comparada”, “a transformação do gosto tea-tral italiano”, “os romances de apêndice e o gostopopular na literatura”. O fio condutor de todo oempreendimento estaria na busca dos graus e fa-ses de desenvolvimento do “espírito popular cria-tivo” (idem, p. 56).

Qual a relação existente entre esse início devida carcerária, com os sofrimentos e as obser-vações e reflexões que ensejou, e particularmenteo plano de estudo elaborado com o escrito sobrea questão meridional, redigido apenas quatro me-ses antes? Entre um texto de crítica política epolêmica ideológica como esse e o temário de perfilquase acadêmico agora apresentado no plano deestudo? Na verdade, há sim uma relação de conti-nuidade. No escrito sobre a questão meridional, oobjetivo político imediato se fazia evidente na de-

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fesa da necessidade dos intelectuais críticos, fos-sem marxistas ou liberal-revolucionários, de pro-ceder à fratura no bloco intelectual meridionalconservador e assim possibilitar a organização docampesinato e sua aliança com a classe operária.

Agora o plano é de maior amplitude e profun-didade, mas é ainda o mesmo. Trata-se de conhe-cer a Itália, de conhecer a cultura popular, maisprecisamente o folclore ou o senso comum dasclasses subalternas (embora essa expressão aindanão compareça). Mais ainda, de saber como essesenso comum se articula com a concepção dosintelectuais e como podem ser ambas transfor-madas.

O “espírito popular criativo” que conduz eunifica a pesquisa poderia ser a busca de elemen-tos de criação e de rebeldia popular diante das for-mas diversas de dominação? Seria o folclore umaforma de as classes subalternas interpretarem avisão sistematizada dos grupos sociais dominan-tes e de seus intelectuais e de transformarem aopressão e a submissão em condição suportável?Ou poderiam também mimetizar formas de recu-sa e rebeldia? Não estaria Gramsci em busca deelementos de rebeldia espontânea presente na vidasocial das massas, particularmente docampesinato, que tocaria aos intelectuais revolu-cionários canalizar como vontade coletiva? Ape-sar das muitas modificações no plano de estudona vida de prisioneiro, não parece que Gramscitenha fugido muito dessa impostação original, des-sas perguntas. Nos Cadernos do cárcere, porém,Gramsci não mais usou a expressão “espírito po-pular criativo”, possivelmente para se precaver decair em alguma armadilha de marca idealista1.

Por outro lado, sempre nos Cadernos do cár-cere, Gramsci passou a utilizar a expressão “clas-ses subalternas” e “grupos subalternos”, numapossível ampliação do mesmo campo analítico.Há alguma implicação teórico-metodológica nes-sa mudança? Há alguma implicação política?

Já no primeiro caderno e no caderno 2, algu-mas notas de Gramsci sugeriam a ampliação danoção de meridione para todo o mediterrâneo,dentro da dialética nacional/internacional, dasubalternidade imposta pelo colonialismo. O ca-

derno 3, redigido em 1930 e considerado de mis-celânea, começa com anotações principalmentesobre intelectuais e o americanismo, temas cruciaisda pesquisa de Gramsci. Quase queimprovisamente aparece uma curta nota, a de nú-mero 14, nomeada História da classe dominantee história das classes subalternas, que traz umaobservação essencial de caráter metodológico.Nessa nota extraordinariamente sintética, desta-cam-se, desde logo, duas observações decisivaspara se elucidar o raciocínio de Gramsci: 1) “ahistória das classes subalternas é necessariamen-te desagregada e episódica”; 2) “há na atividadedessas classes uma tendência à unificação, aindaque em planos provisórios, mas essa é a partemenos visível e que se demonstra somente com aobtenção da vitória” (GRAMSCI, 1977, Q 3, §14, p. 299-300)2.

A primeira afirmação tem um caráter bastantegeral e indica a situação histórica das classes su-balternas, que “sofrem a iniciativa da classe do-minante, mesmo quando se rebelam; estão emestado de defesa alarmada”. A segunda observa-ção, cujas implicações não são desenvolvidas nessapassagem, sugere que as classes subalternas, por“iniciativa autônoma”, tendem à unificação e, nes-sa condição, à superação da subalternidade, àhegemonia. As classes subalternas unificadas emtorno de uma perspectiva autônoma propõem umanova hegemonia, uma nova ordem social (ibidem).

Essas observações trazem à tona, mais umavez, a continuidade e o diálogo permanente deGramsci com seus interlocutores quase que pre-sumidos, mas que estiveram presentes em suaconcepção teórico-política, desenvolvida na açãodos dias em que viveram os conselhos de fábricade Torino. As referências explícitas a Sorel e aRosa Luxemburg nunca foram numerosas emGramsci, nem no período revolucionário de 1917-1921, nem nos Cadernos do cárcere, o que nãosignifica que preocupações comuns e incidênciasno pensamento não estivessem presentes.

Como se sabe, Sorel foi importante expoenteteórico do sindicalismo revolucionário e RosaLuxemburg uma notável personalidade da NeueLinke do SPD – Partido Social-Democrata da Ale-

1 Essa passagem em particular, mas o conjunto do texto sedeve ao estimulante diálogo com Giorgio Baratta, cujo pontode partida pode ser visto em Baratta (2003, p. 32-35).

2 A partir de agora, os Quaderni del carcere, de AntonioGramsci (1977), serão referidos pela letra Q seguida donúmero do caderno, o parágrafo e a página.

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manha – e fundadora, depois, do KPD – PartidoComunista da Alemanha. Guardadas as muitas di-ferenças entre esses autores, em Gramsci incidiaa comum preocupação com a auto-atividade dasmassas, a auto-organização e o autogoverno. Emsuma, com um “espírito de cisão” presente naatividade das classes submetidas. O problema passaa ser o endereço que toma a “iniciativa autônoma”das massas e como a “tendência à unificação” deveou pode ocorrer.

Gramsci não indica o como e o porquê dessatendência, mas uma possível suposição encontra-se na proposição marxiana da dinâmica do capitalcomo agente da unificação da classe operária, masessa suposição se mostra falsa se considerarmosa presença de alguma forma de economicismo emMarx. Por outro lado, é falsa também essa supo-sição, por certo, se considerarmos grupos sociaissubalternos de formações sociais pré-capitalistas.

Gramsci parte desse substrato comum, dessapreocupação comum, com Sorel e Rosa, da inici-ativa espontânea das massas, do que poderíamoschamar “espírito de cisão” ou “espírito popularcriativo”. Em Sorel, critica a permanência nasubalternidade cultural ao liberalismo por mantera divisão entre o econômico e o político. A con-cepção teórica da organização dos trabalhadoresestritamente no campo econômico, educados emtorno do mito da greve geral contra o capital e oEstado político, era insuficiente para criar umasituação nova de hegemonia, exatamente por ne-gar a política e a atividade intelectual revolucioná-ria. O mesmo economicismo presente em Sorel,Gramsci critica também em Rosa Luxemburg,pelo menos em seu trabalho sobre a revoluçãorussa de 1905. Segundo o argumento de Gramsci,também em Rosa haveria uma tendênciaeconomicista ao sugerir que crises econômicaspudessem ser geradoras espontâneas de situaçõesrevolucionárias (Q 13, § 24, p. 1613).

Os indícios são todos de que, para Gramsci,qualquer forma de economicismo representa umavariante de subalternidade teórica. Mas essa afir-mação tem um significado ainda mais incisivo: aemancipação do subalterno supõe que a unifica-ção passe também pela emancipação cultural, pelapercepção de que o econômico e o político (e ofilosófico) são expressões de uma mesma reali-dade em movimento: a emancipação do subalter-no passa pela construção de um novo bloco his-tórico e, como constitutivo desse processo, de

uma reforma moral e intelectual (uma revoluçãocultural gerada na auto-educação das massas). Eisa razão da grande importância do estudo do fol-clore, da religiosidade, do senso comum, das for-mas de organização das classes subalternas. É osocrático “conhece-te a ti mesmo” como condi-ção da transformação.

IV. CLASSES SUBALTERNAS E INTELEC-TUAIS

Passagens dissociadas de diferentes cadernospodem fazer pensar que a expressão “classes su-balternas” leva a um grau de abstração e generali-dade tal a torná-la estéril do ponto de vista analíti-co ou mesmo político3. Por que então Gramsci autiliza, além de ir ainda mais longe com o uso dotermo “grupos subalternos”? A resposta possívelpode apontar em duas direções diferentes e com-plementares. A primeira é a possibilidade de seestender o campo analítico no tempo e no espaço.O indício claro disso está em parágrafos subse-qüentes do caderno 3, nos quais Gramsci tratadas classes subalternas das comune italianas daépoca medieval (§ 16) e da antiga Roma (§ 18).Com essas questões em mente, podem ser vas-culhadas as diversas camadas culturais que com-põem o folclore e o senso comum da Itália, parti-cularmente do campesinato.

Nessa lógica, pode (deve) ser estudada a ori-gem e a formação da classe operária, como parti-cularidade essencial do mundo moderno. Essacategoria de classes ou grupos subalternos per-mite ainda que o campo analítico se amplie parazonas coloniais, como já foi sugerido, exatamentecomo Gramsci entendia ser a condição da própriaItália meridional ou até mesmo a América Latina,como sugere o parágrafo 5 desse mesmo cader-no 3. Ou seja, a generalidade do termo “classessubalternas” ou “grupos subalternos” possibilita aanálise apurada de particularidades as mais diver-sas dentro de uma tendência geral à unificação dogênero humano.

Mas essa ampliação do campo de visão analí-tica não traria também como implicação aindefinição prática e política? Aqui a resposta nãopode passar do terreno das hipóteses, a menosque se proceda a uma pesquisa muito mais acurada.A importância que Gramsci dava ao americanismo

3 O mesmo pode ser dito da categoria de “revolução pas-siva”, que está fora dos objetivos do presente escrito.

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e ao fordismo como tema de pesquisa comprovacomo a centralidade do trabalho fabril persistiaem sua crítica da modernidade capitalista, o queaponta na direção oposta a uma possível diluiçãoda classe operária no seio de indefinidos e pulve-rizados “grupos subalternos”. Mantida acentralidade operária na construção de uma novahegemonia antípoda ao domínio do capital, as clas-ses subalternas da época capitalista ganham umacoluna vertebral por meio da qual podem ganharorganicidade e proceder na tendência à unificaçãoe à hegemonia.

O problema passaria, então, a ser aquele dedistinguir social e culturalmente quais seriam, en-tre os grupos subalternos, os possíveis aliados daclasse operária. Seria apenas o campesinato? Ouo campesinato seria tão diverso em sua formaçãocultural, em seu folclore, que nem analítica e nempoliticamente poderia ser visto como uma entida-de exatamente homogênea, até mesmo por ser umaclasse de transição, uma classe do pré-capitalis-mo que deveria ser colaboradora da transição so-cialista, conforme havia demonstrado a elabora-ção do último Lênin? Mais amplamente, seria ain-da de se questionar o quanto haveria de particula-ridades nos diferentes estratos camponeses her-dados da época feudal na Europa ou se o chama-do campesinato das vastas zonas coloniais nãoteriam também sua enorme diversidade?

A teoria da história que Gramsci desenvolveunos Cadernos do cárcere nada tinha de esquemáticaou linear, assim como sua concepção de classesocial. A noção de subalterno pode parecer de-masiadamente elástica, mas é fato que a questãomeridional italiana já ganhava uma nova comple-xidade, assim como a própria noção de questãomeridional já se ampliava para a zona colonial doimperialismo. A questão da unificação das classessubalternas italianas é uma questão nacional, mas,ao mesmo o tempo, é uma questão de unificaçãodas classes subalternas de todo o mundo, umaquestão de unificação do gênero humano.

Essa interpretação só é possível, porém, coma leitura de outras muitas passagens dos Cader-nos do cárcere, particularmente do caderno 13,no qual Gramsci analisa formas e modos pelosquais as classes subalternas podem superar suacondição. Na verdade, no caderno 13, no qualretoma anotações feitas em cadernos anteriores,Gramsci trata particularmente da situação da classeoperária, de um ponto de vista metodológico, de

seu formar-se como classe capaz de dirigir umarco de alianças composto pelo conjunto das clas-ses subalternas contra a dominação burguesa.Permanece, portanto, no fundo, o problema daaliança operário-camponesa e da frente única,esboçada no período imediatamente precedente aoencarceramento, notadamente em Alguns temasda questão meridional.

Gramsci se questiona sobre como se formauma vontade coletiva, ou seja, sobre o como seunificam as classes subalternas. Ou, dito de outramaneira, como a cultura das classes subalternasse rompe e se transforma em cultura e vontadecoletiva antagônica à das classes dominantes, rom-pendo-se assim a subalternidade. Esse problemaé crucial não só no conjunto dos Cadernos docárcere, mas em toda a elaboração da cultura po-lítica do marxismo.

Um movimento de emancipação só pode par-tir da auto-atividade das massas, de sua autono-mia, da cisão com a classe dominante. Gramsciinterpreta O Príncipe, de Maquiavel, com as len-tes de Sorel, exatamente para destacar esse per-sonagem imaginário como a representação da von-tade coletiva autônoma que se auto-organiza emoposição à ordem social vigente, gerando uma ci-são que contesta a subalternidade. Esta demanda,todavia, uma reforma moral e intelectual, umatransformação cultural de grande envergadura his-tórica, que supere e substitua a cultura da velhaclasse dominante.

Entretanto, essas lentes não são suficientespara enxergar que não basta a negação radical daordem. É preciso também, e ao mesmo tempo,que se materialize a nova subjetividade, o que sig-nifica organizar a vida material e cultural sobrenovas bases. A negação da velha ordem significatambém elaboração teórico-prática de um projetode nova vida. Não um projeto em abstrato, masconstruído segundo a condução possível do mo-vimento do real e que parte “do acordo alcançadonas vontades associadas” (Q 13, § 1, p. 1537).

A nova subjetividade, crítica e negativa da con-dição subalterna, parte necessariamente das con-dições reais existentes, das contradições do real,dos fragmentos que compõem a ideologia subal-terna, dos impulsos de rebeldia dos dominados(quase a dizer, do “espírito popular criativo”). Arecomposição dos fragmentos culturais e ideoló-gicos emerso da rebeldia dos dominados, na pers-pectiva de negação da subalternidade, demanda

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necessariamente uma reforma moral e intelectualde largo alcance, no sentido da recomposição detoda a vida material e cultural.

Esse movimento histórico só se torna possí-vel desde que as classes subalternas gerem umgrupo de intelectuais orgânicos. Orgânicos por-que emersos do seio da própria classe e porqueatuam historicamente em razão dos interesses daclasse da qual se originaram. Organizados, cons-tituem o Príncipe moderno, um organismo que é“um elemento de sociedade complexo no qual játenha início a concretização de uma vontade cole-tiva reconhecida e afirmada parcialmente na ação”(Q 13, § 1, p. 1558).

Se for assim, fica evidente que não se podepensar a condição subalterna e a luta por sua eman-cipação dissociada dos grupos intelectuais. En-tão, em Gramsci, a história do folclore, da reli-giosidade, do senso comum das classes subalter-nas enfim, não pode estar dissociada das formasde domínio que lhe são impostas com decisivacontribuição dos grupos intelectuais. Assim tam-bém a negação/superação da condição subalternanão pode passar ao largo da formação de um gru-po intelectual autônomo forjado pelas própriasclasses subalternas em luta contra sua condição.Aqui se percebe como o caderno 12, que trata dahistória dos intelectuais, e o caderno 27, que falada história das classes subalternas, fazem partede uma mesma pesquisa.

De fato, no caderno 12, Gramsci se refereimplicitamente aos intelectuais orgânicos da bur-guesia e aos necessários ao proletariado: “Cadagrupo social, nascendo no terreno originário deuma função essencial no mundo da produção eco-nômica, se cria juntamente, organicamente, umaou mais camadas de intelectuais que lhe dãohomogeneidade e consciência da própria funçãonão só no campo econômico, mas também nosocial e político”. Depois é que amplia a questãopara os intelectuais originados da época feudal earremata: “A categoria dos eclesiásticos pode serconsiderada a categoria intelectual organicamenteligada à aristocracia fundiária” (Q 12, § 1, p. 1513-1514).

A explicação das razões pelas quais na Itáliado século XVI não se formou uma vontade cole-tiva que unificasse a península sob forma de mo-narquia absoluta, Gramsci encontra nas caracte-rísticas cosmopolitas dos intelectuais, cuja origemremonta ao Império Romano, mas que a Igreja de

Roma preservou e desenvolveu. O Renascimentofoi um empreendimento cultural de elevada quali-dade e valor, mas foi uma iniciativa de frações danobreza que colocaram os artistas e intelectuaissob sua égide, não permitindo que se transfor-masse em fenômeno de massa, que atingisse ascamadas sociais subalternas.

A Reforma religiosa, pelo contrário, significouuma reforma moral e intelectual de longo alcance,não só pela tendencial laicização da vida terrena,com a valorização do trabalho e da acumulação dariqueza, mas pela negação do universalismo daIgreja de Roma. O contato imediato do fiel comseu deus, mediado pelo pastor, rompeu a hierar-quia católica e regionalizou a organização religio-sa, contribuindo assim na formação de Estadosterritoriais. Em determinadas regiões (como naAlemanha), a reforma reforçou o poder local danobreza, mas em outros contribuiu na gestaçãoda revolução burguesa (como na Holanda, na In-glaterra e nos Estados Unidos). De todo modo,esteve muito longe de alcançar um padrão cultu-ral que se aproximasse ao menos doRenascimento.

Isso significa que a Reforma desenvolveu umpapel contraditório, mas contribuiu também paraque eclodisse o jacobinismo na Revolução Fran-cesa. Jacobinismo aqui entendido como um gru-po intelectual que expressa a vontade coletiva na-cional-popular. Pensando assim, Gramsci podiaver em Maquiavel um precursor do jacobinismo,como alguém que percebe no universalismo daIgreja de Roma o inimigo a ser batido a fim de queprevalecesse uma vontade coletiva representadana figura do Príncipe, maneira pela qual as clas-ses subalternas se fariam protagonistas da forma-ção de um Estado territorial pelo qual se difundis-se o Renascimento como fenômeno de massa. Adifusão do Renascimento como fenômeno demassa poderia ser a geradora de uma civilizaçãode homens universais, como Gramsci percebia emLeonardo da Vinci.

Sorel notava os intelectuais e políticos das clas-ses dominantes como partícipes de um mesmobloco histórico, mas precavia a classe dos produ-tores da geração de intelectuais ou dirigentes quepoderiam vir a ser beneficiários de outras formasde dominação. Daí seu antijacobinismo, sua pos-tura de cisão da vida política e intelectual dos do-minantes, sua negação da forma partido político.Gramsci, que na juventude teve uma visão bas-

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tante aparentada a essa, nos Cadernos passa a vero jacobinismo precisamente como a ação de umgrupo dirigente gerado e organicamente vincula-do às classes subalternas, ainda que em graus emedidas diferentes.

Em seu diálogo com Sorel (mediado porMaquiavel), Gramsci concebe o partido revolu-cionário como um intelectual orgânico coletivo,formado como instrumento concreto capaz de ca-nalizar a rebeldia dos subalternos, de recomporos fragmentos ideológicos de recusa da ordem,de promover uma reforma moral e intelectual quenegue a subalternidade, concebendo um novo pro-jeto de vida social. A rebeldia espontânea das clas-ses subalternas é conduzida para um projeto dehegemonia, não deixada entregue aoespontaneísmo, como em Sorel.

Continuando a interlocução com Sorel, sem-pre no caderno 13, Gramsci discute como as di-versas formas de sindicalismo e corporativismopreservam a condição subalterna da classe operá-ria, exatamente por não colocar no horizonte oproblema da hegemonia, imprescindível para afundação de uma nova ordem, de um novo Esta-do. O limite teórico do sindicalismo corporativo,mesmo na vertente revolucionária soreliana é oeconomicismo, antes de tudo porque reproduz avisão da vida social que é própria do liberalismo,da ideologia da classe dominante.

Ao identificar todo o político como instânciade dominação da classe no poder, o sindicalismorevolucionário reconhece como real a falsadicotomia entre o econômico e o político, entre asociedade civil e o Estado. De modo que osindicalismo é uma variante do economicismo, éideologia de uma classe que continua a ser subal-terna. O sindicalismo teórico “enquanto se referea um grupo subalterno, ao qual com essa teoria seimpede de vir a ser alguma vez dominante, de de-senvolver-se para além da fase econômico-corporativa para elevar-se à fase de hegemoniaético-política na sociedade civil e dominante noEstado” (Q 13, § 18, p. 1590).

Na teoria e na ação política, “a luta pode e deveser conduzida desenvolvendo o conceito dehegemonia [...]” (Q 13, § 18, p. 1595-1596), con-dição para que a classe operária possa se emanci-par da situação de subalternidade. O que pode sig-nificar essa afirmação? Que a condição subalter-na só pode vir a ser superada desde que a classe

operária assuma a perspectiva da totalidade.

Assumir a perspectiva da totalidade comportadois significados plausíveis, que se completam.O primeiro seria que a classe operária assume aperspectiva do interesse do conjunto das classessubalternas no processo de negação dasubalternidade, ou seja, no processo de emanci-pação da exploração e da opressão, implicandoum programa, um projeto, um momento de cons-trução. O segundo seria que deveria se dotar deuma perspectiva cultural e teórica adequada, quemetodologicamente parta do princípio que “eco-nomia” e “política”, sociedade civil e Estado sãouma mesma e única realidade, que pode ser abor-dada por diferentes pontos de aproximação; essaperspectiva da totalidade não poderia ser outra quea oferecida pela filosofia da práxis.

Decerto que as classes subalternas não sãoapenas a classe operária e o campesinato, mesmoquando o argumento gira em torno da crítica aocapitalismo, ainda que dependa muito do grau eda fase de desenvolvimento em que se encontradeterminada nação ou povo. Artesãos também sãosobrevivências da ordem feudal ou outras, assimcomo são estratos de comerciantes ou de intelec-tuais tradicionais. Todos esses grupos sociais sãosubalternos e tendem sofrer a hegemonia burgue-sa, “a iniciativa da classe dominante”. Não é dife-rente com a classe operária, com o proletariadoindustrial, a não ser por um ponto decisivo: a classeoperária produz a mais-valia do qual o capital sealimenta, e é capaz, ainda que com enormes difi-culdades, de produzir também intelectuais orgâ-nicos e cultura crítica. Por outro lado, “a massados camponeses, ainda que desempenhe uma fun-ção essencial no mundo da produção, não elaboraintelectuais ‘orgânicos’ próprios e não assimilanenhuma camada de intelectuais ‘tradicionais’[...]” (Q 12, § 1, p. 1514).

Caberia então à classe operária, uma classesubalterna particular, agrupar o conjunto das clas-ses subalternas para a luta contra o capitalismo epor uma nova ordem social. Para isso, era im-prescindível conhecer/transformar suas culturasparticulares e fragmentárias que se expressavamcomo folclore, como religião, como senso co-mum, e, por meio de um “progresso intelectualde massas”, gerar uma nova cultura, invólucro deuma nova hegemonia e de um novo bloco históri-co. Para isso tudo, a formação de uma camada deintelectuais orgânicos seria imprescindível.

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O que Gramsci faz é, ao fim das contas,aprofundar e desenvolver a fórmula política dafrente única e da aliança operário-camponesa, comas quais trabalhava no momento da prisão. So-mente uma coalizão do conjunto das classes su-balternas, orientadas pela classe operária e seusintelectuais orgânicos – o Príncipe moderno –,poderia se constituir em força antagônica e alter-nativa ao capitalismo.

Assim, o conjunto das classes subalternas,negando sua condição por meio de uma reformamoral e intelectual, com sua associação de vonta-des, transformar-se-ia em uma nova sociedadecivil (e em um novo Estado), materializando umanova hegemonia. Quando fala de nova sociedadecivil e de novo Estado, Gramsci supõe o Estadooperário, o Estado socialista. Esse Estado é obrado conjunto dos grupos sociais que se emancipa-ram da subalternidade e alcançaram o estatuto deconstrutores de uma nova civilização.

V. GRAMSCI EM FÓRMIA

Um indício forte dessa leitura encontra-se pre-cisamente no desenvolvimento do trabalho deGramsci depois de ser transferido do cárcere deTuri para a clínica de Fórmia. Retoma, então, nocaderno 22, o projeto de reflexão crítica sobre oamericanismo e fordismo, que parecia ter sidodeixado para trás, voltando a insistir e mostrar aimportância crucial da classe operária no mundomoderno.

Se, nos cadernos 25 e 27, Gramsci trata dahistória e da cultura dos grupos subalternos quesobrevivem, no caderno 22, debruça-se sobre onovíssimo produzido pelo capitalismo: oamericanismo fordista. O americanismo fordistaé, para Gramsci, um intento de anular a leitendencial da queda do lucro capitalista, quandoentão “as classes subalternas, que teriam que ser‘manipuladas’ e racionalizadas de acordo com asnovas metas, necessariamente resistem” (Q 22, §1, p. 2139). Aqui, a iniciativa da classe dominanteé de tal ordem que “a racionalização determinou anecessidade de elaborar um novo tipo humano,adequado ao novo tipo de trabalho e de processoprodutivo” (Q 22, § 2, p. 2146).

A classe operária fordista ainda está sendo ela-borada pela iniciativa hegemônica da burguesia,de modo que ainda não se mostrou capaz de criarsupra-estruturas de classe que a levassem a colo-car em pauta a questão da hegemonia. Na verda-

de, nas condições de implantação do fordismo, “ahegemonia nasce da fábrica e necessita apenas,para ser exercida, de uma quantidade mínima deintermediários profissionais da política e da ideo-logia” (Q 22, § 2, p. 2146).

Ora, a novíssima classe operária ainda está emconstrução, não é e ainda está longe de ser umaclasse em condições de colocar em questão ahegemonia em disputa. Pelo momento, é ainda umgrupo subalterno, uma classe subalterna que nãoconsegue se unificar e muito menos ser o núcleode um arco de alianças no qual se veja a frenteúnica das classes subalternas. Por um lado, é muitomais avançada do que a classe operária russa quefez a revolução socialista ou a classe operária ita-liana que pôs em prática a tão marcante experiên-cia dos conselhos de fábrica, mas, por outro, éuma força política e cultural apenas potencial emuito embrionária. A racionalização capitalista daprodução sob a forma taylorista e fordista, comoavanço do maquinismo e do automatismo, gerauma situação contraditória de aprofundamento daalienação e de criação das condições para a nega-ção da subalternidade operária. Cria a condiçãopara que o indivíduo trabalhador se aproprie par-cialmente da técnica produtiva, mas o isola e frag-menta do ser classe operária.

No caderno 25, Gramsci recolhe, com pou-cas mudanças, as anotações anteriormente feitase atribui o nome, nesse caderno especial, de Nasmargens da história. História dos grupos sociaissubalternos. O convite ao trabalho é de umaimensidão significativa e Gramsci oferece apenasalguns poucos indícios, mas a orientação da pes-quisa está clara e definida. De certa forma, é umcontraponto com o temário do caderno 22.

Nesse caderno 25, o parágrafo 14 do caderno3 é transcrito com modificações. Antes de tudo, otítulo assume seu caráter de Critériosmetodológicos. Percebe-se que a expressão “clas-ses subalternas” é substituída por “grupos subal-ternos”, mas não desaparece do texto. Agora,Gramsci explicita que a tendência à unificaçãodesses grupos é continuamente destroçada pelainiciativa dos grupos dominantes, de modo queessa tendência pode ser demonstrada apenas emcaso de sucesso. Gramsci também explicita me-lhor a passagem do caderno 3: “Os grupos subal-ternos sofrem sempre a iniciativa dos grupos do-minantes, mesmo quando se rebelam e se insur-gem: só a vitória ‘permanente’ rompe, e não ime-

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diatamente, a subordinação. Na realidade, mesmoquando parecem triunfantes, os grupos subalter-nos estão só em estado de defesa alarmada” (Q25, § 2, p. 2283-2284).

Essa passagem é mais explícita e, ao mesmotempo, mais ampla e profunda. A expressão “gru-pos subalternos” refere-se também a camadassociais que não podem ser definidas como classepropriamente dita, como o caso de grupos inte-lectuais ou mesmo de classes que não se forma-ram ainda como tal. Por outro lado, Gramsci acen-tua a dificuldade em se romper a subalternidade eo risco da ilusão de vitória. Parece que, aqui,Gramsci repercute as dificuldades e os proble-mas que se desdobravam na União Soviética4.

Gramsci aprofunda suas observaçõesmetodológicas no parágrafo 5, no qual mostracabalmente a impossibilidade de se fazer uma his-tória (e de se fazer política) das classes subalter-nas dissociada da totalidade social, que se expres-sa a partir do Estado das classes dirigentes. DizGramsci a propósito: “A unidade histórica das clas-ses dirigentes ocorre no Estado e a sua história éessencialmente a história dos Estados e dos gru-pos de Estados”. De modo que “a unidade históri-ca fundamental, pela sua concretude, é o resulta-do das relações orgânicas entre Estado ou socie-dade política e ‘sociedade civil’. As classes subal-ternas, por definição, não são unificadas e nãopodem unificar-se até que não possam vir a ser‘Estado’: a sua história, portanto, é entrelaçadacom a da sociedade civil, é uma função‘desagregada’ e descontínua da história da socie-dade civil e, por esse trâmite, da história dos Es-tados e dos grupos de Estados” (Q 25, § 5, p.2288).

As classes subalternas podem compor um novoEstado, uma nova totalidade, precisamente a par-tir do momento em que negam a subalternidade ese emancipam. Conhecer e transformar são as-pectos e momentos da filosofia da práxis, da ci-ência da história e da política. Por isso, Gramscienuncia alguns pontos essenciais de pesquisa paraquem se arrisca a fazer história das classes subal-

ternas tendo em mente o projeto de sua emanci-pação. Historiador aqui não é apenas o especialis-ta nos estudos dos acontecimentos do passado,mas é o intelectual orgânico que faz a história jun-to com as classes subalternas, no sentido depráxis. É preciso conhecer a origem e o desen-volvimento dos grupos sociais subalternos, seugrau de adesão à ordem existente, sua capacidadede impor reivindicações próprias, o surgimentode formações dos grupos dirigentes voltados amanter a subalternidade, o surgimento de forma-ções dos grupos subalternos que afirmem seusinteresses dentro da ordem ou que lutem contra asubalternidade.

Ao fim das contas, Gramsci insiste no proble-ma posto em 1923, sobre a necessidade de seconhecer a Itália a fim de transformá-la. Apenasque agora seu ângulo de visão é muito mais amploe universal. Continua também acompanhado dainterlocução com Sorel. Para Gramsci, em sínte-se: “o historiador deve notar e justificar a linha dedesenvolvimento em direção à autonomia integral,desde as fases mais primitivas, deve notar cadamanifestação de soreliano ‘espírito de cisão’”. Sãoimensas, porém, as dificuldades para o historia-dor que projeta a história, não só por conta dafragmentação dos grupos subalternos, mas tam-bém em razão das “repercussões das atividadesbem mais eficazes, pois que surgidas do Estado,dos grupos dominantes sobre aqueles subalternose sobre os seus partidos” (Q 25, § 5, p. 2288-2289).

Gramsci começa o caderno 25 exatamentecom a sugestão de um trabalho monográfico depesquisa. Aborda o fenômeno histórico-social deDavide Lazzaretti (1834-1878), um líder rebeldeemerso das camadas subalternas da Toscana. Pro-feta místico, Lazzaretti era também um pregadorem oposição à monarquia, tal como se apresenta-va a Igreja. Gramsci critica a bibliografia existen-te sobre o evento, identificando a tendência a seisolar o fato, a fim de que fosse atribuída umanatureza patológica ao personagem central da tra-ma, já que, “para uma elite social, os elementosdos grupos subalternos têm sempre alguma coisade barbaresco e de patológico” (Q 25, § 1, p.2279).

Assim, a literatura existente, na verdade, con-templando os interesses das classes dominantes,procurava “esconder as causas do mal-estar ge-ral que existia na Itália depois de 1970, dando a

4 É sempre bom lembrar que uma citação isolada muitopouco pode garantir, mas se observarmos outras linhas dosCadernos nas quais Gramsci sugere estar a União Soviéticaem estágio “econômico-corporativo”, percebemos comoentende a subalternidade não ter sido efetivamente vencidanaqueles países.

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cada um dos episódios de explosão de talmal-estar, explicações restritivas, individuais,folclorísticas, patológicas etc. A mesma coisaocorreu em maior dimensão para o ‘brigantaggio’meridional e das ilhas” (Q 25, § 1, p. 2280).

O interesse de Gramsci nesse episódio parti-cular encontra-se precisamente na manifestaçãode “popularidade e espontaneidade”, assim como“qual tendência subversiva-popular-elementar po-dia nascer entre os camponeses em seguida aoabstencionismo político clerical e ao fato de queas massas rurais, na ausência de partidos regula-res, se procuravam dirigentes locais que emer-giam da própria massa, misturando a religião e ofanatismo ao conjunto de reivindicações que deforma elementar fermentavam nos campos” (Q25, § 1, p. 2280 bis).

Nas páginas desse caderno, Gramsci tece con-siderações sobre aspectos da história dos grupossubalternos na Roma antiga e na época feudal edestaca que “no Estado antigo e naquele medie-val, a centralização, seja político-territorial, sejasocial, (e um não é mais que função do outro) eramínima”. Nessa situação, “os grupos subalternostinham uma vida própria, em si, instituições pró-prias etc., e às vezes essas instituições tinhamfunções estatais, que faziam do Estado uma fede-ração de grupos sociais com funções diversas nãosubordinadas [...]”. Em contraposição, “o Estadomoderno substitui o bloco mecânico dos grupossociais pela subordinação à hegemonia ativa dogrupo dirigente e dominante, de modo que abolealgumas autonomias, que porém renascem de outraforma, como partidos, sindicatos, associações decultura”. Referindo-se ao fascismo, Gramsci anotaainda que “as ditaduras contemporâneas abolemlegalmente também essas novas formas de auto-nomia e se esforçam para incorporá-las na vidaestatal: a centralização legal de toda a vida nacio-nal nas mãos do grupo dominante se faz ‘totalitá-rio’” (Q 25, § 4, p. 2287).

Gramsci avalia então como os grupos subal-ternos da Antiguidade Clássica e da época medie-val se acoplavam ao grupo dominante, mas tinhamuma vida própria, normas e padrões culturais pró-prios. Em caso de sanada a dificuldade documen-tal, a história desses grupos não seria difícil deser elaborada. Na época burguesa, o Estado tendea centralizar a atividade da classe dominante, ten-de a coordenar a hegemonia sobre a classe operá-ria e o conjunto dos grupos subalternos. Estes,

por sua vez, manifestam sua autonomia por meiode organizações econômicas, políticas e culturais.O empenho do Estado e da classe dominante ésubmeter essa autonomia e bloquear o eventualdesenvolvimento do “espírito de cisão”, caminhopara a negação da subalternidade, constituindo ahegemonia.

Nessa mesma linha de reflexão segue o cader-no 27, composto apenas por algumas poucas pá-ginas tratando de Observações sobre o “folclo-re”. Gramsci observa como a literatura existente,sendo sempre uma expressão da “ciência” dasclasses dominantes, concebe a Ciência do folclo-re apenas como uma coleção de informações pi-torescas que podem se manifestar como conhe-cimento erudito. Para Gramsci, no entanto, o fol-clore deveria ser estudado, tal como entendemcertas correntes da Antropologia, como cultura,mais especificamente como cultura popular. Dizentão Gramsci sobre o folclore: “Ocorreria estudá-lo em vez como ‘concepção do mundo e da vida’,implícita em grande medida, de determinados es-tratos (determinados no tempo e no espaço) dasociedade, em contraposição (também essa nomais implícita, mecânica, objetiva) com as con-cepções do mundo ‘oficiais’ (ou em sentido maisamplo das partes cultas da sociedade historica-mente determinadas) que se sucederam no de-senvolvimento histórico. (Assim a estreita relaçãoentre folclore e “senso comum” que é o folclorefilosófico). Concepção de mundo não só não ela-borada e sistemática, porque o povo (ou seja, oconjunto das classes subalternas e instrumentaisde cada forma de sociedade que até agora existiu)por definição não pode ter concepções elabora-das, sistemáticas e politicamente organizadas ecentralizadas no seu contraditório desenvolvimen-to, mas que pelo contrário são múltiplas – não sóno sentido de diverso, e justaposto, mas tambémno sentido de estratificado do mais grosseiro aomenos grosseiro – se até mesmo não se deve fa-lar de um aglomerado indigesto de fragmentos detodas as concepções de mundo e da vida que sesucederam na história, das quais a maior parte,ou seja, só no folclore se encontram as sobrevi-vências documentais mudadas e contaminadas”(Q 27, § 1, p. 2311-2312)

Essa longa e pouco clara passagem exige bemum comentário. A rigor, para Gramsci, o folcloreé composto pela concepção de mundo e de vidadas classes subalternas. Mas essa concepção de

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mundo e de vida também se contrapõe à visão demundo e de vida dos grupos dirigentes e, maisespecificamente, de seus intelectuais. Essacontraposição, em geral, ocorre sob forma dereleitura fragmentada da cultura dos grupos diri-gentes em sucessão histórica. Ainda mais, a con-cepção de mundo e de vida das classes subalter-nas é múltipla, estratificada, justaposta e mistura-da, já que essas camadas sociais, por sua própriacondição, não podem contar com uma visão demundo e da vida sistemática e elaborada comoFilosofia.

O “senso comum” é o sedimento superior dofolclore, porquanto é folclorização da Filosofia dasclasses dirigentes. Assim, a Filosofia e a Ciênciamodernas oferecem sempre novos elementos quese transformam em senso comum, em folclore.Parece que aquilo que Gramsci chama de“lorianismo” seja precisamente uma forma de fol-clore da ciência. De modo que “o folclore podeser entendido só como um reflexo das condiçõesde vida cultural do povo, se bem que certas con-dições próprias do folclore se prolonguem mes-mo depois que as condições sejam (ou pareçam)modificadas ou dêem lugar a combinações bizar-ras” (Q 27, § 1, p. 2312).

A religião é outro elemento conectado com ofolclore (e com o senso comum), particularmen-te por configurar uma moral. Note-se que, nocatolicismo, e também na vertente ortodoxa docristianismo, há uma diferença significativa entrea religião popular (dos simples) e a religião dosintelectuais. Nesse campo da moral religiosa, tam-bém devem ser discernidos os diversos estratosculturais: “aqueles fossilizados que espelham con-dições de vida passada e, portanto, conservado-res e reacionários, e aqueles que são uma série deinovações, muitas vezes criativas e progressivas,determinadas espontaneamente de formas e con-dições de vida em processo de desenvolvimento eque estão em contradição, ou somente diferentes,da moral dos estratos dirigentes” (Q 27, § 1, p.2313).

Veja-se como, na reflexão de Gramsci, apare-cem elementos que enriquecem e diversificam oconceito e o entendimento de folclore. Longe deser um universo fixo e estéril, o folclore é apre-sentado como um universo de representaçõesideológicas no qual a religião, a moral, a ciência ea filosofia se estratificam e se misturam, ganhan-do formas diversas e móveis de dominação e de

imposição da subalternidade. Mas Gramsci nãodeixa de notar a presença do “espírito popularcriativo” no folclore, criações culturais espontâ-neas que podem ser elementos de negação dasubalternidade. No folclore, aparecem esponta-neamente momentos de autonomia e de antago-nismo dos grupos sociais subalternos.

Da mesma maneira, Gramsci também sugereque, frente à filosofia da práxis, toda a religião etoda a filosofia das classes dirigentes e de seusintelectuais podem ser encaradas como folclore,como camadas culturais de um tempo que deveráser passado. Na verdade, a própria filosofia dapráxis pode encontrar aspectos de folclore em seuprocesso de desenvolvimento e de difusão. So-mente com o aprofundamento dessa perspectivacrítica é que se poderá induzir “o nascimento deuma nova cultura nas grandes massas populares,ou seja, desaparecerá o destaque entre culturamoderna e cultura popular ou folclore. Uma ativi-dade desse gênero, feita em profundidade,corresponderia no plano intelectual a isso que foia Reforma nos países protestantes” (Q 27, § 1, p.2314).

VI. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Algumas conclusões muito provisórias podemser avançadas ao fim deste breve escrito. Pode-sedizer, antes de tudo, que há uma continuidade sig-nificativa de preocupações no conjunto da obrade Gramsci. Desde muito jovem, Gramsci estevevoltado, em sua ação política e cultural, para oproblema da emancipação, para a questão da li-berdade. Partindo de uma consciência relativamen-te difusa da situação de opressão em que vivia aSardenha, Gramsci concebe uma análise que ob-serva toda a região meridional da Itália como umazona colonial, que faz do campesinato uma cama-da social particularmente submetida. No entanto,foi a vivência com a classe operária de Torino queinformou Gramsci da contradição e da explora-ção capitalista, amadurecendo, então, nele, a con-vicção da necessidade do desenvolvimento do “es-pírito de cisão” como condição fundamental daemancipação do trabalho.

Assim, de suas ações e reflexões sobre os con-selhos de fábrica, em 1919-1920, até o estudosobre o americanismo-fordismo contido no ca-derno 22, de 1934, Gramsci esteve mergulhadona questão da emancipação da classe operária. Naverdade, mesmo antes, quando escrevia artigos

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jornaleiros de crítica cultural, literária e artística,a reflexão de Gramsci guardava esse objetivo edesde logo fê-lo compreender que a emancipaçãonão poderia jamais se limitar a uma mudança purae simples das condições materiais ou jurídicas eque mesmo essas exigiriam uma capacidade deauto-organização, de auto-educação e de autono-mia das massas exercitando e desenvolvendo o“espírito popular criativo”.

Pode-se dizer que, mesmo antes da fundaçãodo Partido Comunista, em 1921, no cabedal cul-tural e teórico de Gramsci, já se encontravam pre-sentes os elementos que lhe possibilitaram o de-senvolvimento teórico realizado em seguida e cul-minado nos Cadernos do cárcere. Em sua fase dedirigente do PCI, Gramsci perseguiu o objetivode emancipar a classe operária da ideologia refor-mista positivista que garantia a subalternidade ope-rária e também contribuía fortemente para pre-servar a condição de opressão na qual os campo-neses se encontravam reduzidos. De início (aindajunto a Bordiga), preocupou-se com a unificaçãoda classe operária, mas depois seu campo de vi-são se ampliou e se focou na questão da aliançaoperário-camponesa, no problema da unificaçãodas classes exploradas e oprimidas sob o capita-lismo. Era o momento da ruptura com Bordiga eda tradução de Lênin para a particularidade italia-na no contexto do capitalismo.

Gramsci era já ciente de como os intelectuaissocialistas eram subalternos às classes dirigentese como serviam de intermediários para manuten-ção da classe operária na situação de impotência.Refletia com acuidade sempre maior no papel dosintelectuais na manutenção da situação de atrasodo Mezzogiorno. Sem que a classe operária for-masse seus próprios intelectuais e sem que sedesorganizasse o bloco intelectual meridional, aemancipação dos trabalhadores não seria possí-vel. Às vésperas da prisão, Gramsci havia já con-cebido uma estratégia para a revolução antifascistae anticapitalista, sintetizada na fórmula política dafrente única e da aliança operário-camponesa.

No cárcere, Gramsci aprofundou e ampliounotavelmente essa linha de reflexão e pesquisa.Percebeu a enorme diversidade do mundo cam-ponês, sua riqueza cultural, as manifestações do“espírito popular criativo”, sempre em busca devirtualidades antagônicas do campesinato e dacultura popular que pudessem enriquecer a alian-ça com a classe operária, tal como Gramsci de-

fendia. Da mesma forma, Gramsci ampliou seuraio de visão, perscrutando, a partir da questãomeridional italiana, uma questão meridional plane-tária, composta por imensa e diversificada zonacolonial. Eis a importância cultural e política doestudo da lingüística, do folclore e de outros te-mas que se propôs a estudar na vida de prisionei-ro do fascismo.

Gramsci notou também que a própria classeoperária era uma composição histórica e socialdiferenciada. Não era a mesma na Rússia, na Ale-manha, na Itália ou nos Estados Unidos. Por evi-dente que possa parecer essa assertiva, nela estáimplícita uma questão de método muito impor-tante, com implicações políticas bastante sérias.Avaliar a origem social e histórica, a experiênciapregressa de luta e a cultura popular é importanteno processo de constituição da classe operária,de sua capacidade de se elevar culturalmente epropor uma nova hegemonia, superando asubalternidade.

Parece que Gramsci percebera, no cárcere, quea classe operária da Europa, com toda a sua di-versidade, fora derrotada em 1921 e que a “épocade revolução passiva” que então se iniciara, entreoutras coisas, tendia a remodelar o perfil da clas-se operária, como “iniciativa dos grupos domi-nantes”. Era o caso exemplar do americanismo-fordismo com seu potencial universalizante nocontexto do capitalismo. A classe operária haviasofrido uma grave derrota histórica e começava aser recomposta sob o padrão fordista-tayloristade produção capitalista e a própria União Soviéti-ca se encontrava em um estágio “econômico-corporativo”, ou seja, num estágio muito primá-rio da transição socialista.

Não seria então o caso de ampliar e aprofundaro campo de visão analítica tanto da classe operá-ria, do campesinato, da intelectualidade, todosesses grupos sociais em mutação e vivendo tem-pos históricos diferentes, passando a se utilizarum conceito mais amplo, mais abrangente, comoo de classes subalternas ou de grupos sociais su-balternos? O problema teórico-prático continua-va a ser o mesmo, apenas que ciente do grau imen-so de complexidade: como se forjar uma frenteúnica das classes subalternas tendo em vista suaemancipação da exploração e opressão do capital,partindo de sua diversidade e fluidez e da produ-ção de sempre novas formas de folclore, que fi-cou conhecida como cultura de massas. Catego-

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rias fixas e imutáveis pouco ou nada contribuiri-am para a construção do devir histórico.

Certo que o método de Gramsci, seuhistoricismo radical, ofereceu condições não sópara que sua obra fosse mal-entendida ou mesmomanipulada, assim como categorias que foram deseu uso encontraram outros usos que em nadacoincidiam com os objetivos do autor sardo. Mas,por outro lado, a fluidez dos grupos subalternospercebidas por Gramsci no momento que escre-via tem semelhanças significativas com o mundode hoje, quando muito se fala da crise do movi-

mento operário, da sociedade do trabalho, dofordismo, quando é colocada em discussão a pró-pria existência de uma classe operária. A fluidezda luta social, a existência de movimentos de gru-pos subalternos os mais variados, localizados ouglobalizados, permitem que Gramsci viva no sé-culo XXI e nos coloque o desafio de descortinaro novíssimo, que poderá (ou não) conduzir a for-mação da frente única das classes subalternas docapitalismo mundializado como Império. Mas con-dição para que isso ocorra é que a própria filoso-fia da práxis não seja dada por alguma espécie defolclore (MONAL, 2003).

Marcos Del Roio ([email protected]) é Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo(USP) e Professor de Ciência Política da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 227-230 NOV. 2007

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GRAMSCI AND THE EMANCIPATION OF THE SUBALTERN

Marcos Del Roio

In his Prison Notebooks, Gramsci worked with the notion of subaltern classes and groups, aconcept that has been incorporated by the Social Sciences and current Historiography. Correlatedly,problems of common sense, folklore and religion are presented. It is important to raise the questionof the theoretical and political implications of Gramsci’s elaborations, contextualizing them withinthe entirety of his theoretical and political production, even if only to contest the common uses of theconcept and their real relationship to Gramsci, or to examine to what extent this author can beconsidered relevant for interpretations of the conditions of social struggle in contemporary capitalism.KEYWORDS: Antonio Gramsci; emancipation; subaltern classes.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 233-236 NOV. 2007

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GRAMSCI ET L’EMANCIPATION DU SUBALTERNE

Marcos Del Roio

Dans les Cahiers de Prison, Gramsci s’est servi de la notion de classes et de groupes subalternes,concept employé désormais par les Sciences Sociales et par l’Historiographie actuelle. De même,les problèmes du sens commun, du folklore et de la religion y figurent. Il est important de mettre enquestion les implications théoriques et politiques de la pensée de Gramsci, et ainsi la constextualiserdans l’ensemble de sa production théorico-politique, pour refuser l’usage courant de ce concept etsa vraie relation avec Gramsci. Il faut aussi examiner à quel point cet auteur doit être considérécomme actuel pour l’interprétation des conditions des luttes sociales dans le capitalisme contemporain.

MOTS-CLÉS: Antonio Gramsci; émancipation; classes subalternes.

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