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150 Revista Brasileira de Educação v. 13 n. 37 jan./abr. 2008 Hoje em dia, o Brasil consegue matricular quase todas as crianças (97%) no ensino fundamental. To- davia, uma sociedade moderna e democrática não se limita a acolher todos os jovens na escola, ela tenta levar todos ao próprio saber. Desse ponto de vista, a situação de nosso país não pode ser considerada satisfatória. Segundo o Ministério da Educação (MEC), em 2003, 51,6% dos alunos da 4ª série não tinham adquirido os conhecimentos matemáticos apro- priados a essa faixa de escolarização e estavam em um estado “crítico” ou “muito crítico” (Brasil, 2004). A situação estava ainda pior na 8ª série (57,1%) e no 3º ano do ensino médio (68,8%). Além disso, parece que a situação não vai melhorando de modo signifi- cativo, uma vez que, em 2001, se encontravam em estágio “crítico” ou “muito crítico” 52,3% dos alunos da 4ª série, 58,4% na 8ª e 67,4% no 3º ano do ensino médio. A matemática não é a única matéria em que os jovens se deparam com dificuldades, mas é a matéria em que são maiores as dificuldades dos alunos. Para entender as dificuldades escolares dos alu- nos, foi desenvolvida na França, desde a década de 1980, uma abordagem em termos de relação com o saber, que prioriza a questão do sentido. Considera- mos esta exigência ainda mais valiosa quando se tra- ta de ensinar e aprender uma matéria que carrega tan- tos preconceitos e estereótipos como a matemática. Com base nessa abordagem, realizamos no pe- ríodo de 2004 a 2006, em São Cristóvão, na área me- tropolitana de Aracaju (SE), uma pesquisa de campo sobre “Relação com o saber e matemática”. Essa pes- quisa visa melhor entender qual o sentido da mate- mática e do seu ensino para os alunos de 1ª à 5ª série do ensino fundamental, isto é, de outra forma, retornar “às coisas mesmas”, como dizia o filósofo Husserl (Dartigues, 2002). Também, ela abre possibilidade para reflexão acerca das práticas educativas e da im- portância da didática na formação dos professores. Contudo, cabe ressaltar que a pesquisa e este artigo pretendem contribuir para o desenvolvimento de uma linha brasileira de investigação sobre a questão da relação com o saber, mais do que produzir novos re- sultados em didática da matemática, embora a sua ambição encontre reflexões de pesquisadores da área de educação matemática, em particular Nilson José Machado e Rômulo Lins. Relação com o saber na aprendizagem matemática: uma contribuição para a reflexão didática sobre as práticas educativas Veleida Anahi da Silva Universidade Federal de Sergipe, Departamento de Educação e Núcleo de Pós-Graduação em Educação Grupo de Pesquisa Educação e Contemporaneidade

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Veleida Anahi da Silva

Revista Brasileira de Educação v. 13 n. 37 jan./abr. 2008

Hoje em dia, o Brasil consegue matricular quasetodas as crianças (97%) no ensino fundamental. To-davia, uma sociedade moderna e democrática não selimita a acolher todos os jovens na escola, ela tentalevar todos ao próprio saber. Desse ponto de vista, asituação de nosso país não pode ser consideradasatisfatória. Segundo o Ministério da Educação(MEC), em 2003, 51,6% dos alunos da 4ª série nãotinham adquirido os conhecimentos matemáticos apro-priados a essa faixa de escolarização e estavam emum estado “crítico” ou “muito crítico” (Brasil, 2004).A situação estava ainda pior na 8ª série (57,1%) e no3º ano do ensino médio (68,8%). Além disso, pareceque a situação não vai melhorando de modo signifi-cativo, uma vez que, em 2001, se encontravam emestágio “crítico” ou “muito crítico” 52,3% dos alunosda 4ª série, 58,4% na 8ª e 67,4% no 3º ano do ensinomédio. A matemática não é a única matéria em que osjovens se deparam com dificuldades, mas é a matériaem que são maiores as dificuldades dos alunos.

Para entender as dificuldades escolares dos alu-nos, foi desenvolvida na França, desde a década de1980, uma abordagem em termos de relação com o

saber, que prioriza a questão do sentido. Considera-mos esta exigência ainda mais valiosa quando se tra-ta de ensinar e aprender uma matéria que carrega tan-tos preconceitos e estereótipos como a matemática.

Com base nessa abordagem, realizamos no pe-ríodo de 2004 a 2006, em São Cristóvão, na área me-tropolitana de Aracaju (SE), uma pesquisa de camposobre “Relação com o saber e matemática”. Essa pes-quisa visa melhor entender qual o sentido da mate-mática e do seu ensino para os alunos de 1ª à 5ª sériedo ensino fundamental, isto é, de outra forma, retornar“às coisas mesmas”, como dizia o filósofo Husserl(Dartigues, 2002). Também, ela abre possibilidadepara reflexão acerca das práticas educativas e da im-portância da didática na formação dos professores.Contudo, cabe ressaltar que a pesquisa e este artigopretendem contribuir para o desenvolvimento de umalinha brasileira de investigação sobre a questão darelação com o saber, mais do que produzir novos re-sultados em didática da matemática, embora a suaambição encontre reflexões de pesquisadores da áreade educação matemática, em particular Nilson JoséMachado e Rômulo Lins.

Relação com o saber na aprendizagemmatemática: uma contribuição para a reflexãodidática sobre as práticas educativas

Veleida Anahi da SilvaUniversidade Federal de Sergipe, Departamento de Educação e Núcleo de Pós-Graduação em EducaçãoGrupo de Pesquisa Educação e Contemporaneidade

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A questão da relação com o saber: aproblemática da pesquisa

A expressão “relação com o saber” foi utilizadapela primeira vez, ao que parece, por Lacan, em 1966(Beillerot et al., 1989). Encontram-se no livro Lareproduction, de Bourdieu e Passeron, de 1970, ex-pressões próximas: “relação com a cultura”, “relaçãocom a linguagem e o saber”. Entretanto, é BernardCharlot que, na década de 1980, introduz a expressãoe o conceito na área da educação e, na década de 1990,elabora “elementos para uma teoria” da relação como saber (Charlot, 2000 – tradução de um livro publi-cado em francês em 1997).1 A sua questão fundamen-tal é a do fracasso escolar, a mesma nossa aqui.

Nos anos de 1960 e 1970 foi desenvolvida naFrança (Bourdieu & Passeron, 1970; Baudelot &Establet, 1971) e nos Estados Unidos (Bowles &Gintis, 1976) uma teoria sociológica chamada de teo-ria da reprodução. Respaldada em numerosas estatís-ticas, evidencia que a escola, longe de ser um instru-mento de democratização da sociedade, como sepensava, contribui para a reprodução das desigualda-des sociais: é grande a probabilidade que os filhosdas classes dominantes tenham melhor sucesso esco-lar do que os filhos das classes “desfavorecidas” e,por isso, consigam um melhor lugar no mercado dotrabalho e na sociedade. As hierarquias sociais quemarcam a geração dos pais são reproduzidas na gera-ção dos filhos.

Sem contestar essa probabilidade, a respeito daqual não resta dúvida alguma, Charlot levanta algu-mas questões sobre a própria teoria (Charlot, 2000,2005). Na escola ensinam professores que, na maio-ria das vezes, sustentam a idéia de democratizaçãosocial pela escola: como é que estes produzem uma“reprodução” que beneficia o capitalismo, os domi-nantes, os potentes?

Bourdieu empreendeu responder a essa objeção.Ele fala em termos de habitus (conjunto de disposi-ções psíquicas adquiridas cedo na vida e que condi-zem com as condições sociais de vida do indivíduo) ede capital cultural (transmitido aos filhos pela famí-lia). Nas suas famílias, os filhos das classes dominan-tes constroem habitus e herdam formas de capitaisculturais que condizem com os que o êxito escolarrequer. Sendo assim, eles têm mais êxito na escolamais do que os filhos das classes desfavorecidas.

Porém, objeta Charlot, ora a noção de habitus émecânica demais, ora resta explicar como e por que ohabitus pode mudar ao longo da vida. E, se podemudar, por que descartar a idéia de que a escola pos-sa mexer com os habitus e, sendo assim, contribuirpara mudar os destinos sociais? Quanto à idéia decapital cultural, não passa de uma metáfora, já que atransmissão cultural e o êxito escolar não são proces-sos automáticos em que os filhos possam ficar passi-vos; são efeitos de uma atividade dos pais e dos fi-lhos. Para ser bem-sucedido na escola, não é suficienteser “filho de...”, é preciso também estudar, ter umaatividade intelectual. Charlot julga que a questão daatividade intelectual, em particular a questão do acessointelectual ao saber, foi ignorada pela sociologia dareprodução, a qual focou apenas o acesso social aosaber. Se existe uma desigualdade social perante aescola é porque há uma desigualdade social diante dosaber. Portanto, Charlot levanta a questão da relaçãosocial com o saber.

Essa questão leva-o a ampliar a sua perspectivade análise para contemplar, ao mesmo tempo, as di-mensões social e subjetiva do problema. Com efeito,por mais social que seja um indivíduo (se não fossesocial não seria humano), ele é também um sujeitooriginal, com a sua vida psíquica e a sua história pes-soal. É preciso pensar ao mesmo tempo o ser huma-no, o ser social e o sujeito singular, ressalta Charlot.Em particular, aprender é apropriar-se, por uma ativi-dade intelectual pessoal, de um patrimônio comumaos homens.

Portanto, a questão da atividade intelectual passaa ser fundamental na teorização da questão do sucesso

1 Charlot se interessou pela matemática, embora esta não

seja foco das suas pesquisas (Bkouche; Charlot; Rouche, 1991).

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e fracasso escolar. Mais particularmente, Charlot le-vanta a questão das fontes da mobilização intelectual.O que faz com que o ser humano, coletiva e indivi-dualmente, se mobilize intelectualmente, entre em umprocesso de atividade intelectual, tente aprender? Daías três questões que Charlot (2005, p. 59) apresentacomo básicas:

1) para um aluno, especialmente de meios po-pulares, qual o sentido de ir à escola?

2) para ele, qual o sentido de estudar ou de nãoestudar na escola?

3) qual o sentido de aprender, de compreender,quer na escola quer fora dela?

Esse questionamento, referido à matemática,embasa a nossa pesquisa. Para um aluno, qual o sen-tido de estudar a matemática, na escola ou fora dela?De modo mais geral, qual o sentido dessa matériaque se chama matemática, da atividade matemática,dos objetos matemáticos? O objetivo prático e so-cial de Charlot é nosso também: contribuir para umademocratização da escola graças a uma melhoria doprocesso de ensino-aprendizagem na escola públicabrasileira. Hoje em dia, em uma escola pública si-tuada na área metropolitana de Aracaju, por que osalunos têm vontade, ou não têm, de estudar mate-mática?

Esse campo da relação com o saber, aberto porCharlot e sua equipe na área da educação, foi explo-rado por outros pesquisadores também. Entre eles,cabe destacar Jacky Beillerot e sua equipe, e YvesChevallard e os didáticos da matemática.

Embora haja um confronto teórico entre a abor-dagem de Charlot, mais social, e a de Beillerot, mas“psicofamiliar” e psicanalítica, esta pode ser consi-derada complementar àquela. Com efeito, ela foca odesejo e os processos pelos quais ele muda de formae objetos, incluídos os produtos e processos incons-cientes. Ora, Charlot remete explicitamente a noçãode mobilização à questão do desejo, e aceita a hipó-tese do inconsciente, embora não tivesse pesquisadodiretamente esses temas. Ao ver de Beillerot:

Todo estudo que tomar a relação com o saber como

noção central não poderá libertar-se da base psicanalítica;

não que isso impeça outras abordagens, mas é a partir da

teorização da relação de objeto, do desejo e do desejo de

saber, depois da inscrição social destes em relações (que

vinculam o psicológico ao social) que será possível assu-

mir o risco de trabalhar com essa noção e de desenvolvê-la;

um desenvolvimento que não deverá esquecer algo essen-

cial, sob pena de fazê-la perder seu sentido: só há sentido

do desejo. (Beillerot, Blanchard-Laville & Mosconi, 1996,

p. 73)2

Só há sentido do desejo: como aponta o próprioCharlot (2000, 2005), é nessa asserção que podem serarticuladas a sua abordagem e a de Beillerot. Só hásentido do desejo: para nós também, é isso, antes detudo, que importa na nossa própria pesquisa. Ao apro-fundar a questão sobre o sentido da matemática e doensino da matemática, encontra-se a questão do dese-jo. De que se gosta quando se gosta da matemática?De acordo com a psicanálise, o desejo não tem obje-tos determinados, ele visa somente ao “gozo” e, nodecorrer da vida psíquica, chega a ser ligado a tal ouqual “objeto” (noção que, na psicanálise, inclui aspessoas). Como a procura do gozo pode ser satisfeitapelo encontro dos números, do m.m.c. ou de umteorema? É também essa a questão da relação com osaber matemático.

Vale a pena, ainda, evocar as teses de Blanchard-Laville e de Hatchuel, que são professoras de mate-mática e seguidoras de Beillerot. Claudine Blanchard-Laville (1997) defende a idéia de que cada docente,pela sua fala e, de modo mais geral, pela maneira comoorganiza a sua aula, constrói e impõe aos alunos umdeterminado roteiro-cenário, específico dele. Não setrata apenas de uma produção didática, mas também,e acima de tudo, de um “espaço psíquico”. “Mostreique a relação do docente com o saber se atualiza demaneira singular por cada docente no espaço psíqui-co da classe, caminho para a transposição, e que ele

2 Ver também Mosconi, Beillerot e Blanchard-Laville, 2000.

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molda este espaço para a turma de alunos” (Blanchard-Laville, 2003, p. 152).3 Por analogia com o conceitode transposição didática, e usando a noção psicanalí-tica de “transferência”, Blanchard-Laville dá a esseprocesso o nome de “transferência didática”. Não pre-tendemos usar essas idéias na nossa pesquisa, na me-dida em que a relação entre docentes e alunos nãoconstitui um objeto dela, mas essas reflexões valempor lembrar-nos da importância da relação com o do-cente na elaboração da relação com a matemática.

Encontra-se ainda uma idéia muito interessante norecente livro de Françoise Hatchuel (2005). Novamen-te, a questão do desejo é o ponto de partida: trata-se depesquisar “a questão do desejo de saber, e, portanto, doque o saber representa do ponto de vista fantasmáticopara o sujeito” (p. 11). Hatchuel considera que “a ques-tão da relação com o saber é antes de tudo a do vínculoe da autonomia do sujeito” (p. 137). Ela ressalta a am-bivalência do desejo de saber: “Portanto a pulsão desaber enraíza-se em um desejo de autonomia, desejo desubstituir o adulto-objeto, de se livrar dele, mas com orisco de ele entrar no jogo e aceitar, enquanto não setem certeza absoluta de poder assumi-lo” (p. 49). Emoutras palavras, aprender é também o caminho para“passar a ser alguém” (devenir quelqu’un), como di-zem os jovens entrevistados por Charlot, e também osalunos que responderam a nossas perguntas, como ve-remos. Ser alguém, com todo o orgulho de quem é livree toda a angústia de quem já não aproveita da proteçãoabsoluta de papai e mamãe. Aprender é arriscar, expor-se ao risco de fracassar e, ainda, ao risco de ser bem-sucedido, adulto, sozinho.

Por fim, o conceito de relação com o saber foiadotado também pelos didáticos franceses e canaden-ses, em particular na área da didática da matemática edas ciências. Nessa área, foi Yves Chevallard que de-sempenhou o papel fundamental. Chevallard é conhe-cido por ter introduzido e desenvolvido na área da di-

dática o conceito de “transposição didática” (formula-do pela primeira vez pelo sociólogo Michel Verret, nasua tese de doutorado). Chevallard estabeleceu que nãose ensina o próprio saber científico, mas sim uma ver-são transposta dele, um saber adaptado para ser ensi-nado, um saber “escolar”. Essa idéia, que passou a serum conceito “clássico” da didática, constitui, na ver-dade, uma primeira versão das idéias defendidas porChevallard. A segunda versão junta o conceito de rela-ção com o saber ao conceito de transposição.

Nessa teorização,4 Chevallard leva em conside-ração o aluno, ao passo que pouco fala dele no con-ceito de transposição didática. Articula os conceitosde relação pessoal e de relação institucional com osaber. Por instituição deve-se entender as instituiçõespúblicas, como a escola, mas também, de acordo como sentido mais geral dessa noção na antropologia, afamília, a religião, a linguagem, uma aula de mate-mática etc. As instituições mantêm relações específi-cas com os objetos de saber ou, de modo mais geral,com o saber. Quando uma pessoa pertence a uma ins-tituição, ou participa no seu funcionamento, se quiserapropriar-se do saber ligado a ela deve entrar na rela-ção institucional característica dessa instituição. Por-tanto, a relação pessoal com o saber constrói-se à ar-ticulação das relações com o saber específicas dasvárias instituições a que pertence um indivíduo(Chevallard, 2003). De Chevallard, na nossa pesqui-sa, retivemos a idéia de que a relação com o saberque pesquisamos não é a relação de um indivíduoabstrato ou de “um menino”; é, sim, a relação de ummenino matriculado em uma instituição chamada deescola, onde ocupa um lugar particular e desempenhaum papel específico, o de aluno.5

3 Quando um livro francês foi traduzido para o português,

citamos a tradução publicada. Quando existe apenas o texto fran-

cês, responsabilizamo-nos pela tradução.

4 Não se encontram facilmente os textos de Chevallard so-

bre a relação com o saber. O texto mais fácil de ser encontrado é o

capítulo que ele escreveu no livro Rapport au savoir et didactiques

(organizado por Maury & Caillot, 2003b).5 Mas às vezes a estética contesta as regras da sociologia:

para não repetir sempre a palavra “aluno”, tivemos de vez em

quando de substituí-la por “menino”. Queremos deixar claro que

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As várias abordagens que acabamos de apresen-tar dizem respeito à questão da relação com o saber,no singular. Entretanto, por mais interessantes quesejam essas teorizações, não são suficientes para re-solver a questão da relação com a matemática. A ma-temática é uma disciplina específica, um conjuntoparticular de saberes, e o que nos interessa é enten-der qual é a relação específica dos alunos com essadisciplina. Ora, encontramos muito poucos textossobre a relação com a matemática ou, por sinal, comqualquer outra disciplina que não a matemática. Atéagora, os pesquisadores trataram do saber no singu-lar, isto é, do fato de adquirir um conhecimento pelaaprendizagem e do que foi assim adquirido, sem par-ticularizar os conteúdos dos saberes. Contudo, lite-ratura, história, biologia e matemática, por exemplo,são disciplinas bem diferentes, e é difícil acreditarque a relação com o saber seja igual em todos essescasos.

Já foram pesquisados alguns conceitos na pers-pectiva da relação com o saber (ver Chabchoub, 2000,2001; Maury & Caillot, 2003a). Na Tunísia, YassineJelman pesquisou as relações com o conceito de raioentre alunos que se deparam com a contradição entrea explicação científica e a fala religiosa. Na França,Jean-Louis Chartrain defendeu uma tese de doutora-do sobre a relação dos alunos com o conceito de vul-cão. Todavia, entre a relação com “o” saber, no sin-gular, e a relação com tal ou qual conceito, faltampesquisas intermediárias voltadas para as disciplinas:qual a relação dos alunos com a geografia, a biologia,a matemática?

A questão central da nossa pesquisa é: qual é arelação dos alunos com a matemática, enquanto dis-ciplina ensinada na instituição escolar? A pesquisatrata de alunos da escola pública, em um bairro popu-lar. Trata, ainda, de alunos das primeiras séries, namedida em que tentamos compreender como se cons-trói a relação de alunos com a matemática. No entan-

to, a pesquisa foi prolongada até a 5ª série, pois é tam-bém interessante comparar os resultados das sériesiniciais e da 5ª série, em que os alunos seguem o ensi-no de um professor “de matemática”, específico.

Pode-se expressar a questão da relação com osaber de várias formas:

• Para os alunos, especialmente em um bairropopular, qual o sentido de estudar a matemá-tica na escola e de usá-la fora da escola?

• Qual a fonte da mobilização intelectual, qualo desejo (quais os desejos) que fomenta(m),sustenta(m) o estudo da matemática? Comose pode gostar (gozar) da matemática quandose é uma criança?

• Qual o espaço psíquico do aluno que estuda amatemática? Qual a imagem de si mesmo, emparticular na dialética autonomia – proteção?

• Qual “relação institucional com o saber” podeser percebida pela “relação pessoal” dos alu-nos com a matemática? O que significa “serum aluno estudando a matemática”?

A relação com o saber de alunosdo ensino fundamental: metodologia

e resultados de pesquisa

A pesquisa “Relação com o saber e matemática”foi realizada em São Cristóvão, na área metropolita-na de Aracaju (SE), entre julho de 2004 e março de2006, junto a alunos da 1ª à 5ª série. Foram pesquisa-dos 362 alunos, assim distribuídos:

• 178 meninos e 184 meninas;• 61 alunos de 1ª série, 47 de 2ª, 70 de 3ª, 67 de

4ª e 117 de 5ª série.

A idade desses alunos varia de 5 a 17 anos; toda-via, a maioria deles tem entre 8 e 13 anos.

As atividades dos pais e das mães podem ser con-sideradas representativas das classes populares ouclasse média baixa, que escolarizam os seus filhos naescola pública, em particular em um bairro como Rosa

este “menino” (que, por sinal, pode ser uma menina), na maioria

das vezes é um menino-aluno.

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Elze, em São Cristóvão, onde foi realizada a pesqui-sa. Os pais trabalham nos setores definidos pelo Ins-tituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)como construção, manutenção de casa, comércio, ar-tesanato, serviços prestados às empresas, ou são pe-quenos funcionários públicos; as mães são donas decasa, empregadas domésticas ou trabalhadoras docomércio. Portanto, podemos considerar a nossa po-pulação de pesquisa como a população habitual deuma escola pública situada em um bairro urbano po-pular.

Os dados foram recolhidos por meio de um ques-tionário com 14 perguntas abertas. Tendo em vistaque pesquisamos a questão do sentido da matemáticapara o aluno, com o propósito de melhor entender assuas dificuldades, definimos três grupos de perguntassobre: 1) a importância e utilidade da matemática eda sua aprendizagem; 2) o êxito e fracasso em mate-mática; 3) a relação pessoal do aluno com a matemá-tica.

Sabemos que o próprio fato de perguntar cominsistência sobre um tema pode induzir um viés me-todológico. Para evitar esse viés, distribuímos em doislugares diferentes as perguntas atinentes ao primeirotema, o que permite também que as perguntas a res-peito da relação pessoal do aluno com a matemáticanão se sigam imediatamente às sobre o fracasso emmatemática. Ainda, introduzimos perguntas para osalunos compararem português e matemática, já que,segundo os dados do Sistema de Avaliação da Educa-ção Básica (SAEB), existem dificuldades escolaresem ambas matérias. Sendo assim, e depois de ter rea-lizado uma pré-enquete para testar as perguntas, fo-ram retidas as seguintes.

1) Acerca da importância e utilidade da mate-mática e da sua aprendizagem:Q1. Por que se aprende a matemática? É im-portante, é útil?Q2. Você já encontrou a matemática fora daescola? Por favor, explique quando e onde.Q8. Será que a matemática é importante parao futuro do Brasil?

Q9. Você acha que existe profissão em que émais importante ser bom em matemática doque outras? Quais? Por quê?

2) Acerca do êxito e fracasso em matemática:Q3. Todo mundo pode ser bom em matemáti-ca? Por quê?Q4. É possível ser bom em matemática e emportuguês? Por quê? Q5. Para ser bom em matemática:a) Na sua opinião, o fato de ser jovem ou

adulto facilita a aprendizagem da mate-mática? Por quê?

b) Na sua opinião, o fato de ser homem oumulher facilita a aprendizagem da mate-mática? Por quê?

c) Na sua opinião, o fato de ser rico ou po-bre facilita a aprendizagem da matemáti-ca? Por quê?

Q6. Será que é grave se fracassar em mate-mática na escola? Por quê?Q7. Qual é mais grave: fracassar em mate-mática ou em português? Por quê?

3) Acerca da relação pessoal do aluno com a ma-temática:Q10. Você acha que é bom em matemática?Por quê?Q11. Uma pessoa pode ser inteligente e, ape-sar disso, fracassar em matemática? Por quê?Q12. Você gosta de aprender a matemática?Por quê?Q13. Seus pais são bons em matemática?Como sabe disso?Q14. Você lembra de uma coisa que gostoumuito de aprender em matemática? Qual?

O questionário foi aplicado em todas as turmasmatutinas de 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries, como previsto noprojeto de pesquisa. A pedido do pessoal da escola,foi também aplicado em todas as 5ª séries vesperti-nas, tendo sido esse pedido acatado sem nenhumahesitação nossa, pelas razões já mencionadas.

A análise associou métodos quantitativos e qua-litativos, como é possível quando se usam perguntas

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abertas: com base nas respostas, foram construídascategorias e calculadas percentagens, mas também foianalisado o conteúdo de forma mais detalhada, a fimde levar em consideração nuanças. Por fim, além daabordagem geral, foi introduzido um duplo ponto devista comparativo: entre os dois sexos e entre os ní-veis de escolaridade.

Não se pode tratar aqui detalhadamente de umapesquisa que nos levou a redigir um relatório comquase 200 páginas. Portanto, apresentamos a seguirapenas seus principais resultados, que podem ser sin-tetizados em torno de dois eixos:

a) todo mundo pode aprender a matemática, po-rém é uma matéria particularmente difícil eimportante;

b) qual desejo sustenta a aprendizagem da ma-temática e qual é o objeto desse desejo?

Todo mundo pode aprender a matemática,mas é uma matéria difícil e importante

A maioria dos alunos considera que todo mundopode aprender a matemática, com o argumento: “é sóestudar”. Esse argumento é o mais freqüente entre osque dizem que cada um pode ser bom em matemáti-ca. Reciprocamente, dizem que se pode fracassar emmatemática, apesar de ser inteligente, quando não seestuda o suficiente. “É só estudar” constitui tambémo argumento mais evocado quando os alunos expli-cam que o fato de ser jovem ou adulto, homem oumulher, rico ou pobre não incide no êxito ou fracassoem matemática. Ainda, é porque “é só estudar” que amaioria responde que é possível ser bom ao mesmotempo em matemática e em português. Quando se tratado seu caso pessoal, os alunos hesitam mais, porémainda a maioria considera que a matemática é acessí-vel: 47% se declaram bons; 12%, “mais ou menos”; e34%, ruins. Sabem que são bons ou ruins pela notaque tiram, mas explicam o porquê pelo fato de estu-darem muito ou pouco.

Portanto, os alunos não raciocinam nem a partirda lógica do dom, nem da reprodução familiar. Aliás,

a maioria (70%) considera que seus pais são bons emmatemática.

Entretanto, há uma forte minoria que não fun-ciona do modo que acabamos de relatar. Esses alunosnegam que todo mundo possa ser bom em matemáti-ca (44%). Consideram que não se fracassa em mate-mática quando se é inteligente (22%). Pensam quenão é possível ser bom em matemática e português(25%) e, na maioria das vezes, valorizam o portuguêsem detrimento da matemática (81%). Julgam-se ruinsem matemática (34%). Portanto, podemos concluirque um quarto ou um terço dos alunos mantêm certaressalva ou resistência para com a matemática.

Ademais, apesar de considerarem que todos po-dem aprender matemática, a maioria dos alunos tem-na por uma matéria difícil. É porque ela não é fácilque se pode entender que uma pessoa fracasse em ma-temática apesar de ser inteligente e, também, que émais difícil ser bom em matemática do que em portu-guês. Ainda, é mais grave fracassar em matemática,uma vez que é mais trabalhoso recuperar-se em umamatéria difícil.

Além de ser difícil, a matemática é “importan-te”. Quando perguntados sobre as profissões em queé útil ser bom em matemática, alguns alunos são con-vencidos da importância desta a ponto de citar profis-sões sem relação particular com a matemática, masimportantes “por si”, como médico, advogado, jorna-lista ou modelo. É como se alguém que pratica umaprofissão importante tivesse de conhecer coisas im-portantes e difíceis.

Concluímos que a maioria dos alunos da 1ª à 5ªsérie não raciocina a sua relação com a matemáticaem uma lógica do dom ou da carência sociocultural,mas sim em uma lógica do estudo, da atividade inte-lectual, da mobilização: quem estuda será bem-suce-dido, quem não estuda o suficiente fracassará.

Do ponto de vista pedagógico e didático, esseresultado leva a considerações otimistas: a escola podeensinar matemática a quem considera que é capaz, “ésó estudar”. A dificuldade é saber como fazer paraque os alunos estudem, se mobilizem intelectualmen-te. Além disso, é preciso não esquecer a forte minoria

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de alunos pensando que nem todos podem ter êxitoem matemática, e que eles mesmos, em particular,não têm uma cabeça matemática. Com essa minoria,é também a relação profunda com a matemática queterá de ser mudada.

Por que aprender a matemática? Qual desejo?Qual objeto do desejo? Qual matemática?

Como já destacado, a questão da mobilizaçãointelectual, conceituada por Charlot na teoria da rela-ção com o saber, leva a colocar a questão do desejo,ressaltada nas pesquisas de Beillerot e sua equipe. Paraaprender a matemática, é preciso ter um desejo. Qualdesejo, desejo de que, de qual matemática? Esse é oeixo da nossa segunda síntese da fala dos jovens.

Primeira resposta, com base no que disseram ospróprios alunos: aprende-se matemática porque é en-sinada. 48% dos alunos da 1ª à 4ª série negaram quehaja matemática fora da escola ou evocaram os deve-res de casa; 30% dos alunos da 5ª série responderamo mesmo. Na mesma lógica, os jovens citam os pro-fessores de matemática entre as profissões em que éimportante ser forte em matemática. Da mesma for-ma, muitas vezes os alunos insistem na nota e no fatode passarem de ano ou serem reprovados. Essa é aresposta mais freqüente (27%) quando explicam porque é grave fracassar em matemática.

Para os alunos que mantêm essa relação com osaber, a matemática não passa de um objeto escolar.A escola operou uma transposição didática do sabercientífico para o saber escolar, mas, para os alunos,não há transposição: só existe um objeto escolar. Aosolhos desses alunos, na escola estuda-se o que a esco-la ensina, sem mais justificativas. Em uma situaçãodessas, o único desejo que pode sustentar a aprendi-zagem da matemática é o de ficar em conformidadecom as exigências da instituição escolar. O que nãoseria possível, claro, se não existissem outros desejosembasando este – do que falaremos adiante.

Segunda resposta à questão sobre o desejo: apren-de-se a matemática porque é imprescindível na vidacotidiana, para verificar o seu troco, comprar coisas,

contar dinheiro etc. Dessa forma, as profissões emque, na opinião dos alunos, é preciso ser bom emmatemática, são aquelas em que se mexe com dinhei-ro: vendedor, balconista, caixa, bancário, contador etc.São também as profissões em que há de saber medir,quer se trate do quarto (pedreiro), da roupa (costurei-ra), até do leite (babá).

Nas respostas dos alunos percebe-se uma liga-ção forte entre matemática e dinheiro. Provavelmen-te seja por isso que ser rico ou pobre é o critério quemais induz resposta afirmativa quando se perguntaaos alunos se facilita ser jovem ou adulto, homem oumulher, rico ou pobre para aprender matemática. Écomo se, sem querer nem saber, os alunos equiparas-sem os dois produtos mais abstratos já concebidospelos homens: a matemática, que pode simbolizarquase todas as formas do saber, e o dinheiro, que re-presenta o valor de tudo que se vende e compra.

Esse vínculo forte entre matemática e vida coti-diana, estabelecido pelos alunos, gera uma conseqüên-cia pedagógica preocupante: depois de assim ter res-tringido a matemática a seus saberes rudimentares,poder-se-ia sustentar a idéia de que se pode prescin-dir de mais matemática.

Terceira resposta à questão sobre o desejo para amatemática: esta é necessária para ter um bom empre-go mais tarde. Notem que não é a própria matemáticaque é objeto do desejo, é o que ela pode trazer, ou seja,o bom emprego. O argumento pode apresentar-se deforma individual ou coletiva: é grave fracassar emmatemática porque quem fracassa não consegue umbom emprego; a matemática é importante para o Brasiltornar-se mais rico. Na verdade, essa relação com osaber completa a primeira anteriormente exposta: odesejo de conformidade com as exigências da institui-ção escolar é, no fundo, desejo de passar de ano, o qualé, de fato, desejo de sucesso social e econômico.

Levando em consideração os três tipos de res-posta, pode-se levantar a questão de saber o que, naverdade, se ensina com o nome de matemática. A pro-fessora acha que ensina atividades e objetos específi-cos de um campo de saber chamado de matemática –pelo menos é de esperar que esta seja a concepção da

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professora. Mas não é isso que aprende a maioria dosalunos: eles estudam práticas sociais com números(contar dinheiro, medir coisas etc.) e objetos escola-res impostos pela escola para o aluno passar de ano eesperar ter um bom emprego mais tarde. Até que al-guns alunos consideram que há matemática onde hánúmeros, inclusive para identificar uma casa na rua,um ônibus, ou o partido político em que se quer vo-tar. Levando essa idéia a cabo, pode-se dizer quemuitos alunos mantêm uma relação com a matemáti-ca que não é uma relação de tipo matemático; na ver-dade, trata-se de uma relação prática, social e, algu-mas vezes, imaginária.6

Essa relação com o saber é também uma relaçãocom o mundo, com os outros e consigo mesmo, parausar a fórmula divulgada por Charlot: mundo daconcorrência, do dinheiro, do desemprego, da neces-sidade de esforçar-se para aprender coisas difíceis,mas úteis no presente e importantes para o futuro. Essetipo de relação com o saber possibilita sobreviver nouniverso escolar, em “passando de ano”. Mas é muitodiferente da relação oficial da escola com o saber,como diria Chevallard, a qual destaca a formação dapessoa, a cultura, o prazer e até a sorte de aprender.

Entretanto, a nossa pesquisa entreviu essa rela-ção institucional com a matemática. Em primeiro lu-gar, apesar de tudo, há uma minoria de alunos querespondem evocando a própria atividade matemáti-ca ou objetos matemáticos, até, embora seja raro, oprazer de estudar a matemática. Mais interessanteainda, a situação paradoxal que enxergamos quandoanalisamos as respostas à questão “você gosta deaprender matemática?”. Os alunos dizem que gos-tam, sem dúvida nenhuma (86%). Mais ainda: a me-tade das explicações diz respeito ao gosto pela pró-

pria atividade matemática ou por objetos matemáti-cos. Também, 89% dos alunos lembram-se de umacoisa que gostaram muito de aprender em matemáti-ca – na maioria das vezes (77%), fazer contas. Entre-tanto, gostar é um argumento que se encontra muitopouco nas respostas dos alunos às outras perguntas.Como se pode entender essa situação paradoxal: alu-nos que dizem gostar da matemática, mas quase nuncausam o argumento do gosto quando indagados sobrea disciplina?

A pesquisa mostra que os alunos gostam da ma-temática quando estão na 1ª série (98%), mas queesse gosto vai diminuindo (72% na 5ª série). Perce-bemos também que eles, e ainda mais elas, constroemaos poucos uma imagem negativa de si mesmos pe-rante o ensino da matemática. Na 1ª série, 50% dosmeninos e 81% das meninas respondem que são bonsem matemática, enquanto na 5ª série os percentuaissão apenas 44% dos meninos e 18% das meninas.Essa queda brutal da percentagem tocante às meni-nas não pode ser atribuída ao preconceito, uma vezque os alunos não pensam que o fato de ser mulherdificulta a aprendizagem da matemática (ao contrá-rio, tendem a valorizar as mulheres). Tampouco sepode falar em uma resistência das meninas em esfor-çar-se, uma vez que vários índices confirmaram umresultado já estabelecido pela sociologia da educa-ção: as meninas esforçam-se mais do que os meni-nos para serem “boas alunas”. Resta que, na nossapesquisa, as meninas perdem a confiança em suascapacidades matemáticas ao longo de sua escolari-dade. Por quê? Para responder a essa questão, seriapreciso uma pesquisa aprofundada – depois de terverificado em outros lugares que não se trata de umadiferença local (o que, do ponto de vista estatístico,é pouco provável).

A pesquisa evidencia também que a idéia de quese vai à escola para ter um bom emprego mais tardepassa a ser mais freqüente da 1ª à 5ª série.

Por fim, mostra ainda que a maioria dos jovensnão confunde inteligência e êxito escolar em mate-mática – o que protege a imagem de si mesmos dosque fracassam.

6 Por exemplo, quando os alunos citam o advogado e a mo-

delo como profissões em que é preciso ser bom em matemática.

Trata-se de uma relação imaginária, ao mesmo tempo com essas

profissões e com a matemática, a não ser que se considere que eles

precisam da matemática para contar a fortuna que (provavelmen-

te...) ganham.

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Em síntese, alunos que gostavam, nas 1ª e 2ª sé-ries, da matemática, e que alegavam muitas vezes oestudo como argumento nas suas respostas, perdem aospoucos esse gosto e, ainda, a confiança em si mesmos,e argumentam cada vez mais em termos de “passar deano” e “ter um bom emprego mais tarde”. Gostavam,mas encontraram a matemática como matéria “difícil”,fracassaram e perderam o gosto. Sendo assim, já nemse trata de gostar ou não gostar, trata-se sim de tirarnotas boas e passar de ano. A lógica do saber e do pra-zer é substituída pela lógica da sobrevivência escolar eda concorrência social para os empregos.

Afinal de contas, qual é a relação dos alunos coma matemática?

Uma pequena minoria mantém com ela uma re-lação de prazer: prazer da própria atividade, prazerde ter êxito e sentir-se inteligente, prazer de passar a“ser alguém na vida”.

Uma minoria mais ampla (um quarto ou um ter-ço dos alunos) sofre um fracasso e, além do fracassoobjetivo, a dor psíquica de sentir-se fraco, até poucointeligente.

Entre essas duas minorias, a maioria dos alunosgostaria da atividade matemática, em particular defazer contas, se esta não fosse tão difícil. Eles esfor-çam-se, por saberem que a matemática é “importan-te”: na vida cotidiana, para passar de ano, para ter umbom emprego mais tarde. Esforçam-se, mas perde-ram o prazer.

Nessa situação, as práticas pedagógica e didáti-ca das professoras e, de modo mais geral, da institui-ção escolar, cumprem uma função essencial.

Escolhas pedagógicas.A questão do “Eu epistêmico”

Já foram desenvolvidas várias reflexões sobre adidática e, em especial, a didática da matemática, querem países de língua francesa, quer no Brasil (Libâneo,1990, 1998; Johsua & Dupin, 1993; Pimenta, 1999;Tardif & Lessard, 1999; Tosi, 2001; Parra & Saiz,2001; Rosa & Souza, 2002; Veiga, 2003 etc.). De nossaparte, para interpretar os resultados da pesquisa e con-

tribuir para a didática da matemática e das ciências,defendemos a idéia de dialética continuidade/rupturaentre o saber cotidiano e o saber científico.

Pode-se argumentar essa idéia respaldando-se emBachelard: entre “o senso comum” (“a opinião”),construído na experiência cotidiana, e o saber cientí-fico não há continuidade, há sim uma ruptura, cha-mada por Bachelard de “ruptura epistemológica” ou“corte epistemológico” (Bachelard, 1996, 1991). To-davia, não se deve esquecer o “outro” Bachelard, quedesenvolveu uma “psicanálise” do espírito científi-co. Com efeito, esse autor explica também que sem-pre se começa pelo erro, pois sempre se começa pelavida. Vivemos, construímos as nossas primeiras ebásicas representações do mundo e, mais tarde, en-tramos em um processo de “retificação” das idéiasanteriores, o qual forma aos poucos o espírito cientí-fico. Conforme Bachelard, o papel da matemática éfundamental para romper com a opinião e pensar omundo com uma linguagem científica (Fabre, 1995;Silva, 2002, 2004).

Retemos de Bachelard a idéia de que o Eu epis-têmico se constrói por diferenciação progressiva doEu empírico. A professora está errada quando ignorao Eu empírico. Está errada também quando aceita odomínio deste e renuncia a construir o Eu epistémico.

Pode-se igualmente abordar essa questão combase nas obras de Vygotsky (1987, 1996). ParaVygotsky, os “conceitos científicos” têm uma origeme uma natureza diferentes dos “conceitos cotidianos”(ou “espontâneos”). Aqueles são sistemáticos, volun-tários e conscientes, à diferença destes. Todavia, osdois tipos de conceitos são interdependentes. É so-mente quando o conceito científico encontra “o teci-do já elaborado dos conceitos cotidianos” que ele tomasentido – e ao mesmo tempo, os conceitos espontâ-neos acedem a um estágio superior de desenvolvi-mento. Os conceitos científicos “germinam para bai-xo” e os conceitos quotidianos “germinam para cima”.Quem ignora os conceitos cotidianos introduz na es-cola palavras sem sentido. Quem ignora a naturezado conceito científico renuncia a desenvolver o pen-samento dos seus alunos.

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Concluindo, não se trata apenas de ensinar sabe-res úteis, trata-se ainda e acima de tudo de transmitirao professor as indagações levantadas e estudadas peladidática, na perspectiva filosófica de Husserl: “é oretorno incessante à intuição originária”, “fonte dedireito para o conhecimento”, o que Husserl chamade princípio dos princípios (Dartigues, 2002). Por isso,acreditamos que essa pesquisa de campo possa con-tribuir para a reflexão da didática sobre as práticaseducativas. Como escreve Libâneo: “O processo deensino é uma atividade conjunta de professores e alu-nos, organizado sob a direção do professor, com fina-lidade de prover as condições e meios pelos quais osalunos assimilam ativamente conhecimentos, habili-dades, atitudes e convicções. Este é o objeto de estu-do da Didática” (Libâneo, 1990, p. 29).7 É a partirdessas idéias que esperamos os efeitos do saber novo.Sendo ele articulado com o saber já disponível, e mis-turado com o saber empírico dos professores cons-truído ao longo da sua atuação profissional, com cer-teza experimentaremos o sabor de uma nova fonte desaber, uma nova sociedade calcada na sabedoria dasociedade antiga.

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VELEIDA ANAHI DA SILVA, doutora em ciências da edu-

cação pela Universidade Paris 8 – Saint-Denis (França), é profes-

sora do Departamento de Educação e no Programa de Pós-Gra-

duação em Educação na Universidade Federal de Sergipe (UFS),

coordenadora do Programa Conexões de Saberes e líder do grupo

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pública”. E-mail: [email protected]

Recebido em dezembro de 2006

Aprovado em setembro de 2007

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Resumos/Abstracts/Resumens

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Palabras claves: historia; cine;construcción del conocimientohistórico

Veleida Anahi da Silva

Relação com o saber naaprendizagem matemática: umacontribuição para a reflexão didáticasobre as práticas educativasEsse artigo refere-se a uma pesquisarealizada em Sergipe, em 2004-2006,junto a 362 alunos da 1ª à 5ª série doensino fundamental. São objetivoscompreender os fundamentos e proces-sos da relação dos alunos com a apren-dizagem matemática e verificar a im-portância da pesquisa de campo paradesvelar as representações e os saberesocultos no processo ensino-aprendiza-gem. Do ponto de vista metodológico,os dados foram recolhidos por meio deum questionário com 14 perguntasabertas. A análise, além da abordagemgeral, introduz um duplo ponto de vistacomparativo: entre os dois sexos e en-tre os níveis de escolaridade. O refe-rencial teórico repousa nas pesquisasde Bernard Charlot e de ClaudineBlanchard-Laville sobre a relação como saber. Nos resultados destaca-se queos alunos se relacionam com objetos epráticas cotidianas, como contar o di-nheiro, mais do que com objetos espe-cificamente matemáticos. Esses resul-tados oferecem bons indicadores parauma reflexão na óptica da didática.Palavras-chave: relação com o saber;ensino da matemática; didática; práti-cas educativas

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Resumos/Abstracts/Resumens

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Relation with knowledge inmathematics learning: acontribution to the didacticreflection on educational practicesThis paper refers to a research carriedout in the state of Sergipe between2004 and 2006, with 362 pupils from1st to 5th grade of elementary school.The objectives are to comprehend thebases and processes of the pupils’relation to mathematics learning andverify the importance of fieldwork inrevealing the representations and thehidden knowledge in the teaching/learning process. From themethodological point of view, the datawere gathered by means of aquestionnaire with 14 open questions.In addition to the general approach,the analysis introduces a doublecomparative point of view: between thetwo sexes and different levels ofschooling. Research by BernardCharlot and Claudine Blanchard-

Laville on the relation with knowledgeprovides the theoretical framework.The results suggest that pupils have abetter relationship with everydayobjects and practices, like countingmoney, than with specificallymathematical objects. These resultsoffer good indicators for a reflectionfrom the perspective of didactics.Key words: relation with knowledge;teaching of mathematics; didactics;educational practices

Relación con el saber en el aprendizajede matemáticas: una contribuciónpara la reflexión didáctica sobre lasprácticas de educaciónEste artículo se refiere a una encuestarealizada en Sergipe, en 2004-2006,junto a 362 alumnos del 1er. al 5to. añodel primario. Son objetivos comprenderlos fundamentos y procesos de larelación de los alumnos con elaprendizaje de matemática y comprobarla importancia de la encuesta de campo

para descubrir las representaciones y elsaber oculto en el proceso enseñanza-aprendizaje. Del punto de vistametodológico, los datos fueronrecogidos a través de un cuestionariocon 14 preguntas abiertas. El análisis,además de un abordaje general,introduce un doble punto de vistacomparativo: entre los dos sexos y entrelos niveles de escolaridad. Elreferencial teórico reposa en laspesquisas de Bernard Charlot y deClaudine Blanchard-Laville sobre larelación con el saber. En los resultadosse destaca que los alumnos serelacionan con objetos y experienciascotidianas, como contar el dinero, másde lo que con objetos específicamentematemáticos. Estos resultados ofrecenbuenos indicadores para una reflexiónen la óptica de la didáctica.Palabras claves: relación con el saber;enseñanza de la matemática;didáctica; experiencias educativas

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