redução de danos e tratamento de substituição - posicionamento da rede brasileira de redução...

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política drogas

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  • 1

    Reduo de Danos e Tratamento de Substituio

    Posicionamento da Reduc1

    (Rede Brasileira de Reduo de Danos)2

    Edward MacRae e Mnica Gorgulho

    Edward MacRae, vice-presidente da Rede Brasileira de Reduo de

    Danos, doutor em antropologia social, professor adjunto na

    Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade

    Federal da Bahia, pesquisador associado do Centro de Estudos e

    Terapia do Abuso de Drogas-CETAD/UFBa.

    Mnica Gorgulho mestre em psicologia e diretora da Associao

    Internacional de Reduo de Danos- IHRA.

    1 Publicado em: Jornal Brasileiro de Psiquiatria. vol. 52, set-out 2003, pp. 371-374.

  • 2

    Reduo de Danos e Tratamento de Substituio

    Posicionamento da Reduc

    (Rede Brasileira de Reduo de Danos)

    Edward MacRae e Mnica Gorgulho

    A Reduc- Rede Brasileira de Reduo de Danos acredita que a questo das drogas deve

    ser entendida de maneira ampla, que inclua os aspectos sociais, polticos e econmicos,

    ao lado daqueles que enfocam a sade em sentido estrito. Similarmente, riscos e danos

    devem tambm ser entendidos de maneira ampla, cuidando-se para no impor definies

    demasiadamente estritas sobre o que seja reduo de danos. A reduo de danos deve ser

    baseada em uma abordagem simptica, isenta de moralismo e centrada num trabalho

    comunitrio que, embora possa propor novos padres e modos de uso, reconhea a

    importncia da escala de valores do usurio e de seu saber sobre drogas.

    Embora favorvel em princpio a tratamentos de substituio e de manuteno,

    consideramos que na ausncia de um uso de herona porte significativo no Brasil, restam

    ainda neste pas muitas questes a serem abordadas sobre o tema. Quanto ao tratamento

    de substituio, o presente estado de ilegalidade e intolerncia legal e cultural em relao

    ao uso da Cannabis vem impossibilitando a continuao de estudos sobre sua

    aplicabilidade como substituto de crack.

    Uma das medidas mais importantes a serem tomadas seria a descriminalizao do uso de

    drogas e a discusso ampla, informada e democrtica de medidas alternativas de controle da

    oferta dessas substncias.

    2 Texto com 7 pginas

  • 3

    Unitermos: reduo de danos, tratamento de substituio, tratamento de manuteno,

    descriminalizao, crack, Cannabis, herona, metadona.

    Harm Reduction and Substitution Treatment- The Position of Reduc- Brazilian Harm

    Reduction Network

    Edward MacRae,Ph.D. and Monica Gorgulho, M.A.

    Abstract

    Reduc- Rede Brasileira de Reduo de Danos believes that the drug question must be

    understood in all its breadth, including the cultural, social, political, economic concerns

    alongside those strictly focused on health. Similarly, risks and damages must also be

    understood broadly and care must be taken not to impose too restrictive a definition on

    Harm Reduction. Harm reduction must be based on a sympathetic, nonjugemental

    approach, centred around community work that although it may propose new patterns and

    modes of use, recognises the importance of the users values and knowledge about drugs.

    Although sympathetic in principle to substitution and maintenance treatments, we consider

    that in the absence of a sizeable heroin problem in Brazil, many questions on the subject

    are yet to be further discused in this country. As for substitution tratment for other

    substances, the present state of legal and cultural intolerance towards the use of Cannabis

    has been rendering it impossible to carry out further research on its use as a substitute to

    crack.

    One of the most important measures yet to be taken would be the decriminalization of

    drug use and widespread informed democratic discussions on alternative measures of

    control over drug supply.

  • 4

    Key words: harm reductioon, subtitution treatment, maintenance treatment,

    decriminalisation, crack cocaine,Cannabis, heroin, methadone,

    A discusso sobre tratamento de substituio ainda incipiente no Brasil, dificultando o

    debate at mesmo dentro da instituio que, por natureza, muito se interessa por ele, a

    Reduc. No temos ainda um posicionamento sobre detalhes especficos referentes a essa

    prtica, mas somos claramente favorveis ao tratamento de substituio ser considerado,

    quando relevante, como alternativa de atendimento toxicomania, em sua proposta ampla.

    Nestas condies, temos algumas reflexes a oferecer para a discusso do tema.

    Primeiramente, consideramos que a reduo de danos um conceito em aberto, ao qual

    podem ser atribudos diversos significados.Ilustra isso o fato de diferentes autores

    identificarem suas origens nas mais diferentes pocas, oscilando entre a Antiguidade, as

    dcadas de 1920 ou 1980. A Reduc entende o conceito menos como uma srie de diretrizes

    especficas para condutas no atendimento a toxicmanos e mais como postura de

    princpios em relao aos inmeros problemas relacionados maneira como nossa

    sociedade vem abordando a questo das drogas. Concebemos que as noes de risco e

    dano devam ser entendidas em sua relatividade. As cincias sociais, que j vm tratando

    exaustivamente desses temas tm mostrado com a hierarquizao de riscos em geral

    sempre depende do ponto de vista de quem os est avaliando e, mais importante de

    tudo, que se deve ter em vista a impossibilidade de se prever com certeza os resultados a

    mdio e longo prazo tanto de prticas individuais quanto polticas. Assim, autores como a

    antroploga Mary Douglas, consideram que mais do que tentar prever todos os desfechos

    para determinadas aes, a estratgia mais sensata seria reforar a resilincia da

    sociedade, ou seja, a maneira de se manter a sua natureza original atravs da adaptao a

    novas situaes (Douglas e Wildavsky 1982). Portanto, consideramos da maior importncia

    manter uma postura que preserve uma diversidade de concepes sobre a questo, seus

    problemas e possveis solues. Preocupam-nos os esforos de alguns setores que,

    respaldados no prestgio social adquirido pelo discurso mdico, buscam definir de maneira

    categrica, a partir de um ponto de vista estrito quais os riscos apresentados pelo uso de

    drogas e quais as maneiras de enfrenta-las que possam com legitimidade vir a ser adotadas.

  • 5

    A Reduc chama ateno para a importncia da ampla experincia que vem sendo

    acumulada pelo movimento social de Reduo de Danos. Este, alm da crescente

    importncia que vem adquirindo em nvel internacional, j congrega no Brasil vrios

    milhares de colaboradores, dos mais diversos estratos sociais e profissionais, agrupados ao

    redor de duas associaes nacionais, dezessete redes regionais e mais de cem Programas de

    Reduo de Danos espalhados por todo o pas. Chama ateno tambm para o fato do

    trabalho que vem sendo realizado por este movimento ser atualmente um dos mais

    estudados e avaliados no campo de sade pblica. Consolidam-se, assim, as suas posies

    nos debates que vem travando com outras categorias, muitas das quais, alm de carecerem

    de maiores experincias nessa rea especficas, at recentemente se posicionavam

    contrrios a ela, chegando em certos casos a at tentar desqualificar a aes e discursos de

    seus proponentes.

    A Reduc considera que as questes referentes ao uso de drogas no podem ser restritas a

    discusses sobre condutas a serem adotadas em relao a indivduos que apresentam

    quadros de toxicomania ou o risco de contrarem o HIV e outras doenas sexualmente

    transmissveis. Atualmente os graves problemas de segurana pblica, entre os quais as

    crises que vm sofrendo o Rio de Janeiro, assim como outras cidades brasileiras, nos

    fornecem uma lembrana constante da variedade de danos necessitando de reduo ou

    minimizao. Revela tambm o imbricamento dos seus vrios aspectos, o que torna fteis

    as tentativas de aborda-los como se fossem estanques.

    Consideramos que a humanidade sempre usou substncias psicoativas com as mais variadas

    e importantes finalidades, e que no seria vivel, ou at desejvel que seu uso fosse

    descartado, como preconizam alguns segmentos mais radicais da sociedade (lembremos

    que vinho, caf e anestsicos, por exemplo, so substncias psicoativas essenciais nossa

    vida fsica, social ou cultural). Partimos do posicionamento de que a abordagem mais

    indicada para a questo das drogas seja aquela que prioriza a reduo dos danos decorrentes

    desse uso que acreditamos ser inevitvel para a maioria das pessoas. Entendemos que o

    bom senso dita que, a reduo dos danos, concebidos de forma ampla incluindo aspectos

  • 6

    sociais, culturais, polticos econmicos e sanitrios, deva ser o objetivo principal a ser

    atingido por uma poltica sobre drogas. Cremos que os controles da oferta e do consumo

    devam ser concebidos somente como possveis estratgias pontuais, a serem aplicados nos

    casos em que seja demonstrada de maneira cientfica a real necessidade de se restringir

    dessa forma a liberdade do conjunto dos membros da sociedade. Consideramos tambm

    arbitrria a diferenciao feita atualmente entre as drogas lcitas e ilcitas e propomos que

    todas devam ser contempladas numa poltica para as drogas (e no antidrogas). Esta deve

    ser regida por consideraes de cunho estritamente democrtico, assim como devem ser as

    medidas implementadas na sua execuo.

    Concebemos a questo da toxicomania e de outros problemas decorrentes ou associados ao

    uso de substncias como sendo de natureza biopsicosocial, levando-nos a criticar a

    expresso dependncia qumica como sendo demasiadamente redutora. Isso, porm no

    significa que rejeitemos a noo de que certas dependncias tm seu lado orgnico e que no

    caso dos opiides, por exemplo, deve-se enfrentar a questo da tolerncia, e,ainda, que uma

    das maneiras de se fazer isso seja atravs do uso de substncias que atuem como

    substitutas. No entanto, existem vrias questes a serem ainda debatidas em maior

    profundidade no que concerne a tratamento de substituio, como por exemplo:

    a) O tratamento de substituio vlido somente para drogas que provocam

    dependncia fsica ou podemos considera-lo til tambm para tratar casos onde a

    dependncia seja mais de ordem psicolgica ou social?

    b) Deve-se pensar em tratamento de manuteno (onde se prev a continuao em

    longo prazo do uso de uma substncia causadora de dependncia, talvez at a droga

    originalmente usada pelo paciente, herona, por exemplo) ou somente numa

    substituio provisria por outra droga da mesma categoria.No se pode deixar sem

    resposta a suspeita levantada muitas vezes contra certas drogas de substituio

    como a metadona acusadas de fazer mais mal do que as originalmente usadas pelo

    paciente.

  • 7

    c) Programas de substituio devem ter alto ou baixo limiar? Consideramos que

    caracterizam baixo limiar: facilidade de entrada, orientao reduo dos danos, ter

    como objetivo principal o alivio de sintomas e fissura e a melhoria na qualidade de

    vida dos pacientes, assim como oferta de uma gama de opes de tratamento.

    Programas de alto limiar seriam aqueles mais difceis de ingressar, ou que tenham

    critrios de seleo exigentes, orientados para a abstinncia (incluindo abstinncia

    de metadona ou outras drogas de substituio), inflexibilidade nas opes de

    tratamento, adoo de controles (de urina, etc.) para deteco de uso, poltica de

    expulso rgida para recadas, psicoterapia ou aconselhamento compulsrios.

    d) Um dos problemas srios com vrios programas de substituio o seu uso como

    forma de controle social, chantageando-se o usurio com a ameaa de cortar a sua

    prescrio da droga de substituio se ele incorrer em deslizes como recadas,

    violncia ou trfico. Isso nos parece agredir a prpria dignidade do ser humano.

    e) Que fazer quando as drogas de substituio mais recomendveis so ilcitas como a

    Cannabis, por exemplo?

    A Reduc considera necessrio questionar a primazia freqentemente atribuda ao saber

    mdico. Assim, suas propostas sempre enfatizam, alm da necessidade de combater a

    excluso social, a importncia do protagonismo dos usurios de drogas tanto atravs de sua

    participao na conceituao e discusso dos problemas quanto na implementao das

    aes. Consideramos tambm da maior importncia envolver as comunidades usurias

    nesse trabalho, promovendo padres de uso de menor risco. No decorrer dos anos a

    experincia de Reduo de Danos vem demonstrando a importncia de se estabelecer um

    dilogo verdadeiro com os usurios de drogas, evitando estabelecer uma posio de

    confronto com seus valores centrais (ou seja, evitando trazer mensagens puramente

    negativas ou repressivas sobre o uso de substncias psicoativas). Devemos, ao invs, buscar

    contribuir para modificaes pontuais em certos aspectos das prticas de uso, no deixando

    de reconhecer o valor geral do seu conhecimento emprico de questes relacionadas ao

    uso, lcito ou ilcito dessas substncias.

  • 8

    Sabemos que j h algum tempo os centros mdicos de maior importncia vem adotando

    posturas desse tipo. Assim a UNIFESP, por exemplo, tem realizado pesquisas com

    populaes indgenas para aprender com elas as possibilidades de uso medicinal para uma

    grande variedade de plantas de suas regies nativas. Outras pesquisas sobre o uso de

    cocana e seus derivados tambm se voltaram para o que se poderia chamar a cultura da

    coca.

    Discordamos das generalizaes que preconizam a abstinncia do uso de drogas como a

    meta ideal. Clnicos e pesquisadores tm constatado que freqentemente o uso de drogas

    ilcitas consiste numa espcie de automedicao psiquitrica por parte de usurios que

    encontram nesse recurso uma maneira de aliviar seu sofrimento, e a sua interrupo pode

    levar a agravamentos de sua condio. Consideramos que tal recurso deva ser entendido de

    maneira respeitosa e no rejeitadas sumariamente com a imposio de programas de

    tratamento voltados unicamente para a abstinncia. Assim, em muitos casos tratamentos de

    substituio ou manuteno seriam recomendveis. A Reduc questiona tambm a

    classificao automtica do uso de drogas ilcitas como uma patologia per se.

    Consideramos que o status legal de muitas substncias psicoativas mais bem entendido a

    partir de anlises de cunho histrico e social do que mdicos.

    Assim, a clnica no seria um ponto adequado a partir do qual realizar estudos sobre o uso

    de drogas. Por isso, a necessidade de se fazer pesquisas sobre o na populao em geral, por

    exemplo: levantamentos domiciliares ou escolares. Igualmente, deve-se evitar

    generalizaes e recomendaes sobre polticas de drogas baseadas em premissas

    puramente clnicas. So conhecidos os perigos da medicalizao de problemas de ordem

    social. A organizao da sociedade no pode ser pautada somente por consideraes de

    sade pblica.

    Um dos fatores que mais dificulta o trabalho de Reduo de Danos, assim como outras

    abordagens de preveno, o status ilegal de diversas drogas. Alm de fomentar a

  • 9

    arbitrariedade e a violncia, a criminalizao do uso leva a um maior isolamento do

    usurio, dificultando o seu encaminhamento a tratamentos de sade, nos casos em que isso

    seria necessrio, e o seu acesso a vrios outros direitos que deveriam lhe ser assegurados

    como cidado. Tambm torna mais difcil a preveno atravs do dilogo franco e da

    promoo de mtodos mais seguros de uso. Em relao a tratamentos de substituio,

    dificulta sobremaneira a busca de substncias alternativas ou regimes de uso da droga

    original que sejam mais adequadas a suas necessidades sociais ou de sade. Assim, por

    exemplo, tem sido muito difcil dar continuidade s indicaes iniciais, vindas tanto da

    clnica quanto do trabalho de campo realizado junto a populaes usurias, de que o uso da

    Cannabis poderia ser um bom auxiliar no tratamento de algumas drogadependncias. O

    nico projeto nesse sentido, montado com respaldo acadmico no Brasil, foi realizado no

    PROAD-UNIFESP-EPM (Labigalini:2000) mas, apesar dos estudos apontarem resultados

    positivos, tem faltado ousadia tcnica e poltica a outras instituies para replica-los perante

    o atual clima de intolerncia.

    Acreditamos que o Brasil cometeu grave equivoco ao ceder parte de sua soberania,

    submetendo-se a uma conveno mundial que padroniza, de maneira rgida e difcil de

    alterar, a abordagem da questo das drogas. Hoje j existe uma forte discusso sobre a

    eficcia das Convenes Internacionais para o controle de drogas, em um reconhecimento

    de que o modelo de tratamento tailor-made, que j se mostrou o mais eficaz em relao

    ao indivduo, usurio de drogas, deve valer tambm para as naes, cada qual com suas

    especificidades e problemas; cada qual com suas escolhas e solues. Entendemos, com

    isso, que a tratamento de substituio mais um dos problemas que tem sido definido no

    por suas caractersticas prprias, mas exclusivamente, por definies e encaminhamentos

    generalistas que tanto j provaram sua eficcia discutvel.

    Finalmente, consideramos que algumas das medidas mais importantes a serem tomadas

    sejam a revogao da criminalizao do uso no-medicamentoso de drogas e a abertura de

    amplas discusses sobre formas alternativas de controlar o seu mercado. Possibilitaria-se,

    com isso, um verdadeiro e necessrio avano na discusso sobre a real eficcia dos modelos

  • 10

    de ateno dirigidos ao uso e abuso de substncias psicoativas, incluindo-se os tratamentos

    de substituio.

    Bibliografia

    Douglas, M. E Wildavsky, A. Risk and Culture, an essay on the selection of technological

    and environmental dangers.Berkley, Los Angeles e Londres: University of California Press,

    1982.

    Labigalini Junior, E. O uso de Cannabis por dependentes de crack: um exemplo de reduo

    de danos. In: Mesquita, F. & Seibel,S.(orgs.)Consumo de drogas, desafios e perspectivas.

    Hucitec: So Paulo, 2000, p. 173-184.