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2014 Questões de Direito comercial no Brasil Portugal Fábio Ulhoa Coelho Maria de Fátima Ribeiro Coordenadores

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Page 1: Questões de Direito comercial Brasil Portugal · Fábio Ulhoa Coelho ... Direito comercial, I vol., Parte geral, contratos mercantis, títulos de crédito, Almedina, Coimbra, 2011,

2014

Questões de

Direitocomercial

noBrasilPortugal

Fábio Ulhoa Coelho

Maria de Fátima Ribeiro

Coordenadores

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ISBN 978-85-02-20947-3

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Coelho, Fábio UlhoaQuestões de direito comercial no Brasil e em Portugal / Fábio Ulhoa

Coelho e Maria de Fátima Ribeiro (coordenadores). – São Paulo : Saraiva, 2014.

1. Direito – Brasil 2. Direito – Portugal 3. Direito comercial I. Ribeiro, Maria de Fátima. II. Título.

13-07389 CDU -347.7

Índice para catálogo sistemático:

1. Direito comercial 347.7

Rua Henrique Schaumann, 270, Cerqueira César – São Paulo – SPCEP 05413 -909PABX: (11) 3613 3000SACJUR: 0800 055 7688De 2ª a 6ª, das 8:30 às 19:[email protected]: www.editorasaraiva.com.br/direito

Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora Saraiva.A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.

Diretor editorial Luiz Roberto CuriaGerente editorial Thaís de Camargo RodriguesAssistente editorial Sirlene Miranda de SalesProdutora editorial Clarissa Boraschi MariaPreparação de originais Ana Cristina Garcia

Maria Izabel Barreiros Bitencourt Bressan Flavia Gutterres Falcão de Oliveira

Arte e diagramação Isabel Gomes CruzRevisão de provas Microart Comércio e Editoração EletrônicaServiços editoriais Elaine Cristina da Silva

Tatiana dos Santos RomãoCapa Guilherme P. Pinto

Produção gráfica Marli Rampim

Impressão

Acabamento

Data de fechamento da edição: 19-9-2013

F IL IAIS

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O direito comercial português:

direito misto, autónomo e

basicamente empresarial

RICARDO COSTA

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

1. UM DIREITO OBJECTIVADO NO CONCEITO DE “ACTO DE COMÉRCIO”

a) Identificar o objecto do direito comercial é, numa formulação singe-

la, perceber o seu âmbito de aplicação, de tal modo que consigamos elencar

quais os fenómenos que a regulação jurídico -positiva visa disciplinar. Numa

outra perspectiva, ver esse objecto é identificar as relações jurídicas que são

reguladas pelas normas pertencentes ao direito comercial.

O direito comercial é (ainda que em menor medida agora) um ramo

jurídico especial em relação ao direito civil (direito privado comum), nutrido

com regras próprias que se aplicam a certos objectos, a certas relações e a

certos sujeitos (ainda que seja o direito civil aplicável a título subsidiário e

supra os inconvenientes de um direito fragmentário)1. A “comercialização

do direito civil” e a “comunização do direito comercial”2 – num agregado

de influências de dupla via que tem alimentado uma “progressiva nivelação

da zona privatística”3 e uma crescente “unificação (substancial) do direito

privado” (dos contratos, nomeadamente)4 – não esgotaram, porém, a ne-

cessidade de identificar o campo da comercialidade jurídica, marcada pela

1 Por todos, COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, vol. I, Introdução, actos de comér-

cio, comerciantes, empresas, sinais distintivos, 8. ed., Almedina, Coimbra, 2011, p. 14.

2 ORLANDO DE CARVALHO, Critério e estrutura do estabelecimento comercial, I, O problema da

empresa como objecto de negócios, Coimbra, 1967, n. (64), pp. 127, 152.

3 ORLANDO DE CARVALHO, Critério e estrutura…, cit., n. (64) – p. 122.

4 COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., pp. 27, 68.

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vigência (mesmo que já muito retalhada) de uma codificação novecentista: o Código Comercial aprovado pela Carta de Lei de 28 de Junho de 1888.

O art. 1º do CCom. pretende definir o “objecto da lei comercial”: “rege os actos de comércio sejam ou não comerciantes as pessoas que neles in-tervêm”. Prima facie, na senda do legado do Code de Commerce de 18075, estamos perante um direito de cariz objectivista, concentrado no facto jurí-dico que seja qualificável como acto de comércio6. Podemos dizer, como assinalou classicamente a doutrina portuguesa, que o CCom. concebeu o direito comercial como direito da matéria mercantil7, constituída por actos de co-mércio e por actividades e relações mercantis (fundadas em ou referidas a actos de comércio) – ou seja, um direito que tem por base “um certo tipo de actuações”8 e que se autonomiza como um direito “de operações, sejam ou não realizadas por comerciantes, venham ou não reguladas em códigos específicos, estejam ou não subordinadas a uma jurisdição ad hoc”9.

Justamente a este último respeito, o art. 230º do mesmo CCom. – que ocupa o respectivo Título IV (“Das empresas”) – delimita aquelas que serão vistas (ou não) como empresas comerciais, de acordo com a actividade (isto é, uma série conjugada de actos de comércio) que explorem. Logo, dir -se -á, vislumbramos ainda a manifestação de um direito objectivista, tendo em conta, agora, que os actos de comércio são celebrados ou praticados no âmbito

5 Sobre esta influência, também para o Código Comercial de 1833, v., entre outros, ORLANDO DE CARVALHO, Critério e estrutura… cit., n. (64) – pp. 121 e ss., COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., pp. 9 e ss., MENEZES CORDEIRO, Manual de direito comercial, I volume, 2. ed., Almedina, Coimbra, 2007, pp. 50 e ss., 60 -61, CASSIANO DOS SANTOS, Direito comercial português, vol. I, Dos actos de comércio às empresas: o regime dos contratos

e mecanismos comerciais no direito português, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 22 e ss., PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Direito comercial, I vol., Parte geral, contratos mercantis,

títulos de crédito, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 17 e ss., 57.

6 Sobre a “teoria” e o “conceito” de acto de comércio na doutrina mais antiga, v., para amostra, GUILHERME MOREIRA, Actos de commercio. Estudo exegetico e critico das disposições do

novo Codigo Commercial, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1889, pp. 1 e ss., 22 e ss., 44 e ss., CUNHA GONÇALVES, Comentário ao Código Comercial português, vol. I, Empreza Editora J . B., Lisboa, 1914, sub arts. 1º e 2º, pp. 2 e ss., em esp. 10 -11, 13 -14, JOSÉ PINTO COELHO, Direito comercial portuguez, França Amado Editor, Coimbra, 1914, pp. 39 e ss., 48 e ss., 71 e ss., ADRIANO ANTHERO, Comentario ao Codigo Commercial Portuguez, vol. I, 2. ed., Companhia Portuguesa Editora, Porto, 1929, sub art. 2º, pp. 27, 39.

7 FERNANDO OLAVO, Direito comercial, vol. I, 2. ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1978, pp. 9 -10, VASCO LOBO XAVIER, Direito comercial – Lições ao 3º ano jurídico, FDUC, Coimbra, 1977 -78, pp. 33 -34, CASSIANO DOS SANTOS, p. 61.

8 ORLANDO DE CARVALHO, Critério e estrutura…, cit., n. (64) – p. 122.

9 ORLANDO DE CARVALHO, Critério e estrutura…, cit., n. (64) – pp. 152 -153.

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de actuação e exploração de uma empresa ou fundam a prática de várias operações

de exploração de uma empresa dedicada a uma actividade comercial10.

Não se estranha que, na medida em que não se altere o modelo do CCom., o acto de comércio, para além de ser a “pedra fundamental sobre a qual assenta o edifício legislativo constituído pelo Código Comercial”11, seja compreendido como o “conceito -chave”12 e a “’gramática basilar’ do direito comercial”13. De facto, se a relação se funda num acto de comércio, o efeito é definir tal relação como comercial e aplicar -se -lhe o direito mercan-til14. Porém, não obstante o alcance da articulação acto -relação, o CCom. não avança com uma definição de acto de comércio, nem sequer de comércio15;

10 Este é o legado da visão doutrinal do art. 230º mais chegada à organicidade e en-quadramento organizatório de tais actos -actividades: pioneiramente, GUILHERME MOREIRA, pp. 187 -189; mais recentes, com variantes construtivas e dando conta da tradicional polémica que envolveu o sentido da atribuição da qualidade comercial a tais empresas, v. JOSÉ JOAQUIM BARROS, “Regime geral dos actos de comércio”, As operações comerciais, Almedina, Coimbra, 1988, pp. 18, 26 -27, 34, VASCO LOBO XAVIER, pp. 38 e ss., maxime 41 -42, n. (1), p. 45, ss., COUTINHO DE ABREU, Da empresarialidade (As empresas no direito), Almedina, Coimbra, 1996, pp. 27 e ss., OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito comercial, vol. I, Institutos gerais, FDL, Lisboa, 1998/99, pp. 154 e ss., em esp. 159, MENEZES CORDEIRO, pp. 199 -200 (aparentemente), CASSIANO DOS SANTOs, pp. 84 e ss. (com referência às pp. 74 e ss.), em esp. 87 -88 (conferindo ao art. 230º um “sen-tido mediato ou secundário” de qualificar como actos objectivos aqueles em que se analisa a actividade das empresas do preceito, que se segue ao “sentido imediato ou primário” de comercializar empresas por força da actividade que exercem (“dois elementos de facto: empresa+actividade especificada”); para a crítica deste último sentido, v. COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., pp. 67 -68); PEDRO PAIS DE VASCON-CELOS, pp. 80 -81, 82, 99, que propugna o art. 230º como “uma série tipológica de actividades tipicamente mercantis”, de modo que “aquelas actividades devem estar presentes nas empresas candidatas à qualificação para que possam ser tidas como mercantis”, sendo a “empresarialidade mercantil” “indiciada pela intermediação, pela organização, pela assunção de risco especulativo, pela profissionalidade”; PAU-LO OLAVO CUNHA, Lições de direito comercial, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 44 -45. Para o ensaio de uma concepção híbrida – trata o art. 230º do “empresário” em razão da actividade por ele exercida (“conjunto de actos entre si coordenados para a realiza-ção do mesmo fim”), “profissionalmente exercida e dotada de organização” –, v. ainda FERNANDO OLAVO, pp. 253 e ss. (concluía: “as actividades a que alude o art. 230º e legislação complementar são objectivamente comerciais”).

11 PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, p. 58, que assinala ter o CCom. eleito a categoria dos actos de comércio como o “primordial factor de delimitação do âmbito material do Direito Comercial”.

12 OLIVEIRA ASCENSÃO, p. 53.

13 COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., p. 35.

14 Por todos, CASSIANO DOS SANTOs, p. 60.

15 A doutrina portuguesa teve já ocasião de referir que se poderia ter ensaiado uma defi-nição do comércio como “uma actividade económica privada de intermediação nas

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opta pela tipificação de actos de comércio, “que sejam de tal modo próprios e característicos da actividade mercantil que possam ser tidos como tipica-mente mercantis”16: os actos de comércio objectivos17.

b) Quais são os actos objectivamente comerciais?

Em primeiro lugar, são factos jurídicos negociais: contratos18 e negócios jurídicos unilaterais19 -20.

Em segundo lugar – atendendo ao alcance largo do art. 230º do CCom. mas também a outra legislação que demarca actividades empresariais mercantis –, actos de comércio são também os actos típicos e os actos instru-mentais e conexos da exploração de certas actividades mercantis (como transfor-mação industrial, construção, montagem e exploração de espectáculos, actividade financeira, actividade seguradora e resseguradora, intermedia-ções várias, actividade transitária, actividade de viagens, etc.), nomeada-mente por terem na origem ou como pressuposto final a celebração de outros actos de comércio negociais (vendas para fornecimento, agência, edição, empreitada, transporte, operações bancárias e sobre instrumentos financeiros, locação financeira, seguro, mediação imobiliária, organização de programas turísticos etc.): compras de matérias -primas, aquisição de objectos e instrumentos para a produção de bens e serviços, celebração de contratos de trabalho e de prestação de serviços (outros, se for o caso) etc.21.

trocas, especulativa, profissional e lucrativa entre a produção e o consumo, ou outra se-melhante” – refiro -me a PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, pp. 38, 58 -59, que, porém, reconhece ser essa definição um risco para o “intento de exactidão e de rigor que ao tempo [do CCom.] era pretendido”. Sobre a impossibilidade de um conceito unitário, homogéneo ou gené-rico de acto de comércio, v. COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., pp. 49 e ss.

16 PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, pp. 38, 59.

17 Que depois se espelham nas categorias de actos “autónomos” ou “absolutos”, actos “acessórios” ou “por conexão”, actos “formais” ou “abstractos” e “substanciais” ou “causais”, actos “bilaterais” ou “puros” e “unilaterais” ou “mistos”: entre outros, v. FERNANDO OLAVO, pp. 107 e ss., OLIVEIRA ASCENSÃO, pp. 79 e ss., COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., pp. 88 e ss., PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, pp. 70 e ss.

18 O próprio Livro II do CCom. intitula-se “Dos contratos especiais de comércio”.

19 Exemplos destes últimos são os negócios constituintes de sociedades comerciais unipessoais e os negócios cambiários.

20 VASCO LOBO XAVIER, pp. 31 -32, COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., pp. 36, 53.

21 A favor da interpretação extensiva do art. 230º, v. COUTINHO DE ABREU, Da empresariali-

dade…, cit., pp. 30 -31 (= Curso…, vol. I, cit., pp. 66 -67): em primeiro lugar, actos objectivos são “os contratos em que o exercício da empresa tipicamente se traduz”; depois, o preceito “parece basear a tipificação de algumas empresas em factos não

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Ainda actos de comércio são alguns simples actos jurídicos, como notifi-cações e avisos no domínio societário (v. arts. 203º, n. 3, 204º e ss, 285º -286º, do CSC)22 e o protesto no domínio cambiário (v. art. 44º da LULL)23.

Finalmente, o facto jurídico ilícito especialmente previsto na lei não pa-rece que esteja fora da categoria, enquanto facto que gera em si mesmo uma obrigação mercantil (v., como exemplos, os arts. 235º, 236º, 238º, 245º, 253º, § único, 264º, 665º e ss, do CCom., e, fora do CCom., o art. 62º do DL n. 129/98, de 13 de Maio24, e os arts. 72º e ss do CSC).

Fora deverão entender -se os factos jurídicos não voluntários ou naturais (como os assentes no decurso do tempo enquanto fundamento da prescri-ção de direitos), uma vez que deve sustentar-se como irrazoável que o regime previsto para essa situação (p. ex., arts. 174º do CSC e 70º da LULL) legitime a existência em si mesmo de tais factos como actos, uma vez des-providos de uma vontade de acção ou de declaração25.

jurídico -negociais” (como as empresas transformadoras, as empresas de espectáculos públicos e as empresas construtoras, ainda mais, “a visão ‘orgânica’ dos diversos actos em que o exercício das empresas (previstas na norma) se traduz favorecerá igualmen-te esta tese”; por fim, conforta -se no facto de “as empresas referidas no art. 230º po-derem ser exploradas por não comerciantes”, o que subtrai o espaço para qualificar tais actos instrumentais como actos subjectivamente comerciais; CASSIANO DOS SANTOS, p. 87: por um lado, os “actos centrais da actividade propriamente dita e que conferem essencialidade mercantil à empresa”; por outro, os restantes “actos praticados no quadro de uma empresa”; aparentemente favorável, antes, JOSÉ JOAQUIM BARROS, p. 35 (“Todos os actos de relacionamento dessas mesmas organizações com o exterior são, por isso, actos comerciais. E não só os actos e contratos.”), e, mais desenvolvidamen-te, PEREIRA DE ALMEIDA, Direito Comercial, vol. I, Actos de comércio e comerciantes, AAFDL, Lisboa, 1976/77, pp. 201 e ss. Com construção diversa, quanto ao contrato ou acto típico (“o que é considerado comercial é a actividade”), v. OLIVEIRA ASCENSÃO, pp. 58 -59, e, aparentemente, PAULO OLAVO CUNHA, pp. 45, 68, 69.

22 Em sentido contrário, CASSIANO DOS SANTOS, p. 63, porque (nos simples actos jurídicos societários) “os efeitos de regime que a lei lhes associa dependem da prévia qualifi-cação como sociedade comercial”.

23 VASCO LOBO XAVIER, pp. 32 -33, COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., p. 53.

24 Trata -se do regime do Registo Nacional de Pessoas Colectivas.

25 OLIVEIRA ASCENSÃO, p. 71, COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., p. 54; reconhecendo ser forçado que “o termo acto possa designar factos jurídicos que não sejam acções humanas”, v. VASCO LOBO XAVIER, p. 33 e n. (1).

Ao invés, considerando que acto de comércio deve ser compreendido amplamente, através do conceito de “facto jurídico mercantil lato sensu”, v. FERNANDO OLAVO, pp. 61 -62, exemplificando as espécies de actos ou fenómenos comerciais (enquanto ob-jecto de normatividade) que se podem aí integrar: “factos jurídicos em sentido estrito

(como o tempo na prescrição das obrigações sociais); actos jurídicos (como o uso ilegal de firma); e negócios jurídicos (como a compra e venda)”; concordantes, BRITO CORREIA, Direito comercial, 1º vol., AAFDL, Lisboa, 1981 -1982, p. 34, MENEZES CORDEI-

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c) Ora, se o “acto de comércio” objectivo é facto jurídico (ainda que sim-ples acto) voluntário e previsto em lei comercial (“especialmente regulado” não só mas também no CCom.), há que identificar qual a “lei” a que nos referimos para identificar tal acto26. Para esse desiderato, temos quatro mo-

dos de manifestação da comercialidade jurídica objectiva.

Em primeiro lugar, rege directamente o art. 2º, 1ª parte, do CCom.: “to-dos aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código” (modo I). É uma enumeração implícita, que remete para as normas que disponham sobre tais actos e, reflexamente, para as características e pressupostos pre-vistos nessas normas (por vezes só por adição à tipologia do acto homólogo no direito civil)27: fiança de obrigação comercial28 (art. 101º), mandato comercial (art. 231º, ss.), conta corrente (art. 344º, ss.), operações de ban-co (art. 362º, ss.), transporte mercantil (art. 366º, ss.), empréstimo comer-cial (art. 394º, ss.), penhor mercantil (art. 397º, ss.), depósito mercantil (art. 403º, ss.), depósito de géneros e mercadorias nos armazéns gerais (art. 408º, ss.), compra e venda comercial (arts. 463º, 465º, ss.), reporte (art. 477º, ss.), escambo ou troca (art. 480º), aluguer mercantil (art. 481º, ss.), trans-missão e reforma de título de crédito mercantil (art. 483º, ss.), actos e contratos relativos ao comércio marítimo (Livro III), actos, contratos e

RO, p. 188, CASSIANO DOS SANTOS, p. 64 (embora aludindo a actos de comércio que não o são “em sentido próprio”).

26 A “lei comercial” se referem os arts. 1º e 3º do CCom. “Lei comercial” será tanto os “actos legislativos globalmente considerados” como

“tão -só singular(es) norma(s) de diplomas legislativos”: neste sentido, COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., n. (36) – p. 57.

27 FERRER CORREIA, Lições de direito comercial, vol. I, com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita e António A. Caeiro, Universidade de Coimbra, Coimbra, 1973, p. 67 (“acto que, em concreto, reúna aqueles requisitos com que na lei comercial aparece definido”; actos “revestidos daqueles caracteres que a lei comercial fixa em abstracto”), FERNANDO OLAVO, pp. 67 -68, 75 -76, BRANCA MARTINS DA CRUZ, “A teoria geral do acto de comércio: sua relevância actual na determinação da matéria mercantil”, As operações comerciais, Almedina, Coimbra, 1988, pp. 107 e ss., OLIVEIRA ASCENSÃO, pp. 55 -56, COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., p. 55, CASSIANO DOS SANTOS, pp. 61, 62 -63. Em sentido diver-gente, ENGRÁCIA ANTUNES, “O regime jurídico dos actos de comércio”, Themis n. 17, 2009, n. (20) – p. 32, que critica o “mero critério formal de localização sistemática”.

28 Obrigação comercial é aquela que, em regra, nasce de um facto jurídico qualificável como acto de comércio. Porém, COUTINHO DE ABREU, na interpretação do art. 2º, 2ª parte, quando se alude aos “contratos e obrigações dos comerciantes”, considera que as obrigações comerciais dos comerciantes podem ser as previstas no art. 18º do CCom. e a obrigação indemnizatória resultante da responsabilidade objectiva de comerciantes -comitentes (art. 500º do CCiv.) – Curso…, vol. I, cit., pp. 82 e 199 (na aplicação do art. 15º do CCom.).

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actividades integrados nas empresas do art. 230º, n. 1º a 7º. E é uma enu-meração sectorial, uma vez que só a ela se referem os actos cuja regulação se justifica pela imersão num sistema especial como é o sector jusmercantil29.

Ainda no âmbito de aplicação do art. 2º, 1ª parte – recte, pela sua inter-pretação extensiva – entram outras leis comerciais para o efeito de determi-nação de actos nelas disciplinados como actos de comércio: as leis revogató-rias e substitutivas do CCom. (nos termos que o próprio art. 4º da Carta de Lei de 28 de Junho de 1888, que aprovou o CCom., legitima30), desde que conservadoras de especialidade comercial (modo II); e as leis qualificadoras (di-recta ou indirectamente) de actos comerciais por força do seu objecto (mesmo que parcialmente) jurídico -mercantil – as leis comerciais (modo III)31.

No primeiro lote, ingressam manifestamente o Código das Sociedades Comerciais; a Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças; a Lei Uniforme relativa ao Cheque; o Código Cooperativo (para as cooperativas com ob-jecto comercial); o Código dos Valores Mobiliários (em esp. para as “ope-rações em bolsa”: arts. 321º -351º do CVM); os DL n. 349/86, de 17 de Outubro, n. 352/86, de 21 de Outubro, n. 191/87, de 29 de Abril, n. 38/99, de 6 de Fevereiro, n. 3/2001, de 10 de Janeiro, n. 239/2003, de 4 de Ou-tubro, n. 7/2006, de 4 de Janeiro, n. 58/2008, de 26 de Março, entre outros, para o contrato e actividade de transporte; mas ficarão de fora o cap. II do DL n. 231/81, de 28 de Julho, respeitante ao “contrato de associação em participação” (revogou os arts. 224º e ss do CCom. [“conta em participa-

29 Próximo: MENEZES CORDEIRO, p. 190.

30 “Toda a modificação que de futuro se fizer sobre matéria contida no Código Comer-cial será considerada como fazendo parte dele e inserida no lugar próprio, quer seja por meio de substituição de artigos alterados, quer pela supressão de artigos inúteis, ou pelo adicionamento dos que forem necessários”.

31 Sobre esta compreensão dogmática e interpretativa, v. FERRER CORREIA, Lições de direi-to comercial, cit., pp. 82 e ss. (“o que realmente interessa é que o regime traçado pela disposição em causa vá destinado a satisfazer necessidades do comércio, a resolver problemas específicos deste sector da vida económica”), PINTO FURTADO, Disposições gerais do Código Comercial, Almedina, Coimbra, 1984, sub art. 2º, p. 18, JOSÉ JOAQUIM BARROS, pp. 15 -16, OLIVEIRA ASCENSÃO, pp. 60 e ss., COUTINHO DE ABREU, p. 57 e ss., 62, MENEZES CORDEIRO, pp. 190 -191, CASSIANO DOS SANTOS, pp. 64 e ss. (“lei comercial é aquela que contém uma regulamentação que responde a interesses próprios e típi-cos, distintos dos que prevalecem na composição efectuada pelo direito civil”, que “são os que têm expressão no CCom., aqueles que são desenvolvimento desses in-teresses ou os que se situam numa linha de coerência com eles, contrapondo -se àqueles que o Código Civil consagra”). Numa linha também actualista, porém mais limitada, v. PEDRO PAIS DE VASCONCELOs, pp. 63 e ss., 67 -68.

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ção”]), uma vez vistos com rigor os respectivos arts. 21º, n. 1 [“associação de uma pessoa a uma actividade económica exercida por outra”], e 22º [“não se presume a solidariedade dos débitos”]32; bem como está fora, apa-rentemente, o DL n. 72/2008, de 16 de Abril, que instituiu o regime jurí-dico geral do contrato de seguro (não obstante ter revogado os arts. 425º a 462º do CCom.: seguro comercial)33-34.

No segundo grupo, temos a categoria mais aberta de qualificação (direc-ta ou indirecta, repita -se) de actos de comércio objectivos, que implica acima de tudo (mesmo que se integrem actividades fora do comércio jurí-dico) um juízo de especialidade sectorial no que toca à regulamentação legal (mesmo que esta se tenha que conjugar com outras leis para o confirmar), assentes nos especiais interesses que motivam essa regulação particular no confronto com o direito civil. Exemplos: a subsecção VIII (“disposições especiais do arrendamento para fins não habitacionais”) da Secção VII (“arrendamento de prédios urbanos”) do Cap. IV (“locação”) do Código Civil (para os arts. 1109º, 1112º, n. 1, al. a, e 4) – trespasse e locação de estabelecimento comercial35; arrendamento para fins comerciais (parece, pese embora o esbatimento das diferenças de regime, tendo em conta que essa finalidade contratual será em grande medida a que é perseguida pelas singularidades desse arrendamento não habitacional36)37; Decreto n. 20 667, de 28 de Dezembro de 1931 – actividade piscatória; DL n. 19/82, de 28 de

32 Neste sentido, COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., pp. 58 -59; contra: MENEZES CORDEIRO, p. 636, CASSIANO DOS SANTOS, pp. 71 e ss., ENGRÁCIA ANTUNES, Direito dos con-tratos comerciais, Almedina, Coimbra, 2009, p. 29.

33 Em sentido contrário: COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., p. 58.

34 É neste campo que se pode sustentar que estas leis também regulam como actos de comércio objectivos os próprios mecanismos ou institutos tipicamente comerciais, aos quais se aplicam (independentemente dos vários actos ou factos em que se decompõem) os princípios e as normas gerais do direito mercantil. Casos paradigmáticos serão a sociedade comercial e a letra de câmbio. Neste sentido, v. CASSIANO DOS SANTOS, p. 63.

35 Favoráveis: COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., p. 59, CASSIANO DOS SANTOS, p. 70. Contra: PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, pp. 65 -66.

36 V. RICARDO COSTA, “O novo regime do arrendamento urbano e os negócios sobre a empresa”, Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais – Homenagem aos Profs. Dou-

tores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, vol. I, Congresso Empresas

e Sociedades, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 481 -482.

37 Neste sentido, MENEZES CORDEIRO, p. 191, PAULO OLAVO CUNHA, p. 48; ainda assim, para o direito pregresso, v. FERRER CORREIA, Lições de direito comercial, cit., pp. 83 -84; FER-NANDO OLAVO, p. 76. Em sentido diferente, com argumentos ponderosos: CASSIANO DOS SANTOS, pp. 66 -67.

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Janeiro, e n. 116/2012, de 29 de Maio – contrato e actividade de transpor-te aéreo; DL n. 178/86, de 3 de Julho – contrato de agência; DL n. 339/85, de 21 de Agosto – comercialização “por grosso” e “a retalho”; DL n. 124/89, de 14 de Abril – mediação de emprego; DL n. 148/90, de 9 de Maio – cons-tituição de agrupamento europeu de interesse económico; DL n. 298/92, de 31 de Dezembro – actividade creditícia e financeira; DL n. 149/95, de 24 de Junho – contrato de locação financeira; DL n. 171/95, de 18 de Julho – actividade de factoring (em conjugação com o art. 3º, al. h), do DL n. 298/92); DL n. 298/93, de 28 de Agosto – actividade portuária; DL n. 209/97, de 13 de Agosto – actividade de viagens e turismo; DL n. 94 -B/98, de 17 de Abril38 – actividade seguradora e resseguradora; DL n. 61/99, de 2 de Março – empreitada de obras públicas e indústria da construção civil; DL n. 255/99, de 7 de Julho – actividade transitária; DL n. 105/2004, de 8 de Maio – con-tratos de garantia financeira; DL n. 211/2004, de 20 de Agosto – mediação e angariação imobiliárias; DL n. 144/2006 – mediação de seguros; DL n. 108/2009, de 15 de Maio – animação turística; etc.

Se nenhum destes caminhos conduzir à qualificação, sobra a interpre-tação extensiva, em sentido estrito, e a analogia, para hipóteses entendidas como lacunas de qualificação (modo IV). Este último procedimento inter-pretativo, tradicionalmente discutido (e rebatido), não pode deixar de aceitar -se por força de um argumento primordial de razoabilidade na re-cepção de campos da actividade económica dentro da família dos actos matriculados como comerciais (sendo o mais claro o das actividades de intermediação nas trocas e de fornecimento ou prestação de serviços). Seja por analogia legis, recorrendo a uma concreta norma legal que considere como comercial um acto que se possa considerar análogo ao acto que sofre da omissão legal (art. 10º, n. 1 e 2, CCiv.); seja por analogia juris, elaboran-do princípios normativos gerais de qualificação, induzidos por núcleos de disposições qualificadoras de actos como actos de comércio, e aplicando -se teleologicamente tais princípios a casos omissos (art. 10º, n. 3, CCiv.)39.

38 Republicado pelo DL n. 2/2009, de 5 de Janeiro.

39 Sobre este quadro de recurso amplo à analogia para qualificar actos omissos como objectivamente comerciais, v., essencialmente, COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., pp. 69 e ss., e (com concretizações) 72 e ss. (com referências da dicotomia na doutri-na). Interessa ainda, para os Autores mais próximos, v. FERRER CORREIA, Lições de direi-to comercial, cit., pp. 67 e ss., maxime 78 -79, JOSÉ JOAQUIM BARROS, pp. 24 e ss., em esp. 27 -28, VASCO LOBO XAVIER, pp. 56 e ss. (refutando a analogia juris), 59 e ss., OLIVEIRA ASCENSÃO, pp. 32 -33, 43 -43, 60, 63 e ss., 160 e ss. (afastando também a analogia juris,

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d) A dissociação entre comercialidade jurídica e comercialidade econó-mica (entendida tradicionalmente como actividade de intermediação entre a produção, o fornecimento e o consumo e de interposição nessas trocas) é clara na regulação positiva a cargo do direito comercial. Por um lado, o comércio jurídico abraça toda a actividade industrial e de prestação de serviços, de tal forma que há “actos de comércio” que manifestamente escapam àquele comércio económico. Por outro lado, nem toda a activida-de económica entra no regime especial que o direito comercial oferece40: este não abrange a agricultura e actividades similares (pecuária, silvicultu-ra, viticultura, floricultura, etc.), as indústrias extractivas41, as indústrias e serviços artesanais42, as actividades artísticas, a exploração própria da cria-ção autoral, os serviços dos profissionais liberais (mesmo que sejam em-presarialmente exercidas43): v. arts. 230º, §§ 1º a 3º, CCom.; 464º, §§ 2º a

nomeadamente para o art. 230º), MENEZES CORDEIRO, pp. 194 -195, 208 e ss., CASSIANO DOS SANTOS, pp. 95 e ss. (admitindo a analogia para actos praticados no exercício de empresas análogas a uma das empresas previstas no art. 230º do CCom. e não a admitindo directamente entre actos; recusando a analogia quanto a actos isolados ou desgarrados do quadro de exploração da empresa). Contra: FERNANDO OLAVO, pp. 69 e ss., BRITO CORREIA, pp. 36 -37, BRANCA MARTINS DA CRUZ, p. 109, PUPO CORREIA, Direito comercial. Direito da empresa, 9. ed., com a colaboração de António José Tomás e Oc-távio Castelo Paulo, Ediforum, Lisboa, 2005, pp. 403 e ss., PAULO OLAVO CUNHA, p. 48.

40 Desde que não seja acompanhada por outra actividade considerada juridicamente comercial.

41 Por todos, com indicações, v. COUTINHO DE ABREU, Da empresarialidade…, cit., pp. 37 e ss., e, sumariamente, Curso…, vol. I, cit., pp. 255 -256. Porém, a favor da comercia-lidade da actividade industrial extractiva com base no n. 1º do art. 230º, v. OLIVEIRA ASCENSÃO, p. 163 (ainda que com distinções), PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, p. 84 (por semelhança com a indústria transformadora, em esp. a indústria mineira).

42 Não obstante a perturbação criada pelo art. 12º do DL n. 41/2001, de 9 de Feverei-ro (“unidade produtiva artesanal”); para a sua melhor interpretação, v. COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., n. (47) – p. 113, RICARDO COSTA, “Sociedades: de dentro para fora do Código Civil”, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma

de 1977, vol. II, A parte geral do Código e a Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 335 e n. (72).

43 Neste sentido, FERRER CORREIA, Lições de direito comercial, cit., pp. 4 -5, BRITO CORREIA, pp. 5, 30, COUTINHO DE ABREU, Da empresarialidade…, cit., pp. 83 e ss., 92 e ss., 98 e ss., Id., Curso…, vol. I, cit., pp. 15 -16, 67 -68, n. (45) – p. 112, 254 e ss., PAULO OLAVO CUNHA, pp. 2 -3, 4, 67. Divergentes: PEREIRA DE ALMEIDA, Direito comercial, vol. I, Actos de comér-

cio e comerciantes, AAFDL, Lisboa, 1976/77, pp. 163 e ss., JOSÉ JOAQUIM BARROS, p. 27, PUPO CORREIA, p. 82, CASSIANO DOS SANTOS, pp. 39 e ss., 91 e ss., em esp. 94 -95, PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, pp. 13, 92 e ss. Para os profissionais liberais com empresa, ME-NEZES CORDEIRO, p. 249, aplica a categoria das “pessoas semelhantes a comerciantes”.

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4º, CCom.; arts. 1º, 12º, 12º -A e 13º do DL n. 336/89, de 4 de Outubro, na redacção do DL n. 339/90, de 30 de Outubro (sociedades de agricultura de grupo, agrupamentos de produção agrícola, agrupamentos complementa-res da exploração agrícola, empresas familiares agrícolas reconhecidas); art. 94º do DL n. 487/99, de 16 de Novembro (sociedades de revisores oficiais de contas); art. 1º, n. 2, do DL n. 229/2004, de 10 de Dezembro (sociedades de advogados); art. 86º, n. 1, do DL n. 452/99, de 5 de Novembro, na re-dacção do DL n. 310/2009, de 26 de Outubro (sociedades profissionais de técnicos oficiais de contas). Por fim, note -se que os chamados actos formal-

mente comerciais não estão na órbita do comércio jurídico em sentido estrito ou próprio (onde estão os actos de comércio relacionados com operações comerciais organizadas, nomeadamente através de comerciantes com es-trutura empresarial) e/ou económico, nem com ele manifestam conexão necessária (seja com actos de comércio seja com comerciantes): o caso de escola está nos negócios e actos relacionados com a subscrição cambiária44.

e) A averiguação da comercialidade jurídico -objectiva tem como desti-natário o regime comum dos actos de comércio em geral. Estes agregam -se num agrupamento circunscrito no universo geral dos actos jurídico--privados, com regras diferenciadas das que se aplicam a esses actos “civis” (porque não comerciais). Indiscutivelmente, a saber: (i) a solidariedade passiva nas obrigações comerciais, ainda que esta seja regra supletiva (art. 100º do CCom.; v. art. 513º do CCiv.) e, de todo o modo, não se aplique ao(s) co -devedor(es) relativamente aos quais o acto não reveste natureza comercial (§ único do art. 100º do CCom., em articulação com o art. 99º); a taxa legal -supletiva (superior à aplicável no direito civil) para os juros moratórios, legais ou convencionais sem fixação de percentagem, a vencer sobre créditos comerciais, desde que sejam titulados por “empresas comer-ciais, singulares ou colectivas” (art. 102º do CCom., corpo e §§ 3º e 4º [“não poderá ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de refinanciamento efectua-da antes do 1º dia de Janeiro ou Julho, consoante se esteja, respectiva-mente, no 1º ou no 2º semestre do ano civil, acrescida de 7 pontos percentuais”]45; Portaria n. 597/2003, de 19 de Julho; em contraposição,

44 VASCO LOBO XAVIER, p. 8, COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., n. (45) – p. 15.

45 V. ainda o art. 1º da Lei n. 3/2010, de 27 de Abril (obrigatoriedade de pagamento de juros de mora pelo Estado pelo atraso no cumprimento de qualquer obrigação pe-cuniária).

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v. o art. 559º do CCiv. e a Portaria n. 291/2003, de 8 de Abril), ou seja, desde que os actos cuja dívida se venceu e não se cumpriu atempadamen-te se tenham praticado no âmbito da actividade mercantil -empresarial des-ses credores46 -47 -48; a presunção iuris tantum de que as dívidas comerciais dos

46 Sobre este derradeiro pressuposto de exercício empresarial da actividade da qual resulta o crédito, v. FERRER CORREIA, “Juros moratórios”, CJ, 1986, II, pp. 12 -13; JOSÉ JOAQUIM BARROS, p. 83 (admite como justificada a “distinção entre o comércio oca-sional ou o comércio do comerciante sem suporte empresarial, e o comércio proces-sado no âmbito e por intermédio de empresas comerciais”); PUPO CORREIA, n. (565) – p. 420; CASSIANO DOS SANTOS, p. 179 (“não relevam os créditos que resultem de actos subjectivos que se demonstre ulteriormente que não foram praticados no exercício da empresa e actos objectivos que se apure serem também exteriores a esse exercí-cio”), que assinala a ratio do preceito: “compensar especialmente as empresas pela imobilização de capitais, pois que, para elas[,] o dinheiro tem um custo mais eleva-do do que em geral, na medida em que deixam de o poder aplicar na sua actividade, da qual extraem lucros, ou têm mesmo que recorrer ao crédito bancário”; ANA AFONSO, “A obrigação de juros comerciais depois das alterações introduzidas pelo Decreto -Lei n. 32/2003, de 17 de Fevereiro”, RCEJ n. 12, 2007, pp. 173 e ss., em esp. 176 (“os créditos sujeitos à taxa de juro especial são os que decorrem da activi-dade comercial do sujeito titular de empresa e já não os exteriores ao exercício desta actividade”), ainda que a Autora, a pp. 183 e ss., em esp. 188 -190, desenvolva tese assente na empresa subjectiva para o alcance dos arts. 3º e 4º do DL n. 32/2003, de 17 de Fevereiro (regime dos “pagamentos efectuados como remunerações de transacções comerciais”) – neste sentido, aparentemente, PUPO CORREIA, p. 425; EN-GRÁCIA ANTUNES, Direito dos contratos comerciais, cit., p. 236 (“concreta conexão com o exercício da respectiva actividade empresarial”). Diferente é a posição de COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., p. 48, para quem o regime do CCom., em face da conju-gação com o art. 2º, n. 1, da Directiva n. 2000/35/CE e os arts. 3º, als. a e b, e 4º, n. 1, do DL n. 32/2003, se aplica aos “sujeitos que exercem actividade económica juri-dicamente qualificada de mercantil (suportada ou não em empresas em sentido ob-jectivo)”; e de MENEZES CORDEIRO, p. 215 e n. (666), que alarga a norma aos créditos dos comerciantes, sem discriminar o pequeno comerciante “que não tenha empresa”.

47 Porém, este regime, curando da aplicação da taxa de juro legal supletiva do § 3º do art. 102º às obrigações pecuniárias relativas a actos de fornecimento de mercadorias ou

prestação de serviços, é também aplicável a empresários não comerciais, como os agri-cultores, os exploradores de actividade pecuária, os artesãos, os profissionais liberais, por força da inclusão no conceito de “empresa”, utilizado pelo art. 3º, al. b, do DL 32/2003, de qualquer “actividade económica ou profissional autónoma”: Cfr. art. 4º, n. 1, do DL n. 32/2003 (por todos, v. CASSIANO DOS SANTOS, p. 143, ENGRÁCIA ANTUNES, “O regime jurídico…”, loc. cit., p. 48). Segundo a doutrina, esta é “mais uma manifes-tação do esbatimento das especialidades do direito comercial dos contratos ou obrigações” (COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., p. 49) e introduz “mais uma relevante dilui-ção do interesse em qualificar uma determinada actividade económica como espe-cificamente mercantil” (ANA AFONSO, p. 196).

48 ENGRÁCIA ANTUNES, Direito dos contratos comerciais, cit., pp. 236 -237, patrocina objecti-

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comerciantes casados se consideram contraídas no exercício do seu comér-cio (art. 15º do CCom., em reforço da possibilidade de extensão de respon-sabilidade pelas dívidas do cônjuge comerciante prevista nos arts. 1691º, n. 1, al. d, e 1695º, n. 1, do CCiv., nos regimes de comunhão de bens)49.

Mas a averiguação da existência de actos de comércio pode revelar também um regime específico para certos actos de comércio: a prova do empréstimo e penhor mercantis (arts. 396º e 400º do CCom.; v. arts. 1143º, 669º e 681º do CCiv.); a presunção de onerosidade do mandato mercantil (art. 232º do CCom.; v. art. 1158º, n. 1, do CCiv.); a regra de que o depó-sito mercantil é, salvo estipulação contrária, gratificado (art. 404º do CCom.; v. art. 1186º do CCiv., que remete para esse art. 1158º); o vencimento de juros das quantias creditadas no contrato de conta corrente (art. 346º, n. 5º, CCom.); a qualidade de titular de empresa de quem celebra contrato de transporte comercial (art. 366º); a necessária retribuição do empréstimo mercantil (art. 395º CCom.; v. arts. 1145º, n. 1, e 1129º CCiv.); as vicissi-tudes do contrato de compra e venda comercial (arts. 465º -476º; v. arts. 880º, ss; 887º, ss; 892º, ss; 913º e s; do CCiv.); a dispensa da autorização do senhorio na transmissão do estabelecimento explorado em prédio arren-dado (arts. 1112º, n. 1, al. a), 1109º, n. 2, CCiv.; v. arts. 424º, 1038º, al. f, CCiv.); a responsabilidade na fiança comercial e no aval comercial (arts. 101º do CCom. e 32º da LULL; v. art. 638º do CCiv.); a tutela da represen-tação aparente no contrato de agência (art. 23º do DL n. 178/86); o prazo

vamente a extensão do regime do art. 102º, § 3º, às obrigações comerciais de devedores -titulares de empresas comerciais, nomeadamente em razão da aplicação do regime do DL n. 32/2003 a todas as obrigações pecuniárias emergentes de “tran-sacções” interempresariais. Antes, JOSÉ JOAQUIM BARROS, pp. 82 -83.

49 Também, em sede de CCom., os arts. 96º (“Os títulos comerciais serão válidos qual-quer que seja a língua em que forem exarados”), enquanto tradutor do princípio da liberdade de língua na redacção dos contratos comerciais, e 97º, sobre a validade e o valor probatório da “correspondência telegráfica”, são vistos como especiais em relação ao direito privado comum, aqui representados pela contraposição, respecti-vamente, com os arts. 365º, n. 1 (força ad probationem dos “documentos autênticos ou particulares passados em país estrangeiro”), e 379º do CCiv.: por todos, desen-volvidamente, JOSÉ JOAQUIM BARROS, pp. 57 -58, 61 e ss., ENGRÁCIA ANTUNES, “O regime jurídico ...”, loc. cit., pp. 20 e ss., 22 e ss. Com leitura oposta, COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., pp. 44 -45: a regra do art. 96º é suplantada pela regra da “liber-dade de língua” ser “regra comum do direito privado” (mas há excepções: v., p. ex., o art. 42º, n. 1, do CNot., e 11, n. 1, do CSC); a admissibilidade proclamada pelo art. 97º é menorizada por aludir a uma forma de comunicação que “caiu manifestamen-te em desuso (ultrapassada pela telecópia, o “fax”, a internet…)”.

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curto de prescrição dos créditos resultantes dos actos de fornecimento e prestação elencados nos arts. 316º e 317º, al. a, do CCiv., e no art. 10º do DL n. 23/96, de 26 de Junho (“serviços públicos essenciais”); etc.

Estes regimes, mesmo que exíguos e com reduzida largueza substancial (nomeadamente em relação às regras comuns dos actos “homónimos”), ancoram a existência conceptual e normativa do conceito de “acto de co-mércio” e, em primeira instância, contribuem (ainda) para a própria auto-nomia material do direito comercial50. Uma autonomia que, nessa medida relativizada, continua a justificar -se em homenagem aos interesses que tra-dicionalmente se associaram para basear a demarcação desses regimes do regime do direito civil: a tutela preferencial do crédito e da posição dos credores (favor creditoris)51; a celeridade na conclusão dos negócios (em especial ligada à simplicidade e à padronização das formas); a rapidez na circulação de bens, títulos, participações sociais e créditos; a certeza e firme-za nas transacções; a protecção da aparência e da confiança e boa-fé de ter-ceiros; a presunção de onerosidade das operações; etc.52. Ainda que, perver-

50 Tais exiguidade e relatividade dão alento para que a doutrina coloque em causa a existência de um ramo verdadeiramente distinto do regime civil: ALBERTO SOUTO MIRANDA, “A autonomia do direito comercial”, As operações comerciais, Almedina, Coimbra, 1988, pp. 336 e ss., 345 -346, OLIVEIRA ASCENSÃO, pp. 178 -179, 368 -369; ENGRÁCIA ANTUNES, “O regime jurídico ...”, loc. cit., pp. 59 -60 – o Autor sustenta, em relação à valência do acto de comércio, o “ocaso deste critério clássico da comer-cialidade” –, Id., Direito dos contratos comerciais, cit., pp. 30 e ss. A favor do conteúdo e sentido próprios do Direito Comercial, COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., p. 28; PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, p. 20: “informado por princípios ético -jurídicos e técnico -jurídicos que desenvolveu e lhe são próprios; construiu institutos, modelos e técnicas de decisão, regras e um sentido que lhe são também característicos”.

51 De tal modo este é um interesse matriz da regulação dos actos de comércio (e dos próprios comerciantes, como veremos) que a doutrina já ensaiou, como sedimento das regras do Direito Comercial, ser este o “Direito do Crédito”, “tutelando as situa-ções que envolvem os agentes económicos e em que estes recorrem ao crédito para dinamizar a sua capacidade negocial e ampliar o volume dos seus negócios”: PAULO OLAVO CUNHA, pp. 21 -22, 27. Mas não se hipostasie o interesse em causa, pois, como refere MENEZES CORDEIRO, p. 215, “a tutela do crédito é o efeito e não a regra”. Esse efeito, para PEDRO PAIS VASCONCELOS, pp. 22 -23, encontra -se essencialmente nos “tí-tulos de crédito, no regime supletivo de solidariedade das obrigações, no regime restritivo da mora, na presunção de estipulação de juros, na fixação de uma taxa de juros superior à vigente no Direito Civil”.

52 Para a identificação e desenvolvimentos sobre esses (e outros) interesses -princípios, v. FERRER CORREIA, Lições de direito comercial, cit., pp. 32 e ss., FERNANDO OLAVO, pp. 21 e ss., JOSÉ JOAQUIM BARROS, pp. 49 -50, 52 e ss., 76 e ss., 90, ALBERTO SOUTO MIRANDA, pp. 316 e ss., COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., p. 22, CASSIANO DOS SANTOs, pp. 44 e ss., PAULO OLAVO CUNHA, pp. 28 e ss.

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samente, são estes mesmos “princípios” (de carácter essencialmente

técnico -jurídico) que, ao comunicarem -se e integrarem -se como valores de

modificação do direito civil (patrimonial, bem entendido), mais têm feito por

diluir a própria autonomia (hoc sensu, especialidade) do direito comercial53.

Por outro lado, essa autonomia espraia -se hoje mais incisivamente na

existência de subconjuntos jusnormativos que, mesmo que partilhem liga-

ções com outros ramos jurídicos e não sejam reservados em exclusivo a

actividades mercantis e a sujeitos comerciantes, não escondem a sua géne-

se na regulação do direito comercial e o recurso à tutela primordial de in-

teresses específicos do comércio: o direito da insolvência, o direito bancário,

o direito dos valores mobiliários, o direito dos títulos de crédito, o direito

da propriedade industrial, o direito da concorrência, o direito dos transpor-

tes, o direito marítimo, o direito aéreo, o direito do turismo, etc. Estas

verdadeiras “especializações ad intra”54 dão o seu aconchego a um certo

pluralismo do direito comercial, estando este a expandir -se como matriz

cimentadora dessa pluralidade55, sob pena de, a saírem da égide de um ramo

geral do Direito Comercial, não se encontrar um sentido próprio e autóno-

mo para esses outros direitos especiais56. Para confortar a autonomia do

direito comercial, não será ininteligível afirmar que o direito comercial

surgirá como direito geral ou amplo em relação a esses vários direitos ainda

mais especiais57.

Neste ambiente, poderemos intuir que há uma forma de neo -objectivismo

a consolidar -se no direito comercial. Este já não se vai poder afirmar fun-

damentalmente na duplicidade de regulações peculiares sobre actos e

contratos que têm outra consideração normativa no direito civil. Ainda que

tal possa preservar -se, com este ou aquele detalhe legal na adequação dos

53 ALBERTO SOUTO MIRANDA, pp. 324 -325, 326 -327, COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., p. 22.

54 ORLANDO DE CARVALHO, Critério e estrutura…, cit., n. (64), p. 122. MENEZES CORDEIRO, pp. 143 -144, entende que o “direito comercial residual” é o que resta depois de se autonomizarem todos aqueles ramos jurídicos e disciplinas comerciais.

55 Sobre esta “vocação expansionista” do direito comercial moderno, assente na “con-tínua circulação -recirculação que o responsabiliza como o motor de um certo direi-to”, cfr. ORLANDO DE CARVALHO, Critério e estrutura…, cit., n. (64), p. 178; v. também COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., pp. 34 -35.

56 Neste sentido, v. PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, pp. 33 -34.

57 Em sentido análogo, v. MENEZES CORDEIRO, pp. 39, 70.

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princípios comuns às exigências de uma certa matéria, o direito comercial, amplo e independente, ocupar -se -á em estabelecer regimes próprios no âmbito

do direito privado para objectos específicos de regulação, ligados entre si pela pertinência aos escopos das actividades comerciais.

2. UM DIREITO SUBJECTIVO (TAMBÉM) RADICADO NA DISCIPLINA DOS COMERCIANTES

a) A “lei comercial” está longe de se exaurir na atenção sobre actos de comércio – ou, se quisermos, actividades e matérias comerciais. Historica-mente, o direito mercantil surgiu como um direito especial que incide sobre os comerciantes e a relações jurídicas entre comerciantes, aplicado por eles próprios, sendo o carácter profissional da actividade de sujeitos com essa qualidade o pressuposto da especialidade juscomercial58. Era, como resumiu a doutrina, “um direito estatutário e corporativo, uma auto -regulação que os mercatores, reunidos nas respectivas associações profissionais, estabele-ceram com vista à defesa, institucionalização e desenvolvimento da sua actividade económica”59. Esse ius mercatorum (como desvio ao ius commune60) não foi obnubilado pela assunção do acto de comércio como ferramenta de delimitação da actividade mercantil, tendo em conta que os movimentos de codificação e legislação mercantil não lograram dispensar os factores subjectivos: o critério do acto de comércio “não é critério universal da lei comercial portuguesa”61; “os actores determinantes no (e do) direito mer-cantil são os comerciantes”62; o direito comercial é ainda um direito subjec-tivado nos comerciantes. Logo, o ius commercii não é um direito puro; esse seu carácter misto63 confirma a sua feição subjectivista de base.

58 Sobre o direito comercial originário como direito de classe (corporativo) dos “mer-cadores”, v. COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., pp. 1 e ss., CASSIANO DOS SANTOS, pp. 18 -19, 21 -22.

59 ORLANDO DE CARVALHO, Direito comercial, De acordo com as lições ao IV ano jurídico de 1992 -93, Fora do Texto, Coimbra, 1993, p. 13.

60 ORLANDO DE CARVALHO, últ. ob. cit., p. 14.

61 CASSIANO DOS SANTOS, p. 57.

62 COUTINHO DE ABREU, últ. ob. cit., p. 95.

63 Contra: CASSIANO DOS SANTOS, pp. 60 -61 (“o sistema instituído pelo Código Comercial é marcadamente objectivista (e não misto, não obstante os seus ingredientes ou momentos subjectivos)”). Igualmente desfavorável (parece), mas agora numa com-preensão subjectivista: PAULO OLAVO CUNHA, pp. 2 (o Direito Comercial “regula a ac-tividade dos sujeitos económicos mais relevantes no mercado: os comerciantes…”),

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In primis, é logo o CCom. que elenca quais os sujeitos a qualificar como

comerciantes – “as pessoas, que, tendo capacidade para praticar actos de

comércio, fazem deste profissão”64-65; “as sociedades comerciais” (art. 13º)66

– e determina as obrigações especiais dos comerciantes – “adoptar uma firma”67,

“ter escrituração mercantil”, “fazer inscrever no registo comercial os actos

a ele sujeitos”, “dar balanço” e “prestar contas” (arts. 18º, 29º -44º, 62º)68.

E são os arts. 14º e 17º do mesmo CCom. que afirmam quem está excluído

do círculo dos comerciantes69.

In secundis, os actos de comércio são quase sempre praticados por co-

merciantes – por mor da profissionalidade inerente a esta qualidade. E,

ademais, há que ainda ter em conta os actos objectivamente comerciais

que, para o serem, têm que ser (por expressa indicação ou referência im-

plícita da lei) celebrados por comerciantes (empresários); a doutrina

chamou -lhe “condição subjectiva da comercialidade objectiva”70; exemplos

são os arts. 362º do CCom. para as “operações de banco” (v. arts. 2º -3º e

5º -6º do DL n. 298/92, de 31 de Dezembro71); o art. 366º do CCom. para o

“contrato de transporte” (confirmado pelos arts. 2º, n. 2, do DL n. 239/2003

e 2º, al. f), do DL n. 58/2008); os arts. 289º, n. 2, e 293º do CVM para as

actividades e operações de “intermediação financeira” (cfr. os arts. 289º, n.

1, 290º e 291º do CVM); os arts. 1º, 2º, 3º, n. 1, e 5º, n. 1, al. a, do DL n.

209/97 para o contrato celebrado pelas “agências de viagens e turismo”; os arts. 2º, n. 1, 3º e 6º, n. 1, al. a, do DL n. 211/2004 para o contrato de “me-diação mobiliária”; etc.

24 -25 (“O que realmente pode fundamentar a autonomia não é o tipo de actos, mas o tipo de sujeitos…”), 35.

64 E – requisito adicional e subjacente – actuam em nome próprio (a título pessoal ou mediante representantes) e por sua conta: COUTINHO DE ABREU, últ. ob. cit., pp. 102 -103, MENEZES CORDEIRO, p. 227, CASSIANO DOS SANTOS, pp. 113 -114.

65 Sobre a aplicação do art. 13º, n. 1º, a pessoas colectivas que se dediquem a actividade--objecto comercial, v. COUTINHO DE ABREU, últ. ob. cit., pp. 107 e ss.

66 V., a este propósito, a referência a “agente de comércio” no art. 1º, n. 5, do DL n. 339/85 (comércio por grosso e a retalho).

67 Cfr. arts. 37º e ss. do DL n. 129/98.

68 Desenvolvidamente, v. COUTINHO DE ABREU, últ. ob. cit., pp. 154 e ss., 182 e ss.; sumariamente, PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, pp. 49 e ss.

69 Entre outros, v. COUTINHO DE ABREU, últ. ob. cit., pp. 114 e ss., CASSIANO DOS SANTOS, pp. 117 e ss.

70 FERRER CORREIA, Lições de direito comercial, cit., p. 58.

71 Trata -se do regime geral das instituições de crédito e sociedades financeiras.

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Antes disso, é ainda o art. 2º, 2ª parte, do CCom. que define os actos

de comércio (“contratos e obrigações”, na sua terminologia) que o são por

serem celebrados por comerciante: actos de comércio subjectivos. Não esta-

mos perante actos enumerados e definidos pela lei. Esses são os actos que,

mesmo que atípicos, apresentam uma conexão abstracta com o exercício do

comércio em geral (“não forem de natureza exclusivamente civil”) e reve-

lam em concreto uma conexão (efectiva e real ou potencial -aparente mas

não infirmada) com o comércio (rectius, com a actividade) do sujeito autor

do acto72 (“se o contrário [a não inserção na actividade profissional do

sujeito] do próprio acto não resultar”)73. Para esta identificação não conta

a tipificação de actos ou actividades74; o direito comercial considera, como

ponto de partida, a imputação ao comportamento de um sujeito particular

e qualificado: o comerciante75.

Depois, não podemos ignorar que a “lei mercantil” (nomeadamente

quando vista, em sentido amplo, para todos os sub -ramos do direito mer-

cantil) rege a organização interna e o funcionamento interno e externo dos

comerciantes -entidades -pessoas colectivas e, entre eles, os mais proemi-

nentes comerciantes (e, em regra, empresários), como são as sociedades

comerciais76.

Aliás – não esquecendo o que atrás ficou dito sobre o efeito qualifi-

cador do art. 230º do CCom. –, não deixemos de ter em conta que os ti-

tulares de empresas comerciais a que se refere esse art. 230º não deixarão

de ser comerciantes, uma vez aferida a comercialidade das actividades

descritas nesse preceito. Ou seja, numa perspectiva subjectiva, estamos

perante comerciantes empresários (ou empresários comerciais). Não dei-

72 Ou do “sujeito de certa obrigação”: COUTINHO DE ABREU, últ. ob. cit., pp. 85, 86.

73 Ainda assim, estamos aqui perante o que alguma doutrina apelida de “actos de co-mércio de segunda linha”, tendo em conta que pressupõem “outros actos cuja prática faz adquirir a qualidade de comerciantes”: CASSIANO DOS SANTOs, pp. 61 -62.

74 Por ex., v. CAPELO DE SOUSA, Teoria geral do direito civil, vol. I, Coimbra Editora, Coim-bra, 2003, p. 27.

75 Para desenvolvimentos, v. COUTINHO DE ABREU, últ. ob. cit., pp. 81 e ss., CASSIANO DOS SANTOS, pp. 98 e ss.

76 Assinalando sumariamente a divisão entre actos de comércio e “fenómenos que não são actos comerciais nem seus efeitos directos”, que, não estando relacionados di-rectamente com a prática de actos de comércio, não deixam de estar regulados na lei mercantil, v. COUTINHO DE ABREU, últ. ob. cit., p. 13.

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xando também de perceber que os §§ 1º (“o proprietário ou o explorador

rural que apenas fabrica ou manufactura os produtos do terreno que

agriculta, acessoriamente à sua exploração agrícola”; “o artista, industrial,

mestre ou oficial de ofício mecânico que exerce directamente a sua arte,

indústria ou ofício, embora empregue para isso, ou só operários, ou ope-

rários e máquinas”), 2º (“o proprietário ou explorador rural que fizer

fornecimentos de produtos da respectiva propriedade”) e 3º (“o próprio

autor que editar, publicar ou vender as suas obras [científicas, literárias

ou artísticas]”) do art. 230º do CCom. configuram a possibilidade de em-

presários não comerciantes, pois as actividades exploradas, ainda que

empresarialmente, não pertencem à comercialidade juspositiva. Logo,

também aqui o CCom. rege, por antítese e exclusão, os sujeitos que escapam

à qualidade de comerciante.

b) Aos comerciantes, enquanto sujeito -objecto do direito comercial,

aplica -se um regime particular. A saber: os seus actos são (ou podem ser)

subjectivamente comerciais (art. 2º, 2ª parte, CCom.); as obrigações especiais

do art. 18º do CCom.; a disciplina própria da prova relativa aos “factos do

seu comércio” (art. 44º do CCom.); as dívidas comerciais dos comerciantes

casados em regime de comunhão presumem -se contraídas no exercício do

seu comércio (nos termos do art. 15º do CCom., na relação com a respon-

sabilidade do comerciante e seu cônjuge ditada pelo art. 1691º, n. 1, al. d,

do CCiv.); aos créditos de alguns comerciantes (e sob certas condições)

aplica -se a “prescrição presuntiva” do art. 317º, al. b, do CCiv.77 (créditos

“pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou não os destine ao seu

comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente

uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução

de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que haja

efectuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do

devedor”)78; a prova dos seus actos verifica -se sem solenidade: arts. 396º e

400º do CCom.; a tutela especial quanto à coisa comprada de boa fé a um

comerciante (art. 1301º do CCiv.).

77 Cfr. art. 312º do CCiv.

78 Para a escalpelização dos requisitos, v. CASSIANO DOS SANTOS, pp. 153 e ss., ENGRÁCIA ANTUNES, “O regime jurídico ...”, loc. cit., pp. 54 e ss.

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3. O DIREITO COMERCIAL COMO (SOBRETUDO) DIREITO EMPRESARIAL

a) Na esmagadora parcela dos casos, a prática de actos de comércio (e/ou de actividades comerciais) e a qualidade de comerciante reflectem ou são reflexo de uma organização ou estrutura organizada e complexa de factores produtivos e meios identificadores (empresa em sentido objectivo79). Não admira que as principais necessidades do comércio jurídico sejam as necessidades da empresa, enquanto instrumento privilegiado de proprie-dade e/ou gestão ao serviço das actividades comerciais80; não suscita reac-ção que os problemas específicos da empresa sejam os problemas que atingem o fulcro da atenção do direito comercial; são os interesses de de-senvolvimento e protecção da empresa que têm fundamentado em grande medida a evolução do ius commercii81 e são esses mesmos interesses que levaram à migração, adaptação e combinação de negócios e mecanismos próprios do direito civil no campo do direito comercial voltado para as em-presas (p. ex., o contrato de locação financeira)82. De lege lata, o direito comercial é um “direito à volta das empresas”, que há muito se reconhe-ceu83, ou um “direito basicamente das empresas”84, que se debruça funda-

79 Por todos, COUTINHO DE ABREU, Da empresarialidade…, cit., pp. 304 e ss., Id., Curso…, vol. I, cit., pp. 218, 225 e ss.

80 Por todos, FERRER CORREIA, “Sobre a projectada reforma da legislação comercial”, ROA, 1984, pp. 8 -9.

81 Por todos, CASSIANO DOS SANTOS, pp. 44 e ss.

82 Desenvolvidamente sobre o empresarialismo como critério (alternativo) da comer-cialidade e suas resistências, v. ORLANDO DE CARVALHO, Critério e estrutura…, cit., n. (64) – pp. 136 e ss., Id., Direito comercial, cit., págs.16 e ss.

83 ORLANDO DE CARVALHO, Critério e estrutura…, cit., n. (64) – pp. 177 -178. Favorável, FERRER CORREIA, “Sobre a projectada reforma…”, loc. cit., pp. 10, 11 -12. No sentido de o direito comercial ser o “direito especial da actividade económica (…), a qual juridicamente é (pode ser) apreendida a partir da existência de uma empresa” (CASSIANO DOS SANTOS, pp. 43 -44; a p. 54, o Autor considera que o ordenamento jurídico não assume a empresa como o “critério jurídico positivo para delimitar o direito especial”, mas é o “critério real subjacente ao sistema” e que “deve valer na compreensão do sistema legalmente eleito”; sublinhados da minha responsabilidade). Exacerbando o empresarialismo, v. OLIVEIRA ASCENSÃO, pp. 178 -179: a empresa como a “grande realidade institucional” que “crescentemente se aceita como conformadora do cír-culo do Direito Comercial”, funcionando como “núcleo, que atrai as matérias a re-gular”; de tal modo que “todas as matérias não redutíveis à empresa devem transitar para o Direito Civil”.

84 COUTINHO DE ABREU, últ. ob. cit., p. 24.

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mentalmente sobre o estatuto dos empresários singulares e colectivos, os direitos e negócios que têm as empresas como objecto, a tutela jurídica da empresa (desde a concorrência até aos sinais distintivos), a regulamentação dos instrumentos jurídicos da sua actividade externa, os “negócios jurídicos de organização das empresas” (negócios constituintes de sociedades, agru-pamentos complementares de empresas, cooperativas, etc.), os chamados “contratos bilaterais de empresa” (concessão comercial, franquia, consórcio, etc.)85; a insolvência e mecanismos de recuperação, etc.86 E não causa es-tranheza que o direito comercial almeje fundamentalmente a “harmoni-zação do estatuto de empresários diversos” (mesmo não comerciantes) e do “regime de várias espécies empresariais”: de lege ferenda, a centralidade das empresas implicará que o direito comercial seja acima de tudo um “direito privado das empresas”87 e, como tal, seja a empresa a reconcentrar a fragmentariedade típica do direito comercial.

b) Assim seja, desde que todos esses reconhecimentos não escondam que o direito comercial não deixa de, por dispor de uma natureza central-mente empresarial como direito de actividade e institucional – em resumo, o direito comercial atender fundamentalmente a “situações jurídicas nucle-armente empresariais”88 –, regular actos de comércio que estão fora da

85 Sobre a tese da “reautonomização” do direito comercial como direito dos “contratos de empresa” – entre nós, v. especialmente ENGRÁCIA ANTUNEs, Direito dos contratos co-merciais, cit., pp. 33 e ss., em esp. 36 (“a esmagadora maioria dos contratos mercan-tis legalmente atípicos (…) são o resultado da ‘vis creativa’ das empresas – esses novos ‘mercatore’ do séc. XXI”), 39 e ss. (os elementos caracterizadores ou qualifi-cadores da comercialidade de um contrato são “a intervenção de um empresário no contrato (designadamente, como uma das partes contratantes) e a pertinência desse contrato à constituição, organização ou exercício da respectiva actividade empresarial”), 46 e ss. –, v., criticamente, COUTINHO DE ABREU, últ. ob. cit., pp. 23 e ss., 53.

86 FERRER CORREIA, Lições de direito comercial, cit., p. 31, Id., “Sobre a projectada reforma…”, loc. cit., p. 11, ALBERTO SOUTO MIRANDA, pp. 346 -347, OLIVEIRA ASCENSÃO, pp. 178, COU-TINHO DE ABREU, últ. ob. cit., p. 19.

87 COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., p. 28 e n. (79) – “sem prejuízo de algumas diferenciações de regime”, “ditadas, por exemplo, pelas diferentes dimensões da empresa e por especificidades de cada um dos sectores de actividade empresarial” –, CATARINA SERRA, Direito comercial. Noções fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, p. 10 (e regulação jurídica de todas as empresas, mesmo não comerciais), 12 -13. Contra: OLIVEIRA ASCENSÃO, pp. 180 e ss., em esp. 184 -185; com reservas, BRITO COR-REIA, pp. 29 e ss.

88 MENEZES CORDEIRO, p. 70. No mesmo sentido, CASSIANO DOS SANTOS, pp. 52, 53 -54.

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órbita exclusiva das empresas (comerciais e não comerciais) – particular-

mente os negócios e expedientes que, nascidos no foro empresarial, se

tornaram de “uso comum” ou “generalizado” nas áreas não mercantis (como

as letras de câmbio ou os contratos de adesão)89 e, continuando a ser co-

merciais, partilham tal natureza sem uma substância intrínseca de comer-

cialidade (actos formalmente comerciais90)91 –, nem que, do outro lado, haja

comerciantes que não exploram a sua actividade através de empresa. Nem

se esqueça que há espécies de empresas que não ingressam no âmbito da

comercialidade jurídica (de modo que se confirma que o critério decisivo

para o direito mercantil seja a natureza da actividade explorada e não a

empresarialidade). Nem se olvide que há contratos empresariais (como o

contrato de trabalho e o contrato de consumo) que não se fundam nos

interesses caracterizadores da estrutura empresarial e a sua lógica norma-

tiva é tratada por outros ramos jurídicos. Nem se menospreze que as rela-

ções jurídicas empresariais são disciplinadas por múltiplos ramos do direi-

to, privados e públicos (direito das coisas, direito do trabalho, direito

administrativo, etc.). Nem que, a terminar, se ignore que as questões ati-

nentes a um amplo “direito de organização das empresas” vão muito para

89 ORLANDO DE CARVALHO, Critério e estrutura…, cit., n. (64) – pp. 177 -178 (“carácter bi-fronte do moderno jus commercii, direito necessariamente empresarial ou profissional – que tem na empresa o seu princípio “energético”, como justificadamente acentuou Hirsch –, mas, ao mesmo tempo, necessariamente “geral ou impessoal”, disposto ao possível uso das suas “invenções” por quem não se titula com a qualidade de comer-ciante”); FERRER CORREIA, Lições de direito comercial, cit., pp. 21 -22, 29 -30, Id., “Sobre a projectada reforma…”, loc. cit., p. 11; CASSIANO DOS SANTOS, pp. 52 -53; ENGRÁCIA ANTUNEs, Os títulos de crédito. Uma introdução, 2. ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 9 (a utilização no domínio comum dos títulos de crédito, em esp. o cheque, “não faz senão corroborar justamente um dos traços distintivos do próprio ordenamento comercial no quadro do universo jusprivatístico geral”).

90 Estes são definidos como “esquemas negociais que, utilizáveis (por comerciantes ou não comerciantes) quer para a realização de operações mercantis, quer para a rea-lização de operações económicas que não são actos de comércio nem se inserem na actividade comercial, estão contudo especialmente regulados na lei mercantil” (COUTINHO DE ABREU, últ. ob. cit., p. 91).

91 Atente -se ainda na formulação de síntese de ORLANDO DE CARVALHO, últ. ob. cit., n. (64), p. 154: “um direito que, reconhecendo a profissão e a empresa, não receia extrapo-lar para além delas, englobando típicos mecanismos ou meios – operações ou insti-tuições – preferencialmente (não exclusivamente) destinados a uma vida económi-ca que também preferencialmente (não exclusivamente) na profissão ou na empre-sa se polariza”.

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além da empresarialidade que envolve o sistema jurídico -normativo dos actos de comércio e dos comerciantes92.

No que mais interessa: desde logo, o CCom., como instrumento inicial de qualificação e delimitação da matéria mercantil e dos sujeitos comer-ciantes, “não é código das empresas, os seus critérios da comercialidade não são os critérios da empresarialidade e não abarca todos os sectores e sub-sectores de actividade económica e empresas respectivas”93; o direito co-mercial não trata só de actos de “empresas comerciais” e de “empresários comerciantes”, mas também de actos “ocasionais” ou “isolados” de uma verdadeira actividade profissional (particularmente, no direito dos títulos de crédito e dos valores mobiliários), cuja utilização se “comunizou” ou “generalizou” na vida patrimonial nas mãos de não empresários e não comerciantes – destinados, portanto, a operações não comerciais e “não profissionais” – e cuja disciplina não olha preferencialmente para interesses empresariais94; o mais importante dos sujeitos comerciantes é a sociedade comercial, que desfruta dessa qualidade pela “forma” e pela “actividade”95, com independência, para esse efeito, da titularidade de uma empresa para realizar essa actividade (desde que seja mercantil, de acordo com o CSC: “prática de actos de comércio”)96.

Em suma, uma coisa é definir a matéria regulada pelo sistema jurídico--positivo concreto e concluir que o direito comercial não se esgota nem coincide com um direito das empresas. Outra coisa é encontrar a razão de ser de uma regulação distinta do direito civil e compreender que é a em-presa (enquanto realidade organizada) que está no cerne da independência do direito comercial, pois dela continua a irradiar “a necessidade de uma

92 V. FERRER CORREIA, “Sobre a projectada reforma…”, loc. cit., p. 11, COUTINHO DE ABREU, Da empresarialidade…, cit., pp. 306 e ss.

93 COUTINHO DE ABREU, Curso..., vol. I, cit., p. 67. Em sentido contrário, tendo em conta que a empresarialização das actividades eco-

nómicas se afirma como pressuposto da comercialização dos sectores excluídos do comércio jurídico, v., para a agricultura e “certas franjas de prestações tipicamente liberais”, CASSIANO DOS SANTOS, pp. 39 e ss., 81 -82 (actividades análogas às previstas no art. 230º do CCom.), 91 e ss.

94 Por todos, COUTINHO DE ABREU, últ. ob. cit., pp. 19 -20, 21.

95 Cfr. art. 1º, n. 2, do CSC.

96 Para a distinção entre “sociedade” e “empresa”, v. COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, vol. II, Das sociedades, 4. ed., Almedina, Coimbra, 2011, pp. 23 e ss.

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regulamentação autónoma em face dos princípios gerais do direito civil”97 e a força para o objecto do direito comercial se reinventar no núcleo essen-cial e alargar o seu campo de aplicação.

4. SÚMULA

O direito comercial português é um ramo do direito privado que iden-tifica e regula, através de regime e estatuto próprios, actividades e relações pertinentes a actos de comércio e a comerciantes (direito misto, com pre-dominância objectivista)98. Esta é a conclusão para uma noção jurídica de direito comercial: “está sujeito ao regime das normas jurídicas comerciais aquilo que estas mesmas normas determinarem que se inclui no seu âm-bito de aplicação”99. Isto é, se o direito comercial é um conjunto sistemáti-co de normas (e princípios) especiais, o seu objecto incide sobre essas duas noções ( realidades) que são, ainda hoje, os seus conceitos básicos: o acto de comércio e o comerciante; é um direito de uma classe de actos e de uma classe de pessoas; logo, do comércio e dos comerciantes.

O direito comercial é basicamente direito empresarial, porque os actos de comércio e os comerciantes estão, em regra, ligados e fundados na ex-ploração de empresas (comerciais); logo, a regulação juscomercialista têm na mira, em grande medida, o estatuto, os negócios, a tutela jurídica, a organização, os meios e os instrumentos negociais das empresas comerciais e dos empresários comerciantes.

5. ABREVIATURAS E SIGLAS

AAFDL — Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa

al./als. — alínea/alíneas

art./arts. — artigo/artigos

CCiv. — Código Civil

CCom. — Código Comercial

cfr. — confira

97 FERRER CORREIA, Lições de direito comercial, cit., p. 32.

98 Entre os mais claros: COUTINHO DE ABREU, Curso…, vol. I, cit., pp. 12 -13, 28, 34, ME-NEZES CORDEIRO, pp. 40, 127 -128, 228, PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, pp. 36 e ss., 57 -58.

99 BRITO CORREIA, p. 6.

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CJ — Colectânea de Jurisprudêcia

CNot. — Código do Notariado

CSC — Código das Sociedades Comerciais

CVM — Código dos Valores Mobiliários

DL — Decreto-Lei

em esp. — em especial

FDL — Faculdade de Direito de Lisboa

FDUC — Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

LULL — Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças

p. ex. — por exemplo

RCEJ — Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas

ROA — Revista da Ordem dos Advogados

V. — Veja

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