quadrinhos têm enorme poder diante hq de...

6
HQ

Upload: others

Post on 28-May-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

HQquadrinhos têm enorme poder diante de narrativas complexas e permitem explorar ideias a fundo

tempotempoe

e espaço ao mesmo

Como os quadrinhos expandem a narrativa impressa desde o séCulo 19 mesmo sem preCisar de outras mídias ou do uso da internet

artigopor ramon vitral

Ramon VitRal é jornalista e edita desde 2012 o blog Vitralizado, um dos principais espaços sobre HQ da imprensa brasileira. Já escreveu para O Globo, Folha de S.Paulo, Estadão, Galileu, UOL e Nexo

Na tese de doutorado que apre-sentou na Universidade Co-lumbia, nos Estados Unidos, o pesquisador Nick Sousanis questionava a primazia das pala-vras na cultura ocidental. Não que Sousanis acreditasse que as imagens fossem su-periores ou mais eficazes na missão de dar sentido a uma mensagem. Ele defendia que o combo palavras + imagens subvertia conven-ções discursivas e oferecia alternativas na di-fusão de informações e de conhecimento.

Graduado em matemática, ex-jogador e ex-instrutor de tênis, ex-editor de um site sobre a cena artística de Detroit e ilustrador nas horas vagas, Sousanis tinha em mente uma linguagem específica ao tratar dessa mescla entre texto e imagem: histórias em quadrinhos. Em 2014, ele se tornou o primeiro pós-graduando de Columbia a apresentar como tese de doutora-do um trabalho em formato de história em quadrinhos. A pesqui-sa foi publicada nos Estados Uni-dos pela editora Harvard Press com o título Unflattening e chegou ao Brasil em 2017, traduzido como Desaplanar (Veneta).

Em entrevistas e palestras sobre o livro, Sousanis relata como, à me-dida que sua pesquisa tomava for-ma, ela se tornava quase um ato político. Isso devido a seu empe-nho em reverter preconceitos con-tra o uso de elementos visuais como ferramentas para estimular o pensamento e o potencial da lin-guagem “em reunir num único formato os aspectos sequenciais e simultâneos da consciência”.

O que há de mais moderno hoje na linguagem das histórias em quadrinhos não diz respeito a experimentações multimídia, não tem nada com qualquer tipo de busca por maior intera-ção com leitores e também não está ligado a adaptações para outras linguagens. A van-guarda dos quadrinhos mundiais tem como foco a essência da narrativa sequencial e a investi-gação de suas dinâmicas mais fundamentais.

É improvável que o suíço Rodolphe Töpffer (1799-1846) tenha vislumbrado os potenciais constatados por Sousanis ao publicar História do senhor Jabot, em 1833. Apesar de diversas experiências prévias precursoras do que veio

Os nomes mais interessantes e os autores mais subversivos são aqueles que exploram o vazio entre cada quadro e o diálogo crescente entre as idas e vindas da consciência, a construção e a leitura de uma HQ

Sequência deliberadaÉ provável que todo pesquisador de histórias em quadrinhos já tenha ao menos lido a obra mais conhecida do quadrinista Scott McCloud. Também em formato de HQ, Desvendando os quadrinhos foi publicado pela primeira vez nos Estados Unidos em 1993 e ganhou edição bra-sileira em 1995 pela Makron Books. Ainda no primeiro capítulo do livro, McCloud lamenta que Töpffer jamais tenha compreendido “todo o potencial de sua invenção, tomando-a como um simples hobby”.

A referência ao escritor e ilustrador suíço ocor-re no mesmo capítulo do livro de McCloud no qual consta aquela que é constantemente re-petida como uma das definições mais conhe-cidas de histórias em quadrinhos: “Imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador”.

a se estabelecer como histórias em quadrinhos, o editor e escritor Rogé-rio de Campos atribui, no livro Ima-geria (Veneta), a esse artista nascido em Genebra a responsabilidade pelo

“grande passo para que os quadrinhos tomassem a forma que têm hoje”.

“A publicação de Senhor Jabot é como a abertura do jarro de Pandora”, diz Rogério de Campos sobre as 52 tiras do livrinho de Töpffer – presente na íntegra em Imageria e em edição solo lançada em 2017 pela Sesi-SP.

As histórias protagonizadas por Jabot são uma grande sátira aos costumes da burguesia europeia do início do século 19. O autor mostra o empenho de seu personagem em agir conforme os há-bitos e as práticas da época. Tudo isso apresentando alguns dos principais preceitos do que viria a ser estabeleci-do como história em quadrinhos, mes-clando texto e imagem como nunca se vira até então, mas ainda distante de suas potencialidades.

McCloud também chama atenção para o papel das sarjetas, o espaço entre cada quadro de uma HQ – “É no limbo da sarjeta que a imaginação humana capta duas imagens distintas e as transforma em uma ideia úni-ca” – e mostra como o domínio de leitura dos quadrinhos exige a percepção do tempo espa-cialmente – “Nas histórias em quadrinhos, tempo e espaço são uma única coisa”.

Outra fonte habitual para definições relacio-nadas a quadrinhos é o pesquisador, professor e quadrinista belga Thierry Groensteen. Na verdade, ele não chega a propor uma definição para o que seria uma história em quadrinhos, mas estabelece a existência de um sistema que compreende a linguagem – e dá título ao seu livro mais famoso, O sistema dos quadrinhos (Marsupial). Esse sistema, segundo o autor, consiste na atuação conjunta dos vários ele-mentos costumeiramente associados a uma HQ: desenhos, quadros, balões, textos, ono-matopeias, sarjetas e outros

Os trabalhos do quadrinista norte-americano Chris Ware exigem ao extremo do sistema proposto por Groensteen e subvertem sem dó os preceitos estabelecidos por McCloud. Hoje aos 51 anos, Ware é provavelmente o principal vanguardista dos quadrinhos do mundo. Dono de prêmios incontáveis distribuídos na Europa

e nos Estados Unidos, ele narra histórias ha-bitualmente melancólicas dentro de opções estéticas e narrativas que variam entre a rigi-dez das tiras de Töpffer até o mais complexo dos infográficos.

O único trabalho de Ware publicado no Brasil até hoje sintetiza as práticas do autor. Jimmy Corri-gan – O menino mais esperto do mundo conta a história do rapaz que dá nome ao livro, um jovem de Chicago emocionalmente dependente de sua mãe e em um emprego burocrático, que recebe uma mensagem do pai que nunca conheceu propondo um encontro. A trama banal é narra-da em páginas de designs singulares e repletas de textos legíveis apenas com lupa.

Mas o trabalho mais famoso e aclamado de Ware é Building Stories, lançado em 2013 e inédito no Brasil. A obra é protagonizada por uma artista em crise que não tem uma perna e acaba de se mudar para um apartamento em um prédio de três andares, mas também narra a vida dos antigos moradores do imóvel e de seus habi-tantes futuros – e as histórias que estes contam para seus filhos. Tudo isso em uma caixa com-posta por 14 publicações de diferentes tamanhos, sem sequência determinada, que permite ao menos 87 bilhões, 178 milhões, 291 mil e 200 possibilidades de leitura.

© c

hr

is w

ar

e –

jim

my

co

rr

iga

n –

o m

enin

o m

ais

esp

erto

do

mu

nd

o

quadrinhos têm enorme poder diante de narrativas complexas e permitem explorar ideias a fundo

Sousanis corroborou as crenças do colega quando o entrevistei para o jor-nal Folha de S.Paulo na época do lan-çamento de Desaplanar no Brasil. Para ele, o que torna a linguagem mais especial é sua habilidade em repro-duzir a forma como percebemos as coisas: “Nós testemunhamos o tempo passar de forma sequencial – os pon-teiros do relógio avançam, mudamos de uma atividade para outra, e assim por diante. Mas, ao mesmo tempo, os pensamentos estão sempre à deriva, acontecendo todos de uma vez. Os quadrinhos não só nos permitem res-pirar tanto no mundo das imagens quanto no dos textos como nos pos-sibilitam ter experiências de simul-taneidade e sequencialidade, o que lhes dá enorme poder diante de nar-rativas complexas ou para explorar ideias a fundo”.

Chris Ware e Nick Sousanis não poderiam es-tar mais distantes dos primeiros experimentos de Töpffer em relação ao uso daquilo que viria a ser estabelecido como histórias em quadri-nhos. Os trabalhos deles também não dialogam com as experimentações ainda embrionárias feitas com quadrinhos digitais – empenhados em propor maior interatividade com os leito-res e no uso de elementos audiovisuais –, mas sugerem reflexões e possibilidades inéditas em termos de narrativas sequenciais.

“Acho que o potencial dos quadrinhos para capturar o fluxo e refluxo da consciência em toda a sua complexidade visual e linguística foi muito pouco explorado, principalmente por eu achar que histórias em quadrinhos são, por definição, uma arte da memória”, me disse Chris Ware em entrevista publicada na revista Galileu em 2013.

© n

ick

so

usa

nis

– d

esa

pla

na

r

nick sousanis

É no limbo da sarjeta que a

imaginação humana capta

duas imagens distintas e as

transforma em uma ideia única”uma ideia única

EstE foldEr é partE intEgrantE

da Edição 15 do CadErno globo,

lançada Em julho 2019. VEja mais

Em app.CadErnosglobo.Com.br

© rogÉrio de campos – imageria

scott mccloud