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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA Projeto de Pós-Doutorado ENTRE O CAPITALISMO DE ESTADO E O BEHEMOTH O Instituto de Pesquisa Social e o fenômeno do fascismo Pesquisador: Gustavo José de Toledo Pedroso Supervisor: Paulo Eduardo Arantes

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projeto de pesquisa para estágio pós doutoral em filosofia contemporânea submetida por candidato à ao dept. de filosofia da USP

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

    Projeto de Ps-Doutorado

    ENTRE O CAPITALISMO DE ESTADO E O BEHEMOTH

    O Instituto de Pesquisa Social e o fenmeno do fascismo

    Pesquisador: Gustavo Jos de Toledo Pedroso

    Supervisor: Paulo Eduardo Arantes

  • 1

    Resumo

    No que se refere ao desenvolvimento terico no interior do Instituto de Pesquisa

    Social de Frankfurt, o impacto do fenmeno do fascismo tratado pelos comentadores a

    partir de trs eixos principais. Em primeiro lugar, h a oposio entre as interpretaes

    de Friedrich Pollock e Franz Neumann: enquanto Pollock via o fascismo como uma

    nova ordem social caracterizada pela substituio da economia pela poltica enquanto

    condicionante fundamental da sociedade, o que marcava uma superao do quadro

    definido por Marx, para Neumann o fascismo podia ser explicado como decorrncia de

    um processo de intensa concentrao econmica que se tornara incompatvel com a

    democracia. Em segundo lugar, h o desdobramento desta oposio no que se refere aos

    demais membros do Instituto, desdobramento que consistiria na ciso definitiva entre os

    chamados crculo interno (que adotaria a interpretao pollockiana, abandonando

    assim o marxismo) e crculo externo (que compartilharia das concepes de

    Neumann, mantendo-se assim ligado a marxismo). Em terceiro lugar, por fim, haveria a

    mudana na linha principal da Teoria Crtica, decorrente do abandono do marxismo,

    mudana que teria sua expresso terica mxima na Dialtica do esclarecimento. Seria

    possvel, porm, questionar-se estes dois ltimos pontos. E este questionamento pode

    levar a uma reinterpretao de aspectos importantes da Teoria Crtica.

    Introduo e justificativa

    Uma das fases mais importantes no desenvolvimento terico realizado pelos

    membros do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt foi o perodo dos trabalhos

    dedicados interpretao do fascismo, durante o exlio americano. Com efeito, em

    torno deste ponto mesmo que se cristalizaram algumas das principais obras produzidas

    no interior do Instituto. Porm, mais que simples estudos paralelos, estes trabalhos

  • 2

    foram vistos posteriormente pelos comentadores como mantendo importantes relaes

    entre si, a ponto de muitas vezes as interpretaes, leituras e estudos se apoiarem

    freqentemente nestas relaes.

    O ponto nodal aqui o ensaio de Pollock intitulado Capitalismo de Estado: suas

    possibilidades e limitaes (State Capitalism: Its Possibilities and Limitations). Nele

    Pollock procura definir o capitalismo de Estado, a nova ordem social que v surgindo na

    poca, e cuja realizao mais aproximada at ento, aos seus olhos, era o regime nazista

    na Alemanha. A caracterizao desta nova ordem feita inicialmente pelo contraste

    com a ordem em declnio, o capitalismo privado. As diferenas principais so: 1) a

    deposio do mercado de sua funo de controle na coordenao da produo e

    distribuio, o que implica no desaparecimento do mercado autnomo e das assim

    chamadas leis econmicas1; 2) a transferncia do controle para o Estado, que lana

    mo de dispositivos antigos e novos, inclusive um pseudo-mercado, para exercer esta

    tarefa; e 3) na forma totalitria do capitalismo de Estado, o Estado o instrumento de

    poder de um novo grupo dominante, formado pela fuso das burocracias estatal,

    empresarial e do partido vitorioso; enquanto que na forma democrtica o Estado tem a

    mesma funo de controle, mas controlado pelo povo.

    A principal conseqncia desta concepo era o deslocamento do foco terico do

    mbito da economia para o da poltica. Isto porque, no lugar da orientao dos

    processos sociais pelo sujeito automtico, Pollock apresenta o capitalismo de Estado

    como caracterizado por um conjunto de processos orientados fundamentalmente pela

    nfase na maior racionalidade e eficincia no aproveitamento dos recursos disponveis,

    por um lado, e pela busca do poder no interior dos aparelhos burocrticos estatal,

    empresarial e partidrio, por outro. Portanto, se o novo sistema deve permitir uma

    1 Pollock, F. State Capitalism: Its Possibilities and Limitations, pg. 73. In: Arato, A. e Gebhardt, E. The Essential Frankfurt School Reader. Nova York: Continuum, 2002.

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    superao dos impasses e riscos gerados no interior do capitalismo privado, a questo

    principal a ser enfrentada est na centralidade do mercado autnomo e dos mecanismos

    a ele associados, responsveis pelos problemas na medida em que contm um aspecto

    de imprevisibilidade quanto aos resultados dos processos por eles mediados. Da a

    importncia assumida pela idia de plano, em torno da qual se organizam todas as

    cinco novas regras colocadas pelo capitalismo de Estado no lugar dos mecanismos do

    mercado2. E da tambm a renovada importncia da esfera da poltica:

    O verdadeiro problema de uma sociedade planificada no est na esfera econmica, mas na poltica, nos princpios a serem aplicados ao se decidir quais necessidades devem ter a preferncia, quanto tempo deve ser gasto para o trabalho, quanto do produto social deve ser consumido e quanto usado para a expanso, etc. (Pollock, idem, pg. 75)

    Este peso substancial da poltica, por sua vez, resulta em que, diferente do que

    acontecia no capitalismo privado, onde as pessoas se relacionavam enquanto agentes

    do processo de troca, como compradores ou vendedores, no capitalismo de Estado as

    relaes sociais so mediadas pela posio de cada um na estrutura administrativa, ou

    seja, sob o capitalismo de Estado os homens se confrontam como comandante ou

    comandado (Pollock, idem, pg. 78). Nesta mesma direo, segundo Pollock,

    outro aspecto da situao alterada sob o capitalismo de Estado que a motivao do lucro substituda pela motivao do poder. Obviamente, a motivao do lucro apenas uma forma especfica da motivao do poder. Sob o capitalismo privado, maiores lucros significam maior poder e menos dependncia do comando de outros. A diferena, entretanto, no apenas que a motivao do lucro uma forma mediada da motivao do poder, mas que a segunda est essencialmente ligada posio de poder do grupo dominante, enquanto que a primeira pertence apenas ao indivduo. (Pollock, idem, pg. 78)

    Por fim, deve-se notar que as anlises de Pollock eram orientadas por uma dupla

    2 Resumidamente, as regras so as seguintes: a primeira estabelece a existncia do plano, que d o direcionamento nacional para a produo, o consumo, a poupana e o investimento; a segunda, que os preos devem ser administrados segundo os princpios do plano; a terceira, que o interesse pelo lucro, tanto da parte de indivduos quanto de grupos, deve estar subordinado ao plano geral; a quarta, que em todas as esferas da atividade do Estado (e sob o capitalismo de Estado isto significa em todas as esferas da vida social como um todo) o trabalho baseado em conjecturas e improvisaes deve dar lugar aos princpios do gerenciamento cientfico; e a quinta, que o Estado deve obrigar realizao do plano, a fim de que nada de essencial seja deixado s leis do mercado ou a outras leis econmicas. Cf. Pollock, idem, pgs. 75-78.

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    preocupao, como se pode perceber nas ltimas pginas de seu ensaio. Sob um certo

    ngulo, a tentativa de se identificar os possveis limites do capitalismo de Estado (os

    quais, coerentemente, eram identificados como limites polticos) funcionava tambm

    como investigao sobre os limites para um regime nazista. Por outro lado, a insistncia

    em que esta nova ordem poderia se estruturar em acordo com os valores democrticos

    mostra que o interesse pelas possibilidades tinha tambm um aspecto otimista o

    capitalismo de Estado democrtico poderia levar a um aproveitamento mais racional e

    efetivo dos recursos disponveis, e produzir uma elevao geral do nvel de vida.

    Um dos primeiros e mais ardorosos crticos desta concepo foi Franz Neumann,

    que expressou suas discordncias diretamente ao prprio Pollock, e mais tarde a

    Horkheimer3. A questo principal do desacordo estava na relao entre nazismo e

    capitalismo. A este respeito, Neumann fazia trs questionamentos. Em primeiro lugar, a

    idia de que o capitalismo tivesse sido substitudo por uma forma social que, por meio

    de controles polticos, mantivesse alguns de seus elementos essenciais (desigualdade

    social, produo de mercadorias, mercado, etc) sem sofrer mais a ameaa de crises e

    sem indicar quaisquer possibilidades internas de ruptura que abrissem espao para uma

    superao em direo ao socialismo, equivalia, para ele, a uma condenao ao

    desespero e ao imobilismo, uma vez que as condies capitalistas no poderiam

    possibilitar uma existncia verdadeiramente humana. Em segundo lugar, faltaria

    justamente a Pollock uma teoria da transio do capitalismo monopolista para o

    capitalismo de Estado, sem o que suas teses se tornavam suspeitas de dogmatismo. E

    em terceiro lugar, tomando por base os estudos sobre a economia alem que realizara

    para a redao do Behemoth, Neumann afirmava no ter encontrado qualquer evidncia

    que mostrasse que a Alemanha estivesse numa situao que parecesse, ainda que

    3 Cf. Wiggershaus, R. A Escola de Frankfurt: histria, desenvolvimento terico, significao poltica. Rio de Janeiro: Difel, 2002, pg. 312 ss.

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    remotamente, poder ser caracterizada como capitalismo de Estado.

    Na carta a Horkheimer, na qual se encontravam todas estas observaes,

    Neumann sustentava ainda que o ponto de vista adotado por Pollock constitua um

    abandono do marxismo, e contradizia assim frontalmente a teoria desenvolvida pelo

    Instituto. Em sua resposta Horkheimer contesta este ltimo ponto, alegando que o

    prprio Engels afirmara que a sociedade tendia para o capitalismo de Estado. Ao

    retomar, porm, suas crticas no Behemoth, Neumann lembra por outro lado que Marx

    restringiu propositadamente suas anlises s tendncias prevalecentes no interior de um

    dado sistema4, no indo alm deste mesmo sistema. Na medida em que Pollock

    afirmava em seu ensaio que juntamente com o mercado autnomo, as assim chamadas

    leis econmicas desaparecem, e anunciava, portanto, o fim da lei do valor, a completa

    converso dos valores em valores de uso e o desaparecimento da relao entre estrutura

    de classes e produo, para Neumann ele no apenas especulava a respeito de uma

    formao social distinta, mas ultrapassava positivamente o limite crtico colocado por

    Marx sem apresentar justificativas suficientes para tanto.

    Ora, ao desenvolver no Behemoth sua concepo sobre a organizao econmica

    da Alemanha nazista, Neumann procura justamente mostrar como o controle de preos,

    por exemplo, no significava de modo algum um desaparecimento, e nem mesmo uma

    efetiva subordinao, das leis econmicas e do mercado autnomo a critrios

    eminentemente polticos. No apenas a legislao reconhecia a precedncia dos critrios

    econmicos no que diz respeito ao planejamento, como ela ainda beneficiava os grupos

    econmicos mais poderosos, os quais eram mesmo vistos como responsveis por

    importante parte das decises a respeito, alm de exercerem grande influncia poltica,

    direcionando os procedimentos do governo de acordo com seus interesses. Mesmo os

    4 Neumann, F. Behemoth: the Structure and Practice of National Socialism 1933-1944. Nova York: Harper & Row, 1966, pg. 224.

  • 6

    controles impostos no podiam eliminar de todo possibilidades outras de ajustamento da

    situao empresarial5. Alm disso, o prprio sistema de controles imposto sobre os

    processos econmicos teria por fim principal proteger a economia altamente

    centralizada das ameaas colocadas pela democracia.

    Em um sistema monopolista os lucros no podem ser produzidos e retidos sem o poder poltico totalitrio, e este o trao distintivo do nacional-socialismo. Se o poder poltico totalitrio no tivesse abolido a liberdade de contrato, o sistema de cartis teria rudo. Se o mercado de trabalho no fosse controlado por meios totalitrios, o sistema monopolista estaria em risco; se as agncias de matrias-primas, suprimentos, controle de preos e racionalizao, se os gabinetes de controle do crdito e do cmbio estivessem nas mos de foras hostis aos monoplios, o sistema de lucros ruiria. O sistema se tornou to completamente monopolizado que ele deve por natureza ser hipersensvel a mudanas cclicas, e tais mudanas devem ser evitadas. Para se obter isso necessrio o monoplio do poder poltico sobre o dinheiro, o crdito, o trabalho e os preos. Em poucas palavras, a democracia colocaria em risco o sistema totalmente monopolizado. A essncia do totalitarismo estabiliz-lo e fortific-lo. Esta no , claro, a nica funo do sistema. O Partido Nacional-Socialista s est preocupado com o estabelecimento do domnio de mil anos, mas para alcanar este fim eles no tm outra opo seno proteger o sistema monopolista, o qual lhes fornece a base econmica para a expanso poltica. (Neumann, idem, pg. 354)

    Temos ento dois diagnsticos distintos a respeito da natureza e do significado

    do nazismo. Mas como este desacordo repercute no interior do Instituto?

    Em seu livro, j clssico, sobre a Escola de Frankfurt, Martin Jay afirma que o

    resultado desta divergncia foi o aprofundamento de uma ciso pr-existente entre os

    membros do Instituto, cristalizando-se a diferena entre o crculo interno e o crculo

    externo. Jay considera que a teorizao de Pollock levava adiante o processo de crtica

    do marxismo ortodoxo empreendido no interior do Instituto desde que Horkheimer se

    tornara diretor. No incio da dcada de 30 a Teoria Crtica defrontava-se com a

    evidncia da crescente integrao social do proletariado. Desprovida de outro sujeito

    5 Cf. Neumann, idem, pg. 312: Quando se evita, atravs de monoplio ou de regulao administrativa, que um agente individual da produo obtenha lucros pelo aumento de preos, ele tentar aumentar suas vendas ou cortar seus custos, ou ambos, a fim de alcanar seu objetivo como produtor de mercadorias para a venda. Quando ele no pode comercializar mais que um quantum definido de bens, ele ter que aumentar seus preos, e quando, por arregimentao ou monoplio, estabelecem-se cotas tanto para os preos quanto para as vendas, ele precisa recorrer a alternncias no arranjo dos elementos de custo no processo de manufatura atravs de presses sobre os custos da matria-prima, do maquinrio produtivo, do trabalho e do capital utilizados, bem como atravs de mudanas no prprio processo de manufatura, tanto organizacionais quanto tecnolgicas.

  • 7

    histrico, sua nica sada teria sido a migrao para uma posio crtica transcendente

    (segundo a expresso de Martin Jay), ou seja, uma tentativa de, pelo recurso pura

    teoria, colocar-se para alm da sociedade com que se defrontava, a fim de realizar a

    necessria reflexo crtica a seu respeito. Este deslocamento teria envolvido um

    afastamento crescente em relao importncia tradicionalmente atribuda pelo

    marxismo economia. Assim, mesmo que a Zeitschrift publicasse diversos artigos sobre

    questes econmicas, indicando que o Instituto, entretanto, reconhecia o valor da

    observao de Marx sobre o papel fundamental da economia na sociedade capitalista

    (...), seria um erro pensar que estas anlises estavam realmente integradas no corao da

    Teoria Crtica6. Isto porque, com relao a este ponto, os membros mais antigos do

    crculo interior do Instituto (...) seguiam a orientao de seu diretor associado, Friedrich

    Pollock no sentido de uma interpretao da realidade contempornea orientada por sua

    teoria do capitalismo de Estado. Mais precisamente, a relao era de mo dupla. Como

    vimos, no contexto de sua discusso do capitalismo de Estado, Pollock sustentava que

    historicamente o motivo do lucro uma forma especfica do motivo do poder

    (Pollock, op.cit, pg. 78), e que portanto o capitalismo tinha sido apenas uma efmera

    fase em que a busca pelo poder tinha sido mediada pelo lucro. Ora, para Jay esta sempre

    fora a opinio do prprio Horkheimer, e portanto o trabalho de Pollock consistia na

    constituio de uma linha-mestra para a anlise da situao contempornea

    fundamentada em postulados filosficos de Horkheimer, compartilhados por Adorno e

    Lwenthal7. Pollock estaria, assim, fornecendo o quadro a partir do qual o fato perene

    6 Jay, M. La Imaginacin dialctica: una historia de la Escuela de Frankfurt. Madri: Taurus, 1989, pg. 252 7 Cf. Jay, idem, pg. 256: Ao sublinhar a politizao da economia Pollock se situava na corrente central da Teoria Crtica. Se a Escola de Frankfurt se recusou a desenvolver uma teoria poltica independente, (...) recusou igualmente um enfoque puramente econmico da teoria social. Em seu artigo Filosofia e Teoria Crtica (...) Horkheimer havia assinalado claramente que considerava a dominao por meio da economia como um fenmeno puramente histrico. Seria um erro, assinalava ele, julgar a sociedade futura segundo sua forma econmica. Mais ainda, isto verdade para o perodo de transio no qual a

  • 8

    da dominao, que teria permanecido implcito e dissimulado por diversas formas de

    mediao durante o perodo liberal, pudesse agora ser tomado como o eixo de um

    diagnstico histrico do presente que reduzisse em muito o papel que a economia tinha

    no pensamento marxista e enfatizasse, por outro lado, a racionalidade tecnolgica como

    o novo instrumento fundamental empregado pela classe dominante para a manuteno e

    o exerccio de seu poder.

    Para Horkheimer, Pollock, Adorno e Lwenthal, a dominao estava assumindo formas no-econmicas, cada vez mais diretas. O modo capitalista de explorao era visto agora em um contexto mais amplo como a forma histrica especfica de dominao caracterstica da era burguesa na histria ocidental. O capitalismo de Estado e o Estado Autoritrio prefiguravam o fim, ou ao menos a transformao radical, desta poca. A dominao, afirmavam, era agora mais direta e virulenta sem as mediaes caractersticas da era burguesa. (Jay, idem, pgs. 413-414)

    Como uma das caractersticas essenciais da Teoria Crtica desde suas origens

    tinha sido sua recusa em considerar o marxismo como um conjunto de verdades

    herdadas, era natural que, diante de uma realidade social mudada, seus proponentes

    pensassem que tambm deveriam mudar as construes tericas geradas para

    compreend-la (pg. 410). Assim, a impossibilidade de qualquer esperana com relao

    Unio Sovitica, aliada ao intenso processo de integrao do proletariado por meio da

    cultura de massas e da efetiva melhoria das condies de vida, impunham uma mudana

    mais decidida no registro terico, uma mudana tal que afastasse o j insustentvel

    paradigma marxista, e o substitusse por uma nova concepo capaz de explicar to

    drstico malogro das esperanas anteriores quanto ao surgimento de uma sociedade

    verdadeiramente humana.

    Esta mudana decidida de registro terico teria como um de seus principais

    eixos a substituio do conflito de classes pelo conflito entre homem e natureza (interior

    e exterior) enquanto motor da histria, conflito cujas origens remontavam at antes do

    poltica alcana uma nova independncia em relao economia. Deixava-se a fetichizao da economia para marxistas mais ortodoxos, como Grossmann.

  • 9

    capitalismo e cuja continuidade, na verdade intensificao, parecia provvel depois do

    fim do capitalismo (pg. 413). Em contraposio reduo da natureza mero objeto de

    dominao realizada no interior da teoria tradicional, a Teoria Crtica insistia em que a

    separao entre sujeito e objeto no podia ser absoluta. E era da que vinha a

    necessidade de uma crtica da Aufklrung entendida como processo de desencantamento

    do mundo: enquanto movimento de crescente formalizao, a Aufklrung exacerbava

    continuamente esta separao, e com ela a dominao da natureza. Anulando todas as

    diferenas qualitativas em benefcio do formal e do abstrato a Aufklrung conduzia

    inevitavelmente catstrofe histrica:

    O totalitarismo era menos o repdio do liberalismo e dos valores da Aufklrung que o resultado de sua dinmica imanente. O princpio da troca oculto na noo da Aufklrung acerca da natureza como tomos intercambiveis tinha seu paralelo na atomizao crescente do homem moderno, um processo que culminava na igualdade repressiva do totalitarismo. Esta manipulao instrumental da natureza pelo homem conduzia inevitavelmente relao concomitante entre os homens. distncia insupervel entre sujeito e objeto na concepo de mundo da Aufklrung correspondia a posio relativa de governantes e governados nos Estados autoritrios modernos. A objetivao do mundo tinha produzido um efeito similar nas relaes humanas. Como observou Marx, ainda que o restringindo a um efeito do capitalismo, o passado morto tinha chegado a governar o presente vivo. (Jay, pg. 421)

    interessante notar que esta interpretao pode ser encontrada quase que na

    totalidade dos estudos sobre os autores ligados ao Instituto. Leituras muito semelhantes

    a esta esto presentes em textos e livros de Helmut Dubiel, Moishe Postone, Simon

    Jarvis, Douglas Kellner, Rolf Wiggershaus, Tom Bottomore, entre outros. Embora as

    apreciaes a respeito possam variar, h praticamente um consenso no que se refere ao

    papel de Pollock como catalisador terico da mudana que, como Horkheimer

    descreveria mais tarde, levou da primeira para a segunda Teoria Crtica.

    Cabe, porm, perguntar se esta leitura suficiente, ou mesmo se ela, ainda que

    to consensual, est efetivamente correta. Motivos para question-la podem ser

    encontrados j em um dos autores que entretanto a adota. Trata-se de Rolf Wiggershaus,

  • 10

    cujo amplo painel histrico do Instituto de Pesquisa Social fornece mais detalhes a

    respeito dos debates deste perodo. Segundo seu relato, Capitalismo de Estado foi

    criticado no apenas por Neumann, mas tambm por Lwenthal, Adorno e pelo prprio

    Horkheimer8. Da parte de Horkheimer a queixa principal parece ter sido a de que o

    ponto de vista de Pollock era excessivamente administrativo e por demais simptico ao

    capitalismo de Estado. Adorno formula uma crtica semelhante, em termos mais duros

    para ele o quadro de Pollock poderia ser descrito como uma inverso do quadro traado

    na obra de Kafka: Kafka havia descrito a hierarquia de escritrios sob a forma de

    inferno. Aqui, o inferno que se transforma em uma hierarquia de escritrios. Mas ele

    vai ainda mais longe, e questiona a prpria concepo geral de Pollock: O conjunto

    to doutrinrio e formulado de cima, no sentido de Husserl, que carece completamente

    de convico, sem falar na hiptese totalmente antidialtica de que uma economia no

    antagnica poderia ser realizada numa sociedade antagnica9. Por fim, longe de

    reconhecer nos novos tempos a perspectiva de um estado relativamente estvel e at,

    em certo sentido, racional, tal como Pollock concebia a verso democrtica do

    capitalismo de Estado, Adorno via neles a perspectiva de uma srie ininterrupta de

    catstrofes, de caos e horrores durante um perodo cujo fim ainda no se vislumbra10.

    Embora evidenciem algumas discordncias, estes trechos no permitem

    qualific-las, avaliar sua extenso, ou ter delas uma imagem mais concreta. Mas

    algumas indicaes a mais podem ser encontradas nos textos. Estado Autoritrio

    (Autoritrer Staat), famoso ensaio de Horkheimer, em geral visto como uma das

    primeiras e principais manifestaes da mudana de eixo da Teoria Crtica, parece

    concordar em muitos pontos com a perspectiva de Pollock. De fato, nele se encontra a

    conhecida afirmao de que o capitalismo de Estado o Estado autoritrio do

    8 Cf. Wiggershaus, op. cit., pg. 310 ss. 9 Carta de Adorno a Horkheimer, de 8 de junho de 1941. Apud Wiggershaus, op. cit., pg. 310. 10 Carta de Adorno a Horkheimer de 2 de julho de 1941. Apud Wiggershaus, op. cit., pg. 311.

  • 11

    presente11 (Horkheimer, 1942, pg. 124), se faz referncia a uma situao na qual a

    burocracia reassume o mecanismo econmico, que lhe fugira das mos sob o domnio

    do puro princpio burgus do lucro (pgs. 147-148), e se diz que no fascismo a mais-

    valia colocada sob o controle do Estado e flui em grandes quantidades para os donos

    de terras e magnatas industriais sob o antigo nome de lucro (pgs. 133-134). Mas, ao

    mesmo tempo, a descrio desta situao se apia em vrios momentos em textos de

    Engels, e contm, alm disso, alguns trechos em que a dialtica materialista

    reafirmada:

    A dialtica materialista lida com o comum, o ruim, o transitrio; toda situao histrica contm o ideal, mas no explicitamente. A identidade do ideal e do real a explorao universal. Por isso, a cincia marxiana consiste na crtica da economia burguesa e no na exposio de uma economia socialista (...). [Marx] explicou a realidade da ideologia da economia burguesa: atravs da exposio (Entfaltung) da economia oficial ele desvela o segredo da economia. (...) A deduo das fases capitalistas desde a simples produo de mercadorias at o monoplio e o capitalismo de Estado no , claro, um experimento mental. O princpio da troca no apenas formulado no pensamento (ersonnen), ele dominou a realidade. As contradies nele desveladas pela crtica se tornaram dramaticamente manifestas na histria. Na troca da mercadoria fora de trabalho o trabalhador tanto recompensado quanto enganado. A igualdade dos possuidores de mercadorias uma aparncia ideolgica que se desfaz no sistema industrial e d lugar (weicht) dominao aberta no Estado autoritrio. O desenvolvimento da sociedade burguesa determinado em seu modo de produo, o qual foi marcado por aquele princpio econmico. Apesar da validade real deste princpio, nunca houve uma congruncia entre sua representao crtica e seu desenvolvimento histrico, o qual no pode ser rompido. a diferena entre conceito e realidade que fundamenta a possibilidade da prxis revolucionria, no o prprio conceito. (pg. 144-145)

    Ora, como explicar estes trechos? Como compatibiliz-los com a nfase na

    esfera poltica que perpassa todo o texto?

    Antes de respondermos a estas perguntas, deve-se notar que talvez esta

    problematizao no seja convincente. Afinal, Estado Autoritrio foi escrito antes de

    11 Horkheimer, M. Autoritrer Staat, pg. 124. In: Horkheimer, M. e Adorno, T. W. Walter Benjamin zum Gedchtnis. Mimio. Nova York: Institut fr Sozialforschung, 1942.

  • 12

    Capitalismo de Estado12 e pode talvez ser visto como um texto de transio, tal como

    Habermas o faz com Filosofia e Diviso do Trabalho, um dos esboos que se

    encontram no final da Dialektik der Aufklrung13. Consideremos ento outro exemplo.

    Para afastar a possibilidade de formulaes ainda transicionais, deixemos

    momentaneamente de lado os anos 40 e recorramos a um ensaio escrito por Adorno

    mais de vinte anos depois, Capitalismo Tardio ou Sociedade Industrial?

    (Sptkapitalismus oder Industriegesellschaft?). Embora este texto no discuta o

    fascismo, ele interessa aqui na medida em que traos que caracterizariam a segunda

    verso da Teoria Crtica tambm aparecem nele imbricados de um modo intrigante com

    uma nfase na esfera da economia. Assim, Adorno escreve que a conscincia de classe

    do proletariado desapareceu, que no se dispe mais de uma teoria convincente da mais-

    valia, que o Estado tornou-se o capitalista total e que as relaes de produo que

    aprisionam foras produtivas de h muito incompatveis com elas no funcionam mais

    por conta prpria e so mantidas apenas atravs da atuao do poder poltico. Mas ele

    tambm diz que ainda h fatos que s de um modo muito forado e arbitrrios so

    ainda interpretveis sem se utilizar o conceito-chave capitalismo e que a dominao

    sobre seres humanos continua a ser exercida atravs do processo econmico14.

    Como vemos, a continuidade de referncias economia est presente em textos

    de Horkheimer e Adorno. Mas como compatibiliz-la com as referncias dominao,

    ao Estado e poltica? Ora, se tomarmos os textos com cuidado, perceberemos que, ao

    contrrio do que se poderia pensar inicialmente, no se trata, nestes casos, de decidir

    12 Cf. Wiggershaus, op. cit., pg. 311. Adorno considerava que Pollock tomara de Estado Autoritrio (cujo ttulo original, alis, era Staatkapitalismus) os temas tratados em Capitalismo de Estado, mas que os simplificara e desdialetizara, acabando por inverter-lhes o sentido original. No que se segue no nosso objetivo apresentar uma interpretao completa do ensaio de Horkheimer (nem dos de Adorno e Marcuse), mas apenas dar algumas indicaes sobre em que sentido se pode entender esta colocao de Adorno, e apontar certas incongruncias com a teoria pollockiana e, mais especificamente, com a interpretao de Martin Jay. 13 Cf. Habermas, 2000, pg. 167. 14 Adorno, T. W. Sptkapitalismus oder Industriegesellschaft?. In: Gesammelte Schriften, 8.I. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1972.

  • 13

    abstratamente por um ou outro dos fatores. Mais que isso, note-se que o problema

    herdado de Marx. De fato, isto dito diretamente por Horkheimer ao se referir ao

    quadro terico de que parte:

    Para o curso natural da ordem capitalista mundial a teoria prescreve um fim no-natural: os proletrios unidos destruiro a ltima forma de explorao, a escravido capitalista-estatal. (...) Quando a classe dominante deve alimentar os trabalhadores, ao invs de ser alimentada por eles, a revoluo est mo. Esta teoria do fim se desenvolve a partir de uma situao que era ainda ambgua e ela mesma ambgua: ela ou conta com o colapso atravs de uma crise econmica, excluindo atravs disso a estabilizao de um Estado autoritrio, como Engels de fato previu. Ou ento espera o triunfo do Estado autoritrio, eliminando assim o colapso atravs de uma crise, a qual foi sempre definida pela economia de mercado. (Horkheimer, op. cit., pgs. 124-125)

    Marx e Engels tinham, portanto, duas possibilidades em vista, a de que a

    superao histrica fosse induzida pela irrupo necessria de uma crise final, e a de

    que a luta poltica do proletariado levasse, por si mesma, mudana. Em ambos os

    casos a poltica tem uma importncia inegvel, e por mais que se contasse com as

    contradies imanentes do capital seria redutor dizer que delas resultaria

    inevitavelmente uma sociedade verdadeiramente humana. Ademais, o modo como Jay

    compreende o papel da economia, ou seja, do materialismo, no procedimento de Marx

    deixa de lado seu sentido eminentemente crtico, incorrendo no mecanicismo dogmtico

    prprio ao marxismo vulgar. Se a economia fosse o nico fator determinante para a

    mudana social, a integrao social do proletariado no seria, por si s, um problema,

    visto que o destino socialista da humanidade poderia ainda estar garantido pela

    expectativa de uma crise futura.

    Ainda assim, no se pode negar que h, aqui, uma diferena entre os

    frankfurtianos e Marx. Ocorre que, aos olhos daqueles, j se tinha produzido um

    progresso das foras produtivas completamente incompatvel com as relaes de

    produo vigentes. S que o que tinha se observado a partir disso no era a ruptura

    impulsionada pela contradio entre ambas, mas sim a transformao das foras

  • 14

    produtivas em um instrumento para a sustentao perene, estvel e reforada das

    relaes de produo. E o que possibilitara este desenvolvimento no era uma outra lei

    imanente que as tornaria desde sempre compatveis, mas sim o contexto especfico no

    interior do qual ele se produzira, um contexto cuja principal caracterstica era o

    crescente processo de concentrao econmica.

    Deste modo, no caso de Estado Autoritrio bastante claro que uma das

    principais referncias concretas que Horkheimer tem em vista , de fato, o malogro das

    esperanas revolucionrias que tinham se incendiado no incio da Repblica de Weimar

    (em especial na experincia dos conselhos de trabalhadores), mas acabaram por dar

    lugar catstrofe inesperada do nazismo. O destino das organizaes da classe

    trabalhadora neste contexto no demonstrara a inexistncia da luta de classes, mas sim

    que o capitalismo pode sobreviver economia de mercado (Horkheimer, op. cit., pg.

    125). Sua transformao em organizaes de massas era o processo atravs do qual elas

    se adaptavam s transformaes da economia (Horkheimer, op. cit., pg. 126), e o

    prprio crescimento do Partido Social-Democrata Alemo e dos sindicatos a ele ligados

    possibilitaram a cristalizao de uma liderana desligada das bases e dedicada a seus

    prprios interesses. A centralizao do poder nas organizaes operrias e nas empresas

    tinha a mesma base a mudana no modo de produo a partir da consolidao dos

    monoplios (Horkheimer, op. cit., pg. 128).

    Portanto, o que Horkheimer v emergindo destas condies, e que ele tem em

    vista quando fala em capitalismo de Estado e Estado autoritrio, algo bastante

    diferente do quadro traado por Pollock:

    O Estado autoritrio repressivo em todas as suas formas. O imenso desperdcio no mais produzido pelos mecanismos econmicos no sentido clssico. Ele surge das necessidades exorbitantes do aparato de poder e da destruio de qualquer iniciativa da parte dos dominados: a obedincia no to produtiva. Apesar da alegada ausncia de crises, no h harmonia. Embora a mais-valia no seja mais absorvida como lucro, ela ainda o ponto nodal. A proposio cunhada na economia de mercado, segundo a qual

  • 15

    anarquia da sociedade corresponde a estrita ordem na fbrica, significa hoje que o estado de natureza internacional, a luta pelo mercado mundial e a disciplina fascista do povo se condicionam reciprocamente. Mesmo se as elites hoje conspiram em comum contra seus povos, elas esto sempre prontas para surrupiar algo dos territrios de caa umas das outras. As conferncias econmicas e de desarmamento apenas adiam o conflito por algum tempo, o princpio da dominao se manifesta exteriormente como princpio da permanente mobilizao. A situao continua sendo, em si mesma, absurda. evidente que a restrio das foras produtivas pode, de agora em diante, ser entendida como uma condio da dominao e deliberadamente praticada. (Horkheimer, op. cit., pgs. 135-136)

    Pois bem, o Estado autoritrio repressivo em todas as suas formas, no

    havendo ento alguma auspiciosa forma democrtica que encarnasse alguma utopia do

    possvel. E embora o desperdcio no seja mais produzido pelos mecanismos

    econmicos no sentido clssico, e sim pelas necessidades do aparato de poder, a mais-

    valia continua sendo o ponto nodal, a disciplina fascista mantm uma relao de mtuo

    condicionamento com a luta pelo mercado mundial, e a contradio entre foras

    produtivas e relaes de produo, mesmo que sufocada, continua existindo, uma vez

    que a restrio das primeiras deliberadamente praticada em vista da continuidade da

    dominao. Por mais que a exposio de Horkheimer tenha por foco a exposio de

    uma mudana, no se trata da simples substituio de uma abstrata determinao

    econmica por uma igualmente abstrata determinao pela poltica, nem muito menos

    da descoberta de algum condicionamento supostamente mais fundamental radicado no

    conflito entre homem e natureza. Trata-se, antes, das novas perspectivas, para bem e

    para mal, abertas pelo desenvolvimento das foras produtivas o direcionamento

    destas, diferente do que pensava o seguro conformismo social-democrata, no est

    garantido por um progresso fatal rumo liberdade, mas depende ainda de outros fatores:

    A inevitabilidade do passado [i.e., o fato de que se possa divisar nele uma concatenao necessria] vincula (leget... fest) to pouco a vontade liberdade, que nela se anuncia, quanto o futuro. Para cada concluso a partir da crena de que a histria seguir uma linha ascensional, seja esta direta, em ziguezague ou em espiral, h um contra-argumento igualmente vlido. A teoria explica essencialmente o caminho da fatalidade. Com toda a consistncia que ela pode encontrar no desenvolvimento, com toda lgica na seqncia das pocas sociais individuais, com todo aumento das foras produtivas

  • 16

    materiais, dos mtodos e das habilidades, aumentaram de fato os antagonismos capitalistas. Por eles se definem, finalmente, os prprios homens. Estes so hoje no apenas mais capazes para a liberdade, mas tambm menos capazes. No somente a liberdade possvel, mas tambm formas futuras de opresso. Elas podem ser avaliadas teoricamente como recada ou como um novo equipamento engenhoso. Com o capitalismo de Estado o poder pode se fortalecer. (Horkheimer, op. cit., pgs. 145-146)

    Nesta mesma direo, tambm em Capitalismo Tardio ou Sociedade

    Industrial? Adorno, discutindo a concepo segundo a qual Marx teria sido superado,

    sustenta que as dificuldades apresentadas pelo novo contexto histrico apontam para

    alguns desenvolvimentos de fato inesperados, mas que devem ser compreendidos em

    sua configurao. Se, por um lado, Adorno diz que a atual sociedade , de acordo com

    o estgio de suas foras produtivas, plenamente, uma sociedade industrial, para ele

    isto, ao contrrio do que talvez se esperaria, no mudou alguns aspectos essenciais:

    Por outro lado, a sociedade capitalismo em suas relaes de produo. Os homens seguem sendo o que, segundo as anlises de Marx, eles eram por volta da metade do sculo XIX: apndices da maquinaria, e no mais apenas literalmente os trabalhadores, que tm de se conformar s caractersticas das mquinas a que servem, mas, alm deles, muitos mais, metaforicamente: obrigados at mesmo em suas mais ntimas emoes a se submeterem ao mecanismo social como portadores de papis, tendo de se modelar sem reservas de acordo com ele. Hoje como antes produz-se visando o lucro. Para alm de tudo o que poca de Marx era previsvel, as necessidades, que j o eram potencialmente, acabaram se transformando completamente em funes do aparelho de produo, e no vice-versa. (Adorno, op. cit., pg. 361)

    A novidade neste quadro dada pela absoro das foras produtivas pelas

    relaes de produo:

    Demasiado otimista era a expectativa de Marx de que seria historicamente certo um primado das foras produtiva, que necessariamente romperia as relaes de produo. (...) Atravs de remendos e medidas particulares, as relaes de produo, apenas para a sua autoconservao, continuaram a submeter a si as foras produtivas deixadas solta. Caracterstica marcante de nossa poca a preponderncia das relaes de produo sobre as foras produtivas que, porm, h muito desdenham as relaes. (...) Que a coisa toda tenha transcorrido de modo diferente do que se esperava, tem como uma das causas, e no a menor, o fato de que a sociedade incorporou o que Veblen chamava de underlying population. (...) Esse desenvolvimento dependia, por sua vez, do desenvolvimento das foras produtivas; e no era, porm, idntico primazia dessas sobre as relaes de produo. (...) A sua realizao teria necessitado da espontaneidade daqueles que esto interessados na mudana das condies, e, entrementes, o seu nmero superou vrias vezes o proletariado industrial propriamente dito. O interesse

  • 17

    objetivo e a espontaneidade subjetiva separam-se contudo; esta corre o risco de atrofiar-se sob a desproporcional superioridade das condies dadas. (Adorno, op. cit., pgs. 363-364, grifo meu)

    Por fim, Adorno afirma claramente que os aspectos polticos do novo contexto, a

    atividade do intervencionismo estatal, no implicam a superao do condicionamento

    econmico e devem antes ser entendidos em uma relao dialtica com este

    condicionamento:

    Ao contrrio do que pensa a antiga doutrina liberal, o intervencionismo econmico no enxertado de um modo estranho ao sistema, mas de modo imanente a ele, como a quintessncia da autodefesa do sistema capitalista; nada poderia explicar de modo mais contundente o conceito de dialtica. (...) A invaso do no-imanente ao sistema pertence tambm dialtica imanente, assim como, no plo oposto, Marx pensava o revolucionamento das relaes de produo como algo coercitivamente imposto pelo percurso da Histria e, ainda assim, como uma ao a ser desenvolvida de modo qualitativamente distinto do carter fechado do sistema. Mas se, com base no intervencionismo e no planejamento em grande escala, o capitalismo tardio estaria livre da anarquia da produo de mercadorias e portanto no seria mais capitalismo, ento preciso responder que o destino social do indivduo continua a ser, para este, to dependente do acaso quanto sempre foi. O prprio modelo capitalista nunca teve uma vigncia to pura quanto a apologia liberal o supe. Em Marx, isso j era crtica ideologia: deveria expor quo pouco o conceito que a sociedade burguesa tecia sobre si mesma coincidia com a realidade. No deixa de ser irnico que exatamente este motivo crtico, o de que o liberalismo, em seus melhores tempos, no era liberalismo, passe a ser hoje reciclado a favor da tese de que o capitalismo no seria mais propriamente capitalismo. (Adorno, op. cit., pgs. 367-368)

    Parece difcil, em vista dos elementos apresentados pelos textos, sustentar a

    interpretao de Martin Jay. Mesmo que se argumente que Horkheimer mais tarde

    mudar em muito sua posio, distanciando-se em muitos aspectos do ponto de vista

    exposto em Estado Autoritrio, no se pode negar que a aproximao entre suas

    referncias ao capitalismo de Estado e a concepo desenvolvida por Pollock errnea.

    No caso de Adorno a distncia com Pollock ainda mais evidente, ficando ainda, como

    j apontamos, afastada a hiptese de uma formulao transicional, j que o texto do

    final dos anos 60.

    Fica claro, portanto, que h textos importantes que no se coadunam

    inteiramente com interpretaes amplamente aceitas a respeito da Teoria Crtica, em

  • 18

    especial no que diz respeito s interpretaes do fascismo realizadas no interior do

    Instituto de Pesquisa Social. E isto justifica que se reexaminem algumas concepes

    mais ou menos estabelecidas sobre o desenvolvimento e o sentido da Teoria Crtica, o

    que poderia levar, em ltimo caso, a uma reinterpretao de aspectos importantes dela.

    Uma abordagem conjunta dos trabalhos dos membros do Instituto de Pesquisa Social a

    respeito do nazismo algo que ainda no foi feito, havendo muitos textos pouco

    discutidos e pouco estudados, ainda mais se se levar em conta as relaes e os contrates

    que se poderiam estabelecer entre eles.

    Sntese da bibliografia fundamental

    A bibliografia fundamental consiste nos textos sobre o fenmeno do fascismo

    produzidos pelos autores ligados ao Instituto de Pesquisa Social e publicados em

    coletneas ou nas obras reunidas de cada autor, alm dos textos de alguns

    comentadores:

    ADORNO, T. W. Gesammelte Schriften. Editado por Rolf Tiedemann.

    Frankfurt: Suhrkamp, a partir de 1970.

    HORKHEIMER, M. Gesammelte Schriften. Organizado por Alfred Schmidt e

    Gunzelin Shmid Noerr. Frankfurt: Fisher, 1985-1991, 18 vols.

    KIRCHHEIMER, O. Politics, Law and Social Change. Selected Essays of Otto

    Kirchheimer. Nova York: Columbia University Press, 1969.

    _________. Politik und Verfassung, Frankfurt: Suhrkamp, 1964.

    _________. Von der Weimarer Republik zum Faschismus: Die Auflsung der

    demokratischen Rechtsordnung. Frankfurt: Suhrkamp, 1976.

    MARCUSE, H. Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1978-1989, 9 vols.

    NEUMANN, F. Behemoth: the Structure and Practice of National Socialism

  • 19

    1933-1944. Nova York: Harper & Row, 1966.

    _________. The Democratic and the Authoritarian State: Essays in Political and

    Legal Theory. Nova York: Free Press, 1957.

    _________. The Rule of Law: Political Theory and the Legal System in Modern

    Society. Leamington: Berg, 1986.

    _________. Wirtschaft, Staat, Demokratie. Aufstze 1930 - 1954. Frankfurt:

    Suhrkamp, 1978.

    POLLOCK, F. Stadien des Kapitalismus. Organizao de Helmut Dubiel.

    Munique: Beck, 1975.

    DUBIEL, H. Kirtische Theorie der Gesellschaf: Eine einfhrunde Rekonstrution

    von den Anfngen im Horkheimer-Kreis bis Habermas. Weinheim: Juventa, 1988.

    _________. Theory and politics: studies in the development of Critical Theory.

    Cambridge: MIT, 1985.

    JAY, M. La Imaginacin dialctica: una historia de la Escuela de Frankfurt.

    Madri: Taurus, 1989.

    SCHEUERMANN, W. Between the Norm and the Exception: the Frankfurt

    School and the Rule of Law. Cambridge: MIT, 1994.

    WIGGERSHAUS, R. A Escola de Frankfurt: histria, desenvolvimento terico,

    significao poltica. Rio de Janeiro: Difel, 2002.

    Objetivos

    A pesquisa tem trs objetivos principais: a) estudar as relaes entre os

    diagnsticos do fascismo elaborados pelos membros do Instituto de Pesquisa Social e

    seu contexto histrico mais imediato, principalmente a Repblica de Weimar; b)

    analisar as oposies, entrelaamentos e dilogos destes diagnsticos entre si; e c)

  • 20

    reavaliar a interpretao dada para a questo do fascismo no interior da Teoria Crtica.

    Plano de trabalho e cronograma de execuo

    1 Bimestre Estudo da Repblica de Weimar 2 Bimestre idem 3 Bimestre Estudo das obras de Franz Neumann e Friedrich Pollock 4 Bimestre idem 5 Bimestre idem 6 Bimestre Estudo das obras de Theodor Adorno e Max Horkheimer 7 Bimestre idem 8 Bimestre idem 9 Bimestre Estudo das obras de Otto Kirchheimer e Herbert Marcuse

    10 Bimestre

    idem 11 Bimestre

    idem 12 Bimestre Relatrio

    Material e mtodos

    O material composto pelos textos, ensaios e livros sobre o fascismo produzidos

    pelos autores ligados ao Instituto de Pesquisa Social entre o final da dcada de 1930 e o

    incio da dcada de 1940. O mtodo empregado ser o da anlise de textos, visando

    reconstituio dos movimentos argumentativos, identificao de teses e explicitao

    de pressupostos.

    Forma de anlise dos resultados

    Os resultados devero consistir na identificao dos principais pontos em que se

    articulam os diagnsticos do fascismo elaborados pelos membros do Instituto de

    Pesquisa Social, bem como dos dilogos e discordncias que podem ser reconhecidos a

    partir de comparaes entre eles. O conjunto deve permitir, assim, o delineamento de

    uma imagem mais precisa da explicao sobre o fascismo produzida no interior do

    Instituto de Pesquisa Social e do significado desta no quadro da Teoria Crtica.