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PROFESSORES DO PROEJA LÊEM GRAMSCI: EM BUSCA DA COMPREENSÃO DO TRABALHO COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO Céuli Mariano Jorge 1 Resumo O presente artigo resulta da implementação do Projeto “O Trabalho como princípio educativo no Ensino de Biologia”, no âmbito do Programa de Integração da Educação Profissional à Educação Básica na modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA, este, apresentado ao Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE, que é parte integrante às atividades da formação continuada da Rede Estadual de Educação do Paraná. Foi elaborado com o propósito de contribuir com a fundamentação teórica e o entendimento dos professores com relação ao currículo do PROEJA. São apresentadas as contribuições encontradas nas obras de Gramsci, mais especificamente nos Cadernos do Cárcere nº 12 e nº 22. O Caderno nº 12 refere-se ao estudo dos intelectuais e a proposta da escola unitária. Nesse caderno, Gramsci faz uma análise sobre os intelectuais e expõe o conceito de trabalho como princípio educativo e de escola unitária, a partir da qual buscava entender o mundo do trabalho, refletir sobre ele e formar os conceitos necessários para a vida em sociedade. No Caderno nº 22, Gramsci trata do americanismo e fordismo, definido por ele como uma nova forma de organizar o trabalho, porém, que não se restringe ao mundo da produção, interfere também na esfera da reprodução social, uma vez que não se limita ao campo econômico, implica na formação e adesão de uma nova ideologia. Portanto, são as questões político-ideológicas do “americanismo” que contribuem para a formação de um “novo tipo de homem” apático e obediente, que atenda a esse modelo produtivo. Palavras-chave: Escola Unitária; Trabalho; Gramsci; Emancipação Abstract This article results from the implementation of the Project “O Trabalho como princípio educativo no Ensino de Biologia” (Work as an Educational Principle in Biology Learning) in the extent of the Program of Integration between Professional Education and Elementary Education in the modality of Education for Youngsters and Adults – PROEJA, the latter being presented to the Program of Educational Development – PDE, which is an integral part of the continued 1 Bióloga, Mestre em Entomologia - UFPR, Coordenação do PROEJA no Departamento de Educação e Trabalho da SEED/PR. [email protected] Agradecimentos a Profª. Drª. Monica Ribeiro da Silva da UFPR, pela orientação nesse trabalho.

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Page 1: PROFESSORES DO PROEJA LÊEM GRAMSCI: EM BUSCA DA

PROFESSORES DO PROEJA LÊEM GRAMSCI: EM BUSCA DA COMPREENSÃO DO TRABALHO COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO

Céuli Mariano Jorge1

Resumo

O presente artigo resulta da implementação do Projeto “O Trabalho como princípio educativo no Ensino de Biologia”, no âmbito do Programa de Integração da Educação Profissional à Educação Básica na modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA, este, apresentado ao Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE, que é parte integrante às atividades da formação continuada da Rede Estadual de Educação do Paraná. Foi elaborado com o propósito de contribuir com a fundamentação teórica e o entendimento dos professores com relação ao currículo do PROEJA. São apresentadas as contribuições encontradas nas obras de Gramsci, mais especificamente nos Cadernos do Cárcere nº 12 e nº 22. O Caderno nº 12 refere-se ao estudo dos intelectuais e a proposta da escola unitária. Nesse caderno, Gramsci faz uma análise sobre os intelectuais e expõe o conceito de trabalho como princípio educativo e de escola unitária, a partir da qual buscava entender o mundo do trabalho, refletir sobre ele e formar os conceitos necessários para a vida em sociedade. No Caderno nº 22, Gramsci trata do americanismo e fordismo, definido por ele como uma nova forma de organizar o trabalho, porém, que não se restringe ao mundo da produção, interfere também na esfera da reprodução social, uma vez que não se limita ao campo econômico, implica na formação e adesão de uma nova ideologia. Portanto, são as questões político-ideológicas do “americanismo” que contribuem para a formação de um “novo tipo de homem” apático e obediente, que atenda a esse modelo produtivo. Palavras-chave: Escola Unitária; Trabalho; Gramsci; Emancipação

Abstract

This article results from the implementation of the Project “O Trabalho como princípio educativo no Ensino de Biologia” (Work as an Educational Principle in Biology Learning) in the extent of the Program of Integration between Professional Education and Elementary Education in the modality of Education for Youngsters and Adults – PROEJA, the latter being presented to the Program of Educational Development – PDE, which is an integral part of the continued

1 Bióloga, Mestre em Entomologia - UFPR, Coordenação do PROEJA no Departamento de Educação e Trabalho da SEED/PR. [email protected] a Profª. Drª. Monica Ribeiro da Silva da UFPR, pela orientação nesse trabalho.

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education activities of the Paraná State Network of Education. It was developed aiming to contribute for teachers’ theoretical grounding and comprehension regarding PROEJA’s curriculum. The contributions found on Gramsci’s works, more specifically in the Prison Notebooks no. 12 and no. 22, are presented. The Notebook no. 12 refers to the study of intellectuals and exposes the concept of work as a principle of education and unitary school, from which he sought to understand the world of work, reflect about it and create the necessary concepts for life in society. In the Notebook no. 22, Gramsci approaches the Americanism and the Fordism, defined by him as a new work order, not restricted, however, to the world of production, interfering also in the social reproduction scope, as it is not limited to the economic field, it implies in the formation and adherence of a new ideology. These are, therefore, the “Americanism” political-ideological issues that contribute for the formation of a “new kind of man”, apathetical and obedient, who answers to this productive model.Key words: Unitary School; Work; Gramsci; Emancipation

Introdução

O Projeto “O Trabalho como princípio educativo no Ensino de Biologia

do PROEJA apresentado ao Programa de Desenvolvimento Educacional –

PDE é parte integrante às atividades da formação continuada da Rede

Estadual de Educação do Paraná. Foi desenvolvido junto aos professores do

Centro Estadual de Educação Profissional Newton Freire Maia, Município de

Pinhais, Área Metropolitana Norte de Curitiba, no período de agosto a

novembro de 2008.

O referido projeto teve como objetivo reforçar o entendimento da

concepção teórico-metodológica que embasa essa nova política educacional

implantada pela Secretaria de Estado da educação – SEED, em 2008. Trata-

se, portanto, de uma Política Educacional que “visa à integração da Educação

Básica na modalidade de Educação de Jovens e Adultos à profissionalização

em nível técnico para trabalhadores que no seu decurso ficaram à margem do

processo de escolarização” (PARANÁ, 2008).

A elaboração desse projeto partiu da identificação da problemática

representada pela ausência da dimensão histórica das relações sociais e

produtivas no âmbito da categoria trabalho no processo formativo da maioria

dos professores e da Educação de Jovens e Adultos, sendo que esta requer

uma metodologia diferenciada que atenda o público dessa faixa etária. Outro

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problema diz respeito à insuficiência de fontes bibliográficas disponíveis aos

professores sobre o tema em questão, dificultando o estudo e a busca de

novos conhecimentos.

O PROEJA, implantado no Paraná, como uma política Pública, pauta-se

no “trabalho” como um instrumento do processo de humanização. O que

significa o enfrentamento à visão imediatista de atendimento às necessidades

adaptativas, funcionais, de treinamento do trabalhador, exigidas na atual

sociedade.

Em contrapartida, busca ofertar uma educação que tem o trabalho como

princípio educativo no sentido de que “este permite, concretamente, a

compreensão do significado econômico, social, histórico, político e cultural das

Ciências, das Artes e da Tecnologia” (RAMOS, 2005). Ou seja, formar para a

autonomia de pensamento e possibilitar a interação e uma atuação crítica que

leve a transformação social.

O PROEJA emerge a partir de um contexto social, político, econômico e

educacional tendo como referência uma educação cuja concepção é pautada

na superação das diferenças que acabam por legitimar a dualidade da escola.

Busca em Gramsci e outros filósofos clássicos, a compreensão do Trabalho

como princípio educativo e de escola unitária.

Antonio Gramsci nasceu em Ales, Sardenha, em 23 de janeiro de 1891 e

faleceu em 27 de abril de 1937, em Roma, quatro dias depois de alcançar a

liberdade. Gramsci foi preso em 1926 e condenado a mais de vinte anos de

prisão. Sua obra, composta de 32 cadernos escritos na prisão, foi depois

distribuída em volumes, só publicados depois da guerra. De tudo que escreveu,

porém, a parte mais divulgada são as Cartas do Cárcere, nas quais o autor

revela suas preocupações familiares e discute problemas filosóficos e

estéticos. As preocupações de Gramsci com a educação de seus filhos em

muito contribuíram para despertar e cultivar nele o interesse pelas questões

pedagógicas, explicitadas nos seus escritos elaborados na prisão. No cárcere

fascista, Gramsci sistematizou seus conceitos sobre a relação trabalho e

educação de forma amadurecida.

São destacados neste trabalho, alguns conceitos e categorias

importantes em Gramsci com o intuito de facilitar a compreensão de suas

reflexões e proposições fundamentadas no caráter dialético originário da

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concepção marxista, e presentes em suas obras. No entanto, as análises e

conexões são realizadas sem perder de vista o contexto social e político no que

diz respeito à Educação para jovens e adultos trabalhadores e ao atual modelo

produtivo.

1. PROEJA: A implantação no Paraná como uma Política Pública

O Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio

na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos – PROEJA, foi instituído

nacionalmente pelo Decreto Federal nº 5.840 de junho de 2006. Esse

programa surge com o intuito de atender aos jovens e adultos que não

puderam concluir a educação básica devido aos inúmeros fatores que atingem

a educação no país.

A Secretaria de Estado da Educação do Paraná – SEED inicia em 2007

o processo de implantação, não como um programa, mas como uma política

pública destinada aos jovens e adultos trabalhadores, com o objetivo de ofertar

uma educação que assegure ao mesmo tempo os saberes científicos,

tecnológicos e histórico- sociais e a formação para o trabalho em nível técnico

O currículo integrado possibilita, uma nova forma pedagógica para o

Ensino Médio, em resposta aos diferentes sujeitos sociais aos quais se destina

por meio de uma concepção que considera o mundo do trabalho e que leva em

conta os mais diversos saberes produzidos em diferentes espaços sociais.

Estas dimensões teórico-metodológicas partem da compreensão do processo

de conhecimento através da atividade humana.

Tendo como referencial o Documento Base (BRASIL, 2006), os

Fundamentos Políticos e Pedagógicos da Educação Profissional do Paraná

(PARANÁ, 2005) e as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação de

Jovens e Adultos (BRASIL, 2000), foi e elaborado, de forma coletiva, o

Documento Orientador da Educação profissional Integrada à Educação de

Jovens e Adultos – PROEJA, (PARANÁ, 2008). Nesse documento são

apresentados os pressupostos teóricos, fundamentos e princípios dessa

política, bem como a organização curricular e as orientações metodológicas

necessárias ao trabalho do professor.

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Definiu-se o currículo com uma carga horária mínima de 2400 horas

distribuídas ao longo de seis semestres que articula teoria, prática, concepções

e saberes, orientados pelos eixos norteadores: Trabalho, cultura, tempo,

ciência e tecnologia, com base nas características históricas, econômicas e

socioculturais. O currículo assim organizado está voltado para jovens e adultos

com idade, preferencialmente, igual ou superior a 21 anos.

A partir de uma mobilização que envolveu professores e equipes

pedagógicas dos 32 Núcleos Regionais de Educação que compõem a Rede

Estadual de Educação, foram realizados os estudos e levantamento de

demandas para implantação. Levando-se em conta a estrutura física e humana

existente na escola para essa modalidade de ensino, foram autorizados 76

cursos no Estado, com 12 habilitações técnicas diferentes.

Porém, a implantação efetiva em 2008, ocorreu com 40 cursos e

aproximadamente 1200 alunos matriculados no primeiro semestre.

Considerando-se a evasão ocorrida durante o percurso e o início de novas

turmas no segundo semestre, o PROEJA conta, ao final do ano da sua

implantação, com o atendimento de aproximadamente 1000 alunos.

1.1 O Trabalho como Princípio Educativo: Implementação do Projeto na escola

A concepção teórica estabelecida para o PROEJA encontra na escola

unitária de Gramsci os subsídios para a sua implementação como uma

possibilidade de educação emancipatória para jovens e adultos trabalhadores.

Tal concepção aproxima-se dos pressupostos estabelecidos por Gramsci

quando elege o trabalho como seu princípio educativo, e desse modo, discorda

das “modernas escolas que fazem do industrialismo seu princípio pedagógico

de forma “interessada” (interesseira, mesquinha e imediatista), aponta o

instrumento de trabalho para a escola unitária como um feixe de relações

políticas, sociais e produtivas” (NOSELLA, 2004, p.1).

Assim como na escola unitária de Gramsci, o PROEJA visa o

atendimento das camadas populares na perspectiva de formar consciência

crítica e possibilitar a interação e compreensão do meio social, conforme

afirmação de Ramos (2005) “o objetivo de um currículo integrado não é a

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formação de técnicos, mas a formação de pessoas que compreendam a

realidade e que possam atuar como profissionais”

Para isso, o PROEJA implantado no Paraná conta com um currículo

integrado elaborado coletivamente pelos professores, com condições para

possibilitar uma sólida formação de conhecimentos da cultura geral e da

educação para o trabalho. Nesse currículo, busca-se efetivar uma integração

num sentido amplo: entre os conhecimentos, disciplinas, conteúdos e

professores, na concepção de Ciavatta (2005, p.84), “no seu sentido de

completude, de compreensão das partes no seu todo ou da unidade no diverso,

de tratar a educação como uma totalidade social”.

Durante a implementação do projeto “O Trabalho como Princípio

Educativo no Ensino de Biologia do PROEJA, foi possível identificar algumas

questões relacionadas à efetivação do currículo na escola, à apropriação da

concepção teórica e metodológica por parte dos professores e suas análises

com relação aos desafios postos.

Com relação às dificuldades encontradas no curso desde a sua

implantação, os professores citaram a evasão dos alunos, a qual, segundo

eles, ocorre em conseqüência de situações particulares dos mesmos como:

problemas de saúde, de transporte para ir à escola e problemas relacionados

ao trabalho (horário, mudança de trabalho e desemprego).

Os professores apontaram a defasagem de conhecimentos apresentada

pelos alunos, ocasionada pelo longo período de afastamento dos estudos ou

pela insuficiência de aprendizagem nos níveis anteriores, como elemento que

dificulta o acompanhamento das aulas e leva ao desestímulo e evasão.

Contudo, enfatizaram que os alunos do PROEJA são mais responsáveis,

empenhados em aprender e respeitosos com os professores e colegas. Este

fato torna o trabalho agradável e prazeroso apesar das dificuldades.

Com relação à questão aprendizagem dos alunos, os professores

relataram estar diante de um paradoxo: como assegurar os conhecimentos a

nível médio para o público jovem e adulto do PROEJA de forma consistente,

sem “assustá-los” devido a baixa-estima e insegurança que muitos

apresentam.

A compreensão da concepção teórica e metodológica do curso foi outro

fator de dificuldade apontado pelos professores. Trata-se de uma forma nova

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de organizar e entender a educação, que diverge dos seus conhecimentos

acadêmicos e requer estudo. Este fato contou com dois agravantes: o primeiro

refere-se à formação continuada para os professores que não foi efetivada na

sua totalidade durante o ano letivo de 2008 e o segundo, diz respeito à

insuficiência de recursos bibliográficos disponíveis na escola, necessários ao

estudo dos professores.

A ausência de material didático específico traz uma série de limitações

ao curso, segundo os professores, demanda de maior utilização do quadro-de-

giz e a busca por materiais diversos (livros, apostilas, internet, etc.) que nem

sempre atendem as abordagens necessárias ao público do PROEJA.

Outro tema de grande relevância apontado e que se caracteriza como

um desafio na efetivação do PROEJA é a integração dos professores que

atuam na escola. Essa integração poderia ocorrer por meio de estudos,

discussões constantes e planejamento em conjunto. Entretanto, a estrutura

existente na escola não favorece o encontro dos professores, muito menos

possibilita reuniões freqüentes, uma vez que se deve cumprir os dias letivos

previstos em calendário. Isto, segundo a maioria dos professores, configura-se

como o principal fator de dificuldade na efetivação da proposta curricular em

sua integridade teórica e metodológica.

Uma preocupação que se teve ao longo desse trabalho foi muito mais do

que a quantidade e qualidade de informações, despertar nos participantes o

interesse pela busca de base teórica, seja em autores clássicos ou em

contemporâneos que discutem as relações do trabalho e o trabalho como

princípio educativo, para a compreensão necessária à efetivação dessa nova

proposta pedagógica. Portanto, a disponibilização de bibliografias e materiais

de estudo e pesquisa e, principalmente, o incentivo a produções próprias,

torna-se fundamental no PROEJA.

1.2 Metodologia utilizada

O projeto “O Trabalho como princípio educativo no ensino de Biologia do

PROEJA” foi implementado no Centro Estadual de Educação Profissional

Newton Freire Maia, Município de Pinhais, Área Metropolitana Norte de

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Page 8: PROFESSORES DO PROEJA LÊEM GRAMSCI: EM BUSCA DA

Curitiba, no período de agosto à novembro de 2008.

Foi elaborado com o objetivo de possibilitar o estudo e a busca do

conhecimento sobre as relações originárias do trabalho e do trabalho como

princípio educativo que embasam teoricamente o PROEJA. Dessa forma,

contribuiu com a produção de dois artigos científicos: “O Trabalho como

Princípio Educativo no Ensino de Biologia do PROEJA” e o presente artigo.

Foi organizado com um total de 32 horas, das quais, 20 horas foram

realizadas de forma presencial, em quatro encontros de cinco horas, e 12 horas

foram destinadas às atividades de leitura e estudo dos textos encaminhados

previamente.

Contemplou o estudo das idéias centrais de autores clássicos como

Gramsci (Cadernos do Cácere nº 12 e 22, entre outros) e Marx (Manuscritos

Econômicos e Filosóficos), além do artigo “O Trabalho como Princípio no

Ensino de Biologia do PROEJA”.

Os encontros pautaram-se na apresentação e discussão dos textos

fazendo-se a relação com o trabalho em sala de aula junto ao público do

PROEJA, no âmbito da integração das disciplinas, conteúdos e professores,

fundamentais à essa proposta, que tem base na perspectiva do trabalho como

princípio educativo.

2. Conceitos centrais em Gramsci na compreensão de sociedade

Algumas categorias importantes podem ser extraídas nas obras de

Gramsci, com enfoque nas apresentadas no caderno nº 12 e 22, entretanto, é

interessante o fato de que algumas delas, embora já estabelecidas pelo

marxismo, apresentam denominações diferentes em Gramsci, contudo,

preservam a mesma essência daquelas apresentadas por Marx. Por certo, isso

se deve a necessidade de “ludibriar” a censura dos militares fascistas do

cárcere.

Dentre essas categorias destacam-se: Grupo social em lugar de classe

social, o qual, segundo a definição de Gramsci, é formado a partir da produção

econômica, possui seus próprios intelectuais que dão homogeneidade e

consciência ao grupo no campo econômico, social e político; Filosofia da práxis

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ao invés de marxismo ou pensamento marxista que representa as relações

estabelecidas pelos homens para produzir a vida material e não mera

articulação entre teoria e prática, mas articulação política. Assim como, quando

se refere a Marx, Engels e Lênin, Gramsci utiliza a expressão “fundadores da

filosofia da práxis”.

Gramsci reconceitua as relações entre estrutura e superestrutura. Em

sua visão, a estrutura permanece, como estabelecida por Marx, determinante

sobre a superestrutura, ainda que em última instância; porém, ele amplia o

conceito de superestrutura e, ao mesmo tempo, confere-lhe uma importância

decisiva para a análise do desenvolvimento das sociedades capitalistas da

Europa ocidental. Enquanto que Marx atribui primazia à estrutura econômica

da sociedade, embora não interprete mecanicamente as relações entre base e

superestrutura, atribui à estrutura um papel determinante, enquanto a

superestrutura jurídico-política lhe é subordinada.

O conceito de bloco histórico tem em sentido conjuntural, a noção de

articulação entre estrutura e superestrutura, ou de “formação sócial” no sentido

marxiano. Contudo, Gramsci relaciona a formação de bloco histórico à

necessidade da liderança e da ação baseadas em consciência política

altamente desenvolvida dentro da classe hegemônica. Por isso, a sua ênfase

no papel do sujeito no processo histórico, uma vez que o bloco histórico não se

forma de maneira espontânea, nem simplesmente como resultado das

necessidades econômicas.

No conceito de Estado, Gramsci conclui que sociedade civil e Estado, na

realidade, não estão separados. Explica a origem dessa concepção na Carta

do Cárcere de setembro de 1931, quando escreve que seus estudos acerca

dos intelectuais têm se ampliado muito e que a ampliação desses estudos leva

também a tecer certas considerações sobre o Estado,

...acerca das determinações do conceito de Estado, que comumente é entendido como Sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para amoldar a massa popular ao tipo de produção e à economia de dado momento) e não como um equilíbrio da Sociedade política com a Sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a sociedade nacional inteira exercida através das chamadas organizações privadas, como a Igreja, os sindicatos, as escolas). (GRAMSCI, 1978, p. 224).

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O conceito de hegemonia é expresso por Gramsci como o

consentimento das classes subalternas à dominação burguesa, apresentando-

se como a outra face do poder: a do domínio das consciências e da reprodução

da ideologia, como a supremacia de um povo sobre outro, em suas palavras,

...o fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que sejam levados em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida, que se forme um certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corporativa; mas também é indubitável que tais sacrifícios e tal compromisso não podem envolver o essencial, dado que, se a hegemonia é ético-política, não pode deixar de ser também econômica; não pode deixar de ter seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade econômica (GRAMSCI, 2002 p. 48).

Nesse aspecto, a hegemonia se sustenta numa base econômica, uma

vez que fornece as condições de uma classe ou grupo que ocupa um lugar de

destaque no sistema de produção. O sistema hegemônico produz resultados

que, em certa medida, satisfazem os interesses materiais de curto prazo de

vários grupos sociais. Assim, a hegemonia ideológica só pode ser mantida se

estiver calcada em uma base material, portanto, o conceito de hegemonia ética

e política também abrangem a esfera econômica.

Porém, deve-se levar em conta que a tese emancipatária gramsciana

está diretamente desenvolvida no seu conceito de hegemonia, compreendido

como direção moral e direção política de uma classe quando toma o poder

sobre as classes concorrentes e aliadas.

3. A formação de intelectuais e a escola unitária e “desinteressada” de Gramsci

Gramsci apresenta uma proposta educacional para os trabalhadores

italianos, a mesma seria implementada na nova sociedade que buscava. Nessa

proposta, define e conceitua intelectuais orgânicos e tradicionais e aponta a

escola como a principal formadora desses intelectuais.

Define os intelectuais orgânicos como aqueles que são ligados

diretamente a uma causa, compondo e defendendo a integridade de um grupo

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e suas idéias como se o mesmo fosse um organismo. Enquanto que os

intelectuais tradicionais são os que não apresentam ligação direta a nenhum

grupo, são autônomos e independentes, mas historicamente exerceram grande

influência sobre as massas. A análise gramsciana abrange os intelectuais que

normalmente são ligados a atividades de natureza intelectual como o professor,

o líder religioso, o militante político, o jornalista, o artista e o cientista. Mas

também voltou sua atenção aos que considerava uma nova camada de

intelectuais, formada pelos técnicos da indústria moderna, que traduzia as

necessidades da burguesia industrial ascendente.

Nesse contexto, Gramsci percebe o intelectual como uma figura que tanto

pode agir para a transformação da sociedade quanto para sua reprodução,

uma vez que não existe trabalho sem atividade intelectual,

...em qualquer trabalho físico, mesmo no mais mecânico e degradado, existe trabalho intelectual. Todos os homens são intelectuais, porém, nem todos têm na sociedade a função de intelectuais e a sua formação não ocorre democraticamente, uma vez que os mesmos são formados pela burguesia latifundiária e urbana (GRAMSCI, 2001, p. 18).

A escola se caracteriza como a grande formadora de intelectuais nos

diversos níveis e o objetivo da educação é desenvolver a intelectualidade para

além da “inteligência”, isto é, para ocupar uma determinada posição e atuar no

conjunto das relações sociais. Ao tratar dos intelectuais orgânicos Gramsci se

refere tanto aos intelectuais orgânicos da burguesia quanto aos necessários ao

proletariado,

...cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, se cria juntamente, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função não só no campo econômico, mas também no social e político (GRAMSCI, 2001, p. 16).

Com relação aos intelectuais originados na época feudal, Gramsci

destaca os eclesiásticos como a categoria organicamente ligada à aristocracia

fundiária “aristocracia togada”, os quais tinham o monopólio das

superestruturas e pregavam a obediência e humildade aos servos para com os

seus senhores.

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Com a ruptura no princípio formativo humanista da velha escola média e

o crescimento das diversas escolas profissionais, que visavam “preparar mão-

de-obra” para acelerar a produção industrial após o fim da primeira guerra

mundial, abriu-se uma dualidade na organização escolar: a formação de

especialistas técnico-científicos e a formação técnica instrumental e prática “A

divisão fundamental da escola em clássica e profissional era um esquema

racional: a escola profissional destinada às classes instrumentais, enquanto à

clássica destinava-se às classes dominantes e aos intelectuais” (GRAMSCI,

2001, p. 15).

Gramsci denuncia essa forma mesquinha do Estado com a

profissionalização a partir de uma interesseira situação e esboça a proposta da

“escola unitária” que expressava as novas exigências da luta política na guerra

de posição2. A proposta de escola unitária gramsciana tem como ponto central

a idéia de liberdade concreta, universal e historicamente obtida, isto é, na

liberdade gestada pelo trabalho industrial e universalizada pela luta política, ou

seja,

...na escola atual, em função da crise profunda da tradição cultural e da concepção da vida do homem, verifica-se um processo de progressiva degenerescência: as escolas do tipo profissional, isto é, preocupadas em satisfazer interesses práticos imediatos, predominam sobre a escola formativa, imediatamente desinteressada. O aspecto mais paradoxal reside em que este novo tipo de escola aparece e é louvado como democrático, quando, na realidade, não só é destinado a perpetuar as diferenças sociais, como ainda a cristalizá-las em formas chinesas (GRAMSCI, 1999).

O desenvolvimento da concepção de escola unitária por Gramsci

nascera, segundo Manacorda (1996) “como uma aparente digressão do

discurso sobre os intelectuais a propósito da intelectualização da atividade

prática e da praticização da atividade teórica”. Esse autor acrescenta ainda,

que ao ter realizado sua opção por uma escola única de cultura geral

humanística, no sentido amplo e não apenas tradicional Gramsci se dispõe a

estudar os modos concretos, segundo os quais essa escola poderá se

2 O conceito de “guerra de posição” faz parte da teoria da hegemonia e responde à exigência de definição das características históricas novas da luta política no mundo depois da Grande Guerra e da Revolução de Outubro. “A passagem da guerra manobrada à guerra de posição”, afirma Gramsci, surge “como a questão de teoria política mais importante colocada pelo período do pós-guerra e a mais difícil de ser resolvida corretamente” (VACCA, 1996).

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configurar, tendo como propósito atender aos interesses da classe

trabalhadora.

A concepção de escola unitária torna-se elemento importante, uma vez

que esta foi pensada por Gramsci como uma escola para todos, tendo em vista

o acesso da classe subalterna, excluída dos bens culturais, particularmente da

educação, considerando as condições materiais de existência dos homens.

Assim, o pensamento educacional de Gramsci não se limita apenas à

elaboração de uma proposta educacional, mas a todo um complexo de

conceitos inerentes à sua concepção.

A proposta da escola unitária, deveria então inspirar-se no trabalho

industrial moderno, tendo por base o resgate do princípio educativo da “cultura

desinteressada”. Seria universal e obrigatória, aproximadamente até aos 18

anos. Nela ministrar-se-iam conteúdos que incluem as artes, o esporte, a

ciência, a técnica e a cultura em geral. Seria a escola do trabalho

desinteressado, isto é, não imediatista e utilitarista.

Depois dessa sólida base escolar, teria início a profissionalização mais

específica, nas universidades e ou nas academias, ou escolas politécnicas.

Esse tipo de educação, no entanto, só faria sentido de existir se fosse numa

escola pública e gratuita, financiada pelo Estado e com autonomia pedagógica,

pois:

...a escola unitária requer que o Estado possa assumir as despesas que hoje estão a cargo da família, no que toca a manutenção dos escolares, isto é, que seja completamente transformado o orçamento da educação nacional, ampliando-o de um modo imprevisto e tornando-o mais complexo: a inteira função da educação e formação das novas gerações torna-se, ao invés de privada, pública, pois, somente assim, pode ela envolver todas as gerações, sem divisões de grupos ou castas (GRAMSCI, 1991, p. 121).

A escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que

equilibrasse de modo justo o desenvolvimento da capacidade de trabalhar

manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das

capacidades de trabalho intelectual para a formação de dirigentes. O dirigente

deveria ter aquele mínimo de cultura geral que lhe permitisse criar

autonomamente a solução justa, ou pelo menos saber julgar entre as soluções

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projetadas pelos especialistas e, conseqüentemente, escolher a que a mais

justa do ponto de vista sintético da técnica política.

A escola unitária ou de formação geral, deveria assumir a tarefa de

inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los elevado a um certo grau

de maturidade e capacidade para a criação intelectual e prática e a uma certa

autonomia na orientação e na iniciativa. A transformação da atividade escolar

requer uma enorme ampliação da organização prática da escola, isto é, dos

prédios, do material científico, do corpo docente, etc. Portanto, a escola unitária

deveria ser em tempo integral, com dormitórios, refeitórios, bibliotecas

especializadas, salas adequadas para o trabalho de seminários, etc.

Essa escola deveria corresponder ao período representado, hoje, pela

Educação Básica. O nível inicial não deveria ultrapassar três ou quatro anos,

seria o ensino das primeiras noções “instrumentais” (ler, escrever, fazer contas,

geografia, história). Desenvolver direitos e deveres, noções de estado e da

sociedade. O resto do curso não deveria durar mais de seis anos, de modo

que, aos quinze ou dezesseis anos já deveriam estar concluídos todos os

graus da escola unitária.

A última fase da escola unitária deve ser concebida e organizada como a

fase decisiva, na qual se tenderia a criar os valores fundamentais do

humanismo, a autodisciplina intelectual e a autonomia moral necessárias a

uma posterior especialização. O estudo e o aprendizado dos métodos criativos

na ciência e na vida deveriam começar nesta última fase da escola, não sendo

um monopólio da universidade ou ser deixado ao acaso da vida prática: esta

fase escolar já deve contribuir para desenvolver o elemento da

responsabilidade autônoma nos indivíduos, deve ser uma escola criadora.

Com relação ao trabalho do professor, Gramsci adverte: “um professor

medíocre pode conseguir que os alunos se tornem mais instruídos, mas não

conseguirá que sejam mais cultos” (GRAMSCI, 2001, p. 45). Nesse caso, o

professor desenvolverá somente a consciência burocrática, a parte mecânica

da escola, ficando por conta do próprio aluno e do seu ambiente social

organizar o seu conhecimento.

Gramsci alerta que as crianças oriundas de classes sociais diferentes

possuem hábitos distintos e a escola deve criar mecanismos para transpor

essas barreiras: cabe a escola e também a família exercitar hábitos de

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autodisciplina, de compostura física e concentração psíquica, hábitos estes,

que dificilmente se adquire por conta própria, uma vez que demanda de

sacrifícios e atos metódicos. Assim retorna-se à participação realmente ativa do

aluno na escola, que só pode existir se a escola for ligada à vida, por isso a

importância do rigor necessário, visto que,

...o estudo é também um trabalho, e muito cansativo, com um tirocínio particular próprio, não só intelectual, mas também muscular e nervoso; é um processo de adaptação, é um hábito adquirido com esforço, aborrecimento e até mesmo sofrimento (GRAMSCI, 2001, p. 51).

Segundo Nosella (2004), ao estabelecer de cinco a oito horas de

estudos, sentados à mesa, Gramsci desfaz a idéia de que o trabalho intelectual

seja algo meramente criativo,

... estabelecer o trabalho industrial moderno como princípio educativo, significa também, de certa forma, introduzir na escola e na educação familiar, a disciplina moderna (inclusive como o fordismo a pensou): Essa disciplina visa adquirir a autodisciplina, a autonomia e a liberdade.... [...] Enfim, Gramsci estabelece o trabalho industrial moderno como princípio geral de toda a educação familiar e escolar; mas é com base na evolução psicológica do homem que estabelece princípios educativos metodológicos (p.126).

Com relação à concepção didática e metodológica da escola, Gramsci

assume o método historicista, que se contrapõe ao método enciclopédico

segundo o qual é a forma de vivificar e recriar a ciência, ou seja, refazer o

caminho percorrido pelos homens para avançar mais um pouco. Assim

recomenda,

...toda disciplina nada mais é que uma série de problemas resolvidos pelos homens numa certa época e região da terra, de uma certa forma e em certas condições. Contem essa história aos alunos e façam com que eles a revivam dramaticamente, recriando assim a problemática e as soluções. Avaliem se de fato aqueles problemas de geometria, matemática, de física, de química, de biologia, de lingüística foram resolvidos apenas para poucos ou para alguns (GRAMSCI Apud NOSELLA, 1992, p.23).

Gramsci aponta a importância dos métodos criativos para o aprendizado

e que os mesmos devem permear todo o curso, assim como, a escola deve ser

uma escola criadora. Isso não significa que a escola deva ser de inventores e

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descobridores, mas que utilize o método de investigação e conhecimento e não

um programa que obrigue a inovação à qualquer custo, uma vez que,

...descobrir por si mesmo uma verdade, sem sugestões e ajudas exteriores, é criação (mesmo que a verdade seja velha) e demonstra a posse do método. Por isso, a atividade escolar fundamental se desenvolverá nos seminários, nas bibliotecas, nos laboratórios experimentais (GRAMSCI, 2001, p. 40).

Assim, para dar conta de uma formação integral, coloca-se a

necessidade de uma educação pensada de forma séria, conforme expressa

Manacorda (2000, p.68) “a exigência de uma educação austera”, que é uma

condição considerada fundamental para a efetivação da escola única do

trabalho.

A rigidez e seriedade com que tratava a educação pode ser observada

em uma de suas cartas remetida à sua mãe na qual Gramsci relata que sua

sobrinha Mea (Edmea) poderia ser mais madura intelectualmente. Observa

ainda: “Mea não tem lido, senão os livros escolares”. Chama atenção dizendo

que “Em suma deve procurar habituá-la a trabalhar com disciplina e a limitar

um pouco a sua vida ‘mundana’: ‘menos êxitos de vaidade, mais seriedade em

substância’”(GRAMSCI, 1978, p.163). Gramsci atribui esse atraso observado

no desenvolvimento intelectual de sua sobrinha a uma educação

condescendente, desprovida de todo o elemento de coerção (MANACORDA,

2000, p.79).

Dessa forma, a concepção de escola unitária de Gramsci torna-se

possível tendo-se em vista o trabalho como princípio educativo e a íntima

relação entre trabalho e educação. Porém, à elevação da consciência e

superação da indiferença por parte do educador resulta em uma revisão

constante de sua prática de ensino. A revisão crítica da prática do educador

pode fazer com que os educandos sejam formados para o trabalho e também

para a prática social. Isso requer uma formação que não somente se dedique à

prática produtiva, mas a complexa totalidade da realidade humana, como é o

caso daquela presente na relação entre os sujeitos, deles consigo mesmos,

com a sociedade e com a cultura. Em termos,

... não existe unidade entre escola e vida e, por isso, não existe unidade entre instrução e educação. Daí que é possível dizer que, na

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escola, o nexo entre instrução e educação somente pode ser representado pelo trabalho vivo do professor, na medida em que o mestre é consciente do contraste entre o tipo de sociedade e de cultura que ele representa e o tipo de sociedade e de cultura representado pelos alunos, sendo consciente também de sua tarefa, que consiste em acelerar e em disciplinar a formação da criança conforme o tipo superior em luta com o tipo inferior... (GRAMSCI, 1995: 131).

.Assim, com a união entre escola e vida, haveria a possibilidade de se

formar técnicos em diferentes ramos profissionais, e também intelectuais,

conforme vislumbrava Gramsci, sujeitos capazes de serem protagonistas no

domínio econômico, sócio-político e cultural. Por sua vez, os docentes-

intelectuais teriam, conforme as suas condições, de não se desvincularem da

realidade, mas de se ligar a ela organicamente, seja para manter a hegemonia

da classe no poder ou para questioná-la, tendo em vista os interesses dos

subalternos ou daqueles compõem a hegemonia.

No caso da vinculação dos docentes-intelectuais com as classes

populares, ter-se-ia muitas possibilidades de subverter a prática de ensino

tornando-a uma práxis, uma ação teórico-prática capaz de romper com a

indiferença ético-política, propiciada, sobretudo, pela elevação da consciência

de todos os envolvidos no processo de ensino aprendizagem.

4. O Americanismo e Fordismo e as transformações na educação e na sociedade

Gramsci analisa o fenômeno “Americanismo e Fordismo”, como uma

revolução passiva e de regulação dos grupos sociais enquanto organizador do

processo de trabalho, no qual define:

...o americanismo e o fordismo resultam da necessidade imanente de chegar à organização de uma economia programática [...]. Questão de saber se o americanismo pode constituir uma “época” histórica, ou seja, se pode determinar um desenvolvimento gradual do tipo [...] das “revoluções passivas” [...], ou se, ao contrário, representa apenas a acumulação molecular de elementos destinados a produzir uma “explosão”, ou seja, uma revolução de tipo francês (GRAMSCI, 2001 p. 241).

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Gramsci fala de revolução passiva, na qual o americanismo é concebido

como uma “época histórica”, uma época, que expande características como, o

crescimento do consumo de massa e a intervenção direta do Estado na

economia. Nessa forma de revolução as classes dominantes reagem a

pressões que provêm das classes subalternas, que mesmo não estando ainda

suficientemente organizada, já são capazes de impor um novo comportamento

às classes hegemônicas; esta reação, embora tenha como finalidade principal

a conservação dos fundamentos da velha ordem, implica o acolhimento de

“uma certa parte” das reivindicações provindas das classes subalternas ao lado

da conservação do domínio das velhas classes.

Para Gramsci, essa nova forma de organizar o trabalho não se restringe

somente ao mundo da produção, interfere também na esfera da reprodução

social, uma vez que não se limita ao campo econômico, implica na formação e

adesão de uma nova ideologia. Portanto, são as questões político-ideológicas

do “americanismo” que contribuem para a hegemonia formada a partir desse

novo modelo, na qual, prevalecem os mecanismos de coerção e opressão junto

à classe trabalhadora e trazem novas formas de organização também para a

educação.

Essa transformação social trouxe para a escola, segundo Nosella

(1992), “a autêntica escola do trabalho como aquela que se inspira no espírito

da laboriosidade do trabalho moderno, ou seja, a organicidade entre fábrica e

escola deve ocorrer em nível de método e não de técnicas”, cada qual deve

manter a sua especificidade e objetivos, mas inspirando-se e iluminando-se

mutuamente.

Em sua análise, Gramsci aponta o “Americanismo e Fordismo” como

forma de ultrapassar o “velho individualismo econômico” com a instauração de

uma economia “programática”, isto é, com uma organização pré-estabelecida.

Investiga-a como uma nova possibilidade de expansão produtiva pelas teorias

de organização científica do trabalho de Taylor, implementadas na indústria

automobilística Ford dos Estados Unidos, e a construção de um novo tipo de

trabalhador necessário para a consolidação da hegemonia industrial

americana.

O “Fordismo” com suas esteiras de montagem para produção em

massa, que introduziram mecanismos de aceleração do trabalho, nos quais o

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trabalhador é submetido a movimentos ininterruptos e repetitivos comportando-

se de forma mecânica e passiva, aliado ao Taylorismo, ou seja, a redefinição

dos tempos, movimentos e funções no processo de trabalho, trouxe expressivo

aumento da produtividade na indústria, porém, nas palavras de Gramsci,

...Taylor expressa com brutal cinismo o objetivo da sociedade americana: desenvolver em seu grau máximo, no trabalhador, os comportamentos maquinais e automáticos, quebrar a velha conexão psicofísica de trabalho profissional qualificado, que exigia uma certa participação ativa da inteligência, da fantasia, da iniciativa do trabalhador, e reduzir as operações produtivas Apenas ao aspecto físico maquinal (GRAMSCI, 2001, p.266),

Gramsci, em sua análise, evidencia a resistência que por certo haveria

na Itália e em toda a Europa diante da introdução de uma mudança deste

porte, principalmente pelas forças subalternas, uma vez que as mesmas

“teriam de ser ‘manipuladas’ e racionalizadas de acordo com as novas metas”

(GRAMSCI, 2001, p.241). Isso porque, na Europa, a antiga camada formada

pela aristocracia, segundo ele “parasitas” não trabalham e vivem de rendas, e,

portanto, dependem do trabalho alheio, querem conciliar esse modelo com o

sistema americano. Ao que Gramsci diz “A Europa quer fazer omelete sem

quebrar os ovos”, ou em outras palavras, usufruir os benefícios do

americanismo no poder da concorrência, porém, sem alterar o seu estilo de

vida europeu, assim,

...o americanismo exige uma classe trabalhadora e “não parasitária”, como a que predomina na sociedade européia caracterizada pela riqueza histórica do passado, pode-se dizer então que “quanto mais antiga a história de um país, tanto mais numerosa e gravosas são estas sedimentações de massas ociosas e inúteis que vivem do patrimônio dos avós” (GRAMSCI, 2001, p. 243).

Contudo, a questão histórica de cada formação social se coloca como

decisiva quando ocorrem alterações nas bases produtivas e conseqüentemente

na forma social. Gramsci afirma que “no exame deste problema, não está

imediatamente em questão à forma de organização econômico-social, mas a

racionalidade das proporções entre os diversos setores da população no

sistema social existente” (GRAMSCI, 2001, p.247).

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Na medida em que deveria haver uma “conscientização” dos

trabalhadores para melhor aderirem a um complexo processo de mudança,

Gramsci percebe que a racionalização americana determinou a necessidade de

se conceber um novo tipo humano apático, ou seja, regido por uma nova ética

que fosse adequada ao novo modelo de trabalho e de processo produtivo. Para

tanto, precisava de escolas organizadas na mesma perspectiva, ou seja,

fragmentadas, reguladoras, dissociadas de um contexto histórico e

humanizador, que visava à formação para o atendimento direto ao sistema de

produção.

A vida industrial exigia que o trabalhador apresentasse determinadas

características psicofísicas, adaptadas a condições de trabalho específicas,

como referentes a condições de “nutrição, de habitação, de costumes, etc.”

(GRAMSCI, 2001, p.251), características estas que necessitavam ser

“adquiridas” pelos trabalhadores, visto que não eram “naturais” do ser humano.

Para tanto, seria necessária a construção de uma “nova ética sexual”,

regulamentada para as necessidades dos novos métodos de produção e de

trabalho, revelando uma aparência de “puritanismo” ao impor uma “rígida

disciplina dos instintos sexuais” pela regulamentação e estabilidade das

relações sociais através do fortalecimento da família monogâmica.

Do mesmo modo em que a questão sexual foi regulamentada, também

entrou em pauta a luta contra o uso do álcool, que passou a ser entendido

como “o mais perigoso agente de destruição das forças de trabalho”

(GRAMSCI, 2001, p.267), pelo fato de consumir as energias e a eficiência

“muscular-nervosa” do trabalhador.

Deste modo, Gramsci reflete que o industrialismo, em sua história,

sempre buscou desconstruir a “animalidade” do homem – entendida como os

instintos mais naturais, “animalescos e primitivos” – buscando sedimentar

normas e hábitos no ser humano que se enquadrem às exigências dos

processos produtivos e a formas mais complexas de vida social e coletiva, por

meio de diretrizes “de ordem, de exatidão, de precisão sempre novos, mais

complexos e rígidos” (GRAMSCI, 2001, p.262).

Portanto, as mudanças na forma de ser, viver e educar são colocadas

como uma ruptura do velho pelo novo, trazendo mudanças no âmbito de toda a

vida social, nas palavras de Gramsci, “tiveram lugar através da coerção brutal,

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ou seja, através do domínio de um grupo social sobre todas as forças

produtivas da sociedade” (GRAMSCI, 2001, p.262).

A americanização, portanto, não exige somente um novo modelo de

homem, mas um determinado ambiente, educação, estrutura social e um

determinado tipo de Estado. Segundo Gramsci, este Estado é o liberal,

compreendido no sentido da efetiva liberdade política e no sentido fundamental

da livre iniciativa e do egoísmo econômico voraz que chega com meios

próprios, através do seu desenvolvimento histórico.

5. Considerações Finais

Na reflexão de Gramsci, a dialética entre o educando e o educador

resguarda sempre o trabalho como fundamento da sociabilidade emancipada

do homem, ganha sempre novas dimensões. Gramsci parte da escola do

trabalho, na qual prevalece a auto-educação, mas que possibilita um largo

aprendizado a quem se pretende educador, pois é aqui – na auto-educação do

trabalho – que se localiza a via para a emancipação humana.

Gramsci aponta claramente as tarefas dos intelectuais: Interpretar o

momento histórico, ter clareza da missão de cada sujeito nesse momento,

atuar na elaboração de um projeto para a sociedade que pressione a adoção

de posições mais avançadas, estas devem ser as atribuições do “intelectual

orgânico” das classes subalternas, transformadoras.

Com base nisso, pode-se então questionar: o intelectual orgânico dos

jovens e adultos trabalhadores poderia ser o professor? Estaria ele ligado

diretamente a esta grande causa, compondo e defendendo a integridade

desse grupo na escola e suas idéias? Se não o professor quem seria?

Portanto, as contribuições de Gramsci aqui destacadas não podem ser

reduzidas somente a uma análise histórica. Isso significaria abrir mão da

interpretação que o autor atribui ao papel social e político dos sujeitos. É

necessária a apropriação desses pressupostos e a transposição, à luz da atual

realidade educacional, econômica política e social, para a oferta de uma

educação “unitária” ou “integrada” que contemple de forma sólida os

conhecimentos da cultura geral e da educação para o trabalho em nível

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Page 22: PROFESSORES DO PROEJA LÊEM GRAMSCI: EM BUSCA DA

técnico, conforme se preconiza na Educação profissional integrada à Educação

de Jovens e Adultos – PROEJA.

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