os tribunais nas sociedades contemporaneas, boaventura

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http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm Página 1 OS TRIBUNAIS NAS SOCIEDADES CONTEMPORANEAS 1 Boaventura de Sousa Santos Maria Manuel Leitão Marques João Pedroso Um dos fenômenos mais intrigantes da sociologia política e da ciência política contemporânea é o recente e sempre crescente protagonismo social e político dos tribunais: um pouco por toda a Europa e por todo o continente americano, os tribunais, os juízes, os magistrados do Ministério Público, as investigações da polícia criminal, as sentenças judiciais surgem nas primeiras páginas dos jornais, nos noticiários televisivos e são tema frequente de conversa entre os cidadãos. Trata-se de um fenômeno novo ou apenas de um fenômeno que, sendo velho, colhe hoje uma nova atenção pública? Ao longo do nosso século, os tribunais sempre foram, de tempos a tempos, polêmicos e objeto de aceso escrutínio público. Basta recordar os tribunais da República de Weimar logo depois da revolução alemã (1918) e os seus critérios duplos na punição da violência política da extrema direita e da extrema esquerda; o Supremo Tribunal dos Estados Unidos e o modo como tentou anular a legislação do New Deal de Roosevelt no início dos anos 30; os tribunais italianos de finais da década de 60 e da década de 70 que, através do “uso alternativo do direito”, procuraram reforçar a garantia jurisdicional dos direitos sociais; o Supremo Tribunal do Chile e o modo como tentou impedir o processo de nacionalizações levado a cabo por Allende no princípio da década de 70. Contudo, esses momentos de notoriedade se distinguem do protagonismo dos tempos mais recentes em dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, em quase todas as situações do passado os tribunais se destacaram pelo seu conservadorismo, pelo 1 Este texto. foi originalmente concebido como quadro teórico de um projeto de investigação sobre “Os tribunais na sociedade portuguesa”, dirigido por Boaventura de Sousa Santos e realizado pelos autores. Esse estudo, o primeiro do seu tipo realizado em Portugal, consistiu, por um lado, na análise sociológica do desempenho dos tribunais de primeira instância nos domínios da justiça civil e da justiça penal, especialmente no período de 1989 a 1993, e, por outro lado, na análise das representações sociais dos portugueses sobre a justiça, o conhecimento do direito e a experiência da litigiosidade à luz dos dados de um inquérito por questionário, de âmbito nacional. A versão integral do relatório final de investigação, em cinco volumes, está à disposição dos investigadores na biblioteca do Centro de Estudos Judiciários, de Lisboa, entidade que financiou a investigação. Uma versão reduzida será em breve publicada pelas Edições Afrontamento, dó Porto. No tratamento estatístico da base de dados da justiça portuguesa, assim como na análise do inquérito aos cidadãos sobre a justiça, os investigadores contaram com o apoio de Pedro Ferreira. Na preparação final deste texto para publicação os autores contaram com a colaboração de Carlos Nolasco.

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    OS TRIBUNAIS NAS SOCIEDADES CONTEMPORANEAS1

    Boaventura de Sousa Santos

    Maria Manuel Leito Marques

    Joo Pedroso

    Um dos fenmenos mais intrigantes da sociologia poltica e da cincia poltica

    contempornea o recente e sempre crescente protagonismo social e poltico dos

    tribunais: um pouco por toda a Europa e por todo o continente americano, os tribunais,

    os juzes, os magistrados do Ministrio Pblico, as investigaes da polcia criminal,

    as sentenas judiciais surgem nas primeiras pginas dos jornais, nos noticirios

    televisivos e so tema frequente de conversa entre os cidados. Trata-se de um

    fenmeno novo ou apenas de um fenmeno que, sendo velho, colhe hoje uma nova

    ateno pblica?

    Ao longo do nosso sculo, os tribunais sempre foram, de tempos a tempos, polmicos

    e objeto de aceso escrutnio pblico. Basta recordar os tribunais da Repblica de

    Weimar logo depois da revoluo alem (1918) e os seus critrios duplos na punio

    da violncia poltica da extrema direita e da extrema esquerda; o Supremo Tribunal

    dos Estados Unidos e o modo como tentou anular a legislao do New Deal de

    Roosevelt no incio dos anos 30; os tribunais italianos de finais da dcada de 60 e da

    dcada de 70 que, atravs do uso alternativo do direito, procuraram reforar a

    garantia jurisdicional dos direitos sociais; o Supremo Tribunal do Chile e o modo como

    tentou impedir o processo de nacionalizaes levado a cabo por Allende no princpio

    da dcada de 70.

    Contudo, esses momentos de notoriedade se distinguem do protagonismo dos tempos

    mais recentes em dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, em quase todas as

    situaes do passado os tribunais se destacaram pelo seu conservadorismo, pelo

    1 Este texto. foi originalmente concebido como quadro terico de um projeto de investigao sobre Os tribunais na sociedade portuguesa, dirigido por Boaventura de Sousa Santos e realizado pelos autores. Esse estudo, o primeiro do seu tipo realizado em Portugal, consistiu, por um lado, na anlise sociolgica do desempenho dos tribunais de primeira instncia nos domnios da justia civil e da justia penal, especialmente no perodo de 1989 a 1993, e, por outro lado, na anlise das representaes sociais dos portugueses sobre a justia, o conhecimento do direito e a experincia da litigiosidade luz dos dados de um inqurito por questionrio, de mbito nacional. A verso integral do relatrio final de investigao, em cinco volumes, est disposio dos investigadores na biblioteca do Centro de Estudos Judicirios, de Lisboa, entidade que financiou a investigao. Uma verso reduzida ser em breve publicada pelas Edies Afrontamento, d Porto. No tratamento estatstico da base de dados da justia portuguesa, assim como na anlise do inqurito aos cidados sobre a justia, os investigadores contaram com o apoio de Pedro Ferreira. Na preparao final deste texto para publicao os autores contaram com a colaborao de Carlos Nolasco.

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    tratamento discriminatrio da agenda poltica progressista ou ds agentes polticos

    progressistas, pela sua incapacidade para acompanhar os processos mais inovadores

    de transformao social, econmica e poltica, muitas vezes sufragados pela maioria

    da populao. Em segundo lugar, tais intervenes notrias foram, em geral,

    espordicas, em resposta a acontecimentos polticos excepcionais, em momentos de

    transformao social e poltica profunda e acelerada.

    Em contraste, o protagonismo dos tribunais nos tempos mais recentes, sem favorecer

    necessariamente agendas ou foras polticas conservadoras ou progressistas, tal

    como elas se apresentam no campo poltico, parece assentar num entendimento mais

    amplo e mais profundo do controle da legalidade, que inclui, por vezes, a

    reconstitucionalizao do direito ordinrio como meio de fundamentar um garantismo

    mais ousado dos direitos dos cidados. Por outro lado, ainda que a notoriedade

    pblica ocorra em casos que constituem uma frao infinitesimal do trabalho judicirio

    suficientemente recorrente para no parecer excepcional e para, pelo contrrio,

    parecer corresponder a um novo padro do intervencionismo judicirio. Acresce que

    esse intervencionismo, ao contrrio dos anteriores, ocorre mais no domnio criminal

    do que nos domnios civil, laboral ou administrativo e assume como seu trao mais

    distintivo a criminalizao da responsabilidade poltica, ou melhor, da

    irresponsabilidade poltica. Tampouco se dirige, como as formas anteriores de

    intervencionismo, aos usos do poder poltico e s agendas polticas em que este se

    traduziu. Dirige-se antes aos abusos do poder e aos agentes polticos que os

    protagonizam.

    No entanto, o novo protagonismo judicirio partilha com o anterior uma caracterstica

    fundamental: traduz-se num confronto com a classe poltica e com outros rgos de

    poder soberano, nomeadamente com o Poder Executivo. E , por isso que, tal como

    anteriormente, se fala agora da judicializao dos conflitos polticos. Sendo certo que

    na matriz do Estado moderno o Judicirio uni poder poltico, titular de soberania, a

    verdade que ele s se assume publicamente como poder poltico na medida em que

    interfere com outros poderes polticos. Ou seja, a poltica judiciria, que uma

    caracterstica matricial do Estado moderno, s se afirma como poltica do Judicirio

    quando se confronta, no seu terreno, com outras fontes de poder poltico. Da que a

    judicializao dos conflitos polticos no possa deixar de se traduzir na politizao dos

    conflitos judicirios.

    Como veremos adiante, no a primeira vez que esse fenmeno ocorre, mas ocorre

    agora de modo diferente e por razes diferentes. Sempre que ele ocorre se levantam

    a respeito dos tribunais trs questes: a questo da legitimidade, a questo da

    capacidade e a questo d independncia.

    A questo da legitimidade s se pe em regimes democrticos e diz respeito

    formao da vontade da maioria por via da representao poltica obtida

    eleitoralmente. Como, na esmagadora maioria dos casos, os magistrados no so

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    eleitos, questiona-se o contedo democrtico do intervencionismo judicirio sempre

    que este interfere com o Poder Legislativo ou o Poder Executivo.

    A questo da capacidade diz respeito aos recursos de que os tribunais dispem para

    levar a cabo eficazmente a poltica judiciria. A capacidade dos tribunais

    questionada por duas vias. Por um lado, num quadro processual fixo e com recursos

    humanos e infraestruturais relativamente inelsticos, qualquer acrscimo exagerado

    da procura da interveno judiciria pode significar o bloqueio da oferta e, em ltima

    instncia, redundar em denegao da justia. Por outro lado, os tribunais no dispem

    de meios prprios para fazer executar as suas decises sempre que estas, para

    produzir efeitos teis, pressupem uma prestao ativa de qualquer setor da

    administrao pblica. Nesses domnios, que so aqueles em que a politizao dos

    litgios judiciais ocorre com maior frequncia, os tribunais esto merc da boa

    vontade de servios que no esto sob sua jurisdio e, sempre que tal boa vontade

    falha, repercute direta e negativamente na prpria eficcia da tutela judicial.

    A questo da independncia dos tribunais est intimamente ligada com a questo da

    legitimidade e com a questo da capacidade. A independncia dos tribunais um dos

    princpios bsicos do constitucionalismo moderno, pelo que pode parecer estranho

    que seja objeto de questionamento. E em verdade, ao contrrio do que sucede com a

    questo da legitimidade, o questionamento da independncia tende a ser levantado

    pelo prprio Poder Judicirio sempre que se v confrontado com medidas do Poder

    Legislativo ou do Poder Executivo que considera atentatrias a sua independncia. A

    questo da independncia surge assim em dois contextos. No contexto da

    legitimidade, sempre que o questionamento desta leva o Legislativo ou o Executivo a

    tomar medidas que o Poder Judicirio entende serem mitigadoras da sua

    independncia. Surge tambm no contexto da capacidade, sempre que o Poder

    Judicirio, carecendo de autonomia financeira e administrativa, se v dependente dos

    outros poderes para se apetrechar dos recursos que considera adequados para o bom

    desempenho das suas funes.

    As questes da legitimidade, da capacidade e da independncia assumem, como

    vimos, maior acuidade em momentos em que os tribunais adquirem maior

    protagonismo social e poltico. Esse fato tem um importante significado, tanto pelo que

    revela, como pelo que oculta. Em primeiro lugar, tal protagonismo produto de uma

    conjuno de fatores que evoluem historicamente, pelo que se torna necessrio

    periodizar a funo e o poder judiciais nos ltimos 150 anos a fim de podermos

    contextualizar melhor a situao presente. Em segundo lugar, as intervenes

    judiciais que so responsveis pela notoriedade judicial num dado momento histrico

    constituem uma frao nfima do desempenho judicirio, pelo que um enfoque

    exclusivo nas grandes questes pode ocultar ou deixar subanalisado o desempenho

    que na prtica cotidiana dos tribunais ocupa a esmagadora maioria dos recursos e do

    trabalho judicial. Em terceiro lugar, o desempenho dos tribunais, quer o desempenho

    notrio, quer o desempenho de rotina, num determinado pais ou momento histrico

    concreto, no depende to s de fatores polticos, como as questes da legitimidade,

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    da capacidade e da independncia podem fazer crer. Depende de modo decisivo de

    outros fatores e nomeadamente dos trs seguintes: do nvel de desenvolvimento do

    pas e, portanto, da posio que este ocupa no sistema mundial e na economia-

    mundo; da cultura jurdica dominante em termos dos grandes sistemas ou famlias de

    direito em que os comparatistas costumam dividir o mundo; e do processo histrico

    por via do qual essa cultura jurdica se instalou e se desenvolveu (desenvolvimento

    orgnico; adoo voluntarista de modelos externos; colonizao etc.).

    Uma anlise sociolgica do sistema judicirio no pode assim deixar de abordar as

    questes de periodizao, do desempenho judicial de rotina ou de massa, e dos

    fatores sociais, econmicos, polticos e culturais que condicionam historicamente o

    mbito e a natureza da judicializao da conflitualidade interindividual e social num

    dado pas ou momento histrico.

    Os tribunais e o Estado moderno

    Os tribunais so um dos pilares fundadores do Estado constitucional moderno, um

    rgo de soberania de par com o Poder Legislativo e o Poder Executivo. No entanto,

    o significado sociopoltico dessa postura constitucional tem evoludo nos ltimos 150

    ou 200 anos. Essa evoluo tem alguns pontos em comum nos diferentes pases, no

    s porque os estados nacionais partilham o mesmo sistema interestatal, mas tambm

    porque as transformaes polticas so em parte condicionadas pelo desenvolvimento

    econmico, que ocorre a nvel mundial no mbito da economia do mundo capitalista

    implantada desde o sculo XV Mas, por outro lado, essas mesmas razes sugerem

    que a evoluo varia significativamente de Estado para Estado, consoante a posio

    no sistema interestatal e da sociedade nacional a que respeita no sistema da

    economia-mundo.

    Por essa razo, a periodizao da postura scio-poltica dos tribunais que a seguir

    apresentamos tem sobretudo em mente a evoluo nos pases centrais, mais

    desenvolvidos, do sistema mundial. A evoluo do sistema judicial em pases

    perifricos e semiperifricos (como Portugal, Brasil etc.) pauta-se por parmetros

    relativamente diferentes. Como se compreender luz do que ficou dito acima, essa

    evoluo comporta algumas variaes em funo da cultura jurdica dominante

    (tradio jurdica europeia continental; tradio jurdica anglo-sax etc.), mas tais

    variaes so pouco relevantes para os propsitos analticos deste trabalho.

    Distinguimos trs grandes perodos no significado sociopoltico da funo judicial nas

    sociedades modernas: o perodo do Estado liberal, o perodo do Estado-providncia

    e o perodo atual, que, com pouco rigor, podemos designar por perodo da crise do

    Estado-providncia.

    O perodo do Estado liberal

    Esse perodo cobre todo o sculo XIX e prolonga-se at a Primeira Guerra Mundial.

    O fim da Primeira Guerra Mundial marca a emergncia de uma nova poltica do

    Estado, a qual, no entanto, pouco desenvolvimento conhece no domnio da funo e

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    do poder judicial, pelo que o perodo entre as duas guerras , nesse domnio, um

    perodo de transio entre o primeiro perodo e o segundo perodo. Em vista disso,

    pela sua longa durao histrica, o primeiro perodo particularmente importante para

    a consolidao do modelo judicial moderno. Esse modelo se assenta nas seguintes

    ideias:

    1. A teoria da separao dos poderes conforma a organizao do poder poltico e de

    tal maneira que, por via dela, o Poder Legislativo assume uma clara predominncia

    sobre os demais, enquanto o poder judicial , na prtica, politicamente

    neutralizado2. (1)

    2. A neutralizao poltica do poder judicial decorre do princpio da legalidade, isto ,

    da proibio de os tribunais decidirem contra legem e do princpio, conexo com o

    primeiro, da subsuno racional-formal nos termos do qual a aplicao do direito

    uma subsuno lgica de fatos a normas e, como tal, desprovida de referncias

    sociais, ticas ou polticas. Assim, os tribunais se movem num quadro jurdico-poltico

    pr-constitudo, apenas lhes competindo garantir concretamente a sua vigncia. Por

    essa razo, o poder dos tribunais retroativo, ou acionado retroativamente, isto ,

    com o objetivo de reconstituir uma realidade normativa plenamente constituda. Pela

    mesma razo, os tribunais so a garantia de que o monoplio estatal da violncia

    exercido legitimamente.

    3. Alm de retrospectivo, o poder judicial reativo, ou seja, s atua quando solicitado

    pelas partes ou por outros setores do Estado. A disponibilidade dos tribunais para

    resolver litgios , assim, abstrata e s se converte numa oferta concreta de resoluo

    de litgios na medida em que houver uma procura social efetiva. Os tribunais nada

    devem fazer para influenciar o tipo e o nvel concretos da procura de que so alvo.

    4. Os litgios de que se ocupam os tribunais so individualizados no duplo sentido de

    que tm contornos claramente definidos por critrios estritos de relevncia jurdica e

    de que ocorrem entre indivduos. Por outro lado, as decises judiciais sobre eles

    proferidas s valem, em princpio, para eles, no tendo por isso validade geral.

    5. Na resoluo dos litgios dada total prioridade ao princpio da segurana jurdica

    assente na generalidade e na universalidade da lei e na aplicao, idealmente

    automtica, que ela possibilita. A insegurana substantiva do futuro assim

    contornada, quer pela securizao processual do presente (a observncia das regras

    de processo), quer pela securizao processual do futuro (o princpio do caso

    julgado).

    6. A independncia dos tribunais reside em estarem total e exclusivamente

    submetidos ao imprio da lei. Assim concebida, a independncia dos tribunais uma

    garantia eficaz da proteo da liberdade, entendida esta como vnculo negativo, ou

    seja, como prerrogativa de no-interferncia. A independncia diz respeito direo

    2 Sobre a neutralizao poltica do poder judicial no Estado Liberal ver, em especial, Ferraz Jr. (1994); Lopes (1994); e Campilongo (1994).

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    do processo decisrio e, portanto, pode coexistir com a dependncia administrativa e

    financeira dos tribunais face ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo.

    Essa caracterizao dos tribunais no perodo liberal reveladora do diminuto peso

    poltico destes, enquanto poder soberano, perante o Poder Legislativo e o Poder

    Executivo. Eis as manifestaes principais dessa subalternizao poltica. Esse

    perodo testemunhou o desenvolvimento vertiginoso da economia capitalista no

    seguimento da Revoluo Industrial e, com ele, a ocorrncia de macios

    deslocamentos de pessoas, o agravamento sem precedentes das desigualdades

    sociais, a emergncia da chamada questo social (criminalidade, prostituio,

    insalubridade, habitao degradada etc.). Tudo isso deu origem a uma exploso dos

    conflitos sociais de to vastas propores que foi em relao a ela que se definiram

    as grandes clivagens polticas e sociais da poca. Ora, os tribunais ficaram quase

    totalmente margem desse processo, dado que o seu mbito funcional se limitava

    microlitigiosidade interindividual, extravasando dele a macrolitigiosidade social.

    Pela mesma razo, os tribunais ficaram margem dos grandes debates e das grandes

    lutas polticas sobre o modelo ou o padro de justia distributiva a adotar na nova

    sociedade, a qual, por tanto romper com a sociedade anterior, parecia trazer no seu

    bojo uma nova civilizao a exigir critrios novos de sociabilidade. Confinados como

    estavam administrao da justia retributiva, tiveram de aceitar como um dado os

    padres de justia distributiva adotados pelos outros poderes. Foi assim que a justia

    retributiva se transformou numa questo de direito, enquanto a justia distributiva

    passou a ser uma questo poltica. Alis, sempre que excepcionalmente os padres

    de justia distributiva foram sujeitos a escrutnio judicial, os tribunais.se mostraram

    refratrios prpria ideia de justia distributiva, privilegiando sistematicamente

    solues minimalistas. Como sabemos, o Estado liberal, apesar de se ter assumido

    como um Estado mnimo, continha em si as potencialidades para ser um Estado

    mximo, e a verdade que desde cedo meados do sculo XIX na Inglaterra e na

    Frana, anos 30 do nosso sculo nos Estados Unidos comeou a intervir na

    regulao social e na regulao econmica, muito para alm dos patamares do

    Estado policial (Santos, 1994, pp.103-18). Sempre que essa regulao foi, por

    qualquer razo, objeto de litgio judicial, os tribunais tenderam a privilegiar

    interpretaes restritivas da interveno do Estado.

    Para alm disso, a independncia dos tribunais se assentava em trs dependncias

    frreas. Em primeiro lugar, a dependncia estrita da lei, segundo o princpio da

    legalidade; em segundo lugar, a dependncia da iniciativa, vontade ou capacidade

    dos cidados para utilizarem os tribunais, dado o carter reativo da interveno

    destes; em terceiro lugar, a dependncia oramentria em relao ao Poder

    Legislativo e ao Poder Executivo na determinao dos recursos humanos e materiais

    julgados adequados para o desempenho cabal da funo judicial.

    Podemos, pois, concluir que, nesse perodo, a posio institucional dos tribunais os

    predisps uma prtica judiciria tecnicamente exigente, mas eticamente frouxa,

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    inclinada a traduzir-se em rotinas e, por consequncia, a desembocar numa Justia

    trivializada. Nessas condies, a independncia dos tribunais foi o outro lado do seu

    desarme poltico. Uma vez neutralizados politicamente, os tribunais independentes

    passaram a ser um ingrediente' essencial da legitimidade poltica dos outros poderes,

    por garantirem que a produo legislativa destes chegava aos cidados sem

    distores.

    O perodo do Estado providncia

    As condies poltico-jurdicas descritas acima comearam a se alterar, com

    diferentes ritmos nos diferentes pases, a partir do final do sculo XIX, mas s no

    perodo posterior Segunda Guerra Mundial surgiu consolidada nos pases centrais

    uma nova forma poltica do Estado: o Estado-providncia. No cabe aqui analisar em

    detalhe o Estado-providncia, pelo que nos confinamos ao impacto dele no significado

    sociopoltico dos tribunais.

    1. A teoria da separao dos poderes colapsa, sobretudo em vista da predominncia

    assumida pelo Poder Executivo. A governamentalizao da produo do direito cria

    um novo instrumentalismo jurdico que, a cada momento, entra em confronto com o

    mbito judicial clssico (Ferraz Jr., 1994, pp. 18 e ss.).

    2. O novo instrumentalismo jurdico traduz-se em sucessivas exploses legislativas e,

    consequentemente, numa sobrejuridificao da realidade social, que pe fim

    coerncia e unidade do sistema jurdico. Surge um caos normativo, que torna

    problemtica a vigncia do princpio da legalidade e impossvel a aplicao da

    subsuno lgica.

    3. O Estado-providncia distingue-se pelo seu forte componente promocional do bem-

    estar, ao lado da tradicional componente repressiva. A consagrao constitucional dos

    direitos sociais e econmicos, tais como o direito ao trabalho e ao salrio justo,

    segurana no emprego, sade, educao, habitao, segurana social

    significa, entre outras coisas, a juridificao da justia distributiva. A liberdade a

    proteger juridicamente deixa de ser um mero vnculo negativo para passar a ser um

    vnculo positivo, que s se concretiza mediante prestaes do Estado.

    Trata-se, em suma, de uma liberdade que, longe de ser exercida contra o Estado,

    deve ser exercida pelo Estado. O Estado assume assim a gesto da tenso, que ele

    prprio cria, entre justia social e igualdade formal; dessa gesto so incumbidos,

    ainda que de modo diferente, todos os rgos e poderes do Estado.

    4. A proliferao dos direitos, sendo, em parte, uma consequncia da emergncia na

    sociedade de atores coletivos em luta pelos direitos, , ela prpria, causa do

    fortalecimento e da proliferao de tais atores e dos interesses coletivos de que eles

    so portadores. A distino entre litgios individuais e litgios coletivos torna-se

    problemtica na medida em que os interesses individuais aparecem, de uma ou de

    outra forma, articulados com interesses coletivos.

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    Essa descrio sugere, por si, que o significado sociopoltico dos tribunais nesse

    perodo muito diferente do que detinham no primeiro perodo. Em primeiro lugar, a

    juridificao do bem-estar social abriu caminho para novos campos de litigao nos

    domnios laboral, civil, administrativo e da segurana social, o que, nuns pases mais

    do que noutros, veio a se traduzir no aumento exponencial da procura judiciria e na

    consequente exploso da litigiosidade. As respostas que foram dadas a esse

    fenmeno variaram de pas para pas, mas incluram quase sempre algumas das

    seguintes reformas: informalizao da justia; reapetrechamento dos tribunais em

    recursos humanos e infraestruturas, incluindo a informatizao e a automatizao da

    justia; criao de tribunais especiais para a pequena litigao de massas, tanto em

    matria civil como criminal; proliferao de mecanismos alternativos de resoluo de

    litgios (mediao, negociao, arbitragem); reformas processuais vrias (aes

    populares, tutela de interesses difusos, etc.)3. A exploso da litigao deu maior

    visibilidade social e poltica aos tribunais e as dificuldades que a oferta da tutela judicial

    teve, em geral, para responder ao aumento da procura suscitaram com grande

    acuidade a questo da capacidade e as questes com ela conexas: as questes da

    eficcia, da eficincia e da acessibilidade do sistema judicial.

    Em segundo lugar, a distribuio das responsabilidades promocionais do Estado por

    todos os seus poderes fez com que os tribunais tivessem de se confrontar com a

    gesto da sua cota-parte de responsabilidade poltica. A partir desse momento, estava

    comprometida a simbiose entre independncia dos tribunais e neutralizao poltica

    que caracterizara o primeiro perodo. Em vez de simbiose passou a existir tenso,

    uma tenso potencialmente dilemtica. No momento em que a justia social, sob a

    forma de direitos, se confrontou, no terreno judicirio, com a igualdade formal, a

    legitimao processual-formal em que os tribunais se tinham apoiado no primeiro

    perodo entrou em crise. A consagrao constitucional dos direitos sociais tornou mais

    complexa e poltica a relao entre a Constituio e o direito ordinrio e os tribunais

    foram arrastados entre as condies do exerccio efetivo desses direitos. Nesse

    sentido, os efeitos extrajudiciais da atuao dos tribunais passaram a ser o verdadeiro

    critrio da avaliao do desempenho judicial e, nessa medida, esse desempenho

    deixou de ser exclusivamente retrospectivo para passar a ter uma dimenso

    prospectiva.

    O dilema em que se colocaram os tribunais foi o seguinte. Se continuassem a aceitar

    a neutralizao poltica vinda do perodo anterior, perseverando no mesmo padro de

    desempenho clssico, reativo, de microlitigao, poderiam certamente continuar a ver

    reconhecida pacificamente pelos outros poderes do Estado a sua independncia, mas

    f-lo-iam, correndo o risco de se tornarem socialmente irrelevantes e de, com isso,

    poderem ser vistos pelos cidados como estando, de fato, na dependncia do Poder

    Executivo e do Poder Legislativo. Pelo contrrio, se aceitassem a sua cota-parte de

    responsabilidade poltica na atuao promocional do Estado - nomeadamente atravs

    de uma vinculao mais estreita do direito ordinrio Constituio, de modo a garantir

    3 Sobre esse tema, ver Santos (1994, pp. 141-61) e a bibliografia a citada.

  • http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm Pgina 9

    uma tutela mais eficaz dos direitos de cidadania -, corriam o risco de entrar em

    competio com os outros poderes e de, como poder mais fraco, comear a sofrer as

    presses do controle externo, quer por parte do Poder Executivo, quer por parte do

    Poder Legislativo, presses tipicamente exercidas por uma das trs vias: nomeao

    dos juzes para os tribunais superiores; controle dos rgos do poder judicial; gesto

    oramental.

    A independncia dos tribunais s se tornou uma verdadeira e importante questo

    poltica quando o sistema judicial, ou alguns dos seus setores, decidiu optar pela

    segunda alternativa. A opo por uma ou outra alternativa resultou de muitos fatores,

    diferentes de pas para pas. Em alguns casos a opo foi clara e inequvoca,

    enquanto noutros a opo se transformou num objeto de luta no interior do Judicirio.

    Pode, no entanto, se afirmar em geral que a opo pela segunda alternativa, e pela

    consequente politizao do garantismo judicial, tendeu a ocorrer com maior

    probabilidade nos pases onde os movimentos sociais pela conquista dos direitos

    foram mais fortes, querem termos de implantao social, quer em termos de eficcia

    na conduo da agenda poltica. Por exemplo, nos anos 60, os movimentos sociais

    pelos direitos cvicos e polticos nos Estados Unidos da Amrica tiveram' um papel

    decisivo na judicializao dos litgios coletivos no domnio da discriminao racial, do

    direito habitao, educao e segurana social. No incio da dcada de 70, num

    contexto de forte mobilizao social e poltica que, alis, atravessou o prprio sistema

    judicial, a Itlia foi palco de uma luta pelas alternativas no interior do prprio Judicirio.

    Os setores mais progressistas, ligados Magistratura Democrtica, protagonizaram,

    atravs do movimento pelo uso alternativo do direito, o enfrentamento da contradio

    entre igualdade formal e justia social. Noutros pases, as opes foram menos claras

    e as lutas menos renhidas, variando muito o seu significado poltico. Por exemplo, nos

    pases escandinavos a corresponsabilizao poltica dos tribunais foi um problema

    menos agudo, dado o alto desempenho promocional dos outros poderes do Estado-

    providncia.

    Sempre que teve lugar, a desnaturalizao poltica dos tribunais tomou vrias formas.

    Assumir a contradio entre igualdade formal e justia social significou antes de mais

    que, em litgios interindividuais em que as partes tm condies sociais extremamente

    desiguais (patres/operrios; senhorios/inquilinos), a soluo jurdico-formal do litgio

    deixasse de ser um fator de segurana jurdica, para passar a ser um fator de

    insegurana jurdica. Para obviar tal efeito foi necessrio aprofundar o vnculo entre a

    Constituio e o direito ordinrio por via do qual se legitimaram decises praeter legem

    ou mesmo contra legem, no lugar das decises restritivas, tpicas do perodo anterior.

    O mesmo imperativo levou os tribunais a adotarem posies mais proativas em

    contraste com as posies reativas do perodo anterior em matria de acesso ao

    direito e no domnio da legitimidade processual, para solicitar a tutela de interesses

    coletivos e interesses difusos.

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    A mesma constitucionalizao ativa do direito ordinrio levou por vezes os tribunais a

    intervir no domnio da inconstitucionalidade por omisso, quer suprindo a falta de

    regulamentao de leis, quer pressionando para que ela tivesse lugar.

    O enfoque privilegiado nos efeitos extrajudiciais da deciso em detrimento da correo

    lgico-formal contribuiu para dar uma maior visibilidade social e meditica aos

    tribunais, potencializada tambm pela coletivizao da litigiosidade. Na medida em

    que, ao lado das decises que afetavam uns poucos indivduos, passaram a haver

    decises que afetavam grupos sociais vulnerveis fossem eles os trabalhadores, as

    mulheres, as minorias tnicas, os imigrantes, as crianas em idade escolar, os velhos

    a necessitar de cuidados ou os doentes pobres a necessitar da ateno mdica, os

    consumidores, os inquilinos , o desempenho judicial passou a ter uma relevncia

    social e um impacto meditico que naturalmente o tornou num objeto de controvrsia

    pblica e poltica. E a controvrsia seguiu o trilho das trs questes j acima referidas:

    a questo da legitimidade, a questo da capacidade e a questo da independncia.

    O perodo da crise do Estado providncia

    A partir de finais da dcada de 70 e princpios da de 80 comeavam nos pases

    centrais as primeiras manifestaes da crise do Estado-providncia, a qual se havia

    de prolongar por toda a dcada de 80, at aos nossos dias. As manifestaes dessa

    crise so conhecidas: incapacidade financeira do Estado para atender s despesas

    sempre crescentes da providncia estatal, tendo presente o conhecido paradoxo de

    esta ser tanto mais necessria quanto piores so as condies para a financiar

    (exemplo: quanto maior o desemprego, mais elevado o montante dos subsdios

    do desemprego, mas menores so os recursos para os financiar, uma vez que os

    desempregados deixam de contribuir); a criao de enormes burocracias que

    acumulam um peso poltico prprio, que lhes permite funcionar com elevados nveis

    de desperdcio e de ineficincia; a clientelizao e normalizao dos cidados cujas

    opes de vida (de atividade e de movimentos) ficam sujeitas ao controle e

    superviso de agncias burocrticas despersonalizadas. As alteraes nos sistemas

    produtivos e na regulao do trabalho tornadas possveis pelas sucessivas revolues

    tecnolgicas, a difuso do modelo neoliberal e do seu credo desregulamentador a

    partir da dcada de 80, a sempre crescente proeminncia das agncias financeiras

    internacionais (Banco Mundial, FMI) e a globalizao da economia tambm

    contriburam para o aprofundamento da crise do Estado-providncia.

    hoje discutvel o mbito, o grau e a durao dessa crise, bem como a sua

    reversibilidade ou irreversibilidade e ainda, neste ltimo caso, que forma de Estado

    suceder ao Estado-providncia. Tal discusso no nos interessa aqui. Interessa-nos

    apenas analisar o impacto da crise do Estado-providncia dos pases centrais, nas

    duas ltimas dcadas, no sistema jurdico, na atividade dos tribunais e no significado

    sociopoltico do poder judicial.

    1.A sobrejuridificao das prticas sociais, que vinha do perodo anterior, continuou,

    aprofundando a perda de coerncia e de unidade do sistema jurdico. Mas as suas

  • http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm Pgina 11

    causas so agora parcialmente diferentes. Duas delas merecem especial meno. Em

    primeiro lugar, a chamada desregulamentao da economia4. medida que se foi

    impondo o modelo neoliberal, foi ganhando importncia na agenda poltica a ideia da

    desvinculao do Estado enquanto regulador da economia. Falamos de ideia na

    medida em que a prtica bastante contraditria. certo que se assistiu a formas

    inequvocas de desvinculao como, por exemplo, nos casos em que o setor

    empresarial do Estado foi total ou parcialmente privatizado. E houve tambm a

    desregulamentao de alguns aspectos do funcionamento do mercado, como a

    fixao dos preos e as relaes de trabalho (Santos et al., 1995, pp. 191-4 e 454).

    Mas o processo de desregulamentao contraditrio, na medida em que a

    desregulamentao nalgumas reas foi levada a cabo de par com a regulamentao

    acrescida de outras e, na grande maioria dos casos, a desregulamentao foi apenas

    parcial. Acresce que, paradoxalmente, depois de dcadas de regulao, a

    desregulamentao s pde ser levada a cabo mediante uma produo legislativa

    especfica e por vezes bastante elaborada. Ou seja, a desregulamentao significa

    em certo sentido uma re-regulamentao e portanto uma sobrecarga legislativa

    adicional.

    Mas a contradio desse processo reside ainda no fato de o desmantelamento da

    regulao nacional da economia coexistir e, de fato, ser integrante de processos de

    regulao novos, ocorrendo a nvel internacional e transnacional (ver, entre outros,

    Scherer, 1994). Isto conduz-me ao segundo fator novo na produo da inflao

    legislativa no terceiro perodo. Trata-se da globalizao da economia. Esse fenmeno

    que, no sendo novo, assume hoje propores sem precedentes, tem vindo a dar azo

    emergncia de um novo direito transnacional, o direito dos contratos internacionais,

    a chamada nova lex mercatoria, que acrescenta mais uma dimenso ao caos

    normativo, na medida em que coexiste com o direito nacional ainda que esteja por

    vezes em contradio com ele. Emerge por essa via um novo pluralismo jurdico, de

    natureza transnacional. Este novo pluralismo simultaneamente causa e

    consequncia da eroso da soberania do Estado nacional que ocorre nesse perodo

    (Santos, 1995, pp. 250-377). A eroso da soberania do Estado acarreta consigo, nas

    reas em que ocorre, a eroso do protagonismo do poder judicial na garantia do

    controle da legalidade.

    2.Se a desregulao da economia pode criar, por si, alguma litigao, j o mesmo no

    tem de suceder com a globalizao da economia. Pelo contrrio, a dirimio de litgios

    emergentes das transaes econmicas internacionais raramente feita pelos

    tribunais, j que a lex mercatria privilegia para esse efeito uma outra instncia, a

    arbitragem internacional. Pode, em geral, afirmar-se que nos pases centrais o

    4 O tema da desregulamentao tem sido amplamente discutido na literatura econmica e jurdica na ltima dcada. Discute-se a sua amplitude, os seus efeitos, as vantagens e as desvantagens e tambm, cada vez mais, at que .ponto estaremos perante uma verdadeira desregulamentao. Ver, sobre esta questo, entre.muitos outros: Santos et al., 1995, pp. 73-4; Francis, 1993, p. 33; Dehousse et al., 1992; Arino, 1993, p. 259; Button & Swann, 1989.

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    aumento drstico da litigao ocorrida no perodo anterior teve uma certa tendncia

    para estabilizar. Para isto contriburam vrios fatores. Em primeiro lugar, os

    mecanismos alternativos de resoluo dos litgios desviaram dos tribunais alguma

    litigao, ainda que seja debatvel at que ponto o fizeram. Em segundo lugar, a

    resposta dos tribunais ao aumento da procura de tutela acabou por moderar essa

    mesma procura, na medida em que os custos e os atrasos da atuao dos tribunais

    tornaram a via judicial menos atrativa.

    Acresce que os estudos realizados sobre a exploso da litigiosidade obrigaram o rever

    algumas das ideias feitas sobre a acessibilidade dos tribunais5. Por um lado, as

    medidas mais inovadoras para incrementar o acesso das classes mais baixas em

    breve foram eliminadas, quer por razes polticas, quer por razes oramentais. Por

    outro lado, questionou-se o mbito da tutela judicial, pois muitas vezes, apesar do seu

    alargamento, os tribunais continuaram a ser seletivos na eficincia com que

    responderam procura da tutela judicial. Nuns pases mais do que noutros, o

    desempenho judicial continuou a concentrar-se nas mesmas reas de sempre. Alm

    disso, o aumento da litigao agravou a tendncia para avaliao do desempenho dos

    tribunais em termos de produtividade quantitativa. Essa tendncia fez com que a

    massificao da litigao desse origem a uma judicializao rotinizada, com os juzes

    a evitar sistematicamente os processos e os domnios jurdicos que obrigassem a

    estudo ou a decises mais complexas, inovadoras ou controversas6. Por ltimo, houve

    necessidade de averiguar em que medida o aumento da litigao era resultado da

    abertura do sistema jurdico a novos litigantes, ou era antes o resultado do uso mais

    intensivo e recorrente da via judicial por parte dos mesmos litigantes, os chamados

    repeat players(Galanter, 1974).

    3.No terceiro perodo, a litigao no domnio civil sofre, contudo, alterao

    significativa. A emergncia nesse perodo, sobretudo na rea econmica, de uma

    legalidade negociada assente em normas programticas, contratos-programa,

    clusulas gerais e conceitos indeterminados, originou o surgimento de litgios

    altamente complexos, mobilizando conhecimentos tcnicos sofisticados, tanto no

    domnio do direito, como no domnio da economia e da cincia e tecnologia7. A

    impreparao dos magistrados, combinada com a sua tendncia se refugiarem nas

    rotinas e no produtivismo quantitativo, fez com que a oferta judiciria fosse nesses

    5 Sobre esse tema, ver Trubek et al., 1983, relatrio final de investigao sobre a litigao civil nos EUA 6 Ver Faria, 1994, p. 50, onde se pode ler uma importante anlise dos desafios do Judicirio nesse domnio. 7 Ver em especial, sobre ordem jurdica da economia, Santos et al., 1995, pp. 15-16. A se d conta da ampliao das fontes tradicionais do direito, da sua relativa vinculao, quer por efeito da importncia crescente das fontes de origem privada (como os cdigos de conduta), quer pela negociao em torno da produo das fontes pblicas, e do declnio de coercibilidade, que se reflete em diversos aspectos, como sejam o predomnio das normas de contedo positivo sobre as de contedo negativo, a diminuio dos efeitos da nulidade dos negcios etc. Sobre o mesmo fenmeno ver tambm Sayag & Hilaire, 1984; Salah, 1985; Farjat, 1986; Pirovano; 1988; e Martin, 1991. Sobre a mobilizao do conhecimento cientfico e tcnico em determinados ramos do direito (por exemplo, o direito do ambiente ou da informao) ver Santos et al., 1995, p. 522; e Gonalves, 1994.

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    litgios altamente deficiente, o que de alguma maneira contribuiu para a eroso da

    legitimidade dos tribunais enquanto mecanismos de resoluo de litgios.

    4.Paralelamente crise do Estado-providncia agravam-se, nesse perodo, as

    desigualdades sociais. Esse fenmeno, em articulao com a relativa rigidez dos

    direitos sociais e econmicos rigidez que resulta do fato de serem direitos e no

    exerccios de benevolncia e de, por isso, existirem e poderem ser exercidos

    independentemente das vicissitudes do ciclo econmico , deveria, em princpio,

    suscitar um aumento dramtico da litigao. A verdade que tal no sucedeu e

    nalgumas reas como, por exemplo, no domnio dos direitos laborais, a litigao, em

    muitos pases, diminuiu. Contribuiu para isso um certo enfraquecimento dos

    movimentos sociais (nomeadamente os sindicatos) que no perodo anterior tinham

    sustentado politicamente a judicializao dos direitos sociais da segunda gerao.

    No entanto, nesse perodo surgem novas reas de litigao ligadas aos direitos da

    terceira gerao, em especial a rea da proteo do ambiente e da proteo dos

    consumidores. Essas reas, para as quais os tribunais tm pouca preparao tcnica,

    so integradas no desempenho judicial na medida em que existem movimentos

    sociais capazes de mobilizar os tribunais, quer diretamente, quer indiretamente,

    atravs da integrao dos novos temas na agenda poltica ou atravs da criao de

    uma opinio pblica a favor deles.

    5.Politicamente, esse perodo caracteriza-se no s pela crise do Estado-providncia,

    como tambm pela crise da representao poltica (crise do sistema partidrio, crise

    da participao poltica). Esta ltima crise tem muitas dimenses, mas uma delas

    confronta diretamente os tribunais em sua funo de controle social. Trata-se do

    aumento da corrupo poltica. Uma das grandes consequncias do Estado regulador

    e do Estado-providncia foi que as decises do Estado passaram a ter um contedo

    econmico e financeiro que no tinham antes. A regulao da economia, a

    interveno do Estado na criao de infraestrutura (estradas, saneamento bsico,

    eletrificao, transportes pblicos) e a concesso dos direitos econmicos e sociais

    saldaram-se numa enorme expanso da administrao pblica e do oramento social

    e econmico do Estado. Especificamente, os direitos sociais, tais como o direito ao

    trabalho e ao subsdio de desemprego, educao, sade, habitao e

    segurana social, envolveram a criao de gigantescos servios pblicos, uma legio

    de funcionrios e uma infinitude de concursos pblicos e de contrataes,

    empreitadas e fornecimentos envolvendo avultadssimas quantias de dinheiro. Tais

    concursos e contrataes criaram as condies para a promiscuidade entre o poder

    econmico e o poder poltico. O afrouxamento das referncias ticas no exerccio do

    poder poltico, combinado com as deficincias do controle do poder por parte dos

    cidados, permitiu que essa promiscuidade redundasse num aumento dramtico da

    corrupo.

    Criadas as condies para a corrupo, ela suscetvel de se alastrar, e de se alastrar

    mais rapidamente nas sociedades democrticas, por trs razes principais. Em

  • http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm Pgina 14

    primeiro lugar, nessas sociedades a classe poltica mais ampla, porque menor a

    concentrao do poder e, nessa medida, sendo mais numerosos os agentes polticos,

    so mais numerosas as interfaces entre eles e os agentes econmicos; portanto, so

    maiores as probabilidades e as oportunidades para a ocorrncia da corrupo. Tal

    ocorrncia tanto mais possvel quanto mais longa a permanncia no poder do

    mesmo partido, ou do mesmo grupo de partidos. Foi assim na Itlia e durante bastante

    tempo no Japo, e assim ainda na Espanha, na Inglaterra e em Portugal. Em

    segundo lugar, a comunicao social nas sociedades democrticas um auxiliar

    precioso na investigao da grande criminalidade poltica e -o tanto mais quanto

    menos ativa a investigao por parte dos rgos competentes do Estado. Em

    terceiro lugar, a competio pelo poder poltico entre os diferentes partidos e grupos

    de presso cria clivagens que podem dar origem a denncias recprocas, sobretudo

    quando as ligaes ao poder econmico so decisivas para a progresso na carreira

    poltica, ou quando tais ligaes se tornam por qualquer razo conflituosas.

    A corrupo , conjuntamente com o crime organizado ligado sobretudo ao trfico da

    droga e ao branqueamento de dinheiro, a grande criminalidade desse terceiro perodo

    e coloca os tribunais no centro de um complexo problema de controle social. No

    segundo perodo, a exploso da litigiosidade deu-se sobretudo no domnio civil, e foi

    a que a visibilidade social e poltica dos tribunais teve lugar. No perodo atual, a

    visibilidade, sem deixar de existir no domnio civil, desloca-se de algum modo para o

    domnio penal.

    A anlise dos tribunais no domnio penal mais complexa, no s porque aqui

    coexistem duas magistraturas, como tambm porque o desempenho judicial depende

    das polcias de investigao. Na maior parte dos pases centrais o aumento de

    litigiosidade civil no perodo do Estado-providncia ocorreu conjuntamente com o

    aumento da criminalidade, e esta no cessou de aumentar no perodo atual. Tal como

    na litigiosidade civil, a massificao da litigiosidade suscita a rotinizao e o

    produtivismo quantitativo, no domnio judicial penal o aumento da criminalidade torna

    manifestos os esteretipos que presidem rotinizao do controle social por parte dos

    tribunais e seletividade da atuao que por via dela ocorre.

    Esse fenmeno ocorre por vrios processos: pela criao de perfis estereotipados de

    crimes mais frequentes, de criminosos mais recorrentes e de fatores criminognicos

    mais importantes; pela criao, de acordo com tais perfis, de especializaes e de

    rotinas de investigao por parte das polcias e do Ministrio Pblico, sendo tambm

    os xitos nesses tipos de investigao que determinam as promoes nas carreiras;

    pela criao de infraestruturas humanas, tcnicas e materiais orientadas para o

    combate ao crime que se integra no perfil dominante; pela averso, minimizao ou

    distanciamento em relao aos crimes que extravasam desse perfil, quer pelo tipo de

    crime, quer pelo tipo de criminoso, quer ainda pelos fatores que podem ter estado na

    origem do crime.

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    Essa estereotipagem determina a seletividade e os limites do preparo tcnico do

    desempenho judicial, no seu conjunto, no domnio do controle social. A corrupo

    um dos crimes que extravasam dos esteretipos dominantes, quer pelo tipo de crime,

    quer pelo tipo de criminoso, quer ainda pelo tipo de fator que pode estar na origem do

    crime. Por isto, num contexto de aumento da corrupo pe de imediato a questo do

    preparo tcnico do sistema judicirio e do sistema de investigao para combater esse

    tipo de criminalidade. O despreparo tcnico suscita, por si, o distanciamento em

    relao corrupo e em ltima instncia a sua minimizao. Mas essa postura

    ainda potencializada, neste caso, por um outro fator igualmente importante: a falta de

    vontade poltica para investigar e julgar crimes em que esto envolvidos membros da

    classe poltica, indivduos e organizaes com muito poder social e poltico.

    A vontade poltica e a capacidade tcnica no combate corrupo so os vetores

    mais decisivos da neutralizao ou desneutralizao poltica dos tribunais no terceiro

    perodo. So eles que determinam os termos em que travada a luta poltica volta

    da independncia dos tribunais. Isto no quer dizer que os temas ligados

    constitucionalizao do direito ordinrio e ao reforo da garantia da tutela judicial dos

    direitos no continuem a ser importantes nas vicissitudes polticas da questo da

    independncia. S que, no terceiro perodo, os argumentos mais decisivos, pr e

    contra a independncia, se jogam no campo do combate corrupo e tambm aqui

    que. se discutem com mais acuidade as outras duas questes que atravessam o

    Judicirio desde o primeiro perodo: a questo da legitimidade e a questo da

    capacidade.

    Enquanto no segundo perodo a politizao da independncia dos tribunais decorria

    de estes assumirem a cota-parte da responsabilidade na realizao de uma agenda

    poltica que estava consagrada constitucionalmente e cabia aos poderes do Estado

    no seu conjunto, no terceiro perodo a politizao da independncia dos tribunais

    dupla, na medida em que a atuao dos tribunais no combate corrupo no se

    limita a confrontar a agenda poltica dos outros poderes do Estado, mas confronta

    tambm os prprios agentes polticos e os abusos de poder pelos quais eles so

    eventualmente responsveis. E por essa razo que a questo da independncia se

    confunde frequentemente nesse perodo com a questo da legitimidade.

    O aumento da corrupo apenas um dos sintomas de crise da democracia enquanto

    sistema de representao poltica, e o combate a ela coloca de novo o sistema judicial

    perante uma situao quase dilemtica. Se se demite de uma atuao agressiva

    nesse domnio, garante a preservao da independncia, sobretudo nas suas

    dimenses corporativas, mas com isso colabora, por omisso, para a degradao do

    sistema democrtico que, em ltima instncia, garante a independncia efetiva. Se,

    pelo contrrio, assume uma posio ativa de combate corrupo, tem de contar com

    ataques demolidores sua independncia por parte sobretudo do Poder Executivo,

    ao mesmo tempo que.se coloca na contingncia de ver transferida para si a confiana

    dos cidados no sistema poltico, o que, por ser o nico rgo de soberania no

    diretamente eleito, acaba por suscitar com acuidade a questo da legitimidade.

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    Essa situao quase dilemtica vinca ainda mais o contraste entre duas concepes

    de independncia dos tribunais, que surgira j no perodo do Estado-providncia. Por

    um lado, a independncia corporativa, orientada para a defesa dos interesses e

    privilgios da classe dos magistrados, coexistindo com um desempenho reativo,

    centrado na microlitigao clssica e politicamente neutralizado. Por outro lado, a

    independncia democrtica que, sem deixar de defender os interesses e os privilgios

    da classe dos magistrados, defende-os como condio para que os tribunais

    assumam concretamente a sua cota-parte de responsabilidade poltica no sistema

    democrtico atravs de um desempenho mais pr-ativo e politicamente controverso.

    Essas duas concepes e prticas de independncia judicial pressupem dois

    entendimentos da partilha e da legitimidade do poder poltico no sistema democrtico.

    Mas, enquanto no segundo perodo os tribunais, ao optar entre uma ou outra, apenas

    condicionam o exerccio, mais ou menos avanado, da convivncia democrtica, no

    terceiro perodo a opo determina a prpria sobrevivncia da democracia. Enquanto

    no segundo perodo estamos perante diferentes concepes do uso do poder poltico,

    no terceiro estamos perante a diferena entre o uso e o abuso do poder poltico.

    No admira, pois, que os tribunais, de um modo ou de outro, sejam chamados ao

    centro do debate poltico e passem a ser um ingrediente fundamental da crise da

    representao poltica, quer pelo que contribuem para ela, demitindo-se da sua

    responsabilidade de combater o abuso de poder, quer pelo que contribuem para a

    soluo dela, assumindo essa responsabilidade. Alis, essa responsabilidade pode

    ser assumida em vrios graus de intensidade. H, por exemplo, que distinguir entre o

    combate pontual e o combate sistemtico corrupo. O combate pontual reside na

    represso seletiva, incidindo sobre alguns casos de corrupo escolhidos por razes

    de poltica judiciria: porque a sua investigao particularmente fcil; porque contra

    eles h uma opinio pblica forte a qual, se defraudada pela ausncia de represso,

    aprofunda a distncia entre os cidados e a administrao da justia; porque, sendo

    exemplares, tm um elevado potencial de preveno; porque a sua represso tem

    baixos custos polticos. O combate pontual pode, por sua natureza, servir para ocultar

    toda a outra corrupo que fica por combater, e nessa medida pode servir para

    legitimar um poder poltico ou uma classe poltica decadente. Por sua vez, o combate

    sistemtico, sendo um combate orientado mais por critrios de legalidade do que por

    critrios de oportunidade, pode se tornar mais ou menos desgastante para o poder

    poltico visado e em casos extremos pode mesmo deslegitim-lo no seu conjunto,

    como sucedeu na Itlia.

    Nessas condies, por uma ou outra via, o poder judicial , nesse perodo, fortemente

    politizado. A complexidade desse fato est em que a legitimidade do poder poltico

    dos tribunais se assenta no carter apoltico do seu exerccio. Ou seja, um poder

    globalmente poltico tem de ser exercido apoliticamente em cada caso concreto. Se

    no segundo perodo a constitucionalizao do direito ordinrio visou reforar a

    garantia da tutela dos direitos, no terceiro perodo o combate corrupo visa a

    eliminao das imunidades fticas e da impunidade em que se traduzem. O

  • http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm Pgina 17

    agravamento das desigualdades sociais no

    terceiro perodo mantm viva e at refora a primeira exigncia, mas agora esta no

    pode ser cumprida se a segunda no o for tambm. A garantia dos direitos dos

    cidados pressupe que a classe poltica e a administrao pblica cumpram os seus

    deveres para com os cidados. Essa articulao explicar em parte a atuao do

    poder judicial na Itlia no mbito da operao Mos Limpas (Tijeras, 1994). O

    ativismo de uma parte do sistema judicial italiano na defesa dos direitos econmicos

    e sociais no segundo perodo criou uma cultura judiciria intervencionista e

    politicamente frontal, cujas energias so relativamente deslocadas no terceiro perodo

    da garantia dos direitos para a represso do abuso do poder poltico (Pepino & Rossi,

    1993; Rossi, 1994).

    Se, como referimos acima, a litigao civil tecnicamente complexa veio suscitar a

    questo da preparao tcnica dos magistrados e, em ltima anlise, a questo do

    desajustamento entre a formao profissional e o desempenho judicial socialmente

    exigido, o combate grande criminalidade poltica pe tanto a questo da preparao

    tcnica como a questo da vontade poltica. Entre uma e outra interpem-se outras

    questes que no cessam de ganhar importncia, tais como as da formao

    profissional, da organizao judiciria, da organizao do poder judicial, da cultura

    judiciria dominante, dos padres e orientaes polticas do associativismo dos

    magistrados.

    Essas questes internas do sistema judicial no so abordadas e decididas num

    vazio social. Pelo contrrio, a natureza das clivagens no seio da classe poltica, a

    existncia ou no de movimentos sociais e organizaes cvicas com agendas de

    presso sobre o poder poltico, em geral, e sobre o poder judicial, em especial, a

    existncia ou no de uma opinio pblica esclarecida por uma comunicao social

    livre, competente e responsvel, todos estes fatores interferem no modo como so

    abordadas as questes referidas. Dadas as diferenas que esses fatores conhecem

    de pas para pas, no de surpreender que as questes judiciais sejam tambm

    tratadas diferentemente de pas para pas. No entanto, no deixa de ser curioso que

    essas diferenas coexistam com algumas convergncias igualmente significativas,

    fazendo com que a corrupo, o combate corrupo e a visibilidade poltica dos

    tribunais que dele decorre estejam a ter lugar em vrios pases. O mesmo jogo de

    diferenas e de convergncias deve ser tido em conta quando se analisam nos vrios

    pases as duas dimenses mais inovadoras da judicializao da questo social no

    perodo posterior ao do Estado-providncia: a judicializao da proteo do ambiente

    e da proteo dos consumidores.

    Os tribunais nos pases perifricos e semiperifricos

    A anlise precedente centrou-se na experincia e na trajetria histrica dos tribunais

    nos pases centrais, os mais desenvolvidos do sistema mundial, e apenas tratou da

    evoluo do significado sociopoltico da funo judicial no conjunto ds poderes do

    Estado. H, pois, agora, que ampliar a anlise.

  • http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm Pgina 18

    O nvel de desenvolvimento econmico e social afeta o desempenho dos tribunais por

    duas vias principais. Por um lado, o nvel de desenvolvimento condiciona o tipo e o

    grau de litigiosidade social e, portanto, de litigiosidade judicial. Uma sociedade rural

    dominada por uma economia de subsistncia no gera o mesmo tipo de litgio que

    uma sociedade fortemente urbanizada e com uma economia desenvolvida. Por outro

    lado, embora no se possa estabelecer uma correlao linear entre desenvolvimento

    econmico e desenvolvimento poltico, os sistemas polticos nos pases menos

    desenvolvidos ou de desenvolvimento intermdio tm sido, em geral, muito instveis,

    com perodos mais ou menos longos de ditadura alternados com perodos mais ou

    menos curtos de democracia de baixa intensidade. Esse fato no pode deixar de ter

    um forte impacto na funo judicial. Tal como sucede entre os pases centrais, esses

    fenmenos interagem de maneira muito diferente de pas para pas, quer entre os

    pases menos desenvolvidos ou perifricos, quer entre os pases de desenvolvimento

    intermdio. Dado que o tipo e o grau de litigao se articula com muitos outros fatores

    para alm do desenvolvimento econmico, analis-lo-emos na seo seguinte, em

    que tais fatores sero tambm considerados.

    Concentremo-nos por agora na articulao entre a funo judicial e o sistema poltico.

    Os trs perodos que analisamos na seo precedente no se adequam s trajetrias

    histricas dos pases perifricos e semiperifricos. Durante o perodo liberal, muitos

    desses pases eram colnias e continuaram a s-lo por muito tempo (os pases

    africanos); outros s ento conquistaram a independncia (os pases latino-

    americanos). Por outro lado, o Estado-providncia um fenmeno poltico exclusivo

    dos pases centrais. As sociedades perifricas e semiperifricas caracterizam-se em

    geral por chocantes desigualdades sociais que mal so mitigadas pelos direitos

    sociais econmicos, os quais, ou no existem, ou, se existem, tm uma deficientssima

    aplicao. Alis, os prprios direitos da primeira gerao, os direitos cvicos e polticos,

    tm uma vigncia precria, fruto da grande instabilidade poltica em que tm vivido

    esses pases, preenchida com longos perodos de ditadura.

    A precariedade dos direitos o outro lado da precariedade do regime democrtico, e

    por isso no surpreende que a questo da independncia dos tribunais se ponha

    nesses pases de modo diferente que nos pases centrais8. Nestes ltimos, os trs

    perodos correspondem a trs tipos de prtica democrtica e, portanto, a variaes de

    atuao poltica que ocorrem num contexto de estabilidade democrtica. No assim,

    de modo nenhum, nos pases perifricos e semiperifricos, que viveram nos ltimos

    150 anos longos perodos de ditadura9. Esse fato, alis, refora a pertinncia da

    8 Sobre a garantia judicial dos direitos em pases semiperifricos (no caso, a Colmbia) ver Palacio, 1989. Ver tambm Leon (1989), uma importante coletnea de textos em Bergalli & Mari (1989) e ainda Bergalli (1990). Sobre a disjuno entre o dinamismo das transformaes sociais e a rigidez do sistema judicial na Espanha, ver Toharia, 1974. Uma anlise mais recente encontra-se em Ibnez, 1989. Sobre o caso brasileiro ver, por ltimo, a excelente coletnea de textos em Dossi Judicirio, nmero especial daRevista USP (1994, ns 21), coordenada por Srgio Adorno. 9 Mesmo assim, a situao est longe de ser linear. Veja-se, por exemplo, o caso dos direitos do trabalho no Brasil a partir da era Vargas analisados num texto inovador de Paoli, 1994.

  • http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm Pgina 19

    distino entre diferentes concepes de independncia dos tribunais feita na seo

    precedente. Como referimos, a independncia segundo a matriz liberal, dominante no

    primeiro perodo, atribuda aos tribunais na exata medida em que estes so

    politicamente neutralizados por uma rede de dependncias de que destacamos trs:

    o princpio da legalidade que conduz subsuno lgico-formal confinada

    microlitigao; o carter reativo dos tribunais que os torna dependentes da procura

    dos cidados; e a dependncia oramental e administrativa em relao ao Poder

    Executivo e ao Poder Legislativo. Ora, este o tipo de independncia que domina nos

    pases perifricos e semiperifricos at os nossos dias e talvez s agora esteja a ser

    confrontado com os tipos mais avanados de independncia.

    por essa razo que os regimes ditatoriais no tiveram grandes problemas em

    salvaguardar a independncia dos tribunais. Desde que fosse assegurada a sua

    neutralizao poltica, a independncia dos tribunais podia servir os desgnios da

    ditadura. Assim, segundo Toharia (1987), o franquismo espanhol no teve grandes

    problemas com o Poder Judicirio. A fim de assegurar totalmente a sua neutralizao

    poltica, retirou aos tribunais comuns a jurisdio sobre os crimes polticos, criando

    para o efeito um tribunal especial com juzes politicamente leais ao regime. E o mesmo

    sucedeu em Portugal durante o regime salazarista. Com um idntico objetivo foram

    retiradas aos tribunais comuns duas reas de litigao que podiam ser fonte de

    controvrsia: as questes laborais, que foram atribudas aos tribunais de trabalho

    tutelados pelo Ministrio das Corporaes; e os crimes polticos, para os quais se criou

    o Tribunal Plenrio, com juzes nomeados pela sua lealdade ao regime.

    Esse padro de relacionamento entre regimes autoritrios e tribunais bastante

    generalizado e parece ocorrer tanto em regimes autoritrios de longa durao como

    em regimes de crise, cujo autoritarismo supostamente de curta durao. Neal Tate

    analisa trs casos: a declarao do estado de stio por Marcos nas Filipinas, em 1972;

    o acionamento de poderes de emergncia por parte de Indira Gandhi na ndia, em

    1975; o golpe militar do General Zia UI Haq no Paquisto, em 1977 (Tate, 1993, pp.

    311-38; Tate & Haynie, 1993, pp. 707-40). Em todos esses casos, os lderes polticos

    tiveram a preocupao de deixar intocada a independncia dos tribunais, depois de

    se assegurarem do controle das reas sensveis.

    A independncia dos tribunais na matriz liberal , pois, compatvel com regimes no-

    democrticos. O controle poltico tende a ser exercido pela excluso dos tribunais das

    reas de litigao que contam politicamente para a sobrevivncia do sistema e por

    formas de intimidao difusa que criam sistemas de autocensura. O objetivo reduzir

    a independncia imparcialidade do juiz perante as partes em litgio e garantir a

    lealdade passiva dos magistrados ao regime. Essa estratgia garante ao Judicirio

    uma sobrevivncia relativamente apagada, mas, ao mesmo tempo, sem a

    necessidade de se salientar em manifestaes de lealdade, sendo esta uma das

    razes pelas quais, quando os regimes autoritrios caem, a esmagadora maioria dos

    magistrados confirmada pelo novo regime e continua em suas funes.

  • http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm Pgina 20

    E, de fato, desde a dcada de 70 temos vindo a assistir ao declnio dos regimes

    autoritrios e aos consequentes processos de transio democrtica. Em meados da

    dcada de 70, foram os pases da periferia europeia; na dcada de 80, os pases

    latino-americanos; em finais da dcada de 80, os pases do Leste Europeu; e em

    princpios da dcada de 90, alguns pases africanos. Essas transies instauraram

    processos democrticos, muitos dos quais esto ainda por consolidar. Tiveram lugar

    num momento em que nos pases centrais se estava j no terceiro perodo ou quando

    muito na passagem do segundo para o terceiro perodo. Esse calendrio histrico teve

    consequncias fundamentais no domnio da garantia dos direitos. De uma forma ou

    de outra, os pases perifricos e semiperifricos viram-se na contingncia de

    consagrar constitucionalmente ao mesmo tempo os direitos que nos pases centrais

    tinham sido consagrados sequencialmente, ao longo de um perodo de mais de um

    sculo, ou seja: no perodo liberal, os direitos cvicos e polticos; no perodo do Estado-

    providncia, os direitos econmicos e sociais; e no perodo aps o Estado-

    providncia, os direitos dos consumidores, da proteo ambiental e da qualidade de

    vida em geral. Obrigados, por assim dizer, a um curto-circuito histrico, no admira

    que esses pases no tenham, em geral, permitido a consolidao de um catlogo to

    exigente de direitos de cidadania.

    Como se compreende, as situaes variam enormemente de pas para pas. No que

    respeita aos casos que mais nos interessa, o dos pases semiperifricos, a

    consolidao dos direitos cvicos e polticos muito superior dos direitos da segunda

    ou da terceira gerao. Essa discrepncia fundamental para compreender o

    desempenho judicial nesses pases e as vicissitudes da luta pela independncia face

    aos outros poderes. Sobre o caso portugus especificamente falaremos adiante.

    Nesses pases que passaram por processos de transio democrtica nas trs ltimas

    dcadas, os tribunais s muito lenta e fragmentariamente tm vindo a assumir a sua

    corresponsabilidade poltica na atuao providencial do Estado. A distncia entre a

    Constituio e o direito ordinrio , nesses pases, enorme, e os tribunais tm sido,

    em geral, tbios em tentar encurt-la. Os fatores dessa tibieza so muitos e variam de

    pas para pas. Entre eles podemos contar, sem qualquer ordem de precedncia: o

    conservadorismo dos magistrados, incubado em faculdades de Direito

    intelectualmente anquilosadas, dominadas por concepes retrgradas da relao

    entre direito e sociedade; o desempenho rotinizado assente na justia retributiva,

    politicamente hostil justia distributiva e tecnicamente despreparado para ela; uma

    cultura jurdica cnica que no leva a srio a garantia dos direitos, caldeada em largos

    perodos de convivncia ou cumplicidade com macias violaes dos direitos

    constitucionalmente consagrados, inclinada a ver neles simples declaraes

    programticas, mais ou menos utpicas; uma organizao judiciria deficiente com

    carncias enormes tanto em recursos humanos como em recursos tcnicos e

    materiais; um Poder Judicial tutelado por um Poder Executivo, hostil garantia dos

    direitos ou sem meios oramentais para a levar a cabo; a ausncia de opinio pblica

  • http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm Pgina 21

    forte e de movimentos sociais organizados para a defesa dos direitos; um direito

    processual hostil e antiquado.

    Isto no significa, porm, que nalguns pases os tribunais no tenham ao longo da

    dcada de 80 comeado a assumir uma postura mais ativa e agressiva na defesa dos

    direitos. Por exemplo no Brasil, como refere Faria, alguns tribunais, sobretudo de

    primeira instncia - os que contatam mais de perto com as flagrantes discrepncias

    entre igualdade formal e justia social -, tm vindo a criar uma corrente jurisprudencial

    assente na constitucionalizao do direito ordinrio e orientada para uma tutela mais

    efetiva dos direitos (Faria, 1994, p. 52). Essas correntes jurisprudenciais, ainda que

    sempre minoritrias, assumem por vezes uma expresso organizativa, como o caso,

    tambm no Brasil, do movimento do direito alternativo protagonizado por juzes

    envolvidos no reforo da tutela judicial dos direitos.

    A tibieza dos tribunais no domnio da justia distributiva e dos direitos sociais e

    econmicos se prolonga tambm no domnio do combate corrupo, o qual, como

    vimos, tem vindo a constituir, juntamente com a tutela dos interesses difusos

    sobretudo nas reas do consumo e do meio ambiente, uma rea privilegiada de

    protagonismo poltico e visibilidade social dos tribunais nos pases centrais. As causas

    dessa tibieza so em grande medida as mesmas que determinaram a tibieza no

    domnio da tutela dos direitos. Mas acrescem outras, especficas, e que tm a ver

    sobretudo com a falta de tradio democrtica nesses pases. Um poder poltico

    concentrado, tradicionalmente assente numa pequena classe poltica de extrao

    oligrquica, soube ao longo dos anos criar imunidades jurdicas e fticas que

    redundaram na impunidade geral dos crimes cometidos no exerccio de funes

    polticas. Essa prtica transformou-se na pedra angular de uma cultura jurdica

    autoritria nos termos da qual s possvel condenar para baixo (os crimes das

    classes populares) e nunca para cima (os crimes dos poderosos). Alis, longe de

    serem vistos pelos cidados como tendo a responsabilidade de punir os crimes da

    classe poltica, os tribunais foram vistos como parte dessa classe poltica e to

    autoritrios quanto ela. Curiosamente, sobretudo na Amrica Latina (Argentina,

    Colmbia, Brasil sobretudo no Nordeste etc.), sempre que se tem falado de corrupo

    a respeito dos tribunais no para falar do combate corrupo por parte dos

    tribunais, mas sim para falar da corrupo dos tribunais (a venalidade dos magistrados

    e dos funcionrios).

    Apesar disto, em anos mais recentes, tm vindo a multiplicar-se os sinais de um maior

    ativismo dos tribunais nesse domnio, quer para combater a corrupo dentro do

    sistema judicial, quer para combater a corrupo da classe poltica e, em geral, a

    grande criminalidade organizada. Como vimos, o aumento da corrupo poltica e o

    grande crime organizado no nvel internacional so as grandes novidades criminais

    do terceiro perodo acima analisado. Alis, o crime organizado, sobretudo o

    narcotrfico, tem vinculaes mais ou menos estreitas com a classe poltica e com os

    militares e, nalguns pases latino-americanos, tambm com os grupos de guerrilha.

    Nessas condies, fcil imaginar as dificuldades com que se confrontam os tribunais

  • http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm Pgina 22

    ao pretenderem exercer o controle penal nesses domnios. Uma das mais brutais

    dificuldades consiste no risco da prpria vida. Na Colmbia foram assassinados, nos

    ltimos dez anos, duzentos magistrados envolvidos na investigao ou no julgamento

    da corrupo poltica e do crime organizado, ainda que em alguns casos os

    assassinatos estejam relacionados com a prpria corrupo dos juzes. Neste e

    noutros pases h inmeros magistrados ameaados de morte e s agora comeam

    a surgir expresses de solidariedade internacional entre os magistrados.

    Para os pases que passaram nas ltimas dcadas por uma transio democrtica, o

    primeiro teste feito ao Judicirio no domnio da criminalizao do abuso do poder

    poltico consistiu no julgamento dos responsveis por milhares de assassinatos de

    opositores polticos e por outras macias e cruis violaes dos direitos humanos

    cometidas durante a vigncia dos regimes ditatoriais. Foi um teste em que o Judicirio

    falhou em grande medida, ainda que por razes nem sempre a ele imputveis10. Nos

    casos em que a transio resultou de uma ruptura entre o regime autoritrio e o regime

    democrtico, como foi o caso de Portugal e, de algum modo, tambm o caso da

    Argentina, a existncia de tribunais especiais (tribunais militares) com juzes ainda

    leais ao regime deposto, a falta de vontade poltica para levar a cabo a investigao,

    a existncia superveniente de perdes, a ocorrncia da prescrio, os acordos entre

    as diferentes foras polticas no sentido de passar uma esponja sobre o passado,

    todos esses fatores contriburam para que os crimes cometidos durante a ditadura

    ficassem em geral impunes. No caso da Argentina houve inicialmente uma forte -

    corrente de opinio pblica e de mobilizao social no sentido da represso dos

    crimes da ditadura e alguma teve efetivamente lugar no incio do perodo democrtico.

    Segundo Maria Lusa Bartolomei (1994, p. 19), em meados da dcada de 80 o

    presidente Raul Alfonsn teria negociado o fim da represso com militares revoltosos,

    em troca do fim da revolta. Nos pases em que a transio foi pactuada como, por

    exemplo, no caso da Espanha, do Brasil e do Chile, a impunidade dos crimes de abuso

    de poder e de violao dos direitos humanos cometidos durante a ditadura foi

    negociada entre a classe poltica do regime ditatorial e a classe poltica do regime

    democrtico emergente. Nesse caso, os tribunais foram, partida, excludos do

    exerccio do controle penal nesse domnio. Tal excluso serviu, de fato, para reforar

    a cultura jurdica autoritria legitimadora da imunidade ftica ou mesmo jurdica dos

    detentores do poder poltico.

    Podemos, pois, concluir que as trajetrias polticas e sociolgicas do sistema judicial

    nos pases perifricos e semiperifricos so distintas das do sistema judicial nos

    pases centrais, ainda que haja entre elas alguns pontos de contato. A anlise

    comparada dos sistemas judiciais , assim, de importncia crucial para compreender

    como, sob formas organizacionais e quadros processuais relativamente semelhantes,

    se escondem prticas judicirias muito distintas, distintos significados sociopolticos

    da funo judicial, bem como distintas lutas pela independncia do poder judicial.

    10 Para o caso argentino, ver Bartolomei, 1994.

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    Padres de litigao e cultura jurdica

    Por muito significativas que sejam as diferenas entre pases com nveis de

    desenvolvimento distinto no que respeita s vicissitudes da independncia e do

    significado sociopoltico dos tribunais, suscitam duas reflexes comuns.

    A primeira, que afinal a concluso mais abrangente da nossa anlise at agora,

    que a luta pela independncia do sistema e do poder judicial sempre, apesar das

    variaes infinitas, uma luta precria, na medida em que ocorre no contexto de

    algumas dependncias robustas do sistema judicial em relao ao Executivo e ao

    Legislativo. Trata-se de uma luta com meios limitados contra outros poderes, quase

    sempre hostis, por uma independncia que nunca completa. Nessa medida, a

    independncia s tida como estando em causa quando so ultrapassados os limites

    da falta de independncia considerados tolerveis pelas prprias magistraturas ou

    pelos cidados organizados em partidos, ou em outras formas de associao,

    interessados em defender a independncia dos tribunais. As tentaes e as tentativas

    para exercer controle poltico sobre a atividade judicial ocorrem por razes

    semelhantes e com recurso a meios que igualmente no so totalmente dspares:

    transferncia de certas reas de litigao do mbito dos tribunais comuns para

    tribunais especiais ou para agncias administrativas sob o controle do Poder

    Executivo; controle sobre a formao, o recrutamento e a promoo dos magistrados;

    gesto da dependncia financeira dos tribunais. O que nesse domnio

    verdadeiramente distingue os pases perifricos dos pases centrais o fato de s nos

    primeiros os meios de controle inclurem a intimidao sria e a prpria liquidao

    fsica dos juzes.

    A segunda reflexo, que suscita a anlise que segue, que no terreno poltico

    concreto, a luta pela independncia depende do desempenho efetivo dos tribunais.

    Esse desempenho permite uma enorme variao interna, e s quando ele se traduz

    em exerccios suscetveis de ampliar a visibilidade social ou o protagonismo poltico

    para alm dos limites convencionados e convencionais que a independncia judicial

    se transforma numa luta poltica de primeira grandeza. No entanto, e ao contrrio do

    que pode parecer, no h uma relao absolutamente unvoca e linear entre os termos

    da luta pela independncia e os termos do desempenho efetivo, na medida em que

    variam de pas para pas as sensibilidades polticas sobre o significado do

    desempenho e das suas variaes.

    Em face disto, de crucial importncia analisar com o pormenor possvel os

    parmetros, as caractersticas e as variaes do desempenho dos tribunais11. Alis,

    um enfoque analtico excessivamente centrado sobre a independncia judicial ou o

    11 . A anlise comparada dos sistemas judiciais, sendo de importncia crescente, , no entanto, muito complexa dada a multiplicidade de variveis envolvidas. Sobre o tema, ver Shapiro, 1986; Damaska, 1986; Schmidhauser, 1987; Cappelletti, 1991; Holland; 1991. Em nosso entender, a dificuldade maior na anlise comparada dos sistemas judicirios reside em que estes operam num contexto de pluralismo jurdico, que condiciona de modo decisivo o seu desempenho, o qual varia significativamente de pas para pas. No Brasil, uma anlise muito bem documentada do pluralismo jurdico pode-se ler em Wolkmer, 1994.

  • http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm Pgina 24

    protagonismo poltico dos tribunais pode ocultar o conhecimento do trabalho efetivo

    dos tribunais na esmagadora maioria dos casos e na esmagadora maioria dos dias de

    trabalho judicial. por essa razo que passamos a referir o quadro terico e a

    experincia comparada que, em nosso entender, devem servir de referncia anlise

    do desempenho efetivo dos tribunais.

    Como dissemos acima, sabido que o nvel de desenvolvimento econmico e social

    condiciona a natureza da conflitualidade social e interindividual, a propenso a litigar,

    o tipo de litigao e, portanto, o desempenho dos tribunais enquanto expresso do

    padro de consumo da justia; entendido este como oferta efetiva de tutela judicial

    perante a procura efetiva. Sendo condicionado pelo nvel de desenvolvimento, o

    padro de consumo da justia atua por sua vez sobre ele, potencializando-o ou

    limitando-o. Acresce que o aumento do desenvolvimento socioeconmico no induz

    necessariamente ao aumento da litigao; em geral; pode induzir um aumento em

    certas reas ou tipos de litigao ao mesmo tempo que induz uma diminuio noutras.

    Por essa tripla interao, a anlise das relaes entre o desempenho dos tribunais e

    o nvel de desenvolvimento socioeconmico central a toda a sociologia judiciria12.

    Contudo, igualmente sabido que o nvel de desenvolvimento socioeconmico no

    explica s por si o nvel e o tipo de desempenho dos tribunais, uma vez que pases

    com nveis parificveis de desenvolvimento apresentam perfis judicirios muito

    distintos. Basta comparar, por exemplo, o Japo com os Estados Unidos, ou a

    Holanda com a Alemanha. Deve, pois, atender-se a outros fatores e um deles, talvez

    o mais importante, a cultura jurdica dominante do pas, quase sempre articulada

    com a cultura poltica.

    A cultura jurdica o conjunto de orientaes a valores e interesses que configuram

    um padro de atitudes diante do direito e dos direitos e diante das instituies do

    Estado que produzem, aplicam, garantem ou violam o direito e os direitos. Nas

    sociedades contemporneas, o Estado um elemento central da cultura jurdica e

    nessa medida a cultura jurdica sempre uma cultura jurdico-poltica e no pode ser

    plenamente compreendida fora do mbito mais amplo da cultura poltica. Por outro

    lado, a cultura jurdica reside nos cidados e em suas organizaes e, nesse sentido,

    tambm parte integrante da cultura de cidadania. Nesse nvel, distingue-se da

    cultura jurdico-profissional, que respeita apenas aos profissionais do foro que, como

    tal, tem ingredientes prprios relacionados com a formao, a socializao, o

    associativismo etc.

    12 Ver, no entanto, Henckel (1991), que faz uma anlise da justia civil brasileira, comparando-a sempre que possvel com a alem, para concluir que no h diferenas estatsticas significativas entre o desempenho do sistema judicial de um pas desenvolvido e o de um pas subdesenvolvido. Segundo ele, as diferenas residem sobretudo nos fatores organizacionais (pessoal, qualificaes, salrios, infra-estrutura). Trata-se de uma anlise algo controversa, na medida em que as semelhanas podem ser a traduo de situaes sociais totalmente distintas. Por exemplo, o fato de tanto na Alemanha como no Brasil ser baixo o recurso assistncia judiciria significa, no Brasil, que mais de 2/3 da populao marginalizada do acesso justia, um significado totalmente oposto ao que tem na Alemanha.

  • http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm Pgina 25

    A cultura jurdica comeou a ser discutida a partir da dcada de 60, sobretudo nos

    Estados Unidos, mas tambm na Itlia, sob o impulso da exploso de litigiosidade que

    se comeou a verificar ento nesses pases13. A ideia era que a propenso a litigar

    maior numas sociedades que noutras e que as variaes esto, em parte pelo menos,

    ancoradas culturalmente, na medida em que a propenso a litigar no aumenta

    necessariamente na mesma medida do desenvolvimento econmico. Se em certas

    sociedades os indivduos e as organizaes mostram uma clara preferncia por

    solues consensuais dos litgios ou de todo modo obtidas fora do campo judicial,

    noutras a opo por litigar tomada facilmente14.

    Alguns autores, como por exemplo Kritzer (1989), compararam a propenso a

    litigarem pases culturalmente prximos e at com sistema jurdico semelhante -

    como, por exemplo, os Estados Unidos e a Inglaterra, ou os Estados Unidos e o

    Canad - e encontraram diferenas significativas, reconduzveis a diferentes culturas

    jurdicas. Os Estados Unidos foram considerados como tendo a mais elevada

    propenso a litigar, configurando uma sociedade litigiosa, como lhe chamou

    Lieberman (1981)15. (14) Esse fato suscitou um debate que se prolongou por toda a

    dcada de 80, tendo mesmo nas ltimas eleies presidenciais sido tema de

    campanha eleitoral (Galanter, 1993a e 1993b). Avanaram-se ento vrias razes que

    alimentariam tal cultura litigiosa, desde a existncia de um nmero excessivo de

    advogados at o enfraquecimento dos laos comunitrios e dos compromissos de

    honra na gesto da vida coletiva. Segundo alguns, a propenso a litigar estaria a

    resultar numa enorme drenagem de recursos econmicos que de outra maneira

    poderiam ser afetados s tarefas do desenvolvimento16. Outros autores e estudos

    refutaram esses argumentos e puseram mesmo em causa que tivesse havido uma

    exploso da litigiosidade, ou que os norte-americanos fossem particularmente

    litigiosos17. (16)

    Blankenburg (s/d), por seu lado, defendeu que a exploso da litigiosidade, embora

    com uma dimenso real, tinha sido inflacionada pelos meios de comunicao social a

    partir de processos particularmente notrios, quer pela sua natureza, quer pela dos

    intervenientes nela. Nesses termos, deduzir a existncia de cultura jurdica litigiosa a

    partir da exploso da litigiosidade era incorreto, na medida em que, mesmo dando de

    13 Sobre a bibliografia relevante desse perodo ver Santos, 1994, pp. 141-61. 14 Sobre culturas jurdicas, ver, por ltimo, Bierbrauer, 1994. 15 Sobre o questionamento do nvel de litigiosidade na sociedade estadunidense ver Galanter, 1983; e Trubek et al., 1983. 16 Olson (1992) afirma que existe nos Estados Unidos uma indstria de litigao, responsvel em grande medida pelo seu aumento. Uma posio oposta e bem fundamentada pode-se ler em Epp (1992). 17 Sobre esse debate ver Galanter, 1993a e 1993b. Para alm disso, outros autores tm salientado a continuada incidncia da resoluo negociada de litgios, sem recurso aos tribunais, em determinadas reas, como por exemplo, na rea dos seguros (Ross, 1980) e de responsabilidade civil extracontratual (Genn, 1988). Ver ainda Brigham, 1993; e Galanter & Cahill, 1994.

  • http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm Pgina 26

    barato que tal exploso existia, a verdade que a esmagadora maioria dos litgios

    continuava a ser resolvida fora dos tribunais18.

    No entanto, num estudo sobre os padres de litigao em cinco pases europeus,

    todos de tradio jurdica continental, concluiu-se que, embora em todos eles tenha

    havido um aumento da litigao na dcada de 70, esse aumento variou de pas para

    pas e as variaes no coincidiram com as dos indicadores de desenvolvimento

    (Ietswaart, 1990, p. 571). Em reas de menor sedimentao cultural as variaes

    foram, contudo, mais uniformes. Assim, por exemplo, verificou-se um certo

    decrscimo da litigao diretamente relacionada com a atividade econmica, o que

    poderia indicar que, medida que esta se internacionalizou e se tornou tecnicamente

    mais complexa, deixou de ver nos tribunais um foro adequado para a resoluo dos

    litgios que foi gerando. Por outro lado, em quase todos os pases desenvolvidos

    emergiram novos tipos de litgio, relacionados com o surgimento da sociedade de

    consumo, com a degradao do meio ambiente e com o aumento dramtico da

    mobilidade social e geogrfica (rupturas de relaes familiares e consequentes

    divrcios; questes de inquilinato).

    Na anlise das variaes dos nveis de litigiosidade necessrio distinguir entre as

    ondas longas de litigao e as variaes bruscas e de curta durao, uma vez que s

    as primeiras so reconduzveis evoluo do padro de desenvolvimento ou cultura

    jurdica dominante. As variaes bruscas esto, em geral, relacionadas, quer com

    fatores internos do sistema judicial por exemplo, uma reforma processual que

    desjudicializa um certo litgio , quer por razo de transformaes polticas drsticas:

    da Alemanha da Repblica de Weimar e dos Estados Unidos do New Deal, ao Chile

    de Allende, a Portugal do 25 de Abril de 1974 ou Frana dos socialistas em 1981.

    Alis, a razo pela qual a relao entre desenvolvimento socioeconmico e cultura

    jurdica, por um lado, e pa