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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA Programa de Pós-Graduação em Geografia Ofensiva do Capital e Transformações no Mundo Rural: a resistência camponesa e a luta pela terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba RENATA MAINENTI GOMES Orientador: Prof. Dr. João Cleps Junior 2004

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Page 1: Ofensiva do Capital e Transformações no Mundo Rural: a … · 2015. 1. 10. · Ofensiva do Capital e Transformações no Mundo Rural: ... exploração do trabalho no campo. No entanto,

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

Programa de Pós-Graduação em Geografia

Ofensiva do Capital e Transformações no Mundo Rural:

a resistência camponesa e a luta pela terra no

Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba

RENATA MAINENTI GOMES

Orientador: Prof. Dr. João Cleps Junior

2004

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II

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

Programa de Pós-Graduação em Geografia

CAPA: Foto 1 – Trabalhadores Rurais Sem-Terra em conflito na Fazenda Barreiro

(Limeira do Oeste). Fonte: Arquivo APR (Animação Pastoral e Social no Meio Rural) –

1995.

Ofensiva do Capital e Transformações no Mundo Rural:

a resistência camponesa e a luta pela terra no

Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, da Universidade Federal de Uberlândia, como requisito para a conclusão do curso de mestrado. Área de Concentração: Geografia e Gestão do Território Linha de Pesquisa: Análise, Planejamento e Gestão dos Espaços Rural e Urbano.

.

RENATA MAINENTI GOMES

Orientador: Prof. Dr. João Cleps Junior

2004

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborado pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogação e Classificação / mg / 10/04

G633o Gomes, Renata Mainenti, 1980- Ofensiva do capital e transformações no mundo rural : a re- sistência camponesa e a luta pela terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba / Renata Mainenti Gomes. - Uberlândia, 2004. 251f. : il. Orientador: João Cleps Júnior. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Uberlân- dia, Programa de Pós-Graduação em Geografia. Inclui bibliografia. 1.Geografia agrícola - Triângulo Mineiro - Teses. 2. Reforma agrária - Triângulo Mineiro (MG) - Teses. 3. Movimentos sociais Teses. 4. Assentamentos humanos - Teses. 5. Posse da Terra - Teses. I. Cleps Júnior, João. II. Universidade Federal de Uber- lândia. Programa de Pós-Graduação em Geografia. III. Título. CDU: 911.3:631(851.12*TRIANG)

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III

Banca Examinadora

Dissertação de mestrado apresentada em 26 de março de 2004 e aprovada

pela seguinte banca examinadora:

___________________________________________________

Prof. Dr. João Cleps Junior

(orientador)

___________________________________________________

Prof. Dr. Antonio Ricardo Micheloto

___________________________________________________

Prof. Dr. Bernardo Mançano Fernandes

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IV

À minha família, que me inspira sempre

um mundo com mais amor:

Paulo, Regina, Mariana, Vicente, Deyse

e Murilo.

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V

AGRADECIMENTOS

Por mais solitária que por vezes se apresente a elaboração de uma

dissertação de mestrado, são muitas as pessoas que, ao nosso redor, tornam

possível, enriquecem e enchem de sentido os caminhos que percorremos para

a construção do trabalho. Agradeço a todos aqueles que, direta ou

indiretamente, contribuíram para a realização desta pesquisa, em especial:

Ao meu orientador, professor João Cleps Junior, toda a minha admiração, o

meu respeito e o meu agradecimento. Por este e todos os trabalhos que

realizamos juntos, que sempre foram marcados por uma relação de confiança e

amizade. Pelo apoio sempre presente, que contribuiu sobremaneira para as

minhas realizações. A este que é, certamente, um dos grandes responsáveis

pelos caminhos que eu estou trilhando, o meu sincero e profundo muito

obrigado.

Ao professor Antonio Ricardo Micheloto, sempre disposto a contribuir nas

minhas “empreitadas” acadêmicas, com a seriedade e a competência que

fazem dele uma referência para nós, aprendizes nas ciências sociais.

Ao professor Bernardo Mançano Fernandes, pelas suas contribuições

fundamentais para os caminhos deste trabalho, através da sua participação na

banca de qualificação e dos seus escritos que muito nos guiaram.

À professora Vera Lúcia Salazar Pessoa, que participou da defesa do projeto

desta dissertação, pela contribuição oferecida ao processo de pesquisa, bem

como pela convivência cotidiana, sempre agradável e enriquecedora.

Aos amigos do Laboratório de Geografia Agrária e de mestrado: Sidivan,

Cristina, Djalma, Luíza Maria, Luíza Dall’Osto, Luciene, Patrícia, Tatiana e

Paulo e, em especial, a Wanderléia e a Luciane – amigas de todas as horas.

Aos amigos da APG: Cristiane, Fernando, Larissa, Gabriela e, em especial, a

Karla.

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VI

Aos meus pais, Paulo e Regina, que sempre me ensinaram a buscar

inspirações em um mundo melhor. Por todo o apoio, incondicional, aos

caminhos buscados. Pela vivência compartilhada das angústias e alegrias do

mundo acadêmico. E por todo o amor.

Aos meus irmãos, Mariana e Vicente, e a minha cunhada Deyse. Pela feliz

oportunidade de compartilharmos todos os momentos.

Aos meus avós, Jorge e Guida, Paulo (in memorian) e Zezé, meus exemplos

de vida, de respeito e de amor. Aos meus tios e primos. À tia Rita pelo carinho

e apoio sempre constantes inclusive através da revisão deste trabalho. Ao

Tiago, Fabrício e Caio, pela alegria da vida.

Ao Murilo, amigo e companheiro. Pela presença em todos os momentos deste

trabalho, das viagens aos assentamentos e acampamentos às reflexões

compartilhadas. Pelo apoio e pelo carinho, todo o meu amor.

A Capes, pela concessão da bolsa de estudo por dois anos, sem a qual

dificilmente este trabalho poderia viabilizar-se.

E, finalmente, a todas as famílias acampadas e assentadas que nos ajudaram

a compreender nossas inquietações e, sobretudo, a todos os trabalhadores

rurais sem terra que, em seu cotidiano, nos ensinam a buscar um outro mundo.

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VII

Essa cova em que estás, com palmos medida,

é a conta menor que tiraste em vida. É de bom tamanho,

nem largo nem fundo, é a parte que te cabe

neste latifúndio. Não é cova grande.

é cova medida, é a terra que querias

ver dividida. É uma cova grande

para teu pouco defunto, mas estarás mais ancho

que estavas no mundo. É uma cova grande

para teu defunto parco, porém mais que no mundo

te sentirás largo. É uma cova grande

para tua carne pouca, mas a terra dada

não se abre a boca.

(Trecho de Morte e Vida Severina,

de João Cabral de Melo Neto)

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VIII

RESUMO

A proposta deste trabalho e analisar a questão agrária brasileira, através da reflexão sobre o processo contraditório do capitalismo, e na perspectiva das lutas sociais travadas no campo, tendo como foco privilegiado de analise a região do Triangulo Mineiro/ Alto Paranaíba, localizada no estado de Minas Gerais. A região do Triangulo Mineiro/ Alto Paranaíba teve o seu cenário econômico radicalmente transformado a partir da década de 1970, frente ao processo de modernização da agricultura. A incorporação das áreas de cerrado ao processo produtivo capitalista impulsionou sobremaneira a economia agroexportadora e a formação de alguns dos maiores empreendimentos agroindustriais do país. Por outro lado, esse processo promoveu o acirramento das contradições inerentes ao movimento constante de autoexpansão e reprodução do capital, a medida que fez-se acompanhado da desterritorialização do camponês e do aprofundamento das formas de exploração do trabalho no campo. No entanto, e fruto desse mesmo processo, os trabalhadores rurais da região fizeram avançar as suas organizações, e hoje esta e uma das mais conflituosas do país. Buscamos refletir neste trabalho justamente sobre esse avanço da luta pela terra no Triangulo Mineiro/ Alto Paranaíba, considerando em especial, nesse processo, o papel da sindicalização rural, a formação dos movimentos sociais rurais, a atuação da Igreja, e a histórica violência empreendida pelos latifundiários locais em repressão as organizações dos trabalhadores rurais. Discutimos, ainda, na perspectiva da territorialização da luta pela terra, a realidade dos acampamentos rurais da região que, construídos a partir da ocupação de grandes propriedades improdutivas, tornam-se referencias de luta e organização na formação e espacialização dos movimentos sociais de luta pela terra. Da mesma forma, empreendemos uma reflexão sobre os assentamentos rurais do Triangulo Mineiro/ Alto Paranaíba, considerando alguns dos elementos sociais, políticos e produtivos que envolvem esses territórios, enquanto formas de organização e resistência, num processo que representa, para alem da possibilidade do estabelecimento de novas relações sociais e de trabalho, um (re) dimensionamento da luta pela transformação da realidade do campo.

Palavras-chave: reforma agrária, luta pela terra, movimentos sociais,

acampamentos rurais, assentamentos rurais e Triângulo Mineiro e Alto

Paranaíba.

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IX

ABSTRACT The present research seeks to analyze the agrarian problem in Brazil, through reflexion on contradictory capitalism development and the social struggle engaged in the region of Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba, in Minas Gerais State. The Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba region had its economic scene changed by the agriculture modernization from the 1970’s. The inclusion of the Cerrado area in capitalist agriculture process drove on the increasing of agriculture enterprise in Brazil. On the other hand, this process encouraged the increase of capital contradictions as it brought along the expulsion of rural peasants from their land and deepen of rural workers exploration. Otherwise, rural workers from Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba region used this period to organize their movements and, nowadays, this region is one of the most conflictive in Brazil. We seek to understand on this research the land struggle development in Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba region, specially, the role of rural trade unionism, landless movement formation, church role on agrarian reform and the historic violence undertake by the local large farmers in repression to the landless movement organizations. We discuss the territoriality of landless struggle and the reality of landless camps in the studied region. These landless camps become a reference of social movement’s construction and organization. It is still studied the landless settlements in Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba where we look on social, politic and productive elements while organizations and resistance forms. All this process represents a new dimension of the struggle for agrarian change in Brazil. Keywords: agrarian reform, landless struggle, social movements, landless

camps, landless rural settlements, Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba.

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X

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................... 1

CAPÍTULO 1 – A QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL: a territorialização do capital no campo e a resistência camponesa ..

13

A magnitude do problema agrário no Brasil ...................................................... 13

A formação da propriedade privada da terra no Brasil – da colonização à

proclamação da república .................................................................................

18

A questão da terra na primeira república do Brasil ........................................... 23

A questão agrária do período getulista ao golpe militar .................................... 26

O debate teórico sobre a agricultura brasileira e o desenvolvimento do

capitalismo nas décadas de 1950 a 1970 .........................................................

33

O período militar e a modernização conservadora – a militarização da

questão agrária .................................................................................................

42

As questões agrária e agrícola a partir dos anos 1980 – a mundialização do

capital e as transformações no meio rural ........................................................

50

Os governos democráticos do pós-regime militar e a reforma agrária ............. 59

O governo FHC na questão da reforma agrária ............................................... 63

O governo Lula na questão da Reforma Agrária .............................................. 71

O debate atual sobre a reforma agrária ............................................................ 75

A luta pela terra no Brasil hoje .......................................................................... 81

CAPÍTULO 2 – A REALIDADE AGRÁRIA DO TRIÂNGULO MINEIRO/ ALTO PARANAÍBA (MG): o processo de modernização do campo e a luta pela terra ................................................................

86 O desenvolvimento agrário do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba ................. 86

O processo de modernização do setor agrícola no Triângulo Mineiro e Alto

Paranaíba: reestruturação produtiva e impactos no mundo do trabalho

rural....................................................................................................................

90

A luta pela terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – as formas

embrionárias de organização e resistência dos trabalhadores rurais frente à

ofensiva do capital ............................................................................................

102

A reemergência do movimento de trabalhadores rurais no Triângulo Mineiro

e Alto Paranaíba: os anos 1980 ........................................................................

111

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XI

A luta pela terra na Fazenda Barreiro – o primeiro projeto de assentamento

de reforma agrária da região ............................................................................

115

Fazenda Santo Inácio-Ranchinho: referência regional de luta e conquista da

terra ...................................................................................................................

118

Ampliação dos movimentos sociais rurais e intensificação da luta pela terra

no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – dos anos 1990 ao início dos anos

2000 ..................................................................................................................

123

A vertente sindical da organização dos trabalhadores rurais e o STR de

Araxá .................................................................................................................

124

A formação do MTL – Movimento Terra, Trabalho e Liberdade ....................... 129

A regional Triângulo do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-

Terra .................................................................................................................

130

Outros movimentos de trabalhadores rurais atuantes na região ...................... 132

A organização dos ruralistas e a violência no campo: a criminalização da luta

pela terra e a formação das milícias armadas na região ..................................

135

O papel da Igreja no processo de luta pela terra no Triângulo Mineiro e Alto

Paranaíba .........................................................................................................

143

CAPÍTULO 3 – OCUPAR, RESISTIR E PRODUZIR: os acampamentos dos trabalhadores rurais em luta pela terra no Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba ......................................................

151 A ocupação como forma de acesso à terra ...................................................... 151

O acampamento Emiliano Zapata: a luta do MST no Triângulo Mineiro .......... 158

A construção do acampamento Emiliano Zapata .................................... 159

Organização social e política do acampamento Emiliano Zapata............ 165

Organização produtiva do acampamento Emiliano Zapata ..................... 169

O acampamento Tangará: referência regional de luta e resistência ................ 174

Organização social, política e produtiva do acampamento Tangará ....... 182

Algumas reflexões acerca dos acampamentos rurais de sem-terra no

Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba ....................................................................

189

CAPÍTULO 4 – OS ASSENTAMENTOS RURAIS DO TRIÂNGULO MINEIRO/ ALTO PARANAÍBA: a territorialização da luta pela terra

192

Sobre os impactos locais dos assentamentos rurais ........................................ 205

A organização produtiva nos assentamentos rurais do Triângulo Mineiro/ Alto

Paranaíba .........................................................................................................

209

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XII

As dificuldades do processo produtivo nos assentamentos rurais do

Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba ....................................................................

212

A frágil organicidade dos assentamentos rurais do Triângulo Mineiro/ Alto

Paranaíba .........................................................................................................

217

Contradições vivenciadas após a conquista da terra ....................................... 223

Assentamentos rurais: a territorialização da luta pela terra .............................. 225

O assentamento Paulo Freire: contradições da luta e possibilidades de

resistência .........................................................................................................

230

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................... 241 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................... 247

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XIII

LISTA DE TABELAS

1.1 – Evolução da estrutura fundiária brasileira – 1966-1992 ........................ 14

1.2 – Ociosidade das terras no Brasil – 1988 ................................................. 14

1.3 – Áreas passíveis de desapropriação segundo o Estatuto da Terra ........ 15

1.4 – Dados sobre os conflitos no campo no Brasil – 1991-2002 .................. 16

1.5 – Concentração da terra no Brasil – 1960-1980 ....................................... 48

1.6 – Participação relativa da PEA rural na força de trabalho total – 1940-

1990 ................................................................................................................

48

1.7 - Reforma agrária no governo Sarney, segundo o 1o PNRA – 1985/1990 61

1.8 – Brasil – dados sobre os assentamentos rurais (até 1994) .................... 61

2.1 – Distribuição dos créditos do Polocentro ................................................ 93

2.2 – Evolução da produção de café e soja – Triângulo Mineiro e Alto

Paranaíba (1970-1995) ..................................................................................

94

2.3 – Concentração da terra: Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba – Índice de

Gini (1970-1985) .............................................................................................

99

2.4 – Movimentos e organizações de luta pela terra – Triângulo Mineiro/

Alto Paranaíba (2003) ....................................................................................

133

3.1 – Número de acampamentos e famílias acampadas no Estado de

Minas Gerais, por região ................................................................................

152

3.2 – Número de acampamentos e famílias acampadas no Estado de

Minas Gerais, por movimento .........................................................................

152

3.3 – Total de acampamentos e famílias acampadas – Triângulo Mineiro .... 154

3.4 – Total de acampamentos e famílias acampadas – Alto Paranaíba ........ 154

4.1 – Total de projetos de assentamento em Minas Gerais, por ano ............. 193

4.2 – Projetos de assentamento no Triângulo Mineiro – 2003........................ 194

4.3 – Projetos de assentamento no Alto Paranaíba – 2003 ........................... 195

4.4 – Total de projetos de assentamento, famílias assentadas e áreas

utilizadas – Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba – 2003 ...................................

196

4.5 – Alguns indicativos sócio-econômicos dos assentamentos – 1992 ........ 203

4.6 – Assentamento Nova Santo Inácio-Ranchinho: dados anteriores e

posteriores a sua implementação ...................................................................

206

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XIV

LISTA DE FOTOS

1.1 – Trabalhadores rurais sem-terra em conflito na Fazenda Barreiro ............. capa

2.1 – Acampamento “Esperança do Trabalhador” (Iturama) – barracos e faixas 116

2.2 – Acampamento “Esperança do Trabalhador” (Iturama) – fila para refeição 116

2.3 – Acampamento “Esperança do Trabalhador” - mulheres lavando roupas .. 117

2.4 – Caminhada de sem-terra: ação político-religiosa em Iturama ................... 145

2.5 – 25a Romaria da Terra do Triângulo Mineiro: participação dos povos

indígenas .............................................................................................................

148

2.6 - 25a Romaria da Terra do Triângulo Mineiro: homenagem a lideranças

sem-terra mortas na luta .....................................................................................

149

3.1 – Barracos do acampamento Emiliano Zapata ............................................. 158

3.2 – Barraco onde funciona a escola do acampamento Emiliano Zapata ......... 165

3.3 – Quintal de um acampado no Emiliano Zapata ........................................... 169

3.4 – Criação de porcos e galinhas para subsistência – Emiliano Zapata .......... 170

3.5 – Produção de milho e mandioca no acampamento Emiliano Zapata .......... 171

3.6 – Acampada da Fazenda Tangará na área coletiva de produção de

maracujá .............................................................................................................

184

3.7 – Acampado da Fazenda Tangará com produção colhida de maracujá ....... 185

3.8 – Produção do grupo de artesanato do Acampamento Tangará .................. 186

3.9 – Estrutura da rádio comunitária do Acampamento Tangará ....................... 187

3.10 – Escola Família Agrícola 25 de Julho no Acampamento Tangará ............ 188

4.1 – Criança ordenhando em curral no P.A. Nova Jubran (Santa Vitória) ....... 210

4.2 – Fabricação de farinha de mandioca no assentamento Santa Luzia

(Perdizes) ............................................................................................................

211

4.3 – Lote individual com horta e pomar ao lado da casa/ Assentamento

Pontal do Arantes (União de Minas) ...................................................................

212

4.4 – Manifestação do MTL em visita do presidente Lula ao assentamento

Nova Santo Inácio-Ranchinho (Campo Florido) .................................................

220

4.5 – Estrutura da Cooperativa Agropecuária do assentamento Iturama

(Limeira do Oeste) ..............................................................................................

221

4.6 – Mutirão para a construção de um galpão para armazenar o leite .............. 236

4.7 – O mesmo galpão da foto 4.6, agora já construído e armazenando o leite

produzido no assentamento Paulo Freire ...........................................................

236

4.8 – Criação coletiva de porcos e raça, assentamento Paulo Freire ................. 237

4.9 – Criação coletiva de porcos de raça, assentamento Paulo Freire ............... 238

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XV

LISTA DE MAPAS

1 – Mesorregião Geográfica Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba ........................... 87

2 – Localização dos acampamentos rurais de sem-terra do Triângulo Mineiro/

Alto Paranaíba (2004) ...........................................................................................

155

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CAPÍTULO 1

A QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL:

a territorialização do capital no campo e a resistência camponesa

A Magnitude do Problema Agrário no Brasil

Já no primeiro século de colonização, formou-se no Brasil um sistema

que garantiu o predomínio da grande propriedade subexplorada, que

caracterizou a vida rural na quase totalidade do território nacional. A sociedade

brasileira foi marcada, assim, desde os seus primórdios, por uma intensa

concentração de terra e de renda. O latifúndio consolidou-se no Brasil como

estrutura básica de distribuição de terras, associando-se à histórica ausência

de uma política efetiva de reestruturação fundiária.

Segundo dados da ONU (Organização das Nações Unidas), o Brasil é o

segundo país do mundo com maior concentração de terras (só perdendo para

o Paraguai), onde 1% dos estabelecimentos fundiários controla quase a

metade de todas as áreas legalizadas.

O Brasil possui uma extensão territorial imensa também em terras

agricultáveis. Até 1992, segundo o Cadastro do INCRA (Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária), cerca de 600 milhões de hectares dos

aproximadamente 850 milhões que compõem o território brasileiro já haviam

sido ocupados (ainda que nem sempre economicamente). Haveria, assim, 250

milhões de hectares que são terras públicas, das quais 95 milhões pertencem

aos povos indígenas, distribuídos em 545 reservas. Já dados do INCRA de

2003 demonstram que 132.615.122 hectares são ocupados por propriedades

acima de 2 mil hectares, o que corresponde a 15,6% do território brasileiro, que

está concentrado nas mãos de 26.000 pessoas, ou seja, 0,015% da população

de 170 milhões (INCRA, 2003).

Ao analisar a evolução dos dados sobre a estrutura fundiária do país

percebemos também que a concentração da propriedade da terra é um

fenômeno que permanece crescente, como podemos observar na tabela a

seguir:

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14

Tabela 1.1: Evolução da Estrutura Fundiária Brasileira – 1966-1992

Distribuição das Terras rurais (ha) 1966 1972 1978 1992 Porcentagem sobre o total das Terras do Brasil Propriedades com menos de 100 20,4% 16,4% 13,5% 15,4% Propriedades com mais de 1.000 45,1% 47,0% 53,3% 55,2%

Fonte: INCRA. In: STÉDILE, 1997, p.22.

O alto grau de concentração da propriedade também é refletido na forma

como são usadas as terras no Brasil. Stédile apresenta dados que revelam que

as propriedades mais produtivas estão na faixa de 30 a 100 hectares. Abaixo

dessa faixa, há uma série de dificuldades relacionadas ao aumento da

produtividade e, acima, praticamente desaparecem as atividades agrícolas,

retratando a má utilização das terras e o problema da ociosidade: apenas 14%

do total das terras são dedicados à agricultura (STÉDILE, 1997).

Os dados apresentados na tabela 1.2 revelam que há, no Brasil, cerca

de 81 milhões de hectares totalmente ociosos, ao que corresponde o fato de

que 42% do total das terras aproveitáveis estão ociosas e que 88,7% destas

áreas ociosas se encontram em latifúndios. Vale ressaltar que o alto grau de

ociosidade das terras no Brasil está relacionado, em parte, aos fins

especulativos a que está subordinada. A aquisição de terras por razões não

diretamente ligadas à sua função produtiva, e sim como reserva de valor, é

uma tradição no Brasil, transformando grandes extensões em propriedades

privadas de muitos agentes financeiros, vários deles internacionais, que não

têm o menor vínculo com a produção agropecuária.

Tabela 1.2: Ociosidade das terras no Brasil – 1988

Regiões

(porcentagem sobre o total)

Nível de ociosidade (porcentagem sobre o

total)

Incidência dos latifúndios na área

ociosa (porcentagem)

Área total ociosa (em hectares)

Norte 65,8 88,4 7.425.806 Nordeste 54,4 85,9 28.883.864 Sudeste 21,1 84,0 10.445.506 Sul 15,2 74,1 4.403.184 Centro-Oeste 42,6 95,5 30.659.654 Brasil 42,6 88,7 81.818.014 Obs.: Áreas ociosas referem-se àquelas sem nenhuma utilização. Fonte: Mirad, 1988 (Censo Agropecuário IBGE – 1985). In: STÉDILE, 1997, p.27.

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Frente a todas as controvérsias que existem sobre a legislação brasileira

acerca da reforma agrária, José Gomes da Silva (1994) nos apresenta dados

referentes à quantidade de terra que poderia ser desapropriada aplicando-se a

lei em vigor (tabela 1.3).

Tabela 1.3: Áreas passíveis de desapropriação segundo o Estatuto da Terra

Categoria Imóveis rurais

Área (em mil hectares)

Número de proprietários(2)

%(5)

Latifúndios (Segundo Estatuto da Terra)(1)

95.380

284.418

63.587

3,1

Grandes propriedades improdutivas (acima de 15 módulos fiscais)(3) Lei 8.624, de 25/2/93

85.781

115.054

57.188

2,8 Grandes propriedades Com limite mínimo(4)

70.833

120.975

47.222

2,3

(1) O cadastro de 1992 revelou um total de 5 milhões de imóveis rurais com 639 milhões de hectares. Destes, 1.219.167 imóveis com 424 milhões de hectares foram classificados como “latifúndios”. Tomaram-se apenas os latifúndios acima de 1.500 hectares na região Norte; de 1 mil hectares na região Centro-Oeste; e de 500 na Nordeste, Sudeste e Sul (área média de 2.604 hectares).

(2) Média de 1,5 imóvel rural por proprietário. (3) De um total de 3 milhões de imóveis rurais recadastrados em 1992, 85 mil, acima de 15 módulos

fiscais (grandes propriedades), foram classificados como “improdutivos” (área média de 1.341 hectares). Esses 85 mil imóveis rurais são apropriados por cerca de 57 mil proprietários.

(4) Trabalhando com o limite mínimo adotado de 1.500 hectares (Norte), 1 mil hectares (Centro-Oeste) e 500 hectares (Sul, Sudeste e Nordeste), aparecem como “improdutivos” 70 mil imóveis rurais com 120 milhões de hectares (área média de 1.708 hectares), apropriados por cerca de 47 mil proprietários.

(5) Porcentagem sobre o total de proprietários do Brasil. Fonte: INCRA. In: STÉDILE, 1997, p.32.

Segundo Stédile:

Pela tabela, seria possível desapropriar no Brasil, segundo o Estatuto da Terra, até 284 milhões de hectares classificados, na época, como „latifúndios’. Com a nova Lei Agrária nº 8.624, de 1993, que determina a desapropriação das grandes propriedades improdutivas, o governo poderia dispor de 115 milhões de hectares que se enquadram nessa classificação. Seriam atingidos por essa Lei 57.188 proprietários, correspondendo a 2,8% do total. Com a disponibilidade de 115 milhões de hectares, tomando-se por base um módulo médio de 15 hectares, mais de 5 milhões de famílias de trabalhadores, ou seja, a totalidade de sem-terra existentes, poderiam ser beneficiadas sem que fosse afetado nenhum hectare de terra produtiva (STÉDILE, 1997, p.31,32).

No que se refere à demanda de terra para a reforma agrária, ou seja, do

público em potencial a ser atendido num processo de reestruturação fundiária,

os estudos são controversos e não há uma unanimidade referente a essa

quantificação. No entanto, a magnitude do problema fundiário no país está

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retratada nas mais diversas metodologias, de tal forma que, mesmo que

diferenciados, os números são sempre alarmantes: o MST divulgou, em 1993,

estudo que mostra a necessidade de se assentar 4.800.000 famílias. A

proposta do Plano Nacional de Reforma Agrária, de 1985, declarava a

existência de 7.100.000 beneficiários potenciais. Em 1998, Gasques e

Conceição, baseados em dados do Censo Agropecuário de 1995/96,

estimaram em 4.515.000 o número de famílias a serem beneficiadas, entre

pequenos proprietários, arrendatários, parceiros, ocupantes e assalariados

(GASQUES & CONCEIÇÃO, 1998, p.6).

Quanto aos conflitos sociais, os dados da tabela abaixo mostram a

magnitude do problema da violência rural envolvendo as lutas pela terra (tabela

1.4). Os dados são apresentados pela CPT (Comissão Pastoral da Terra),

vinculada à Igreja Católica e que, desde 1975, tem registrado sistematicamente

os conflitos sociais que ocorrem no campo.

Tabela 1.4: Dados sobre os Conflitos no Campo no Brasil – 1991-2002

1991 1993 1995 1997 1999 2001 2002

Conflitos de Terra Número 383 361 440 658 870 681 743 Assassinatos 49 42 39 29 27 29 43 Pessoas envolvidas 242.196 252.236 318.458 477.105 536.220 419.165 425.780 Hectares em conflito 7.037.722 3.221.252 3.250.731 3.034.706 3.683.020 2.214.930 3.066.436

Trabalho escravo Número 27 29 21 17 16 45 147 Assassinatos Pessoas envolvidas 4883 19.940 26.047 872 1.099 2.416 5.559

Conflitos Trabalhistas Número 49 28 25 22 Assassinatos 1 Pessoas envolvidas 24.788 4.133 5.087 5.586

Outros Número 43 155 93 12 69 129 14 Assassinatos 5 10 2 Pessoas envolvidas 307.123 118.952 36.581 3.288 164.909 106.104 14.352

Total Número 453 545 554 736 983 880 925 Assassinatos 54 52 41 30 27 29 43 Pessoas envolvidas 554.202 391.128 381.086 506.053 706.361 532.772 451.277 Hectares em conflito 7.037.722 3.221.252 3.250.731 3.034.706 3.683.020 2.214.930 3.066.436

Observações: 1 - O número de conflitos é a soma das ocorrências de conflitos por terra, ocupações e acampamentos. 2 - Conflitos trabalhistas referem-se ao desrespeito à Legislação Trabalhista e casos de superexploração do trabalho. 3 - Outros: até 1996 estão incluídos os conflitos trabalhistas. Após 1996 registram-se conflitos em tempos de seca, conflitos pela água, sindicais e em áreas de garimpo. Fonte: Setor de Documentação da Comissão Pastoral da Terra. In: CPT, 2003, p.13.

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Além do alto número de conflitos, é importante observar a constante

ocorrência de assassinatos de trabalhadores rurais. Essa face bárbara do

campo deve ser associada, também, à atuação do judiciário, que deixa impune

a maior parte desses crimes. Entre 1985 e 1996, por exemplo, “foram

assassinados 976 trabalhadores rurais. Desses crimes, apenas 56 foram

levados a julgamento e só 14 mandantes foram julgados. Daí, foram 7

condenações, sendo que 2 desses 7 estão foragidos” (BALDUÍNO, 2003, p.8).

A constatação primordial que podemos colocar aqui, de acordo com as

análises de Stédile (1999) é que a reforma agrária nunca encontrou a sua

efetiva implementação, nunca encontrou um respaldo político entre as forças

que controlam as ações do poder público federal no Brasil. Isso significa que,

mesmo promovendo ações de natureza legal, formal, institucional, e até

mesmo, em pequena escala, operacional, os grandes proprietários rurais e os

segmentos a eles ligados têm conseguido garantir a não efetivação de um real

programa de reestruturação fundiária.

A apresentação inicial dos dados acerca da realidade agrária brasileira

foi realizada com o intuito de apresentar, em caráter introdutório a este

trabalho, a magnitude do problema agrário no país, cuja dimensão atinge todas

as esferas da vida nacional. A outra face deste processo, caracterizado pela

exclusão, está no acirramento da luta pela reforma agrária no país, através da

intensificação das ações de mobilização e resistência dos trabalhadores rurais

e da ampliação dos agentes e das organizações envolvidas na luta pela terra.

Aliás, o campo brasileiro é historicamente marcado por conflitos em torno da

utilização da terra. Sua história é uma história de exclusão, mas também é uma

história de resistência, de fortes mobilizações do campesinato em oposição à

lógica do capital. E, especialmente a partir da década de 1980, de uma luta

crescente pela reforma agrária.

A proposta deste capítulo é, assim, apresentar um histórico da questão

agrária brasileira, com base em fontes bibliográficas e documentais. Por um

lado, procuramos refletir sobre a formação e o desenvolvimento da propriedade

privada da terra e sobre o processo de territorialização do capital no campo.

Por outro, e paralelamente, buscamos empreender um resgate das formas de

resistência camponesa, apontando algumas das principais manifestações de

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construção da sua organização, buscando refletir sobre os avanços da luta pela

terra no país.

A Formação da Propriedade Privada da Terra no Brasil – da Colonização à

Proclamação da República

Até a conquista européia, os habitantes do continente americano tinham

a terra como um bem comunal. No território brasileiro, por volta de 5 milhões de

indígenas, aglutinados em mais de 200 povos, utilizavam a terra de forma

coletiva.

A chegada do europeu colonizador significou uma ruptura nesse

sistema, já que seu interesse era justamente explorar as riquezas naturais do

meio, ou seja, apropriar-se da terra e de outros bens existentes na Colônia.

Tendo a Coroa Portuguesa se apropriado das terras brasileiras, a

primeira forma de distribuição destas consistiu na concessão de uso para

aqueles que se dispusessem a explorá-la, tendo recursos e condições para tal.

Nesse sistema denominado “capitanias hereditárias”, a Coroa destinava

enormes extensões de terra (as sesmarias) a donatários que, em sua quase

totalidade, eram membros da nobreza portuguesa ou prestadores de serviço à

Coroa.

A estrutura fundiária do País nasce, assim, sob os pilares da grande

propriedade rural – o latifúndio.

A exploração econômica das sesmarias, face às circunstâncias do mercado mundial, e à subordinação da colônia à Portugal (o monopólio comercial da coroa, também chamado o exclusivo metropolitano), impõe o cultivo de um só produto (no caso a monocultura da cana-de-açúcar) que vai se desenvolver com base na exploração da mão de obra escrava importada da África. Fecha-se assim o quadro que vai dominar a economia brasileira durante alguns séculos: a grande propriedade, monocultora, com base na mão-de-obra escrava, voltada para o exterior (PINTO, 1995, p.65).

Para Celso Furtado, a marca distintiva e fundamental da formação da

estrutura agrária brasileira foi o seu tipo de colonização, ligado ao capitalismo

comercial: “nunca se insistirá suficientemente sobre o fato de que a

implementação portuguesa na América teve como base a empresa agrícola-

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comercial. O Brasil é o único país das Américas criado, desde o início, pelo

capitalismo comercial sob a forma de empresa agrícola (FURTADO, 1973,

p.93).

A formação da empresa agromercantil dependia de vultosos

investimentos. Portanto, a concessão de terras, desde a sua origem, era

destinada aos homens economicamente poderosos, que irão compor a classe

dirigente, haja visto que, numa economia agrícola, posse concentrada de terra

é posse concentrada de renda e de poder. Assim, mesmo sendo a terra de

ínfimo valor monetário no início da ocupação, é na sua posse que esta classe

manterá a sua dominação. As demais categorias de produtores foram

marginalizadas e/ou disponibilizadas para a grande produção mercantil, de tal

forma que, o que Furtado chama de comunidade camponesa, no Brasil –

quando e onde chegou a se formar –, não teve forte influência no processo de

acumulação do País (FURTADO, 1973).

O problema de mão-de-obra na Colônia foi parcialmente “resolvido” por

uns cem anos, pelo menos, com a escravização de indígenas. Nos séculos XVI

e XVII, trabalhavam na economia cerca de 350 mil indígenas (FERNANDES,

2000). A resistência indígena à sua escravização, entretanto, manteve-se

presente em toda a história da colonização, como atestam a formação da

Confederação dos Tamoios e as Guerras dos Bárbaros e dos Guaranis.

A escravização de indígenas foi sendo substituída, especialmente a

partir do século XVII, pela escravização de africanos. Paralelamente a esse

processo, a maior parte dos grupos indígenas foi quase que totalmente

dizimada.

Já em 1584, trabalhavam nas fazendas de cana-de-açúcar em torno de

15 mil africanos. A resistência dos escravos africanos, que já chegavam ao

Brasil nesta condição, mostrava-se através da fuga e, a partir daí, da

construção dos quilombos. Os quilombos constituíam territórios de resistência à

sociedade colonial, condutores do enfrentamento ao sistema escravocrata e

símbolos da luta contra o cativeiro. Formados em vários pontos do Brasil, os

quilombos refugiavam não só escravos foragidos, mas também índios e

pobres.

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Palmares é considerado o maior quilombo da história do país. Estima-se

que tenha reunido vinte mil habitantes, a partir de uma junção de outros

povoados socialmente organizados (FERNANDES, 2000).

Calcula-se que tenha se formado em 1629. Localizava-se numa serra situada entre Pernambuco e Alagoas e era governado por um rei e por um conselho formado pelos chefes dos quilombos. Contam que o primeiro rei dos Palmares foi Ganga-Zumba, assassinado por quilombolas, habitantes dos quilombos, devido ao fato de ter se mostrado disposto a negociar com as autoridades coloniais. Ele foi substituído por Zumbi, nome esse de origem africana, que não se sabe ao certo se era o dele ou de sua função. O que se sabe é que tinha a disposição para a resistência. Manteve-se no comando da luta por cerca de dezesseis anos, vencendo diversas incursões feitas na tentativa de destruir Palmares. Foi morto em 1695, quando o reduto foi arrasado por mercenários sob o comando do bandeirante Domingos Jorge Velho (MORISSAWA, 2001, p.65).

No ano de 1822, com a Independência, a Coroa brasileira passou a ter o

domínio da enorme extensão de terras colonizadas por Portugal. Em 1831,

com a abdicação de Pedro I, o Brasil ficou sob o governo de uma Regência, até

1840, com a coroação de Pedro II. Foi um momento de grande agitação social

e política, em que estavam em voga as idéias liberais – provenientes inclusive

das Revoluções Francesa e Industrial que sacudiam a Europa –, marcado por

intensas revoltas populares, entre as quais destacam-se a Cabanagem, a

Sabinada e a Balaiada. Essas revoltas podem ser compreendidas “como uma

resistência à forma como foi feita a independência em favor dos grupos

dominantes e com exclusão das camadas populares” (ANDRADE, 2000, p.14).

Entre 1840 e 1889, sob o reinado de Pedro II, houve uma relativa

estabilidade política no País devido, de um lado, ao crescimento econômico

proveniente do café – que tornou-se no século XIX a principal atividade

econômica do país – e do apoio dos cafeicultores ao imperador, diminuindo as

tensões políticas e, por outro, à forte repressão instaurada contra as últimas

revoltas.

É nesse período, frente às grandes transformações por que passava o

Brasil, com a intensificação das pressões externas e internas pelo fim do tráfico

negreiro e da escravidão, que a Coroa determinou a primeira legislação que

tratava do processo de posse da terra, assegurando, no entanto, um acesso

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restrito a este processo e a conseqüente permanência dos escravos libertos e

dos pobres como trabalhadores das fazendas.

A Lei n. 601, conhecida como a Primeira Lei de Terras, foi promulgada

por Dom Pedro II, em 18 de setembro de 1850. Essa lei determinava que a

propriedade privada da terra só se constituiria através da sua legalização nos

cartórios, mediante certo pagamento em dinheiro para a Coroa. Aqueles que

tinham recebido as sesmarias regularizaram suas posses assegurando a

continuidade de seu domínio, enquanto os escravos libertos e os pobres, sem

recursos para a regularização de terras, permaneceram despossuídos de seu

principal meio de trabalho. Institucionaliza-se a propriedade privada da terra no

Brasil, de forma a garantir a permanência e a consolidação legal da

concentração fundiária.

Como conseqüências sociais dessa lei, tivemos uma forte imigração dos

ex-escravos para as grandes cidades, passando a viver em precárias situações

de vida à custa do subemprego ou da mendicância e a consolidação do

latifúndio como estrutura básica de distribuição de terras. Nesse sentido, é

relevante notar como, no Brasil, a consolidação do latifúndio enquanto base da

produção agrícola do País, teve como incentivo a própria constituição da base

legal da propriedade da terra.

Além disso, no longo processo de abolição da escravatura, que culminou

com a Lei Áurea, em 1888, o governo imperial criou as bases para a

substituição da mão-de-obra escrava pela dos imigrantes europeus, através

dos processos de formação de núcleos de colonização implementados nesse

período. Tais processos, entretanto, foram, em boa medida, desencadeados

pela própria elite escravocrata, com o intuito de resolver o problema da mão-

de-obra1, com exceção de certas regiões – em especial o extremo sul do país –

onde a imigração foi promovida pelo Estado por razões estratégicas de

povoamento. “O cativeiro do homem chegara ao fim quarenta anos depois de

ter começado o cerco a terra: o cativeiro da terra” (FERNANDES, 2000, p.28).

1 De acordo com Poli (1999), observa-se nesse período um intenso processo de substituição da mão de obra escrava pela imigrante: “O conceito de inaptidão dos camponeses nativos para o trabalho, presente na ideologia racial, juntamente com a ideologia do branqueamento, determinou a importação de mão de obra européia, através de correntes migratórias” (Poli, 1999, p.26).

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De acordo com Furtado (1973), o fim da escravidão não alterou

significativamente as bases da empresa agromercantil nem a situação

submissa das comunidades camponesas: “no caso brasileiro, a propriedade da

terra foi utilizada para formar e moldar um certo tipo de comunidade, que já

nasce tutelada e a serviço dos objetivos da empresa agromercantil. A formação

dessas comunidades tuteladas preparou a empresa agromercantil para

prescindir da escravidão” (FURTADO, 1973, p.102).

De qualquer forma, o fim da escravidão e a instituição do trabalho livre

como predominante determinam a disseminação de uma outra relação social: a

venda da força de trabalho. “Com a formação do trabalhador livre, conservou-

se a separação entre o trabalhador e os meios de produção. Agora a

subordinação aconteceria pela venda de sua força de trabalho ao fazendeiro,

ao capitalista” (FERNANDES, 2000, p. 27). Esse processo, de acordo com

Martins, “revelou também a contradição que separava os exploradores dos

explorados. Sendo a terra a mediação desse antagonismo, em torno dela

passa a girar o confronto e o conflito de fazendeiros e camponeses”

(MARTINS, 1981).

Conforme Andrade, até o século XIX, de forma geral, “a pequena

produção, feita em porções marginais da grande propriedade, por

trabalhadores sem-terra – foreiros e meeiros – tinha uma função suplementar,

garantiam o abastecimento local e retinham a força de trabalho, permitindo a

sua convocação quando se fizesse necessária à grande lavoura” (ANDRADE,

2002, p.14).

Verifica-se, ainda, um intenso processo de grilagem de terras e uma

expropriação cada vez mais intensa daqueles que trabalhavam a terra – como

posseiros, sitiantes ou agregados –, que passam a tornar-se “sem-terra”.

Consolidam-se os latifúndios, sob a base legal da propriedade privada da terra.

Dessa forma, dá-se, em grande medida, o processo de territorialização da

propriedade capitalista no Brasil (FERNANDES, 2000). Trabalhadores, ex-

escravos e imigrantes, homens livres e pobres, bastardos, agregados,

posseiros, rendeiros, foreiros, parceiros, arrendatários e sitiantes – uma

diversidade de situações que compõem o campesinato brasileiro, marcado por

uma história de perambulação e resistência. Um campesinato que

representava e representa uma situação marginal em termos econômicos,

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políticos e culturais, excluído do processo produtivo e da vida social como um

todo. Um campesinato constituído com a expansão capitalista – em seu

movimento contraditório. E que, mais que lutar para permanecer na terra, “é um

campesinato que quer entrar na terra” (MARTINS, 1981, p.16).

Assim, como afirma Pinto (1995), no decorrer do século XIX, o país

passa por momentos significativos de sua história, sem qualquer alteração

substantiva na estrutura agrária: a Independência, em 1822; o fim do tráfico

negreiro, em 1851; a libertação dos escravos, em 1888; a Proclamação da

República, em 1889... “De fato, estamos diante de um processo onde os

grupos dominantes na sociedade brasileira se anteciparam e conduziram, de

acordo com seus interesses, as mudanças acima mencionadas” (PINTO, 1995,

p.66).

A Proclamação da República, ocorrida em 15 de novembro de 1889,

representa o primeiro golpe militar da nossa história, que, além de oficiais do

Exército, contou com os poderosos cafeicultores paulistas.

A Questão da Terra na Primeira República do Brasil

A então chamada Primeira República foi marcada, assim, por uma forte

dominação da oligarquia cafeeira, bem como pelo aumento de áreas

trabalhadas e pela relevância do papel de imigrantes no processo produtivo. A

estrutura agrária, entretanto, em sua essência, manteve-se inalterada. Vigorou

o mesmo modelo de capitalismo dependente até então dominante, fundado na

monocultura exportadora sob as raízes da grande propriedade.

Várias lutas foram empreendidas no campo, sob as mais diversas

formas. Entre as mais elementares está o banditismo, presente desde os

tempos da colônia, mais essencialmente a partir do coronelismo da república.

Aqui não se verifica uma clara concepção de mundo. Ao contrário, chegou a

constituir, muitas vezes, por exemplo, a base dos exércitos privados dos

coronéis – os chamados “jagunços”. Já o cangaço mantinha a sua autonomia,

ainda que “prestando serviços”. Também sem clareza de projetos e com

atuações contraditórias, tinha um caráter, de certa forma, classista, posto que,

normalmente, tratava-se de pequenos proprietários ou posseiros expropriados

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ou violentados pela classe opressora, que buscavam vingança, representando

um questionamento do poder dos coronéis. Aliás, tanto o banditismo quanto o

cangaço eram, em sua maioria, formados por camponeses expropriados de

suas terras.

Entretanto, as lutas pela terra propriamente ditas – situadas entre a

proclamação da república e 1930 –, apresentavam um caráter marcadamente

messiânico: “em torno das lutas pela terra havia sempre um líder messiânico.

Isso significa que a fé era a ligação entre ele e seus seguidores. O líder

colocava-se como um intermediário na comunicação de Deus com o povo”

(MORISSAWA, 2001, p.86).

Os movimentos messiânicos tinham um caráter menos pessoal e mais

coletivo, com uma certa concepção de mundo “que os contrapunha

objetivamente à república dos coronéis, à transação do poder entre o Estado e

a ordem privada, representada pelos fazendeiros e comerciantes” (MARTINS,

1981, p.58).

O misticismo e o isolamento em relação ao mundo urbano, através da

criação de seus territórios sagrados, eram características desses movimentos.

O que precisa ser destacado é que a causa primeira, tanto do banditismo, quanto dos movimentos messiânicos, parece ter sido as injustiças, a violência, a expropriação e a exclusão dos camponeses pela ordem instituída, em favor da grande propriedade, em especial no que tange à propriedade e ao uso da terra (POLI, 1999, p.45).

Os movimentos mais importantes desse período, que envolveram

milhares de camponeses e somente foram derrotados pela brutal repressão

das tropas federais, foram Canudos e Contestado, que representam, de acordo

com Poli, “o desenvolvimento, pelos camponeses, da consciência da existência

de uma oposição em relação à sociedade externa, o que implica na construção

de uma identidade, mesmo que elementar e permeada de misticismo” (POLI,

1999, p.45).

Canudos foi liderado por Antônio Conselheiro, no período de 1893 a

1897, na Bahia.

Final do século XIX. Trabalhadores rurais e ex-escravos peregrinavam pelo sertão, atrás do beato Antônio Conselheiro, um líder messiânico, até se estabelecerem no Arraial dos Canudos, no sertão da Bahia. O lugar foi rebatizado e recebeu o nome de Belo

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Monte. Criou-se ali um povoado em que o trabalho cooperado foi essencial para a preservação da comunidade. Todos tinham direito à terra e desenvolviam a agricultura familiar. Havia um fundo comum destinado à assistência aos velhos e aos doentes. Conselheiro proclamava o começo de um “nova era”, criticava a Igreja e a República recém-fundada e recusava-se a pagar impostos. Em 5 anos, Canudos chegou a ter cerca de 10 mil habitantes, que na época era a população das maiores cidades da Bahia. Conselheiro foi acusado de defender a volta da monarquia e sua comunidade foi atacada por expedições militares vindas de quase todas as partes do Brasil. Entre outubro de 1896 e outubro de 1897, mais de 5 mil soldados do Exército e armamentos pesados de guerra foram envolvidos nos ataques do arraial, até o cerco total e massacre final. Restaram 400 pessoas, entre velhos, mulheres e crianças (CUNHA apud MORISSAWA, 2001, p.86).

A Guerra do Contestado foi liderada pelo monge José Maria, entre 1912

e 1916, na região em litígio entre o Paraná e Santa Catarina. Agrupava cerca

de 20 mil pessoas, predominantemente camponeses, que lutavam contra os

coronéis, as companhias de terras e as autoridades governamentais. No

embate final, contra mais da metade dos efetivos do exército brasileiro e uma

tropa de aproximadamente mil combatentes enviados por fazendeiros, em sua

maioria jagunços, restaram 3 mil. É considerada a maior guerra popular da

história contemporânea do Brasil (MARTINS, 1981; POLI, 1999).

De acordo com Martins:

Tanto o messianismo quanto o cangaço indicam uma situação de desordem nos vínculos tradicionais de dependência no sertão. (...) A característica violência pessoal e direta, que confrontava os camponeses entre si e entre eles e os fazendeiros, começa a se transformar numa resistência de classe. Daí que formas tão parecidas de resistência ocorram em áreas tão distantes e tão diferentes em muitos aspectos, como Canudos e Contestado. (...) Mesmo que nos redutos e nos bandos se instituíssem outras formas de dependência pessoal, elas se baseavam em critérios contestadores da ordem social (MARTINS, 1981, p.62,63).

Poucos anos mais tarde, o Tenentismo também constituiu-se como um

movimento importante, que levantou a questão da concentração fundiária,

ainda que de forma não muita definida. Liderado por Miguel Costa, envolvia

setores militares em luta contra os governos, na década de 1920, aliando-se,

em 1925, à Coluna Prestes, organizada pelo Capitão Luís Carlos Prestes, e

iniciada no Rio Grande do Sul.

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A Coluna Prestes era um contingente de 1500 homens. Passou para o atual Mato Grosso do Sul, subiu até o Maranhão, cruzou uma parte do Nordeste e Minas Gerais, retornou ao Mato Grosso do Sul e atravessou a fronteira com a Bolívia em fevereiro de 1927. Nesse trajeto, enfrentou tropas do Exército, forças policiais dos estados, jagunços e cangaceiros contratados pelos “coronéis”, sem nunca ser abatida. Por onde passava promovia comícios e distribuía panfletos contra o regime oligárquico e o autoritarismo do governo. A marcha de 25 mil quilômetros feita pela coluna pode não ter derrubado o governo, mas aumentou o prestígio político do Tenentismo e ajudou a preparar a trama que levou Getúlio Vargas ao poder (MORISSAWA, 2001, p.77,78).

Faz-se relevante destacar ainda que, durante as quatro décadas da 1a

República, acontecimentos mundiais importantes repercutem no campo político

brasileiro. Estamos falando da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e da

quebra da bolsa de Nova York (que interferiram sobremaneira nas exportações

agrícolas), da Revolução Russa de 1917 e dos estopins revolucionários que

ecoavam no mundo. No Brasil, verifica-se, em destaque, a efervescência do

movimento anarquista e a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

O anarquismo chegou ao Brasil com os imigrantes europeus,

principalmente italianos. Sua ideologia de uma sociedade igualitária, da

propriedade coletiva e da supressão do Estado e das instituições repressoras

ocupou o cenário do movimento operário do início da República, principalmente

em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Suas federações

comandaram as grandes greves operárias de 1917 a 1919. O Partido

Comunista foi fundado em 1922, em grande parte por ex-anarquistas

estimulados pela Revolução Russa. Ambos exercerão influência considerável,

também, no período trabalhado a seguir.

A Questão Agrária do Período Getulista ao Golpe Militar

A partir do início do século XX, o modelo agroexportador, até então

implementado, desencadeou no país uma crise resultante da sua incapacidade

de sustentar o desenvolvimento brasileiro. As razões dessa crise são

geralmente apontadas como uma conjugação de fatores, entre os quais estão

a crise da Primeira Guerra Mundial, que reduziu as exportações agrícolas, a

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queda no preço internacional do café e o fato daquele modelo não conseguir

mais produzir os bens necessários para as demandas da sociedade brasileira.

A crise resultou na chamada “Revolução de 30”, que implementou um

novo modelo econômico baseado na industrialização do país: liderada por

Getúlio Vargas – que vai manter-se no poder até 1945 –, a “Revolução de 30”

dá um impulso ao processo de industrialização, introduz a legislação trabalhista

e dá ao Estado um papel proeminente no processo econômico.

Porém, tais esforços empreendidos e concentrados no processo de

industrialização se desenvolveram de forma a não romper com as raízes da

formação econômica do país, ou seja, sem intervir na ordem agrária.

Autores como Stédile (1999) afirmam ter-se instituído mesmo uma

parceria entre as oligarquias rurais e a elite industrial, de forma a aparecer,

além da oligarquia rural agroexportadora de origem colonial, uma espécie de

burguesia agrária, que mescla seus interesses entre a agricultura, o comércio,

as finanças e a indústria.

Entretanto, com o fim da „era getulista’ e frente ao processo de

redemocratização do país, a elaboração da Nova Constituição, em 1946,

garante à questão agrária uma ênfase cada vez maior.

Foi nesta Assembléia Constituinte que se falou pela primeira vez – via

institucional e de forma efetiva – da necessidade da reforma agrária no Brasil,

através da proposta de projeto de lei apresentada pelo então senador Luís

Carlos Prestes. Apesar da derrota de suas teses pela bancada ruralista e

conservadora – que representava a maioria dos votos, o debate apresentou

“um avanço em termos da compreensão de que havia um problema agrário e

que o governo dispunha de um mecanismo constitucional para solucioná-lo, se

isso fosse de interesse da sociedade” (STÉDILE, 1997, p.14).

De qualquer forma, a ausência de uma política de distribuição de terras

gerava fortes conflitos sociais, além da intensificação dos movimentos

migratórios de camponeses pobres habitantes de regiões superpovoadas que,

impedidos de ter acesso a terra em suas regiões, migravam para regiões de

colonização, ocupando-as como posseiros, na esperança de terem no futuro a

sua propriedade. Assim, proliferavam também os conflitos, muitos deles

violentos, envolvendo posseiros e grileiros (aqueles que falsificam títulos de

propriedade nos cartórios e se atribuem o direito à propriedade da terra), como

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os de Trombas e Formoso (1949), os de Teófilo Otoni, em Minas Gerais e os

do Pontal do Paranapanema, em São Paulo, entre outros.

Eclodem, assim, entre as décadas de 1930 e meados da década de

1950, em quase todo o território nacional, lutas radicais pela terra, mas de

forma predominantemente espontânea e localizada, ou seja, enquanto eventos

relativamente isolados.

A partir da década de 1950, entretanto, desenvolvem-se no Brasil lutas

mais articuladas, com forte caráter ideológico e de alcance nacional. Novas

formas de organização camponesa se impõem no cenário político brasileiro –

juntamente com o debate sobre a reforma agrária –, principalmente sob a

forma das Ligas Camponesas, dos sindicatos e das várias mobilizações

calcadas especificamente sobre a questão da terra e da exploração do homem

do campo.

Os anos 1950 vão constituir-se como o início do processo de

modernização da agricultura brasileira, caracterizando-se através do

desenvolvimento intensivo do capitalismo no campo e das contradições que lhe

são inerentes. Nesse momento, o debate político e acadêmico se fortalecia, e o

movimento camponês expressava suas lutas em todo o território nacional, de

forma cada vez mais intensa, consolidando em muitas instituições a concepção

classista da luta pela terra.

Há, nesse período, um reordenamento econômico provocado pelo

crescimento do mercado interno e da industrialização, bem como por novas

condições do mercado externo, levando a um amplo processo de

expropriações e expulsões. Isso se verifica bem na formação das Ligas:

No Nordeste, a crise da cana levara muitos senhores de engenho a arrendar suas terras a pequenos produtores. Porém, a nova valorização do açúcar, durante a Segunda Guerra Mundial, levou os grandes proprietários a requisitarem novamente as terras para o plantio da cana. Com isso, muitas famílias foram expulsas ou forçadas a destruir outras lavouras para concentrar-se no plantio da cana. Foi nesse contexto que surgiu, em 1955, um dos movimentos mais marcantes da história de lutas dos camponeses: as Ligas Camponesas (POLI, 1999, p.47).

Assim, a primeira Liga Camponesa da Galiléia surge, em 1955, quando

os donos do Engenho Galiléia tentaram aumentar o preço do foro (uma espécie

de aluguel) e expulsar os foreiros da terra, que passaram a se mobilizar, sendo

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representados pelo deputado e advogado Francisco Julião, do PSB (Partido

Socialista Brasileiro). Em alguns anos, várias novas ligas foram formadas em

mais de trinta municípios de Pernambuco, em outros estados do Nordeste e em

outras regiões do País.

Em 1962 vários encontros e congressos foram realizados reunindo representantes das diversas ligas. A essa altura, a consciência camponesa estava formada no sentido da luta em torno de uma reforma agrária radical. Os camponeses resistiam na terra e chegavam a realizar ocupações de terras. Eles tinham por lema „Reforma Agrária na lei ou na marra”. A posição do PCB e da Igreja Católica era, no entanto, por uma reforma agrária por etapas, com indenização em dinheiro e título aos proprietários (MORISSAWA, 2001, p.92).

As Ligas constituíram um amplo processo de mobilização e resistência

organizada dos camponeses, que trouxe à tona a discussão da questão agrária

e da reforma agrária em todo o país. A intervenção do Estado populista

nacional, entretanto, que passou a estimular a criação de sindicatos de

trabalhadores rurais, atrelados ao Ministério do Trabalho, converteu,

posteriormente, a maioria das Ligas em sindicatos. Essa retração, associada a

divergências internas quanto à orientação das lutas, tornou difícil a unificação

de sua direção, sobretudo a partir de 1961.

Esse enfraquecimento das ligas camponesas e sua transformação em sindicatos significou a passagem de uma proposta de reforma agrária radical, para uma reforma agrária por etapas. Ocorre que as ligas representavam uma proposta de revolução camponesa, enquanto os sindicatos, influenciados pela nova política do PCB, defendiam a convivência pacífica com a burguesia, num processo que deveria culminar numa revolução democrático-burguesa (POLI, 1999, p.48).

O PCB constituiu talvez a presença mais efetiva na condução das lutas

no período, promovendo encontros e congressos e a criação de organizações

de trabalhadores em nível local e em nível nacional, no caso a ULTAB (União

dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas), em 1954. Fez um grande trabalho

de politização das revoltas camponesas e de definição da reforma agrária

como uma bandeira nacional, buscando unificar a luta entre os diversos grupos

existentes no campo e articulá-la com outras formas de luta, colocando-a na

ordem do dia das discussões. Considerando o latifúndio expressão das

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sobrevivências feudais no país, “que impedia que milhões de camponeses se

constituíssem em mercado interno para a indústria que se ampliava, o PCB

elegeu a ação no campo como uma de suas prioridades” (POLI, 1999, p.48).

A ULTAB (União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas) tinha por finalidade coordenar as associações camponesas e criar as condições para uma aliança política entre os operários e os trabalhadores rurais. Em geral seus líderes eram camponeses, mas havia uns poucos indicados pelo PCB. Essa organização foi criada aos poucos em todos os Estados, com exceção do Rio Grande do Sul, onde havia o Master (...), e em Pernambuco, onde havia as Ligas Camponesas. Seus principais líderes foram Lindolfo Silva e Nestor Veras. Este último foi seqüestrado pelos órgãos da ditadura militar em são Paulo e jamais foi encontrado (MORISSAWA, 2001, p.94).

A partir de 1958, o PCB, orientado pelos partidos comunistas de outros

países, reformula a sua estratégia, buscando uma política conciliatória com

outros setores, como a burguesia nacional e setores da oligarquia rural, na luta

contra o imperialismo norte-americano. Ou seja, com uma proposta moderada

de reforma agrária, tentava atrair os „setores progressistas da burguesia’,

colocando a luta pela terra como um componente da revolução democrático-

burguesa. A adoção de táticas mais cautelosas explica a sua crescente

dificuldade de relacionamento com as Ligas (que enfatizavam o caráter

revolucionário da luta pela terra, com propostas mais radicais, colocando na

ordem do dia a luta pelo socialismo), o que é apontado como uma das causas

do enfraquecimento destas no início dos anos 1960.

A Igreja católica também esteve efetivamente organizada junto aos

trabalhadores rurais a partir de 1960, tendo criado diversos setores e serviços

voltados para a luta no campo. O MEB (Movimento de Educação de Base),

criado em 1961, teve atuação importante. “A orientação da CNBB6 para as

diversas organizações e ações eclesiais era no sentido da criação de um

sindicalismo cristão, afastado das lutas de classe, mas defensor dos direitos

dos trabalhadores e de uma reforma agrária baseada na propriedade familiar”

(POLI, 1999, p.53). Por essa perspectiva é que brigava com o PCB –

comunista e classista – pela direção dos sindicatos rurais. Grupos ligados à

igreja, mas mais independentes, entretanto, como a Ação Popular (dissidência

6 CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil.

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da Juventude Universitária Católica – JUC), que teve presença política

importante junto aos camponeses, construíram propostas mais radicais que

culminaram na conhecida Teologia da Libertação. Assim, a atuação da Igreja

se dava tanto por setores mais moderados, com uma pregação legalista dos

direitos dos trabalhadores, defendendo uma reforma agrária com a

desapropriação de terras abandonadas e sua „venda suave’ aos camponeses;

quanto por católicos radicais que, com uma filosofia humanista, acreditavam,

por exemplo, que a participação dos trabalhadores nos sindicatos iria

desenvolver sua consciência de classe fazendo-os agir como tal.

Outro movimento importante no período foi o MASTER (Movimento

dos Trabalhadores Rurais Sem-terra), no Rio Grande do Sul, entre os anos de

1960 e 1964. Nasceu de lutas pela terra no estado, através de lideranças

envolvidas na luta pela reforma agrária, sobretudo ligadas ao PTB (Partido

Trabalhista Brasileiro) e ao então governador Leonel Brizola. Com o tempo,

conseguiu formar algumas lideranças de base, conseguindo maior penetração

junto aos camponeses (a crítica comumente feita ao movimento é a de que foi

conduzido principalmente por lideranças políticas, mantendo um certo

distanciamento da base). “O ponto culminante do MASTER, segundo Wagner

(1989), ocorreu entre os anos de 1962 e 1963, quando foram montados

diversos acampamentos de sem-terra (35 ao todo) e realizadas várias

manifestações públicas pela reforma agrária, movimentando mais de cem mil

camponeses” (POLI, 1999, p.48). Aliás, o MASTER iniciou os acampamentos -

uma forma particular de organizar suas ações. “Diferentemente dos foreiros de

Pernambuco, que resistiam para não serem expulsos da terra, a luta dos

integrantes do MASTER era para entrar na terra” (MORISSAWA, 2001, p.94).

O acampamento de Passo Feio, no município de Nonoai, é apontado

como a ação mais importante do MASTER. Em 1963, cerca de 5 mil famílias,

organizadas por Jair Calixto, ex-prefeito de Nonoai, ocuparam a área e

resistiram no local por mais de um ano, contrariando a direção do movimento,

sob o cerco duro do então governador do Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti

(PSB), que havia derrotado o PTB nas eleições de 1962. Ao final, entraram na

reserva indígena dos índios Kaingangues de Nonoai, que os expulsaram 15

anos mais tarde. A partir de então, após vários conflitos, ocupações e

despejos, participaram do acampamento de Encruzilhada Natalino, em Ronda

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Alta, que foi uma das primeiras ocupações que deram origem ao MST

(Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra).

O MASTER, ainda que influenciado pelas Ligas, tinha uma proposta de

reforma agrária diferente: “a diferença básica era que as ligas propunham a

reforma agrária através da luta revolucionária, enquanto o MASTER queria

fazê-la de forma pacífica através de formas legais de luta e organização”

(POLI, 1999, p.48). Essa posição era proveniente do ideário do PTB, que

representava a proposta populista trabalhista nacionalista, com forte inserção

no Rio Grande do Sul e que defendia, da mesma forma, “a „reforma agrária

radical’, porém por via pacífica e com estratégias de luta situadas dentro dos

limites legais” (POLI, 1999, p.54).

No que tange à sindicalização rural, esta foi regulamentada, em 1962, no

governo de Jango. Com o reconhecimento dos sindicatos já existentes e a

formação de novos, abriu-se a perspectiva de formação das federações e

confederações dos trabalhadores rurais. No geral, entretanto, esse processo

acontecia apenas entre as cúpulas das organizações, especialmente da Igreja

Católica e da ULTAB, principais orientadoras dos sindicatos, que brigavam pelo

direcionamento do movimento. A CONTAG (Confederação dos Trabalhadores

na Agricultura) surgiu, em dezembro de 1963, a partir de um acordo entre as

duas instituições, que formaram uma lista única com candidatos de ambas,

depois de um longo processo de negociação. A CONTAG representou a

institucionalização das associações de trabalhadores rurais e a sua vinculação

ao Estado, desembocando num enfraquecimento do movimento camponês, até

porque a maioria dos trabalhadores estava à margem desse processo de

disputa, que acontecia no âmbito das cúpulas das organizações

(FERNANDES, 2000).

De maneira geral, o período de 1940 a 1964 representou a eclosão de

movimentos que trouxeram à cena política a luta dos trabalhadores em quase

todo o território nacional. Realizam-se aqui os primeiros congressos nacionais

e estaduais de trabalhadores rurais, embora as lutas sejam ainda

consideravelmente localizadas, com forte presença dos agentes externos

urbanos enquanto atuação majoritária de lideranças, especificamente, como

vimos, a Igreja e partidos – especialmente o PCB e o PTB – além de

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intelectuais e políticos. Aliás, de acordo com Poli, era característica marcante

dessas organizações:

a presença de uma concepção política que priorizava a representação política dos camponeses, mais do que a sua participação direta. (...) Apesar da preocupação manifestada com a problemática das populações no campo, percebe-se uma maior propensão a buscar o controle e a tutela de seus movimentos e organizações, do que estimular a sua autonomia (POLI, 1999, p.54).

Também se amplia, em especial dos anos 1950 aos 70, o debate sobre

os rumos do desenvolvimento do País, envolvendo a questão agrária, do qual

participam inúmeros intelectuais. Esta questão e suas diferentes soluções eram

apontadas no âmbito da visão geral de cada autor do desenvolvimento

capitalista da economia brasileira. Os principais esquemas explicativos da

agricultura brasileira preocupavam-se em compreender os papéis que a esta

eram atribuídos – buscando perceber se os cumpria ou não – no processo de

moderna industrialização.

O Debate Teórico Sobre a Agricultura Brasileira e o Desenvolvimento do

Capitalismo nas décadas de 1950 a 1970

No final dos anos 1950, a economia entra em crise, e a taxa de

crescimento industrial, que acabara de passar por um período de intenso

crescimento, entra em declínio. A causa é constantemente associada à

agricultura e ao processo de concentração de terras, que passaria a ser

encarado como um fator de impedimento ao desenvolvimento do capitalismo,

visto que este impossibilitaria a agricultura de cumprir o seu papel necessário,

como nos países desenvolvidos, especialmente no que tange à produção de

alimentos baratos, como forma de reduzir o custo da mão de obra industrial.

Tal idéia é sustentada pelo argumento de que uma agricultura como a

nossa, baseada no latifúndio, é incapaz de produzir permanentemente mais, e

a exclusão da maior parte dos trabalhadores do acesso à terra faz com que

esses produzam pouco e consumam pouco, encontrando-se à margem do

mercado.

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Ricardo Abramovay esclarece essa tese: nessa perspectiva, essa

realidade constituiria um “obstáculo ao desenvolvimento econômico como um

todo, pois, se os trabalhadores rurais tivessem acesso à terra, passariam a

gerar renda através da qual poderiam incorporar-se ao mercado interno

nacional e contribuir, assim, ao próprio desenvolvimento capitalista do país

(ABRAMOVAY, 1994, p.96).

Ganha força também a perspectiva dualista, difundida inicialmente por

Jacques Lambert e Roger Bastide, segundo a qual o Brasil seria marcado pela

existência de acentuada dualidade econômico-social, devido à existência de

uma estrutura aberta e moderna – o urbano, e um setor fechado e arcaico – o

rural. Alberto Passos Guimarães associa-se a esta análise quando afirma que

os resquícios feudais presentes na estrutura fundiária brasileira seriam

verdadeiros entraves ao desenvolvimento econômico e industrial do país. Para

este – diferentemente de Bastide e Lambert, entretanto, que desaconselhavam

o estímulo à agricultura familiar – a reforma agrária era tida como forma de

minar as relações semifeudais até então existentes, desde que destruísse os

latifúndios e fosse promovida por uma aliança entre burguesia nacional e

camponeses, ampliando o mercado consumidor e impulsionando a

industrialização (CASTRO, A.C., 1979; CASTRO, A.B.,1979; GUIMARÃES,

1977).

Ignácio Rangel (2000) apontaria também para a existência de elementos

feudais na organização interna da estrutura agrária brasileira, vinculada a uma

organização macroeconômica capitalista. Defendia, entretanto, que a reforma

agrária não seria necessária para alavancar o processo de industrialização

brasileira, situação que já se delineava com mais clareza no final dos anos

1960.

Rangel apresentava a tese de que a transição do complexo rural para a

agricultura capitalista, no Brasil, teria gerado fortes descompassos que

desencadearam uma violenta crise agrária.

A incapacidade de absorção da mão-de-obra rural liberada nesse processo pelos novos setores da economia produz uma „superpopulação’ que permanecerá estruturalmente em condições precárias de emprego ou ocupação: „Um descompasso entre os dois processos – da liberação da mão-de-obra pelo complexo rural ou autarcia familiar e de integração dessa mesma mão-de-obra no

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quadro da economia social (de mercado ou socialista) – é precisamente o traço dominante do fenômeno estudado como crise agrária (RANGEL apud KAGEYAMA, 1993, p.6/7).

Como já foi dito, também para Alberto Passos Guimarães (1977) a

questão agrária configurava-se, devido às dificuldades que a implementação do

sistema capitalista encontrava frente à estrutura arcaica da agricultura, de tal

forma que a superação da problemática agrária pressuporia a superação dos

obstáculos ao pleno desenvolvimento das forças produtivas capitalistas. Ambos

os autores, assim, compartilham a idéia da herança de restos feudais da

economia colonial, apesar de possuírem métodos de análise distintos. Para

Guimarães, “o problema agrário surge não da transformação rápida e

desequilibrada da agricultura – ao passar de uma economia de subsistência

para uma economia de mercado –, mas sim devido aos obstáculos a essa

transformação, representados pela herança do latifúndio feudal/colonial em

nosso país” (KAGEYAMA, 1993, p.7), quais sejam, os resíduos das relações

arcaicas de produção associados à rigidez da estrutura fundiária.

Para Celso Furtado, o problema agrário do Brasil estaria diretamente

relacionado à sua herança histórica, que condiciona a transição para uma

economia industrial, marcando uma grande heterogeneidade de formas de

trabalho e um sistema de baixos salários, que desemboca na marginalização

dos trabalhadores e na precariedade de emprego, respectivamente, nas

regiões mais atrasadas e no núcleo mais dinâmico da agricultura. Para o

teórico, como o Brasil caracterizava-se pela abundância de terras, pela mão-

de-obra barata e pela concentração fundiária, o estímulo à tecnificação era

baixo, atravancando a industrialização do país. A solução para este problema

estaria em uma reorganização da agricultura brasileira, eliminando a tutela que

a empresa agromercantil exerce sobre a massa da população rural. O aumento

da produtividade (através da tecnificação) e do poder aquisitivo dos pobres

seria condição sine qua non para a industrialização (FURTADO, 1973).

Para este autor, e de forma geral para os economistas da CEPAL

(Comissão Econômica para a América Latina, da Organização das Nações

Unidas), a reforma agrária era tida como “condição necessária para a solução

do problema da produção de alimentos, a baixo preço, para o mercado interno,

e a ampliação do consumo de bens industriais” (CASTRO, A.C., 1979, p. 34).

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Esta tese – que defendia uma reforma agrária para desenvolver o mercado

interno e a economia nacional – considerava que o processo de

subdesenvolvimento vivido pelo país se devia à inexistência de um mercado

interno capaz de sustentar um processo amplo de industrialização, baseado na

produção de bens de consumo não duráveis, a serem adquiridos por amplas

camadas da população. “A solução para esse problema seria promover uma

reforma agrária que transformasse milhares de camponeses pobres em

proprietários e consumidores, formando um enorme mercado interno para o

desenvolvimento de uma economia nacional capitalista” (STÉDILE, 1997,

p.15).

Hélio Jaguaribe e outros teóricos do ISEB (Instituto Superior de Estudos

Brasileiros), criado no governo Kubitschek, vão impulsionar, no debate, a

ideologia nacional-desenvolvimentista – ou o chamado nacional-capitalismo

(como pensamento pretensamente combativo ao imperialismo colonial) – que

se pretendia promotora do desenvolvimento numa visão ecumênica das

classes sociais:

Compreendia Jaguaribe como nacional-capitalismo o conjunto de políticas adotadas por Vargas, Kubitschek, Quadros e (até meados de 1963) Goulart; estas tinham em comum o esforço pelo desenvolvimento, autônomo e endógeno, sob a direção dos „empreendedores nacionais’, dentro do sistema de iniciativa privada e tendo no Estado a instância de planejamento, coordenação e suplementação (CASTRO, A.C., 1979, p. 36).

Grosso modo, as análises dualistas centravam-se na idéia de que a

agricultura brasileira seria ineficiente no contexto do desenvolvimento nacional,

posto que o setor agrícola não reagiria adequadamente aos estímulos

presentes nas mudanças ocorridas na estrutura da demanda seria incapaz de

transformar-se no sentido de absorver tecnologia moderna em proporções

significativas e não geraria um mercado para os produtos da indústria em geral,

além de limitar a constituição de um mercado amplo (CASTRO, A.C., 1979). A

essas afirmações sobrepuseram-se as suas críticas.

De acordo com Castro, A.C.,:

Os esquemas desenvolvimentistas partiam da constatação de um dualismo estrutural cujos pressupostos teóricos – as origens feudais das estruturas sócio-econômicas do passado colonial e o

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nacionalismo como instrumento de luta do capitalismo interno contra o imperialismo externo – não foram comprovados empiricamente (CASTRO, A.C., 1979, p.42).

Nessa perspectiva, Caio Prado Junior ressalta as origens capitalistas do

Brasil, vinculadas à empresa colonial portuguesa e à expansão do capital

mercantil, negando o caráter supostamente feudal da estrutura agrária

brasileira defendido pelas teorias dualistas e nacional-desenvolvimentistas:

faltou aqui a base em que assenta o sistema agrário feudal, e que essencial e fundamentalmente o constitui, a saber, uma economia camponesa (...), e que vem a ser a exploração parcelária da terra ocupada e trabalhada individualmente e tradicionalmente por camponeses, isto é, pequenos produtores. A grande propriedade rural brasileira tem origem histórica diferente e se constitui na base da exploração comercial em larga escala, isto é, não parcelária, realizada com o braço escravo introduzido conjuntamente com essa exploração, e por ela e para ela (CASTRO, A. B., 1979, p. 86).

O autor tece ainda críticas ao esquema evolutivo linear dos modos de

produção, que é seguido por Alberto Passos Guimarães e foi popularizado nas

publicações soviéticas, segundo o qual ao feudalismo deveria suceder-se,

necessariamente, o capitalismo, em todas as evoluções históricas. Para Prado

Júnior, “tal posição não leva em conta processos históricos concretos, nem

admite alteração na ordem de sucessão dos modos de produção no tempo,

muito menos reconheceria a possibilidade de outros sistemas produtivos além

daqueles já previstos” (CASTRO, A.C., 1979, p. 47). Nessa perspectiva, a

reforma agrária é tida como forma de elevação dos padrões de vida da

população rural, cuja miséria constituiria o maior problema para o

desenvolvimento real do País em qualquer outro setor (PRADO JUNIOR,

1979). A reestruturação fundiária pretendida pelo autor se enquadrava nos

limites do regime capitalista, até porque, de acordo com o seu referencial

marxista, a transformação socialista da sociedade só se efetivaria com a

evolução das forças produtivas capitalistas que, por sua vez, de acordo com

Prado Junior, só poderiam se desenvolver com a reforma agrária. As relações

sociais de produção constituem elemento central em sua análise da questão

agrária, que desdobra-se em três aspectos principais:

1 – o aprofundamento do desenvolvimento capitalista é o responsável

pela deterioração dos padrões de vida dos trabalhadores rurais;

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2 – essa deterioração é incompatível com o desenvolvimento nacional,

pois restringe o mercado entravando a industrialização que representa o

fundamento de uma economia nacional;

3 – a solução da questão agrária estaria na superação do que sobra de

colonialismo nas relações de emprego e trabalho, no interior do próprio

capitalismo. O problema central estaria, não na questão da terra diretamente,

mas nas relações de emprego na grande exploração, cujas contradições

constituem o motor básico da economia capitalista. Assim, num primeiro

momento, a solução estaria na melhoria das condições de emprego da

população rural, para, num segundo, alterar toda a estrutura econômica da

sociedade.

André Gunder Frank, inspirado no grupo marxista americano da Monthly

Review, reforça a contestação da existência de „restos feudais’ na estrutura

agrária latino-americana, explicando o caráter capitalista da colonização

moderna (séculos XVI e XVII) através da teoria da subordinação interna ao

imperialismo (CASTRO, A.C., 1979 e CASTRO, A.B., 1979).

Delfim Netto e Ruy Miller Paiva também afirmam que a agricultura não é

um obstáculo para o desenvolvimento do País, mas compõem a ala

conservadora da crítica ao dualismo. Descarta-se aqui a necessidade de

reformas radicais ou de base, inclusive a reforma agrária.

Para Delfim Netto, a chave do processo de desenvolvimento econômico reside, fundamentalmente, numa melhoria de produtividade do setor agrícola, o que, a um só tempo, libera mão de obra e eleva o nível de rendimento dos que ficaram no campo, sem gerar uma crise de abastecimento ou de fornecimento de matérias-primas. Em última instância, a agricultura financiaria o desenvolvimento industrial do país, à custa de uma transferência da mão de obra do setor agrícola para os demais (fato possibilitado pelos ganhos de produtividade neste setor). O caminho pelo qual se realizaria esta transferência seria precisamente a baixa do rendimento monetário dos produtos agrícolas. Dessa forma, a agricultura desempenharia, ainda, duas importantes funções no desenvolvimento: fornecer divisas e recursos via confisco cambial (CASTRO A.C., 1979, p.50).

Para Antônio Barros de Castro, a agricultura estava a cumprir

adequadamente suas funções no processo de desenvolvimento econômico

brasileiro, quais sejam, geração e permanente ampliação de um excedente de

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matéria primas e alimentos, liberação de mão de obra, criação de mercado e

transferência de capital, com caráter e intensidade, entretanto, diferentes de

outras experiências históricas, e compatível com o nosso tipo de

industrialização. Mas sua análise diferia da de Miller Paiva e Delfim Netto, por

considerar não apenas variáveis econômicas e por afirmar que o universo rural

não age passivamente, apenas cumprindo „funções’ num processo de

desenvolvimento. Para Castro, a agricultura, além de atender aos requisitos da

industrialização brasileira, na forma e intensidade em que eles foram

formulados, se „projetou’ no desenvolvimento urbano-industrial que, grosso

modo, condicionado – e possibilitado – pelas condições de miséria do campo,

reforçou, ainda mais, tais condições também nas cidades (CASTRO, A. B,

1979; CASTRO, A..C., 1979).

Um outro autor, Jacob Gorender, promove, através de suas teses, uma

certa ligação entre o debate da década de 70 e o que se iniciara na década de

80, desenvolvendo uma visão própria da gênese do desenvolvimento

capitalista no campo.

Gorender aplica à agricultura a definição de produção capitalista, qual

seja, um

modo de produção em que exista a subsunção real da produção ao capital (...), em que a contradição fundamental do modo de produção é a contradição entre o caráter social da produção e a forma privada de apropriação, em que a contradição fundamental de classes se verifica entre operários assalariados e capitalistas (GORENDER, 1994, p.17).

Entretanto, mesmo colocando que a origem do capitalismo brasileiro se

dá ainda no escravismo brasileiro (porque nele houve acumulação originária de

capital e o surgimento de um setor industrial), defende que, no campo, já no

período pós-abolição, o Brasil ficou subordinado ao que chama de modo de

produção “plantacionista latifundiário” por algumas décadas. Apoiado em

formas camponesas dependentes, com baixa produtividade, técnica atrasada,

e fraca divisão social do trabalho, tal modo de produção chega a constituir, no

final do século XIX e início do século XX, um obstáculo ao avanço do

capitalismo, na medida em que não permite acelerar o grau de acumulação do

capital. A gênese do capitalismo reside fundamentalmente na transformação da

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renda da terra em capital agrário e no adensamento do mercado de mão-de-

obra livre, inteiramente despossuída, mão-de-obra que pode ser assalariada

temporariamente (GORENDER, 1994).

Para o autor, o desenvolvimento capitalista na agricultura brasileira é

marcado por um forte impulso do Estado (na política de preços mínimos,

créditos a juros baixos, fornecimento de pesquisas, etc), que se dá de maneira

rigorosamente discriminatória, beneficiando os grandes proprietários; por uma

conjugação com o interesse da indústria de equipamentos, insumos agrícolas e

de transformação das matérias primas agrícolas, setores nos quais

predominam amplamente as grandes multinacionais imperialistas; pela

subsunção real da produção ao capital, de maneira que a tecnologia passa a

constituir a base técnica para a produção de mais-valia relativa, com a

consequente queda drástica de emprego nas propriedades maiores e mais

avançadas.

A partir dessa análise, e contrariando boa parte das teorias

desenvolvimentistas da época, o autor insere a idéia da impossibilidade de uma

aliança entre burgueses e trabalhadores, em defesa da reforma agrária,

embasada na tese de que o capitalismo teria já superado as barreiras para o

seu desenvolvimento, e sobre as bases da grande propriedade rural no Brasil.

Finalizando esta seção, pode-se afirmar que, nas décadas de 1950 a 70,

o tema do desenvolvimento foi o mais presente nas discussões acerca da

problemática agrária. O nacional-desenvolvimentismo e o dualismo estrutural,

que marcaram fortemente o debate acerca do processo da moderna

industrialização, foram criticados veementemente, e ainda com mais

intensidade a partir dos anos 1970.

Consideramos que o Brasil teve o seu próprio desenvolvimento

capitalista, ao ser gerado no contexto da expansão do capitalismo mundial,

marcado pela dependência internacional. Como mostra Castro (1979), o

desenvolvimento desse capitalismo necessitava (re)criar formas não

capitalistas de relações de produção, o que significa que a existência, por

exemplo, de manifestações de atraso técnico e de não generalização do

assalariamento do campo não seriam uma comprovação de um obstáculo do

setor agrícola ao desenvolvimento capitalista. Tais manifestações não se

explicariam “como resultante de uma sobrevivência colonial, mas sim como

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uma refuncionalização dentro da própria racionalidade do capitalismo

dependente ou periférico” (CASTRO, A.C., 1979, p.54).

No que tange à reforma agrária, como veremos mais à frente, a

reorientação política, a partir de 1964, com o empreendimento da chamada

“modernização conservadora”, veio comprovar que a estrutura agrária não

constituía um empecilho para o desenvolvimento industrial brasileiro, e

nenhuma alteração radical nesta seria necessária para a evolução das forças

produtivas capitalistas, tanto no setor agrícola quanto nos demais. Além disso,

como nos mostra Martins (1981), não fazia muito sentido a tão propalada

aliança camponesa – operária – burguesa contra os fazendeiros, visto que

estes últimos não constituíam, no Brasil, uma classe necessariamente

antiburguesa. Aliás, burgueses e latifundiários confundiam-se, personificando-

se, muitas vezes, em proprietários de terra que eram, da mesma forma,

capitalistas.

De qualquer forma, toda essa mobilização social aqui demonstrada,

advinda tanto do debate travado entre os mais diversos setores da sociedade,

quanto da importante luta empreendida pelos movimentos sociais na época,

como veremos mais à frente, acarretou determinadas ações governamentais.

Em 1962, pela Lei Delegada nº 11, cria-se a Superintendência de Política

Agrária – SUPRA, com o objetivo de planejar e promover a reforma agrária no

país. Em 1963, pela Lei 4.214, é sancionado o Estatuto do Trabalhador Rural,

normatizando as relações de trabalho agora no campo, até então à margem da

legislação trabalhista.

Em 1964, o então presidente João Goulart inclui a reforma agrária entre

as reformas de base prioritárias para o desenvolvimento nacional e envia ao

Congresso uma proposta de lei de reforma agrária com o objetivo de

desapropriar as grandes propriedades mal utilizadas que se localizassem a até

100 km de cada lado das rodovias federais.

Entretanto, em 31 de março do mesmo ano, o governo de Jango foi

derrubado pelo golpe militar que, como veremos, na próxima seção, no

decorrer da ditadura que implementou nos 21 anos seguintes, promoveu outros

contornos à questão agrária no Brasil.

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O Período Militar e a ‘Modernização Conservadora’ – a militarização da questão agrária

Na década de 1960, intensificam-se, ainda mais, os problemas sociais

no campo, pela pressão de enormes contingentes de camponeses pobres e a

inexistência de uma política governamental para resolvê-los. Os movimentos

camponeses se fortaleceram sobremaneira com a melhor organização de

classe e sob a influência de organizações políticas e partidárias. Suas

propostas tornaram-se mais bem definidas e consolidadas, sendo

acompanhadas, muitas vezes, da exigência de uma reforma agrária imediata.

Jânio Quadros assume a presidência do Brasil em 1960, mas renuncia

logo depois e João Goulart assume o poder em setembro de 1961.

O clima no país era de efervescência das lutas camponesas e operárias. A economia tinha poucos índices favoráveis, a inflação aumentava cada vez mais. Era necessário tomar um conjunto de medidas nas quais estavam implícitos benefícios à população mais pobre do país. O governo teria de implementar reformas de base, ou seja, mexer nas estruturas econômicas e sociais. A principal delas era a reforma agrária. Parecia inacreditável. Finalmente um governo se lembrava do trabalhador rural? Era óbvio que o movimento camponês a esta altura fervilhava em todo o país. Que tal fazer alguma coisa então para evitar que o Brasil se tornasse um país socialista? A Revolução Cubana estava ainda fresquinha, criando adeptos em toda a América Latina. O plano de reforma agrária de Jango previa a desapropriação de 100 quilômetros de cada lado de todas as rodovias federais. O governo tomaria terras improdutivas, isto é, pedaços de terra que os latifundiários, mesmo sendo donos, nunca tinham aproveitado e as distribuiria aos camponeses. Essa idéia não foi tirada do nada. Ela fazia parte do plano de desenvolvimento brasileiro do ministro Celso Furtado. Previa, com os novos pequenos proprietários, aumentar o mercado interno, porque, sendo donos e produzindo na terra, eles teriam condições de consumir. Assim, a indústria também cresceria e, com ela, a economia do país (MORISSAWA, 2001, p.83,84).

Outras reformas de base eram defendidas pelo governo Jango, como a

tributária e a educacional. Com uma concepção nacionalista, as reformas

mobilizavam, de certa forma, as esquerdas em sua defesa, preocupando os

interesses dos poderosos nacionais e internacionais – latifundiários,

banqueiros, empresários e militares.

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Em meio à turbulência, Jango convocou um comício na Central do

Brasil, no Rio de Janeiro, no dia 13 de março de 1964, para anunciar suas

reformas de base, na busca pelo apoio popular, necessário para a continuidade

do seu governo. As elites responderam com a Marcha da Família com Deus

pela Liberdade, outra manifestação também consistente. Mas não pararam por

aí.

No dia 31 daquele mesmo mês, Jango foi deposto, e tropas militares

deslocaram-se para vários pontos estratégicos do país. O golpe de estado, em

1964, ocorreu com o apoio das forças armadas e dos segmentos

conservadores da sociedade brasileira. Sob a liderança de governos militares,

o modelo adotado baseou-se no estímulo ao desenvolvimento do capitalismo

no campo, através da subordinação aos interesses do capital estrangeiro e do

processo acelerado de industrialização.

Numa conjuntura de “perigo iminente” do comunismo (em que a reforma

agrária era sempre um dos primeiros atos dos governos revolucionários), o

golpe militar de 1964 tratou de empreender uma violenta repressão contra os

movimentos de luta pela terra – bem como aos movimentos em geral que

visassem a alguma transformação social. Vivencia-se, nesse momento, a

militarização da questão agrária - as lideranças camponesas foram presas,

exiladas ou assassinadas; as organizações de trabalhadores rurais foram

fechadas. Alguns sindicatos que restaram acabaram por adotar uma política

meramente assistencialista, como em 1971, “quando o presidente-general

Médici criou o Funrural, órgão de previdência voltado para o campo e deu aos

sindicatos a responsabilidade pelas suas atividades burocráticas. Muitos

trabalhadores rurais confundiam os sindicatos com o Funrural” (MORISSAWA,

2001, p.95).

Em 30-11-1964, é sancionada a Lei nº 4.504 que dispõe sobre o

Estatuto da Terra e dá outras providências, incorporando, de forma separada,

medidas de reforma agrária e medidas de política agrícola (ou de

desenvolvimento rural) e criando, paralelamente, dois órgãos distintos: o

Instituto Brasileiro de Reforma Agrária – IBRA (em substituição à SUPRA), para

cuidar da reforma agrária, e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário –

INDA, para executar a política de desenvolvimento rural.

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De acordo com Pinto, “podemos afirmar que, do ponto de vista

estritamente legal, o Brasil estava dotado do instrumental jurídico e institucional

necessário para desencadear um programa nacional de reforma agrária”

(PINTO, 1995, p.69).

O Estatuto da Terra – em vigor até hoje, apesar das muitas modificações

sofridas –, aprovado no primeiro ano do regime militar e símbolo da correlação

de forças existentes à época, representava, em termos legais, um avanço sem

precedentes no que se refere a leis agrárias. Em termos práticos, entretanto,

não se pode dizer o mesmo.

O Estatuto da Terra não foi apenas uma resposta às lutas, mas também

uma proposta conciliatória da burguesia industrial para acelerar o

desenvolvimento capitalista no campo.

A pressão de associações patronais e líderes rurais resultou na

incorporação de medidas agrícolas que criaram os mecanismos indispensáveis

para a modernização conservadora que se seguiria no pós-1965, agrupados no

Título III do Estatuto da Terra. Este foi implementado em larga escala,

enquanto o Título II, relativo à reforma agrária, não saiu do papel: esta foi

colocada, na prática, não como desapropriação, mas como tributação,

colonização, assistência técnica, cooperativismo, etc.

Vale ressaltar, também, que o “pacote” de leis agrárias e as ações

governamentais pautaram-se, ao menos em parte, pelas orientações norte-

americanas expressas na política da Aliança para o Progresso, que propunha

medidas de reforma agrária como meio de aliviar tensões ou evitar revoluções,

frente à “ameaça do socialismo”.

Em 1970, esses dois órgãos – o IBRA e o INDA – são extintos e

substituídos pelo INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Agrária. É notória a criação de programas de colonização ou „programas

especiais de desenvolvimento regional’ que apresentam-se como substitutivos

da reforma agrária. Entre estes, temos o Programa de Integração Nacional –

PIN (1970), o Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à

Agroindústria do Norte e Nordeste – PROTERRA (1971), o Programa Especial

para o Vale do São Francisco – PROVALE (1972), O Programa de Pólos

Agropecuários e Agrominerais da Amazônia – POLAMAZÔNIA (1974), o

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Programa de Desenvolvimento de Áreas Integradas do Nordeste –

POLONORDESTE (1974), entre outros.

O PIN e o PROTERRA foram os programas mais significativos e aos

quais foi destinada uma alta soma de recursos. O PIN tinha como objetivo a

ocupação de uma parte da Amazônia, ao longo da Rodovia Transamazônica.

Baseado em projetos de colonização em torno de agrovilas, “buscava integrar

os homens sem-terra do Nordeste com as terras sem homens da Amazônia” (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1997, p.2).

Na prática, verificou-se que a maior parte das cerca de 5.000 famílias deslocadas para a região eram procedentes do extremo Sul do país, principalmente, dos estados do Rio Grande de Sul e de Santa Catarina, e não do Nordeste. Estudos posteriores demonstraram que os custos do programa foram altos, o número de famílias beneficiadas reduzido e o impacto sobre a região insignificante. O desempenho do PROTERRA também deixou a desejar: o programa desapropriava áreas escolhidas pelos próprios donos, pagava à vista, em dinheiro, e liberava créditos altamente subsidiados aos fazendeiros. Apenas cerca de 500 famílias foram assentadas depois de quatro anos da criação do programa (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1997, p.2).

Pinto (1995) desenvolve uma análise sobre os resultados surtidos pelo

Estatuto da Terra e conclui que, mesmo depois da constituição de inúmeros

dispositivos legais e da instalação de uma máquina administrativa para a

execução da reforma agrária, os efeitos são insignificantes, permanecendo a

estrutura agrária inalterada. De acordo com o autor, tal fato se deve, por um

lado, à não aplicação da lei em seu título relativo à reforma agrária e, por outro,

à intensa implementação de seu título relativo à política agrícola, em especial

no que se relaciona ao crédito rural, que favorecia não só os proprietários de

terra, como também especialmente, os grandes proprietários.

Em números, o regime militar (1964-1984) assentou 350.836 famílias,

sendo 85.181 em projetos de colonização, 122.114 por meio de ações

fundiárias estaduais e 143.514 em projetos de reforma agrária do governo

federal (Presidência da República, 1997). Números consideravelmente

irrisórios, frente aos milhões de trabalhadores sem-terra ou com pouca terra,

que vivem e trabalham em condições desumanas.

O período militar foi marcado, assim, por um fortalecimento das

oligarquias rurais e pela expulsão de trabalhadores das propriedades, em

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função do barateamento de outras formas de utilização do trabalho assalariado,

como o dos trabalhadores volantes, e da intensificação do uso da tecnologia

em substituição ao trabalho humano. Ocorre um processo acelerado de

quimificação e mecanização poupadores de trabalho, cujas causas se prendem

a uma conjunção de interesses dos grandes proprietários e das indústrias de

insumos e equipamentos agrícolas que acabavam de se instalar no país

durante o Plano de Metas.

Nas palavras de Romeiro:

Assim, as motivações profundas e reacionárias, que levaram os grandes proprietários a modernizar suas lavouras, se transmutaram aos olhos da sociedade em motivações progressistas fortemente apoiadas pelo Estado através de toda a sorte de subsídios e incentivos. Em resumo, a história mostrou que a estrutura agrária concentrada não foi obstáculo para a continuidade do processo de crescimento econômico. Foi, sim, obstáculo ao processo de desenvolvimento sócio-econômico que eleva a qualidade de vida da população em geral (ROMEIRO, 1994, p.123).

De acordo com Castro (1979), o desenvolvimento industrial do Brasil foi

diferente dos casos clássicos europeus, em que a indústria surgia como um

complemento das atividades do campo. Aqui, as indústrias nasceram e

expandiram-se de forma mais desvinculada do setor agropecuário

(fundamentalmente ligada a outros ramos, como siderurgia, mecânica e

extração mineral). Isso posto, a chamada „modernização conservadora’

empreendida, a partir da década de 1960, foi suficiente para resolver o

problema do aumento da produção agrícola, necessário para atender às

demandas do setor urbano-industrial.

No que se refere ao mercado consumidor, ainda segundo Castro (1979),

é possível afirmar que a ampliação deste em grandes proporções não se

colocou como necessária para o crescimento industrial no Brasil – afirmação

recorrente no debate dos anos 1950 a 1970 –, posto que os investimentos

industriais do País foram baseados principalmente na substituição de

importações, voltada para as classes com médio e alto poder aquisitivo (de

acordo com o modelo norte-americano de consumo de bens duráveis de tipo

moderno), ou seja, um mercado, ao menos parcialmente, já constituído. Tais

fatores, associados à profunda participação do Estado, fizeram com que a

industrialização apresentasse, visto pela perspectiva da agricultura, um relativo

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grau de autonomia, de tal forma que a economia capitalista brasileira encontrou

caminhos para crescer sem precisar reformular a sua estrutura fundiária.

De qualquer forma, entretanto, a dinâmica da agricultura vai estar ligada,

de forma cada vez mais intensa, à lógica determinante da economia do país.

Nesse sentido, Graziano da Silva (1987) faz uma análise das transformações

que ocorreram na dinâmica da agricultura brasileira no decorrer da

modernização conservadora dos anos 70 em termos do que chama a

passagem do complexo rural para os complexos agroindustriais, explicada da

seguinte forma:

A dinâmica do complexo rural era determinada pelas flutuações do comércio exterior. Mas a produção de exportação ocupava apenas parte dos meios de produção disponíveis, sendo a outra parte destinada à produção de bens de consumo para a população local e dos próprios bens de produção utilizados nas fazendas. Dessa maneira, a divisão social do trabalho era muito incipiente, as atividades agrícolas e manufatureiras (num sentido amplo) encontravam-se ainda indissoluvelmente ligadas; e grande parte dos bens produzidos nas fazendas só tinham valor de uso, não se destinando ao mercado. Em resumo, o mercado interno praticamente inexistia (SILVA, 1987, p.18).

A lógica do complexo rural, de acordo com Graziano da Silva, passa a

ser substituída simultaneamente ao processo de industrialização, o que traduz-

se na constituição do mercado interno de bens industriais voltados para a

agricultura e no desenvolvimento da divisão do trabalho.

Foi um longo processo que ganhou impulso a partir de 1850 (...) e se consolidou nos anos 50 com a internalização do setor produtor de bens de capital (D1). A partir daí, completada a industrialização propriamente dita, se inicia nos anos 60 a industrialização da própria agricultura: constitui-se um segmento específico do Di destinado a fornecer máquinas e insumos para o campo; e transformam-se as relações de trabalho, consolidando-se o assalariamento nos setores mais dinâmicos da agricultura do Centro-Sul do país. A agricultura já perdera a auto-suficiência de que dispunha no complexo rural para produzir os próprios meios de produção de que necessitava e os bens de consumo final; já deixara de produzir valores de uso para se dedicar a uma atividade específica, determinada, que produz mercadorias, ou seja, valores de troca. E agora a agricultura passa a operar como se fosse ela mesma uma indústria de um ramo qualquer da produção: ela não apenas compra a força de trabalho e os insumos que necessita de certas indústrias como também vende seus produtos os quais se converterão em sua grande maioria, em matérias primas para outras indústrias. (...) Trata-se agora de uma dinâmica conjunta do tripé „indústria para a agricultura – agricultura –

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agroindústria’, que remete ao domínio do capital industrial e financeiro e ao processo global de acumulação. É a fase de constituição dos complexos agro-industriais (SILVA, 1987, p.19,20).

Ainda segundo o autor, o processo de modernização capitalista da

agricultura fez avançar o processo de proletarização e de utilização do trabalho

assalariado, hoje predominante na agricultura brasileira, em detrimento do

papel produtivo da pequena produção, embora este ainda se mantenha

relevante do ponto de vista da participação dos pequenos estabelecimentos no

valor total da produção.

Para Graziano da Silva, se a superioridade do desempenho da

agricultura modernizada é inequívoca, são igualmente notáveis os efeitos

perversos de tal desempenho, sejam eles, essencialmente: o aumento da

concentração fundiária (tabela 1.5) e de renda, do êxodo rural (que tem na

diminuição da PEA rural, como se vê na tabela 1.6, uma de suas faces) e da

superexploração dos trabalhadores rurais. Em outras palavras, a modernização

agrícola se deu de forma a excluir a satisfação das necessidades mínimas de

boa parte da população, até porque o aumento da produção agrícola não é

condição suficiente para que haja desenvolvimento sócio-econômico.

Tabela 1.5 – Concentração da Terra no Brasil– 1960-1980 (índice de Gini)

Anos 1960 1970 1980 Brasil 0,842 0,844 0,859

Obs: O índice de Gini – indicador que mede o grau de concentração das terras, variando de zero (sem desigualdade) a um (plenamente desigual) – do Brasil foi marcado pela FAO (organismo das Nações Unidas responsável pela agricultura e pela alimentação mundial) e indicou que este é o segundo país do mundo em nível de concentração da propriedade da terra. Fonte: POLI, 1979, p.36.

Tabela 1.6 - Participação Relativa da PEA Rural na Força de Trabalho Total – 1940-1990

Anos

1940 1950 1960 1970 1980 1985 1990 66,7 60,5 54,5 44,6 30,1 28,5 24,0

Fonte: FIBGE. In: ROMEIRO, 1994, p.127.

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Nesse sentido, o processo de modernização da agricultura brasileira é

parte integrante do processo capitalista mais geral a que está submetido o

nosso país e que se exprime, contraditoriamente, pela riqueza e pela pobreza

que gera. E as propostas de reforma agrária burguesas, elaboradas antes de

1964, tiveram, em grande parte, seus objetivos superados pelo próprio

processo de modernização da agricultura, já que, mesmo sem a realização da

reforma agrária, criou-se um amplo mercado para a indústria nascente,

aumentou-se a produção e a produtividade e o grande capital se territorializou,

integrando os interesses agrários e urbanos nos novos complexos

agroindustriais.

De qualquer forma, o período de crescimento acelerado, também

chamado „milagre econômico’, teve sua decadência. Segundo Graziano da

Silva:

De 1974 em diante a economia brasileira deixa de apresentar os elevados índices de crescimento do período anterior, e no triênio 1975/1977 começa a se delinear claramente outra situação de crise. É muito interessante observar que em 1978 muitas coisas voltam a ser discutidas, com o início de uma relativa abertura política no país. E, entre elas, retoma-se com pleno vigor o debate sobre a questão agrária, novamente dentro do contexto mais geral das crises do sistema econômico capitalista (SILVA, 1980, p.9).

Assim, passado o período de auge do “milagre econômico” (1967/1973),

clarearam-se os seus frutos: de maneira geral, tinham privilegiado uma minoria

e penalizado os trabalhadores.

Ou seja, o silêncio foi imposto aos camponeses, mas as contradições da

realidade que serviram de base para as suas lutas não foram eliminadas. Ao

contrário, a modernização, empreendida na agricultura, impõe novas e

profundas transformações no campo, integrando a agricultura cada vez mais ao

circuito industrial e agravando as contradições presentes no campo. Como foi

colocado, a utilização intensiva de tecnologia poupadora de mão-de-obra e o

rebaixamento dos preços reais dos produtos, fruto da tecnificação da produção,

geraram um processo de empobrecimento gradativo dos pequenos produtores

rurais. Verifica-se um alto êxodo rural e uma reconcentração de terras,

associados a novas formas de exploração do homem do campo.

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Por isso, embora as organizações que representassem os trabalhadores

rurais tenham sido esmagadas pela ditadura, a luta pela terra não cessou, em

especial nas regiões sul, norte e centro-oeste do País, sendo fortemente

apoiada por alas da Igreja Católica.

No início da década de 1960, a Igreja Católica criou as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) que, já em meados da década de 1970, existiam em todo o país. Baseadas nos princípios da Teologia da Libertação, elas se tornaram importantes espaços para os trabalhadores rurais e urbanos se organizarem e lutarem contra as injustiças e por seus direitos. Os teólogos da libertação fazem uma releitura das Sagradas Escrituras da perspectiva dos oprimidos e condenam o capitalismo, considerando-o um sistema anti-humano e anti-cristão. Em 1975, surgiu a CPT (Comissão Pastoral da Terra), também da Igreja Católica, que, juntamente com as paróquias das periferias das cidades e das comunidades rurais, passou a dar assistências aos camponeses durante o regime militar. No início, a CPT esteve mais voltada para os posseiros do Centro-Oeste e Norte. Mais tarde, com a eclosão de conflitos pela terra em todo o país, ela se tornou uma instituição de alcance nacional (MORISSAWA, 2001, p.99).

Dessa forma, apesar de todo o retrocesso que houve na construção da

organização camponesa, durante o período dos governos militares, a

intensificação das contradições provocou, no final dos anos 70, uma eclosão de

conflitos no campo, inaugurando um novo marco, a partir da redemocratização

política brasileira, na história da luta pela terra no Brasil, como veremos na

próxima seção.

As Questões Agrária e Agrícola a partir dos Anos 1980 – a mundialização

do capital e as transformações no meio rural

A partir do período de redemocratização, a questão agrária ganha um

novo e forte ímpeto, marcado pela retomada do debate político e acadêmico

sobre o tema e pela “reefervescência” dos movimentos sociais camponeses,

apesar da permanência da forte resistência dos latifundiários e de seus

representantes políticos. O debate, entretanto, renasce sob outras perspectivas

frente às novas transformações sociais. A predominância do capitalismo nas

relações sociais – questão altamente polêmica nas décadas anteriores – é

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aceita praticamente de forma consensual. A redução do papel da pequena

produção nesse processo de desenvolvimento capitalista se dá, paralela e

contraditoriamente, ao mesmo tempo em que o trabalho familiar camponês

sofre um processo de revalorização, já que, como afirma Oliveira (1994), o

capital não expande de forma absoluta o trabalho assalariado, sua relação

típica, mas, em seu desenvolvimento contraditório, o próprio capital cria e se

utiliza de relações não capitalistas para sua própria (re) produção.

De maneira geral, as décadas de 1980 e 1990 marcam o

aprofundamento de uma série de tendências que vinham sendo delineadas,

desde o término do período militar, e que são passíveis de compreensão

apenas no interior do processo global de reestruturação capitalista, ou seja,

tendo em vista as novas situações impostas pelo processo de globalização e

pela hegemonia neoliberal. O meio rural, especificamente, vem passando, nas

últimas décadas, por transformações significativas, abrangendo novas

dinâmicas que vêm ocorrendo em nível planetário. Isso significa que a

agricultura, como parte integrante do processo produtivo, não está imune aos

efeitos dessas mudanças; ao contrário, vem sendo altamente atingida, em

diversas de suas fases, pela mundialização do capital.

Nesse olhar para além das fronteiras regionais, ancorado nas análises

de Flores e Silva (1994) e Ramon et alli (1995), destaca-se o papel central da

ciência e da tecnologia para o desenvolvimento da agricultura, assim como os

processos desiguais de desenvolvimento de ciência e tecnologia agropecuária

nos países desenvolvidos e nos países em desenvolvimento. A chamada

Revolução Verde, engendrada pela lógica da política externa dos EUA, e que

balizou os rumos da nossa modernização agrícola, alterou significativamente

as bases econômicas e sócio-técnicas da agricultura mundial.

Com relação à ciência e tecnologia agropecuária, esta era produzida nos Centros Internacionais de Pesquisa Agrícola (CIPAs). Localizados nas regiões de maior diversidade genética do planeta, os CIPAs nasceram refletindo mais as características e os interesses da agricultura dos países desenvolvidos do que dos países em desenvolvimento (...). Foram os CIPAs que lideraram a difusão dos pacotes tecnológicos da Revolução Verde, basicamente um „projeto químico’ (...) que serviu principalmente para aumentar o mercado americano de fertilizantes, pesticidas, máquinas agrícolas, equipamentos de irrigação e outros equipamentos agrícolas (FLORES & SILVA, 1994, p.25).

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Tida por vários anos como uma possível resolução dos problemas da

fome, a Revolução Verde trouxe, na realidade, um agravamento das

desigualdades e da dependência tecnológica entre os países, além de acentuar

a deteriorização do meio ambiente. Atraiu para o setor capitais internacionais e

acentuou o interesse dos grandes proprietários pela exploração direta e pela

intensa mecanização, com a conseqüente expulsão de trabalhadores rurais,

parceiros e arrendatários, bem como o aumento das desigualdades de

condições de produção e produtividade, e de acesso aos circuitos de

financiamento e comercialização entre pequenos e grandes produtores,

acentuando a concentração de terras e a marginalização do campesinato. Tal

dinâmica vai desencadear, atualmente, como um de seus pilares fundamentais,

a globalização do sistema agroalimentar, ou seja, de seus processos de

produção e consumo, o que representa, fortemente, a inserção das

macromudanças desta virada de século no campo da agricultura.

Assim como produção flexível – a possibilidade de se produzir a maioria das mercadorias com origem na agricultura em diferentes localidades do mundo – tornou-se a palavra de ordem para os produtores globais, consumo flexível – a existência de uma multiplicidade de nichos de consumo – está se tornando o elemento crítico das estratégias de globalização do consumo. Assim, a maioria das mercadorias agrícolas são produzidas numa variedade de localidades do planeta para distribuição e venda numa similar variedade de localidades em todo o globo (FLORES & SILVA, 1994, p.31,32).

Está claro que nesse processo, marcado, em termos de produção, de

acordo com Flores & Silva, pela necessidade de maior flexibilidade, de

investimento/adoção constantes de novas tecnologias e de maior mobilidade

de capital, tem-se, na realidade, uma ascensão sem precedentes das

multinacionais e um fortalecimento de organismos internacionais, como o FMI

(Fundo Monetário Internacional), bem como a criação de mecanismos

transnacionais, como o extinto GATT (General Agreement of Tarifs and Trade)

e a atual OMC (Organização Mundial do Comércio), que privilegiam

obviamente os países desenvolvidos, ou seja, aqueles que mais contribuem

com apoio financeiro e político para a criação e manutenção dessas

instituições.

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Nessa conjuntura, estimou-se, segundo dados da FAO de 1980, que

17% da população dos países subdesenvolvidos estavam abaixo da taxa

mínima de nutrição, o que correspondia a 535 milhões de pessoas. E eis o

paradoxo: no Sul, o peso da agricultura na balança econômica é muito maior,

devido inclusive à menor intensidade da industrialização com relação aos

países do Norte, mas corresponde a um consumo consideravelmente menor de

calorias por habitante (RAMON et alli, 1995).

Nessa perspectiva, o avanço da biotecnologia, muito em voga nesta

virada de milênio, representa, ao menos por enquanto, um processo similar ao

da Revolução Verde, já que praticamente limitado às multinacionais, portanto,

ao capital privado internacional, e baseado na exploração da diversidade

genética encontrada, fundamentalmente, nos países em desenvolvimento,

reforçando as relações de desigualdade e de dependência entre os países no

atual cenário global. Tais considerações, tecidas de acordo com o debate

teórico empreendido pelos autores aqui utilizados, remetem para a afirmação

de que a agricultura permanece influenciando os projetos de sociedade,

intensificando, inclusive, a sua participação estratégica na economia das

nações e nas relações internacionais.

Vinculando-se a este processo global, observam-se novas tendências

desencadeadas pelo processo acelerado de modernização da agricultura

brasileira, como o aprofundamento de uma integração entre os capitais,

representado pela consolidação dos complexos agroindustriais (CAIs), aos

quais já fizemos referência na seção anterior, posto que já estão presentes na

cena histórica brasileira, com certa relevância, desde a década de 1970.

Entretanto, é nesta última década que os CAIs se apresentam como parte

decisiva no processo atual de reestruturação produtiva agrícola, inseridos

numa condução política global de reestruturação capitalista.

A constituição dos complexos agroindustriais faz com que o processo de

produzir ligado à agricultura torne-se cada vez mais dependente da produção

de outros setores da economia. De acordo com Sorj (1987), o CAI constitui-se

no conjunto formado pelos setores produtores de insumos e maquinarias

agrícolas, de transformação industrial dos produtos agropecuários e de

distribuição, e de comercialização e financiamento nas diversas fases do

processo. Nessa perspectiva, a dinâmica da agricultura passa a ser passível de

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compreensão “a partir da dinâmica conjunta da indústria para a agricultura/

agricultura/ agroindústria, o que remete ao domínio do capital industrial e

financeiro e ao sistema global de acumulação” (KAGEYAMA, 1990, p.122,

grifos nossos).

Esse padrão mais recente de desenvolvimento da agricultura é marcado

profundamente pelo processo conhecido como territorialização do capital, em

que a penetração do capital financeiro, no setor agropecuário, atribui um novo

caráter à propriedade fundiária. O mercado de terras passa a ter papel de

destaque nesse processo devido à possibilidade de ganhos especulativos com

a propriedade da terra, tornando-se um ativo alternativo para o grande capital.

Tal processo liga-se ao movimento dinâmico da economia que, atualmente,

tem como uma de suas grandes marcas a fusão de capitais em torno de

determinados ramos, inclusive – e com força considerável –, do agropecuário.

A penetração maciça das multinacionais agroindustriais no Brasil,

fundamentalmente a partir da década de 1970, ao passo em que simboliza

esse processo, representa, dentro dos limites da concorrência oligopólica, o

acirramento da luta entre esses grandes conglomerados pelo mercado

brasileiro. As características que o desenvolvimento do CAI assumiu, de

maneira geral, são as mesmas verificáveis nos outros ramos da produção

industrial no Brasil: “alto grau de concentração, concorrência oligopólica,

controle pelo capital monopólico estrangeiro e nacional, com a diferença de ser

um setor onde a empresa estatal geralmente não ocupa um lugar importante”

(SORJ, 1987, p.32). Segundo estudo apresentado por Sorj, há, nesse processo

de integração, uma tendência à subordinação do produtor rural aos esquemas

de controle da produção agrícola colocados pelas empresas industriais e de

comercialização, mesmo que a produção seja realizada em estabelecimento

próprio, através de mecanismos financeiros e controle técnico da produção,

que marcam a transferência dos excedentes do setor agrícola para o capital

comercial e industrial. Nesse contexto, a forte dependência vertical do produtor

em relação à agroindústria dificulta, ainda mais – somada às adversidades já

conhecidas –, a possibilidade dos produtores de se organizarem em

cooperativas ou associações com certa autonomia e capacidade econômica

real.

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Tal fenômeno relaciona-se, inclusive, ao que Belik (1994) chama de

consolidação do toyotismo no sistema agroalimentar, que marca uma mudança

radical de uma forma de produção rígida para uma produção flexível. Essa

mudança se traduz num processo de reestruturação produtiva baseado mais

em inovações de cunho organizacional que tecnológico e emerge através de

fortes elos da cadeia agroalimentar com atividades de distribuição e logística, já

que o conhecimento do mercado e domínio dos fluxos de venda tornam-se

elemento essencial para uma produção flexível vinculada a um consumo

segmentado, num esquema “just-in-time”.

Esses novos esquemas de integração, baseados na flexibilização, têm

como importantes estratégias a terceirização e a formação de parcerias, numa

tentativa de redução de custos e acúmulo de forças num cenário de

competição internacional, o que coloca a necessidade da aceleração da

internacionalização dos grupos agroalimentares nacionais:

Nos anos 90, com a formação do MERCOSUL, intensifica-se esta internacionalização através de parcerias, joint-ventures e franchising entre empresas nacionais brasileiras e outras do Cone Sul. (...) Por outro lado, os maiores envolvidos nesse tipo de transação ainda são „firmas multinacionais que, na maioria dos casos, criam ou expandem parcerias comerciais entre subsidiárias ou integram-se verticalmente’. Nesse particular, como era de se esperar, os acordos de livre comércio tem beneficiado mais empresas de fora da região que os próprios capitais nacionais (BELIK, 1994, p.78).

Quanto ao financiamento da produção agrícola, na década de 1990,

Belik e Paulillo (2001) demonstram que os mecanismos de crédito tradicional

subsidiado, ligado ao setor público, decisivos no processo de modernização

dos anos 1960 e 1970,

foram sendo esvaziados e preenchidos de maneira gradativa pelo crédito privado, proveniente da indústria, de trading companies e de outros agentes. Comprova-se que os setores mais bem organizados lograram construir mecanismos de apoio e financiamento que não passam diretamente pela regulação do Estado (BELIK & PAULILLO, 2001, p. 96).

Isso significa que a crescente perda de regulação estatal, iniciada já no

final dos anos 1970 e intensificada nos anos 1990, ligada fundamentalmente à

abertura comercial com a queda de barreiras à importação, bem como à

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globalização das operações financeiras – políticas próprias do modelo de

desenvolvimento econômico neoliberal adotado no país –, beneficiou

diretamente, e somente, aqueles segmentos que conseguiram criar novas

formas de financiamento não dependentes do Estado para o desenvolvimento

de seus negócios, quais sejam, aqueles com formas de governança privada e

alavancados principalmente por grupos de interesses não agrários, vinculados

aos segmentos financeiro e industrial. Em outras palavras, os benefícios desse

processo ficaram concentrados em um grupo altamente reduzido de

agricultores que conseguiram acumular recursos utilizados para a implantação

de novas tecnologias – inclusive beneficiários do financiamento subsidiado

estatal de décadas anteriores – e hoje são capazes de sobreviver

independentemente do crédito rural. “Nesse novo sistema de financiamento, o

objetivo é o de atendimento à agricultura moderna („eficiente’), isto é, para

aquelas culturas que apresentam algum tipo de integração com um

encadeamento agroindustrial ou estão inseridas nos corredores de exportação”

(BELIK & PAULILLO, 2001, p. 108).

É no bojo desse processo que as agroindústrias se sobrepõem, através

do lançamento de pacotes de integração, formando-se campos organizacionais

nos quais as novas formas privadas de financiamento atuam como ferramentas

de controle e dominação. Essas formas atuais de organização podem ser

vislumbradas através do que os autores chamam de subsistemas, ligados a

rotinas especificamente regionais, onde se verifica claramente a introdução das

novas formas de financiamento privado.

A mudança na orientação do financiamento para a agricultura brasileira salienta a clara separação entre a agricultura empresarial, articulada para frente junto à indústria, exportadores e distribuição e a pequena agricultura (familiar, na maioria das vezes) amparada apenas pelos mecanismos „sociais’ de sustentação. Fica evidente que, com a perda do poder de regulação por parte do Estado, expresso através da administração dos velhos mecanismos do crédito rural, a distância entre essas duas agriculturas só tende a aumentar no futuro (BELIK & PAULILLO, 2001, p. 118, grifos nossos).

É importante atentar para o fato de que, no entanto, o Estado não deixa

de ser figura central nesse processo de reestruturação produtiva agrícola,

como nos apresentam os apologistas da teoria do Estado-mínimo.

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Contrariamente, como nos mostra Sorj, o Estado coloca-se como regulador e

incentivador da dinâmica de expansão agrícola e de desenvolvimento do

complexo agroindustrial, inserida dentro do contexto dos processos de

acumulação do conjunto da economia. Segundo o autor, sua forma de

intervenção é múltipla: ora na regulação de preços, ora na distribuição de

créditos e subsídios; ora no favorecimento ao desenvolvimento das

cooperativas, ora no apoio à expansão das multinacionais; ora subsidiando o

capital para permitir a criação de complexos agroindustriais, ora não praticando

nenhuma intervenção (SORJ, 1987).

Todo esse processo de reestruturação agrícola traduz-se no acirramento

das contradições engendradas pelo desenvolvimento capitalista, expresso, nos

termos utilizados por Oliveira, pelas duas faces da modernidade no campo: o

agronegócio e a barbárie. O tão propalado agronegócio, que se apresenta

como representante de um setor competitivo do campo, responsável pelas

exportações de commodities, que resultam num “espetacular” superávit na

balança comercial, simboliza a mundialização da economia brasileira.

O Brasil do campo moderno, dessa forma, vai transformando a agricultura em um negócio rentável regulado pelo lucro e pelo mercado mundial. Agronegócio é sinônimo de produção para o mundo. Para o mercado mundial o país exportou: papel e celulose, carnes; o complexo soja como gostam de nominá-lo; madeira e suas obras; sucos de frutas; algodão e fibras têxteis vegetais; frutas, hortaliças e preparações. Mas quis a ironia que o Brasil tivesse que importar arroz, algodão e milho, além, evidentemente, do trigo. Assim, o mesmo Brasil moderno do agronegócio que exporta, tem que importar arroz e milho (alimentos básicos dos trabalhadores brasileiros) e teve que importar também algodão, matéria-prima industrial de larga possibilidade de produção no país. Mas o mercado é implacável. Ele cada vez mais não se regula pelo nacional. Mundializado ele mundializa o nacional. Destrói suas bases e lança o país nas teias da rede capitalista mundial. Assim, ele se torna moderno, logo destituído da lógica que faz dos brasileiros um povo diferente no mundo. Não se trata de exaltar fora de hora o nacionalismo, mas trata-se de na lógica do mercado olhar a balança comercial e seus efeitos para a nação. À medida que o país exporta determinados produtos obriga-se a importar outros. (...) Quando observa-se a pauta de exportações e importações do Brasil e das regiões ou estados, verifica-se esta lógica perversa do mercado. O país produz e exporta a comida que falta nos pratos da maioria dos trabalhadores brasileiros (OLIVEIRA, 2004, p.13 e 14).

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E acrescenta:

Assim, o agronegócio moderniza o país, já não dependemos mais apenas do trigo, agora também do leite. Está-se pois, diante de uma terrível contradição. Quem produz, produz para quem paga mais, não importa onde ele esteja na face do planeta. Logo, a volúpia dos que seguem o agronegócio vai deixando o país vulnerável no que se refere à soberania alimentar. Como as commodities garantem saldo na balança comercial o Estado financia mais, as ditas cujas. Então, mais agricultores capitalistas vão tentar produzi-las. Dessa forma, produz-se o saldo da balança comercial que vai pagar os juros da dívida externa. É o cachorro correndo atrás do próprio rabo. Ou como preferem os companheiros, é o neoliberalismo em sua plena volúpia (OLIVEIRA, 2004, p.14 e 15).

Os altos níveis de competitividade, produtividade e emprego tecnológico

do agronegócio brasileiro convivem e, ao mesmo tempo, reforçam, as faces da

“barbárie” no campo: o ataque à soberania alimentar, a degradação ambiental,

e a pobreza. Conseqüentemente, intensificam-se os conflitos.

Grosso modo, a maneira como o Brasil conseguiu aumentar sua

produção agropecuária tem causado impactos altamente negativos sobre o

nível de renda e de emprego da sua população rural e, indiretamente, da

população urbana. Isso posto, é fato que todo esse processo de

reestruturação agrícola traz em si, paralelamente, outras tendências ligadas à

questão agrária, que também se intensificam no pós-regime militar, com

especial configuração nos anos 1990, como a crescente lumpenização do

homem do campo que, expulso da terra, vivencia a degradação de suas

condições sociais e humanas, expressa nos crescentes índices de migrações e

subemprego, além da mendicância, prostituição e criminalidade das metrópoles

do nosso país.

Como sugere Graziano da Silva, em 1980, “a força com que a questão

agrária brasileira ressurge hoje não advém apenas da maior liberdade com que

podemos discuti-la. Mas também do fato de que ela vem sendo agravada pelo

modo como têm se expandido as relações capitalistas de produção no campo”

(SILVA, 1980, p.11).

Isso decorre do fato de que o sentido das transformações capitalistas é

justamente elevar a produtividade do trabalho, tornar a produção mais intensiva

sob o controle do capital, o que só ocorre através do aumento da jornada e do

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ritmo de trabalho das pessoas, e intensificando, no caso rural, a produção e a

produtividade agropecuária. Expressam-se, assim, no desenvolvimento

contraditório e desigual do capitalismo no campo, “as duas faces da mesma

moeda. De um lado, está o agronegócio e sua roupagem da modernidade. De

outro, está o campo em conflito” (OLIVEIRA, 2004, p.6).

Os Governos Democráticos do Pós-Regime Militar e a Reforma Agrária

Mesmo com todas as características nefastas da situação agrária no

pós-regime militar, vistas claramente através do aumento da violência no

campo, da concentração fundiária e da pobreza rural, as condições para a

realização de uma reforma agrária ainda se mostraram, ao menos no campo

institucional, bastante desfavoráveis. O poder executivo e o legislativo contam,

desde então, e ainda hoje, com uma forte presença de proprietários de terra

que constituem as bancadas ruralistas. O poder judiciário sofre de uma relativa

carência em formação em Direito Agrário, além de estar tradicionalmente ligado

ao conservadorismo e ao poder local. As forças armadas e militares mantêm

seu posicionamento de guardiãs da segurança e tuteladoras da propriedade

privada e do processo fundiário. Grande parte da imprensa e dos meios de

comunicação ainda é ligada a grupos econômicos com fortes interesses

fundiários, mantendo uma nítida postura conservadora. Ao longo dos governos

subseqüentes ao período militar, a reforma agrária até esteve presente nos

programas de gestão, mas não foi muito além.

Em 1985, com a posse do presidente civil José Sarney, após 21 anos de

governos militares, cria-se o MIRAD – Ministério da Reforma e do

Desenvolvimento Agrário, ao qual passa a subordinar-se o INCRA. Este

ministério desenvolve o chamado “Primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária

da Nova República” – o 1o PNRA.

O 1o PNRA, porém, não foi o primeiro da história do Brasil – já tinham

sido decretados ao menos outros dois com o mesmo nome: o PNRA de 1966, e

o PNRA de 1968, ambos enfatizando a tributação e a colonização, sem realizar

nada próximo a uma real reforma agrária. Certamente o de 1985 foi o que teve

maior destaque:

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A grande diferença com planos anteriores é que este escolheu a „desapropriação por interesse social’ como instrumento principal a ser usado no processo de reforma agrária. Este instrumento, previsto na nossa Constituição, dá ao Estado o direito não só de desapropriar terras que não estejam cumprindo a sua função social, como também de indenizar o valor dessas terras em TDA (Títulos da Dívida Agrária), pagando em dinheiro tão somente as benfeitorias (SILVA, 1985, p.76)2.

Sacramentado pelo Decreto nº 91.766, de 10 de outubro de 1985, sob a

coordenação do MIRAD, o Primeiro PNRA da Nova República foi elaborado

com base no Estatuto da Terra, que estabelece que a Reforma Agrária “será

realizada por meio de planos periódicos, nacionais e regionais, com prazos e

objetivos determinados, de acordo com projetos específicos” (PINHEIRO, 1999,

p.16).

O objetivo geral do PNRA era descrito como sendo o de alterar a

estrutura fundiária do país, de forma a eliminar tanto o latifúndio quanto o

minifúndio, assegurando a realização sócio-econômica do trabalhador rural.

As metas do PNRA partem das “Estatísticas Cadastrais” de 1978 e das

“Estatísticas Tributárias” de 1984, que apontam um contingente de 10,6

milhões de trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra (minifundistas).

Desses beneficiários potenciais, estima-se que 3,5 milhões estão ou serão retidos em seus empregos pela dinâmica da agricultura empresarial brasileira, como assalariados permanentes ou temporários (...) Dessa forma, os beneficiários potenciais da Reforma Agrária seriam cerca de 7,1 milhões de trabalhadores rurais. A proposta do MIRAD/INCRA prevê o assentamento desses trabalhadores em 15 anos, ou seja, até o ano 2000 (SILVA, 1985, p.78).

Como veremos posteriormente, tanto o objetivo (alterar a estrutura

fundiária), quanto às metas, não chegaram nem perto de se realizar

efetivamente.

Somente nos primeiros cinco anos, as metas do PNRA eram de assentar

1 milhão e 400 mil famílias. Entretanto, o governo Sarney, que permaneceu até

1990, deixou como saldo um número extremamente reduzido de projetos de

2 A título de esclarecimento, cumpre sua 'função social' o imóvel rural que, simultaneamente,

seja produtivo, utilize adequadamente os recursos naturais e preserve o meio ambiente, observe a legislação trabalhista, e promova a exploração de modo a favorecer o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores.

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reforma agrária: após 5 anos, foram assentadas apenas 90.000 famílias,

menos de 10% da meta original (tabela 1.7).

Tabela 1.7: Reforma Agrária no Governo Sarney, segundo o 1o PNRA – 1985/1990

METAS PROGRAMADAS METAS EXECUTADAS

Assentamento (nº famílias) 1.400.000 90.000 Desapropriação (área em ha) 43.000.000 4.500.000 Fonte: INCRA. In: PINTO, 1995, p.75.

O governo Collor (1990/92) apresentou como proposta o assentamento

de 500.000 famílias. Entretanto, frente a uma política de desmantelamento da

administração pública, acelera o processo de desgaste, ao qual já vinha se

submetendo o INCRA, e assenta um número inferior a 30 mil famílias

(OLIVEIRA, 2001).

Já o governo Itamar (1992/94) chegou a aprovar um Programa

Emergencial para o assentamento de 80.000 famílias, das quais, entretanto,

apenas 23.000 foram atendidas com a implantação de 152 projetos numa área

de 1.228.999 ha (PINTO, 1995, p.76).

Tabela 1.8: Brasil – Dados sobre os Assentamentos Rurais (até 1994)

Tipos de Assentamento Nº Área (milhões ha)

Nº de Famílias

De reforma agrária (gov. federal) 850 8,1 143.514 De ações fundiárias estaduais 726 5,0 122.114 De colonizações (gov. federal) 49 14,1 85.181 TOTAL 1.626 27,2 350.836 Fonte: INCRA. In: PINTO, 1995, p.77.

A elaboração da Constituição de 1988 também foi palco para inúmeras

polêmicas que rondam a questão agrária, ocorrendo intensa mobilização das

forças interessadas, destacando-se as atividades desenvolvidas pela UDR

(União Democrática Ruralista), que articulava os setores patronais e

conservadores da sociedade e conseguiu, através de variadas manobras, fazer

prevalecer o seu ponto de vista.

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Para autores como José Gomes da Silva (1994), a Constituição

Brasileira de 1988 representou um retrocesso em relação ao que já existia

sobre política agrária, constituindo-se a pior carta para os trabalhadores rurais

desde 1946.

Entre os recuos apresentados pelo autor, destacam-se:

– o afrouxamento do instituto de desapropriação por interesse social,

rebaixando de 100 para 50 ha o limite do instituto do usucapião, mantendo

praticamente inalterado o limite para alienação ou concessão de terras

públicas;

– a impossibilidade de desapropriação por interesse para fins de

reforma agrária em todas as chamadas propriedades produtivas.

Compartilhando da mesma idéia, Pinto afirma:

Tudo o que se incorporou à Constituição em termos da função social da propriedade rural e desapropriação por interesse social foi anulado pela introdução do inciso II do artigo 185, que diz que „a propriedade produtiva’ é insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária, não definindo o que entende por propriedade produtiva. Tal dispositivo, como se previa, tem dado margem a infindáveis disputas judiciais (PINTO, 1995, p.75).

Dentre os poucos avanços da Constituição de 1988 estariam a

inauguração de um capítulo especial dedicado à reforma agrária, a explicitação

da função social e a determinação de uma reavaliação de todos os incentivos

fiscais e de uma demarcação das terras públicas no prazo de cinco anos.

Entretanto, o saldo é considerado altamente negativo. Nas palavras de

Gomes da Silva, sobre a referida Constituição, considera-se que:

os trabalhadores rurais pagaram o preço de alguns avanços sociais contidos na Carta de 1988. A pobreza de conteúdo, as contradições do texto, os recuos notórios e o destaque ao supérfluo, constituem algumas das marcas negativas do Capítulo III do Título VII do texto constitucional que pretendeu regular as relações homem/terra no Brasil” (SILVA, 1994, p.177).

Em 1993 foi aprovada a Lei Agrária, que reclassificou as propriedades

de terra no Brasil, em pequenas propriedades (até 5 módulos), médias

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propriedades (entre 5 e 15 módulos) e grandes propriedades (maiores que 15

módulos)3.

O objetivo da Lei Agrária era, dessa forma, definir os principais conceitos

necessários à implementação da Reforma Agrária prevista na Constituição.

Esta colocou como imóveis passíveis de desapropriação todos aqueles que

não cumprirem a função social, exceto a pequena e a média propriedade,

desde que seu proprietário não possua outra.

Em outras palavras, seriam “sacrificadas” apenas as grandes

propriedades que não atingissem determinado grau de produtividade, atenta à

sua 'função social', o que é veementemente criticado por autores como Stédile:

Independente do conceito de vernáculo e das classificações legais, devemos considerar que são latifúndios todas as grandes propriedades privadas de terras que existem em nosso país, as quais, por se apropriar de um bem da natureza, cercar, impor um falso conceito de direito absoluto da propriedade, e subjugar-se apenas à vontade do seu proprietário legal, se caracteriza como um pecado, na forma de organização dos bens da natureza, em nossa sociedade (STÉDILE, 1999, p.166,167).

De qualquer forma, a Lei Agrária de 1993 vem servindo, na falta de

dispositivos legais mais contundentes e coerentes, como embasamento jurídico

relevante para a conquista de desapropriações de terras.

O Governo FHC na Questão da Reforma Agrária

O Governo de Fernando Henrique Cardoso, de 1994 a 2002,

caracterizou-se por uma orientação marcadamente neoliberal na

implementação da política econômica, fundamentada em elementos que

provocaram o aumento substancial da dependência externa do país, quais

sejam:

Eliminação praticamente absoluta das restrições às importações (inclusive de produtos agrícolas); abertura para a entrada maciça do capital estrangeiro, particularmente os de natureza especulativa, provocando forte vulnerabilidade; crescimento da dívida externa,

3 O módulo rural representa o tamanho mínimo de terra que uma família necessita para o seu

sustento e progresso, sendo variável regionalmente.

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apesar do pagamento de juros crescentes; entrega do patrimônio nacional ao capital estrangeiro através do processo de privatização. Somados, estes processos se traduzem num aumento da vulnerabilidade brasileira frente às grandes empresas transnacionais e às principais potências estrangeiras, particularmente, os EUA (ALENTEJANO, 2002, p.1).

De maneira geral, verificava-se a tentativa de enquadramento da política

agrária do governo FHC às determinações do FMI, seguindo as indicações do

chamado Consenso de Washington. Nessa mesma perspectiva, de acordo com

Gerson Teixeira, que empreende uma análise sobre os primeiros 4 anos do

governo FHC, foram sendo implementados, no Brasil, os procedimentos

básicos da política agrícola neoliberal:

a diretriz, sem relativizações e compensações, de inserir a agricultura no processo de plena liberalização comercial, tem resultado na forte aceleração da transferência, para o plano externo, dos determinantes de sua dinâmica. (...) Significa que a desestatização da política agrícola, em curso, retrata, na verdade, um processo de desnacionalização do poder de regulação sobre a economia agrícola brasileira que, progressivamente, passa a subordinar-se, de forma direta, aos interesses dos países ricos e dos grandes grupos transnacionais que mono/oligopolizam a produção e o comércio dos insumos e produtos (TEIXEIRA, 1997, p.1,2).

Conforme Stédile, foi através deste modelo de produção agrícola

implementado que, de forma geral, “as grandes empresas internacionais e

financeiras chegaram na agricultura e tomaram conta do nosso comércio

agrícola” (STÉDILE, 2003, p.5): Quem controla o comércio do milho no Brasil é a Cargill, a Bunge e a Monsanto; no caso da soja é praticamente só a Bunge e a Monsanto; e assim por diante. Das grandes agroindústrias brasileiras só sobrou a Sadia, todas as outras foram desnacionalizadas: Chapecó, Perdigão, Arisco. Aquele leite Itambé, de Minas Gerais, que era famoso, um patrimônio da cultura mineira, não é mais nosso, a Cooperativa Batavo dos produtores do Paraná foi desnacionalizada para a Parmalat... Enfim, há muitos exemplos de como o Brasil entregou a agricultura para as grandes empresas estrangeiras (STÉDILE, 2003, p.5).

A política agrícola voltou-se, assim, prioritariamente, para a promoção

das exportações, com apoio diferencial para aqueles produtos com melhor

mercado internacional, e com uma política de importação dos demais, em

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detrimento de um apoio efetivo à agricultura familiar. Caso exemplar deste

processo refere-se às linhas de crédito subsidiadas. Conforme cálculos do

economista Fernando Homem de Mello, “comparando-se os custos de

financiamento e a evolução da inflação, observamos que a taxa de juros para

os agricultores familiares que era 20% inferior à inflação em 1995 passou a ser

260% maior em 1998. Além disso, a oferta de crédito tem diminuído”

(ALENTEJANO, 2002, p.1).

Este direcionamento político do governo FHC trouxe sérios obstáculos

ao processo de reforma agrária, ainda que esta tenha sido colocada como

prioridade em seu plano de ação desde o 1o mandato. Na realidade, o governo

seguiu um percurso radicalmente antidemocrático, através da política agrícola

implementada, e da promoção, através de ações extemporâneas que desafiam

as lógicas política e econômica, de iniciativas celulares e restritas de

assentamentos rurais. As áreas selecionadas, em sua grande maioria,

configuravam-se em ambiente de conflito e luta pela terra, onde os

trabalhadores estavam coletivamente organizados em movimentos sociais,

segundo as informações do próprio governo:

Das 62.044 famílias assentadas, 45.471 estavam em áreas de conflito (...). Dessas famílias assentadas em áreas de conflito, 27.453 eram posseiros e 18.018, acampados – grupos de pessoas que não têm acesso à terra e permanecem dentro de uma propriedade rural ou em suas redondezas, à beira das estradas, em situação provisória e precária, mas organizados pelos movimentos sociais e vivendo de forma coletiva (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1997, p.3).

Em função das pressões exercidas pelas entidades representativas dos

trabalhadores rurais e dos movimentos sociais organizados, o governo federal

instituiu o Gabinete do Ministro Extraordinário de Política Fundiária que,

posteriormente, transformou-se em Ministério do Desenvolvimento Agrário, ao

qual o INCRA passou a ser vinculado. Criou também três programas centrais

que, de acordo com os documentos oficiais, visavam garantir a sobrevivência

da pequena agricultura. São eles: o PRONAF – Programa Nacional de

Fortalecimento da Agricultura Familiar; o PROGER RURAL – Programa de

Geração de Emprego e Renda Rural; a Previdência Rural. Desses, o PRONAF,

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institucionalizado em 1996, foi o que teve maior repercussão, e sobre o qual

detalharemos um pouco mais.

De acordo com documentos fornecidos pelo INCRA, o “PRONAF é um

programa de apoio ao desenvolvimento rural, a partir do fortalecimento da

agricultura familiar, como segmento gerador de postos de trabalho e renda. O

programa é executado de forma descentralizada e tem como protagonistas os

agricultores familiares e suas organizações” (INCRA, 2000, p.1).

De acordo com a análise feita por Teixeira (1997), o PRONAF constitui,

na realidade, uma medida compensatória, lançada no bojo das medidas para o

financiamento da safra 1996/97. Muitos problemas foram detectados na

execução do programa, dentre os quais: apenas pouco mais de 50% dos

recursos prometidos (R$1 bilhão) para o ano de 1996 - que já eram

insuficientes – foram investidos (R$570 milhões); os financiamentos de custeio

com recursos do programa – divulgados para a opinião pública como um

esforço do governo em direcionar linha favorecida de empréstimos para a

agricultura familiar – apresentaram encargos totais muito superiores a todas as

taxas que aferem o processo inflacionário; o posicionamento da maioria dos

próprios bancos oficiais na execução dos programas que, além de

descumprirem muitas de suas regras, só financiam os produtores integrados a

empresas agroindustriais, ou a cooperativas por elas controladas. “Quer dizer,

além de um evidente desvio de finalidade por estimular a forma mais moderna

de exploração da pequena produção, os recursos do PRONAF vêm, na

verdade, servindo para desobrigar as empresas agroindustriais do

financiamento dos seus „produtores terceirizados’. Um belo presente!”

(TEIXEIRA, 1997, p.3).

Outro documento – do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça

no Campo – divulga, baseado em estudos de especialistas do próprio governo,

como o do professor Guilherme Dias, dados que atestam as nefastas

conseqüências geradas pelo modelo agrícola implementado pelo governo FHC:

Nos últimos anos, 900.000 pequenas propriedades, com menos de 100 hectares, foram à falência. Das 700 mil propriedades do setor PATRONAL, apenas 88 mil estão se viabilizando. Dos 4 milhões de agricultores familiares, apenas 700 mil terão viabilidade. Há um empobrecimento generalizado e na média, nenhuma propriedade até 50 hectares consegue ter uma renda mensal superior a um salário

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mínimo. Dois milhões de assalariados rurais perderam seu trabalho. O crédito rural que atingia, na década de 80, aproximadamente 18 bilhões de dólares anuais, agora se limita a 8 bilhões de reais. E continua cada vez mais escasso e longe dos agricultores familiares. A produção de grãos está estagnada, há dez anos, na faixa de 80 milhões de toneladas (FÓRUM NACIONAL DE REFORMA AGRÁRIA E JUSTIÇA NO CAMPO, 2000, p.1).

De maneira geral, o governo FHC buscou implementar, nesses oito anos

de governo, o programa que denominou “Novo Mundo Rural”, no qual

reconhece a relevância dos pequenos agricultores para o desenvolvimento do

campo e cria uma série de medidas para tratar da questão agrária. De acordo

com Fernandes, entretanto,

essas políticas têm o capital e o mercado como principais referências, de modo que procura destituir de sentido as formas históricas de luta dos trabalhadores. A luta pela terra, que tem como princípio o enfrentamento ao capital, defronta-se com esse programa, por meio do qual pretende convencer os pequenos agricultores e os sem-terra a aceitarem uma política em que a integração ao capital seria a melhor forma de amenizar os efeitos da questão agrária (FERNANDES, 2001, p.21).

Acordado com essa perspectiva, em março de 1999, o Governo Federal

lançou o documento “Agricultura Familiar, Reforma Agrária e Desenvolvimento

Local para um Novo Mundo Rural”, alvo posterior de uma série de críticas à

política agrícola implementada pelo governo FHC. Alentejano (2000) aponta,

por exemplo, para o fato de que o documento associa a importância da

agricultura familiar e o desenvolvimento sustentável como complementares,

mas insere, no centro da questão, a visão liberal de eficiência econômica,

baseada numa ótica produtivista excludente e numa concepção

mercadocêntrica que se reflete na acentuada preocupação de modernização

técnica e desenvolvimento da capacidade de gestão. Em outras palavras, os

moldes tradicionais do padrão tecnológico da Revolução Verde permanecem

nos projetos governamentais, inclusive para os agricultores familiares que

forem incluídos no programa, mesmo frente às severas críticas relativas ao seu

caráter social e ambientalmente danoso, além do alto custo econômico:

muito provavelmente, o resultado será a reprodução de processos característicos desse modelo como: tendência a concentração da propriedade, aumento crescente de custos, redução da produtividade

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a longo prazo, redução do volume de mão de obra empregado, favorecendo o êxodo rural, a contaminação de solos, lençóis freáticos, alimentos e agricultores, ou seja, tudo, menos desenvolvimento sustentável (ALENTEJANO, 2000, p. 90).

Além disso, as propostas de modernização apresentadas no documento

voltam-se para aquela parcela de agricultores familiares considerados em

situação intermediária, ou seja, possuem um caráter estruturalmente

excludente. Assim, mostra-nos Alentejano (2000), o conjunto da agricultura

familiar do Brasil é trabalhada junto à proposta do negócio rural, seguindo a

lógica do mercado, o que é um contra-senso, posto que exclui uma ampla

gama de pequenos produtores, já que a realidade do campo é muito mais a da

miséria dos agricultores familiares e da especulação dos grandes proprietários

do que a da modernidade do negócio rural. Aliás, o próprio paradigma teórico

da agricultura familiar, que tem se sobressaído nos estudos contemporâneos

em detrimento do paradigma teórico da agricultura camponesa, vincula-se à

tese de que esta deve estar inserida na lógica do desenvolvimento capitalista.

O Banco da Terra, criado no 2o mandato de FHC, é símbolo desse

processo. De acordo com Alentejano, constituía um mecanismo de compra e

venda de terras para fins de reforma agrária. No entanto, seu processo de

arrecadação de terras e seleção das famílias era descentralizado, ficando a

cargo dos municípios, fortalecendo o poder das elites locais e dificultando a

pressão popular. O Banco da Terra representa a afirmação da reforma agrária

de mercado como mecanismo para distribuir terra no campo, acordada na

perspectiva da qualificação para a disputa de mercado como saída para a

agricultura familiar. Aliás, conforme Alentejano, os mecanismos de compra de

terras, por vezes, acabam por premiar os interesses especulativos,

transformando o INCRA, num momento em que o mercado de terras está

desaquecido, em “agente fundamental de valorização da propriedade fundiária

no país, transferindo recursos públicos para grandes empresas e

especuladores” (ALENTEJANO, 2002, p.3).

Conforme depoimento de um membro do movimento sindical dos

trabalhadores rurais mineiro:

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Quando o governo passado implantou o sistema Banco da Terra, foi outro sistema,

infelizmente, outro projeto, simplesmente pra desmobilizar e desarticular os

trabalhadores, da qual ele acabou desarticulando, e muito. E no entanto os

trabalhadores hoje ta lá jogado no... não vamo dizer tá jogado no mato, mas está lá

dentro dum pedacinho de terra que não tem condição de sobrevivência de acordo com

o projeto Banco da Terra. Porque a condição de trabalhar é pouca... Muitas das vezes

é chamado filho sem pai e sem mãe. E a partir da hora que os trabalhadores dentro

das terras da qual super faturou o valor da terra, das terras, praticamente dobraram o

valor, ficou muito bom pro latifúndio, pra valorizar suas terras, e com isso pôs o

trabalhador lá dentro sem nenhuma condição financeira, sem nenhuma condição é...

técnica, a ponto de que vários trabalhadores que tão lá, e eu tenho várias pessoas que

eu conheço que tão esse sistema e que infelizmente tão lá meio sem saber o caminho

a seguir (diretor da FETAEMG, entrevistado em junho de 2003).

De forma geral, especialmente em seu 2o mandato, o governo FHC

adotou, na prática, uma política de enfrentamento aos movimentos sociais

rurais, em especial contra o MST. Através de tentativas claras de conter o

avanço da organização dos trabalhadores rurais sem-terra – através, por

exemplo, da possibilidade de assentamento de famílias não organizadas via

correio, da impossibilidade da desapropriação em terras ocupadas, do

enquadramento de vários líderes em processos de formação de quadrilha,

entre outras medidas de criminalização das ações dos movimentos –, as ações

governistas da era FHC foram tomadas no sentido de descentralizar a reforma

agrária, transferindo boa parte das responsabilidades para o poder municipal –

haja vista o PRONAF –, ao mesmo tempo em que reforçava a repressão aos

movimentos.

Por sua vez, os assentamentos rurais são, em grande maioria,

promovidos em áreas de conflito, onde existe forte pressão dos movimentos

sociais organizados. As desapropriações não são fruto de um processo geral e

estrategicamente programado. Não há um planejamento em nível nacional, que

vise alterar definitivamente a estrutura fundiária do país, democratizando o

acesso à terra. Ao contrário, a política agrícola implementada caminha em

outras direções. E a questão agrária foi tratada pelo governo FHC de forma

pontual, parcial, regionalmente localizada. Tal governo, que se "orgulha" do

fato de ter assentado o maior número de famílias que todos os outros (e

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realmente o fez, o que não significa ter sido muito frente ao histórico brasileiro

e à intensa expulsão de trabalhadores rurais, em contraposição), “consegue”

manter “intocada” a injusta, desigual e excludente distribuição de terras e

rendas do nosso país, se não, agravando-a ainda mais. Aliás, há que se

considerar que o total de áreas desapropriadas corresponde a apenas “7% de

todas as terras ociosas do país, segundo o próprio INCRA, e somente 2,7% de

todas as terras em poder do latifúndio no Brasil” (ALENTEJANO, 2002, p.2).

Além disso, boa parte dos assentamentos rurais criados foi fruto de um

processo de regularização fundiária, ou seja, “não se trata de desapropriação

de terras para assentar pessoas que não tenham acesso a esta, mas

concessão de títulos para posseiros que há muito ocupavam tais áreas”

(ALENTEJANO, 2002, p.2). O governo, ao fim do mandato, divulgou que tinha

assentado 580.000 famílias – número esse bastante questionado, uma vez que

cerca de 67% delas na região da Amazônia Legal, “ou seja, foi um projeto de

colonização de terras públicas, e, no caso das desapropriadas, o grande

benefício foi para o fazendeiro desapropriado, que era grileiro de uma terra

pública e ganhou um dinheirão para devolver ao governo a terra que tinha

grilado” (STÉDILE, 2003, p.6).

Acrescente-se o fato de que a criação dos assentamentos não se faz

acompanhada do necessário apoio para a consolidação destes, no que se

refere ao apoio de infra-estrutura produtiva e social.

Não há uma reformulação da política agrícola que passe a privilegiar a pequena produção familiar, perpetuando-se, portanto, as condições que produzem a concentração fundiária e reafirmando-se o modelo da grande produção, para onde convergem os recursos públicos de financiamento da agricultura. Como comprovação disso, vemos que entre 1989 e 1996 a área cultivada diminuiu 8 milhões de hectares, a produção agrícola cresceu menos 11% que a população, aumentando a fome, o crédito caiu de 19 bilhões ao ano para 8 bilhões, só 10% da produção é financiada e particularmente só os grandes têm acesso a crédito, a venda de tratores caiu de 37 para 17 mil ao ano, o governo liberou 45 bilhões para os usineiros, 2,5 bilhões para as grandes cooperativas, parcelou em 20 anos com 9% de juros/ano as dívidas de 3 mil grandes proprietários com o Banco do Brasil, num total de 4,5 bilhões e está investindo 20 bilhões em corredores de exportação de soja e outros grãos (ALENTEJANO, 2002, p.3).

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Ao término dos dois mandatos do governo FHC, a questão agrária torna-

se ainda mais urgente. Conforme Stédile, baseado em dados do INCRA, a

política adotada configurou-se num processo implementado na “contramão” de

uma real reforma agrária:

Os 26.000 maiores proprietários de terra no Brasil têm fazendas com áreas superiores a 2.000 hectares, uma enorme fazenda. Esses proprietários tinham, no início da década de 80, 128 milhões de hectares, o patrimônio deles somado; quando terminou o governo FHC, estavam com 178 milhões de hectares. Ou seja, em dez anos, coincide com o período Collor-FHC, eles acumularam um patrimônio de 50 milhões de hectares. E do outro lado da moeda, nesse mesmo período, 920.000 propriedades com menos de 100 hectares foram à falência, desapareceram. Então, o governo FHC não deixou apenas de fazer a reforma agrária, mas aumentou a concentração da propriedade (STÉDILE, 2003, p.6).

É neste contexto que Luiz Inácio Lula da Silva assumirá, em 1o de

janeiro de 2003, a presidência do Brasil. Eleito sob bases populares,

representará uma nova correlação de forças, reconhecidamente favorável à

reforma agrária.

O Governo Lula na questão da Reforma Agrária

A vitória do PT nas eleições de 2002 – partido historicamente vinculado

às lutas dos trabalhadores e defensor de uma efetiva reforma agrária, trouxe

novos contornos para o debate acerca da questão agrária no país.

O Programa Vida Digna no Campo estabeleceu as diretrizes do projeto

de política agrária do governo Lula, através da fixação de quatro objetivos

centrais: “a garantia do abastecimento alimentar em quantidade para toda a

população; a geração de divisas para o país através da agricultura exportadora;

a recuperação e a manutenção dos recursos nacionais integradas ao

desenvolvimento agrícola; a implementação de um programa de reforma

agrária amplo” (TORRES, 2003, p.11). Com relação a este último item,

referente ao programa de reforma agrária, foram apontados oito objetivos

principais:

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1. Estabelecer as “zonas reformadas” principalmente através da desapropriação de terras improdutivas; 2. Viabilizar financeiramente o programa mediante a utilização dos TDAs (títulos de dívidas agrárias), que passariam a ser resgatados pelo prazo constitucional (até vinte anos), ao contrário do que vem acontecendo desde o governo FHC (resgate entre dois e cinco anos), para reduzir os custos das indenizações; 3. Garantir os direitos humanos com promoção de ações específicas e permanentes de fiscalização do trabalho rural, de combate à violência no campo e com o fim da repressão institucional (supressão de leis) aos trabalhadores rurais e suas entidades de representação; 4. Recuperar os assentamentos já efetuados, garantindo infra-estrutura social e econômica, assistência técnica, acesso a crédito rural e comercialização em parceria com estados e municípios; 5. Elaborar os planos de desenvolvimento dos assentamentos em sintonia com os objetivos da preservação do meio ambiente; 6. Desenvolver ações específicas para índios e quilombolas; 7. Implantar o cadastramento de imóveis rurais em que áreas griladas sejam devolvidas ao Estado e utilizadas na reforma agrária; 8. Confiscar as propriedades que pratiquem trabalho escravo (TORRES, 2003, p. 11).

Obviamente, não há como fazer, ainda, uma avaliação aprofundada do

governo Lula, no tocante à reforma agrária, tendo em vista que apenas o

primeiro ano de mandato foi concluído. Limitar-nos-emos aqui, dessa forma, a

tecer algumas breves considerações.

Ainda que representando, pela primeira vez na história do Brasil, um

governo marcadamente popular, construído em décadas, através das

organizações dos trabalhadores, a ampla coligação feita no processo eleitoral

determinou um curso político ainda nebuloso e controverso. Conforme Teixeira,

que coordenou, inclusive, a elaboração do Programa Vida Digna no Campo,

acima mencionado, “a opção política do governo, que o levou a uma base

política de amplo espectro e a uma conduta conservadora na economia,

repercutiu no plano institucional e repercute na performance do programa

agrário” (TEIXEIRA, 2003, p.10). Além da sua ampla e diversificada base de

sustentação, a bancada ruralista (que em parte, inclusive, compõe a sua base

no Executivo), constitui ainda um relevante entrave para medidas mais efetivas

em se tratando da problemática rural. Exemplo disto é a ressonância que

encontra nos ministérios da Agricultura e do Desenvolvimento e Interior, frente

à indicação dos atuais ministros Roberto Rodrigues e Luiz Fernando Furlan,

respectivamente.

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O primeiro ano do governo Lula não significou, assim, grandes avanços

na questão agrária no Brasil. O orçamento destinado para 2003 não foi maior

que o de 2002, impossibilitando o necessário reaparelhamento do INCRA e o

assentamento de um maior número de famílias.

Segundo anunciou o atual presidente do INCRA, Rolf Hackbart, durante

o ano de 2003 foram assentadas 36.300 famílias. O MST contesta os números

e afirma o assentamento de apenas 17 mil famílias. De qualquer forma, os

números são bem inferiores aos 60 mil prometidos (Folha on line, 16-01-2004).

O orçamento para 2004, destinado ao Ministério do Desenvolvimento

Agrário, é de R$ 1,005 bilhão. De acordo com cálculos de pesquisadores,

seriam necessários R$ 4,6 bilhões para assentar as 166 mil famílias de sem-

terra cadastradas, durante o ano de 2003, nos acampamentos (Folha on line,

1º-12-2003). Vale lembrar, ainda, que o governo pagou 10 bilhões só em juros

da dívida externa em 2003 – nove vezes mais que o orçamento do MDA.

Com relação ao aparato normativo criado na gestão FHC, como a

medida provisória que impede vistorias em terras ocupadas, o governo evitou

adotar uma postura mais firme: “para não melindrar a sensível porção

conservadora da sua base de sustentação, manteve-se o aparato normativo

que impõe óbices legais inadmissíveis ao processo de reforma agrária e o

instrumental repressivo aos trabalhadores instituído pelo governo FHC, ainda

que, na prática, o governo venha ignorando tais instrumentos” (TEIXEIRA,

2003, p. 10).

Aliás, de forma geral, o governo tem evitado adotar uma postura mais

ofensiva para a implementação da reforma agrária no país, deixando de

promover, inclusive, medidas com um impacto político relativamente menor que

um processo amplo de reestruturação fundiária, como a revisão dos prazos de

resgate dos TDAs, a determinação do fim dos juros compensatórios em

processos de desapropriação, ou o confisco de propriedades em que se utiliza

o trabalho escravo.

De acordo com entrevista concedida à Agência Carta Maior por João

Paulo Rodrigues, membro da coordenação nacional do MST:

um importante embate neste primeiro ano de governo Lula se deu em torno da concepção do modelo agrícola do país. Para o MST, a reforma agrária não pode ser parte de uma política de

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compensação social, mas deve ser vista como um projeto econômico de geração de empregos e produção de alimentos. Neste sentido, apesar da atenção maior à agricultura familiar em termos de alocação de recursos (foram destinados cerca de R$ 5 bilhões ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), além de R$ 400 milhões do Fome Zero para a compra antecipada da produção de assentamentos pela Conab), o agribusiness, viabilizado pela agricultura extensiva e latifundiária, continua prioridade tanto das políticas internas quanto das políticas externas do país, na medida em que a agricultura para exportação este ano pautou as discussões do governo em fóruns como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Alca. (Verena Glass – 16/12/2003 Agência Carta Maior).

No entanto, não há como negar, no entanto, que houve uma alteração

real na correlação de forças, de forma tal que há hoje uma articulação mais

consolidada entre os diversos atores ligados à temática agrária, como os

movimentos sociais, a Igreja e as universidades, e destes com o próprio

governo, o que pode ser observado como uma certa abertura para a discussão

dos pleitos das organizações dos trabalhadores rurais, bem como dos projetos

governamentais a serem implementados. Este processo remete a outra medida

positiva do governo Lula, que tem a ver com o reconhecimento, por parte do

governo, da legitimidade dessas organizações. Ao contrário do que ocorria no

governo FHC, que buscava minar as formas de organização dos movimentos, o

Plano de Emergência para os acampados garante cesta básica e prioriza o

assentamento destas famílias.

Por seu turno, os movimentos sociais, ainda que mantendo uma linha de

apoio ao governo, têm ampliado suas ações na luta pela terra, mesmo frente à

ampliada organização armada dos fazendeiros e seus jagunços – só entre

janeiro e agosto de 2003 foram registrados, pela CPT, 60 assassinatos de

trabalhadores rurais.

Ainda assim, conforme Teixeira, apesar da tímida atuação do governo

Lula até então, no tocante à reforma agrária:

Acho que temos dois fatores favoráveis que, combinados, projetam um cenário favorável: o compromisso histórico do PT e do presidente Lula pela reforma agrária e a força dos movimentos sociais, principalmente do MST. Essa combinação de forças é, na minha opinião, determinante para que acreditemos na realização de uma reforma agrária massiva e de qualidade durante o governo Lula (TEIXEIRA, 2003, p. 11).

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Em novembro de 2003, o governo Lula lançou o seu Plano Nacional de

Reforma Agrária, que tem como meta o assentamento de 400 mil famílias até

2006, sendo 115 mil até o fim de 2004. “Estamos preparados para cumprir

integralmente todas as metas do Plano Nacional de Reforma Agrária e criar

mais de 2 milhões de empregos no campo”, afirmou o ministro do

desenvolvimento agrário Miguel Rosseto, em janeiro de 2004 (Estado de Minas

on line).

A perspectiva aqui tomada por referência é a de que a intervenção e a

pressão exercidas pelas mobilizações e organizações de trabalhadores rurais

na luta pela terra consistem em fatores fundamentais na correlação de forças

envolvidas num processo de transformação da realidade prevalecente no meio

rural, e que, ainda hoje, e com a mesma força, são determinantes para os

rumos da política agrária no país, mesmo frente a uma situação inédita e, por

vezes contraditória, de se ter no Estado, histórica e estruturalmente ligado às

elites dominantes, uma coligação de frente popular, liderada por um partido

vinculado, desde a sua origem, a demandas dos trabalhadores, tais como a

reforma agrária.

O Debate Atual sobre a Reforma Agrária

Tentaremos, nesta parte do trabalho, apontar, de forma sucinta, as

principais posições em pauta no debate dos últimos anos sobre a reforma

agrária, ressaltando que este parece ser um momento de concretização das

novas definições, fruto das transformações nas relações internacionais e da

modernização da agricultura brasileira, que elevam o tema a outros patamares

levando os seus protagonistas a reformular os termos da questão.

A grande questão que se coloca, hoje, neste debate, é a natureza da

reforma agrária: há inúmeras diferenças quanto à forma de aplicação, o

alcance, a legislação e até quanto às razões da reforma agrária.

De maneira simplificada, Alentejano (1996) classifica as formas básicas

de se encarar a reforma agrária, presentes no cenário político e intelectual do

Brasil, apresentando três tipos:

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I - como política social compensatória – Essa tese defende a idéia de

que a estratégia de modernização agrícola resolveu os problemas do ponto de

vista econômico-produtivo do país, não cabendo uma ampla reformulação no

setor. Entretanto, justamente pelo seu caráter conservador, refletido num

crescimento da concentração fundiária e de renda, faz-se necessária uma

política social compensatória, voltada para os excluídos do processo de

modernização. A reforma agrária é encarada como uma política social, cujo

papel seria o de corrigir as distorções sociais causadas pelo processo de

modernização e que o mercado não pode resolver, ao contrário, agrava. Seria

a mais barata e eficaz forma de gerar emprego e renda. Entre os defensores

dessa tese está Graziano da Silva:

creio que se justifica um programa de Reforma Agrária „vigoroso e massivo’ como uma política capaz de gerar milhões de empregos no campo e reduzir o êxodo rural, evitando o inchamento das grandes metrópoles. (...) a reforma agrária brasileira se justifica nos anos 80 como „uma política social’, independente dos reflexos produtivos que possa vir a ter. Isso significa que, antes de resolver o problema do feijão e do arroz, precisamos decidir se os milhões de trabalhadores rurais deste país têm direito ou não de ser cidadãos brasileiros (SILVA, 1985, p.100,101).

II - como política distributiva – Essa corrente defende que a adoção da

reforma agrária deve ser vinculada a uma política de caráter distributivo,

destinada a garantir a segurança alimentar da população e a sustentar a

retomada do crescimento econômico do país. A diretriz central seria o apoio e o

fomento à agricultura familiar. A reforma agrária deveria ser uma política de

democratização do capitalismo brasileiro, embutida, aqui, de um forte sentido

econômico. Essa corrente tem em Veiga (1994) um de seus representantes:

Com base na experiência histórica dos países do Primeiro Mundo, deve-se pensar que a passagem da economia brasileira para uma fase socialmente articulada de desenvolvimento dificilmente poderá prescindir de um conjunto de políticas públicas que venha a fortalecer, aqui também, a agricultura familiar. (...) E é esse objetivo estratégico que dá sentido econômico à reforma agrária. Precisamos de uma reforma agrária que desafogue os minifundistas, oferecendo-lhes a oportunidade de se tornarem agricultores familiares viáveis; uma reforma agrária que transforme arrendatários em proprietários; uma reforma agrária que ofereça terra aos filhos dos pequenos proprietários; enfim, numa reforma agrária cuja diretriz central seja o fomento e o apoio à nossa agricultura familiar (VEIGA, 1994, p.91).

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III - como uma política voltada para a transformação do modelo de

desenvolvimento vigente – A reforma agrária é tida aqui como o próprio

questionamento da ordem social vigente, sendo apenas parte de um conjunto

de reformas que abarque os mais diversos setores e redirecione o modelo de

desenvolvimento, para que este seja efetivamente mais democrático. Tal

proposta é defendida, entre outros, por Stédile (1999), que enfatiza a

necessidade de se realizar uma reforma agrária sob a ótica dos trabalhadores,

que atenda às suas necessidades, o que requer uma amplitude bem maior que

a simples distribuição da terra como forma de democratizar a sociedade no

meio rural:

Tal processo de reforma agrária, além da democratização da propriedade da terra, deverá promover também a democratização do comércio agrícola, dos processos agroindustriais, do acesso ao capital e também do conhecimento, da educação. Esse seria o significado de uma reforma agrária dos trabalhadores (STÉDILE, 1999, p.194,195).

Esta perspectiva, de uma reforma agrária para além do capital, difere

radicalmente da chamada reforma agrária de mercado – que ganhou força no

governo FHC e vincula-se às diretrizes políticas do Banco Mundial, que tem, no

capital e no mercado, as suas principais referências. Nessa proposta, conforme

Medeiros, o processo de obtenção de terras é regulado pelo mercado. Da

mesma forma, o assentado é visto como “um empreendedor que deve se

ajustar ao mundo dos negócios e nele se mostrar competitivo”, de maneira que,

após um período curto de consolidação dos assentamentos, o mercado deve

tornar-se “o regulador maior das atividades desse contingente recém-chegado

à terra” (MEDEIROS, 2002, p.69).

Conforme já fizemos referência anteriormente, a proposta de reforma

agrária implementada através de mecanismos de mercado teve no Banco da

Terra a sua maior expressão e está sinalizada no programa Novo Mundo Rural,

bem como no paradigma da agricultura familiar por ele difundido. No entanto,

ela não vem sendo assumida apenas por setores mais conservadores da

sociedade. Ao contrário, tem tido grande repercussão no meio acadêmico e,

inclusive, no seio de algumas organizações de trabalhadores rurais, como a

CONTAG.

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De acordo, no entanto, com a terceira forma apresentada de se encarar

a reforma agrária, a necessidade de enfrentamento à ideologia da reforma

agrária de mercado coloca-se como ponto fundamental para os movimentos

de luta pela terra. Segundo Alentejano, estes têm como desafios:

retomar o princípio de que os especuladores devem ser punidos por manterem a terra improdutiva, dados os custos que isso gera para a sociedade e a injustiça presente neste fato; recolocar em pauta o confisco das terras improdutivas, exploradas com base em trabalho escravo e outras formas ilegais, negando as desapropriações e a compra de terras, por seu caráter de prêmio aos especuladores e aos latifundiários; retomar o debate acerca do estabelecimento de limites máximos para o tamanho das propriedades, como base para a geração de uma melhor distribuição de riqueza e renda no país; recolocar o debate acerca da melhor forma de titulação da terra, negando a proposta imposta de forma unilateral pelo governo FHC de distribuição de títulos de propriedade, e afirmando o princípio da garantia da terra pública e de seu usufruto em benefício da sociedade (ALENTEJANO, 2002, p.5).

Nesse sentido, Stédile (1999) propõe um balanço crítico do que chama

de política de assentamentos rurais e de colonização, que não teriam o caráter

real de uma reforma agrária, no sentido de resolver efetivamente a questão

agrária no Brasil, mas que são propagandeadas como tal pelos governos que

as implementam.

A política de assentamentos rurais baseia-se em assentar famílias de

sem-terra em terras desapropriadas, compradas pelo governo. Essa política,

entretanto, é parcial e localizada, geralmente aplicada em áreas de conflito,

não se destinando a corrigir a concentração da propriedade como um todo.

Pode ser considerada como uma política de compensação social, não

significando democratização do acesso à terra.

Nos processos de colonização, o Estado distribui terras ainda

inexploradas de sua propriedade para famílias de colonos. Mesmo o Brasil

ainda possuindo uma vasta extensão de terras públicas a serem utilizadas,

essa política de colonização nada tem a ver com a democratização do acesso

à terra, pois a distribuição de terras públicas em áreas de fronteira agrícola não

afeta e não significa distribuição da propriedade da terra já ocupada. No Brasil,

os processos de colonização foram ainda mais perversos porque, em geral, a

política de colonização seguiu a mesma lógica de concentração capitalista,

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tendo em vista que o Estado distribuiu enormes extensões de terra a alguns

proprietários, ou regularizou áreas griladas irregularmente.

Por outro lado, as críticas à reforma agrária são certamente muito

comuns, haja vista as constantes vitórias das forças sociais conservadoras,

ligadas às grandes propriedades rurais – o que é facilmente observável frente à

permanência quase “intocada” da estrutura fundiária do país.

No campo teórico, Geraldo Muller e Graziano Neto são representantes

da tese que coloca a reforma agrária, enquanto distribuição de terras, como um

processo já desnecessário e até mesmo inviável num país como o Brasil.

Para Muller (1994), o Brasil possui uma excelente máquina agrária, com

elevados índices de produção e produtividade e com perspectiva de produzir

muito mais sem incorporar mais ninguém, nem como proprietário, nem como

trabalhador. A distribuição de terras e a formação de novos proprietários

agrários seria, nesse sentido, algo consideravelmente ultrapassado. O

fundamental para quantificar e qualificar ainda mais o excedente agrário reside,

nessa perspectiva, em dispor de um padrão financeiro que permita intensificar

a exploração do trabalho e da terra e a incorporação de progresso técnico.

Para o autor, a geração de empregos não reside nas atividades agrárias,

mas nos serviços requeridos pelo complexo agroindustrial e, especialmente,

pelos serviços sociais indispensáveis à população.

Graziano Neto (1994) centra suas teses em três argumentações

primordiais: 1 – inexiste farta disponibilidade de terras ociosas para programas

de reforma agrária: “o estoque de terras disponível para programas de

assentamento rural é bem menor que aquele apregoado, inadvertidamente,

pelos entusiastas do distributivismo agrário” (GRAZIANO NETO, 1998, p.164);

2 – não há interessados o suficiente: é falso crer que todo o trabalhador aspira

a ter uma propriedade de terra – sonho este pequeno burguês; o que todos

querem é melhorar suas condições de vida e trabalho (GRAZIANO NETO,

1994); e 3 – um programa de reforma agrária seria consideravelmente ineficaz

em seu objetivo principal que é atacar o problema da miséria no país: além de

reduzido resultado econômico, os assentamentos rurais apresentam um custo

muito elevado de implantação e manutenção (GRAZIANO NETO, 1998).

Outro vasto conjunto de argumentação contrário, ao menos, a uma

reforma agrária efetiva e massiva, é utilizado por vários segmentos sociais

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atrelados, direta ou indiretamente, à grande propriedade rural. Entre eles,

podemos citar várias entidades patronais, como a Confederação Nacional da

Agricultura (CNA), a Sociedade Rural Brasileira (SRB), a Organização das

Cooperativas do Brasil, a União Democrática Ruralista (UDR), a Associação

Nacional de Criadores de Gado Zebu, o Sindicato Nacional de Pecuaristas,

entre vários outros sindicatos e associações, que defendem “o direito sagrado

de propriedade garantido pela Constituição”.

Também os artigos, publicados na grande imprensa – em geral ligada de

alguma forma aos grandes proprietários de terra ou à própria bancada ruralista,

e que constitui um poderoso meio de „formação de opinião’ – reforçam

constantemente a sua tradição conservadora. Nestes espaços, os movimentos

sociais são, constantemente, alvos de ataques diretos.

Toda essa resistência à reforma agrária, além do histórico controle

político, econômico e social que é associado à posse da terra no Brasil,

vincula-se hoje a um novo problema, com o qual os movimentos sociais na luta

pela terra já se defrontaram: o projeto de reforma agrária dominante, até

praticamente o fim do regime militar, consistia numa aliança entre burguesia

nacional e classe trabalhadora, como forma de impulsionar o desenvolvimento

das forças produtivas. O interesse da burguesia era baseado no rompimento da

instabilidade da antiga estrutura coronelista para se instituir um ambiente mais

favorável ao desenvolvimento dos negócios capitalistas. Já para os

trabalhadores, seria um passo rumo ao socialismo. Como o capitalismo

encontrou “suas maneiras” de se desenvolver sem precisar promover a

distribuição de terras, a classe trabalhadora se encontrou frente à

“responsabilidade” de conquistar, “sozinha”, a reforma agrária.

Por seu turno, entretanto, os movimentos sociais na luta pela terra, que

estiveram sempre presentes na história brasileira, vêm conquistando uma

visibilidade cada vez maior frente ao conjunto da sociedade, se articulando e se

mobilizando de forma cada vez mais intensa e expressando, simultaneamente,

um questionamento da estrutura fundiária e do próprio padrão de

desenvolvimento vigente. É o que discutiremos no próximo item.

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A Luta Pela Terra no Brasil Hoje

Certamente, como vimos, o Estado autoritário inaugurado em 1964

apoiou-se numa evidente tentativa de neutralização política dos setores

subalternos rurais, no sentido de eliminar os seus avanços organizativos de até

então. Promoveu, dessa forma, uma verdadeira desorganização dos

trabalhadores face à militarização do campo, apesar de jamais ter conseguido

eliminar todas as formas de resistência camponesa. É certo que também os

dias atuais são marcados por uma forte ofensiva do capital em relação aos

movimentos sociais, expressa na hegemonia da política neoliberal em nível

mundial, que reforça a fragmentação e a individualização social. Mas, ainda

assim, não se apagaram as ações coletivas desencadeadas pelos movimentos

sociais. Ao contrário, a formação de identidades coletivas no interior dos

movimentos de luta pela terra, no Brasil, contrariam essa ofensiva e

questionam o próprio modo de produção capitalista em curso, através,

inclusive, da construção de novas formas de sociabilidade e de organização do

trabalho.

Dessa forma, o fim da ditadura até os dias atuais marca um forte

crescimento e desenvolvimento de formas de organização mais autônomas e

articuladas, empreendidas por diversos movimentos sociais na luta pela

reforma agrária. Tal fator pode ser observado pela mobilização dos

trabalhadores em movimentos que se organizam em nível nacional, com forte

poder de pressão e grande expressão social. Destes, o MST – Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra - é, sem dúvida, o mais significativo.

Originado do avanço das lutas e da organização dos trabalhadores no campo,

no sul do país, no final da década de 70, o movimento foi oficialmente fundado

em janeiro de 1984, na cidade de Cascavel (PR), organizando-se como um

movimento nacional de luta pela reforma agrária.

O MST está hoje organizado em praticamente todos os estados da

federação e possui uma ampla proposta de democratização do acesso à terra,

que visa alterar substancialmente a estrutura fundiária do país. De fundamental

importância é a luta travada pelo movimento no campo social, via ocupações

de terras e prédios públicos, manifestações, campanhas de conscientização da

população, entre outros, paralelamente ao embate via institucional – que já se

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mostrou, historicamente, incapaz de resolver, por si só, o problema da terra no

Brasil.

Com uma sólida estrutura organizacional, possui uma série de frentes de

trabalho que incentivam a participação direta e a descentralização dos

processos de decisão. No movimento de construção e expansão do MST,

foram surgindo diversas comissões, equipes, núcleos, setores e outras formas

de atividade, que se configuram bases de reflexão, discussão e

encaminhamento das questões ligadas à luta pela terra em todas as suas

dimensões. Promove, por exemplo, o setor de educação (prioridade do

movimento, inspirado na teoria de Paulo Freire), o setor de produção (com o

desenvolvimento da cooperação agrícola como forma de resistência e

desenvolvimento econômico dos assentados); o setor de formação (trabalhos

que buscam uma sólida formação sócio-política dos militantes, haja vista que o

estudo e a reflexão são práticas permanentes no interior do movimento);

frentes de massa (trabalhos de base e conscientização); além de programas

que incentivam a participação da mulher, da criança e do jovem, entre outras

atividades que buscam combater as diversas dimensões da exclusão

vivenciadas pelos seus integrantes.

Os princípios do MST podem ser representados pelas seguintes

palavras de ordem, assumidas em congressos nacionais do movimento: “Terra

para quem nela trabalha” (1979); “Sem reforma agrária não há democracia”

(1984), “Ocupação é a única solução” (1985); “Ocupar, Resistir e Produzir”

(1990); “Reforma agrária, uma luta de todos” (1995); e “Por um Brasil sem

latifúndio” (1999). A marca registrada do MST está na ocupação de terras,

estratégia que está no cerne do movimento, desde a sua gênese, e que reflete

o novo dimensionamento que adquire a luta pela terra hoje, bem como

simboliza o avanço da organização camponesa no Brasil, na busca por um

movimento social autônomo e sob o controle dos trabalhadores rurais.

Além do MST, são várias as organizações presentes no cenário atual de

luta pela reforma agrária, entre inúmeros movimentos que Fernandes define

como territorializados (aqueles que têm objetivos mais amplos que os

interesses imediatos da comunidade, que territorializam o movimento e a luta),

como a Comissão Pastoral da Terra (CPT); o Movimento Camponês de

Corumbiara (MCC) e a Liga Operário-Camponesa (LOC), em Roraima; o

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Movimento dos Agricultores Sem-Terra (MAST), em São Paulo (Pontal do

Paranapanema) e no Rio Grande do Norte; o Departamento Rural da Central

Única dos Trabalhadores (CUT-MS) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais

(MTR) no Mato Grosso do Sul; o Movimento dos Trabalhadores do Brasil

(MTB), em Pernambuco; o Movimento Terra Trabalho e Liberdade (MTL),

organizado principalmente em Minas Gerais, Goiás e Pernambuco, entre

outros. Verifica-se, ainda, uma série de movimentos sociais localizados ou,

conforme denominado por Fernandes, isolados, ou seja, aqueles que se

organizam em um município ou em um pequeno número de municípios, com

vistas a realizar, normalmente, uma ocupação (FERNANDES, 2001).

O surgimento e a força desses movimentos sociais hoje vêm colocando

em xeque antigas estruturas sindicais cujo corpo era diretamente atrelado ao

Estado.

O sindicalismo rural permanece sendo representado nacionalmente pela

CONTAG – Confederação Nacional de Trabalhadores da Agricultura. Possui 21

federações em nível estadual (além da delegacia no Acre) e mais de 2.000

sindicatos em nível nacional. A ação da CONTAG, historicamente, tem sido a

de „encaminhar as questões às autoridades competentes’, através de uma

postura legalista e atrelada ao Estado. De qualquer forma, no entanto,

constituiu-se em importante referência nacional, e representou avanços

importantes, mantendo em cena aberta a luta dos trabalhadores rurais desde

quando foi fundada, em 1963.

Há que se ressaltar, ainda, que a emergência de críticas à ação sindical

da CONTAG, especialmente a partir da década de 1980, levou não só a

debates e disputas no interior da Confederação, como também à emergência

de “oposições” sindicais. A influência da CPT e da CUT foram fundamentais

nesse processo, à medida que criavam novos campos de disputa com a

CONTAG e tornavam-se referências mais combativas aos sindicatos de

trabalhadores rurais que, por vezes, constituem-se em “portadores de críticas

não só à estrutura sindical vigente, mas também às práticas cotidianas

dominantes no sindicalismo” (MEDEIROS, 2002, p.47).

Além destas, outras inúmeras entidades participam da luta pela reforma

agrária no Brasil, entre movimentos sociais autônomos, sindicatos locais,

ONG’s e pastorais católicas, sem contar as várias organizações, associações e

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sindicatos que, mesmo sem estar diretamente envolvidos com a questão

agrária, contribuem fortemente com a luta pela democratização do acesso à

terra.

O que está aqui colocado, grosso modo, é que a luta pela reforma

agrária ganhou contornos mais sólidos e definidos nas décadas de 1980 e

1990, garantindo avanços substanciais no embate contra os governos

posteriores à ditadura militar – que permaneceram com uma orientação anti-

democrática no que tange à questão agrária – e acumulando conquistas

significativas para os trabalhadores rurais, em especial no que se refere à

conquista da terra.

Conforme nos apresenta Grzybowski, são lutas contra a expropriação,

como as dos posseiros, dos sem-terra e dos atingidos por barragens; lutas

contra a exploração, como as dos trabalhadores rurais assalariados; lutas

contra a subordinação do trabalho ao capital, como as dos camponeses

integrados; além de novas frentes de luta no campo, como os movimentos de

mulheres agricultoras e de grupos que buscam alternativas de produção, como

as cooperativas (GRZYBOWSKI, 1987). Os avanços da organização

camponesa estão presentes na expressão que esta adquiriu hoje,

dimensionando a luta mais ampla pela reforma agrária e colocando-a em

posição de destaque no debate político; na articulação interna e externa que os

movimentos sociais rurais vêm adquirindo em nível nacional; nas formas de

atuação que se tornam predominantes nos seus embates, quais sejam,

aquelas ligadas à maior mobilização e à pressão direta. Verifica-se, assim, o

crescimento de formas de organização consciente e articuladas, que têm como

um de seus pilares a constante busca pela maior autonomia dos setores

subalternos rurais, inclusive na orientação de seus movimentos.

A história nos mostra, assim, que o caminho da questão agrária no Brasil

dependerá das forças sociais em jogo, devendo ser fundamental a ação dos

trabalhadores rurais (e urbanos) na realização da efetiva distribuição da terra,

além de fazer com que, posteriormente, se tenha condições de gestar na terra

novas formas de produção. A ocupação de terras configura hoje a principal e

mais eficaz forma de luta dos movimentos sociais rurais, traduzindo-se na

conquista de assentamentos rurais de trabalhadores sem-terra por todo o país,

fato que vem promovendo novos contornos à luta e ao debate acerca da

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reforma agrária. No limite, a participação em movimentos sociais organizados,

a conquista da terra e a construção dos assentamentos rurais refletem a luta

pela inclusão social, econômica, política e econômica de uma ampla parcela da

sociedade brasileira, historicamente marcada pela exclusão. Considerando que

o modo de produção capitalista constitui necessariamente um modelo

excludente, a luta contra a exclusão já traz em si um caráter anticapitalista,

ainda que, por vezes, embrionário.

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CAPÍTULO 2

A REALIDADE AGRÁRIA DO TRIÂNGULO MINEIRO/ALTO PARANAÍBA

(MG):o processo de modernização do campo e a luta pela terra

A mesorregião geográfica do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba1 é tida

como a de maior número de conflitos por terra do Estado de Minas Gerais, em

especial a região do Pontal do Triângulo, que está entre as mais violentas do

país. A luta pela terra se faz hoje expressiva em todo o território do cerrado

mineiro, envolvendo uma série de agentes que, mais ou menos articulados,

dimensionam o tema da reforma agrária, ampliam as suas experiências e

territorializam as suas lutas, na conquista dos assentamentos rurais. É este

processo que buscamos analisar neste capítulo, através da recuperação

histórica das principais lutas aqui travadas, por meio de pesquisas teóricas e

documentais. Para tal, faz-se necessário, inicialmente, apresentarmos o

cenário em que se movimenta essa luta crescente pela reforma agrária, à

medida em que esta se insere num contexto bastante peculiar – em

decorrência das especificidades do desenvolvimento histórico-econômico do

cerrado mineiro – que, por sua vez, insere-se e está orientado pelas tendências

gerais e estruturais do sistema capitalista de produção.

O Desenvolvimento Agrário do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba

Com relevância política e econômica no cenário nacional, a mesorregião

do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba concentra um dos principais pólos do

complexo agro-industrial do país. Estrategicamente localizada, situa-se,

respectivamente, na parte extremo oeste e oeste de Minas Gerais. Agrupa 64

municípios, distribuídos, segundo o IBGE, entre as microrregiões de

Uberlândia, Uberaba, Patrocínio, Patos de Minas, Frutal, Araxá e Ituiutaba,

numa área total de 94.241 km2, o que corresponde a 16,17% do total do

estado (PESSOA e SILVA, 1999; GUIMARÃES, 2002).

1 Utilizamos neste trabalho tanto a classificação do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que considera a mesorregião Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba como unidade de análise, quanto a do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que refere-se às regiões do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba em separado para efeito de sistematização dos dados.

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PATROCÍNIO

SERRA DO SALITRE

CRUZEIRO DA FORTALEZA

GUIMARÂNIA

COROMANDEL

PATOS DE MINAS

MONTE CARMELO

PERDIZES

SANTA VITÓRIA

LIMEIRA DO OESTE

ITURAMACARNEIRINHO

PERDIZES

IPIAÇU

GURINHATÃ

FRUTAL

ITUIUTABA

CAPINÓPOLIS

UNIÃO DE MINAS

CAMPINA VERDE

ITAPAGIPE

COMENDADOR GOMES

PRATA

CAMPO FLORIDO

VERÍSSIMO

CACHOEIRA DOURADA

CANÁPOLIS

CENTRALINA

ARAPORÃTUPACIGUARA

MONTE ALEGRE DE MINAS

UBERLÂNDIA

ARAGUARI

FRUTALCONCEIÇÃO DAS ALAGOAS

PLANURA

ÁGUA COMPRIDA

UBERABA

CONCEIÇÃO DAS ALAGOAS

CONQUISTA

DELTA

INDIANÓPOLIS

ESTRELA DO SUL

CASCALHO RICO

GRUPIARA

ROMARIA

IRAÍ DE MINAS

PEDRINÓPOLISNOVA PONTE SANT

SACRAMENTO

ARAXÁ

TAPIRA

PRATINHA

CAMPOS ALTOS

SANT

SÃO GOTARDO

RIO PARANAÍBA

LAGO

PATOS DE MINAS

ARAPORÃ

TIROS

MATUTINA

ABADIA DOS DOURADOSDOUR

ADOQUARA

N

020 KM 20 KM 40 KM

MESORREGIÃO GEOGRÁFICA TRIÂNGULO MINEIRO / ALTO PARANAÍBA

ORGANIZAÇÃO: GOMES, R. M., 2004.DESENHO: LIMA, F. R. , [email protected]: www.geominas.mg.gov.br

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88

A ocupação populacional e econômica do Triângulo Mineiro vai

desenvolver-se, sobretudo, a partir da decadência da economia de mineração,

atividade que está no bojo do processo de ocupação do estado de Minas

Gerais – inicialmente em sua região central e, posteriormente, durante o séc.

XVIII, marcando uma exploração, ainda que em bem menor grau, das terras do

chamado Sertão da Farinha Podre. Terras essas, aliás, até então pertencentes

à capitania de Goiás – e divididas em sesmarias –, posto que, apenas em

1816, passam para o domínio da antiga província de Minas Gerais.

Conforme Cavalini e Gerardi, “com a decadência da mineração, a

agricultura exportadora surge como alternativa para a sobrevivência da

economia nacional. É nesse momento histórico, final do século XVIII, que a

região do Triângulo é inserida nesta economia, através da agropecuária

mercantil” (CAVALINI e GERARDI, 1996, p.94).

A região passa a constituir-se economicamente em bases agropecuárias

– inicialmente pela população aí já instalada pela atividade mineradora –,

atraindo uma corrente migratória interessada na obtenção de terras. De acordo

com Prado Junior:

Na sua marcha para o Sudoeste, os mineiros ocuparão primeiro o chamado Triângulo Mineiro, o território situado no ângulo formado pela confluência dos rios Paranaíba e Grande, formadores do Paraná. Esta região, que em meados do século não contava com mais de 6.000 habitantes, compreendidos 4.000 índios2 semicivilizados, reunirá em fins do Império acima de 200.000 indivíduos, com um centro urbano já de certa importância: Uberaba (PRADO JUNIOR, 1979, p.204).

Essa ocupação econômica contou com determinados incentivos e

aparatos por parte do Estado que, “somados à localização geográfica e o

momento histórico em que a região se insere na economia brasileira,

permitiram a organização de uma agropecuária mercantil que se coloca como o

novo sustentáculo histórico desta economia”, e que “fomentou o

desdobramento de um setor que forma a frente no processo de acumulação de

capital até a nossa atualidade” (SAMPAIO, 1984, p.3 apud PESSÔA e SILVA,

1999, p17).

2 Índios Caiapós, habitantes da região.

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Em fins do século XIX, tem-se um avanço no sistema de transporte

ferroviário, no Alto Paranaíba e, em especial, no Triângulo Mineiro, que

redefine o papel de suas atividades na divisão inter-regional do trabalho, ao

permitir o escoamento da sua produção, em especial para os mercados do Rio

de Janeiro e São Paulo, e que, somado às bases políticas da região, inserem a

área definitivamente no contexto econômico nacional. Paralela à pecuária, a

produção de cereais amplia-se, “com a incorporação das melhores terras,

cobertas de mata, e com o desenvolvimento da parceria, que substitui nas

fazendas o trabalho do antigo agregado” (GADELHA e SGRECIA, 1987, p.61).

Durante o governo Vargas (1930-1945), o Triângulo Mineiro também

será “‟locus‟ indireto de grandes realizações governamentais. Assim, o governo

Vargas, em seu programa de integração e colonização – „Marcha para o

Oeste‟, para cumprir os objetivos propostos, precisava dotar o Triângulo

Mineiro de uma infra-estrutura, possibilitando a penetração rumo ao Centro-

Oeste” (PESSÔA e SILVA, 1999, p.19). Amplia-se aqui o potencial de

aproveitamento econômico da área, que passa a efetuar, ainda, especialmente

a partir dos anos 1930, papel complementar na expansão urbana e industrial

de São Paulo.

Geograficamente privilegiado, o Triângulo Mineiro contou assim com

marcante ação estatal na criação de infra-estrutura e em numerosos incentivos

à iniciativa capitalista. De acordo com Micheloto:

A função de entreposto comercial assumida pela região permitiu uma sólida acumulação de capitais que, já nos anos 50, e com mais intensidade nos anos 60, se transformaria em investimentos modernizadores da atividade agrária, bem como financiaria em parte a industrialização regional ocorrida na década de 70 (MICHELOTO, 1990, p.64).

A partir da década de 1970, o Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba são

inseridos nos planos econômicos governamentais (I PND – 1972-1974 e II PND

– 1975-1979), tendo como resultado o surto de modernização agrícola que

atingiu as áreas de cerrado.

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O Processo de Modernização do Setor Agrícola no Triângulo Mineiro e

Alto Paranaíba: reestruturação produtiva e impactos no mundo do

trabalho rural

No interior do processo mais amplo de modernização agrícola vivido

pelo Brasil, a partir da década de 1960 e, em especial, durante a década de

1970, o cenário econômico do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba foi

radicalmente transformado, frente à incorporação das áreas de cerrado ao

processo produtivo. Até então predominantemente utilizadas como pastagens

naturais, tais áreas – extensos chapadões com topografia plana – passam a

ser intensamente aproveitadas,

mediante a disponibilidade de capitais (programas governamentais), de recursos técnicos (máquinas), de tecnologia (desenvolvimento de pesquisas científicas) e do apoio na construção de infra-estrutura pelo Estado brasileiro, como forma de viabilizar os interesses do capital privado nacional e transnacional (MENDONÇA e THOMAZ JUNIOR, 2003, p.662).

Aliás, todo o estado de Minas Gerais sofre importantes transformações

no campo econômico durante o período militar, em especial na década de

1970. O setor industrial dá um salto, gerido pelo Estado e por grupos

internacionais, que faz com que Minas, no período 1970-77, absorva 25% dos

investimentos industriais do país. Da mesma forma, o setor agrícola torna-se

cada vez mais atraente ao investimento capitalista, através de incentivos

fiscais, linhas de crédito e facilidades outorgadas pelo Estado.

No caso de Minas, o INDI e o BDMG, fundamentais nas transformações industriais, também foram promotores de atração de vários dos maiores empreendimentos agroindustriais que vieram para o Brasil na década de 70. Ao lado da agroindústria, o Estado experimentará a formação de grandes empresas capitalistas de reflorestamento, pecuária, soja, café, cana-de-açúcar (POMPERMAYER, 1987, p.11).

Dessa forma, “os setores que mais se beneficiaram por esse processo

foram aqueles cuja produção estava voltada à exportação, em detrimento da

redução das culturas consideradas tradicionais” (PESSÔA e SILVA, 1999,

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91

p.21), sendo o cerrado mineiro marcado especialmente pela introdução da soja

e do café.

É certo que estas transformações no campo se darão de forma

diversificada nas regiões do estado, com a incidência de diferentes programas

governamentais e de estratégias variadas de capitais, o que se reflete numa

diversidade regional de situações agrárias.

A região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba passa a ser reconhecida

como uma área que, localizada junto aos grandes mercados urbanos do país,

constituía uma grande fronteira a ser ocupada. Além disso, as características

naturais dessas áreas – marcadas pela topografia plana e por solos até então

considerados improdutivos –, favoreciam a mecanização e a aplicação de

quantidades consideráveis de corretivos e fertilizantes, atendendo às

necessidades de expansão econômica geradas pelo modelo capitalista. Ora, as

estratégias desenvolvimentistas e integracionistas do governo militar tinham,

entre os seus objetivos primordiais, o desenvolvimento industrial e a expansão

da fronteira agrícola. A ocupação do cerrado mineiro constituiu, assim, parte

integrante dessas estratégias, inclusa no Plano Nacional de Desenvolvimento,

concebido neste período. Várias iniciativas governamentais se configuraram

para apoiar este processo, destacando-se o PCI (Programa de Crédito

Integrado e Incorporação dos Cerrados), o PADAP (Programa de

Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba), o POLOCENTRO (Programa de

Desenvolvimento dos Cerrados), e o PRODECER (Programa de Cooperação

Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados), programas públicos

implementados na região do cerrado mineiro que se caracterizaram por seu

caráter “monopolista, conservador e excludente” (SILVA, 2002, p.2). A

intensificação da proletarização do homem no campo, como veremos mais a

frente, se deu justamente a partir da integração da região nesses grandes

projetos de desenvolvimento do cerrado, “projetos estes calcados no modelo

empresarial e voltados para a formação de corredores de exportação”

(MICHELOTO, 1990, p.64).

O PCI surgiu em 1972, criado pelo BDMG (Banco de Desenvolvimento

de Minas Gerais), e teve como objetivo estimular a expansão da agricultura

modernizada nos cerrados, promovendo, em especial, o incremento da

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produção de soja e café, tendo como resultados a ampliação do consumo de

maquinário e insumos agrícolas modernos e a incorporação produtiva de uma

vasta quantidade de terras a agropecuária no Estado. “Foi concebido para

articular-se ao programa federal denominado Corredores de Exportação, que

se constituía num dos principais desdobramentos da política agrícola no âmbito

do I Plano Nacional de Desenvolvimento” (CLEPS JUNIOR, 1998, p.126).

Atingiu uma área de 111.025 ha (entre as regiões do Triângulo Mineiro, Alto

Paranaíba, Paracatu, Alto Médio São Francisco e Metalúrgica), financiando 230

projetos, sendo que a área média de cada beneficiado foi de 483 ha, ou seja,

atendeu aos grandes e médios proprietários, além de impulsionar o setor

industrial. Atingiu 53,7 mil km2, na região do Triângulo Mineiro, e 34,9 mil km2,

no Alto Paranaíba, e foi finalizado em 1975. Constituiu o primeiro plano de

desenvolvimento dos cerrados, representando “um marco para os programas

federais subseqüentes, em escala federal, para incrementar a utilização de

grãos exportáveis das áreas do cerrado brasileiro” (ibidem).

O PADAP, implementado nos anos de 1973 e 1974, residiu no

assentamento de agricultores descendentes de imigrantes japoneses, em

terras desapropriadas pelo Estado, nos municípios de Rio Paranaíba, Campos

Altos, São Gotardo e Ibiá (Alto Paranaíba), incluindo, ainda, crédito subsidiado,

construção de estradas e habitações, entre outros. O programa foi resultado de

uma articulação entre o governo estadual de Minas Gerais e a Cooperativa

Agrícola de Cotia, com ligações com o governo japonês. Atingiu uma área de

60.000 ha, em áreas médias de 250 ha. Constituiu o primeiro plano de

colonização dirigida para a conquista do cerrado mineiro, expandindo a

produção agrícola capitalista de soja, café e trigo, e sendo eleito como

programa-modelo, ainda que tenha se dado de forma a marginalizar a

população da área em relação ao processo produtivo (CLEPS JUNIOR, 1998;

PESSÔA & SILVA, 1999).

O POLOCENTRO foi criado em 1975, no interior das estratégias

propostas no II PND, tendo, entre os seus beneficiários, fundamentalmente os

grandes proprietários. Objetivava a ocupação e a ampliação da produção

modernizada e empresarial do cerrado, conjugando fatores de incentivo ao

desenvolvimento da produção e da pesquisa. Incorporando uma área de

248.410,1 ha só no cerrado mineiro (atingiu também outras áreas do Centro-

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Oeste), foi desativado a partir de 1980, por apresentar baixo crescimento da

produção e da produtividade em relação aos recursos investidos, o que pode

ser explicado pela grande aplicação dos financiamentos em fins especulativos,

e não produtivos. Os vultosos créditos, subsidiados pelo Banco do Brasil, foram

distribuídos da seguinte forma:

Tabela 2.1: Distribuição dos Créditos do POLOCENTRO

Extratos de Área Recursos de Crédito Liberado (%) - de 100 ha 0,38

100 a 200 ha 1,78 + de 500 ha 76,45

Fonte: IBASE, 1986, p.7 (In: PESSÔA e SILVA, 1999, p.41).

Dessa forma, as pesquisas agropecuárias desenvolvidas, bem como os

recursos distribuídos, via financiamento público, em sua quase totalidade para

grandes proprietários, favoreceram o melhoramento genético da cultura de

exportação e, consequentemente, diferentes setores industriais, definindo a

soja e o café, nesse período, como “os principais produtos que viabilizaram a

agricultura comercial no cerrado” (PESSÔA e SILVA, 1999, p.43).

O PRODECER, criado em 1978 e em vigor até hoje, foi resultado de

negociações entre os governos brasileiro e japonês para a exploração conjunta

do cerrado, cujo objetivo era a exportação de soja, milho e sorgo. Envolveu

inicialmente os municípios de Iraí de Minas, Coromandel e Paracatu,

ampliando-se posteriormente para outras áreas do cerrado mineiro e do

Centro-Oeste. Financiou a compra de terras, investimentos, custeios e

comercialização da produção agrícola, sob a responsabilidade da CAMPO –

Companhia de Produção Agrícola, fundada em 1978, “através da constituição

de duas holdings: a BRASAGRO – Companhia Brasileira de Participação

Agroindustrial, com 51% do controle acionário e a JADECO – Japan-Brasil

Agricultural Development Corporation, formada por empresas como a

Mitsubishi, Mitsui e Banco de Tóquio, com 49% do controle acionário”

(PESSÔA e SILVA, 1999, p.44). As terras adquiridas pelo programa foram

divididas em lotes de porte médio (250 a 500 ha), num total de 70.000 ha, no

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caso dos cerrados mineiros destinadas a colonos (em sua maioria sulistas) de

um conjunto de projetos de assentamento dirigido.

Um dos pontos marcantes de tais projetos foi o de que os seus

participantes não foram os proprietários tradicionais, residentes nos referidos

municípios, mas colonos tidos como predispostos a adotarem as tecnologias

propostas (visto que boa parte era proveniente do Sul do Brasil), bem como os

grandes proprietários da região – também em “condições” de adotarem o

modelo empresarial de produção.

Os reflexos da modernização agrícola, impulsionada por esses projetos

de desenvolvimento do cerrado, podem ser observados no aumento da

produção e da área produzida de dois dos principais produtos responsáveis por

essa transformação de caráter empresarial das frentes de expansão capitalista:

a soja e o café, como mostra a tabela a seguir:

Tabela 2.2: Evolução da Produção de Café e Soja – Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba (1970-1995)

Ano

Triângulo Mineiro Alto Paranaíba Café Soja Café Soja

Área(ha) Ton. Área(ha) Ton. Área(ha) Ton. Área(ha) Ton. 1970 259 160 2.562 1.902 15.626 13.615 92 83 1975 892 1.529 27.013 31.482 12.363 8.157 15.317 12.896 1980 8.745 19.252 80.832 139.569 40.079 48.407 36.852 68.497 1985 14.345 32.903 156.898 257.534 42.062 99.201 110.641 194.987 1990 29.808 23.810 243.020 291.672 115.296 184.817 154.600 271.980 1995 17.606 43.831 218.455 398.925 100.334 132.049 175.072 397.053

Fonte: IBGE – Censos Agropecuários – 1970/75/80/85; Levantamento Sistemático da

Produção Agrícola 1988/1996. In: PESSÔA & SILVA, 1999, p.57.

De modo geral, tais projetos voltaram-se para a monocultura

exportadora, a pecuária extensiva e a constituição de agroindústrias, com forte

presença do modelo tecnológico disseminado pela Revolução Verde – que

promoveu profundas alterações na base técnica da produção agrícola, com a

adoção de um novo padrão tecnológico, baseado na utilização integrada de

mecanização e insumos químicos. Todo este processo, marcado ainda pela

constituição do crédito agrícola subsidiado, contou, como já colocado, com a

atuação decisiva do Estado. Aliás, o crédito rural cumpre o papel de

impulsionar os investimentos produtivos ao mesmo tempo em que atua como

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definidor dos beneficiários desse processo, na medida em que os mecanismos

de seleção, implementado pelos bancos, privilegiam “estabelecimentos de

grande e médio porte, algumas regiões em detrimento de outras e os

empresários que se dedicam à produção para exportação e transformação

agroindustrial” (GADELHA e SGRECIA, 1987, p.58). De acordo com a análise

empreendida por Custódio:

O passo fundamental para a consolidação do papel do Estado como catalisador da modernização foi a concepção e execução de programas governamentais de desenvolvimento, em que uma das principais metas era a ocupação de vastas áreas tidas como improdutivas, por meio das frentes de expansão. Com isso, o Estado ocupava áreas pouco povoadas e permitia ao capital expandir-se pela incorporação de novas terras ao processo produtivo. É nesse sentido que se desenvolveram os programas de ocupação dos cerrados pelas lavouras de grãos e reflorestamento, empreendimentos que mobilizaram o setor industrial de maquinários, corretivos, fertilizantes, processamento de grãos, além do setor financeiro, de armazenamento e comercialização (CUSTÓDIO, 2000, p.56).

Essa dinamização econômica vai consolidar o modelo de produção

agroindustrial como agente fundamental do capital no cerrado mineiro:

No aspecto econômico ele (o CAI) conseguiu inserir esta região, competitivamente, no mercado mundial de exportação de grãos. Ele também promoveu um avanço significativo na infra-estrutura regional para o escoamento de produção, proporcionou o incremento tecnológico e científico nas propriedades e desencadeou, direta e indiretamente, a implantação de setores comerciais e financeiros voltados a atender as demandas da agricultura moderna (SILVA, 2001, p.19).

Dessa forma, os créditos agrícolas, subsidiados pelo Estado, no decorrer

dos anos 1970, constituíram uma das mais importantes fontes indiretas de

financiamento ao desenvolvimento agroindustrial, na medida em que criou “as

condições para o estreitamento das relações entre agricultura e indústria,

dando suporte à compra de tratores, implementos e máquinas agrícolas, além

dos insumos químicos” (CLEPS JUNIOR, 1998, p.141). As grandes jazidas de

fosfato e calcário, existentes no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, atraíram

para a região, por exemplo, a indústria de fertilizantes – “o maior projeto

agroindustrial do estado de Minas Gerais, na segunda metade da década de

70, (...) idealizada para atender à grande demanda interna de insumos

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agrícolas e às elevações do preço do produto importado” (ibidem, p.173).

Instalam-se na região a Valefértil e a Fosfértil (indústrias de fosfato) e a Arafértil

(indústria de fertilizantes), cujos investimentos necessários ultrapassaram os

US$ 300 milhões. Acrescente-se aqui, ainda, a “instalação de grandes

empresas do setor de laticínios, sucro-alcooleiro, frigoríficos, óleos vegetais,

rações, avicultura, sementes, fumo, frutas, entre outras” (ibidem, p.176).

A reestruturação produtiva das áreas de cerrado insere-se num contexto

de crise do modo de regulação capitalista, que vai provocar profundas

reformulações no processo geral de produção capitalista. Conforme análises de

Harvey (1993), Mészáros (2001; 2003) e Chesnais (1996), promove-se uma

verdadeira ofensiva do capital, em termos mundiais, que retrata, em especial,

uma ascensão sem precedentes do capitalismo financeiro, ou seja, da

realização do valor de caráter especulativo. Há que se verificar, nessa

perspectiva, que os principais indicadores das mudanças, na política agrícola,

nas áreas de cerrado, em seu processo de modernização agrícola, estão no

estímulo à sojicultura, nos anos 1970 e 80, e na consolidação de agroindústrias

na região, commodities que resultaram em grande geração de receitas de

exportação da balança comercial brasileira, com uma atividade intensiva em

capital e tecnologia.

O processo de reestruturação produtiva na agricultura brasileira,

impulsionado por todo um aparato científico e financeiro, disponibilizado pelo

Estado, pode ser verificado, segundo Mendonça e Thomaz Junior, da seguinte

forma:

A busca pela competitividade, principalmente nos mercados externos, promoveu um reordenamento na agricultura brasileira comercial agro-exportadora alterando sobremaneira as formas organizacionais de produção. A necessidade de reduzir custos na produção e na comercialização, assegurada quase sempre pela adoção de inovações tecnológicas, possibilitou uma maior integração entre as empresas (cadeias produtivas), culminando em uma verticalização da produção com o intuito de centralizar e concentrar esforços, ações e decisões em vários territórios mundiais-nacionais. Essa flexibilidade – mobilidade espacial – atende as demandas exigidas pelo mercado e assegura eficiência e produtividade (MENDONÇA e THOMAZ JUNIOR, 2003, p.667).

Dessa forma, a modernização da agricultura das áreas do cerrado

mineiro representa a modernização capitalista no movimento constante de

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auto-expansão e reprodução do capital. Utilizamos aqui, nessa perspectiva, a

noção de modernização conservadora para referirmo-nos a este processo, pelo

seu caráter excludente e conservador, que “expressa a lógica de produção e

reprodução do capital no processo de implantação das condições objetivas e

subjetivas com o intuito de assegurar a produção do valor, carregando consigo

todas as contradições inerentes ao modo de produção”, ou seja, “a

modernização conservadora expressa e é a própria lógica destrutiva do capital”

(MENDONÇA e THOMAZ JUNIOR, 2003, p.665).

Em outras palavras, o processo de modernização do Triângulo Mineiro e

Alto Paranaíba, que promoveu uma elevação inquestionável da produção e da

produtividade, veio acompanhado, como em todo o território nacional, do

acirramento das contradições sócio-econômicas, tendo em vista que não

privilegiou todos os segmentos envolvidos.

As modificações no âmbito da pequena produção ocorreram no sentido de estabelecer uma dependência cada vez maior às estruturas de mercado. A aquisição de máquinas, sementes melhoradas, adubos, agrotóxicos, de um lado, e o financiamento bancário e a comercialização, de outro, acabaram subordinando a pequena produção ao capital (GADELHA e SGRECIA, 1987, p.54)

Esta intensificação da subordinação da pequena produção camponesa

ao capital vai refletir-se na progressiva descapitalização dos pequenos

produtores:

Através dos financiamentos do crédito rural, parte de sua renda é transferida ao capital financeiro. Outra parte é transferida para as indústrias, ao serem adquiridos insumos e implementos agrícolas. Finalmente, outra parte é retirada no processo de comercialização pelos “atravessadores” e até mesmo pelas cooperativas. A subordinação da pequena produção ao capital tem como conseqüências a superexploração do trabalho familiar (incorporação de mulheres e crianças na produção e o prolongamento da jornada de trabalho), a perda da autonomia e a pauperização da unidade camponesa (GADELHA e SGRECIA, 1987, p.58).

Esse processo fez-se acompanhado, ainda, da desterritorialização do

camponês, ou seja, da exclusão/ expropriação de uma parcela da população

rural, além da exploração violenta dos recursos naturais, típica da produção

necessariamente destrutiva do capital, bem como do aprofundamento das

formas de exploração do trabalho. Aliás, a precarização do trabalho

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(representada, por exemplo, pelo aumento do desemprego, do subemprego, da

informalidade e da desregulamentação das leis trabalhistas) é característica

marcante do processo de reestruturação produtiva do capital, em termos gerais

(em todos os setores), de acordo com análises de Boito Junior (2001), Antunes

(1999) e Alves (2002).

O processo de modernização trouxe, assim, fortes impactos ao mundo

do trabalho rural, em especial pela destruição massiva de formas tradicionais

de produção, como os arrendamentos para agricultores (com a transformação

de áreas do cerrado em pastagens) e a parceria, com um conseqüente

aumento do desemprego e do êxodo rural.

A parceria (cuja base é o trabalho familiar), por exemplo, que teve um

papel importante no processo de ocupação econômica do cerrado mineiro e

que era muito utilizada até então para o cultivo de cereais e o trabalho com o

gado, tornou-se, com o processo de capitalização da agricultura, dispensável

em sua quase totalidade. O número de parceiros, segundo dados do IBGE,

sofre uma redução drástica: de 13.311 existentes em 1970, cai para 8.552 em

1975, 1.830 em 1980, 907 em 1985 e, finalmente, 842 em 1995. No Alto

Paranaíba a tendência é a mesma: 10.461 parceiros em 1970, 7.652 em 1975,

7.442 em 1980, 5.870 em 1985, e apenas 728 em 1995 (PESSÔA e SILVA,

1999, p.73). Destaca-se aqui o crescimento de formas de trabalho assalariadas

permanentes, bem como uma intensificação das formas de contratação

temporária (modalidade altamente vantajosa, segundo a racionalidade

capitalista), o que evidencia uma crescente proletarização da força de trabalho.

Ainda de acordo com dados do IBGE, em 1970, há 28.387 trabalhadores

temporários no Triângulo Mineiro e 8.763 no Alto Paranaíba. Em 1985 esses

números aumentam, respectivamente, para 39.025 e 24.928. Já em 1995/96,

esses números são reduzidos cerca de 60% e 45%, como veremos mais à

frente, devido a uma nova onda de mecanização das lavouras de café, com a

adoção intensiva de colheitadeiras mecânicas, em substituição à força humana,

multiplicando ainda mais o número de desempregados no campo (SILVA,

2001).

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Segundo fichas cadastrais do MLST de Luta3, por exemplo, “o sem-terra

antes arrendatário, posseiro, pequeno proprietário rural, hoje é o bóia-fria, o

motorista, o pedreiro, o eletricista, o mecânico, o desempregado das cidades

como Uberlândia, cuja população cresceu 293% nos últimos 30 anos, segundo

a Prefeitura Municipal, com base nos dados do IBGE” (FONSECA, 2001,

p.123). Essas transformações no mundo do trabalho são analisadas por

Mendonça e Thomaz Junior da seguinte forma:

O processo crescente de controle do capital sobre o trabalho se efetiva a partir da intensificação da divisão técnica do trabalho e do aparato técnico-científico, fundamentais para compreendermos o processo de modernização da agricultura, porém o cerne da questão está nas múltiplas formas de produção e nas distintas modalidades de trabalho sob intensa subordinação e precarização. Está ocorrendo uma (re)articulação entre os trabalhadores desterreados que, agora assumem novas funções na cidade, mas continuam como reserva de mercado para os empresários rurais, possibilitando repensar a relação cidade-campo. Não há dúvida de que se tem um novo conteúdo na relação cidade-campo, um novo desenho societal, a partir das novas questões colocadas pela reestruturação produtiva do capital, que ao se territorializar redefine a relação cidade-campo, assim como seus atores sociais (MENDONÇA e THOMAZ JUNIOR, 2003, p.668).

Tais mudanças traduziram-se na concentração de terras e riquezas, na

separação entre o trabalhador rural e os meios de produção e na maior

mobilidade campo-cidade. Na tabela abaixo, é possível verificar, através dos

resultados obtidos pelo Índice de Gini, que a concentração fundiária,

historicamente alta, devido às formas de ocupação da região, amplia-se ainda

mais no período 1970-1985:

Tabela 2.3: Concentração da Terra: Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba – Índice de Gini (1970-1985)

Ano Triângulo Mineiro Alto Paranaíba 1970 0,667 0,651 1975 0,674 0,668 1980 0,683 0,666 1985 0,692 0,670

Fonte: IBGE – Censos Agropecuários – 1970-1975-1980-1985 (In: PESSÔA e SILVA, 1999, p.23).

3 Movimento de Libertação dos Sem-Terra de Luta, atuante na região, que em 2002 tornou-se MTL – Movimento Terra Trabalho e Liberdade.

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Acrescente-se, ainda, o fato de que, no decorrer das décadas de 1970 e

1980, a economia brasileira caracterizava-se por inflação alta e grandes

investimentos, em especial no mercado de terras, de tal forma que o cerrado

mineiro tornou-se “„locus‟ dessa valorização de terras, que beneficiou,

sobretudo, os grandes proprietários e empresas agropecuárias, que

procuravam essa área para nela estabelecerem novos investimentos”

(PESSÔA e SILVA, 1999, p.23).

A partir da década de 1980, sobretudo pela crise fiscal e cambial vivida

pelo país, há um enfraquecimento da atuação do Estado no investimento rural

e agroindustrial. No âmbito da ideologia liberalizante do mercado – hegemônica

a partir de então –, novas formas de financiamento da produção agrícola e da

agroindústria são disseminadas frente à escassez de recursos do crédito rural

estatal, de tal forma que “aumentou significativamente a participação de

recursos privados no custeio da safra e no próprio investimento, em

contrapartida à diminuição dos recursos públicos” (CLEPS JUNIOR, 1998,

p.143). Não que o Estado não cumpra mais funções decisivas no processo, ao

contrário do que erroneamente divulga a chamada ideologia do Estado Mínimo.

A guerra fiscal entre os estados para atrair investimentos, por exemplo, resulta

em uma série de incentivos para a instalação de grandes fábricas nacionais e

multinacionais (privadas), inclusive do setor agroindustrial – como o caso da

instalação da Monsanto Corporation, na cidade de Uberlândia em 1997, em

que a empresa norte-americana recebeu o terreno para a construção do seu

centro de pesquisa além de serviços de infra-estrutura. Em Minas Gerais, de

forma geral, a produção da agroindústria, na década de 1980, teve uma

expansão de 15,8% (acima da média nacional, que foi de 13,7%), e a produção

mineira de produtos utilizados pela agricultura, os insumos agropecuários,

cresceu duas vezes e meia, mesmo frente ao nível de produção industrial

brasileiro, que apresentou decréscimo após 1988 (CLEPS JUNIOR, 1998,

p.177). Dessa forma, os incentivos fiscais e creditícios, bem como o patrocínio

na construção de infra-estrutura e no desenvolvimento técnico-científico dos

momentos anteriores garantiram uma acumulação de capital em determinados

setores – aqueles privilegiados pela atuação estatal de décadas passadas –

que permanecem impulsionando o modelo empresarial de produção no campo,

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o agribusiness e, conseqüentemente, reproduzindo as distorções sociais que

lhes são intrínsecas.

Tanto é que a década de 1990 marcou, além da instalação de grandes

empresas agroindustriais nas áreas de cerrado, uma retomada da

mecanização da agricultura, em especial das lavouras cafeeiras, uma das

maiores geradoras de emprego rural, transformando-se agora numa grande

ameaça também à mão-de-obra temporária. A busca pelo incremento dos

lucros e pela maior competitividade no mercado elevou o emprego e o

desempenho das máquinas na cafeicultura, em especial pelo uso mais

intensivo de colheitadeiras, ao mesmo passo em que reduziu o número de

trabalhadores empregados nas lavouras. Conforme noticia a Folha de São

Paulo, em 1998:

Pelo menos 24 mil empregos deixam de existir, devido o processo de mecanização da colheita de café no cerrado mineiro. Nunca o cerrado teve tanta máquina em operação como nesta safra. São 160 colheitadeiras em ação. É a maior região do mundo com colheita de café mecanizada. Cada máquina, que custa em média U$ 150 mil, chega a substituir 150 trabalhadores (Folha de São Paulo, 1998, p.4 apud PESSÔA e SILVA, 1999, p. 81).

Aliás, conforme atesta Cleps Junior, já desde a década de 1980, em

Minas Gerais, “assiste-se a um esgotamento da expansão da fronteira do

cerrado. Com isso, a tendência é a intensificação dos cultivos em Minas

Gerais, realizada através de uma concentração, cada vez maior, da

propriedade e da produção agrícola” (CLEPS JUNIOR, 1998, p.141).

Mesmo frente a todo esse processo, não poderíamos deixar de

mencionar que a agricultura familiar se traduz, ainda que numa região onde é

relativamente pouca expressiva, em uma importante fonte de produção,

emprego e renda:

O Triângulo Mineiro sempre foi tido como uma região de grandes propriedades rurais, representadas pelo sistema de agricultura patronal de soja e pecuária de corte (...). Os dados do censo de 1995/96 mostram que a agricultura familiar, diferente do que ocorre nas regiões Sul e Nordeste, possui pouca expressividade na região, correspondendo a 53,3% do número de estabelecimentos totais, embora ocupe menos de 20% da área total dos estabelecimentos. (...) A agricultura familiar gera uma renda de R$ 83,38 por hectare, ao passo que a agricultura patronal gera apenas R$ 53,55 por hectare. (...) Além disso, a agricultura familiar no Triângulo Mineiro tem uma capacidade de gerar um maior número de postos de trabalho. (...) Verifica-se que a agricultura familiar ocupa um

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trabalhador a cada 23,28 ha ao passo que a agricultura patronal emprega um trabalhador para cada 56,39 ha (PCT/ INCRA/ FAO, 2001, p.11 e 12).

De maneira geral, a análise da modernização do espaço rural do cerrado

mineiro permite-nos afirmar que, assim como em todo o território brasileiro,

esta se deu de maneira a privilegiar a economia agrário-exportadora e a

atender aos interesses do capital mercantil e do monopolista. Balizada no

pacote tecnológico da Revolução Verde e no papel decisivo do Estado, a

intensiva apropriação pelo capital desse espaço – em seu movimento

necessário e contraditório de auto-expansão e reprodução – caracterizou-se

pelo seu caráter destrutivo e excludente.

Isto posto, há que se verificar que o agravamento da realidade agrária

na região, induzido pela implementação da modernização conservadora no

cerrado mineiro, por sua vez, traduziu-se na intensificação dos conflitos de

classe na área rural.

O resultado desta desterritorialização provocada pelo capital e pela tecnologia se exprimiu, a partir da década de 1980, nos assentamentos rurais na mesorregião do Triângulo Mineiro / Alto Paranaíba. É nesse mesmo período que ações sindicalistas e atuações de grupos católicos progressistas começam a organizar politicamente os trabalhadores rurais da região (SILVA, 2002, p.3).

Isso significa, nesse sentido, que a própria territorialização do capital cria

as condições para a sua superação, mediante a possibilidade da agudização

da luta de classes efetivada através das ações das organizações dos

trabalhadores rurais. Dessa forma, o sentido contraditório do conflito “capital

versus trabalho” e de sua territorialização nas áreas de cerrado, intensificado

no processo já exposto de modernização da agricultura, pode ser apreendido

na perspectiva das lutas sociais aqui travadas.

A Luta Pela Terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – as formas

embrionárias de organização e resistência dos trabalhadores rurais frente

à ofensiva do capital

Frente ao processo de democratização, marcado pelo fim da ditadura

militar, e ao agravamento da situação dos trabalhadores rurais, fruto das

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conseqüências nefastas da modernização conservadora da agricultura

implementada por este mesmo regime, verificou-se, nesse período, e de forma

crescente até os dias atuais, a ocorrência de uma série de movimentos sociais

em defesa da reforma agrária. Tais movimentos, orientados para a alteração

das condições coletivas de existência dos seus integrantes, fazem emergir,

como sugere Micheloto “os interesses, valores e demandas específicas dos

setores subalternos rurais” (MICHELOTO, 1990, p.61). Como explicita Santos:

“os camponeses começam a construir sua identidade histórica como

participantes das classes subalternas da sociedade brasileira, unidas pela

vivência comum da dominação e exploração pelo capital” (SANTOS, 1978,

p.175).

Entretanto, datam de momentos anteriores mesmo ao regime militar os

primeiros registros de manifestações coletivas de trabalhadores rurais no

Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. De maneira geral, a organização em Minas

Gerais dos trabalhadores rurais teve origem com a fundação dos Sindicatos e

Ligas Camponesas, nos anos 1950 e 60, época em que a luta pela terra já

eclodia em vários municípios, ainda que de forma isolada.

Até o início dos anos 1960, o PCB (Partido Comunista Brasileiro) era o

principal mediador dos processos de organização dos trabalhadores rurais em

Minas Gerais, controlando, através da ULTAB (União dos Lavradores e

Trabalhadores da Agricultura do Brasil), inúmeras associações do meio rural. A

ULTAB foi criada em 1954, na 2a Conferência Nacional de Lavradores e

Trabalhadores Agrícolas. Nesta ocasião, já participaram arrendatários e

assalariados do Triângulo Mineiro e do Sul de Minas (regiões em que o PCB

atuava desde 1951), onde, a partir de então, começaram a ser fundadas

algumas Associações de Trabalhadores Agrícolas. Já em 1956 realiza-se, em

Belo Horizonte, a 1a Conferência de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do

Estado de Minas Gerais, onde é criada a ATAMG – Associação dos

Trabalhadores Agrícolas de Minas Gerais. Dentre os principais municípios do

Triângulo Mineiro que enviaram representantes ao evento, estavam

Capinópolis, Centralina, Ituiutaba, Cascalho Rico, Araguari e Uberlândia. Aliás,

neste mesmo ano, no Triângulo Mineiro, é criada a ULTAM – União dos

Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Minas, também sob a influência do

PCB.

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Apesar do caráter ainda marcadamente disperso e isolado das lutas,

iniciava-se o processo de organização institucional dos trabalhadores rurais do

estado. A ATAMG contava com o apoio da Igreja Católica e, ainda, do poder

público estadual e até de setores do patronato rural, que esperavam que “a

constituição da ATAMG funcionasse como um mecanismo que possibilitasse

um controle institucional das demandas apresentadas pelos trabalhadores

rurais” (FERREIRA NETO, 1999, p.172). De qualquer forma, mesmo inserida

num contexto em que a tentativa de cooptação e controle dos trabalhadores

rurais é clara, a 1a Conferência de Lavradores e Trabalhadores do Estado de

Minas Gerais marcou um avanço importante no processo de organização dos

trabalhadores rurais:

Apesar de os estatutos da ATAMG não apresentarem, explicitamente, a possibilidade de organização política dos trabalhadores rurais, uma vez que a intenção do poder público era levar a “harmonia” ao campo, estava criado o mecanismo institucional que possibilitava a organização dos trabalhadores para a defesa de seus direitos e que, posteriormente, daria origem à atual estrutura sindical dos trabalhadores rurais em Minas Gerais (FERREIRA NETO, 1999, p.173).

A partir de então, intensificam-se as ações do PCB, no sentido de

dimensionar o papel da ATAMG e de promover a criação de STRs (Sindicatos

de Trabalhadores Rurais), tendo em vista que a opção de ação da ULTAB era,

notadamente, a intensificação da luta pela sindicalização dos trabalhadores

rurais; desencadeando, assim, um processo considerável de organização no

campo. Foi em Belo Horizonte (MG), inclusive, que se realizou, em novembro

de 1961, o I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas,

ocasião em que as teses das Ligas Camponesas derrotaram as propostas mais

moderadas do PCB (Partido Comunista Brasileiro).

As Ligas Camponesas atuaram em Minas Gerais, em fins da década de

1950 e início da década de 1960, através da criação de um Conselho Estadual

das Ligas Camponesas, sob a liderança de Francisco Julião, que foi fechado

em 1963. De acordo com Ferreira Neto (1999), a ação das Ligas em Minas

também volta-se, em parte, para o processo de sindicalização rural. Apenas a

partir de 1960, começa a constituir um aparato organizacional voltado para a

luta armada, sendo que, já em 1962, seus principais centros de treinamento,

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instalados em Goiás, serão desmantelados pelo Governo Federal. O PCB, que

se constituiu como o mediador mais evidente na organização dos trabalhadores

rurais em Minas Gerais, tem, a partir daí, garantida a predominância das suas

teses no estado.

A opção pela sindicalização rural se manifestará, inclusive, na

transformação das Ligas Camponesas em STRs, e o Estado será encarado

como “o principal ponto de apoio, jurídico e financeiro, ao processo de

organização dos trabalhadores rurais” (FERREIRA NETO, 1999, p.177).

De acordo com a avaliação de Ferreira Neto:

A opção pela sindicalização, como estratégia de luta, significava, implícita e explicitamente, o reconhecimento do Estado como o principal articulador da organização social e, portanto, a aceitação do espaço jurídico como referência básica para a organização e ação dos trabalhadores rurais, ou seja, significava assumir uma opção de lutar pelos direitos dos trabalhadores, de acordo com as regras impostas pelo Estado. É bem verdade que, naquela conjuntura política em que vivia o país, a possibilidade de manutenção de um espaço juridicamente regulado para o tratamento dos interesses dos trabalhadores rurais já significava certo avanço” (FERREIRA NETO, 1999, p.182).

A partir do I Congresso Nacional de Belo Horizonte – identificado como o

momento em que o MSTR (Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais)

inicia seu processo de consolidação, que culminará com a constituição da

CONTAG (Confederação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado de Minas

Gerais), em 1963 –, há uma radicalização nas reivindicações por reforma

agrária em todo o país. Da mesma forma, o MSTR mineiro desencadeia um

processo marcado pela constituição de vários sindicatos e pela ampliação da

visibilidade da organização dos trabalhadores rurais.

No que se refere à formação do MSTR mineiro, de acordo com Ferreira

Neto:

A construção da estrutura de organização sindical dos trabalhadores rurais, em Minas Gerais, ocorreu a partir da existência de um conjunto de condições estruturais – a histórica e crescente exploração dos trabalhadores, a ausência de políticas públicas para o meio rural e a excessiva concentração fundiária; e condições conjunturais, como relativa estabilidade política, necessidade que o PCB tinha de afirmação e ampliação de suas bases, repercussão da atuação das Ligas Camponesas tanto em relação às expectativas dos trabalhadores quanto em relação à reação por parte do Estado e,

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finalmente, existência de uma legislação trabalhista que abria espaço para o processo de organização dos trabalhadores (FERREIRA NETO, 1999, p.166).

No que se refere a este último ponto, entretanto, o autor complementa:

Contudo, se por um lado essa legislação trabalhista representava a possibilidade de os trabalhadores rurais se organizarem para reivindicar seus direitos, por outro, criava os mecanismos de controle do movimento sindical, bem como os entraves à organização política desses trabalhadores (FERREIRA NETO, 1999, p.166).

De qualquer forma, o Golpe Militar de 1964 irá frear esse processo,

desarticulando o processo ainda embrionário de organização. Apesar da

existência de uma rede de sindicatos – já haviam sido criados 24 no Estado,

sendo que o Triângulo Mineiro contava com sete: os STRs de Araguari,

Centralina, Uberlândia, Uberaba, Campo Florido, Monte Alegre de Minas e

Monte Carmelo – e duas federações (nenhuma delas reconhecida pelo

Ministério do Trabalho), o MSTR passa por um período de considerável

retração. As federações foram fechadas, sindicatos sofreram intervenções e

lideranças foram presas e torturadas. Acrescente-se aqui o fato de que Minas

Gerais foi um “estado onde a sanha anticomunista foi particularmente violenta

devido à mobilização conservadora em favor do golpe de 1964”

(POMPERMAYER, 1987, p.9), com destaque para o apoio dado pelos

ruralistas, em especial os do Triângulo Mineiro. A estrutura sindical, no entanto,

foi mantida. Tratava-se de consolidar o papel do sindicato como “instrumento

de mediação entre Estado e os trabalhadores, viabilizando a política econômica

através do controle de suas bases e, de outro, canalizar as reivindicações de

seus membros e resolvê-las pela mediação de órgãos do aparelho do Estado,

sob o lema da colaboração de classes” (GADELHA e SGRECIA, 1987, p.52). A

reativação do MSTR ficou, sobretudo, a cargo da ala conservadora da Igreja

Católica – precisamente os Círculos Operários Cristãos, que se incumbiram de

reabrir as portas dos sindicatos de linha mais moderada logo após o golpe.

Nesse sentido, é possível afirmar que, conforme Grzybowski:

A maior parte dos sindicatos e federações não tem origem histórica sindical, isto é, nas lutas dos trabalhadores, mas na política assistencialista do Estado. Durante o período autoritário, multiplicaram-se os sindicatos de trabalhadores rurais com funções

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assistencialistas. Constituiu-se, assim, uma retaguarda conservadora e paralisante de sindicatos em muitas regiões. (GRZYBOWSKI, 1987, p.63).

Nesse contexto é criada a FETAEMG (Federação dos Trabalhadores da

Agricultura do Estado de Minas Gerais), em abril de 1968, que terá um

expressivo e rápido crescimento, devido a “existência de expressiva rede de

sindicatos já em efetivação, a relativa disponibilidade de recursos oficiais e a

opção por atuar dentro dos limites impostos pela legislação” (FERREIRA

NETO, 1999, p.205).

Com uma forma de atuação pouca autônoma e altamente vinculada ao

Estado, a FETAEMG só trará a reforma agrária para o campo efetivo das suas

prioridades de luta em meados da década de 1980. As primeiras diretorias da

entidade, fortemente vinculadas aos Círculos Operários Cristãos, restringiam-

se a tentativas de aplicação do Estatuto da Terra e a denúncias de

arbitrariedades no campo (como formas de violência e grilagem de terras). Nos

anos 1970, acentua-se o caráter assistencialista imprimido ao movimento, que

passou a dar prioridade a convênios com órgãos de Estado, em especial no

que se refere à operacionalização do FUNRURAL (Fundo de Assistência Social

ao Trabalhador Rural):

Os novos rumos tomados pela FETAEMG sintonizavam-se com a política do Estado autoritário que procurava esvaziar o caráter representativo dos Sindicatos com o Pró-Rural, programa que estendeu a assistência previdenciária ao trabalhador do campo e definiu o sindicato como órgão de colaboração na sua implantação e execução. O sindicato, já atrelado ao Estado através de uma legislação corporativista, assumiu, no meio rural, um caráter fundamentalmente assistencialista. Inúmeros sindicatos foram criados em Minas Gerais como mera extensão do FUNRURAL (GADELHA e SGRECIA, 1987, p.52).

Esta linha de atuação da federação mineira, que marcou a sobreposição

do sindicalismo oficial em detrimento da incipiente organização autônoma dos

trabalhadores rurais do período anterior – destruída pela repressão militar –

distanciava-se inclusive “da orientação do Movimento Sindical dos

Trabalhadores Rurais, em nível nacional, que elegera a luta pelos direitos

trabalhistas e o fortalecimento dos sindicatos existentes como diretriz básica de

sua ação” (POMPERMAYER, 1987, p.10).

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Tendo sido a sindicalização rural a tendência dominante da luta no

campo, em Minas, observa-se que, além da possibilidade da tutela da

sindicalização rural e da contenção das tensões sociais no campo – interesses

dos setores dominantes representados no Estado, “a ênfase na criação de

sindicatos também modifica a posição da reforma agrária no processo de

organização dos trabalhadores rurais, à medida que a sindicalização, além dos

limites impostos pelo estado, aglutina um conjunto de atores e de lutas não

necessariamente sintonizados com a luta pela terra” (FERREIRA NETO, 1999,

p.182).

De acordo com Ferreira Neto:

A estrutura de dependência do MSTR para com o Estado, ao mesmo tempo que garantia ampla margem de estabilidade ao Movimento, restringia drasticamente a sua autonomia e, conseqüentemente, a sua legitimidade. É justamente nesse sentido que a FETAEMG e todo o MSTR nacional, representado pela CONTAG, não conseguiam, de modo efetivo, dar respostas ao crescente número de demandas, vindas da base, de um sindicalismo mais atuante e mais comprometido com os interesses dos trabalhadores (FERREIRA NETO, 1999, p.231).

Aliás, de maneira geral, de sua criação até meados da década de 1970,

a federação tinha a reforma agrária quase como um tema proibido: “o Estatuto

da Terra era a única referência para suas ações que envolviam a temática

fundiária, as quais se davam de forma pontual e individualizada” (FERREIRA

NETO, 1999, p.341).

Nesse contexto, os movimentos mineiros, existentes anteriormente ao

golpe militar, permanecerão essencialmente desmobilizados pela repressão até

meados dos anos 1970, período que marca a reemergência dos movimentos

sociais rurais no estado. Durante ainda o período de isolamento surgem

diversas iniciativas de contatos, encontros, reuniões de grupos com os mais

diversos objetivos.

Em 1979, realiza-se o III Congresso Nacional, que vai marcar a história

do MSTR, que “impulsionado externamente por uma conjuntura de ascenso do

movimento sindical e dos movimentos populares e, internamente, pela

intensificação dos conflitos pela posse da terra e pela ação da Comissão

Pastoral da Terra, passou a estimular as lutas coletivas dos trabalhadores”

(GADELHA e SGRECIA, 1987, p.53). Entre as diretrizes de luta aprovadas

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neste Congresso destacam-se o incentivo à organização da resistência na terra

e à mobilização dos trabalhadores no sentido de ocuparem terras improdutivas.

A FETAEMG, no entanto, frente às diretrizes do III Congresso,

redimensionou a sua ação, mas limitando-se a apoiar os processos de

ocupação e encaminhar as reivindicações dos trabalhadores ao Estado (sem

assumir a organização efetiva dos trabalhadores para a ocupação), com um

encaminhamento administrativo, institucional e isolado dos conflitos. Aliás, de

forma geral, até o final dos anos 1970, o MSTR mineiro não interferia

significativamente nos conflitos por terra que ocorriam no estado, no sentido de

organizar e defender os trabalhadores. Conforme análise de Gadelha e

Sgrecia:

O movimento sindical não conseguiu articular os diferentes movimentos pela posse da terra numa luta mais ampla, visando à solução imediata dos conflitos e à integração dos assalariados e pequenos proprietários em torno da reforma agrária. A ação do movimento sindical caracterizou-se pelo imediatismo, pela inexistência de uma estratégia, visando ao fortalecimento das lutas, e pela incapacidade de estabelecer alianças com outros setores da sociedade, sem os quais se tornam remotas as possibilidades de confronto com os latifundiários na disputa pela terra (GADELHA e SGRECIA, 1987, p.81).

No entanto, apesar de manter seu controle quase absoluto sobre o

conjunto dos sindicatos do Estado, a FETAEMG começa a concorrer com a

ação mais efetiva de outras organizações no direcionamento das lutas dos

trabalhadores rurais do estado, como a CPT, a CUT e o MST.

No que tange, em específico, à região do Triângulo Mineiro e Alto

Paranaíba, é possível afirmar que, conforme Mendonça e Thomaz Junior, “a

incorporação das áreas de cerrado aos interesses da economia transnacional

não apenas complexificou, como também promoveu diferenciações na classe-

que-vive-do-trabalho e substancialmente na sua forma de ser e de se

expressar politicamente” (MENDONÇA e THOMAZ JUNIOR, 2003, p.664).

Dessa forma, intrínseco a este processo de reestruturação produtiva, está o

crescimento considerável de trabalhadores com relações de trabalho

assalariado permanente ou, em especial, temporário, em detrimento das

formas tradicionais de parceria para a exploração da terra - fato fundamental

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para a compreensão da ascensão do movimento de luta pela terra na região do

Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. De acordo com Silva:

A territorialização dessa mão-de-obra no Cerrado Mineiro é considerada um marco na reorganização das relações sociais no espaço agrário local. Através dessa categoria de trabalhadores nas atividades agrícolas regionais é que as instituições político-ideológicas – STRs e APR, mediadoras da luta pela reforma agrária – encontraram espaço para se territorializarem (SILVA, 2002, p.38).

Foi justamente neste período, inclusive, marcado pelo auge da

modernização agrícola e da implementação dos projetos governamentais na

região, que a maior parte dos sindicatos de trabalhadores rurais começaram a

ser criados nos municípios do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, ainda que

uma atuação mais forte, entretanto, tenha se dado apenas a partir dos anos

1980.

A ameaça de expulsão dos trabalhadores ainda moradores nas

fazendas, a não aplicação da legislação trabalhista em grande parte dos

contratos de trabalho permanentes e a situação incerta dos bóias-frias

caracterizam um processo de intensa exploração dos assalariados, marcado

pela intensificação e prolongamento da jornada de trabalho. Assim, como já

apontado, os anos 1970 são marcados, com a implementação do processo de

modernização da agricultura, pela intensificação da exploração do trabalho

rural e da expropriação camponesa, o que traduz-se num novo

dimensionamento dos conflitos fundiários. Nesse sentido, também a

subordinação da pequena produção camponesa ao capital, engendrada pelo

processo de expansão do capital, que tem como conseqüências a perda da

autonomia e a pauperização da unidade camponesa, levam os pequenos

agricultores a assumirem um novo papel no cenário das lutas no campo.

Apesar da fragilidade das organizações dos pequenos agricultores, estas

apresentam avanços ao questionarem os mecanismos que causam o

endividamento e a perda de terras e, conseqüentemente, buscarem um novo

modelo de organização da produção agrícola. Afinal, “a subordinação da

unidade camponesa ao capital, reforçada pela política agrícola, continua

colocando em permanente risco sua reprodução como pequenos produtores”

(GADELHA e SGRECIA, 1987, p.58).

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A Reemergência do Movimento de Trabalhadores Rurais no Triângulo

Mineiro e Alto Paranaíba: os anos 1980

A busca por um sindicalismo mais atuante e representativo reflete-se, já

nas eleições de 1977, para a composição da 4a diretoria da FETAEMG, que vai

marcar novas formas de atuação da federação, a partir da década de 1980.

Refletindo uma série de transformações conjunturais no país, as novas formas

de atuação estarão refletidas na busca de alternativas ao caráter meramente

assistencialista que predominava na estrutura do MSTR (Movimento Sindical

dos Trabalhadores Rurais), na ampliação das discussões políticas na

federação, no esforço de coletivização das diversas frentes de luta dos

trabalhadores rurais e na rediscussão e busca de estratégias de luta pela

reforma agrária – bandeira esta que é mais concretamente assumida durante o

III Congresso da CONTAG, realizado em 1979. É certo, entretanto, que o que

vai predominar entre as bandeiras do MSTR é a luta dos assalariados, e não

da reforma agrária, com a tentativa de implantação da Convenção Coletiva do

Trabalho, mantendo-se o Estatuto da Terra como a principal referência de

atuação.

O chamado Grupo Montalvão, encabeçado por André Montalvão, que

passa então a controlar a FETAEMG – e que vai permanecer na sua direção

por algumas gestões consecutivas –, buscou reproduzir, em certa medida, o

modelo de ação sindical adotado pela CONTAG, inspirado na greve dos

canavieiros de Pernambuco de 1979, que consistia na “ampla mobilização e

paralisação dos trabalhadores com base em parâmetros legalmente

estabelecidos” (FERREIRA NETO, 1999, p.251). Ou seja, a greve passa a ser

encarada como um legítimo recurso de pressão, frente às novas possibilidades

de negociação e ação política sugeridas pelo processo de abertura política. Em

1985, por exemplo, ocorre a primeira grande manifestação dos trabalhadores

rurais bóias-frias da cafeicultura do cerrado mineiro. Reivindicando o

cumprimento das leis trabalhistas, melhores salários e condições de trabalho,

com o apoio do STR e da FETAEMG, um número considerável de

trabalhadores paralisou as atividades durante, aproximadamente, uma semana,

na cidade de Araguari.

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Assim, vinculadas às campanhas salariais apoiadas pela FETAEMG,

intensificaram-se as paralisações na região do Triângulo Mineiro – como, além

da dos bóias-frias da cafeicultura, as dos canavieiros de Uberaba e de

Fronteira, no ano de 1984, e a dos trabalhadores rurais de Centralina.

Esta última, por exemplo, marcou um avanço significativo no

direcionamento das lutas travadas no município e coordenadas pelo sindicato.

O STR de Centralina, que foi fundado em 1963 – sendo um dos mais antigos

da região –, manteve uma linha meramente assistencialista até 1987, quando

vence as eleições um grupo de oposição. Este grupo, constituído em 1984 e

formado essencialmente nos trabalhos católicos que vinham sendo

desenvolvidos, na região, por irmãs da ordem franciscana brasileira, vai

coordenar, entre os dias 16 e 21 de março de 1987, uma greve dos

trabalhadores rurais de Centralina, que reivindicavam o aumento da

remuneração pela arroba colhida de algodão. Piquetes foram organizados para

barrar os caminhões de trabalhadores e mais de mil bóias-frias aderiram à

greve. De acordo com a avaliação de Micheloto, apesar de não ter trazido

grandes conquistas imediatas, a greve marcou um grande avanço político,

consolidando a imagem da oposição sindical, que venceu as eleições para a

diretoria do STR neste mesmo ano, com um programa que avançava muito,

politicamente, em relação ao que estava posto, incluindo, por exemplo, a luta

pela reforma agrária. Dessa forma, e somando-se o respaldo prestado pela

CPT regional à greve, especialmente na articulação com outras instâncias, “ao

mesmo tempo que cresceram, em termos de organização e consciência do seu

próprio caminho sindical, os trabalhadores de Centralina abriram espaço,

também, para articulações mais abrangentes, como a CUT e o PT

(MICHELOTO, 1990, p.72).

De forma geral, as campanhas salariais desenvolvidas, no Triângulo

Mineiro, provocaram mudanças no interior do próprio movimento sindical, de tal

forma que alguns sindicatos deixaram em segundo plano o trabalho

assistencialista para intervir de forma mais sistemática na defesa coletiva dos

assalariados. Esse fato nos remete à reflexão empreendida por Grzybowski de

que “o caráter mais ou menos combativo dos sindicatos é, em grande parte,

resultado do movimento e não condição prévia das lutas no campo”

(GRZYBOWSKI, 1987, p.63).

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O Pontal do Triângulo passa a constituir uma das regiões do Estado que

intensifica as lutas pela implementação da Convenção Coletiva do Trabalho,

buscando incorporar os trabalhadores vinculados à crescente cultura de soja

na região, intensificada, em especial, a partir da instituição do POLOCENTRO

e do PRODECER.

As avaliações posteriormente realizadas da luta pela implementação do

Contrato Coletivo de Trabalho, em Minas Gerais, sugerem que, em certo

sentido, essa nova forma de luta despertou uma grande mobilização entre os

sindicatos associados, mas não conseguiu consolidar as conquistas no sentido

da real efetivação do Contrato Coletivo. Esta dificuldade do MSTR mineiro é

associada ao fato de que, por um lado, “ainda naquele momento, a maioria dos

STRs tinha, como forma de atuação, a resolução de problemas de forma

restrita a casos específicos e pontuais, mantendo o estilo tradicional de

atuação implementado pelas primeiras diretorias da FETAEMG” (FERREIRA

NETO, 1999, p.254) e, por outro, a própria FETAEMG, apesar das mudanças

no discurso oficial, não conseguia dar resposta às transformações que

ocorriam no campo nem encaminhar efetivamente as lutas que estas

produziam, mantendo sua verticalidade na estrutura sindical e um

distanciamento da base (ibidem).

Na tentativa, entretanto, de criar mecanismos de descentralização da

estrutura sindical, como forma de ampliar sua base de atuação, a FETAEMG

inicia, em 1978, a instalação de Delegacias e Pólos Regionais, tendo sido a

Delegacia Regional do Triângulo Mineiro (situada em Uberaba) uma das

primeiras.

Já a partir da segunda metade da década de 1980, a FETAEMG passa a

adotar uma postura mais agressiva na condução da luta pela terra, o que é

impulsionado, inclusive, pelo surgimento de novos atores no processo de

organização dos trabalhadores rurais do estado, como o MST e a CPT, que

promovem uma luta de ocupação e enfrentamento, que vai exigir uma nova

postura da federação que, ao contrário de algumas regiões do país, onde o

MSTR ficou meio adormecido frente às novas ações, busca incorporar algumas

dessas novas estratégias de luta. Inicialmente, essa incorporação se dá de

forma muito limitada, com a federação envolvendo-se apenas nas lutas de

resistência para, posteriormente, em especial nos anos 1990, ligar-se mais

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diretamente às ocupações e aos conflitos fundiários. Marco desse processo é a

realização do 1o Congresso Estadual dos Trabalhadores Rurais de Minas

Gerais, realizado pela FETAEMG em 1984. Inserido num contexto em que a

sociedade passa por um processo de reorganização política e econômica, o

evento representará a abertura de um novo ciclo no processo de organização

dos trabalhadores do estado, sinalizando para uma luta mais incisiva e

dinâmica pela reforma agrária, ao mesmo tempo em que se ampliam as

disputas políticas travadas entre a federação e a articulação CPT/CUT –

disputa esta que se manifestará em várias eleições para a direção da

FETAEMG.

Entretanto, nesse momento, há que se ressaltar que, nessa época,

apesar da FETAEMG já estar diretamente envolvida com a luta pela terra em

Minas Gerais, esta era na verdade produto de uma articulação entre as ações e

as demandas da base sindical. A ação da FETAEMG restringia-se ao

acompanhamento e à divulgação dos fatos e conflitos, através de

encaminhamentos legais e ainda atrelados ao Estado, e não como uma ação

de mediação efetiva, visto se tratar de um acompanhamento de ações que se

originavam sem a contribuição direta da federação (FERREIRA NETO, 1999).

Os STRs, criados como uma estratégia governamental para exercer o

controle sobre as organizações de trabalhadores rurais, institucionalizando-os,

ao passo que enfraquecia os movimentos sociais, passam, nos anos 1980, por

uma significativa reformulação política. O sindicalismo rural da região do

Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, fortemente vinculado a uma política

assistencialista e atrelada às elites locais, no decorrer da década de 1970,

passa a priorizar, na década de 1980, “a democratização da terra, a politização

dos trabalhadores rurais e a manutenção e ampliação dos direitos trabalhistas

da classe” (SILVA, 2002, p.41). Inicia-se, assim, o processo de ocupações de

terra na região, com destacado papel do sindicalismo local.

De maneira geral, a década de 1980 registra uma ascensão, sem

precedentes, da luta pela terra propriamente dita, no estado de Minas Gerais,

seguindo a tendência nacional. Em 1981, por exemplo, o MSTR registrou 16

conflitos pela posse da terra, envolvendo 2.685 famílias, nas regiões de

Paracatu, Norte de Minas e Jequitinhonha. Em 1983, o número salta para 53

conflitos, que se espalham também para a Zona Metalúrgica, Vale do Mucuri,

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região do Rio Doce, Alto São Francisco e Pontal do Triângulo, envolvendo mais

de 7.000 famílias. Em 1985, o número de conflitos registrados chega a 150,

com cerca de 68.000 pessoas (GADELHA e SGRECIA, 1987). A violência

também se faz progressiva nos conflitos por terra no estado: de 1 assassinato

registrado em 1980 para 26 em 1985.

Entre os anos de 1983 e 1984, inicia-se o 1o conflito de maior

repercussão pela posse da terra, ocorrido no Triângulo Mineiro. É o caso da

Fazenda Barreiro, localizada no município de Iturama.

A luta pela terra na Fazenda Barreiro – o primeiro projeto de

assentamento de reforma agrária da região

Em princípios da década de 1980, a fazenda Barreiro, em Iturama,

abrigava cerca de 120 posseiros que, através de contrato verbal com o

proprietário (Sr. Dídimo), plantavam milho, arroz, algodão e mandioca, por três

anos, com o compromisso de, após o término do 3o ano, transformar as terras

cultivadas em pastagens. Com a morte do proprietário, seu sucessor (Sr. Izahú

Rodrigues de Lima) tenta impor o rompimento dos contratos em curso,

oferecendo novas glebas, nas quais os posseiros pagariam uma renda de 20%

do resultado das colheitas. Os trabalhadores reagem coletivamente e, com o

apoio do STR-Iturama, ingressam em juízo com o pedido de Usucapião. O

fazendeiro, na busca pela criação de condições para a apropriação da renda

capitalista da terra, recorre à Justiça e garante a expulsão das famílias, que

resistem na luta pela desapropriação do imóvel, frente à possibilidade da

expropriação e da precarização do trabalho. Nesse processo de luta, em

novembro de 1984, é assassinada uma das lideranças dos posseiros – Juraci

José Alves. Em dezembro do ano seguinte, Izahú é morto numa tocaia.

Paralela à luta na Barreiro, outra ocupação era realizada no mesmo

município: em agosto de 1985, cerca de 50 famílias de trabalhadores sem-terra

ocupam a fazenda Bartira. Ambas as fazendas são vistoriadas pelo INCRA e

consideradas improdutivas.

Poucos dias depois da ocupação, as famílias da Fazenda Bartira são

despejadas pela polícia, sem mandado judicial e transferem o acampamento

para a frente do STR de Iturama, onde outras famílias engrossam a luta. Ao

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final de oito meses, o então nomeado acampamento “Esperança do

Trabalhador” contava com 80 famílias de trabalhadores rurais.

Foto 2.1: Acampamento “Esperança do Trabalhador” (Iturama) – barracos e faixas. Fonte: arquivo APR. Agosto de 1985.

Foto 2.2: Acampamento “Esperança do Trabalhador” (Iturama) – fila para refeição. Fonte: arquivo APR. Agosto de 1985.

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Foto 2.3: Acampamento “Esperança do Trabalhador” (Iturama) – mulheres lavando roupas. Fonte: arquivo APR. Agosto de 1985.

Essas famílias vão somar-se as da Fazenda Barreiro, constituindo aí,

após um intenso processo de pressão e negociação, o primeiro assentamento

da região, com 131 famílias – o P. A. (Projeto de Assentamento) Iturama. O

STR de Iturama, um dos mais atuantes da região, teve um importante papel de

mobilização e de articulação externa nesse processo, que contou ainda com

forte apoio da CPT – Comissão Pastoral da Terra (FONSECA, 2001).

A experiência de Iturama transformou-se numa referência fundamental

para a crescente mobilização dos sem-terra no Triângulo Mineiro, registrando

um marco importante na história da luta pela terra na região: “nas discussões

dos círculos bíblicos e das CEBs, por exemplo, essa experiência é valorizada

como um exemplo do „fruto conquistado‟ através da fé e da luta concreta”

(MICHELOTO, 1990, p.78).

Uma das lideranças da luta da Barreiro, aí assentado e que

posteriormente contribuiu com a espacialização da luta pela terra na região,

apoiando outras organizações e ocupações de sem-terra, reforça em sua fala a

importância, nesse sentido, da experiência da Barreiro:

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Depois da Barreiro, o sindicato de Iturama ocupava terra direto. Muito município que

não tinha luta pela terra começou pela nossa luta, e hoje até avançou mais que nós

aqui, como Araxá. Foi o povo daqui que foi ocupar a Sonho Azul e a Guariba

(primeiros assentamentos da microrregião de Araxá). Na Sonho Azul tinha mais polícia

que sem-terra. As 4l famílias que tavam lá era do Pontal. Eu dei aula pra muita gente:

Sindicato de Araxá, Araguari, Frutal, Limeira... No meu tempo, sindicato nenhum fazia

luta pela terra. Só o nosso. Araxá, Araguari, Planura, Carmo do Paranaíba, Ituiutaba...

tudo veio depois, só por causa da nossa luta (Seu Tião, assentado no P.A. Iturama).

Fazenda Santo Inácio-Ranchinho: referência regional de luta e conquista

da terra

Após a conquista da Fazenda Barreiro, uma nova ocupação ocorre em

1986, numa área da CEMIG (Companhia de Luz e Energia de Minas Gerais),

no município de Santa Vitória. Através da resistência e da perseverança, os

trabalhadores rurais sem-terra, após um intenso processo de negociação,

conseguiram, em 1988, a desapropriação da Fazenda Cruz e Macaúbas, que

constitui o 2o projeto de assentamento da região do Triângulo Mineiro.

Mas é em 1989 que terá início uma das maiores experiências de luta da

região, inspirada na luta e com o apoio de lideranças da Fazenda Barreiro, cuja

conquista serviu como importante motivação para a organização coletiva dos

trabalhadores. Originada em Limeira D‟Oeste, teve como um dos seus

principais coordenadores Zé Pretinho, em cuja casa passaram a se reunir

centenas de trabalhadores sem-terra do Pontal do Triângulo. Conforme a

caracterização de Fonseca, “bóia-fria, biscateiro, desempregado, desesperado

e delegado sindical de Limeira D‟Oeste” (FONSECA, 2001, p.109), Zé Pretinho,

no depoimento feito a Guimarães, em seu estudo do caso da Fazenda Santo

Inácio-Ranchinho, expõe a gênese do movimento, relacionando-o à

precariedade das condições de trabalho no campo:

A gente chegava da roça, a gente tava cansado! A gente trabaiava o dia inteirinho e de tarde a gente tinha que andá treis horas em pé (refere-se à carroceria do caminhão). Foi aí, que no dia trinta de abril eu falei pra minha mulhé: - Eu quiria tá agora no meio daquele rio, com uma corda amarrada no pescoço e uma pedra amarrada nela, pra mergulhá, pra nunca mais aboiá. Aí, a Maria tava atrás de mim e

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falô: - Mais pra que cê tá falano isso? Eu falei: - Disisperado com a vida e de sabê que eu vou ficá velhinho subino no caminhão de bóia-fria pra defendê o pão de cada dia! Então, pra levá essa vida, antes morrê. Foi justamente na hora que me deu um tino! Lutá pela reforma agrária! (...) Aí, eu convidei os companheiro... Dia 14 de maio de 89 ia Ter uma reunião lá em casa. Eles perguntaro: pra quê? – Uai, pra nóis começá a discutir sobre a questão da reforma agrária, fazê ocupação de terra! (depoimento de Zé Pretinho, apud GUIMARÃES, 2002, p. 61).

As reuniões foram sendo organizadas de forma espontânea pelos

trabalhadores rurais locais, que buscavam uma forma alternativa para superar

a situação de exclusão e subordinação a que foram submetidos como

assalariados. Em meados de 1989, já contavam com o apoio da CPT, da CUT,

do PT e do MST (que começava a se estruturar no estado), além de outras

entidades locais. Essa articulação exprimia a opção pela ocupação como

estratégia principal de luta, posto que a concepção da CONTAG regia-se pela

crença na necessidade de dialogar com o Estado no processo de

desapropriação, priorizando caminhos institucionais. CUT, CPT e MST

defendiam já, abertamente, a pressão direta, as ocupações massivas e a

resistência nos acampamentos como diretrizes de luta. “Em torno de 50

representações de entidades sindicais, populares, religiosas, partidos políticos

declaram apoio à ocupação” (FONSECA, 2001, p.110).

Em 23 de janeiro de 1990, a fazenda Colorado é ocupada, de onde as

famílias são, logo no dia seguinte, despejadas, sem ordem judicial, pela Polícia

Militar e por membros da UDR. Recém-criada, a UDR já demonstrava seu

poder de pressão e de articulação local e nacional, inclusive via imprensa,

desqualificando e criminalizando o movimento, não permitindo sequer a

realização de vistorias em fazendas da região pelo INCRA. Vários apoiadores

presentes (entre sindicalistas, estudantes, advogados e religiosos) são presos

e levados para a Delegacia de Iturama. Os sem-terra montam acampamento

no distrito de Vila União, transferindo-o, depois de um mês, para a BR-497, a

12 km de Iturama, assim como na sede do INCRA em Belo Horizonte.

Após nove meses de negociações infrutíferas, cerca de 200 pessoas

ocupam a Fazenda Varginha, em Vila União, sendo daí novamente expulsas

pela polícia, mas agora à base de muita violência – física e psicológica. Aliás,

as ações violentas, desencadeadas pelos policiais, permaneceram sob a forma

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de torturas sofridas pelos sem-terra que foram levados, novamente, para a

Delegacia de Iturama.

A violência exercida pela polícia contra os trabalhadores marcou a presença dos fazendeiros, declarando a luta aberta contra os ocupantes da terra. Nesse sentido, a ação do Estado sobre os conflitos no campo foi permeada por práticas repressivas sobre os movimentos, ora abertas como as intervenções policiais nos conflitos, ora veladas, pela omissão quanto às ações das milícias privadas dos grandes proprietários. No caso das práticas violentas desencadeadas pelo aparato policial em Iturama, ficou visível a tentativa de semear o medo entre os trabalhadores, como forma de impedir a continuidade de suas lutas. De fato, a violência praticada pela polícia, com a conivência do Poder Judiciário, deixou marcas indeléveis na memória dos trabalhadores (GUIMARÃES, 2002, p.77).

O que ocorreu, no entanto, não foi suficiente para desmotivar os

trabalhadores. Ao contrário, os sem-terra voltaram para o acampamento às

margens da BR-497, reiniciando um processo de intensa mobilização,

denunciando a violência praticada pela polícia, ocupando órgãos públicos e

realizando audiências, “como forma de expressar suas lutas e demonstrar a

resistência e organização dos acampados, por meio de ações reivindicatórias

de desapropriação de terras para fins de reforma agrária” (GUIMARÃES, 2002,

p.77).

Esse processo culminou na indicação da Fazenda Nova Santo Inácio

Ranchinho – 3.958,62 ha pertencentes a um único proprietário –, em dezembro

de 1990, como área passível de desapropriação, o que veio a ocorrer em abril

de 1991. A partir daí, no entanto, deu-se início a uma longa trajetória judicial,

frente às contestações dos herdeiros da fazenda. Os sem-terra, numa

demonstração de resistência e perseverança, mesmo frente às pressões

contrárias exercidas especialmente pela prefeitura de Iturama e pelos

fazendeiros, que tentavam boicotar a sustentação dos acampados (por

exemplo, desviando cestas básicas encaminhadas pelo INCRA aos sem-terra,

no caso da Prefeitura, e negando-lhes empregos, no caso dos fazendeiros),

permaneceram acampados na BR-497 até maio de 1993.

O longo período do acampamento ficou marcado na memória das

pessoas como um momento de resistência e de esperança. Apoiados pelos

agentes pastorais da CPT e da APR e por membros do MST e da CUT, os

acampados desenvolveram aí formas diferenciadas de organização interna,

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baseadas na participação ativa de todos no processo de tomada de decisões e

permeadas por reflexões sobre a realidade que os cercava, místicas e

celebrações. Esse processo contribuiu para o fortalecimento da identidade

coletiva dos sem-terra, mas também foi permeado por conflitos e tensões,

culminando posteriormente, por exemplo, no rompimento dos acampados com

o MST. A CUT, que já possuía um trabalho de assessoria junto aos

movimentos rurais na região, por intermédio dos sindicatos a ela ligados,

permaneceu na organização dos trabalhadores rurais.

Em maio de 1993, após inúmeras negociações e promessas não

cumpridas, frente a ambigüidades da justiça que, paralelamente a imissão de

posse da área desapropriada concedia liminares favoráveis aos antigos

proprietários, os sem-terra (acampados já há 3 anos e 4 meses) ocuparam a

fazenda Santo Inácio Ranchinho, que ficava a mais de 250 km de onde

estavam.

O processo de ocupação da terra em Campo Florido constituiu-se (...) como fato político de grande relevância, tornando-se um marco divisor no imaginário da luta pela terra no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba. A entrada na fazenda deu-se de forma pacífica (...). A ocupação ganhou visibilidade nos meios de comunicação, principalmente na mídia impressa, que passou a fazer cobertura das ações desencadeadas pelos trabalhadores na tentativa de efetivar a desapropriação da fazenda. Os jornais da região cobriram o processo de ocupação na Santa Inácio Ranchinho por um período de dois meses, acompanhando quase que diariamente as ações de disputa do latifúndio improdutivo (GUIMARÃES, 2002, p.93).

O modelo de organização interna do acampamento foi mantido.

Passaram a produzir, coletivamente, arroz e feijão, além de uma horta – tudo

para o consumo interno. Garantiram, ainda na condição de acampados, a

implementação de uma escola na fazenda, bem como a designação de

professores da rede municipal, através de ocupações na prefeitura. Além disso,

de acordo com Guimarães,

o que revelou a determinação dos trabalhadores em efetivar o controle do território apropriado foi a expulsão dos carvoeiros que estavam instalados na área ocupada, bem como a retirada do gado das pastagens de braquiária, área que a herdeira da fazenda mantinha arrendada para fazendeiros da região, como forma de mascarar a produtividade do latifúndio (GUIMARÃES, 2002, p.98).

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A vitória dos trabalhadores concretizou-se em outubro de 1993, quando

a liminar favorável aos antigos proprietários foi derrubada, com base na Lei

Agrária promulgada em fevereiro do mesmo ano, em que eram estabelecidos

mecanismos desapropriatórios. Em maio de 1994, finalmente, o INCRA criou,

naquele espaço, o Projeto de Assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho,

assentando 115 famílias: “o espaço conquistado pelos trabalhadores foi

reconfigurado e transformado em território escolhido para nele constituírem

novas maneiras de produzir, novas formas de organização, novas

sociabilidades, enfim, um novo modo de vida” (GUIMARÃES, 2002, p.103).

A experiência dos trabalhadores rurais de Campo Florido dimensionou a

luta pela terra na região, simbolizando a consagração da ocupação como

principal forma de conquista da terra, e a pressão direta e a mobilização

massiva como os recursos mais eficazes na garantia de seus pleitos.

Todo esse processo de intensificação da luta pela terra, como em todo

território nacional, nos permite afirmar que, conforme Fernandes:

Não cabe aos sem-terra a alusão de que a década de 1980 foi uma década perdida. Ao contrário, por meio de suas lutas mantiveram a reforma agrária na pauta política. Essa questão ocupou espaços no campo e na cidade, espacializando a luta pela terra. As conquistas dos sem-terra foram frutos das lutas plantadas no campo com as ocupações, e só dessa forma obtiveram vitórias nas negociações na cidade. Os acampamentos nas beiras das estradas só foram superados com as ocupações de terra. Foi com essas ações que os sem-terra fizeram avançar a luta e sua organização, construindo realidades e desdobrando-as (FERNANDES, 2000, p.198).

Os anos 1980 são marcados, assim, por avanços decisivos no que tange

à organização dos trabalhadores rurais no Triângulo Mineiro. Esses avanços

estarão representados nas ocupações de grandes propriedades improdutivas –

ações essas que passaram a consolidar uma nova forma de atuação, que tem

na reforma agrária a bandeira prioritária de luta. Novas concepções, que

aglutinam práticas mais ofensivas e diretas e menos burocratizadas e atreladas

ao Estado, começam a ser disseminadas com mais intensidade. A crescente

busca pela construção de seus próprios meios organizativos e pela autonomia

do movimento de trabalhadores rurais reduzirá, ainda que de forma

relativamente lenta e parcial, os fatores de imobilismo e heteronomia social e

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política que, por vezes, pesam sobre os setores subalternos do campo e suas

organizações.

São essas as tendências que permanecerão vigorando, a partir dos anos

1990, com, ainda, maior intensidade e solidez, acrescidas do surgimento de

novos movimentos sociais rurais na região, considerando que “a emergência

de novos projetos associados aos trabalhadores do campo se faz acompanhar

de formas igualmente renovadas de organização coletiva” (MICHELOTO, 1990,

p.63).

Ampliação dos Movimentos Sociais Rurais e Intensificação da Luta pela

Terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – dos anos 1990 ao início dos

anos 2000.

As experiências desenvolvidas no decorrer dos anos 1980 terão efeito

multiplicador no processo de luta pela terra, sendo a conquista da Nova Santo

Inácio-Ranchinho um marco desse processo:

A luta de Iturama havia se tornado uma referência no Estado para os trabalhadores rurais. Nessa ocasião o STR de Araxá passou a visitar a Santo Inácio Ranchinho na busca de experiências para dar início a ocupações no Alto Paranaíba. Em meados de 1993, um importante seminário sobre reforma agrária é realizado nas dependências da FETAEMG em Uberaba. Participam diversos sindicatos de trabalhadores rurais e urbanos, ONGs, partidos, lideranças regionais e de outros estados (SP, PE e GO). Os sem-terra de Campo Florido, com suas experiências de luta, destacam-se no evento e passam a ter importantíssimo papel na organização dos sem-terra da região (FONSECA, 2001, p.112).

Novas ocupações são realizadas. As experiências de luta são

disseminadas entre os trabalhadores rurais e amplificam o seu poder de

organização e mobilização. Vários são os relatos de ocupações; despejos;

acampamentos em propriedades e em beiras de estrada com produção

comunitária em muitos deles; reuniões; ocupações de prédios públicos;

manifestações. Histórias de resistência, de persistência, de conflitos internos e

externos, de negociações pacíficas e de violências de toda a sorte, de derrotas

e de vitórias. Mas, sobretudo, histórias que marcam novos rumos para

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centenas de trabalhadores rurais sem-terra, que passam a atuar de forma mais

organizada, consciente e articulada, rompendo com o isolamento e o localismo

característicos até então. Que buscam se afirmar como sujeitos portadores de

projetos alternativos de sociedade e de desenvolvimento rural. Que redefinem

relações, que alteram jogos de força e (re)constroem territórios, com a

conquista e a transformação de parcelas de áreas rurais.

É fortalecido, nesse processo, o caráter classista das lutas, que exprime,

na defesa prioritária da reforma agrária, um sentido contrário àquele vinculado

aos interesses dos setores dominantes regionais e manifesto na noção de

propriedade privada da terra.

Simboliza esse processo a disseminação do conceito de sem-terra como

referência de identidade política, como forma de (auto)denominação daqueles

trabalhadores rurais, arrendatários, meeiros, pequenos proprietários, enfim,

expropriados e explorados no movimento excludente do capitalismo, que

organizam-se para, de alguma maneira, fazer frente à ofensiva do capital.

A intensificação da mecanização das grandes lavouras na região

estudada, a partir dos anos 1990, é uma das faces dessa ofensiva, que reforça

a territorialização do capital. Inspirada na racionalidade capitalista de busca

constante de ampliação dos lucros, a utilização em larga escala da

mecanização serve ainda como redutor dos desgastes burocráticos das

relações trabalhistas. No entanto, a ampliação da desterritorialização desses

trabalhadores rurais, somada à dos pequenos produtores, parceiros, posseiros,

meeiros e arrendatários, dimensiona ainda mais a luta pela terra, fazendo

eclodir inúmeras disputas territoriais.

É este o cenário que se apresentará a partir dos anos 1990 no Triângulo

Mineiro e Alto Paranaíba, marcado por uma intensificação da luta pela terra, e

pela incorporação de novos atores e roteiros.

A vertente sindical da organização dos trabalhadores rurais e o STR de

Araxá

Em fins de 1994, famílias de Araxá, Planura e Frutal juntam-se a outras

remanescentes do assentamento de Campo Florido e realizam a 1ª ocupação

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do Alto Paranaíba, na Fazenda São Bartolomeu, em Ibiá. Despejadas, montam

acampamento em Araxá, apoiadas pelo sindicato dos trabalhadores rurais de

Araxá que, a partir de então, dá início a um intenso processo de mobilização

(FONSECA, 2001).

Atuando como representante da categoria desde 1985, este sindicato foi fundado no Encontro Regional dos Trabalhadores Rurais, realizado em Araxá, no dia 27/03/1999. A área de atuação ou a base territorial do STR de Araxá e Região abrange oito municípios da microrregião de Araxá: Araxá, Tapira, Sacramento, Perdizes, Pedrinópolis, Santa Juliana, Ibiá e Pratinha, podendo ser ampliado para outros municípios, desde que tenha aprovação dos trabalhadores destes (SILVA, 2002, p.42).

O STR de Araxá e região constitui o sindicato mais atuante da região do

Alto Paranaíba, tendo um forte peso na organização política dos trabalhadores

rurais locais e sendo responsável pela maioria das ocupações aí realizadas,

contribuindo com a conquista de vários assentamentos.

É importante ressaltar que o período inicial de criação desses

assentamentos coincide com o “momento em que a retomada da mecanização

se intensifica nas lavouras cafeeiras do Alto Paranaíba. Assim, em detrimento

da redução da mão-de-obra na cafeicultura, no período de pré e pós-colheita, o

uso da tecnologia multiplicou o número de desempregados nos seus

municípios” (SILVA, 2002, p.51), fator este já citado, que contribui para a

compreensão do aumento local de mobilização social.

Uma das primeiras áreas conquistadas no Alto Paranaíba foi uma antiga

propriedade da Companhia Vale do Rio Doce, que mantinha a área ociosa,

como reserva de valor. Durante muitos anos, esta vinha sendo utilizada,

ilegalmente, por fazendeiros da região para a criação de gado. Cerca de 62

famílias ocuparam a área, em maio de 1996, que foi desapropriada já em junho

do mesmo ano, o que resultou na criação do Projeto de Assentamento Nova

Bom Jardim, beneficiando 20 famílias (SILVA, 2002)4. Foi o STR de Araxá que

coordenou o processo de mobilização e de ocupação. Com uma linha mais

combativa, está diretamente ligado à CUT, apesar de associado à FETAEMG.

4 Para mais informações ver Silva (2002), dissertação baseada em estudo de caso sobre o P.A. Nova Bom Jardim.

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Aliás, a emergência de várias lutas no campo, tanto no Triângulo Mineiro

quanto no Alto Paranaíba, se deu, em parte considerável, com a iniciativa ou o

apoio dos sindicatos filiados à CUT, que realiza um trabalho de assessoria

junto aos movimentos rurais na região. Pelo seu próprio caráter, tem uma linha

de atuação direcionada para a promoção de alianças mais amplas –

especialmente urbanas, além de historicamente mais combativa que a da

CONTAG.

Entre os outros sindicatos de trabalhadores rurais mais atuantes na

região em termos de luta pela terra, que têm experiências na realização de

ocupações, temos os STRs de Iturama, Centralina, Ituiutaba e Araguari.

A própria FETAEMG, impulsionada pelas ações de sua base, passou,

nos anos 1990, a adotar uma orientação um pouco mais combativa. A

intensificação das ações conjuntas entre a federação, a CUT e a CPT, inclusive

via inserção nas diretorias de membros ligados a estas entidades, contribuiu

para uma ampliação considerável do conteúdo ideológico do movimento e para

uma transformação na estrutura sindical, de forma a dotá-la de maior

autonomia e eficiência em suas ações5. Em 1993 são criadas coordenações

regionais e temáticas, entre essas a Diretoria de Política e Reforma Agrária –

um importante passo ilustrativo da ampliação da luta pela reforma agrária no

estado. Neste mesmo ano, pela primeira vez, um grupo de lideranças sem-terra

consegue assumir postos de comando na estrutura da Federação, dominada

até então pela categoria de pequenos proprietários. Aqui começa a se dar a

transformação de uma luta de resistência para uma luta de enfrentamento –

marcada pela ampliação das ações de ocupação e da construção dos

assentamentos rurais conquistados, apesar de, na prática, esses avanços

terem sido resultados muito mais do processo de atuação efetiva de alguns

STRs na luta pela terra.

Nesse sentido, são os sindicalistas que, a partir dos STRs, passam a organizar os trabalhadores para ocupação de terras produtivas e para

5 Nesse momento, inclusive, iniciam-se as discussões sobre a possível filiação da FETAEMG à CUT, o que significaria “a consolidação de uma perspectiva centrada na inter-relação do movimento sindical e a política partidária mais à esquerda (...), em detrimento de uma perspectiva em que o Estado permanecia como potencial aliado, onde os trabalhadores poderiam buscar benefícios a partir de ações mais concertadas e menos conflituosas” (Ferreira Neto, 1999, p.323). Os setores contrários às propostas cutistas, e ainda com respaldo considerável no seio da federação, no entanto, vêm conseguindo barrar, até hoje, a filiação.

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resistência em suas áreas de posse. (...) a definição das áreas a serem ocupada, bem como a seleção dos trabalhadores para participar desse processo, continuou nas mãos dos sindicatos que, finalmente, passaram a contar com apoio logístico e operacional da Federação (FERREIRA NETO, 1999, p.315).

Disso decorre que, mesmo registrando certos avanços em sua política

de atuação, as maiores transformações ocorridas no âmbito do MSTR, no

sentido de uma priorização da luta pela reforma agrária, resultam da atuação

específica de determinados sindicatos locais. Alguns destes permanecem com

uma postura extremamente legalista e distante da luta pela terra. É o caso do

Sindicato de Patrocínio, situado na região do Alto Paranaíba. Este sindicato foi

um dos primeiros criados no Estado e constitui hoje um dos maiores, com

cerca de 4.200 associados. Conforme entrevista realizada com um de seus

diretores, o sindicato não se envolve muito com a luta pela terra. Se solicitado,

oferece apoio logístico, como telefonemas e ofícios necessários, além de fazer

a mediação com a FETAEMG que, por sua vez, faz a mediação junto aos

órgãos governamentais encarregados. Entretanto: “o sindicato não apóia

nenhuma ocupação, posto que esta descaracteriza o movimento. Apóia, no

máximo, acampamentos em beira da estrada. É a mesma linha política da

FETAEMG que a gente segue aqui. É uma postura legalista, nos limites da lei

mesmo” (diretor do sindicato: entrevista realizada em dezembro de 2003).

Entre as maiores conquistas do sindicato, de acordo com a sua diretoria, está o

Núcleo Intersindical de Conciliação Trabalhista, criado conjuntamente pelo

Sindicato dos Trabalhadores Rurais e pelo Sindicato Patronal: “o núcleo é

favorável tanto pros trabalhadores permanentes quanto temporários. Quase

todas as ações são resolvidas aqui. O próprio poder judiciário não aceita as

ações que não passaram inicialmente pelo núcleo, manda pra cá, apesar dele

ser autônomo, sem nenhuma interferência do poder judiciário ou de qualquer

outro órgão. As negociações são sempre boas, pros dois lados” (ibidem).

Apesar da agilidade no processo, consideramos que o núcleo favorece mais os

empregadores, que vêem reduzidos os seus custos e as possibilidades de

conflito, do que os trabalhadores rurais, que sofrem um retrocesso político à

medida que negociam direitos já garantidos.

O próprio discurso da federação, conforme depoimento abaixo, se

mostra bem mais cauteloso que as posturas assumidas pelos sindicatos mais

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combativos, além de retirar da entidade o papel de organizar e mobilizar os

trabalhadores rurais em suas bases:

Olha, a Federação tem um princípio o seguinte: nós atendemos a vontade dos

trabalhadores, a partir da hora que os trabalhadores se mobilizem. Jamais a

FETAEMG orientou ou orienta alguém a ocupar uma terra. Nós orientamos, sim, ao

trabalhador, que há uma necessidade dele se organizar, em grupo é claro. E a partir

da hora que ele se organize, os sindicatos de trabalhadores rurais juntamente com a

federação, nós temos o papel que é de dar suporte, dar apoio, e desde que o

trabalhador se decide, se decidem a ocupar uma área, nós estamos junto, estamos

abraçando aquela causa. Mas sempre partindo pela vontade deles. Os trabalhadores é

que têm o princípio, né, de tá se organizando pra se ocupar. E a federação na

condição de federação, sindicato na condição de sindicato, é... nada mais nada menos

do que um grupo de apoio (diretor da FETAEMG, entrevista concedida em junho de

2003).

Ferreira Neto acrescenta ainda que, nesse processo de consolidação do

MSTR mineiro, marcado mais pela atuação dos STRs locais, não há uma

organicidade que o apresente como um bloco coeso, o que reflete uma

regionalização das prioridades e uma falta de unidade existente na direção do

movimento e da sua base. No que tange à reforma agrária, para o autor, essa

falta de unidade explicitará o caráter ambíguo da formação do MSTR mineiro:

por um lado, ela representa a fragmentação das intervenções do movimento,

uma distribuição heterogênea dos assentamentos rurais pelo estado, bem

como uma baixa influência nestas áreas. Por outro lado, talvez tenha sido essa

mesma falta de unidade que possibilitou a consolidação da luta pela terra via

sindicatos em algumas regiões do estado: “se houvesse uma unidade sólida

em torno de certas propostas, com certeza, em razão do perfil de atuação e da

composição das diretorias da federação, a reforma agrária não faria parte

dessa unidade” (FERREIRA NETO, 1999, p.373).

De qualquer forma, a intensificação das ações do MSTR, na luta pela

reforma agrária, estará representada na predominância do movimento sindical,

na mediação da luta pela terra e na implementação dos assentamentos rurais

em Minas Gerais.

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Na região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, o MSTR vai ser

responsável pela constituição de 69% dos assentamentos rurais. No entanto, o

surgimento de novos movimentos sociais rurais, no decorrer dos anos 1990, vai

pôr em xeque essa predominância, ao mesmo tempo em que introduzirá novas

linhas de atuação e dinamizará ainda mais a luta pela terra.

A formação do MTL – Movimento Terra, Trabalho e Liberdade

Em meados dos anos 1990, no interior do processo de intensificação da

luta pela terra na região, lideranças de Campo Florido, de Santa Vitória e da

APR articularam a criação do primeiro movimento social rural, estruturado

como tal, da região. Fundado em 1995 e, provisoriamente, nomeado de MDST

– Movimento Democrático dos Sem-Terra, o movimento apresentava os

seguintes postulados:

A organização se reivindica de massas, autônoma, independente, democrática e socialista. Propõe a articulação de um novo movimento nacional de luta pela reforma agrária no país, de caráter político, intimamente articulado com os setores urbanos. Com um programa “antilatifundiário, antiimperialista e antimonopolista”, invoca a transformação social do país (FONSECA, 2001, p.113).

Posteriormente, também em caráter provisório, a organização passa a

se chamar MLT – Movimento de Luta pela Terra e promove várias ocupações

em toda a região, entre elas a primeira do município de Uberlândia, em abril de

1997, na Fazenda Rio das Pedras, ação que amplia a sua visibilidade na

região.

Em agosto de 1997, o MLT funde-se com movimentos de outros estados

e “participa com a maior delegação (40%) do lançamento do MLST –

Movimento de Libertação dos Sem-Terra, num encontro nacional em Brasília,

onde participaram em torno de 700 delegados” (FONSECA, 2001, p.114).

O MLST torna-se o movimento que vai realizar o maior número de

ocupações, especialmente no Triângulo Mineiro, desde o período de sua

criação até novembro de 2000, quando o MLST regional rompe com a direção

nacional e passa a se denominar MLST de Luta. Apenas um grupo reduzido da

região permanecerá, ainda hoje, vinculado ao MLST nacional.

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O maior conflito empreendido pelo MLST de Luta terá como cenário a

Fazenda Tangará, propriedade da CIF – Companhia de Integração Florestal,

em Uberlândia, ao qual faremos referência no terceiro capítulo. A área foi

ocupada, pela primeira vez, em agosto de 1999, por 450 famílias, quando o

movimento ainda estava vinculado ao MLST nacional. Dá-se início a uma

duradoura batalha judicial, permeada por ações de intimidação da polícia militar

e dos fazendeiros, e de ações de resistência dos sem-terra, até que, em

novembro de 2001, o proprietário se dispõe a negociar com o INCRA a

desapropriação do imóvel.

De acordo com Fonseca:

Importante mencionar que a ocupação da Tangará é uma inovação do movimento, no que diz respeito ao padrão de propriedades ocupadas, pois até então predominou a ocupação de áreas de pecuária, de pessoas físicas. Trata-se de uma fazenda de propriedade de uma empresa de exploração de eucalipto (CIF – Companhia de Integração Florestal), que desde a década de 70 e por mais de 20 anos, se beneficiou de incentivo fiscal e vultosos recursos públicos do extinto FISET (Fundo de Investimentos setoriais). Essa disputa assumiu uma extraordinária dimensão envolvendo o governo federal, estadual e municipal, entidades de classe, Igreja, empresários, movimentos sociais, partidos políticos, Polícia Militar, Ministérios Públicos e Poder Judiciário (FONSECA, 2001, p.121).

A fazenda foi desapropriada e as famílias aguardam, ainda acampadas,

a demarcação dos lotes.

Em 2002, o MLST de Luta funde-se novamente com outros dois

movimentos (o MLS – Movimento de Luta Socialista e o MT – Movimento dos

Trabalhadores) e passa a constituir o MTL – Movimento Terra, Trabalho e

Liberdade – presença constante no cenário da luta pela terra na região que,

atualmente, dentre os movimentos sociais rurais, é o que tem o maior número

de acampamentos, especialmente no Triângulo Mineiro.

A Regional Triângulo do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais

Sem-Terra

O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) nasceu, em

Minas Gerais, nos vales do Mucuri e do Jequitinhonha, em 1984, participando

de reuniões promovidas pela CPT, já tendo enviado dois delegados para o 1o

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Congresso em 1985. Neste mesmo ano, o MST realizou um Encontro Estadual,

em Belo Horizonte, com representantes das regiões do Vale do Mucuri, Norte

de Minas, Jequitinhonha e Zona da Mata, em que surgiu uma série de

divergências a respeito das formas de luta. Predominava a concepção de que

deveriam apoiar as lutas dos posseiros e dos assalariados, não tendo sido

contemplada, nas deliberações, a ocupação de terra, o que dificultava o

processo de construção do MST (FERNANDES, 2000).

Esse impacto inicial simboliza o difícil processo de consolidação do MST

em Minas Gerais, o que pode ser observado pelos dados de assentamentos do

estado, que mostram que é aqui que o movimento tem a menor porcentagem

de áreas por ele coordenadas. Em algumas regiões, a territorialização do

movimento está hoje bem avançada. No Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, no

entanto, a formação do movimento encontra uma série de barreiras para a sua

consolidação – desde a ofensiva das tradicionais e conhecidas classes

ruralistas e conservadoras, que por vezes encontram eco em vários setores da

população, até conflitos e contradições internos ao próprio movimento geral de

organização dos trabalhadores rurais da região, que freqüentemente geram

tensões relacionadas a práticas, ideologias ou metodologias diferenciadas

assumidas pelos diversos atores em questão.

O MST iniciou seus trabalhos no Triângulo Mineiro, no final de 1989, por

ocasião do movimento dos trabalhadores rurais sem-terra de Iturama, que

culminou na conquista da Nova Santo Inácio Ranchinho. O MST atuou na fase

de acampamento, assessorando e contribuindo para o desenvolvimento de

práticas de organização e mobilização, até meados de 1991, quando a

articulação foi rompida. Mas é somente em 1997 que é criada a regional do

MST do Triângulo Mineiro. Neste ano, o movimento, que representa a maior

articulação nacional em torno da luta pela reforma agrária no país, promoveu a

histórica marcha a Brasília, em cuja trajetória estava marcada a passagem por

algumas cidades da região, nas quais promoveu debates, reuniões e atos

públicos, ampliando as discussões sobre reforma agrária e articulando

importantes apoios (em especial do PT, da APR e de alguns sindicatos locais)6.

Pouco tempo depois, retorna para o Triângulo Mineiro, fixando sua secretaria

6 Neste período já se estabelece a vinculação do MST com o grupo de sem-terra que hoje está assentado no P.A. Paulo Freire, ao qual faremos referência no último capítulo deste trabalho.

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em Uberlândia e deslocando para cá militantes de outras regiões, que

contribuem no seu processo de formação e dinamizam ainda mais a luta pela

terra na região.

Além das ocupações de terra, o movimento promove a espacialização

de outras práticas que envolvem a luta pela terra, mas que refletem o caráter

mais amplo de suas premissas. Entre estas ações, podemos citar a ocupação,

durante o primeiro semestre de 2002, da área onde será construído o

Complexo Hidrelétrico Capim Branco, um vultoso investimento de caráter

majoritariamente privado que, além dos danos ambientais, tem como objetivo a

geração de energia para um grupo reduzido de empresas associadas. O

Complexo, após um considerável embate judicial, teve garantida a reintegração

de posse da área. Apesar de não terem obtido maiores ganhos objetivos para

as famílias, a ocupação serviu como importante forma de ampliar o nível de

informação e discussão em diversos setores da sociedade acerca da

construção da usina.

A cidade de Uberlândia abriga, também, atualmente, um dos cursos de

formação política da Via Campesina, com duração de dois anos, em parceria

com a Universidade Federal de Uberlândia, direcionado para os movimentos da

região sudeste que estão articulados em torno da organização. Coordenado

principalmente pela Regional Triângulo do MST, reflete os postulados relativos

à importância da educação e da formação dos militantes como parte

fundamental de um processo de transformação social, defendidos pelo

movimento.

Outros movimentos de trabalhadores rurais atuantes na região

Além desses movimentos sociais rurais, outros intensificam a luta pela

terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, a partir de meados da década de

1990. São os chamados, conforme Fernandes, movimentos isolados,

articulados em torno de ações específicas e espaços mais delimitados, ou seja,

que constituem, cada qual, “uma organização social que se realiza em uma

base territorial determinada. Que tem o seu território de atuação definido por

circunstâncias inerentes aos movimentos” (FERNANDES, 2001, p.64).

Atualmente, verifica-se, na região, a atuação do CLST – Caminho de

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Libertação dos Sem-Terra, fundado em 2002, que coordena uma ocupação em

Uberlândia, na COALBRA; do MPRA – Movimento pela Reforma Agrária,

fundado em 2003, que atua na cidade de Ituiutaba; do MTR – Movimento dos

Trabalhadores Rurais, fundado em 2003, como o “braço rural” do MSTD –

Movimento dos Sem-Teto Desempregado, que atua na cidade de Uberlândia;

da UNLC – União Nacional de Luta Camponesa, fundado em 2004, a partir de

um “racha” com o MLT no acampamento Chuvas do Amanhecer. Além desses

movimentos isolados, organizações um pouco mais consolidadas, mas que não

tinham ainda inserção na região, iniciam seus trabalhos aqui, ainda que de

forma também localizada. É o caso do MLT – Movimento de Luta pela Terra, da

Bahia, que tem atuado junto ao STR de Araguari e da LOC – Liga Operária e

Camponesa, que tem forte atuação no norte de Minas e que tem empreendido

algumas ações no Alto Paranaíba. Verifica-se, ainda, a atuação de um grupo

que permaneceu vinculado ao MLST nacional, já citado anteriormente, após a

dissidência que, em 2002, transformou a maior parte do MLST regional em

MLST de Luta. O MLST coordena uma ocupação no espaço da FERURBE

(Fundação Educacional Rural de Uberlândia), que tem a maior parte de sua

área inutilizada. A próxima tabela apresenta, de forma sistematizada, os

movimentos sociais aqui apresentados e que atuam no Triângulo Mineiro e Alto

Paranaíba.

Tabela 2.4: Movimentos e Organizações de Luta pela Terra – Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba (2003)

REGIÃO MOVIMENTOS/ORGANIZAÇÕES DE LUTA PELA TERRA

Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba (Minas Gerais)

MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra MTL – Movimento Terra Trabalho e Liberdade LOC – Liga Operária e Camponesa MLST – Movimento de Libertação dos Sem-Terra MLT – Movimento de Luta pela Terra CLST – Caminho de Libertação dos Sem-Terra MPRA – Movimento pela Reforma Agrária UNLC – União Nacional da Luta Camponesa MTR – Movimento dos Trabalhadores Rurais FETAEMG – Federação dos Trabalhadores Rurais do Estado de Minas Gerais MSTR – Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais APR – Animação Pastoral e Social no Meio Rural

Elaboração: GOMES, R. M. Março de 2004.

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O estudo desses movimentos sociais nos leva a encará-los, conforme o

prisma marxista, como ligados “a processos de lutas sociais voltadas para a

transformação das condições existentes na realidade social, de carências

econômicas e/ou opressão sociopolítica e cultural” (GOHN, 2000, p.171).

“Trata-se do processo de luta histórica das classes e camadas sociais em

situação de subordinação” (ibidem). Conforme Scherer-Warren, “a

manifestação de interesses comuns e a realização dos que vivem sob as

mesmas condições de exploração criam a possibilidade de uma consciência de

classe”, que possibilitam a geração de um movimento social e uma

organização de classe (SCHERER-WARREN, 1987, p.34). Está claro, no

entanto, que este processo de formação e desenvolvimento dos movimentos

sociais – fruto das contradições inerentes ao sistema capitalista – também

carrega em si uma série de contradições.

Em A Ideologia Alemã, Marx ressalta que a própria “divisão do trabalho

implica ainda a contradição entre o interesse do indivíduo singular ou da família

singular e o interesse coletivo de todos os indivíduos que se relacionam entre

si” (MARX, 1975, p.34).

As contradições especificas da luta pela terra podem ser vislumbradas

também através da tão discutida fragmentação e heterogeneidade dos

movimentos sociais rurais, advindas, inclusive, da própria diversidade de

situações de que emergem. Da mesma forma, a crescente formação de vários

movimentos sociais rurais, ao mesmo tempo que retrata o avanço da luta pela

terra, nos remete à possibilidade do seu enfraquecimento, à medida que traz

limitações no seio do movimento geral pela reforma agrária.

No Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, a existência de tamanha

multiplicidade de movimentos, além de refletir certa heterogeneidade,

característica das situações rurais, está ligada, por vezes, a conflitos internos e

outros existentes entre os movimentos sociais (como em “rachas” ou disputas),

que se vinculam a questões de ordem política, metodológica, ou até mesmo

pessoal. Tais conflitos, freqüentemente, atravancam processos de luta que, em

sendo unificados, tenderiam a acumular muito mais força, ampliando o poder

de pressão e expressão dos trabalhadores rurais sem-terra.

O que não significa, no entanto, que, por vezes, os movimentos sociais

ligados ao campo, na região, não se articulem em determinadas frentes de luta.

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Frentes essas que, em certos momentos, inclusive, envolvem questões para

além e, ao mesmo tempo, integrantes da luta pela reforma agrária, como o

direcionamento da política econômica e agrícola mais ampla. É o caso da luta

contra os transgênicos. O Triângulo Mineiro abriga uma das principais

multinacionais vinculadas à pesquisa e à comercialização das sementes

geneticamente modificadas – a Monsanto Corporation. Por compreenderem,

não só a possibilidade de riscos à saúde humana e ao meio ambiente, mas,

também, a ameaça real de controle econômico da produção alimentar que

representa a atuação das multinacionais nessa área, na possibilidade de

bloqueio à pequena produção e à soberania alimentar dos países, os

movimentos sociais da região7, em conjunto, estão há cerca de um ano

acampados na frente do complexo da Monsanto, na BR-497, em Uberlândia,

onde promovem debates e atos sobre a questão, na “Vigília por um Brasil Livre

de Transgênicos”.

De qualquer forma, o fato é que essa multiplicidade de atores envolvidos

na problemática rural constitui um indicativo da intensificação dos conflitos

agrários no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba.

É importante ressaltar, no entanto, que todo esse processo de avanço

da luta pela terra, na região, foi marcado por uma violenta ofensiva da classe

ruralista, traduzida nas mais diversas formas de pressão e expressa nos relatos

de violência no campo. É o que se pretende discutir no próximo item.

A Organização dos Ruralistas e a Violência no Campo: a criminalização

da luta pela terra e a formação das milícias armadas na região

As linhas de desenvolvimento regional do Triângulo Mineiro e Alto

Paranaíba articulam-se à existência de uma burguesia agrária aí presente,

constituída a partir de interesses locais, estatais, e até mesmo estrangeiros,

que associa, constantemente, interesses e investimentos no mundo agrário a

objetivos urbano-industriais. Bem organizada, tem em suas ações políticas

estratégias claramente conservadoras e anti-reformistas, que fazem ecoar a

7 Movimentos vinculados à Vigília por um Brasil Livre de Transgênicos: APR, CLST, MLT, MLST, MST, MTL, STIAU, SINDUTE, SIND-Comerciários.

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defesa inconteste da propriedade privada da terra. O seu poder de pressão e

articulação foi expresso, de forma contundente, no movimento coordenado pela

UDR – União Democrática Ruralista que, entre outras ações, teve papel

decisivo na contenção da reforma agrária no processo constituinte de 1988.

(MICHELOTO, 1990, p.64).

Apesar da UDR ter sido oficialmente extinta no estado de Minas Gerais

desde 1994, os “ruralistas” permanecem organizados – o que se apresenta

tanto na força da bancada ruralista em âmbito estadual e federal, quanto em

ações articuladas de forma local, visando à garantia de seus interesses, como

a defesa de suas propriedades fundiárias. Uma matéria publicada no jornal

Hoje em Dia, de Belo Horizonte, intitulada “Fazendeiros prometem receber

MST a bala – proprietários rurais e membros da extinta UDR articulam reação

às invasões de terra”, trazia a seguinte declaração de Peter Medem (ex-

presidente

da extinta UDR em Minas): "fazendeiros, em diversas regiões, estão dispostos

a receber a tiros os sem-terra que tentarem invadir suas propriedades. Em

diversas regiões do Estado, vai chover bala”8. Além disso, mencionou a

intenção de se reabrir oficialmente a UDR em Minas.

As pressões que sofrem os trabalhadores rurais envolvidos na luta pela

terra, na região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, fazem com esta seja

considerada uma das regiões mais violentas do país em se tratando de

conflitos fundiários. O depoimento a seguir, do diretor regional da FETAEMG,

expressa essa situação:

Olha, o Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba forma lugares sempre de muita

concentração de terra, e de muito poder, quer dizer, você vai para alguns lugares,

leste de Minas, vai no Oeste, outras regiões aí pra cima, é... onde há muito pequeno

produtor, minifúndio..., e aqui no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba a concentração de

terra foi muito grande ao longo dos anos, quer dizer, e com isso, o latifúndio cresceu,

dominou, e chegou ao ponto de realmente achar que são os donos de tudo e poder

dominar. Inclusive, eles conseguiram fazer na região alguns deputados ruralistas e

que se acham que são donos da verdade, e querem fazer a lei de acordo com sua

vontade, infelizmente. Olha, por parte do latifúndio, dos fazendeiros, os meios que eles

8 HOJE EM DIA, 1o-02-1998, p.2

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têm tentado de todas as maneiras é isso, é as milícias armadas, é a pressão, a ponto

de dar tiro nos barracos, de desmanchar acampamento na base da pancada... É o

desrespeito inclusive com as mulheres, eles faz todo tipo de abuso, inclusive abuso

físico, igual fez em Santa Vitória com algumas mulheres, e mesmo em Campina

Verde. Infelizmente isso amedronta e faz com que desmobiliza muito a luta... (diretor

da FETAEMG, entrevista concedida em agosto de 2003).

Fazendeiros, jagunços, Polícia Militar, Poder judiciário, imprensa. Várias

são as faces da ofensiva contra as lutas dos sem-terra. Concessão de

liminares de reintegração de posse são comumente emitidas em menos de 24

horas. Ordem Judicial não parece ser pré-requisito para determinadas ações

policiais. A repressão direta assume a forma de despejos violentos e abusivos,

constantemente relatados.

A criminalização das lideranças e dos movimentos assume importante

papel na intimidação empreendida pelas elites locais e por representantes do

Poder Judiciário. No caso da ocupação da Fazenda Tangará, por exemplo,

ainda hoje, 11 de suas lideranças respondem a processos por formação de

quadrilha, esbulho possessório, extorsão e dano a patrimônio público.

A característica mais marcante talvez seja a formação de milícias

armadas, fato tão notório na região estudada que, por diversas vezes, já foi

denunciado em reportagens de jornais impressos, inclusive vinculados

historicamente às elites dominantes locais. O Estado de Minas, por exemplo,

em edição de junho de 2003, publicou uma matéria de primeira página

intitulada “Vida de Sem-Terra vale R$ 500,00 – por causa da radicalização do

MST, seguranças particulares ganham mercado no Triângulo Mineiro”. Dizia a

reportagem:

Por R$ 50,00 ao dia, fazendeiros do Pontal do Triângulo estão contratando seguranças para expulsar os sem-terra de áreas ocupadas. Cada trabalhador morto custa R$ 500,00. Até agora nenhuma morte foi registrada, porque os fazendeiros temem criar mártires. No melhor restaurante de Ituiutaba é possível comprar capuz preto em que somente os olhos de quem o usa ficam visíveis (ESTADO DE MINAS, 29/06/2003, capa).

Depoimentos de fazendeiros, como este, confirmavam a notícia: “tem de

ser um serviço bem-feito, para bater bastante nesses vagabundos, mas

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tomando cuidado para não morrer ninguém. A hora em que surgir um mártir vai

ser ruim para todo mundo” (ESTADO DE MINAS, 29/06/2003, p.8).

A reportagem do jornal denunciava publicamente a facilidade de se

formar uma milícia armada – o que é considerado, no mínimo, crime de

formação de quadrilha –, de jagunços contratados por fazendeiros para

expulsarem os sem-terra de fazendas ocupadas na região do Pontal do

Triângulo.

A matéria foi publicada por ocasião de um conflito ocorrido dias antes na

Fazenda Bebedouro, de 280 alqueires, em Santa Vitória, ocupada por um

grupo de sem-terra ligado ao MST, e cujo proprietário, um médico, comandou

pessoalmente uma ação de despejo, realizada por cerca de 50 jagunços

contratados. A retirada dos sem-terra aconteceu na madrugada seguinte à

ocupação, no momento da troca de guarda, numa violenta operação que retirou

as 61 pessoas presentes. Além da ausência da Polícia Militar no momento do

despejo, esta efetivou, anteriormente à ação da milícia, uma varredura,

autorizada pelos trabalhadores, que constatou a ausência de armas no local –

fatos que mostram a conivência da Polícia Militar com o poder econômico local.

A seguir, trechos do relato do advogado das famílias despejadas,

intitulado “Violência e Ação Paramilitar no Pontal do Triângulo Mineiro”: A execrável ação de pistolagem se revestiu de extrema violência e crueldade, incompatível com a moderna inserção do Brasil no contexto mundial, com rasgados elogios ao sistema democrático brasileiro. Houve a explícita e inaceitável quebra do estado democrático de direito, haja vista, não bastasse a incomensurável violência, o efetivo despejo das famílias, ou como se queira, a reintegração de posse, se deu à margem e ao arrepio da lei e em total confronto constitucional republicano, pasmem, sem mandado judicial. O despejo (...) se deu sob a batuta da quadrilha de paramilitares, que substituindo o aparelho estatal e fazendo inveja aos áureos tempos do regime militar, subjugou, espancou, manteve sob cárcere privado, agrediu física e moralmente, de forma indistinta, adultos, idosos, mulheres e crianças. Para tanto, foram usados requintes de crueldade, como ameaças de afogamento, coronhadas, pauladas e acreditem, deflagrações de mais de mil tiros para o alto e nas proximidades das cabeças dos sem-terra, cusparadas na comida dos trabalhadores e bolinações genitais nas mulheres. Os pertences dos trabalhadores, como colchões, barracos, utensílios domésticos, bicicletas, máquinas fotográficas telefones celulares, foram rasgados, baleados, queimados e esmagados sob o peso de um trator da fazenda. (...) Após a desocupação da área e sob a mira dos pesados armamentos, e de novas saraivadas de tiros, foram conduzidos, em dois

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caminhões, por dezenas de quilômetros até o estado vizinho, de Goiás, onde, na cidade de São Simão, procuraram a proteção policial e registraram um B.O, relatando os fatos ocorridos (Esdras Juvenal de Queiroz, 25-02-2003, p.2 e 3).

Os sem-terra retornaram para Santa Vitória e passaram a acampar na

frente da prefeitura, exigindo a punição dos responsáveis. Nove pessoas, que

sofreram as maiores lesões corporais, realizaram exames de corpo delito que

comprovaram a gravidade das agressões. Permaneceram, por cerca de 40 dias

até que transferiram o acampamento para uma área cedida pela prefeitura,

onde estão até hoje, à espera da negociação do assentamento de 115 famílias.

O conflito, no entanto, foi o terceiro registrado apenas no primeiro

semestre de 2003, na região do Pontal do Triângulo, envolvendo ações de

despejo mediante atuação de milícias armadas, uso da força e ausência de

mandado judicial. Os outros conflitos ocorreram nas Fazendas Capoeira,

(também localizada em Santa Vitória) e Inhumas (em Campina Verde).

As estratégias adotadas foram similares em todos os casos peculiares à

região:

Devidamente encapuzados, os jagunços exercem pressão física e psicológica para expulsar os sem-terra das fazendas invadidas, sob o comando de fazendeiros. Segundo um deles, “os pistoleiros são contratados pra bater, desocupar e fazer uma guerra particular”. A ação é coordenada. Antes de entrar na propriedade, geralmente durante a madrugada, o grupo provoca um barulho ensurdecedor. Os sem-terra são acordados com centenas de tiros para o alto, fogos de artifício e sirenes. A rendição é imediata. Apavoradas, as famílias são jogadas no caminhão-gaiola e levadas para longe, com a ajuda de facilidades de acesso ao Pontal, que está a meia hora do estado de Goiás e a duas horas do Mato Grosso (ESTADO DE MINAS, 29/06/2003, p.9).

O Ministério Público, após as denúncias dos 3 episódios, anunciou a

intenção de pôr um fim na ação das milícias armadas no campo, seguindo a

linha dos pronunciamentos de representantes do INCRA e do MDA. Estão

sendo processados onze fazendeiros (entre eles, José Júlio Cordeiro, Giovani

Tannus e Ricardo Tannus) e vinte jagunços da região, fato raro na história

brasileira.

A APR divulgou um dossiê, em 1999, intitulado Violência no Campo, que

foi entregue à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados,

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então presidida pelo Deputado Nilmário Miranda, com o intuito de solicitar

“providências em relação à escalada da violência no campo, na região do

Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, particularmente a questão da formação de

milícias armadas, por parte de grupos de latifundiários dessa região” (APR,

1999, p.1). O dossiê traz denúncias de ameaças a lideranças sindicais rurais,

de práticas agressivas empreendidas contra os acampados da região, de casos

de agressão e de despejos arbitrários empreendidos por fazendeiros, jagunços

e autoridades locais, bem como de omissões do Poder Judiciário e da Polícia

Militar em conflitos agrários, comprovadas por documentos anexados. Relata

ainda a organização dos latifundiários, bem como os esquemas por eles

utilizados para transformar laudos de improdutividade das fazendas em

atestados de produtividade.

De acordo com o dossiê, entre as ações estratégicas dos fazendeiros

contra a reforma agrária, está a criação da UDPR – União de Defesa da

Propriedade Rural, em abril de 1997, sediada em Ituiutaba.

Rege o estatuto da UDPR, em seu capítulo II – Das Finalidades:

Art.2o – Pleitear e adotar medidas cabíveis aos interesses dos associados, constituindo-se em defensor e cooperador ativo e vigilante de tudo quanto possa concorrer para defender o direito de propriedade, a proteger, orientar, resguardar, defender e colaborar em todos os sentidos sem fins lucrativos aos associados, notadamente:

A) Conclamar os Produtores Rurais da região da propriedade invadida a se unirem em torno da agremiação, de modo a conferir-lhe qualidade e quantidade representativa.

B) Comparecer no local denominado da propriedade invadida com os demais sócios, no dia e hora marcado, previamente pela diretoria.

C) Prestar outros serviços aos sócios sob a forma de ação comunitária, coordenando todos os programas relativos a invasões, tais como: alimentação, jurídico, transporte, contratação de seguranças, retirada dos invasores e solidariedade em um todo (Estatuto da UDPR, 1997, p.1, grifos nossos).

Dentre as primeiras ações da UDPR está a compra de uma “viatura que,

com pessoas armadas, faz rondas noturnas pelas fazendas dos associados”

(APR, 1999, p.2).

A UDPR é responsabilizada por vários despejos que foram realizados de

forma arbitrária, especialmente na região do Pontal do Triângulo – que é a

região de maior tensão agrária do estado –, como os três já citados

anteriormente, ocorridos em 2003.

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Foi na região do Pontal do Triângulo Mineiro que Marcelo Rezende, ex-

presidente do INCRA e, à época, agente de pastoral, e Frei Rodrigo Amedée,

presidente da APR e atual coordenador da Comissão de Justiça e Paz no

Mundo, da Ordem Franciscana, foram agredidos por oito ruralistas, numa

tentativa de execução (O TEMPO, 24-09-1998, p.9), entre eles Renato

Filgueiras, presidente da UDPR, e Diocélio Franco, proprietário da Fazenda

Baixadão (Representação contra os Atos da UDPR, 1998, p.1).

O episódio ocorreu após o despejo de 80 famílias de sem-terra que

haviam ocupado a Fazenda Baixadão, em Santa Vitória, em setembro de 1998,

realizado por cerca de 100 fazendeiros ligados à UDPR, fortemente armados e

desacompanhados de oficial de justiça ou portando mandado judicial. Um dos

fazendeiros responsáveis pela agressão aos agentes de pastoral, que tiveram

seus carros interceptados em estradas que davam acesso à fazenda, justifica o

ocorrido em matéria publicada no jornal Estado de Minas, já em 2003, dizendo

que “eles eram agitadores e traziam o povo para invadir as fazendas em Santa

Vitória. Acabaram tomando um corretivo” (ESTADO DE MINAS, 29/06/2003,

p.8).

Da mesma forma, quanto ao despejo da Fazenda Baixadão, outro

fazendeiro envolvido, o diretor da UDPR, Sebastião Gonçalves Dutra, declarou,

em reportagem divulgada no jornal O Tempo, dias depois do ocorrido, a

intenção da UDPR de reagir com armas pesadas às invasões no Triângulo

Mineiro: “estamos avisando há muito tempo, os sem terra que ocuparem áreas

em fazendas nessa região serão retirados à força” (O TEMPO, 24-09-1998,

p.9).

O dossiê Violência no Campo apresenta ainda a criação de outro

movimento de fazendeiros da região do Pontal do Triângulo, em março de 1998

– o Movimento Contra Invasões de Terra, bem como a intensificação das ações

da regional do Movimento Nacional dos Produtores, a partir deste mesmo ano,

visando ao seu fortalecimento no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Ambas as

organizações também passaram a organizar milícias armadas para fazerem

patrulhas nas fazendas, cercos a acampamentos e atos de intimidação aos

sem-terra.

A formação das milícias armadas, na região estudada, por parte desses

movimentos organizados de fazendeiros, questiona, inclusive, a atuação das

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forças de segurança oficiais. Em documento intitulado “Um Clamor Por

Justiça”, encaminhado em 1999 ao então governador de Minas Gerais Itamar

Franco, o Bispo Diocesano de Uberlândia, Dom José Alberto Moura, relata:

Senhor Governador, não somente eu, mas todos os outros homens e mulheres de bem da região do Triângulo Mineiro, estarrecidos, tomamos conhecimento da criação do chamado Movimento Contra Invasões de Terra, em Ituiutaba (MG), no dia 10 de março de 1998, conforme atesta o documento de número dezenove em anexo. Esta organização que, sob o manto de uma associação de produtores rurais, tem como objetivo maior, ao que parece, a criação de milícias armadas com o fito de intimidar e praticar atos de violência contra trabalhadores rurais sem-terra e seus apoiadores quando estes se propõem a cumprir dispositivo constitucional pátrio, qual seja o de dar destinação social a latifúndios improdutivos. (...) De outra forma, com o meu coração de pastor invadido por imensa comoção, sinto-me no dever de expressar a V. Ex.a. que, as ações ilegais retro mencionadas proliferaram, em muito, por conta de uma evidente conivência das forças de segurança do estado, mormente da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais. Em decorrência dessa estarrecedora situação, onde a gloriosa instituição vem tendo sua imagem maculada, o poder das milícias armadas de fazendeiros foi extremamente fortalecido, inclusive com o surgimento da UDPR (União de Defesa das Propriedades Rurais) e do MNP (Movimento Nacional dos Produtores) (MOURA, 1999, p.1 e 2).

Nessa perspectiva, o documento denuncia uma série de arbitrariedades

cometidas pela Polícia Militar do Estado de Minas Gerais em conflitos

fundiários na região, envolvendo insultos e ações depreciativas, de intimidação

e humilhação de sem-terra acampados; agressões físicas a sem-terra, a

lideranças e a apoiadores religiosos, sindicais e jurídicos; prisões e detenções

arbitrárias e abusivas; conivência com ações de movimentos ruralistas e de

milícias armadas; e despejos arbitrários de famílias acampadas, por vezes sem

documento judicial e até em conjunto com as milícias (MOURA, 1999).

O documento tinha como objetivo solicitar a apuração dos casos

ocorridos e nele denunciados, envolvendo membros da PMMG (Polícia Militar

de Minas Gerais), ao qual respondeu o então Governador Itamar Franco, em

ofício n.98.769/99 de 09/09/1999, a partir de levantamentos feitos junto à

PMMG. De acordo com o ofício, em alguns dos casos foram instaurados

procedimentos administrativos. Em todos aqueles já concluídos as acusações

formuladas contra os militares não foram comprovadas in totum (ou nem

parcialmente), provando-se, no máximo, “transgressão disciplinar” de alguns

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membros (o que infere apenas que os mesmos são apenados

disciplinarmente). Em alguns casos, justifica-se e até enaltece-se a ação da

PMMG. Em outros, o procedimento administrativo ainda estaria em curso. Ao

término do ofício, o governador ainda complementa: “Outrossim, é imperioso

lembrar a existência da inarredável necessidade de se respeitar os bens

juridicamente tutelados, bem como as instituições encarregadas de fazer

cumprir a lei e que adotam posturas ético-legais” (Ofício 98.769/99, 1999, p.5).

Esses fatos demonstram, de maneira sucinta, a força e o caráter

conservador e anti-reformista das elites rurais locais que, associadas muitas

vezes a uma notória parcialidade do poder público – via poder judiciário e

militar e da imprensa, empreendem uma onda de violência no campo, numa

tentativa clara de intimidação e contenção dos movimentos de luta pela terra.

O Papel da Igreja no Processo de Luta pela Terra no Triângulo Mineiro e

Alto Paranaíba

Há que se pontuar, neste trabalho, que alguns setores da Igreja Católica

estão nas raízes dos movimentos populares rurais e são agentes fundamentais

na compreensão da história da luta pela terra na região.

Desde os anos 1950 e 60, membros da Igreja voltam-se para os

“pobres” do campo, mas aqui com uma orientação mais moderada e reformista.

Como vimos anteriormente, setores mais conservadores da Igreja, em especial

os Círculos Operários Cristãos, influenciaram fortemente a sindicalização rural,

em Minas Gerais, nesse período, como forma de conter os avanços das idéias

socialistas no campo. Com a ditadura implementada em 1964 e a difusão da

Teologia da Libertação, há um engajamento diferenciado, marcado pelas

Comunidades Eclesiais de Base e, em especial, pela ação da Comissão

Pastoral da Terra, fundada em 1975, que resulta na formação de várias das

lideranças que vão impulsionar a luta pela terra. Como atesta Ferreira Neto:

É importante ressaltar que, historicamente, apesar de outras influências, como do PCB, das Ligas Camponesas e do Estado, a Igreja Católica foi a principal instituição a interferir na definição do conteúdo ideológico e programático da Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado de Minas Gerais.

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Inicialmente, como visto, essa influência se deu pela atuação moderada, conservadora e conciliatória dos Círculos Operários Cristãos; num segundo momento, a partir das CEBs e, principalmente, da Comissão Pastoral da Terra, a Igreja Católica passa a apoiar a definição de novas estratégias para solução dos conflitos fundiários no estado, consolidando ações conjuntas com os sindicatos de trabalhadores rurais, com vistas na organização das ocupações de terra (FERREIRA NETO, 1999, p.309).

Nesse momento, o papel da Igreja “se manifesta nos grupos de reflexão

bíblica de trabalhadores rurais acerca de seus problemas e das várias formas

por que são oprimidos, pedagogia essa que teria como resultado uma busca de

revitalização dos sindicatos rurais” (POMPERMAYER, 1987, p.16).

De acordo com Grzybowski:

O trabalho da “Igreja popular”, inspirado na teologia da libertação, pode ser definido como uma combinação de evangelização com educação política do “povo”, em vista de sua organização e participação para a construção de uma nova sociedade. (...) Os organismos da Igreja fazem educação política atendendo a apelos da religiosidade popular e visando a religião como elemento político. A simbiose foi produzida teoricamente pela teologia da libertação e se exprime numa metodologia de leitura da realidade, através de categorias bíblico-religiosas e sociológicas, e numa prática política religiosizada. Nos movimentos sociais onde a Igreja se faz presente produz-se uma ambígua identidade político-religiosa, cujas conseqüências no desenvolvimento das lutas e, sobretudo, na articulação política não podem ser desprezadas. A religiosização de categorias políticas se exprime no uso político de símbolos cristãos, como a cruz nos acampamentos, e na realização de atos religiosos com fins políticos, como missas, romarias da terra, etc. E tem um conteúdo particular: a solidariedade político-religiosa (GRZYBOWSKI, 1987, p.68).

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Foto 2.4 – caminhada de sem-terra: ação político-religiosa em Iturama. Fonte: Arquivo APR. Setembro de 1985.

A CPT, inspirada na Teologia da Libertação, constituirá importante

mediador na luta pela terra em todo o território nacional, organizando vários

movimentos de base no campo, através da “defesa da autonomia dos setores

subalternos rurais na condução do seu processo de libertação” (MICHELOTO,

1991, p.209).

A partir da década de 1980, conforme Ferreira Neto, a Igreja Católica, a

partir desses seus mediadores mais progressistas, será responsável pela

formação de uma gama de novas lideranças, que promoverão a ampliação da

luta pela terra em Minas Gerais, apoiando “a definição de novas estratégias

para solução dos conflitos fundiários no estado, consolidando ações conjuntas

com os sindicatos de trabalhadores rurais, com vistas na organização das

ocupações de terra” (FERREIRA NETO, 1999, p.309).

Nesse sentido, e de acordo com Micheloto, a militarização do campo,

empreendida no período militar, e a emergência de novos movimentos sociais

rurais, na década de 1980, marcam um processo que vai da resistência pura e

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simples a uma organização mais consciente e articulada – processo no qual a

contribuição do catolicismo teve papel central, principalmente via CPT:

Definindo-se como um órgão de interligação, assessoramento e dinamização dos grupos de pastoral no meio rural, a CPT constituiu-se, através dos anos, em um dos principais apoios dos movimentos sociais dos subalternos do campo, tanto nas áreas da luta pela terra quanto na área sindical. Em certo sentido, a CPT representa a concretização de algumas premissas da corrente católica identificada à “libertação”. Entre essas premissas coloca-se a da necessidade de os trabalhadores do campo se organizarem para realizar um “projeto” autônomo de organização rural e de sociedade. Outra premissa é a da relação estreita entre a fé e a luta política (MICHELOTO, 1990, p.68).

Em 1978, surge a CPT-Regional do Triângulo, sediada em Uberlândia, a

partir do apoio dos bispos progressistas D. Estevão Cardoso de Avelar e D.

Benedito de Ulhôa Vieira – então bispo de Uberlândia e arcebispo de Uberaba,

respectivamente –, e de atuações desenvolvidas por leigos, desde 1973,

voltadas para o trabalho de reflexão com trabalhadores rurais de alguns

municípios. De acordo com Micheloto:

A criação dessa entidade permitiu articular as tarefas de conscientização dos trabalhadores do campo, “tendo como instrumento o evangelho”, e o apoio mais concreto aos movimentos sociais, principalmente na área sindical. Segundo um dos coordenadores da entidade, a prioridade da atividade pastoral é o desenvolvimento da organização, principalmente sindical, dos bóias-frias. Isso implica em estimular os trabalhadores a fundar seu sindicato nos municípios onde ele é inexistente e em organizar oposições sindicais onde o sindicato é considerado “fraco” ou “pelego”. O trabalho pastoral é visto como trabalho de base, consistindo principalmente na “descoberta e formação de lideranças”. Há o reconhecimento de que a realidade regional, marcada pela grande penetração do capitalismo no campo, não favorece a generalização de um movimento de conquista da terra. Não obstante, a organização dos trabalhadores assalariados é vista como um primeiro passo, compatível com uma posterior aquisição da consciência de “sem-terra” (MICHELOTO, 1990, p.68).

Nesse sentido, os anos 1990 apresentaram avanços realmente

significativos, que podem ser observados na constituição de vários movimentos

de luta pela terra, bem como na mudança de direcionamento da linha política

seguida pelos sindicatos mais combativos da região, que, além de terem

assentados e acampados ocupando cargos nas diretorias, definiram a

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ocupação como principal estratégia de luta. A tal “consciência de sem-terra”,

acreditando-se, neste trabalho, ser esta uma denominação que se refere,

prioritariamente, a uma condição e a uma identidade políticas, intensificou-se

ao mesmo passo que a luta pela reforma agrária foi transformando-se no

agente centralizador e prioritário das lutas na região.

Mesmo considerando, conforme Grzybowski, que “a dinâmica das lutas

empreendidas pelos movimentos, de que participam os organismos da Igreja,

pode ser restringida pela prevalecência da solidariedade religiosa à classista”

(GRZYBOWSKI, 1987, p.69), há que se ressaltar que a CPT-Regional do

Triângulo Mineiro ocupará um importante papel de articulação das lutas,

criando vários espaços de reflexão e socialização política entre os

trabalhadores rurais da região, favorecendo a multiplicação de experiências e o

nascimento de novas lutas. Esta entidade será dissolvida em 1989, frente a

divergências da coordenação regional com as direções estadual e nacional e

transformada em APR – Animação Pastoral e Social do Meio Rural, assumindo

o apoio às ocupações de terra como uma de suas principais estratégias de luta.

Além de assessorar os movimentos sociais nos conflitos por terra e contribuir

como importante mediadora das ações, a APR tem também uma significativa

atuação na área de formação política, especialmente entre os trabalhadores

rurais envolvidos na luta pela terra na região, e como prestadora de assistência

técnica aos assentados.

A importância da Igreja, no processo de luta pela terra, exprime-se, de

maneira simbólica, na realização da Romaria da Terra, realizada anualmente

desde 1979. Organizada pela CPT-MG e pela APR, reúne os diversos

movimentos sociais rurais e entidades ligadas à luta pela terra do Triângulo

Mineiro e Alto Paranaíba, com um caráter eminentemente político – associado,

obviamente, à dimensão religiosa.

As romarias da terra são realizadas no Triângulo/ Alto Paranaíba desde maio de 1979, quando se realizou a primeira delas, tendo como local de encontro justamente o município de Romaria, antiga Água Suja. Esse local tem um alto significado simbólico/ religioso para o povo da região, pois é abrigo do santuário de Nossa Senhora da Abadia e confluência tradicional de romeiros. Até 1984 as romarias da terra se realizaram, uma por ano, naquela cidade santuário. A partir de 1985, entretanto, algumas romarias da terra foram organizadas, em outros municípios da região, com o objetivo de rememorar fatos ocorridos com os trabalhadores rurais, fatos esses tidos como

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representativos da situação de opressão em que vivem (MICHELOTO, 1991, p.165).

As fotos abaixo nos mostram duas cenas interessantes da 25ª Romaria

da Terra do Triângulo Mineiro e 8ª Romaria das Águas, realizada em 2003, na

cidade de Tupaciguara (que significa Terra da Mãe de Deus): a participação

dos povos indígenas (foto 6) e a lembrança de duas lideranças sem-terra da

região, mortas em conflitos: Juraci (assassinado no conflito da Fazenda

Barreiro, episódio ao qual já fizemos referência) e Odete (foto 7).

Foto 2.5 – 25ª Romaria da Terra do Triângulo Mineiro: participação dos povos indígenas. Autora: GOMES, R. M. Julho de 2003.

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Foto 2.6 – 25ª Romaria da Terra do Triângulo Mineiro: homenagem a lideranças sem-terra mortas na luta. Autora: GOMES, R. M. Julho de 2003.

As romarias da terra, inseridas na perspectiva católica da evangelização

libertadora, se atribuem, assim, a função de “reativar ou mesmo construir uma

„memória‟, que haja como fator não só de legitimação, mas sobretudo de

animação das práticas coletivas” (MICHELOTO, 1991, p.180), cuja finalidade

está centrada em “colocar os problemas, os sofrimentos, os caminhos

possíveis e as conquistas dos homens do campo” (ibidem, p.183).

De maneira geral, podemos afirmar que todo esse processo discutido

neste capítulo acerca do crescimento da luta pela terra, na região do Triângulo

Mineiro/ Alto Paranaíba, expressa o avanço dos movimentos sociais rurais,

bem como de outros inúmeros que participam da luta pela reforma agrária,

além de sindicatos locais, ONG‟s e pastorais católicas, sem contar as várias

organizações, associações e sindicatos que, mesmo sem estar diretamente

envolvidos com a questão agrária, contribuem fortemente com a luta pela

democratização do acesso à terra. Mesmo frente às dificuldades e resistências

enfrentadas, tanto em nível local quanto em nível nacional, devido ao

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150

conservadorismo e aos rumos tomados pela política agrícola do país, os sem-

terra inserem a questão da reforma agrária na ordem do dia. Os

acampamentos e os assentamentos rurais conquistados são partes integrantes

e fundamentais desse processo de luta, e é sobre estes territórios que

buscaremos refletir nos próximos capítulos.

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CAPÍTULO 3

OCUPAR, RESISTIR E PRODUZIR:

os acampamentos dos trabalhadores rurais em luta pela terra

no Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba

Ocupar, resistir e produzir: a palavra de ordem assumida pelo MST em seu

3º Congresso Nacional (1990), e reproduzida por outros movimentos sociais,

expressa, sinteticamente, os princípios tomados por estas organizações nos

processos de luta pela terra. Compreender estes processos, que envolvem as

ações de resistência e de organização social, política e produtiva dos

trabalhadores rurais sem-terra, a partir da ocupação de grandes propriedades

improdutivas, é a nossa proposta nesta parte do trabalho.

A ocupação como forma de acesso à terra

No capítulo anterior, vimos que o avanço das lutas pela terra, no Triângulo

Mineiro/ Alto Paranaíba, registram um aspecto importante, no que se refere à

estratégia de conquista da terra: a ocupação torna-se a ação prioritária, à medida

que é tida como principal forma de acesso à terra. Esse fator reflete

transformações nas perspectivas de luta travadas pelas organizações rurais, que

sinalizam a intensificação das pressões diretas, da mobilização massiva e da

busca efetiva pela autonomia das organizações, em detrimento de uma atuação

burocratizada, assistencialista e atrelada ao Estado.

De acordo com Fernandes:

A ocupação é uma realidade determinadora, é espaço/tempo que estabelece uma cisão entre latifúndio e assentamento e entre o passado e o futuro. Nesse sentido, para os sem-terra, a ocupação, como espaço de luta e resistência, representa a fronteira entre o sonho e a realidade, que é construída no enfrentamento cotidiano com os latifundiários e o Estado (FERNANDES, 2000, p.19).

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Em todo o estado de Minas Gerais, seguindo uma tendência nacional,

verifica-se um grande número de conflitos por terra, estabelecidos por meio de

ocupações. O Instituto de Terras do estado (ITER-MG) registra atualmente a

existência de 152 acampamentos, envolvendo mais de treze mil famílias.

Tabela 3.1: Número de acampamentos e famílias acampadas no estado de Minas Gerais, por região.

Região N. de acampamentos N. de famílias % de famílias Alto Paranaíba 13 1021 7,7 Jequitinhonha 20 1609 12,1 Metropolitana 9 855 6,4 Mucuri 1 45 0,3 Nororeste 19 1432 10,8 Norte 51 3331 25,1 Sul 5 410 3,1 Triângulo 24 3289 24,7 Vale do Rio doce 10 1301 9,8 Total 152 13293 100 Fonte: Instituto de Terras de Minas Gerais, março de 2004. Elaboração: GOMES, R. M.

A tabela 3.1 mostra o alto índice de conflitos fundiários na região do

Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba, que concentra mais de 30% do total das

famílias acampadas no estado de Minas Gerais (dados de março de 2004). Esse

número cresce ainda mais, em termos relativos, se trabalharmos com todas as

áreas que foram ocupadas em Minas Gerais, e registradas pelo INCRA-MG,

durante os anos de 1999 a 2001. Em todo esse período, a região Centro-Oeste

teve 1 ocupação registrada; o Triângulo Mineiro, 61; o Centro-Oeste, 1; a Central,

8; o Norte, 22; o Alto Paranaíba, 52; o Sul, 1; as regiões do Rio Doce e Mucuri, 17.

Ou seja, de um total de 162 ocupações de terra, registradas pelo INCRA nesses

anos, 113 ocorreram no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, o que corresponde a

70% da totalidade de conflitos registrados no estado.

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Tabela 3.2: Número de acampamentos e famílias acampadas no estado de Minas Gerais, por movimento.

Movimento N. de acampamentos N. de famílias % de famílias ACTPJ 1 94 0,7 FETAEMG 91 6691 50,4 LOC 18 1033 7,8 MLST 1 240 1,8 MTL 10 1267 9,6 MST 25 3439 25,7 STR – Araxá 4 285 2,2 CLST 1 36 0,2 AMFT 1 218 1,6 Total 152 13.293 100 Fonte: Instituto de Terras de Minas Gerais, março de 2004. Elaboração: GOMES, R. M.

Já na tabela 3.2, verificamos uma diversidade de movimentos envolvidos

na questão da terra no estado de Minas Gerais, apesar da predominância da

FETAEMG (Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado de Minas

Gerais) que, em março de 2004, conforme aí registrado, coordenava a metade das

famílias acampadas. Esta tendência será mantida quando avaliarmos a situação

específica da região estudada. Mas há que se ressaltar o fato de que os conflitos

ligados à Federação são, em sua quase totalidade, organizados pelos STRs locais

que, associados a ela, contam, em maior ou menor grau, com o seu apoio.

Nas tabelas a seguir, apresentamos o número de acampamentos e áreas

ocupadas, bem como as entidades coordenadoras de cada ocupação, na região

do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba. Ainda que esta seja uma realidade em

constante movimento – à medida que áreas são ocupadas e desocupadas com

uma certa freqüência e, muitas vezes, em curtos espaços de tempo –, os números

apresentados são bastante expressivos da organização e da mobilização dos

trabalhadores rurais na região, bem como da diversidade dos agentes envolvidos

na coordenação dessas ações. De acordo com as tabelas 3.1 e 3.2, podemos

observar que existem hoje, na região pesquisada, 37 acampamentos de

trabalhadores rurais sem terra, num total de 4310 famílias. O mapa 2 ilustra a

distribuição desses acampamentos, por entidade, na região pesquisada.

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Tabela 3.3: Total de acampamentos e famílias acampadas –Triângulo Mineiro

Movimento Município Acampamento Localização fam. Fazenda Fetaemg Campina Verde Seis Irmãos ? 65 Fetaemg Campina Verde Inhumas na fazenda 38 Inhumas MTL Canápolis Pirapitinga na fazenda 400 Fetaemg Canápolis Pirapitinga na estrada 150 Pirapiting Fetaemg Carneirinho São Pedro na estrada 80 São Pedro MTL Gurinhatã Piedade 70 Fetaemg Itapagipe Rodovia Rodovia 400 MTL Ituiutaba Pântano Mariano na fazenda 28 Fetaemg Iturama Bonito Tracajá estrada 350 Bonito Tracajá MST Santa Vitória Canudos na praça 115 Bebedouro MTL Santa Vitória Curiango 40 MTL Santa Vitória Capoeira na estrada 60 Capoeira Fetaemg Santa Vitória Capoeira na estrada 80 Capoeira MTL Tupaciguara São Domingos 80 Fetaemg Uberaba Turbante do Cedro na fazenda 30 MST Uberlândia Eldorado dos Carajás na fazenda 140 Santa Fé CLST Uberlândia Bacurim/coalbra na estrada 36 MLST Uberlândia Capim Branco na fazenda 240 MTL Uberlândia Matinha 30 MTL Uberlândia Carajás 200 MTL Uberlândia Tangará na fazenda 250 AMFT Uberlândia Tangará na fazenda 218 MLT Uberlândia Chuvas do Amanhecer na fazenda 109 Estivinha MST Uberlândia Emiliano Zapatta FERUBE 80 Ferube

TOTAL 24 3.289 Fonte: Instituto de Terras de Minas Gerais, março de 2004. Elaboração: GOMES, R. M. Tabela 3.4: Total de acampamentos e famílias acampadas – Alto Paranaíba Movimento Município Acampamento Localização fam. Fazenda STR Araxá Araxá/Ibiá Faz. São Mateus na estrada 70 Fetaemg Coromandel Berro D'Ägua na estrada 66 STR Araxá Ibiá São Dimas na estrada 25 STR Araxá Ibiá Morro alto de baixo na fazenda 40 Fetaemg Patos de Minas Guimarâes Barreira na fazenda 67 Guim.Barreira Fetaemg Patrocínio Folhados ferrovia 45 Fetaemg Patrocínio PIF PAF na estrada 33 LOC Patrocínio Sinhazinha na fazenda 15 Faz. Mateira LOC Patrocínio Fortaleza na fazenda 30 Faz. Fortaleza LOC Perdizes Sapecado Indaiá na fazenda 100 STR Araxá Perdizes Bom Sucesso na fazenda 150 MST Sacramento Zagaia na fazenda 350 Chap. Zagaia Fetaemg Tiros Santa Cecília na fazenda 30

TOTAL 13 1.021 Fonte: Instituto de Terras de Minas Gerais, março de 2004. Elaboração: GOMES, R. M.

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PATROCÍNIO

SERRA DO SALITRE

CRUZEIRO DA FORTALEZA

GUIMARÂNIA

COROMANDEL

PATOS DE MINAS

MONTE CARMELO

PERDIZES

SANTA VITÓRIA

LIMEIRA DO OESTE

ITURAMACARNEIRINHO

PERDIZES

IPIAÇU

GURINHATÃ

FRUTAL

ITUIUTABA

CAPINÓPOLIS

UNIÃO DE MINAS

CAMPINA VERDE

ITAPAGIPE

COMENDADOR GOMES

PRATA

CAMPO FLORIDO

VERÍSSIMO

CACHOEIRA DOURADA

CANÁPOLIS

CENTRALINA

ARAPORÃTUPACIGUARA

MONTE ALEGRE DE MINAS

UBERLÂNDIA

ARAGUARI

FRUTALCONCEIÇÃO DAS ALAGOAS

PLANURA

ÁGUA COMPRIDA

UBERABA

CONCEIÇÃO DAS ALAGOAS

CONQUISTA

DELTA

INDIANÓPOLIS

ESTRELA DO SUL

CASCALHO RICO

GRUPIARA

ROMARIA

IRAÍ DE MINAS

PEDRINÓPOLISNOVA PONTE SANT

SACRAMENTO

ARAXÁ

TAPIRA

PRATINHA

CAMPOS ALTOS

SANT

SÃO GOTARDO

RIO PARANAÍBA

LAGO

PATOS DE MINAS

ARAPORÃ

TIROS

MATUTINA

ABADIA DOS DOURADOSDOUR

ADOQUARA

N

020 KM 20 KM 40 KM

LOCALIZAÇÃO DOS ACAMPAMENTOS DE SEM-TERRA NO TRIÂNGULO MINEIRO / ALTO PARANAÍBA

ORGANIZAÇÃO: GOMES, R. M., 2004.DESENHO: LIMA, F. R. , [email protected]: www.geominas.mg.gov.br

ACAMPAMENTOSSTR ARAXÁ (05 ACAMPAMENTOS)FETAEMG (13 ACAMPAMENTOS)LOC (03 ACAMPAMENTOS)MST (04 ACAMPAMENTOS)MTL (10 ACAMPAMENTOS)CLST (01 ACAMPAMENTO)MLST (01 ACAMPAMENTO)AMFT (01 ACAMPAMENTO)

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Todos os projetos de assentamentos da região do Triângulo Mineiro/ Alto

Paranaíba foram frutos de ocupações e acampamentos, com exceção das

aquisições de propriedades via Programa Banco da Terra1. As ocupações

denotam a forma primordial de luta pela terra, e os acampamentos registram as

histórias de resistência dos trabalhadores rurais sem-terra. A realidade destes

acampamentos constitui, assim, elemento importante, tanto na dinâmica da luta

pela reforma agrária, quanto na construção dos assentamentos rurais.

Os acampamentos são espaços e tempos de transição na luta pela terra. São, por conseguinte, realidades em transformação. São uma forma de materialização da organização dos sem-terra e trazem em si, os principais elementos organizacionais do movimento. Predominantemente, são resultados de ocupações. São, portanto, espaços de luta e resistência. Assim sendo, demarcam nos latifúndios os primeiros momentos do processo de territorialização da luta (FERNANDES, 2000, p.293).

Nessa perspectiva, a proposta deste capítulo é compreender as formas de

organização e resistência, no interior de acampamentos de movimentos de luta

pela terra. Não é nossa pretensão empreendermos um estudo detalhado e

aprofundado acerca da totalidade dos elementos presentes nessas áreas, mas

apontar alguns dentre aqueles que, no decorrer do nosso trabalho de campo,

mostraram-se relevantes, do ponto de vista desta pesquisa, qual seja, uma

reflexão qualitativa acerca de alguns dentre os diferenciais de organização social,

política e produtiva, que conotem experiências de luta e resistência às dificuldades

internas e externas impostas às famílias de trabalhadores rurais sem-terra.

Partimos aqui da constatação de que os acampamentos são peças

importantes, não apenas para a conquista da terra e para a construção dos

assentamentos rurais, mas também para a ampliação da luta pela reforma agrária.

Os acampamentos tornam-se referências de luta e organização na formação e

espacialização dos movimentos sociais de luta pela terra, à medida que

promovem ocupações, desenvolvem ações e constroem territórios de resistência à

expropriação e à exploração dos trabalhadores rurais. Ao expor a experiência do

1 Existem na região três assentamentos criados pelo Programa da Terra, que não fazem parte da discussão deste trabalho. Sobre o Programa, vide o primeiro capítulo.

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acampamento Encruzilhada Natalino, no Rio Grande do Sul, uma das principais

referências da história do MST, Fernandes sintetiza essa reflexão: “A luta pela

terra ensina. (...) Nesse sentido, Natalino foi uma escola. Muitas das ações de

resistência constituída nessa luta foram referências principais na troca de

experiências com outras lutas que aconteceram em todo o Brasil. Foi um exemplo

de luta e resistência que animou os trabalhadores” (FERNANDES, 2000, p.56).

Da mesma forma, os dois acampamentos aqui estudados – Emiliano

Zapata e Tangará – transformaram-se em importantes referências regionais de

luta, fontes de outras novas ações, exemplos de persistência, impulsionadores da

luta mais ampla pela reforma agrária. Afinal, as experiências geradas nesse

processo contribuem para a criação de novos espaços de socialização política, de

práticas que se transformam em reflexões, de reflexões que se transformam em

novas lutas.

Por este motivo, tais acampamentos foram escolhidos como foco

privilegiado de análise neste trabalho. Ambos estão situados no município de

Uberlândia (o maior da região do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba), existem há

cinco anos, e são coordenados pelos dois movimentos sociais de luta pela terra

mais atuantes na região: o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem

Terra (Emiliano Zapata) e o MTL – Movimento Terra, Trabalho e Liberdade

(Tangará). Nas visitas às áreas, procuramos, por meio da observação e de

entrevistas ou conversas informais, recuperar as principais lutas do grupo

acampado e as formas de organização do acampamento. Foram realizadas,

ainda, reuniões com coordenadores e acampados, no intuito de buscar respostas

coletivas para estas questões. Outro procedimento metodológico utilizado foi a

pesquisa documental realizada nos arquivos dos movimentos. O objetivo não é

realizar um estudo minucioso sobre as áreas para daí buscar a compreensão da

dinâmica da luta pela terra, mas sim conseguir elementos que ilustrem, instiguem

e tornem mais consistentes, a partir da contribuição empírica, a nossa reflexão

sobre o tema.

Importante ressaltar, ainda, que não encaramos estes processos de

espacialização e territorialização da luta pela terra como processos lineares,

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destituídos de conflitos e contradições. Ao contrário, estas são marcas inerentes e,

portanto, com as quais procuraremos nortear as nossas reflexões.

O Acampamento Emiliano Zapata: a luta do MST no Triângulo Mineiro

O acampamento Emiliano Zapata completou, em fevereiro de 2004, cinco

anos de existência e possui hoje 43 famílias2. É o mais antigo acampamento da

região coordenado pelo MST. Está localizado há três anos na Fazenda FERUBE,

uma área de aproximadamente 530 hectares, situada a 15 Km da cidade de

Uberlândia.

A área é de propriedade da Associação Brasileira de Assistência ao

Adolescente. Há vários anos funcionava aí um centro de reabilitação do

adolescente. Atualmente está sob o direito de uso da prefeitura municipal de

Uberlândia. Possui uma enorme estrutura de funcionamento de uma escola

agrícola (com prédios, casa de farinha etc), mas com sua maior parte inativa.

Apenas um dos prédios é utilizado como escola de 1º grau para os alunos do meio

rural.

Foto 3.1 - Barracos do acampamento Emiliano Zapata (Uberlândia)

Autora: GOMES, R. M. Dezembro de 2003 2 Dados de fevereiro de 2003.

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A construção do acampamento Emiliano Zapata

O acampamento Emiliano Zapata teve sua origem no assentamento Zumbi

dos Palmares, conquistado em 1999 pelo MST. No processo de espacialização da

luta, a conquista desta área contribuiu sobremaneira para o processo de

organização das ocupações subseqüentes, organizadas pelo movimento. Quando

saiu a imissão de posse para os recém-assentados, lá mesmo começou a se

organizar uma nova ocupação. As famílias remanescentes do Zumbi, junto com

outras lideranças do MST, passaram a realizar algumas reuniões em bairros

periféricos da cidade de Uberlândia e aglutinaram mais pessoas interessadas.

Em nossas visitas ao Emiliano Zapata, entrevistamos oito famílias, estando

a maioria envolvida com o acampamento desde as primeiras ações. O início da

participação destas famílias, no movimento, se deu através das reuniões

realizadas, nos bairros periféricos da cidade de Uberlândia, muitas vezes por

intermédio de algum conhecido, parente ou amigo, que já participava da luta pela

terra. As razões são normalmente associadas às dificuldades de sobrevivência

nas cidades – desemprego, violência, drogas –, e à perspectiva da conquista da

terra como forma de melhorar a qualidade de vida.

Eu queria dá melhor educação pros filho. (...) O Chico e o Bob tava fazendo frente de

massa lá no Dom Almir e a gente foi pra Zumbi. Primeiro foi sozinho, sem família nem

nada. Que a gente morava no Dom Almir que era muito violento, muito perigoso... E não

tinha emprego, era muito violência lá... (acampado).

Quando o Chê (liderança do movimento) era candidato a vereador eu tive o primeiro

contato com o movimento. Aí conheci também o Cachorrão (acampado da Garupa). Não

sabia como era, se tinha que pagar aluguel... Depois de falar outras vez com o Chê, eu

procurei na secretaria do movimento e aí eu mudei pra ocupação na Fazenda Garupa. Eu

vim pro movimento por causa da terra... Que eu quero deixá alguma coisa pros neto, pros

filho. E também porque tem muito desemprego na cidade, principalmente pras pessoa

mais véia que nem eu, que num consegue emprego pela idade mais... (acampado).

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Um amigo meu chamou um dia pruma reunião no Bairro Planalto. Na reunião tinha umas

liderança que nem a Maysa, que já era assentada e aí ficava animando o povo, dizendo

que dava certo, que ela tinha conseguido... Toda a vida tinha pensado em reforma agrária

como solução dos problema do campo, mas nunca tinha pensado em que eu mesmo fazê

a reforma agrária. Então eu não queria muito, os amigo ficavam insistindo todo dia, até

que eu montei uma barraca lá na Fazenda Douradinho, depois que o acampamento já

tava montado, mas quase não ficava lá, ficava mais na cidade. (...) Até que o serviço na

cidade foi acabando e eu fui ficando só por conta do movimento mesmo... (acampado).

Todos os acampados entrevistados moravam em Uberlândia, quando

vieram para o acampamento, e as últimas ocupações eram urbanas. No entanto,

todos possuíam vínculos de origem com o meio rural, em outras regiões de Minas

Gerais, ou em outros estados como São Paulo, Mato Grosso e Bahia:

Eu nasci no campo, na Bahia, que meus pais tinha terra lá, aí eu trabaiava na lavora. Mas

as coisa era difícil, e quando foi em 71 eu vim pra Ituiutaba e fiquei trabalhando lá numa

fazenda até quando foi 76, que eu fui trabalhar na CCO, construtora de estrada, né? Na

CCO eu fui transferido pra Uberlândia, mas em 83 eu parei aí fiquei lá de autônomo,

pegando empreitada no ramo da construção civil, de pedreiro, carpinteiro, tudo isso...

(acampado).

Meus pais era colonos em Lins (interior de São Paulo). Eles trabalhava pra um fazendeiro,

mas podia plantá um pouco pra comer, assim, feijão, arroz, horta... Aí eu ajudava eles até

quando eu fiz 17 anos e fui pro exército (acampado).

O meu pai era trabalhador rural na Bahia. De lá a gente foi pro Paraná, que lá o meu pai

tinha terra dele mesmo e a gente plantava café e hortelã. Mas aí depois que veio a

mecanização a gente teve que saí de lá, que a gente quebramo e tivemo que ir trabalhá

em São Paulo, era em 75. Muita gente quebrou. Nós comprô trator, adubo, aí quebramo,

porque não conseguia pagar o banco... (acampado).

Eu morava na roça até os 16, com a família, que a gente era meeiro lá em Lagoa

Formosa. Só que dava muito pouco na meia, não dava nem pra comê, aí a gente teve que

ir embora pra cidade. (acampado).

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A baixa escolaridade (75% dos entrevistados possuíam, no máximo, a 4ª

série do primário) e a ocupação em subempregos são características comuns dos

acampados. Antes de entrarem para o movimento de luta pela terra, uma marca

presente entre as famílias é a falta de perspectiva. A maioria das famílias

sobrevivia de “bicos”, como diaristas ou em empregos temporários, em atividades

ligadas, principalmente, ao ramo de construção, no caso dos homens, e a serviços

domésticos, no caso das mulheres, sendo o desemprego apontado como uma das

maiores causas da “busca por uma vida melhor”.

Em fevereiro de 1999, o grupo reunido montou acampamento numa área do

P.A. Zumbi dos Palmares. Conforme os relatos, neste período de organização

inicial do acampamento, as experiências do grupo antigo eram repassadas, as

lideranças apresentavam o que era o MST, ensinavam os hinos, discutiam a

importância da bandeira do movimento, etc. O nome Emiliano Zapata fora

escolhido já na reunião de “fundação” do acampamento, por ser um representante

da luta social pela terra no México. Em março de 1999, cerca de 80 pessoas

ocuparam a Fazenda São Domingos, de onde foram horas depois expulsos, sob

intensa violência de jagunços e policiais. Houve uma série de agressões, de

repressão física e moral, com apreensão de carros, materiais de trabalho e objetos

pessoais, além da detenção de alguns integrantes do movimento. Retornaram

para o Zumbi e continuaram os trabalhos de formação e preparação para a

próxima ocupação, que contou com cerca de 100 pessoas, na Fazenda Palma da

Babilônia. Aqui permaneceram por apenas dois dias e saíram, desta vez, por

conflito com outro movimento – o MLST, que já havia ocupado a área. Retornaram

novamente para o Zumbi e realizaram mais uma ocupação – a Fazenda

Douradinho. Nesta ficaram por quatro meses e chegaram a contar com a presença

de 220 famílias. Foi, neste período, que o grupo de sem-terra chegou a tomar a

forma real de um acampamento, numa área em disputa, com visibilidade social.

Aqui se inicia o processo de negociação com o INCRA.

Num enfrentamento não violento, mas político, as famílias negociaram a

retirada da área para que o INCRA realizasse a vistoria na Douradinho. As

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famílias foram para a beira do Rio Uberabinha, onde ficaram acampadas por mais

quatro meses. Na beira do rio, o INCRA fez o cadastramento de 180 famílias.

Depois retornaram novamente para o Zumbi: “O Zumbi é nosso pai e nossa mãe.

Sempre que dá alguma coisa errada, a gente volta pra casa dos pais” (acampado).

Nesse processo, a Fazenda Garupa entrou na negociação. Como o processo

corria muito lentamente, as famílias decidiram ocupar a Garupa. O enfrentamento

começou já na ocupação. Várias famílias foram impedidas de chegar à área para

a ocupação, e os policiais e os jagunços fizeram muita pressão, inclusive através

do uso da violência física. Durante os primeiros 15 dias, eles montaram

acampamento ao lado do acampamento dos sem-terra. Realizavam vistorias,

davam tiros para o alto e utilizavam várias outras práticas de intimidação. Os sem-

terra ficaram praticamente ilhados, porque os policiais controlavam a saída e a

entrada da área.

Na Garupa a repressão foi muito grande. Teve que enfrentá mesmo. Foi o INCRA que

indicou pro MST a fazenda Garupa. Mas só a direção sabia, o povo não sabia não. A

gente percebia o movimento e já foi começando a arrumar uma coisa aqui, uma coisa ali.

Meia noite eles falaro pra gente desmanchá os barraco que os caminhão já tava

chegando. Mas aí já foi o primeiro problema. Era cinco caminhão, mas só vieram dois,

que três quando descobriram que era pra sem-terra ficaram com medo e não vieram. As

quatro hora da manhã chegamo na área, já fomo derrubá eucalipto e começa a fazer os

barraco. Sete hora da manhã a polícia chegou com o fazendeiro. Prendeu tudo quanto era

foice, facão, machado. Não deixou o caminhão que tinha voltado pra pegar o resto das

nossas coisa passar, só liberou uns três dias depois. Fomo fazendo barreira e

conseguimo empurrar a polícia um pouco. Ela fez muita pressão, mas nós conseguimo

resistir e ficá na área. (acampado)

Os trabalhadores ficaram acampados durante quatro meses. Ao término

desse tempo, a fazenda era tida como certa. Os jornais noticiaram a vitória dos

sem-terra pela manhã do mesmo dia em que, ao final da tarde, o processo judicial

sofreu uma reviravolta e o juiz pediu a reintegração de posse. Nessa época, o

governador do estado, Itamar Franco, não acionava a polícia para efetuar despejo

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de sem-terra. Foi a primeira vez, então, que a polícia federal foi chamada, na

região do Triângulo Mineiro, para efetuar a reintegração, o que provocou uma

enorme pressão psicológica sobre os acampados.

Sabe, esse foi o momento mais difícil do acampamento... Foi uma grande derrota e um

grande desespero. As famílias ficaram muito decepcionadas, desiludidas. Tava todo

mundo já dando como certo... Aí teve uma grande dispersão das famílias com a retirada e

o acampamento sofreu um grande esvaziamento. Mas algumas família resistiram e

voltaram pro Zumbi, não deixando a luta do Zapata acabar. (acampado)

Foram apenas 13 famílias que, nessa época (outubro de 2000), voltaram

para o Zumbi. Deram seqüência ao trabalho, organizaram novas reuniões e

conseguiram aglutinar novamente cerca de 100 famílias que, em 21 de janeiro de

2001, ocuparam a área onde estão hoje – a FERUBE.

A ocupação da área da FERUBE foi relativamente tranqüila, sem confronto.

A prefeitura, ela não é ágil na negociação, mas também não “implica” com os sem-terra.

O Zaire é menos ofensivo que o prefeito anterior, o Virgílio. E aí como a área tá com

direito de uso da prefeitura nem tem processo judicial. O proprietário da área também não

causou problemas até hoje não, ele conversa, tá disposto... Assim, se a prefeitura

negociar outra área com ele tá tudo certo por ele a gente acha (acampado).

Já na área, de acordo com os depoimentos, além dos processos de

negociação e pressão política utilizados, como manifestações dos sem-terra na

prefeitura, os conflitos abertos com o poder público municipal se deram mais por

ocasião de períodos em que as cestas básicas destinadas aos acampados eram

retidas ou entregues tardiamente, como está expresso no seguinte relato:

Já fizemo manifestação na prefeitura algumas vezes. Uma vez prendemo a camionete da

Secretaria de Agricultura, porque as cesta não tavam vindo. Vieram mais de cinco viatura

da polícia para pegar a camionete. O povo pegou facão, foice, e não deixou a polícia

entrar. A gente falô que só liberava quando o Vicente, que era secretário de Agricultura

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viesse falá com a gente. Ele não queria vim não, dava desculpa, dizia que não tava aqui...

Imprensa veio. Mas a gente resistiu o dia inteiro. Só quando veio o Vicente que liberô as

cesta a gente liberô a caminhonete. É a guerra da fome que é difícil pra qualquer um

resolvê. (acampado).

Este acampamento foi e é muito importante para o avanço da luta do MST

na região. Da mesma forma que ele surgiu do Zumbi dos Palmares, dele surgiram

as lutas para o acampamento Eldorado dos Carajás. O Zapata já teve a sua

primeira vitória, que foi conquistar a Fazenda Água Limpa, de 407 ha, onde serão

assentadas 10 famílias. Atualmente, 17 famílias, dentre o total de 43 acampadas

do Zapata, montaram acampamento na Fazenda Água Limpa, como forma de

garantir a criação do assentamento.

A outra área que está em negociação, além da fazenda da FERUBE (na

qual estima-se o assentamento de 15 a 20 famílias), é a da Fazenda Estivinha,

que está em processo judicial e comportaria o restante das famílias. No caso da

área da FERUBE, como esta conta com uma grande estrutura de escola agrícola,

o objetivo seria formar aqui um grande centro de formação política e técnica para

os acampados e assentados da região.

Mas há ainda um problema de caráter distinto: a área foi ocupada

posteriormente por outro grupo de sem-terra, vinculado ao MLST (Movimento de

Libertação dos Sem-Terra). Segundo informações dos acampados do Zapata, o

grupo do MLST havia ocupado uma outra área e, em negociação com a prefeitura,

e com a aceitação do MST, foram para a área da FERUBE para que esperassem

o desenrolar do processo. Entretanto, com dois meses na área decidiram pleitear

também a fazenda e permaneceram acampados. Este processo tem trazido

alguns conflitos entre os dois movimentos, reforçando a problemática regional, já

tratada neste trabalho, ligada às dificuldades existentes internamente aos

movimentos de luta pela terra, dentro de suas diversidades.

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Organização social e política do acampamento Emiliano Zapata

A área da fazenda já contava com energia elétrica, inclusive onde está

montado o acampamento, que é onde termina a rede. As famílias, logo nos

primeiros dias na área, puxaram a fiação para o acampamento e os barracos.

Todos os barracos contam com abastecimento de água, já que a área possui uma

queda natural e vários poços furados (vertente), de onde montou-se a canalização

que abastece o acampamento.

As crianças que cursam o 1º grau estudam na própria FERUBE, que abriga

uma escola da prefeitura. Mas, além da educação escolar formal, existe, no

acampamento, o esforço de um acompanhamento político-educacional com as

crianças, com professores de dentro do acampamento, no barraco construído para

ser a escola. “O objetivo é discuti com as criança na sua realidade, trazê as coisa

que elas aprende na escola pra sua vida aqui dentro” (acampado).

Foto 3.2 - Barraco onde funciona a escola do acampamento Emiliano Zapata (Uberlândia). Autora: GOMES, R. M. Dezembro de 2003.

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A presença de eventos religiosos no acampamento é tida pelos acampados

como importante mecanismo de união do povo. Novenas, terços, bem como

missas e outras ações religiosas são realizadas no acampamento com relativa

freqüência, especialmente através da APR, entidade que promove um trabalho

pastoral no meio rural:

É importante porque é sempre preciso tá rezando e orando e ensinando as pessoas que

tão muito sem religião. Elas tão só pensando em dinheiro, ou aqui no acampamento só

em terra. (acampado)

O Padre vem rezar aqui todo mês quase. Faz na quaresma, véspera de natal... É

importante pra trazer paz, crença, fé. Parece que quando reza o acampamento vai pra

frente... (acampado).

Como já foi discutido no segundo capítulo, para além das tradições

culturais, a presença das práticas religiosas está muito relacionada com a

importância da vinculação entre os elementos políticos e religiosos que é

empreendida comumente nos processos de luta pela terra, através do discurso

“libertário” empreendido por alguns setores da Igreja, discurso este que “está

presente nos projetos de inúmeros grupos que se mobilizam no meio rural; confere

identidade a esses grupos e legitima, muitas vezes, as suas ações” (MICHELOTO,

1991, p.5).

No que se refere à organização interna do acampamento, esta é ancorada

na linha política do movimento, de coletivização da direção. Desde a primeira

reunião do Zapata, ainda no Zumbi, as famílias dividiram-se em núcleos e setores.

Todas as famílias participam de algum núcleo, que é uma forma de todas se

envolverem e se comprometerem com a luta, ainda que em diferentes graus. São

4 núcleos de famílias, com um coordenador e uma coordenadora. Estes

coordenadores integram a coordenação geral junto com mais alguns membros

que são liberados para atuarem no movimento fora do acampamento. Todos os

núcleos têm membros que participam de cada uma das equipes (alimentação,

finanças e segurança) e de cada um dos setores (saúde, educação e produção).

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O MST tem um grande trabalho pra garantir a organicidade do acampamento. Claro que

isso é um processo, é um aprendizado... Mas mesmo com as dificuldades, as

divergências, há um envolvimento de todos porque todos têm uma tarefa para

desempenhar porque todos participam de algum núcleo ou setor (acampado).

A socialização política é um elemento constituinte importante do

acampamento. Além das experiências das lutas e das ações empreendidas pelo

movimento, há uma preocupação constante com o trabalho de formação política

com as famílias acampadas. Realizam-se discussões, análises de conjuntura,

reflexões acerca da realidade vivida, ainda que numa intensidade aquém dos

anseios sentidos por, pelo menos, parte das lideranças. Os depoimentos

ressaltam também o incentivo à contribuição com outras lutas, como a

organização de outras famílias em novas ocupações.

Questionadas sobre a importância do MST na organização da luta, o

movimento aparece como a principal referência para as famílias acampadas:

O MST tem muita força. É muito mais do que terra. O MST engloba várias partes da luta.

São muito enfrentamentos, muitos projetos. O MST engloba muita coisa, tem uma história

muito grande e é construída a história no cotidiano também. É essencialmente assim...

um movimento que consegue resgatá as pessoa. Pessoas que não têm nada, que não

tem perspectiva. O MST vai lá e dá esperança, dá sentido na vida, orienta muito. E te dá

muitas oportunidade, assim... Tem sem-terra daqui que tá estudando em escola técnica lá

no Paraná, que faz faculdade ligada a produção lá no Sul, que faz curso de formação

política sei lá onde. E sabe... só o conhecimento é capaz de libertá. E o movimento te dá

o conhecimento. Afinal, o seu objetivo, é sê uma organização de massa voltada pra

transformação social. E além disso, o MST tem repercussão internacional. Direto vem

gringo aqui querendo conhecê a nossa luta. Todo mundo sente orgulho de sê do MST, da

mesma forma que todo mundo se sente ofendido quando alguém ou a TV fala mal do

MST. (acampado)

Se não existe o MST não tinha como nós lutá pela reforma agrária. É ele que reúne o

povo, que faz a formatura do povo pra lutá pela reforma agrária. (acampado)

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É bom estar com o movimento porque temo contato com meio externo. Se não tem essa

ligação qualquer viatura entra no acampamento e tira o povo (acampado)

Sem o movimento a vaca ía pro brejo. O movimento dá toda formação, porque tamos

acampado. Aí, assim, a gente entende a importância da terra pra nós, pros nossos filhos,

pros netos, pra sociedade... (acampado)

A fase de acampamento é apontada como um momento muito difícil,

marcado pela precariedade das condições sanitárias e alimentares e pela

dificuldade do acesso aos serviços básicos, especialmente médico e hospitalar,

bem como pelos conflitos internos e externos inerentes ao processo. No entanto,

ressalta-se também a experiência positiva do aprendizado, do convívio com a terra

e com os companheiros de luta.

As vantagem é quando chega notícia boa, e os problema é vê as dificuldade, as pessoas

doente, as briga, as divergência. Porque quando começô era pra sê uma família unida,

mas não é, que tem muita divergência... (acampado).

Essa fase é muito boa, que a gente aprende muita coisa... E é muito bom pros filho, que

aprende muita coisa também... É bem melhor que na cidade. A parte ruim é que tiveram

muitos problema com saúde, muita doença, e a gente perdeu alguns companheiro nosso

aqui. Também os conflitos que teve... na Garupa... foi muito ruim... (acampado).

A fase de acampamento tem seus altos e baixo. O acampamento é muito bom pra ensiná

as pessoa, que na fase de acampamento a gente aprende muito. O problema é que é

muito demorado. Porque o acampamento gera muita união, mas é entre alguns, que tem

outros que tão unidos só por causa da terra. Tem muita falsidade também. Na última

reunião caíram muitas máscara. (acampado).

Bom, a família inteira gosta muito de roça, então todo mundo acha muito bom ficá aqui. A

criação na roça é muito mais tranqüila. Mas passa muita dificuldade, com comida, colocar

criança debaixo de lona é difícil... Mas a gente só consegue as coisa na vida com

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sacrifício. E a gente acredita na luta, que o mundo só vai melhorá com a reforma agrária

(acampado).

Aqui é melhor pela tranqüilidade, não tem bandido, pode viver do jeito que quer... Pode

deixá a casa aberta. Quando qué trabalhá, trabalha um pouco, quando cansa toma um

café... (acampado).

Organização produtiva do acampamento Emiliano Zapata

Cada família tem o seu quintal com a sua horta. Algumas famílias produzem

leite e queijo para ser comercializado em Uberlândia, mas a maior parte da

produção fica para a subsistência no acampamento. “Tem a cesta básica, mas se

a prefeitura cortá a cesta de fome a gente não morre” (acampado).

Foto 3.3 - Quintal de um acampado no Emiliano Zapata (Uberlândia): plantações de amendoim, pimenta, batata doce, milho, entre outras culturas para a subsistência. Autora: GOMES, R.M. Dezembro de 2003.

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Foto 3.4 - Criação de porcos e galinhas para subsistência – acampamento Emiliano Zapata (Uberlândia). Autora: GOMES, R. M. Dezembro de 2003.

Na roça, o projeto é coletivo. A busca pelas sementes e a plantação é

coletiva, mas o trabalho é dividido por família, cada um administra uma parte.

Todos têm plantação de milho e mandioca, num total de 5 hectares. A produção

de milho está ligada ao Programa de Segurança Alimentar, do governo do Estado

de Minas Gerais, coordenado pela Cáritas. O MST busca dar um suporte à parte

produtiva, através da sua equipe técnica, mas é um apoio bastante precário,

especialmente devido às dificuldades financeiras do movimento. Alguns produzem

individualmente feijão, abóbora ou amendoim.

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Foto 3.5 - Produção de milho e mandioca em área coletiva do acampamento Emiliano Zapata (Uberlândia). Autora: GOMES, R. M. Dezembro de 2003.

A área não é muito produtiva, mas passível de correção e de boa utilização

com certos cuidados. É muito arenosa, mas não tem problemas como excesso de

inclinações ou erosão.

Certamente, a questão produtiva é um dos pontos centrais para a

organização ainda na fase de acampamento. Os conflitos sobre a forma da

produção já são explícitos à medida que um dos princípios da organização do

acampamento é o de se trabalhar a terra desde o primeiro momento de ocupação

das áreas. As discussões travadas, neste período, e as experiências produtivas aí

acumuladas constituem referências importantes para as decisões futuras, quando

da conquista do assentamento. “O acampamento é a base que dá a cara ao

assentamento. É o coletivo que vai determinar a força que o assentamento vai ter”

(acampado).

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A produção coletiva é um dos mais fortes princípios do MST, mas é também

uma de suas maiores dificuldades. Com exceção da experiência inicial do

assentamento Paulo Freire, que fazemos referência mais à frente, não há nenhum

outro caso de trabalho coletivo, nas áreas conquistadas, com o apoio do

movimento.

Tanto que não há na região nenhum assentamento modelo, em que a gente possa se

espelhar. 40% vende os lote, 70% passa necessidade. Além disso, há o problema dos

rachas, que acontece por personalismos, “por desvios de lideranças”, por brigas de

pessoas que querem sempre estar liderando, que enfraquecem o movimento.

(acampado).

Essa área não deve ser o modelo de assentamento que queremos, mas o objetivo é que

aproximemos mais disso. Que este assentamento caminhe e que sirva também de

referência de luta para os outros (acampado).

As falas das lideranças enfatizam a importância da coletivização, mas, ao mesmo

tempo, ressaltam a força do individualismo na região. Argüidos sobre quais seriam

as maiores dificuldades da luta pela terra, as respostas indicavam a longa espera

da conquista como um grande desgate; a falta de comprometimento dos governos

e dos órgãos responsáveis; “a cultura do povo, que é muito individualista”.

A proposta é uma nova forma que está sendo construída. A discussão está tendo

aceitação. Avançar nas questões coletivas é o objetivo do movimento. Quanto mais

coletivo melhor. E o outro grande desafio é saber administrar os recursos, porque não

adianta receber muito dinheiro se não sabe como gastar. É ter projetos consistentes, com

acompanhamento. Claro que ainda não vai ser como a gente pretende, tudo coletivo. Os

lotes devem ser individuais, mas discute-se a possibilidade das casas serem mais

próximas uma da outra, todas dando acesso a mesma estrada, com uma área em comum

de lazer, de educação e, quem sabe, uma área de produção coletiva (acampado).

É preciso que o acampamento ou o assentamento tenha condição de produzi e fazê um

bom trabalho pra que a sociedade acredite que ele dê certo. Atualmente, há uma média

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de 40% de venda de lote, e cerca de 70% de família que passa necessidade nos

assentamento. Assim não dá certo (acampado).

Argüidos sobre a forma ideal de organização produtiva que deveriam

ter quando assentados, as respostas são as mais variadas, explicitando os

crescentes conflitos de idéias, dada a possibilidade, cada vez mais próxima, da

conquista do assentamento:

Ah... Tem que sê tudo no coletivo, que individual cê não consegue fazê nada (acampado).

O melhor tipo de organização é o “coletivo familiar”. As famílias que quiserem entra no

coletivo. Mas, claro, se fosse todas as família no coletivo seria melhor (acampado).

O ideal é o semi-coletivo. Faz todo o projeto de produção coletivo (como a cerca, a

preparação da terra, planta tudo junto, aluga o trator, prepara tudo mais mecanicamente),

coisas que só dão pra fazê se for no coletivo. O dinheiro rende muito mais e o poder de

barganha fica muito grande. Mas o lote deve ter uma parte individual, pra fazê a sua

horta, criar o seu porco, a sua galinha. Tipo: pega a metade e faz lote individual e a

metade faz produção coletiva. Eu não quis ir pra Água Limpa porque eu fiquei observando

as pessoas que foram pra lá e acho que a maioria que foi era as que pensava em fazê

tudo individual (acampado).

O coletivo não dá certo nem no acampamento, muito menos no assentamento. Cada um

tem um jeito de trabalhá. Às vez você tem que fazê pra você e pro outro. Não gosto muito

do coletivo, mesmo a associação já é difícil. Mas dá pra fazer compra e venda conjunta.

Assim dá (acampado).

O coletivo não dá certo. Sempre tem um que fica na veia do outro. O coletivo só seria

bom se todos tivessem o mesmo pensamento, mas não é assim. Tem que ter uma

associação pra ajudar a conseguir as coisa, mas tem que ser individual (acampado).

O acampamento Emiliano Zapata encontra-se hoje num momento decisivo,

com as negociações já num estágio relativamente avançado. Já começam a se

delinear, aqui, os novos dilemas oriundos das conquistas das áreas:

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Agora também estamos vivendo um momento muito marcante, porque o acampamento

parece estar chegando na reta final, em que talvez cada um tem que tomar um rumo

diferente, porque podem ser três áreas, não vai mais ser todo mundo junto (acampado).

O rumo que será tomado, a partir da construção dos assentamentos, é

obviamente incerto, até pela também ainda incerta conquista das outras

propriedades em negociação – Fazendas FERUBE e Estivinha. A possibilidade de

se dividir em três áreas distintas as famílias do acampamento torna ainda mais

complicadas as discussões sobre a futura organização política e produtiva dos

territórios conquistados, além de reforçar a questão da dificuldade de

desapropriação de grandes propriedades rurais na região do Triângulo Mineiro e

Alto Paranaíba, já exposta no capítulo 2 deste trabalho.

De qualquer forma, é possível afirmar que o acampamento Emiliano Zapata

contribuiu para a ampliação das ações do MST nesta região, tendo servido de

base de construção e de referência para várias outras mobilizações e ocupações

empreendidas pelo movimento.

O Acampamento Tangará: referência regional de luta e resistência

O acampamento Tangará constitui um marco na história da luta pela terra

na região, pelo caráter anterior da fazenda3, pelo exemplo de resistência e pela

sua repercussão social e política. A área foi desapropriada em 09/05/2002, e já

está concluído o projeto de criação do assentamento. Atualmente, as famílias

aguardam apenas a demarcação dos lotes.

A luta envolvendo a Fazenda Tangará foi uma das primeiras ações do

MLST – Movimento de Libertação dos Sem-Terra, fundado em 1997. Em fevereiro

de 1998, o MLST requereu laudo de vistoria a ser realizado pelo INCRA, finalizado

em julho de 1999, que concluiu pela improdutividade da propriedade em questão.

3 A maior parte das ocupações na região se dão em áreas de pecuária, de pessoas físicas. Esta tratava-se de uma fazenda de propriedade de uma empresa de exploração de eucalipto – a CIF (Companhia de Integração Florestal).

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A partir daqui, inicia-se uma longa batalha judicial e política, tendo em vista a

contestação do laudo pela empresa proprietária – a CIF (Companhia de

Integração Florestal).

O MLST iniciou um processo de investigação e contestação dos

argumentos acerca da produtividade da fazenda, na qual efetivamente existiam

alguns projetos de plantio de eucaliptos.

Ao investigar diretamente a veracidade destes projetos o movimento tomou conhecimento a respeito de volumosos incentivos recebidos por grandes empresas proprietárias de latifúndios para o plantio de eucaliptos, consistindo em recursos a fundo perdido e incentivos fiscais. Na procuradoria do IBAMA, tomou-se conhecimento, também, que vários dos projetos incentivados, beneficiando mais de 6 milhões de hectares, foram encaminhados à procuradoria da União para que fosse movida ação própria para reaver o dinheiro público que não fora apresentado conforme o projeto apresentado. Nesta investigação o MLST descobriu ainda que, no Tribunal de Contas da União, estava em curso processo para apurar a aplicação de todos os recursos oriundos do Fundo de Investimentos Setoriais (FISET), destinados ao plantio de eucaliptos. Descobriram que a Tangará, administrada pela Companhia de Incentivo Florestal (CIF), foi uma das fazendas do programa de extração de eucalipto para a fabricação de carvão a ser usado na indústria de ferro-gusa, que estava sendo beneficiada desde a década de setenta com 81 projetos de investimento a fundo perdido pelo governo federal. Em todos esses anos, os laudos de vistoria realizados pelo IBAMA dos projetos a serem aplicados, apontaram falhas na implantação e muitas vezes os projetos inexistiam (Mitidiero Junior, 2002, p.280).

As batalhas judiciais e políticas travadas obtiveram grande repercussão

social, tendo, inclusive, sido convocada pelo INCRA uma audiência pública com

vistas a fazer uma “consulta” à sociedade acerca do “caso Tangará”.

Paralelo a este processo, o MLST deu início aos trabalhos de formação,

através da realização de reuniões de base em bairros periféricos de Uberlândia,

com vistas à ocupação da Fazenda Tangará. Depois de algumas reuniões, cerca

de 450 famílias ocuparam, no início da madrugada do dia 23 de agosto de 1999, a

área em disputa. O processo foi, desde o início, conturbado.

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Tinha muita polícia e jagunço. Quarenta e oito horas depois o Armando Ferro (juiz) soltou

a liminar de despejo. Mesmo assim conseguimo enrolar na Tangará durante 20 dias.

Então saímos da Tangará. Eles pensavam que a gente ía embora, só que nós ocupamo a

Fazenda Carajás (acampado).

Conforme relata Fonseca:

No segundo dia (da ocupação da Tangará) houve um cerco na estrada por fazendeiros e polícia com o intuito de impedir a entrada de alimentos e novas famílias. Em massa, os trabalhadores de dentro e de fora da fazenda, obrigaram os bloqueadores ao recuo, garantindo domínio sobre o território. O acampamento passou a ser vigiado 24 horas por dia pela Polícia. Resistiram por alguns dias à reintegração de posse, até que numa “surpreendente operação” (Jornal Correio, 12 de setembro de 1999), na madrugada chuvosa de 10 de setembro (MLST, 1999), os trabalhadores, a pé (14 km), de carro, caminhão e carroças, deslocam todo o acampamento, ocupando a Fazenda Carajás (mais de 5 mil ha). Desta vez, a ira dos fazendeiros foi ainda maior, conseguindo pela manhã, impedir a entrada de trabalhadores retardatários da caminhada. Os sem-terra montaram acampamento, foram impedidos de sair da fazenda. “Foi uma noite de terror”, denunciou o MLST em nota à imprensa (11 de setembro). Na primeira noite no novo acampamento, fazendeiros, pistoleiros e seguranças privados, com a conivência da polícia, utilizaram, novamente, a tática dos tiros com armas pesadas, bombas de efeito moral e rojões (FONSECA, 2001, p.119).

A Fazenda Carajás, de propriedade da SEAP – Sociedade de Estímulos

Agropecuários –, também era considerada improdutiva segundo laudo do INCRA,

mas a sua reintegração foi imediata, tendo os sem-terra desocupado a área

poucos dias depois de sua ocupação, em 14 de setembro de 1999. Saindo da

Carajás, os sem-terra foram para a beira da estrada, onde ficaram acampados

durante seis meses. Neste período, houve muita desistência e foi necessário

recomeçar o trabalho de base para massificar o acampamento. Com o

acampamento reforçado, cerca de 700 famílias de sem-terra reocuparam, no dia

13 de março de 2000, a Fazenda Tangará.

Neste retorno, no entanto, a repressão foi mais violenta. A liminar de

reintegração de posse foi apresentada no mesmo dia, mas as famílias resistiram.

Em 25 de abril de 2000, soldados do Grupo de Apoio Tático Especial (GATE) da

Polícia Militar entraram na área, com o objetivo de efetivar o mandado de

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reintegração. “Veio o ônibus do GATT, com helicóptero e tudo, o povo

desesperado, cachorros, tiros nos pés de companheiros...” (acampado). Durante o

confronto, os sem-terra atearam fogo numa viatura da polícia militar.

Tinha policiais gritando na entrada que ía matar sem-terra, pistoleiro contratado... Aí o

Itamar (governador de Minas Gerais na época) entrou na fogueira e virou uma briga entre

o estado e o governo federal4. Mas a gente resistiu e conseguiu ficá na área. Logo depois

foi ocupada a sede da fazenda. Nesse momento veio o juiz agrário pra negociar. E a

negociação se deu em cima de uma área pra plantação. Aí a sede foi liberada, porque a

gente receberia uma área pra plantar. Só que o acordo não foi cumprido. Daí no dia 22 de

fevereiro de 2001 a gente reocupou a sede. Aí a gente fechou a fazenda, parou todas as

atividade mesmo, não deixamo mais os empregado ficá aqui, e usamo o maquinário todo

que tinha lá pra trabalhá a terra e produzir mesmo (acampado).

O relato acima nos mostra que as famílias conseguiram resistir à

reintegração de posse e permanecer na área ocupada. Naturalmente, no entanto,

este não se transformou em um processo tranqüilo. Ao contrário, são inúmeros os

conflitos que continuaram a compor a história do acampamento Tangará. A

repressão assumiu também a forma de criminalização das lideranças do MLST.

Onze integrantes do movimento chegaram a ser presos por transporte de madeira

e, ainda hoje, estão sendo processados pelo ocorrido. Algumas lideranças

também sofreram processo judicial por formação de quadrilha. Por outro lado,

mobilizações e atos públicos foram realizados freqüentemente na cidade de

Uberlândia, com o intuito de pressionar o poder público e divulgar a luta dos sem-

terra. Também a imprensa cobriu toda a história da luta da Fazenda Tangará.

Apesar de notadamente parcial, a cobertura midiática contribuiu para a forte

repercussão do acampamento na região. “Em novembro de 2001, após 20 meses

da segunda ocupação e após 9 meses da tomada e paralisação da empresa, com

o descumprimento da liminar de reintegração de posse, entre a pressão dos

ruralistas e dos sem-terra, o proprietário anuncia a disposição de negociar com o 4 O governador do Estado à época, Itamar Franco, ao contrário do Governo Federal de Fernando Henrique Cardoso, adotava uma postura mais cautelosa, de evitar enfrentamentos ou uso de violência nas ações de reintegração de posse.

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INCRA todo o imóvel” (Fonseca, 2001, p.121). O decreto de desapropriação é

emitido em maio de 2002.

Internamente, dois “rachas” deixaram marcas profundas na história do

acampamento. O primeiro se deu na cúpula do movimento, quando as lideranças

locais romperam com o grupo do Bruno Maranhão, que coordenava o MLST

(Movimento de Libertação dos Sem-Terra) em nível nacional. A regional do

Triângulo Mineiro, coordenada por João Batista, Marilda e Barroso, respondia pela

maior base do movimento em nível nacional e praticamente toda ela permaneceu

ligada a estas lideranças regionais. De qualquer maneira, não foi só o MLST

nacional que sofreu conseqüências negativas. A ruptura gerou um forte desgaste,

inclusive com repercussão na mídia, entre os dois grupos e, especialmente, sob a

forma de denúncias5. Com o racha, o movimento passou a se denominar MLST de

Luta, atual MTL – Movimento Terra, Trabalho e Liberdade. Mitidiero Junior, ao

refletir sobre o conflito vivenciado por estes movimentos – visivelmente retraídos

por conta do racha –, atenta para a “possibilidade de enfraquecimento da luta

organizada pela terra como resultado das sucessivas fragmentações, na medida

que os movimentos „rachados‟ passam a ter como inimigo o seu igual”

(MITIDIERO JUNIOR, 2002, p.301).

O segundo “racha” se deu no âmbito do acampamento. De acordo com os

depoimentos, o problema central ocorreu pelas discussões acerca da destinação

dos eucaliptos da área, que foram destinados pelo INCRA aos futuros assentados.

Foi a questão do eucalipto. Quem tinha menos informação achou que a terra era dele. O

movimento acha que o dinheiro dos eucaliptos deve ir para a comunidade, para ser usado

na comunidade da Fazenda Tangará. Mas cada um quer o seu dinheiro no bolso

(acampado).

5 “As denúncias referidas a João Batista pelo MLST Nacional o acusavam de desvio de verbas e autoritarismo na condução do movimento de luta pela terra (...) As denúncias referentes a Bruno Maranhão pelo MLST de Luta buscaram rotular o MLST nacional como um movimento pelego, comprometido com o governo (FHC)” (Mitidiero Junior, 2002, p.274 e 275). Obs: O autor realizou um extenso trabalho sobre o MLST. Para maiores informações sobre o movimento, consultar sua obra.

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A proposta do MTL é que os recursos provenientes dos eucaliptos sejam

utilizados nas áreas e nos projetos comuns do assentamento. Além disso, a

orientação, de uma forma geral, é que sejam constituídas áreas coletivas, bem

como seja efetivada a Empresa Agrícola Comunitária.

O movimento tentou fazer um acordo e assentar 250 famílias, onde uma parte menor

seria individual e outra seria coletiva, mas os outros não abriram mão dos eucaliptos e

dos cinco alqueires. Para eles o movimento estava “passando a perna” no povo. No

primeiro racha o povo ligado à PO (Pastoral Operária) saiu (expulsos) e acampou na

prefeitura. Depois de um tempo voltaram e tomaram o acampamento. A turma do

movimento ainda ficou um pouco no acampamento, sofrendo humilhações, mas depois

saímos e fomos para a parte de cima da Tangará. Eles ameaçavam de expulsar a gente o

tempo todo, aí quando a gente saiu, eles tavam achando que a gente ía embora, mas a

gente veio foi ocupar essa área aqui, que já tinha uns companhero nosso esperando pra

ajudar. Mas a gente saiu lá de baixo achando que tinha uns 80 companhero aqui em

cima. Chegou só tinha 20, aí deu muito medo, mas no final deu certo. No começo foi

muito difícil. Começando tudo de novo, tudo do zero, montar barraco... Era só chuva e

lama (acampado).

Os conflitos entre o grupo “do MTL” e o que “rachou” com o movimento

trouxeram fortes rupturas nos trabalhos em construção, levando uma parte das

famílias acampadas a abandonarem a área e reocuparem outra, na mesma

propriedade, cerca de 10 km distante. Os depoimentos dos acampados ligados ao

movimento têm este como o momento mais difícil do acampamento:

Foi um momento muito difícil... Porque contra o latifundiário, contra a polícia, tudo bem, a

gente sabe quem é o inimigo, e já espera, tá preparado pra lutar. Mas com companheiro é

muito doído. A gente não espera, então a gente sofre muito mais. E nós tamo tentando

conquistar a sociedade, mas aí começa a lutar companheiro com companheiro... Isto não

é bom pra reforma agrária (acampado).

Eu era vizinho deles. Meu barraco tava pronto, a cisterna, o quintal plantado... achei que

íamo ficar. Depois começou a briga e no mesmo dia fui embora. Pensei, vou perder tudo

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que tenho aqui, mas vou acompanhar o movimento. Pensei até em ir pra cidade

(acampado).

As divergências entre as duas associações extrapolaram os limites do

acampamento, atingindo a mídia, envolvendo outros mediadores da luta pela terra

na região, dividindo opiniões e, obviamente, subtraindo esforços, enfraquecendo a

luta.

Tivemos que começar a reunir novamente com as lideranças, com o povo. Com o racha

perdemos ou adiamos alguns projetos, como o da Escola Família Agrícola, do Laticínio,

da fábrica de farinha... A briga continua até hoje pela fazenda. Mas hoje já tá decidido que

serão dois PA’s. Um lá e outro aqui. Serão assentadas 113 famílias aqui e 137 lá. Hoje

aqui no acampamento têm mais de 113 famílias. As que sobrarem vão para a Carajás

(acampado).

Como nos mostra o relato anterior, as negociações entre os grupos e o

INCRA resultaram na criação de dois Projetos de Assentamento distintos. O grupo

da área ocupada originalmente formou a AMFT –, Associação dos Moradores da

Fazenda Tangará, e as famílias ligadas ao movimento constituíram a sua própria

associação, vinculada ao MTL, com as quais esteve centrado o nosso trabalho de

campo. Atualmente, a discussão empreendida pelo movimento já está sendo

direcionada mais efetivamente para o processo produtivo que se iniciará com a

consolidação definitiva do assentamento, posto que já estão aguardando a

demarcação dos lotes. As dúvidas e as expectativas sobre o novo assentamento,

que se pretende modelo para a região, estão presentes nos relatos que nos foram

feitos.

Todos lutam juntos, mas depois que divide a terra o povo se divide. O movimento orienta

a não comprar carro velho com os créditos, a não aplicar errado o crédito que vem pra

produção... Mas foi o que aconteceu com o Rio das Pedras, com a Palma da Babilônia.

Aqui serão grupos menores e alguns serão individuais, outros na empresa comunitária.

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Mas, hoje o povo já quer procurar saber mais sobre a empresa comunitária. O movimento

está tentando levar o máximo de pessoas pra empresa comunitária (acampado).

A Tangará é a menina dos olhos do movimento. É o espelho. Então o assentamento tem

que dar certo. E se der certo somos elogiados, se não vamo “apanhar”. Com a saída da

Tangará facilita a luta nas outras áreas. O ponto de referência está na Tangará. O conflito,

a organização e a luta servem de exemplo para outras lutas. É muito sofrido, mas depois

que passa a peneira é muito bom. A luta na Tangará foi uma escola. O único problema foi

a decepção por causa do povo que não veio. As piores partes foram a luta e a decepção

com o povo (acampado).

Infelizmente muitos de nós ainda tem um pouco de capitalismo na memória (acampado).

A Empresa Agrícola Comunitária é a proposta do MTL para o processo

produtivo dentro dos assentamentos rurais. De acordo com Mitidiero Junior (2002),

as principais estratégias da EAC concentram-se na produção direta para a

população local (acabando com a figura dos atravessadores) e na construção de

uma nova consciência social entre os homens, a partir de uma gestão coletiva e

social da produção.

A empresa agrícola comunitária representa a principal proposta do MLST (atual MTL) para o início da construção de uma sociedade socialista. Seria um embrião lançado internamente à sociedade capitalista que conseqüentemente mostraria outra forma de produzir e de viver socialmente, na qual todos os indivíduos conviveriam igualmente, seja no campo social, político e econômico, respeitando as diferenças culturais (MITIDIERO JUNIOR, 2002, p.170).

As críticas do autor à EAC remetem ao fato de que esta é uma proposta

ainda muito restrita à cúpula do movimento, enquanto que a maior parte dos

militantes sequer compreende efetivamente a idéia. Este fato pode ser observado

no trecho abaixo de um depoimento de um acampado na Tangará.

Eu num sei bem o que é essa história de empresa agrícola e eu acho muito difícil

trabalhar junto. Então agora eu tô aí num grupo de produção que foi um rapaz que me

convidou, só que ele não trabalha muito não, então é difícil. Mas não é que eu não quero

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mesmo, eu quero saber direitinho o que é e vê se dá certo. Se dá certo, aí eu entro

(acampado).

Vale lembrar, ainda, que o movimento não conseguiu efetivar a Empresa

Agrícola Comunitária em nenhuma de suas áreas.

Organização social, política e produtiva do acampamento Tangará

Apesar de toda a incerteza acerca do futuro do assentamento, e do

envolvimento atual em maior ou menor grau das famílias com as atividades do

movimento, algumas formas de organização política e produtiva, no interior do

acampamento, apresentam-se como experiências importantes e alternativas aos

trabalhadores sem-terra.

A organização política tem como princípios a democratização das decisões

e a participação direta das famílias. Os acampados dividem-se em oito grupos,

sendo que cada grupo tem um coordenador e um suplente. Foram constituídas

também comissões temáticas (alimentação, animação, educação, saúde, etc). A

Comissão Central é composta pelos coordenadores de cada grupo e pelos

coordenadores das comissões. Esta forma de organização tem como objetivo

incentivar a participação de todos, ainda que esta se dê de forma bastante

diferenciada, no grau e na intensidade, bem como na vinculação ao movimento e

aos seus princípios, entre os acampados. “Vai de acordo com o interesse de cada

um. Mesmo assim, algumas pessoas trabalham nos grupos, mas não têm

consciência do que é o movimento”. “Mas temos que ter esta paciência histórica e

política com o povo, para que com o tempo entendam o que é o socialismo e o

trabalho comunitário” (acampado).

Os grupos têm um importante caráter de politização para os acampados, à

medida que tornam mais permanentes as discussões e as reflexões acerca das

mais diversas problemáticas que envolvem a sua realidade. Além disso, são

realizados periodicamente seminários internos, ou enviados representantes para

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participação em cursos externos. “Claro que tem muita coisa que precisa fazer

ainda, mas na verdade o trabalho de formação política é realizado a todo o

momento, nas reuniões, nos grupos, nos intervalos e no dia a dia mesmo...”

(acampado).

Os relatos dos acampados apontam também para o caráter educativo ou

conscientizador da vivência no processo de luta do acampamento:

“Quando iniciei no movimento vim para conseguir um pedaço de terra, mas depois isso

ficou distante. Fui me envolvendo com os problemas das pessoas. Terra nem é mais o

principal agora” (acampado).

Eu vim acreditando que iria pegar uma terra, mas depois vi que tinha a política, a

comunidade... Quando via os sem-terra na televisão achava humilhante. Hoje fico com

vergonha do que pensava antes de vir... (acampado).

Quando não fica acampado não sabe o que é o sem-terra. Agora sei que eu sou apenas

um grão de areia no meio dos outros (acampado).

A educação que temos aqui dentro é fora do comum. Aqui a gente se vigia, se policia. A

gente aprende muito mesmo, sabe? O respeito com os outros não se vê na cidade. O que

não dá valor na cidade aqui a gente dá. Respeito com as crianças, com as mães, com os

pais. A sensação que eu tenho é que nós somo muito bem cuidado. Um cuida do outro.

Tem divergências políticas e tudo, mas depois é tudo normal de novo (acampado).

Uma extensa área da propriedade já está sendo utilizada para a produção

agrícola: no mês de janeiro de 2004, a área total plantada já atinge 70 hectares da

fazenda. Uma parte da área é destinada para as famílias e os grupos de

produção. Os grupos de produção são formados por afinidade e são compostos

por 2 a 8 famílias, além de algumas que optaram em trabalhar individualmente.

Atualmente tem um grupo produtivo de mulheres (sete no total), que plantam milho

e já tem projetos de diversificar a produção.

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Há, ainda, uma área coletiva de produção, onde foram cultivados 3 mil pés

de maracujá, através de um programa de segurança alimentar apoiado pelo

estado de Minas Gerais e coordenado pela Cáritas – organização ligada à Igreja

Católica que presta assessoria a organizações de trabalhadores rurais.

Foto 3.6 - Acampada da fazenda Tangará na área coletiva de plantação de maracujá.

Autora: GOMES, R. M. Janeiro de 2004.

Além de atender à demanda da comunidade, os maracujás já colhidos

também estão sendo comercializados em sacolões e com feirantes de Uberlândia.

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Foto 3.7 - Acampado da Fazenda Tangará com produção colhida de maracujá.

Autora: GOMES, R. M. Janeiro de 2004.

Como fonte complementar de renda, o acampamento conta, desde o seu

início, com um Grupo de Artesanato, composto por 12 pessoas, sendo 10

mulheres. As peças (crochê, roupas, chapéus...) são manufaturadas,

caracterizando um alternativo de renda para as famílias envolvidas. O trabalho é

realizado e aprendido no grupo, sendo difundido no acampamento. Nas últimas

férias escolares, por exemplo, as crianças fizeram um curso com o grupo para

aprenderem as técnicas e ampliarem as atividades.

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Foto 3.8 - Produção do grupo de artesanato do acampamento Tangará. Autor: GOMES, R. M. Fevereiro de 2004.

Outro projeto já em funcionamento é o de uma emissora interna de rádio.

Há cerca de um mês, os sem-terra conseguiram realizar um sonho antigo: a

implantação de uma emissora de rádio no acampamento. Montada a partir de

sucata, e com sintonia na FM 106,7 (freqüência modulada), constitui uma rádio

comunitária, portanto sem fins lucrativos. A programação tem início às 6:30 horas

e segue até às 22:30 horas, sendo integralmente controlada pelos acampados.

Apresenta programas de música raiz, romântica, clássica e de caráter religioso

ecumênico. Atualmente são praticadas as religiões católica, espírita Kardecista e

evangélica no acampamento, todas elas tendo assegurada a mesma

disponibilidade de tempo da rádio. E tem, ainda, a programação política, de

notícias gerais, informes, de chamada para as reuniões e para as atividades do

acampamento, de mensagem entre acampados. Está em caráter experimental e

só atinge a área do acampamento, mas o objetivo é expandir o seu raio de

alcance até a cidade de Uberlândia. A avaliação é de que este meio constitui um

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importante mecanismo alternativo de comunicação, facilitando a divulgação das

atividades políticas do acampamento, de notícias e comunicados, bem como de

uma maior autonomia na socialização cultural.

Foto 3.9 - Estrutura da rádio comunitária do acampamento Tangará. Autora: GOMES, R. M. Janeiro de 2004.

As lutas pela educação sempre foram prioritárias e intensas para os

acampados. Inicialmente, com a prefeitura municipal de Uberlândia, na garantia de

vagas e transporte para as escolas públicas municipais mais próximas, e depois

com o INCRA, para implementar a Escola Família Agrícola. O projeto é baseado

na pedagogia da alternância – quinze dias de aulas práticas e teóricas em período

integral e 15 dias em casa, configurando o ensino médio técnico agrícola.

Planejada há vários anos, a partir deste ano de 2004, os alunos de 2º grau do

acampamento e da região terão a opção de concluir seus estudos na Escola

Família Agrícola, conquistada e já estruturada no interior do acampamento

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Tangará. A escola será mantida através de projetos, já tendo verba do governo

federal assegurada para os seus três primeiros anos de funcionamento.

Foto 3.10 - Escola Família Agrícola 25 de Julho, acampamento Tangará. Autora: GOMES, R. M. Janeiro de 2004.

Todo esse processo de luta, de resistência, de conquista do território e de

construção de novas formas de relações sociais, políticas e produtivas no interior

do acampamento tornou-se expressão e referência da luta pela terra na região do

Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba. Só no ano de 2003, de acordo com os arquivos

e com os depoimentos dos acampados, foram realizadas 38 ações “com

resultados”, como atos públicos, debates, marchas, entre outras formas de

mobilização. Desta luta, surgiram várias outras. Muitas ocupações posteriores

coordenadas pelo MTL são fruto da luta da Tangará e foram construídas a partir e

no interior desta.

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Enfim, toda essa situação de conflito e resistência dos acampados da

Fazenda Tangará fortaleceu e espacializou o movimento, dimensionando a luta

pela terra na região.

Algumas reflexões acerca dos acampamentos rurais de sem-terra no

Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba

De forma geral, a região estudada vem sendo marcada por uma intensa

fragmentação das lutas pela terra, com “rachas” e divisões freqüentes, e

conseqüentes dificuldades na unificação das lutas. Fato representativo desta

fragmentação é que, para além da atuação em separado do MTL e do MST na

organização de suas áreas estudadas6, ambas comportam conflitos destes

movimentos com outros grupos de sem-terra: no caso do Emiliano Zapata, com o

grupo vinculado ao MLST, que ocupou outra parte da mesma propriedade e, no

caso da Tangará, a partir do racha interno ocorrido no decorrer da fase de

acampamento. Estes processos, indicadores das contradições da espacialização

da luta pela terra, resultam num enfraquecimento das lutas, o que, no entanto, não

significa, necessariamente, inviabilização das mesmas, haja vista o aumento

constante da organização e da mobilização dos trabalhadores rurais na região.

De fato, ambos os acampamentos buscaram, desde o seu princípio, através

das lideranças dos movimentos, construir, em seu interior, componentes

corporativos e participativos mais sólidos. Corporativos, no sentido de valorizar a

importância da vinculação dos acampados com o movimento de referência.

Participativos, no sentido de envolver e comprometer todas as famílias no

processo de luta e de organização das atividades, o que pode ser observado pela

formação dos núcleos e setores, garantindo uma diretoria coletiva e uma relativa

6 Há que se afirmar que o MST e o MTL apresentam-se como movimentos distintos em seus princípios e estratégias, e por vezes encontram-se em abertos ou velados confrontos políticos. Não nos ateremos aqui a apontar as diferenças entre eles. Primeiro, porque a nossa vivência com ambos os movimentos não permitiu um aprofundamento desta reflexão. Segundo, porque a similitude em alguns dos elementos organizativos e metodológicos nos remete à possibilidade da existência de outros tipos de rivalidades – que não nos cabe analisar, e que por vezes imputam às diferenças dimensões maiores do que elas realmente têm.

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descentralização administrativa e decisória. Relativa porque, naturalmente, a

participação e o envolvimento das famílias não se dá necessariamente em graus e

medidas similares. Ao contrário, o trabalho de base, ao mesmo tempo em que é

valorizado nas falas dos coordenadores e dos próprios acampados, é um dos

maiores desafios entre os grupos. Exemplo deste processo está na questão da

forma de produção dos futuros assentados. Por razões óbvias, aí está talvez a

maior dificuldade de se garantir a organicidade dos movimentos nos

assentamentos de trabalhadores rurais. Os princípios coletivistas, tanto do MST

quanto do MTL, são por vezes sequer compreendidos efetivamente pelas famílias

acampadas, o que remete à necessidade de um maior envolvimento e uma maior

proximidade das lideranças com as bases.

De qualquer maneira, da mesma forma que no segundo capítulo deste

trabalho nos referimos a outros processos de luta que contribuíram para a

ampliação da luta pela terra na região, os dois acampamentos estudados são, ao

mesmo tempo, expressão da organização atual dos trabalhadores rurais sem-terra

e referência para o avanço das lutas.

A realidade dos acampamentos expressa processos permanentes de

aprendizado para as famílias envolvidas, através das constantes ações e reflexões

vivenciadas. As lutas constituem-se em exemplos concretos de resistência à

exploração e expropriação do trabalhador rural. A busca por formas alternativas de

organização aponta para a construção, ainda que em caráter inicial e muito repleta

de contradições, de relações mais democráticas, fundamentadas na participação

direta. Os acampamentos apontam, ainda e, essencialmente, para a construção

de novos territórios, à medida que conquistam e transformam as relações

vivenciadas nas áreas em conflito. “Na luta pela terra, acampar é determinar um

lugar e um momento transitório para transformar a realidade” (Fernandes, 2000,

p.55). Por estas questões, e para além delas, a realidade dos acampamentos

expressa, ainda, a possibilidade da valorização e da ampliação da luta pela terra,

dimensionando, espacializando e territorializando a luta pela reforma agrária.

No caso do acampamento da Tangará, essas questões ficam ainda mais

claras e fortes, à medida que todo o processo de luta e resistência já culminou na

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conquista da área. E, como afirmou Rosa Luxemburgo, “toda iniciativa nova, toda

vitória nova da luta política se transforma em poderoso impulso para a luta

econômica, porque ao mesmo tempo que defende as possibilidades exteriores

aumenta a inclinação dos trabalhadores em melhorar suas condições, seu desejo

de lutar” (Luxemburgo, 1976, p.84).

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CAPÍTULO 4

OS ASSENTAMENTOS RURAIS NO TRIÂNGULO MINEIRO/ ALTO

PARANAÍBA: a territorialização da luta pela terra

A proposta deste capítulo é discutir a realidade dos assentamentos rurais

do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba, considerando que a conquista e a (re)

construção desses territórios constituem hoje dimensão fundamental do processo

mais geral de organização camponesa, no que tange à luta pela terra no Brasil.

A ocupação, como forma de acesso à terra, é aqui compreendida “como

uma ação de resistência inerente à formação camponesa no interior do processo

contraditório de desenvolvimento do capitalismo” (FERNANDES, 2000, p.279). Os

assentamentos rurais constituem, nessa perspectiva, espaços de

reterritorialização do campesinato, à medida que “a reterritorialização (...) é a

forma encontrada pelo grupo de excluídos de reconstruir sua história, de

estabelecer novamente as relações sociais, econômicas, políticas e afetivas no

espaço que ele (re)conquistou” (SILVA, 2002, p.21).

Dessa forma, como expressão desse processo de intensificação da luta

pela terra, temos a conquista de várias áreas de assentamentos em todo o estado

de Minas Gerais, em especial a partir de meados da década de 1990, como

mostra a tabela a seguir:

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Tabela 4.1: Total de Projetos de Assentamento em Minas Gerais, por ano

Ano de criação Número de P.A.s Famílias Assentadas 1986 3 449 1987 2 113 1988 3 170 1989 2 89 1990 0 0 1991 4 162 1992 7 288 1993 0 0 1994 2 127 1995 5 305 1996 21 934 1997 26 1.591 1998 25 2.018 1999 18 760 2000 11 602 2001 9 315 2002 8 361 Total 146 8.284

Fonte: INCRA/MG. Abril de 2003. Elaboração: GOMES, R. M.

Nota-se que o primeiro assentamento de Minas Gerais data de 1986, sendo

que apenas outros 9 foram criados até o fim da década de 1980. Entre 1990 e

1995, são criados mais 18 P.A.s. Mas, é a partir de 1996 que a maior parte deles é

conquistada, fruto da intensificação das ocupações: entre 1996 e 2002, são

criados 118 assentamentos no estado. No total, foram assentadas 8.284 famílias,

número significativo, porém, bem inferior aos 600.000 que, segundo levantamento

do IBGE, corresponde ao total de famílias sem-terra, potencialmente beneficiárias

de uma reforma agrária em Minas Gerais.

Na região do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba, foram assentadas até o ano

de 2003, um total de 1.895 famílias. Os Projetos de Assentamento da região estão

apresentados nas tabelas que se seguem.

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Tabela 4.2: Projetos de Assentamento no Triângulo Mineiro – 2003

Município Projeto de Assentamento

Ano de criação

Movimento Famílias Área (ha)

Limeira do Oeste Iturama 1986 Fetaemg 131 2.492,00 Sta. Vitória Cruz e Macaúbas 1988 Fetaemg 35 713,00 Campo Florido Nova Santo

Inácio/Ranchinho 1994 MLST 115 3.958,00

Gurinhatã Vargem do Touro 1996 MLST 21 615,00 Sta. Vitória Nova Sta. Inez 1996 Fetaemg 26 658,00 Sta. Vitória Porto Feliz 1996 Fetaemg 17 491,00 União de Minas Pontal do Arantes 1997 Fetaemg 96 2.448,83 Campina Verde Campo Belo 1997 Fetaemg 170 4.975,25 Sta. Vitória Paulo Freire 1998 MST 45 1.537,20 Uberlândia Rio das Pedras 1998 MLST 87 1.141,86 Ituiutaba Engenho da Serra 1998 MLST 60 2.574,10 Campina Verde Primavera 1998 Fetaemg 36 881,78 Araguari Bom Jardim 1999 Fetaemg 44 833,99 Campina Verde S. José da Boa Vista 1999 MLST 40 1.113,60 Ituitaba Divisa 1999 Fetaemg 27 1.161,60 Ituiutaba Chico Mendes 1999 Fetaemg 59 1.505,45 Uberlândia Nova Palma 1999 MLST 15 455,92 Uberlândia Palma da Babilônia 1999 MLST 13 458,32 Uberlândia Zumbi dos Palmares 1999 MST 22 492,04 Araguari Ezequias dos Reis 2000 Fetaemg 58 2.208,20 São Francisco Sales

Queixada 2000 Fetaemg 13 411,22

Campina Verde Nova São José da Boa Vista

2001 MLST 28 963,73

Ituiutaba Douradinho 2001 Fetaemg 17 553,60 Uberaba Maringá/

Monte Castelo 2001 MLST 60 2.021,79

Gurinhatã Nova Rosada 2001 MLST 64 2.069,33 Santa Vitória Nova Jubran 2002 Fetaemg 148 5.444,92 São Francisco Sales

Boa Vista 2002 Fetaemg 16 464,64

Fonte: INCRA/MG e FETAEMG. Elaboração: Gomes, R. M. Atualização: abril de 2003.

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195

Tabela 4.3 – Projetos de Assentamento no Alto Paranaíba

Município Projeto de Assentamento

Ano de criação

Movimento Famílias Área (ha)

Perdizes Guariba 1996 STR Araxá 42 1.045,00 Perdizes Sta. Luzia 1996 STR Araxá 50 1.364,00 Tapira Nova Bom Jardim 1996 STR Araxá 20 1.099,00 Perdizes Da mata 1997 STR Araxá 33 1.133,95 Rio Paranaíba Gleba 119 A 1997 Fetaemg 14 255,80 Ibiá Morro Alto 1998 STR Araxá 40 1.356,28 Ibiá Sto. Antônio II 1998 STR Araxá 50 1.768,88 Ibiá Treze de maio 1998 STR Araxá 10 392,02 Sacramento Olhos D'água 1998 MST 39 1.512,00 Coromandel Cachoeira Dourada 1998 Fetaemg 12 572,63 Ibiá Myrian 1999 STR Araxá 15 578,38 Nova Ponte Itambé/Airão 1999 Fetaemg 11 434,43 Patrocínio São Pedro 1999 Fetaemg 41 894,03 Serra do Salitre Quebra-Anzol 1999 Fetaemg 37 1.284,63 Rio Paranaíba Lago Azul 2000 Fetaemg 18 578,81

Fonte: INCRA/MG e FETAEMG. Elaboração: Gomes, R. M. Atualização: abril de 2003.

Quanto às tabelas 4.2 e 4.3, faz-se necessário observar os seguintes

pontos:

1o) Os movimentos relacionados são aqueles que coordenaram ou

assessoraram os processos de ocupação das áreas citadas, não estando

necessariamente ainda hoje no acompanhamento das famílias.

2o) O MLST aqui mencionado corresponde ao grupo que posteriormente

constituiu o MLST de Luta e que hoje está vinculado ao MTL. Dessa forma,

entende-se que esses assentamentos estiveram ou permanecem ligados ao que

constitui hoje o MTL.

3o) Os assentamentos ligados à FETAEMG são aqueles conquistados com

o apoio dos STRs. O STR de Araxá é apresentado à parte, em todas as listagens

disponíveis, considerando as suas especificidades, já citadas neste trabalho,

inclusive no que se refere à sua orientação cutista.

De acordo com as tabelas apresentadas, o primeiro assentamento criado,

na região, data de 1986, mas, da mesma forma que no resto do estado, é, a partir

de 1996, que a maior parte deles será conquistada, o que simboliza os avanços da

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luta social no campo, marcados, justamente, pela ampliação das ocupações,

iniciadas nas pequenas cidades do oeste do Triângulo Mineiro (como Iturama e

Santa Vitória) e, posteriormente, intensificando-se no leste desta região, em

direção às cidades maiores (como Ituiutaba, Uberlândia, Uberaba e Araguari) e no

Alto Paranaíba (como Araxá, Ibiá e Perdizes). Ressalte-se, aqui, que a expansão

da luta se deu, em boa medida, através dos mesmos atores e a partir de

determinadas ações que repercutiram em toda a região.

Os dados, no entanto, mostram que os assentamentos na região, de forma

geral, não atingem as maiores propriedades, constituindo-se, na maioria, em áreas

relativamente pequenas, que possibilitam a destinação de lotes a um número

reduzido de famílias. No Triângulo Mineiro, de um total de 27 assentamentos, 6

possuem menos de 20 famílias assentadas; 10 agrupam entre 20 e 50 famílias; 7

entre 51 e 100 famílias; e apenas em 4 foi possível o parcelamento em mais de

100 lotes. No Alto Paranaíba, a situação é ainda mais complicada: as maiores

áreas comportaram, no máximo, 50 famílias, sendo que, dos 15 P.A.s, 7 tem

menos de 20 famílias assentadas. Aliás, as terras mais extensas são normalmente

aquelas conquistadas pelos conflitos mais duradouros, como os das Fazendas

Jubran e de Campo Florido, cujas lutas de conquista se estenderam por 5 anos.

Além do número reduzido de famílias atendidas, disso resulta que a área

total reformada é bem inferior às possibilidades e às necessidades da região.

Tabela 4.4: Total de Projetos de Assentamentos, Famílias Assentadas e Áreas Utilizadas – Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – 2003

Projetos de Assentamento

Área total dos assentamentos (há)

Famílias Assentadas

Triângulo Mineiro 27 42.644,37 1.463 Alto Paranaíba 15 14.269,84 432 Total 42 56.914,21 1.895 Elaboração: Gomes, R. M. Atualização: abril de 2003.

De acordo com a tabela anterior, os 42 assentamentos da região

correspondem a uma área total de 56.914,21 ha. Para se ter uma idéia, como já

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foi citado neste trabalho, somente no PRODECER foram adquiridas 70.000 ha no

cerrado mineiro para a implantação dos projetos. O PADAP atingiu uma área de

60.000 ha; o POLOCENTRO, de 248.410 ha; e o PCI, de 88.600 ha, distribuídas

entre o Triângulo Mineiro e o Alto Paranaíba. Em outras palavras, o total de áreas

disponibilizadas para a criação de assentamentos rurais corresponde apenas a

12% dos cerca de 467 mil hectares atingidos, nos anos 1970, pelos projetos

governamentais de modernização do cerrado.

Da mesma forma, considerando todos os P.A.s de Minas Gerais, a área

total desapropriada é de 455 mil ha. No entanto, ainda segundo o INCRA, mais de

6 milhões de hectares constituem áreas do estado que estão distribuídas em

propriedades que possuem mais de 2000 ha. Os latifúndios ocupam, assim, mais

de 10% das áreas do estado, que totalizam quase 59 milhões de hectares.

Isto significa que a política de assentamentos rurais que vem sendo

realizada está bem distante de um efetivo processo de reforma agrária. Como em

todo o território nacional, ela é fruto da pressão realizada pelos movimentos

organizados de luta pela terra. Nesse sentido há que se considerar a importância

que a conquista desses territórios representa para a luta mais ampla pela reforma

agrária. A perspectiva aqui utilizada é a de que a conquista da terra redimensiona

as experiências, as práticas e as estratégias de luta, aumentando o poder de

organização e de pressão dos sem-terra, bem como passa a apresentar novos

desafios que, postos em ação e reflexão, possibilitam a construção de projetos

para além da chegada na terra, que envolvem aí a permanência do camponês.

Conforme Guimarães, “à medida que as lutas desencadeadas por tais movimentos

avançam, o espaço rural brasileiro, marcado pela concentração fundiária e pela

espoliação capitalista excludente, vai sendo, paulatinamente, reterritorializado,

abrindo perspectivas para novas territorialidades (...), para a conquista de novos

territórios” (GUIMARÃES, 2002, p.13). Os assentamentos rurais conquistados são,

assim, partes integrantes e fundamentais desse processo de luta, e é sobre estes

territórios que buscaremos refletir neste capítulo.

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Utilizamos aqui, parte da discussão teórica que tem sido empreendida

acerca do tema, por alguns estudiosos da questão agrária no Brasil, bem como de

pesquisas acadêmicas realizadas em algumas áreas de assentamento na região.

Realizamos também uma pesquisa de campo na região estudada, que consistiu

de várias visitas, em que eram realizadas reuniões e conversas informais com os

assentados, em projetos do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba, com atenção

especial para o assentamento Paulo Freire, em Santa Vitória, ao qual faremos

referência no final do capítulo. Não se trata aqui de uma investigação descritiva da

totalidade dos processos em curso nestas áreas. O nosso intuito, neste trabalho,

foi o de levantar algumas questões, entre aquelas que se apresentaram

recorrentes e relevantes, do ponto de vista da organização – tanto social e política

quanto produtiva – dos trabalhadores rurais nas áreas de assentamento. Estas

visitas nos serviram de base e referência concretas para as análises e reflexões

que serão aqui apresentadas.

É fato que a criação dos projetos de assentamentos rurais no Brasil vem

recebendo tratamento especializado pelos estudos acadêmicos e programas

governamentais vinculados à questão agrária. Isto porque, mesmo sendo, ainda,

bastante tímidos os números de famílias beneficiadas e de terras reaproveitadas,

os resultados econômicos, políticos e sociais dos projetos interferem

sobremaneira no debate acerca da importância e das medidas necessárias em um

programa de reforma agrária no Brasil hoje, bem como na dinâmica da

organização dos trabalhadores rurais na luta pela terra. Como sugere Fonseca, na

região estudada, inclusive pela sua localização geográfica, pela sua “importância

política e econômica no cenário nacional e por aqui estar instalado uns dos

principais pólos do complexo agroindustrial do país, o sucesso desses

assentamentos, para demonstrar a viabilidade da reforma agrária, torna-se ainda

mais desafiador” (FONSECA, 2001, p.13).

Faz-se relevante, para este estudo, de início, caracterizarmos o termo

“assentamento rural”, da forma como aqui estará sendo utilizado.

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De maneira geral, os assentamentos rurais são comumente associados a

políticas governamentais que visam ao reordenamento do uso da terra em

benefício de trabalhadores rurais com pouca terra ou sem terra, remetendo à

fixação destes na agricultura (BERGAMASCO E NORDER, 1999).

Entretanto, mesmo aparentemente dotado de conteúdo evidente, para

autores como Esterci et alli, este termo – assentamento - é alvo de constantes e

importantes resignificações.

Para Andrade et alli (1989), por exemplo, o termo „assentamento’ parece ter surgido no âmbito da burocracia estatal, e refere-se à diversas etapas da ação do Estado ao visar à ordenação ou reordenação dos recursos fundiários. (...) Passando ao Estado toda a iniciativa, as populações pensadas como „beneficiárias’ dessas ações, seriam destituídas de seu caráter ativo. (...) Outros autores, porém, ao tomarem os próprios movimentos de luta por terra como ponto de partida, ressaltam o fato de que, ao assumirem esses termos, os trabalhadores, através de sua ação política, os vão modificando e acrescentando outros conteúdos associados aos processos de luta em que se encontram envolvidos (ESTERCI et alli, 1992, p. 5).

De acordo com essa perspectiva, os trabalhadores reinterpretam noções

como „assentado’ e „assentamento’. Nesse sentido, e da forma como é empregado

neste trabalho, „assentamento’ aparece como resultado das ações de conquista e

ponto de partida para novas frentes de luta, num caráter dinâmico e onde os

trabalhadores rurais assumem a posição central; como território conquistado e (re)

construído sob novas formas de relações sociais, políticas e produtivas.

Essa linha de análise se justifica pelo fato de que os assentamentos rurais

aqui tratados são aqueles ligados a organizações de trabalhadores rurais em luta

pela terra, e que, não por acaso, constituem-se hoje a grande maioria e são

centrais no debate ligado à reforma agrária.

Existem hoje, no Brasil, inúmeros projetos de assentamentos rurais,

distribuídos por várias regiões, ainda que não uniformemente. A partir da revisão

em alguns trabalhos sobre o tema, é possível perceber que as condições de luta e

de constituição desses territórios aparecem sob múltiplas formas, caracterizadas

cada uma por processos históricos específicos.

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Num primeiro momento da trajetória dos assentamentos, encontra-se o

histórico da região onde se localizam e dos conflitos que lhes deram origem.

“Nesse processo, geram-se lideranças, constroem-se alianças e oposições,

produzem-se solidariedades e identidades” (LEITE, 2000, p.94). Além das

variadas origens dos assentamentos, também os demandantes de terra se

apresentam sob várias formas – assalariados, parceiros, posseiros, pequenos

produtores com dificuldades, seringueiros, etc.

No caso do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba, o avanço da luta pela terra

está diretamente relacionado ao processo de modernização conservadora,

implementado com forte intensidade na região a partir da década de 1970. A

precarização das condições de vida e trabalho agravava as tensões sociais no

campo, à medida que os trabalhadores rurais buscam romper com a (ir)

racionalidade do desenvolvimento capitalista e superar a situação de exploração e

expropriação a que são por ela submetidos.

A história de vida dos assentados, nos projetos de assentamento da região,

configura, na maior parte dos casos, raízes essencialmente rurais, somadas a

experiências urbanas frente a esta situação vivenciada de exploração e

expropriação no campo. Esta situação pode ser observada, por exemplo, no

estudo empreendido por Guimarães acerca da origem das famílias assentadas no

P.A. Nova Santo Inácio Ranchinho, localizado no Pontal do Triângulo:

Entrecortada por interrupções e frases curtas, a história de vida dos trabalhadores sem-terra é relembrada como retalhos vividos por famílias migrantes com raízes no campo, em diferentes locais (...). Nos campos, nas roças, vivendo como parceiros, arrendatários ou agregados, homens, mulheres, jovens e crianças faziam um pouco de tudo. Plantavam, desmatavam regiões, criavam animais, arrendavam terras, eram capatazes ou empregados permanentes. A vida de perambulação afetava os antigos parceiros, ora vivendo numa fazenda, ora mudando-se para outra. A produção para subsistência era ameaçada pela permanente exigência de retirada da terra lavrada concebida, ou mesmo, arrendada pelos fazendeiros (...). Ao serem expropriados da terra, por não encontrarem mais a oportunidade de trabalhar como parceiros ou arrendatários, os trabalhadores migraram para as cidades, vivendo nos cinturões de pobreza, formando uma massa de sem-terra, mais conhecidos como bóias-frias (GUIMARÃES, 2002, p.50 e 51).

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Algumas áreas afetadas pela modernização chegaram a atrair, em seus

períodos iniciais, muitos migrantes de outros estados ou de outras regiões de

Minas Gerais, gerando postos de trabalho que, posteriormente, desapareceram,

frente à decadência das áreas ou à intensificação da mecanização. No Alto

Paranaíba, por exemplo, localizam-se grandes áreas produtivas de café,

impulsionadas, no período de modernização, nas décadas de 1970 e 80. A

expansão da cafeicultura, bem como de culturas temporárias como o tomate, o

feijão, o alho e a cenoura, que também necessitam de trabalhadores, no período

de colheita, explicam o crescimento da mão de obra temporária, nesta região,

durante esse período. Inicialmente, vieram trabalhadores, em especial da região

Sul, e depois do Norte de Minas e do Nordeste. Esta migração é refletida, por

exemplo, na origem das famílias do assentamento Nova Bom Jardim, localizado

no Alto Paranaíba: “Parte considerável das famílias do assentamento saiu do

Norte mineiro para trabalhar na colheita de café em Patrocínio e, na segunda

metade da década de 1990, transformou-se em trabalhadores excluídos das

lavouras do município” (SILVA, 2002, p.41). Também a expansão da produção de

cana, no Pontal do Triângulo, atraiu inúmeras famílias do Nordeste, especialmente

da Bahia que, atualmente, com o processo de mecanização das lavouras,

engrossam a luta pela reforma agrária.

De uma forma geral, as análises mostram que, nos municípios menores, de

maior influência rural/ latifundiária, como entre aqueles do Pontal do Triângulo e

do Alto Paranaíba, a origem rural dos acampados e assentados é mais forte,

sendo que a maior parte destes possuía, como ocupação anterior, atividades

ligadas ao campo, ainda que já morando nas cidades. No caso das cidades

maiores, especialmente em Uberlândia, conforme foi apresentado no capítulo

anterior, os sem-terra já possuem um forte perfil urbano, já que, além da moradia,

as atividades de trabalho anteriores também vinculavam-se a postos de trabalho

urbanos, ainda que as origens rurais estejam presentes nas histórias de vida da

maioria. Vincula-se a este processo a própria forma de atuação dos mediadores

da luta pela terra, à medida que “há fortes indicações de que, nessas áreas

(menores), há uma penetração maior da FETAEMG e seus filiados, enquanto nas

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cidades pólo como Uberlândia, a presença dos movimentos sociais é mais visível”

(PCT/ INCRA/ FAO, 2001, p.55). Conforme um representante da FETAEMG:

Os assentamentos ligados à FETAEMG na sua maioria, na sua maioria não, quase todos,

são coordenados pelos sindicatos, e se é coordenado pelos sindicato, são normalmente

trabalhadores sindicalizado, que trabalha no campo mesmo. E... isso não significa que

dentro dos nossos assentamento também... não tenha, na questão dos trabalhadores

que, por motivos passados, né ligado a essa estrutura econômica que o país adotou ao

longo dos anos foram expulsos do meio rural, mas tem origem, tem raízes de trabalhador

rural, e que ás vezes hoje, depois de vim pra cidade, dá cabeçada, tenta um serviço aqui,

tenta um serviço ali, e acaba, no fim, ficando desempregado. (...) Mas os assentado mais

ligado à FETAEMG tem realmente mais ligação nesse sentido momentâneo é porque

realmente eles são ligado ao sindicato. Então são pequeno produtor, são assalariado,

mas tem também alguns que já foi trabalhador rural no passado, ou o pai era, e que hoje

tava em outra profissão, mas que ta desempregado e tem sonho de voltar pra sua origem,

voltar pro campo. E nos outro movimento, como ele trabalha mais dentro da cidade, então

eles acabam pegando muito desses trabalhadores, que ultimamente já não ta ligado ao

meio rural, mas que tá tentando voltar a sua origem.

Um outro ponto fundamental para a caracterização dos assentamentos está

no processo de conquista da terra, envolvendo as formas de organização e

mobilização social empreendidas pelos trabalhadores rurais e pelos mediadores

envolvidos no processo de luta pela terra. Insere-se aqui a importância da

ocupação e da vivência do acampamento como forma de consolidação das

relações sociais que se mostrarão presentes na (re) construção do território,

discussão esta que realizamos no terceiro capítulo deste trabalho.

Sem desconsiderar essa diversidade, é possível, por outro lado, pensar

em condicionantes estruturais, traduzidas em marcas presentes nos

assentamentos rurais de uma forma geral, o que pode ser observado, em diversos

estudos, pela existência de relevantes pontos comuns na constituição desses

territórios.

Apesar de suas múltiplas origens, eles representam, certamente, uma

resistência ao processo de separação entre o trabalhador rural e a propriedade ou

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uso da terra. Dentro da mesma perspectiva, a preexistência de conflitos sociais e

de uma intensa mobilização política dos trabalhadores também são marcas

comuns nos diversos tipos de assentamentos.

Segundo Leite:

O importante a ressaltar é que, apesar da diferenciação dos programas governamentais que foram levados a atuar em situações e com instrumentos diversos, e mantida a pluralidade dos processos e das lutas por terra no país, existe hoje um significativo segmento social, localizado nos assentamentos rurais, que dialoga com o Estado e com a sociedade de forma específica e direcionada, conseguindo para além das marchas e contramarchas políticas, consolidar um acúmulo de experiência e conquistas inquestionáveis e, até certo ponto, irreversíveis. (LEITE, 2000, p.41)

De acordo com pesquisa realizada pela FAO, em 1992, as estratégias

visando à produção e ao aperfeiçoamento de seu modo de vida garantem ao

assentado uma renda média superior à de qualquer categoria de trabalhadores do

campo.

Os dados apresentados na Tabela 4.5 contribuem para a defesa da

viabilidade sócio-econômica dos assentamentos e da sua eficácia para combater a

miséria no campo.

Tabela 4.5 – Alguns Indicativos sócio-econômicos dos assentamentos – 1992

REGIÃO RENDA FAMILIAR (em salário

mínimo)

PORCENTAGEM DA

CAPITALIZAÇÃO (com recursos próprios)

MORTALIDADE INFANTIL (por mil

nascidos)

Norte 4,18 189 72 Nordeste 2,33 48 58 Centro-Oeste 3,85 88 29 Sudeste 4,13 96 0 Sul 5,62 217 0 Brasil 3,70 127 50 Fonte: FAO/Mara (Projeto BR 87/022 – dezembro/92). In: STÉDILE, 1997, p.40

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De acordo com a análise de Stédile:

verifica-se que, em média, as famílias assentadas possuem uma renda mensal equivalente a 3,7 salários mínimos, muito superior a de um trabalhador sem-terra, que está em torno de 0,7 do salário mínimo. O patrimônio dos assentados, medido pelo capital imobilizado (sem o valor da terra) cresce em média 206%. Entre os indicadores sociais, o mais significativo é o da mortalidade infantil. Nos assentamentos, reduziu-se à metade da média nacional (STÉDILE, 1997, p. 40).

Ainda assim, naturalmente, a baixa renda é tida pelos assentados da região

pesquisada como um dos maiores problemas de sobrevivência no assentamento,

fruto das dificuldades produtivas com que se deparam1. A origem da renda está

essencialmente na exploração de diferentes culturas (mandioca, melancia,

pimenta, milho, abacaxi, etc) e criações (galinha caipira, frango, suínos, gado de

leite e de corte), sendo a pecuária leiteira a principal atividade destinada ao

mercado e a principal fonte de renda em todos os assentamentos. Em muitos

casos, no entanto, a renda é acrescida por diárias de trabalho na área agrícola,

aluguel de pastagens, arrendamento da terra, entre outros, sem contar com a

importante contribuição de pensões e aposentadorias na sustentação de muitas

famílias. Em pesquisa realizada no assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho,

situado no município de Campo Florido (Triângulo Mineiro), Nomura calculou em

2,8 salários mínimos a renda média mensal dos assentados. Apesar de inferior à

renda média nacional das famílias assentadas, apresentada na tabela anterior,

faz-se importante pontuar o seguinte:

se for analisada a viabilidade econômica do assentamento por meio da eficiência pelo custo de oportunidade do trabalho, pode-se concluir que o assentamento representa uma melhora de vida significativa, pois a situação de emprego anterior, na grande maioria dos casos (60%), a ocupação era de subemprego, isto é, trabalhadores temporários na agricultura. Em 20% dos casos, os assentados eram arrendatários ou meeiros, em 16% dos casos eram trabalhadores urbanos (pedreiro, professor, proprietário de máquina de arroz) e em apenas 4% dos casos eram proprietários de terras (NOMURA, 2001, p.75).

1 Apesar do nosso estudo não ter tido a pretensão de mensurar a renda das famílias, esta é

notavelmente inferior às suas necessidades.

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Tais reflexões mostram que resultados positivos nos assentamentos,

apesar de precários e ainda parcos, e mesmo frente a uma série de obstáculos,

podem ser percebidos. Além disso, como enfatiza Bergamasco e Norder, esses

assentamentos possuem “um valor estratégico, na medida em que fornecem

elementos para uma avaliação da pertinência da proposta de reforma agrária e da

reestruturação da propriedade fundiária no Brasil” (BERGAMASCO e NORDER,

1996, p.9).

Sobre os impactos locais dos assentamentos rurais

Os assentamentos rurais indicam, ainda, a presença de novas

possibilidades de utilização de áreas que têm seu lugar econômico refeito em

função das novas unidades produtivas. A instalação dos projetos tende a

provocar, assim, acentuados impactos econômicos e sociais, especialmente nos

municípios menores.

Nomura, ao analisar os impactos sócio-econômicos e políticos do

assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, tanto na área reformada quanto no

município de Campo Florido, demonstrou que, por meio do assentamento, houve

um processo de melhora no padrão de vida das famílias assentadas (em termos

de renda, saúde, educação e moradia): conquistaram-se recursos (públicos e

privados) para a construção de estradas e escolas, que atenderam à população

assentada e à do município como um todo; dinamizou-se a economia do município

com um aumento do número de estabelecimentos comerciais e do volume de

bens comercializados no município, aumentando, conseqüentemente, a

arrecadação fiscal municipal; ampliou-se a inserção dos assentados nas decisões

políticas locais; e, por fim, reduziu a concentração fundiária do município de

Campo Florido (NOMURA, 2001).

A instalação do assentamento, por aumentar a demanda de insumos

agropecuários, aquece o comércio local. Além disso, contribui na oferta de

alimentos para a população do município de Campo Florido e cidades vizinhas,

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bem como na oferta de matérias-primas para agroindústrias da região, com uma

comercialização bem mais diversificada. “Na época da desapropriação, a fazenda

possuía apenas pastagens naturais, que eram alugadas para tratar de 2 mil

cabeças de gado, e mais 14 carvoeiras, que tiravam madeira da área. Os

impostos da fazenda não eram pagos há vários anos, e o laudo de vistoria

realizado pelo INCRA indicou 96% de improdutividade” (NOMURA, 2001, p.68).

Os impactos produtivos ocasionados, na área reformada, pela

implementação do assentamento tornam-se claros, ao observarmos a próxima

tabela, que mostra a situação da área, no momento da desapropriação e em 2001,

quando foi realizada a pesquisa, mostrando que houve uma dinamização na área

reformada:

Tabela 4.6: Assentamento Santo Inácio Ranchinho: dados anteriores e

posteriores à sua implementação

1994 2001 Famílias residentes 1 115 Tratores 1 5 Escolas 0 2 Bares 0 2 Lojas 0 1 Carroças 1 70 Indústrias caseiras 0 1 Telefone público 0 1 Conjunto desintegrador 1 10 Gado (cabeças) 2000 (arrendamento) 1500 Frango (cabeças) 0 3450 Suínos (cabeças) 0 265 Caprinos (cabeças) 0 22 Fonte: EMATER (Campo Florido) Adaptação de NOMURA, 2001.

Conforme Guimarães, “os trabalhadores da Nova Santo Inácio Ranchinho

reconfiguraram a terra conquistada, transformando o latifúndio improdutivo em

unidades de produção familiar, além de estabelecer aí novas maneiras de

produzir, novas relações sociais, novas formas de luta, novas sociabilidades,

enfim, um novo modo de vida” (GUIMARÃES, 2002, p.6 e 7).

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207

De acordo com Bergamasco, “mesmo com trajetórias diferenciadas, os

objetivos de permanência na terra e de retirar dela um futuro melhor são

fragmentos encontrados no horizonte dos assentados” (BERGAMASCO, 1992, p.

44).

Os estudos sobre o assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho mostram

que, do ponto de vista da qualidade de vida, todos os entrevistados acreditam que

sua situação melhorou ao serem assentados:

A melhora deu-se principalmente no que diz respeito a possuir um lugar mais tranqüilo para criar os filhos, sem violência e com boas oportunidades de educação. Outro fator citado foi a possibilidade de viver longe do estresse da cidade, sem a necessidade de pagar aluguel, com abundância de água, a possibilidade de plantar o que necessita para a alimentação da família e não precisar trabalhar mais como empregado (NOMURA, 2001, p.84).

Também para Guimarães: As entrevistas evidenciaram que as condições estruturais das famílias melhoraram substancialmente após a implantação do assentamento, seja em termos objetivos, como acesso à moradia mais digna, alimentação garantida pela produção de subsistência, acesso à educação dos filhos, seja em termos subjetivos, referentes a um novo modo de vida. Quando são interrogadas a respeito das mudanças ocorridas em suas vidas com a conquista da terra, os trabalhadores referem-se sempre à oportunidade que tiveram de engendrar uma nova temporalidade, em que administram autonomamente, o seu próprio tempo, diferente da situação vivenciada como trabalhadores bóias-frias, em que o tempo representava para eles o sacrifício, o sofrimento e o controle disciplinar (GUIMARÃES, 2002, p.121).

Um assentado do P.A. Divisa (Ituiutaba), descreveu da seguinte forma a

sua situação:

É muito gostoso um pai acordar de manhã, e ocê saber que você tem ali o seu arroz, o

seu feijão, o seu milho, o teu porco, a tua galinha, o seu leite, produzido dali, que você

tem da onde trazer o sustento, trazer o alimento pros teus filhos. E ao mesmo tempo você

tem também, sabe que você tem uma casa pra morar. Você sabe que você tem aonde

trabalhar. Você sabe que você, tendo coragem de trabalhar, é dali que você vai tirar o pão

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de cada dia, que você vai tá dando condição pro teus filho sobreviver e, se possível, de

estudar. Apesar de toda a falta de recurso que tem nos assentamento. Mesmo assim, tem

dado prova, em vários assentamento, que se o trabalhador tiver o seu pedaço de terra, e

um pouquinho de recurso, ele acaba por transformar esse país (assentado P.A. Divisa).

Em seu estudo sobre o assentamento Nova Bom Jardim, localizado em

Tapira (Alto Paranaíba), Silva afirma que “o significado singular daquele território

para as famílias assentadas é, sobretudo, por ser um lugar almejado à reprodução

social de seus grupos familiares. Quando questionadas sobre o porquê de

estarem ali, as respostas são quase unânimes: um projeto de vida melhor e o

desejo de serem livres” (SILVA, 2002, p.106). Por outro lado, há os desencantos

gerados com as limitações impostas ao assentamento que em muito inviabilizam

as formas de reprodução camponesa das famílias em seus lotes.

Nesse sentido, é importante atentar para o fato de que, como já foi dito

anteriormente, no Brasil, a implementação dos assentamentos decorre,

historicamente, não de uma política deliberada de desenvolvimento agrário, mas

de uma tentativa de atenuar a violência dos conflitos sociais no campo e a

dimensão que eles podem atingir frente à sociedade.

Criados para responder a pressões, marcados pela ausência de um planejamento prévio de localização e de mecanismos de apoio, dispersos espacialmente, muitos dos assentamentos enfrentaram situações bastante adversas no que se refere às condições de produção, formas de sociabilidade e estabilidade (LEITE E MEDEIROS, 1999, p. 11).

Disso decorre que a conquista da terra marca o ponto de partida de novas

lutas, agora relacionadas à consolidação da posse da terra, no que tange à

viabilidade produtiva e à necessária infra-estrutura social e política. Inúmeras

dificuldades são impostas aos trabalhadores rurais assentados, gerando novas

necessidades, novos desafios à luta e, por vezes, novas contradições.

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A organização produtiva nos assentamentos rurais do Triângulo Mineiro/

Alto Paranaíba

O Estado de Minas Gerais é o maior produtor de leite do país, com 28,3%

da produção nacional, e o Triângulo Mineiro compreende a maior região produtora

do estado, com aproximadamente 34,4% - o que corresponde a 1,8 bilhões de

litros/ ano (PCT/ INCRA/ FAO, 2001). Aliás, a grande maioria das áreas onde hoje

estão instalados os projetos de assentamento tinha como atividade produtiva

principal a pecuária de corte.

Na maioria dos municípios do Triângulo Mineiro, a abertura dos cerrados permitiu o estabelecimento de pastagens de capins do gênero Brachiaria e a expansão da pecuária. (...) Face às características de baixa fertilidade natural e alta erosibilidade dos solos sob ação do pastejo contínuo, imensas áreas de pastagens apresentam hoje uma baixa capacidade de suporte e em processo avançado de degradação. (...) A pecuária bovina predomina, como atividade principal, na maioria dos municípios do Triângulo Mineiro, especialmente na região do Pontal. Esta é a atividade ainda marcante em termos de ocupação do solo e se constitui na principal atividade dos grandes latifundiários. Com a injeção de créditos dos programas CONDEPE e POLOCENTRO, a atividade pecuária se expandiu nos anos 70, juntamente com o cultivo do algodão e do arroz. Com a degradação do solo e conseqüentemente das pastagens, estas fazendas vêm se tornando improdutivas, sendo o principal alvo dos movimentos sociais para transformá-las em projetos de assentamentos” (PCT/ INCRA/ FAO, 2001, p.7 e 8).

Assim, considerando as tendências regionais que levam ao

desenvolvimento da pecuária e a impossibilidade de criar gado de corte nas

pequenas parcelas dos assentamentos, a pecuária leiteira constitui a atividade

produtiva hegemônica em todos os assentamentos do Triângulo Mineiro e Alto

Paranaíba, atingindo normalmente a quase totalidade das famílias assentadas. “O

leite vem se constituindo no esteio da economia dos assentamentos do Triângulo

Mineiro. (...) É o principal alvo de investimento produtivo, não somente porque

fornece alimento diário, mas porque oferece rendimento mensal monetário, ainda

que seja pequeno” (PCT/ INCRA/ FAO, 2001, p.57). Fonseca acrescenta: A opção preferencial pelo leite, para a qual são destinados 80% dos créditos-investimentos (PROCERA/ PRONAF A) em aquisição de

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rebanho (geralmente novilhas cruzadas – Holandês/ Zebu), triturador e plantio de cana e capim elefante (alternativa para a seca), se dá em função da aptidão dos assentados pela tradição pecuária da região, da disponibilidade de pastagens das áreas desapropriadas (ainda que deficitárias), pela rentabilidade mensal da atividade (ainda que pequena) e pela liquidez dos bovinos (FONSECA, 2001, p.131).

Além disso, na região, há várias empresas e cooperativas que compram,

industrializam ou vendem o leite, tais como Nestlé, Italac, Vigor, Leco, Calu, entre

outras, das quais os assentados tornam-se fornecedores.

Foto 4.1 - Criança ordenhando em curral do projeto de assentamento Nova Jubran (Santa Vitória). Autor: Gomes, Renata M. Fevereiro de 2004.

A mandioca também é produzida, em todos os assentamentos, para

subsistência ou para fins comerciais. É o segundo maior investimento, depois do

leite. “A pouca exigência quanto à fertilidade do solo, o baixo dispêndio de mão-

de-obra e um considerável mercado consumidor (alto consumo pela população e

várias indústrias de beneficiamento na região) atraem os assentados para esta

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cultura” (FONSECA, 2001, p.130). No Alto Paranaíba, é crescente também a

produção de café para comercialização. Outros produtos são comercializados, em

menor grau, e com uma relativa variação entre os assentamentos e entre os

assentados, como maracujá, milho e pimenta.

Foto 4.2 - Fabricação de farinha de mandioca, assentamento Santa Luzia (Perdizes).

Autora: GOMES, R. M. Outubro de 2003.

Além disso, as culturas de subsistência, presentes na quase totalidade dos

lotes, constituem parte importante do consumo das famílias assentadas, através

das hortas caseiras e dos pomares, assim como a criação de suínos e aves.

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Foto 4.3 - Lote individual com pomar e horta ao lado da casa. Assentamento Pontal do Arantes (União de Minas). Autora: GOMES, R. M. Agosto de 2003.

As dificuldades no processo produtivo nos assentamentos rurais do

Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba

Os estudos acerca da liberalização da economia brasileira nos indicam que

o atual modelo econômico torna os produtores familiares cada vez mais

vulneráveis à dinâmica – diga-se de passagem, altamente excludente – do

mercado. As dificuldades por que passam os assentados, no que se refere à sua

inserção produtiva e no processo de comercialização, são, dessa forma e em certa

medida, inerentes a este modelo econômico implementado. Por outro lado, e fruto

deste mesmo processo, a ausência de políticas agrícolas e agrárias sólidas,

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destinadas especificamente à efetiva realização da reforma agrária e ao apoio aos

assentamentos, agrava ainda mais esta situação.

Os créditos fornecidos pelo governo são insuficientes para os assentados

que, em sua quase totalidade, são totalmente descapitalizados, ainda mais depois

de anos de vivência nos acampamentos. Além disso, são comuns os casos de

atraso na disponibilização dos financiamentos, com relação ao ano agrícola e seus

períodos de plantação, correção, colheita, etc, bem como de inabilidade ou falta

de vontade política das instituições financeiras para liberação dos créditos que, em

muitos casos, acabam retornando para os cofres públicos. Verifica-se, ainda, a

execução de projetos distantes da realidade do assentamento.

A burocracia e a falta de planejamento na implantação dos projetos financiados pelo programa (no caso, o PRONAF) dificultam a viabilização econômica da área. Os projetos muitas vezes são elaborados nos gabinetes do governo e não levam em conta a vocação produtiva da terra dos assentamentos e tampouco procuram saber da vocação econômica dos assentados (SILVA, 2002, p.75).

Como exemplo, Silva apresenta um caso em que o PROCERA,

posteriormente substituído pelo PRONAF, integrou os camponeses do

assentamento Nova Bom Jardim num programa de financiamento de compra de

gado leiteiro e produção de queijo que, entre outros problemas:

liberou verbas, estritamente, para a compra do rebanho e não previa em seu orçamento destinar recursos para formação do pasto. Sem um pasto formado não foi possível para essas famílias manter uma produtividade satisfatória do rebanho e, como resultado, não conseguiram obter lucros para saldarem a dívida contraída ao entrar no projeto (SILVA, 2002, p.76).

Da mesma forma, a EMATER, que teria como uma de suas funções

oferecer assistência técnica aos assentados, além de não ter condições para

realizar um trabalho constante, muitas vezes desconhece a realidade dos

assentamentos rurais, caracterizando-se como mais uma empresa difusora do

pacote tecnológico da Revolução Verde, como atesta Guimarães, em estudo

realizado no assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho: a EMATER incentivou,

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entre esses produtores, a adoção de um modelo com um uso intenso de

tecnologia moderna (mecanização e quimificação da agricultura), que exigiu

investimentos altos na aquisição de equipamentos e insumos, e que não garantiu

melhores condições de produção no assentamento (GUIMARÃES, 2001).

Em muitos casos, a área já apresenta problemas do ponto de vista do

potencial produtivo, tendo em vista a sua utilização anterior, o que exige altos

custos no preparo do solo. As condições ambientais não costumam favorecer a

produtividade nas áreas de assentamento, à medida que “a ação predatória,

historicamente associada ao modelo tecnológico aplicado pelos latifundiários

promovem a degradação dos solos, secamento das águas, assoreamento dos

rios, morte de plantas e animais, ou seja, há uma transformação do ecossistema

determinando expressivas limitações dos recursos naturais” (FONSECA, 2001,

p.129).

A falta de assistência técnica constitui um dos maiores problemas que

contribuem para o insucesso dos projetos produtivos dos assentamentos e para o

indevido investimento de recursos governamentais. Não há que se desconsiderar

o fato de que, internamente, um dos maiores problemas é o desconhecimento de

muitos assentados no manejo de determinados cultivos, bem como na criação de

gado leiteiro.

No caso específico da produção leiteira, que é a principal no interior de

todos os assentamentos da região, como já colocado, são várias as dificuldades

por que passam os assentados:

Os diagnósticos da pecuária leiteira nos assentamentos têm apontado como fatores limitantes a compra individualizada dos rebanhos que favorece o ganho dos atravessadores (catireiros) que lhes oferecem animais de baixo potencial genético; a falta de assistência técnica na implantação do sistema produtivo; o elevado intervalo entre partos; a baixa capacidade de suporte das pastagens; manejo da alimentação, da reprodução e sanitário inadequados; dificuldade gerencial dos assentados; baixo volume de produção e individualismo na produção e comercialização, facilitando a imposição do preço do leite pelos laticínios e cooperativas da região. A ausência de energia elétrica, de água (lotes secos) e de alternativas de alimentação (entresafra) e a falta de equipamentos para processar os alimentos são também elencados como fatores que favorecem a insustentabilidade do sistema. Em todos os Planos de Desenvolvimento elaborados nos

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P.As., as propostas prioritárias em relação à produção visam atacar essas debilidades: correção do solo, melhoramento das pastagens, plantio de canas e capineiras, banco de proteínas, inseminação artificial, mineralização e vacinação do rebanho, assistência técnica, melhoramento das instalações, compra coletiva de tanques de expansão (resfriador), negociação coletiva do preço do leite, industrialização dos produtos pelos assentados (FONSECA, 2001, p.131).

A todas essas dificuldades já enumeradas, somam-se aquelas relacionadas

aos problemas internos de organização dos assentados para a produção. O

individualismo tem predominado não só no aspecto produtivo, como em várias

esferas da vida social dentro dos assentamentos localizados na região do

Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba. Segundo os depoimentos obtidos no trabalho

de campo, as lideranças atribuem o individualismo a um aspecto cultural, que

caracteriza a região. Costumam associar o fato da superexploração tradicional da

região como um dos fatores de supervalorização da propriedade privada

individual.

Registre-se que 100% dos assentados do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba optaram por viver e produzir em glebas individuais. Em nenhum assentamento foram constituídos espaços de moradia e convivência como as agrovilas. Criou-se a cultura do “meu lote”, da “minha terra”, do “meu crédito”, ainda que algumas experiências isoladas de produção coletiva possam ser identificadas. (...) A histórica exclusão social provoca no sem terra o desejo natural (valor capitalista), da propriedade privada (FONSECA, 2001, p.140).

Algumas experiências coletivas já foram iniciadas em alguns

assentamentos, mas a maior parte destas não resistiu às dificuldades impostas,

especialmente no que tange à organização conjunta do trabalho:

O ponto crucial que resulta na curta duração dessas experiências é a falta de recursos substanciais para implementar os projetos, a ansiedade por resultados imediatos, e o maior dos problemas: a organização social do trabalho. O desejo de “liberdade” (nunca mais ter compromissos com horários ou “patrões”) transforma-se em descompromisso de parte dos integrantes dos grupos coletivos com as responsabilidades na produção. Surgem as reclamações de que alguns trabalham e outros não. Ademais, mensurar a produtividade do trabalho não é nada fácil (FONSECA, 2001, p.142).

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No assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, por exemplo, as

experiências coletivas implementadas em seu início não vigoraram e, hoje, o

modelo produtivo está todo fundamentado na produção individual. Conforme

Guimarães, a busca pela autonomia da produção parece ser a diretriz da

implementação do modelo de produção individual. Há, no entanto, algumas formas

de cooperação em outros momentos do processo produtivo, como na

comercialização do leite, na compra de insumos e de tratores comunitários

(GUIMARÃES, 2002). Da mesma forma, algumas experiências de cooperação têm

começado a ocorrer em outros assentamentos, especialmente na entrega do leite,

concentrando as inscrições em poucos nomes, ou na compra de resfriadores –

tanques de expansão.

Essas formas de cooperação devem ser valorizadas do ponto de vista da

construção de experiências que contribuam para a formação de novas práticas e

concepções acerca da coletivização do trabalho na região. Afinal, conforme

Fonseca, “a socialização da terra, do capital e do trabalho é um exercício

permanente” (FONSECA, 2001, p.142).

Frente a todas as dificuldades já mencionadas, a importância de se

construir formas associadas e cooperativas para viabilizar o trabalho de todos – e/

ou para potencializar seus resultados – é quase um consenso entre os

movimentos sociais envolvidos com a questão da reforma agrária. Além das

vantagens econômicas, as formas de trabalho conjunto, nos assentamentos,

trazem também vantagens sociais e políticas, no que tange ao crescimento do

poder de reivindicação e organização dos trabalhadores. O sistema cooperativo é

um dos fatores que contribuem para que a renda monetária dos assentados, em

nível nacional, seja maior que a dos agricultores isolados.

Nesse sentido, formas de associativismo e cooperativismo são agora

assumidas, em especial pelos movimentos sociais, como possibilidades abertas

aos trabalhadores organizados, “com vistas a resistirem às expropriações, à

integração desvantajosa, à subordinação às grandes empresas no mercado em

condições de competição por demais negativas” (ESTERCI et alli, 1992, p.7).

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No entanto, como já foi colocado, aí se encontra uma das maiores

limitações da organização dos trabalhadores rurais da região do Triângulo Mineiro/

Alto Paranaíba, à medida que as experiências de cooperação entre os assentados

são ainda bastante incipientes.

A frágil organicidade dos assentamentos rurais do Triângulo Mineiro/ Alto

Paranaíba

É bastante perceptível que, na implantação dos assentamentos rurais na

região pesquisada, de uma forma geral, a cultura individualista – diga-se de

passagem, componente importante da sociedade capitalista – sobressai-se,

normalmente, quando há a passagem do acampamento para o lote individual,

gerando uma significativa desarticulação da organização coletiva. Muitos

assentados acabam rompendo com a organização que dirigiu a conquista da terra,

“principalmente porque esta passa a cobrar uma postura mais comunitária do

assentado e a exigir dele compromissos com a continuidade da luta; com o não

desvio dos créditos; com a participação em reuniões; com a não venda do lote;

compromissos tão prometidos na época de acampamento” (FONSECA, 2001,

p.141). Essa ruptura se mostrou mais clara, na região estudada, dentre as

organizações coordenadas por movimentos sociais, em especial pelo MST e pelo

MTL, pelas questões expostas acima.

O assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, que constitui um símbolo da

luta pela terra na região e está na base do surgimento do atual MTL, exemplifica

este processo, de acordo com a seguinte observação de Mitidiero Junior, após

entrevistar, em 2001, os trabalhadores aí assentados:

o caminho percorrido pelo grupo de assentados apontou para a individualização de todo o processo produtivo e de toda vida social dentro do assentamento. Da mesma forma, a organicidade e a vinculação dos assentados ao movimento que os levou a conquistar a terra estava gravemente abalada qualitativamente e quantitativamente (MITIDIERO JUNIOR, 2002, p.292).

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Excetuando-se as lideranças que moram no assentamento e que

participaram da formação do atual MTL, todos os outros entrevistados declararam

não fazer parte do movimento. Da mesma forma, as entrevistas que realizou em

outro assentamento, o Rio das Pedras, em Uberlândia, cuja conquista foi

organizada por este mesmo movimento, confirmaram a falta de organicidade:

a maioria das famílias assentadas não se consideram militantes do movimento. (...) Em 4 anos de existência o assentamento Rio das Pedras não possui energia elétrica, água encanada, esgoto, etc, a Associação não consegue dar seguimento a nenhum projeto (saneamento básico e instalação da rede elétrica), e muito menos a liberação de créditos para a produção agrícola, sendo mínima a participação das famílias nas reuniões... (MITIDIERO JUNIOR, 2002, p.297).

No caso dos assentamentos ligados à FETAEMG, o que se pode perceber

é que, como a sua ação é, normalmente, bem mais superficial (ou inexiste), no

sentido de buscar um determinado tipo de organização política e produtiva junto

aos assentados, a vinculação ou não dos assentados à entidade não altera

significativamente as relações já estabelecidas. Ao contrário dos movimentos

sociais, dos quais boa parte dos assentados afirma não fazer parte, é bastante

comum um assentado afirmar a sua vinculação ao sindicato que tenha

coordenado a luta pelo assentamento, até pelo caráter tradicional da filiação do

trabalhador rural a esta entidade, ainda que o seu trabalho junto ao assentamento

seja mínimo, ou talvez, contraditoriamente, até por isso.

No caso do MSTR, o que se vê é uma distribuição mais localizada na região

das áreas de conflito e dos assentamentos, fruto do fato de que as ações

empreendidas pelo MSTR, em torno da luta pela terra, são muito mais relativas às

posturas adotadas pelos sindicatos locais que pela estrutura geral do sindicalismo

ou por orientação da FETAEMG. Assim, os entornos de Araxá e Iturama possuem

mais áreas em disputa pelo sindicalismo do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba,

devido aos seus STRs. De forma geral, a FETAEMG não se apresenta coesa em

sua direção, mas o fato é que sua luta é muito mais institucional e que respalda a

atuação de uma série de sindicatos que sequer se envolvem com a luta pela terra,

como o STR de Patrocínio, que tem como prioridade o seu trabalho com a Junta

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de Conciliação Trabalhista Intersindical, e não tem nenhum envolvimento efetivo

com a luta pela terra.

O que estamos querendo afirmar é que o próprio caráter pouco ativo da

FETAEMG – que faz com que as lutas sejam empreendidas muito localmente, de

acordo com a postura dos sindicatos – marca uma falta de unidade em torno de

determinadas lutas por parte do MSTR mineiro, dificultando, inclusive, que este

consolide sua influência nas áreas de assentamento. De acordo com Ferreira

Neto:

Isso ocorre porque, em virtude do caráter pessoal da operacionalização dessas lutas, as lideranças, por atuarem isoladamente ou com pouco suporte institucional e administrativo, enfrentam uma série de dificuldades para consolidação de todo o esforço despendido no processo de ocupação da terra, obtenção da desapropriação da terra e implementação do assentamento. De modo geral, mesmo nas áreas onde há intensivo trabalho tanto dos STRs quanto da própria Federação, o MSTR não consegue se manter como referência de luta para os trabalhadores assentados. O conteúdo pessoal dessa luta e a falta de uma definição efetivamente institucional do significado da reforma agrária dificultam a operacionalização, pelo MSTR, das áreas de assentamentos que ele mesmo ajudou a implementar (FERREIRA NETO, 1999, p.374).

De forma geral, acreditamos que a frágil organicidade das organizações de

luta pela terra no Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba dificulta a implantação de

práticas tanto político-sociais quanto produtivas mais voltadas para o coletivo,

defendidas por estas organizações. Ao mesmo tempo, e contraditoriamente, é

possível que estas mesmas concepções sejam parcialmente responsáveis pelo

próprio afastamento das famílias em relação aos movimentos, já que as propostas

de coletivização ou de incentivo à continuidade da participação na luta política

nem sempre são muito bem-vindas. O trabalho de base mantém-se aqui como

peça fundamental na construção desse processo, ao nosso ver, difícil, porém

necessário.

Ainda há aqui um outro fator complicador levantado pelos próprios

coordenadores dos movimentos: o fato de não existir uma integração consistente

entre movimentos e entidades de assessoria técnica da região, para o

desenvolvimento de projetos diferenciados, reduz a possibilidade da construção

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de projetos experimentais, reforçando a tendência de isolamento, inclusive

político, dos assentamentos.

Além do individualismo na produção, a ausência de estruturas industriais e

comerciais coletivas nos assentamentos é apontada pelos movimentos como um

outro agravante: “São raras as iniciativas coletivas que possibilitam a agregação

de valor aos produtos, como as agroindústrias comunitárias. Iniciativas como as

CPAs (Cooperativas de Produção Agrícola) defendidas pelo MST, ou as EACs

(Empresas Agrícolas Comunitárias) defendidas pelo MLST, não foram aplicadas

na região” (FONSECA, 2001, p.142).

Foto 4.4 – Manifestação do MTL em visita do presidente Lula ao assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho (Campo Florido). Autora: GOMES, R. M. Março de 2004.

A única cooperativa em assentamento existente na região estudada é a

Cooperativa de Organização Agropecuária do Barreiro – COAB, localizada no

Assentamento Iturama (em Limeira do Oeste), que é o primeiro da região. São

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cerca de 50 associados, sendo alguns proprietários de terras vizinhas ao

assentamento. As famílias lá residentes (a maioria comprou os lotes), no entanto,

não têm mais vinculação a nenhuma organização de trabalhadores rurais, e a

cooperativa, apesar de garantir um preço melhor no fornecimento de leite,

reproduz algumas relações típicas da empresa privada capitalista. Como exemplo,

temos o fato de que muitos assentados, que não se dispuseram a entrar na

experiência no início, hoje não estão conseguindo se associar. A cooperativa,

então, compra o leite desses produtores e revende para os compradores,

aumentando sua lucratividade às custas de outros assentados.

Foto 4.5 - Estrutura da Cooperativa Agropecuária do Assentamento Iturama (Limeira Do Oeste). Autor: GOMES, R. M. Fevereiro de 2004.

Outra questão apontada também pelos estudos e movimentos como

agravante do processo de distanciamento dos assentamentos com as suas

organizações de origem, está na constituição das associações, normalmente a

primeira instituição formal constituída pelos assentados.

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O INCRA é o primeiro a cobrar a existência dessas instituições, sob a alegação de que a disponibilização dos créditos implantação não pode ocorrer por outra via. Esse órgão é, também, o primeiro a desrespeitar a experiência construída e a cobrar a necessidade de um interlocutor do assentamento, de um presidente, já induzindo em relação a uma “autonomia” em relação ao movimento que coordenou a luta. Outras instituições (Prefeituras, Universidades, Sindicatos, Órgãos estaduais) também, ao se relacionarem com os assentamentos, preferem fazê-lo diretamente com os assentados, desconsiderando o papel dos movimentos, contribuindo com o rompimento dos assentados com as organizações de luta, o que fortalece a despolitização e o isolamento das comunidades (FONSECA, 2001, p.145).

As reflexões empreendidas por Silva (2002) e Guimarães (2002),

respectivamente sobre os assentamentos Nova Bom Jardim e Nova Santo Inácio

Ranchinho, acerca da organização interna dos trabalhadores, nos mostra que as

relações são, por vezes, permeadas por conflitos de interesses e práticas de

disputa pelo poder, ou seja, “o controle e a ordenação do novo território constitui-

se como manifestação de estratégias de poder estabelecidas pelos grupos sociais

existentes no assentamento” (GUIMARÃES, 2002, p.129), o que é verificado em

especial nos conflitos que permeiam o direcionamento da associação, cuja direção

passa a ser fonte de poder e status (SILVA, 2002). Reproduz-se, assim, ainda que

parcialmente, relações de dominação, hierárquicas, típicas da sociedade

capitalista, mas contrárias às formas de participação mais ativas e democráticas

que são construídas no cotidiano da luta dos trabalhadores rurais.

Além disso, há que se pontuar, também, que a própria fragmentação da

organização dos trabalhadores rurais contribui para a reprodução dessa situação,

já que as formas de personalismos advindas dos conflitos constantes entre as

lideranças dos diversos movimentos trazem, muitas vezes, as marcas do

individualismo.

Todas estas dificuldades nos mostram que:

Se a conquista dos assentamentos se dá por um processo extremamente doloroso para os trabalhadores sem-terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, certamente a consolidação produtiva dos mesmos, não se verificará sem entraves impostos pelo Estado, pelo modelo tecnológico dominante, pelo mercado e pelas próprias deficiências organizativas dos assentados (FONSECA, 2001, p.124).

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Contradições vivenciadas após a conquista da terra

Os problemas tratados, nas seções anteriores, traduzem-se, para algumas

famílias assentadas, na ausência de condições básicas de sustentação econômica

e social. Nessas situações, os assentados se deparam com a necessidade de

buscar outras saídas para a manutenção de suas unidades de produção. Esta

imposição toma, em certos momentos, formas marcadas pela contradição.

É o caso da subordinação dos assentados, em relação ao capital, através

da venda de sua força de trabalho em períodos permanentes ou temporários.

Essa situação se confirma entre os produtores da Nova Bom Jardim. Periodicamente os assentados saem de seus lotes para trabalhar na colheita das grandes lavouras das proximidades (café, batata, flores), ou mesmo se deslocam ao núcleo urbano de Tapira ou às outras cidades para venderem sua força de trabalho. Alguns membros desse assentamento também se empregam em atividades industriais locais, como por exemplo na propriedade vizinha, a mineradora fosfértil. Outros estão trabalhando, permanentemente, na Prefeitura Municipal de Tapira, como motoristas da rede rural de ensino ou como vigilantes (SILVA, 2002, p.57).

As dificuldades fazem, assim, com que muitos dos assentados busquem,

fora dos lotes, alternativas de renda. Casos desta natureza são encontrados em

praticamente todos os assentamentos, em menor ou maior grau.

Outra saída que os assentados da região têm encontrado está no

arrendamento de seus lotes para grandes produtores. Até o momento, é o caso de

algumas famílias dos assentamentos Engenho da Serra/ Capão Rico e Nova

Santo Inácio Ranchinho. Neste último, os assentados fornecem cana para uma

usina de produção de álcool e açúcar – a Usina Cururipe de Açúcar e Álcool S/A.

Esse arrendamento apresenta-se como uma nova contradição presente. Além de

servir a uma grande empresa de capital privado, o arrendamento para a produção

de cana de açúcar representa a adoção de uma prática agrícola que degrada o

solo e compromete a preservação ambiental – a monocultura. Segundo um

assentado, entrevistado por Guimarães: “Nós vamos sofrer as conseqüências

típicas desse conceito de produção que é a monocultura! A monocultura, por si só,

já é uma afronta à agricultura familiar! (...) Com o arrendamento, nós não teremos

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mais a terra, teremos apenas o território!” (assentado. In: GUIMARÃES, 2002,

p.142).

Assim, contraditoriamente, o mesmo modelo produtivo que sustenta o

grande capital agrário e que expropria, apresenta-se, para estes expropriados que

conquistaram a terra, a alternativa possível para resistirem, na terra conquistada,

apesar de servindo a este mesmo grande capital agrário (GUIMARÃES, 2002).

Mas, talvez, o ponto culminante deste processo esteja no número

significativo de venda ou abandono de lotes. Frente às dificuldades de produção,

algumas famílias acabam desistindo e dando continuidade ao seu “destino

migrante”. “A ineficiência na produção e na comercialização, com a conseqüente

baixa renda dos assentados, são sem dúvida, os motivos principais que levam às

desistências” (FONSECA, 2001, p.128).

Muitas vezes quando o assentado vende o lote, fala que é porque é malandro, que é

porque não tem interesse de ficá na terra, e tal. E às vezes não é isso. Não vou dizer...

posso até ter algum lá por acaso, um trabalhador que não tenha às vezes aquele carisma

pela terra, aquele enraiz pela terra, mas a maioria da questão de venda de lote é fruto da

não condição de permanência no campo. Porque ali o trabalhador fica dois anos, fica

cinco anos, e muitas das vezes não consegue desenvolver porque não tem um

acompanhamento técnico e nem uma questão financeira, os recursos para que possa

desenvolver. E além de não ter, falta um acompanhamento inclusive social, na questão

das organizações de grupo, na questão do trabalho coletivo, na questão de fazê com que

as famílias se agrupam-se, não só em termos sociais, mas em termos também

econômicos. (...) E com isso o assentado de reforma agrária vai aos poucos se

desintegrando, se desincentivando, ficando sem condição de produzir e até de manter na

terra. E com isso de onde vem as venda de lote, de onde vem as dificuldade (diretor da

FETAEMG, entrevista concedida em junho de 2003).

Não temos acesso ao número exato de desistências. Sabemos que este é

um número bem variável. Em algumas áreas, todos os assentados se mantêm

desde o início, mas em algumas as desistências beiram os 50%. O número mais

alarmante é o do Assentamento Iturama. Este, que foi o primeiro da região, cuja

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luta serviu de referência fundamental e se desdobrou em várias outras lutas,

impulsionando sobremaneira a organização dos trabalhadores rurais no Triângulo

Mineiro e Alto Paranaíba, já teve 75% dos seus lotes originais vendidos. Um

agravante muito sério, neste caso, é o fato de que este assentamento foi

emancipado há cerca de quatro anos, antes mesmo de receber todos os créditos a

que tinha direito, o que tem dificultado sobremaneira o acesso a financiamentos e

programas governamentais destinados aos assentamentos rurais.

Assentamentos rurais: a territorialização da luta pela terra

Tendo em vista as questões anteriormente mencionadas, podemos nos

referir aos assentamentos rurais como territórios que encerram,

concomitantemente, um ponto de chegada e um ponto de partida – ressaltando-se

que não estamos nos referindo aqui, com esses termos, a rupturas, mas a

processos cujas dinâmicas estão profundamente embricadas.

Após todo o processo de luta pela terra, a conquista do assentamento

representa possibilidades reais de novas formas de vivência. A partir de sua

instalação, os trabalhadores assentados passam a implementar projetos de

produção, bem como novas formas de sociabilidade, inserindo-se “num jogo de

disputas políticas visando à sua reprodução (sobretudo na sua relação com o

Estado) e fortalecendo a possibilidade de gerar efeitos multiplicadores dessa

experiência singular, com impactos significativos no meio social, político e

econômico em que atua” (LEITE, 2000, p.45).

Apesar de todas as dificuldades vivenciadas pelos trabalhadores rurais

assentados, discutidas anteriormente, acreditamos aqui que os assentamentos

rurais constituem territórios fundamentais para a transformação da realidade

prevalecente no meio rural, desde que inseridos num efetivo programa de reforma

agrária, ainda que sob a tutela de um regime econômico estruturalmente

excludente. Obviamente que, à medida que inseridos numa dada conjuntura de

mundialização do capital, limitações à sua sustentabilidade serão intrínsecos à sua

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existência. No entanto, os movimentos sociais de luta pela terra, em especial o

MST, têm se mostrado importantes articuladores de projetos políticos alternativos,

para muito além da conquista da terra. Talvez aí resida o maior problema da

fragmentação dos movimentos sociais rurais, ou seja, para além da conquista da

terra.

Na região pesquisada, por exemplo, as contradições da espacialização da

luta pela terra têm acarretado a formação de inúmeros movimentos sociais no

campo. A fragmentação, ocorrida por meio de “rachas” e surgimento de novos

movimentos, e expressa por meio da dificuldade de unificação de suas lutas, tem

trazido uma série de limitações, ao nosso entender, ao desenvolvimento sócio-

econômico dos assentamentos rurais. Isto porque, para além da conquista de

determinadas áreas, as demandas dos trabalhadores rurais sem-terra podem

trazer, ao menos potencialmente, questões de âmbito ainda muito mais amplo,

que extrapolam os limites territoriais das áreas conquistadas – em sua maior

expressão, na transformação do modelo econômico vigente. Tanto a tão

propalada redistribuição fundiária, quanto o encaminhamento de projetos

produtivos diferenciados e a garantia de financiamentos mais eficazes e de

políticas agrárias e agrícolas mais efetivas para a produção familiar, envolvem um

novo projeto social, uma nova política econômica e requerem um acúmulo

crescente de forças, ou seja, um alto poder de mobilização e de pressão.

Assim como Mitidiero Junior, no entanto:

negamos qualquer hipótese de inviabilidade da organização da luta pela terra devido à sua excessiva fragmentação. Da mesma forma, que por menores que sejam as vitórias conquistadas por todos esses movimentos, elas não podem ser taxadas de insignificantes, já que a vida destes sujeitos em luta muda durante o processo de conflito e, conseqüentemente, com as possíveis conquistas (MITIDIERO JUNIOR, 2002, p.300).

Ilustrativo desta afirmação é o fato de que é crescente a mobilização e as

ações em torno da luta pela terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, apesar de

toda a fragmentação existente na organização dos trabalhadores rurais. Mas,

ainda assim, e por outro lado, não há como negar que há um enfraquecimento do

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potencial das lutas, à medida que as divisões resultam numa redução do poder de

pressão e negociação, especialmente, como já foi dito anteriormente, no que

tange às demandas para além da conquista da terra.

De qualquer forma, os assentamentos representam a possibilidade de (re)

territorialização do campesinato, através da sua resistência ao processo de

exploração e expropriação empreendido pelo capital. Conforme discussão

empreendida na introdução deste trabalho, compreendemos o camponês como

“um componente das classes subalternas da sociedade capitalista” (SANTOS,

1978, p.2), personificação de um específico processo de trabalho. E este

específico processo de trabalho é recriado nos assentamentos: mantém-se a

utilização da força de trabalho familiar, a maior participação da atividade viva do

trabalho relativamente aos meios de produção, e a produção direta de uma parte

considerável dos meios de vida – subsistência (CHAYANOV, 1974).

A conquista dos assentamentos rurais representa, ainda, e nessa mesma

perspectiva, a territorialização da luta pela terra e do movimento social que a

conquistou, à medida que esta mesma luta não se finda com a conquista da terra,

mas, ao contrário, amplia as potencialidades da organização dos trabalhadores

rurais. Essa territorialização expande “realidades e possibilidades. A conquista da

terra amplia as demandas, desdobrando os trabalhos e gerando novas

necessidades” (FERNANDES, 2000, p.194). Os sem-terra não são apenas excluídos da terra, também são excluídos de outros direitos básicos da cidadania. Dessa forma, procuram derrubar outras cercas além das cercas do latifúndio. E para conquistarem seus direitos, dimensionaram a luta pela terra em luta por educação, por moradia, por transporte, por saúde, por política agrícola, enfim, por uma vida digna. (...) Compreendendo essa realidade, os sem-terra criaram uma forma de organização na qual os setores interagem as dimensões das diversas atividades, o que tem possibilitado ampliar a resistência à expropriação, no desenvolvimento da luta de classes” (FERNANDES, 2000, p.223).

Os territórios conquistados tornam-se, nesse processo, importantes bases

de referência para a espacialização da luta pela terra.

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O número de assentamentos existentes é um indicador favorável para os sem-terra, porque o aumento do número de famílias assentadas e organizadas contribui para a espacialização e territorialização da luta. Na década de 1980 e até meados dos anos 90, para fazer uma ocupação, os sem-terra tinham muito mais dificuldade. Atualmente, por meio das experiências construídas e das conquistas, o poder de organização e de pressão é maior (FERNANDES, 2000, p.265).

Dos assentamentos rurais conquistados, surgiram novas lutas, novas

ocupações e a conquista de novas áreas. Nesse processo, formaram-se

lideranças, estabeleceram-se alianças, surgiram novos movimentos sociais.

Garantiram-se, aos poucos, maior participação política dos sem-terra, bem como

formas internas de organização mais democráticas e participativas. A citação

abaixo exemplifica este processo:

Alguns dos trabalhadores na Nova Santo Inácio Ranchinho tiveram oportunidade de disseminar suas práticas de sociabilidade, ao participar da rede de movimentos sociais de luta pela terra, contribuindo, por meio de suas experiências, com a viabilização de novos assentamentos na região. Destaca-se, nesse contexto, a experiência de formação do Movimento de Luta pela Terra – MLT – no interior do assentamento em 1996, posteriormente integrado ao MLST, cuja atuação no Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba tem sido expressiva, especialmente no que se refere ao movimento de territorialização dos sem-terra (GUIMARÃES, 2002, p.125).

O território é aqui concebido como o espaço da ação do homem, encerrado

numa totalidade histórica, ou seja, como produto histórico do trabalho humano:

De forma direta, o território é o produto histórico do trabalho humano que resulta na construção de um domínio ou de uma delimitação do vivido territorial, assumindo múltiplas formas ou determinações (...). Os homens através de suas ações são os únicos capazes de transformar o espaço em território. O território implica na apropriação efetiva da sociedade sobre determinado espaço, por meio da organização social (MITIDIERO JUNIOR, 2002, p.20).

Dessa forma, os assentamentos rurais são aqui compreendidos como

territórios conquistados pelas organizações dos trabalhadores rurais, e (re)

construídos pelos assentados, num processo que representa, para além da

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possibilidade do estabelecimento de novas relações sociais e de trabalho, um (re)

dimensionamento da luta pela transformação da realidade do campo.

As transformações vinculadas à conquista dos assentamentos rurais trazem

impactos não somente em nível local. A ação permanente de diversas entidades

como o MST, a Igreja, sindicatos, imprensa, ONG’s, entre outras, faz com que

determinadas ações não se esgotem no assentamento e nas relações locais, mas

se potencialize, envolvendo interesses e situações de forma muito mais global que

sob a ótica de sua singularidade. É a presença de mediações que atuam numa

rede de relações que permite a potencialização das possibilidades de atuação

política dos atores envolvidos em processos de assentamentos. Seguindo essa

perspectiva, pode-se sugerir que a construção de um assentamento rural

representa não apenas um fruto da luta pela terra, mas também uma semente

germinada na luta mais ampla pela Reforma Agrária no Brasil.

E a perspectiva utilizada neste trabalho é a de que a luta pela terra e a

construção dos assentamentos rurais, mesmo marcadas por uma série de

contradições, configuram-se, de modo mais amplo, como uma luta contra o

capital, à medida que representam a resistência organizada dos trabalhadores

rurais à expropriação e a exploração características do sistema econômico

implementado. De acordo com Martins, “já não há como separar o que o próprio

capitalismo unificou: a terra e o capital; já não há como fazer para que a luta pela

terra não seja uma luta contra o capital, contra a expropriação e a exploração que

estão na sua essência” (MARTINS, 1981, p.177).

Para finalizar este capítulo, apresentaremos, aqui, uma experiência que nos

chamou a atenção entre os assentamentos rurais da região do Triângulo Mineiro e

Alto Paranaíba, o caso do Assentamento Paulo Freire, no qual um grupo de

famílias, ligadas ao MST, têm buscado resistir à individualização na produção e

construir novas relações sociais e de trabalho no território conquistado, apesar das

contradições vividas inclusive internamente. São, ao nosso ver, ainda que em

caráter inicial, exemplos, ao mesmo tempo, de resistência e de possibilidades

abertas aos trabalhadores organizados.

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O Assentamento Paulo Freire: contradições da luta e possibilidades de

resistência

O assentamento Paulo Freire, localizado no município de Santa Vitória, foi

conquistado em 1999, a partir de uma luta intensa de um grupo de trabalhadores

sem-terra da região do Pontal do Triângulo, coordenado pelo Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST. Foi este processo de organização que

marcou a vinda do MST para a região em definitivo, fato que se deu em 1997.

Naquele ano, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santa Vitória iniciou

o trabalho de mobilização com algumas famílias das cidades de Iturama e São

Simão, com o apoio da APR e do Sind-eletro (Sindicato dos Eletricitários de

Uberlândia) – entidades historicamente apoiadoras da luta pela terra na região. Os

trabalhadores eram, em sua maioria, moradores das cidades, mas ainda com forte

ligação com o campo, trabalhando em fazendas da região como empregados

temporários, vivendo de “pegar serviços”. De acordo com as informações colhidas

com os assentados, o MLT (fundado em 1995, e atual MTL) ainda não tinha

nenhum trabalho nas áreas mais próximas. E o presidente do sindicato tinha sido

recém-assentado, o que serviu de grande incentivo para o povo. Assim, sob a

orientação do sindicato, 17 famílias ocuparam a Fazenda Santo Antônio, em

janeiro de 1997.

A partir da construção do acampamento, o movimento foi sendo

massificado. Neste processo, no entanto, as dificuldades de desapropriação da

área ocupada resultaram na ocupação de uma outra área vizinha, a Fazenda São

José, por uma parte dos sem-terra já acampados na Fazenda Santo Antônio, da

qual foram imediatamente despejados. O grupo despejado transferiu o

acampamento para uma faixa da BR 365, mas a organização dos dois grupos

permanecia unificada.

Frente às dificuldades de organização e de escolha das áreas a serem

ocupadas, a coordenação do acampamento reuniu-se com a APR e o Sind-eletro

e algumas lideranças do MST convidadas, por intermédio da APR, para contribuir

com a luta. Em abril de 1997, a marcha do MST passou pela região do Triângulo

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Mineiro e fez várias ações de divulgação da luta, especialmente em Uberlândia,

estabelecendo vários contatos e concretizando o início dos seus trabalhos na

região, marcado pela organização desse grupo que hoje está assentado na Paulo

Freire2. Em julho, o grupo ocupou a Fazenda Jubran.

Aí o MST descobriu que a Jubran era improdutiva. As famílias da Santo Antônio

permaneceram lá com um resto de esperança, e as da BR ocuparam a Jubran... quase

200 famílias, foi o maior número que teve. Isso foi julho de 97. As famílias da Santo

Antônio já tavam vendo que ali não ía sair. Teve um despejo... e aí juntou tudo na Jubran

(assentada Paulo Freire).

A ocupação na Fazenda Jubran, já em seu início, foi marcada por

contradições internas à própria luta dos trabalhadores, uma vez que o grupo do

MST ocupou a área quase que simultaneamente com outro grupo, organizado

pelo sindicato de Iturama. Formaram-se dois acampamentos, palcos de conflitos

permanentes entre os movimentos. Algum tempo depois, o grupo coordenado pelo

sindicato acabou se retirando da área. Os sem-terra sofreram cinco despejos na

Jubran, marcados por intensa violência e repressão por parte tanto de policiais

quanto de jagunços. Foi um processo muito difícil, que culminou com a desistência

de muitas famílias. Além da marca da violência no processo, as dificuldades

peculiares aos acampamentos, em especial com relação à precariedade nas

condições alimentares, médicas e sanitárias, são fatores comumente apontados

para o alto número de desistências, gerando uma rotatividade significativa nos

acampamentos, o que pode ser um fator prejudicial ao desenvolvimento da

organicidade dos movimentos.

2 No decorrer dos anos de 1997 e 1998, além das ocupações a que estamos fazendo referência (Fazendas Santo Antônio, Nossa Senhora das Graças e Jubran, em Santa Vitória), o MST da região coordenou também as ocupações na Fazenda Colorado (Uberlândia), Fazenda Campo Belo (Campina Verde), Fazenda Campo Belo Perobas (Campina Verde), Fazenda Cedro (Coromandel), Fazenda Olhos D’Água (Sacramento), Fazenda Douradinho (Uberlândia) e Fazenda Chico Mendes (Ituiutaba). “O MST nasceu da ocupação da terra e a reproduz nos processos de espacialização e territorialização da luta pela terra. Em cada estado onde iniciou a sua organização o fato que registrou o seu princípio foi a ocupação. Essa ação e sua reprodução materializam a existência do movimento, iniciando a construção de sua forma de organização, dimensionando-a (FERNANDES, 2000, p.19).

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Em fins de 1997, descobriu-se a área que hoje é o assentamento Paulo

Freire: a fazenda Nossa Senhora das Graças. Com o desgaste da luta na Jubran,

decidiram ocupá-la, agora com apenas cerca de 60 famílias apenas. Também aqui

foram despejados duas vezes, sendo que, no segundo despejo, o movimento já

contava com 115 famílias acampadas.

O primeiro despejo foi negociado, mas o segundo foi muito violento. Queimou barraco,

documentos, tudo... Despejou as pessoa lá em Cruz e Macaúbas, sem ninguém dizê que

queria ir pra lá. Foi um despejo marcante. Aí fomos pra BR e ficamo acampado lá. Dois

dias depois saiu o decreto de desapropriação. O proprietário ficou na área. Aí nós ocupo

uns quinze dias depois e o proprietário se retirou mas deixou as coisas dele na casa.

Quando venceu o prazo dele desocupar ele não tirou as coisas aí os sem-terra mesmo

fizeram o despejo – a gente colocamo os móveis dele na estrada, chamamo a imprensa

pra vê que ninguém não tava roubando nada, e ele buscou. Aí ficamos acampados até a

divisão dos lotes. Montamos os grupos por afinidade e fez o sorteio. E a sede e mais meio

alqueire ficou pra área coletiva da comunidade (assentado).

Em 1999, criou-se, efetivamente, o assentamento Paulo Freire. A fase de

acampamento, certamente, tem um papel relevante na construção do

assentamento. No seguinte relato de um assentado, podemos observar a

dimensão que alguns imputam a este processo:

O resultado de toda essa luta não é só a terra. O resultado está na lembrança que estas

famílias é aquele mesmo grupo de sem-terra que ocupou no simples objetivo de

conquistar um pedaço de terra, que hoje já o conquistou, mas não vão parar de lutar, pois

todos estes através da organização do MST adquiriram formação e consciência que os

trabalhadores devem estar sempre organizado para conseguir seus objetivos e lutar

contra qualquer injustiça (relato manuscrito, arquivo Associação MST – Assentamento

Paulo Freire).

Partimos, neste trabalho, da premissa de que a realidade vivida no

processo de luta pela terra – as dificuldades de sobrevivência, os conflitos internos

e externos, a necessidade de organização, de enfrentamento e de tomada de

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decisões, as derrotas e vitórias, enfim, todos os caminhos que são percorridos e

as situações que são vividas pelas famílias envolvidas imputam determinadas

condições que tendem a ter uma grande interferência na forma como se dará a

continuidade da luta (ou não) a partir da conquista da terra. É claro que este não é

um processo claro, retilíneo, de fácil compreensão. Ao contrário, é repleto de

conflitos e contradições.

No caso do assentamento Paulo Freire, a conquista da terra marcou uma

ruptura já no momento de sua implantação. Algumas famílias preferiram

desvincular-se do MST, enquanto outras buscaram dar continuidade ao trabalho e

aos princípios do movimento, dividindo os recém-assentados numa mesma área

em duas associações:

No acampamento todos eram MST. Depois começou a resistência à organicidade do MST

por puro individualismo mesmo. Formaram duas associações, uma que queria continuar

seguindo os princípios do MST, inclusive de formação política. A gente sentiu muito com a

saída das famílias. Era todo mundo junto, aí acabou perdendo força por conta da divisão.

Eu acredito que é a cultura do povo: toda vida nossa antes não tem nada de conjunto.

Quando você ouve falar da luta de outros lugares parece que aqui é diferente. A vontade

de só pegar a terra tá acima de tudo. Falar “isso é meu” é muito forte aqui. Não tem nem

muita explicação depois que vive tanta coisa junto. Isso dói demais na gente. A nossa luta

é infinita, entende... não pode parar. Esse é o maior problema da região aqui (assentado).

Essa ruptura deixou marcas na organização e no estímulo à luta dos agora

assentados, o que é facilmente perceptível em suas falas. Mas, certamente, não é

uma peculiaridade do assentamento em questão. O rompimento dos sem-terra

com o movimento a que se vinculavam no momento da conquista da terra é

apontado, por praticamente todas as entidades e lideranças envolvidas, como

sendo um dos maiores problemas da organização da luta pela terra na região, que

se vê, em muitos casos, diluída a partir da implantação dos assentamentos.

Contrariamente, fato que podemos apontar como uma das formas de persistência

da resistência e da luta mais ampla dos sem-terra, e ainda não muito comum nas

áreas de assentamento da região, é a manutenção de um grupo vinculado ao

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MST, ainda que minoritário, que busca implementar determinadas discussões e

ações alternativas em termos de produção e organização.

O assentamento Paulo Freire possui 40 famílias, das quais 13 estão ligadas

à associação que permanece vinculada ao MST. Alguns de seus membros,

inclusive, são componentes da coordenação regional ou estadual do movimento,

garantindo um contato mais direto entre a entidade e os assentados. A vinculação

ao movimento torna mais viável a participação em outros fóruns de discussão,

como cursos de formação política e outras ações políticas, como passeatas e atos

públicos. Aumenta as possibilidades, ainda, da continuidade da luta mais ampla

pela reforma agrária, à medida que alguns desses assentados continuam

contribuindo com os outros trabalhos do movimento, como na conquista de novas

áreas, ou mesmo nos embates relacionados ao desenvolvimento dos

assentamentos rurais. Estas questões puderam ser vistas, inclusive, no

assentamento estudado, onde as famílias ligadas ao movimento permanecem

“militantes da reforma agrária”, para além do assentamento, e em seu interior3. Até

porque partimos aqui da premissa de que as realidades vividas nos

assentamentos são partes integrantes e importantes da luta mais ampla pela

reforma agrária. Estas 13 famílias têm buscado implementar formas de

cooperação entre si e desenvolver projetos coletivos de produção. Aqui reside,

ainda que em caráter de certa maneira experimental ou embrionário, uma fonte

importante de resistência e de busca de alternativas coletivas às dificuldades

impostas à agricultura familiar.

O principal produto comercializado no assentamento é o leite, sendo

produzido por todas as famílias. A mandioca ocupa o segundo lugar em produção,

muitas vezes utilizada na fabricação de polvilho, também com vistas à

comercialização. Naturalmente, a produção para o consumo interno está presente

em todas as glebas (hortas, pomares, criação de galinhas e porcos), contribuindo

3 Em muitos casos verificamos a existência de membros de movimentos que são assentados mas que militam apenas em ambientes externos, à medida que não conseguem apoio interno para a implementação dos projetos. Como exemplo do próprio MST, temos o Assentamento Zumbi dos Palmares que, atualmente, desvinculou-se integralmente do movimento, mesmo tendo uma das maiores lideranças estaduais do MST, que tem muitas dificuldades em desenvolver, internamente, as discussões e as ações do movimento.

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para a alimentação das famílias – fator importante para a qualidade de vida dos

assentados. O assentamento, como todos da região do Triângulo Mineiro/ Alto

Paranaíba, está dividido em lotes individuais. Não há área coletiva destinada à

produção. A divisão dos lotes foi feita por sorteio entre os grupos de afinidade, de

forma que as famílias de uma mesma associação estão, em boa parte,

relativamente próximas, ainda que haja uma pequena rotatividade entre os

associados – já que estes têm a possibilidade de mudarem de associação sempre

que assim quiserem.

O decreto de criação do projeto de assentamento Paulo Freire data de

1998, mas, devido à demora no parcelamento da área, o início efetivo dos

trabalhos já nos lotes, se deu apenas a partir de fins de 1999. Assim, o caráter

recente do assentamento constitui um dos fatores explicativos para o fato de os

projetos de produção coletivos estarem ainda em fase de consolidação. Acresce-

se, ainda, que este é um processo não muito comum na região, e muito menos

simples de ser concretizado. Demanda um grande esforço de aprendizado e

amadurecimento. Nas falas dos assentados e das lideranças da região, está

sempre presente o sentimento da falta de referências, ou seja, de assentamentos

próximos que constituam exemplos a serem seguidos de organização e produção.

Este, assim, é um processo que está em curso, e no início deste curso. Também,

por isso, a experiência do assentamento Paulo Freire nos chamou a atenção.

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Foto 4.6 - Mutirão para construção de um galpão para armazenar o leite. Assentamento Paulo

Freire (Santa Vitória). Autora: GOMES, R. M. Julho de 2003.

Foto 4.7 - O mesmo galpão da foto 4.6, agora já construído e armazenando o leite produzido no

assentamento Paulo Freire (Santa Vitória). Autora: GOMES, R. M. Fevereiro de 2004.

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Além das formas de cooperação mais comuns e cotidianas, como mutirões

de trabalho e trocas de serviço ou dia trabalhado, três projetos produtivos estão

em curso no assentamento Paulo Freire, envolvendo todos os membros da

associação estudada ou parte dela.

O primeiro a ser consolidado foi o da entrega coletiva do leite. As 13

famílias estão envolvidas neste sistema. O trabalho é individual, mas a associação

garantiu a compra de um tanque de expansão (resfriador de leite), utilizado por

todos os associados. O leite é comercializado coletivamente (atualmente está

sendo vendido para o Laticínio Catupiry), o que resulta em melhores preços. Além

disso, cinco destas famílias financiaram a compra de uma caminhonete, com

vistas a facilitar e baratear o transporte do leite.

Outro projeto consiste na criação de porcos de raça, com sete famílias

envolvidas. A estrutura foi financiada pela prefeitura, e o restante do investimento

foi todo feito pelos associados. No primeiro ano do trabalho, o grupo contraiu

dívidas com a criação dos porcos, que puderam ser pagas através de um outro

projeto de microcrédito, mediado pela APR, possibilitando a sua continuidade.

Foto 4.8 – Criação coletiva de porcos de raça, Assentamento Paulo Freire (Santa Vitória).

Autora: GOMES, R. M. Fevereiro de 2004.

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Foto 4.9 – Criação coletiva de porcos de raça, Assentamento Paulo Freire (Santa Vitória). Autora: GOMES, R. M. Julho de 2003.

Atualmente, 11 destas famílias estão iniciando um projeto de apicultura,

também integralmente coletivo. O projeto é apoiado pelo Programa de Segurança

Alimentar, coordenado pela Cáritas. Serão 100 caixas de abelhas.

É muito difícil, muito difícil mesmo... mas a gente quer muito que dá certo. O que segura a

gente é isso aí... que a gente acredita que no coletivo que tem que dar certo. Que assim

que a gente tá resistindo, que assim que a gente pode um dia melhorar. É isso que leva a

gente pra frente, porque é muito difícil... (assentado).

A persistência das famílias da associação MST, do assentamento Paulo

Freire, já há quatro anos formada, nos é apresentada como uma forma de

resistência às dificuldades e de busca pela construção de novas possibilidades

para a produção nos assentamentos. A experiência, para além das

potencialidades econômicas, traduz-se também em potencialidades políticas e

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sociais, à medida que representa novas formas de organização, de trabalho e de

vivência num território conquistado e construído a partir e no interior da luta.

Finalizando este capítulo, expomos um documento escrito pelo próprio

grupo de assentados ligados ao MST, em 2003, encontrado nos arquivos da

associação, que resume, em suas palavras, a sua história:

Santa Vitória, cidade esta pequena situada no Pontal do Triângulo Mineiro, berço dos

latifundiários, onde é predominante a exploração de trabalhadores rurais:

Os assentados do Assentamento Paulo Freire é apenas mais um grupo de

trabalhadores revoltados com as injustiças sociais impostas pela classe dominante. Esses

trabalhadores resolveram se organizar e lutar pelo direito de viver com dignidade.

Foram quase três anos de sofrimento constante, nesse período sem destino,

fomos vítimas de violência física e moral, aconteceram fatos que chocaram o Brasil, como

a tentativa de assassinato do Frei Rodrigo, Marcelo Rezende e outros que posicionaram

ao nosso lado.

Só em 1999 depois de passar por conflito em várias áreas é que conquistamos o

decreto de desapropriação na Fazenda Nossa Senhora das Graças, hoje assentamento

Paulo Freire.

O assentamento foi realizado para 43 famílias que ao discutirmos

democraticamente as diferentes formas de organização interna, optamos em legitimar

duas associações.

Este projeto é da associação MST do assentamento Paulo Freire, constituída por

13 associados, um número pequeno mas que prova na prática a unicidade do grupo.

A nossa terra é bastante fraca, é um desafio garantir a sobrevivência nela, mas

vamos provar com exemplos que o companheirismo ultrapassa barreiras.

O objetivo do grupo é diversificar o número de produção e trabalhar coletivamente,

e nessa caminhada já foi dada a largada.

Com nossos poucos recursos, mas de forma coletiva já realizamos uma

suinocultura e adquirimos um transporte para transportar o leite e retornar com soro

reduzindo os gastos da suinocultura.

Por último estamos nos desafiando a implantar o projeto de apicultura, o qual

esperamos ser contemplados com o recurso do projeto.

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O nosso histórico é um pouco extenso, mas vamos resumir nessas poucas linhas

deixando claro que a terra nunca é fraca quando nela se deseja produzir (arquivo

Associação MST – P.A. Paulo Freire).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento contraditório, desigual e excludente do capitalismo

reflete-se no caráter persistente da dura realidade do campo, que requer uma

urgência em termos da sua transformação. Historicamente, o Brasil é marcado por

um processo de exclusão do homem do campo, que se traduz na exploração

intensiva do seu trabalho e na concentração de terras. Este processo, no entanto,

não se dá sem resistências; ao contrário, vem carregado de lutas. Lutas de

escravos, de índios, de posseiros, de sem-terra. Lutas de quem busca, ao longo

da história, construir um ideário e uma prática que enfrentem a lógica do capital e

transformem essa realidade.

Da mesma forma que o modelo econômico implementado ganha novos

contornos, a partir, sobretudo, da década de 1980, tendo em vista as novas

situações delineadas pela mundialização do capital e pela hegemonia neoliberal,

com a inserção definitiva de uma parte da agricultura no esquema “modernizado”

da revolução verde, as organizações camponesas se fortaleceram sobremaneira

com uma organização mais autônoma e articulada, empreendida por diversos

movimentos, na luta pela reforma agrária, sobretudo pelo MST (Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra).

A ocupação de terras configura hoje a principal e mais eficaz forma de luta

dos movimentos sociais rurais, traduzindo-se na conquista de assentamentos

rurais de trabalhadores sem-terra por todo o país, fato que vem promovendo

novos contornos à luta e ao debate acerca da reforma agrária. No limite, a

participação em movimentos sociais organizados, a conquista da terra e a

construção dos assentamentos rurais refletem a luta pela inclusão social, política e

econômica de uma ampla parcela da sociedade brasileira, historicamente marcada

pela exclusão. Considerando que o modo de produção capitalista constitui,

necessariamente, um modelo excludente, a luta contra a exclusão já traz em si um

caráter anticapitalista, ainda que, por vezes, embrionário.

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A região do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba, na qual centramos nossa

análise neste trabalho, é bem ilustrativa de todo este processo. A partir da década

de 1970, o seu cenário econômico foi radicalmente transformado, frente à

incorporação das áreas de cerrado, até então predominantemente utilizadas como

pastagens naturais, ao processo produtivo capitalista, com acentuada intervenção

estatal. Formaram-se aqui alguns dos maiores empreendimentos agroindustriais

do país, além de grandes produções vinculadas ao reflorestamento, à pecuária, à

soja e ao café, entre outras. Priorizou-se, assim, a economia agroexportadora e o

atendimento aos interesses do capital mercantil e monopolista. A chamada

modernização conservadora da agricultura, dessa forma, como em todo o território

nacional, veio acompanhada do acirramento das contradições inerentes ao

movimento constante de auto-expansão e reprodução do capital.

Esse processo fez-se acompanhado da desterritorialização do camponês,

ou seja, da exclusão/ expropriação de uma parcela da população rural, além da

exploração violenta dos recursos naturais, típica da produção destrutiva do capital,

bem como do aprofundamento das formas de exploração do trabalho. O processo

de modernização trouxe, assim, fortes impactos no mundo do trabalho rural, em

especial pela destruição massiva de formas tradicionais de produção, como os

arrendamentos para agricultores (com a transformação de áreas do cerrado em

pastagens) e a parceria, com um conseqüente aumento do desemprego e do

êxodo rural. No entanto, consideramos que é dentro do processo de

territorialização do capital que é gestado o movimento contraditório. Ou seja, a

própria lógica capitalista de apropriação privada da terra, contraditoriamente,

engendra a luta do campesinato pela conquista do território para a sua

reprodução.

Os trabalhadores rurais da região fizeram, assim, avançar as suas

organizações, e hoje esta é uma das mais conflituosas do país. Buscamos refletir,

neste trabalho, justamente sobre este avanço da luta pela terra no Triângulo

Mineiro/ Alto Paranaíba.

A força da sindicalização rural, em meio a sua diversidade de opções e

posicionamentos políticos, faz com que mais da metade dos acampamentos e

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assentamentos da região seja fruto de sua organização, a partir dos sindicatos

locais de trabalhadores rurais mais atuantes, especialmente nas cidades menores.

Por outro lado, é notável o aumento do número de movimentos sociais

organizados de luta pela terra, especialmente pelas atuações do MST e do MTL, o

que reflete transformações nas perspectivas de luta travadas pelas organizações

rurais, que sinalizam a intensificação das pressões diretas, da mobilização

massiva e da busca efetiva pela autonomia das organizações, em detrimento de

uma atuação burocratizada, assistencialista e atrelada ao Estado.

A atuação da Igreja também se mostra de singular relevância, estando na

base da organização de várias organizações de trabalhadores rurais, através de

seu trabalho de formação e assessoria, que combina as dimensões políticas e

religiosas da luta pela terra.

Ressaltamos, ainda, uma característica peculiar à região estudada: a

intensa e histórica violência empreendida pelos latifundiários locais em repressão

às organizações dos trabalhadores rurais, que assume a forma das milícias

armadas, e promove, em alguns casos, conflitos altamente violentos – física e

moralmente.

De qualquer forma, com o avanço das organizações dos trabalhadores

rurais, a ocupação de grandes propriedades improdutivas consolidou-se como a

principal ação de luta pela terra. E os acampamentos, montados a partir destas

ocupações, tornam-se referências de luta e organização na formação e

espacialização dos movimentos sociais de luta pela terra, à medida que

promovem ocupações, desenvolvem ações e constroem territórios de resistência à

expropriação e à exploração dos trabalhadores rurais. Ilustram essa situação os

dois acampamentos aqui estudados – Emiliano Zapata e Tangará – que se

transformaram em importantes referências regionais de luta, fontes de outras

novas ações, exemplos de persistência, impulsionadores da luta mais ampla pela

reforma agrária. A realidade dos acampamentos expressa processos permanentes

de aprendizado para as famílias envolvidas, através das constantes ações e

reflexões vivenciadas. As lutas constituem-se em exemplos concretos de

resistência à exploração e à expropriação do trabalhador rural. A busca por formas

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alternativas de organização aponta para a construção, ainda que em caráter inicial

e muito repleta de contradições, de relações mais democráticas, fundamentadas

na participação direta. Os acampamentos apontam ainda, e essencialmente, para

a construção de novos territórios, à medida que conquistam a terra e transformam

as relações vivenciadas nas áreas em conflito.

Dessa forma, os assentamentos rurais são aqui compreendidos como

territórios conquistados pelas organizações dos trabalhadores rurais, e (re)

construídos pelos assentados, num processo que representa, para além da

possibilidade do estabelecimento de novas relações sociais e de trabalho, um (re)

dimensionamento da luta pela transformação da realidade do campo.

As transformações vinculadas à conquista dos assentamentos rurais trazem

impactos não somente em nível local. A ação permanente de diversas entidades

como o MST, a Igreja, sindicatos, imprensa, ONG’s, entre outras, faz com que

determinadas ações não se esgotem no assentamento e nas relações locais, mas

se potencialize, envolvendo interesses e situações de forma muito mais global que

sob a ótica de sua singularidade. É a presença de mediações que atuam numa

rede de relações que permite a potencialização das possibilidades de atuação

política dos atores envolvidos em processos de assentamentos e,

conseqüentemente, da luta mais ampla pela reforma agrária no Brasil.

E a perspectiva utilizada neste trabalho é a de que a luta pela terra e a

construção dos assentamentos rurais, mesmo marcadas por uma série de

contradições, configura-se, de modo mais amplo, como uma luta contra o capital,

à medida que representam a resistência organizada dos trabalhadores rurais à

expropriação e a exploração características do sistema econômico implementado.

Esses processos, no entanto, não estão isentos de contradições. A região

estudada também é marcada por uma intensa fragmentação das lutas pela terra,

com “rachas” e divisões freqüentes, e conseqüentes dificuldades na unificação das

lutas. Tais processos, indicadores das contradições da espacialização da luta pela

terra, resultam num enfraquecimento das lutas, o que, no entanto, não significa

inviabilização das mesmas, haja vista o aumento constante da organização e da

mobilização dos trabalhadores rurais na região.

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Outra dificuldade apontada está na garantia da organicidade das famílias

assentadas, ou seja, na vinculação destas aos movimentos que coordenaram o

processo de luta pela terra, o que nos remete à importância premente do trabalho

de base. Encontra-se, aqui, uma das razões para a dificuldade em se implantar os

projetos coletivos de produção defendidos pelos movimentos, e em garantir a

permanência de algumas famílias nas lutas cotidianas pela reforma agrária.

Como nos mostra a canção de um dos poetas do MST1:

Quando chegar na terra, Lembre-se de quem quer chegar. Quando chegar na terra, Lembre-se que tem outros passos a dar. Quando chegar na terra, Não está completa a sua liberdade. Este é o primeiro passo Que damos na busca de outra sociedade. Só a terra não liberta. Este é o alerta da necessidade: aumentar a produção para alimentação do campo e da cidade. Essas tensões tendem a se multiplicar frente às dificuldades de

sobrevivência nos assentamentos. Casos de venda de lotes, de arrendamento

para usinas de cana, e de retorno à condição de empregados temporários ou

permanentes de propriedades vizinhas refletem as contradições de quem luta

contra a expropriação ou a exploração e, após a conquista da terra, retornam a

esta realidade.

Certamente, esta situação é fruto da ausência de uma efetiva política de

reforma agrária, que envolva, além do assentamento de milhares de famílias sem-

terra do país e a conseqüente redistribuição fundiária, o apoio técnico, financeiro e

estrutural necessários.

De qualquer forma, os assentamentos rurais configuram-se como territórios

socialmente conquistados e construídos, que constituem dimensão fundamental

1 FONTE: MORISSAWA, 2001.

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do processo mais geral de organização camponesa e que representam, hoje, a

marca da luta pela terra no Brasil.

O crescimento do número de acampamentos e assentamentos na região é

aqui assumido como uma nova tendência da agricultura familiar no cerrado

mineiro, cujas características nos permitem afirmar a territorialização do

campesinato – a sua reconstrução ou mesmo a sua formação.

Finalizando este trabalho, gostaríamos de reafirmar aqui que as mais de

quatro mil famílias acampadas no Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba retratam a

necessidade urgente de transformações sociais, bem como a disposição destas

em lutar por esta transformação.

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Institutos: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Minas Gerais Instituto de Terras de Minas Gerais Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística