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  • 50 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 29 | junho 2015

  • 51ARTIGOS | KATE LANE

    ODARA: ESTTICA E IDENTIDADE NA INDUMEN-TRIA DE FESTA NO CANDOMBL QUETO

    Kate Lane

    esttica candombl indumentria

    Este artigo resulta da pesquisa da autora para elaborao de sua tese de doutorado*

    sobre a indumentria de festa no candombl. Aborda a esttica ritual da festa do xir

    no candombl queto e sua importncia no processo de construo das identidades

    culturais e papis religiosos, partindo do conceito de beleza nag expresso pela pa-

    lavra odara.

    A identidade uma luta simultnea contra a dissoluo e a fragmentao; uma inteno de devorar e ao mesmo tempo uma

    recusa resoluta a ser devorado.Zigmunt Bauman1

    O candombl sistema religioso brasileiro que re-

    sultou da confluncia de diversas etnias africanas

    trazidas fora para o Brasil durante o longo pe-

    rodo da escravido. Encontra-se, por esse motivo,

    dividido em naes, isto , subdivises religiosas

    agrupadas de acordo com suas etnias africanas de

    origem. A nao queto corresponde aos povos io-

    rubas, vindos da frica centro-ocidental, tambm

    chamados, no Brasil, de nags.

    Os rituais de candombl tm como principal objetivo manter e espalhar o ax, energia vital que flui em

    todas as coisas vivas e no vivas, segundo a cosmoviso queto. E para que esse objetivo seja alcanado,

    os rituais devem seguir esttica prpria, que determina como os elementos visuais estaro dispostos, por

    quem e de que maneira sero manuseados.

    Segundo Marco Aurlio Luz,2 odara, em ioruba, quer dizer aquilo que bom, belo e til. Para o autor, o

    conceito de beleza ocidental no existe na tradio ioruba. A definio de beleza expressa pela palavra

    ODARA: AESTHETICS AND IDENTITY IN THE FESTIVE ATTIRE OF THE KETU CANDOMBL | This article is the result of the authors research when drafting her doctoral thesis about festive attire in candombl.* It addresses the ritual aesthetics of the xir party in Ketu candombl, and its importance in building cultural identities and religious roles, based on the concept of Nag beauty expressed by the word odara. | aesthetics candombl attire

    Detalhes de fios de conta e quel de iaFoto acervo da autora

  • 52 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 29 | junho 2015

    odara, que contm, simultaneamente, os concei-

    tos de bondade e utilidade.

    Quando um ritual bem feito, segue as tradies,

    possui os fundamentos religiosos, tem verdade e

    emoo, diz-se que est odara. Quando uma di-

    vindade aceita uma oferenda porque ela foi feita

    de corao e bem arranjada, diz-se que est oda-

    ra. Quando um orix dana com vigor e a comu-

    nidade religiosa o sada fervorosamente, odara

    a palavra que o define.

    Por outro lado, se uma cantiga entoada por algum

    que no deveria, se algo est fora do lugar em que

    deveria estar, se um mais velho desrespeitado ou se

    um orix aparece de maneira destoante da aceita pelo

    grupo, o ritual torna-se feio, sem fundamento e,

    portanto, sem legitimidade.

    O conceito de beleza, odara, est intimamente li-

    gado ao conceito de ax, uma vez que para man-

    ter, expandir, transpor e equilibrar o ax, os rituais

    precisam estar odara. Para Prandi,3 o ax :

    fora vital, energia, princpio da vida, fora

    sagrada dos Orixs. Ax o nome que se d

    s partes dos animais que contm essas foras

    da natureza viva, que tambm esto nas

    folhas, sementes e nos frutos sagrados. Ax

    beno, cumprimento, votos de boa sorte

    e sinnimo de Amm. Ax poder. (...) Ax

    carisma; sabedoria nas coisas do santo,

    senioridade. Ax se tem, se usa, se gasta, se

    repe, se acumula. Ax origem, a raiz que

    vem dos antepassados

    Segundo Beniste,4 em ioruba, a palavra ax quer

    dizer energia, poder, fora e lei, podendo ser uti-

    lizada tanto para referir coisas imateriais, como a

    energia vital que flui em todas as coisas, quanto

    coisas materiais, como o poder poltico do prprio

    terreiro, o ax do terreiro.

    Na cosmoviso nag, o ax deve estar sempre

    em equilbrio. A falta de ax caracterizada

    pela desordem, fsica e/ou espiritual, como

    doenas, desemprego, falta de amor etc., algum

    desequilbrio em qualquer domnio da vida social,5

    ao passo que a presena de ax carregada de

    simbologia positiva em diversas instncias da vida,

    da sade s finanas, tornando-se odara.

    Odara , portanto, conceito utilizado no s para

    avaliao dos rituais, mas tambm para definir a

    prpria vida dos adeptos do candombl alm dos

    muros do terreiro. Se um filho de santo conse-

    gue um bom emprego, est bem de vida, diz-se

    que ele est odara, e que, portanto, o ax est

    em equilbrio. Ento, para estar odara, necessaria-

    mente, o ax deve estar equilibrado, e vice-versa.

    Um dos principais rituais pblicos do candombl

    a festa do xir, na qual a comunidade religiosa se

    abre visitao de outras pessoas, ligadas ou no

    religio. O xir , geralmente, a culminncia de

    outros rituais privados, de passagem e fortaleci-

    mento, como a iniciao, aniversrios de iniciao

    e homenagem aos orixs.6 Para que o xir alcance

    sua funo ritual de manter e espalhar o ax,

    preciso que ele esteja odara.

    Para estar odara, h uma srie de requisitos e pa-

    dres que devem ser seguidos em relao ao uso

    dos objetos rituais, decorao do espao da festa

    e preparao do corpo, que acabam por delinear

    uma esttica muito peculiar no xir do candombl

    queto. A indumentria de festa elemento bas-

    tante representativo dessa esttica.

    Indumentria, esttica e identidade

    No candombl, os deuses, orixs, se manifestam

    por meio da incorporao. A comunidade religio-

    sa estruturada com base em laos religiosos fa-

    miliares, as famlias de santo, que tm como lder

  • 53ARTIGOS | KATE LANE

    um pai, babalorix, ou me de santo, ialorix. A

    famlia de santo pode ser dividida em duas ca-

    tegorias de acordo com a capacidade de incor-

    porao dos filhos de santo: os rodantes, que in-

    corporam, e no rodantes, que no incorporam.

    Aqui nos ateremos questo da indumentria do

    primeiro grupo.

    A iniciao no candombl gradual e evolutiva,

    sendo determinante para o conhecimento que o

    iniciado vai adquirindo ao longo dessa trajetria.

    Conforme so alcanados os graus de iniciao,

    cresce o conhecimento adquirido, tornando o ini-

    ciado cada vez mais sbio dentro do sistema reli-

    gioso e, por isso, mais respeitado. Nessa perspec-

    tiva, o vondunci passa por trs estgios ao entrar

    para a famlia de santo, utilizando indumentria

    especfica para cada um deles:

    abi frequentador do terreiro que ainda no foi

    iniciado;

    ia o recm-iniciado, primeiro grau de iniciao

    at completar trs anos de iniciao ou trs anos

    de santo;

    ebomi o iniciado que acaba de completar sete

    anos, atingindo a maioridade e encerrando seu

    ciclo de ia e estando pronto para assumir um

    cargo na casa ou abrir sua prpria casa de can-

    dombl.

    Na tradio queto, o corpo dividido em trs par-

    tes que devem ser adornadas e cuidadas: ori (ca-

    bea), ar (tronco), es (ps, mos, extremidades).

    Ao longo dos estgios de iniciao, os elementos

    visuais vo-se somando a essas partes do corpo.

    Abi: aquele que est escolhendo

    O termo abi pode ser traduzido como aquele

    que est escolhendo. O abi um pr-iniciado,

    aquele que frequenta o terreiro e participa de seus

    rituais com algumas ressalvas.7 A primeira consa-

    grao para marcar a entrada do abi na famlia

    de santo o bori, ritual de dar comida cabea

    para harmonizar o ax. Aos poucos o abi vai-se

    familiarizando com as questes mais profundas

    da religio, como a incorporao, por exemplo.

    Nessa fase experimentam-se as primeiras sensa-

    es de receber o orix, ou virar no santo.

    Dado o primeiro bori, o abi receber seus primei-

    ros ilequs, tambm chamados de fios de conta. O

    ilequ marca a ligao do abi com o orix. Depen-

    dendo da nao e do terreiro, o abi poder receber

    no mnimo um e no mximo dois ilequs. O ilequ

    do abi possui uma s fileira de contas ou miangas,

    um fio de uma s perna, como dito pelo povo

    de santo, e seu comprimento deve chegar aproxima-

    damente altura do umbigo. As contas utilizadas

    so sempre leitosas, no transparentes.

    Tudo que se refere ao abi, de maneira geral, deve

    ser o mais simples e bsico possvel. Assim, a saia

    e a camisa so sempre nas cores brancas e com

    poucos detalhes. O tecido mais comumente uti-

    lizado o algodo ou polister, barato e de fcil

    lavagem. Usa-se muito a laise, um tipo de tecido,

    que considerado mais bonitinho para os dias

    de festa. Portanto, a roupa como um todo no

    tem muitos detalhes, rendas ou quaisquer outros

    adornos que chamem muito a ateno; simples

    como ainda simples o conhecimento que o abi

    tem da religio.

    Abis no usam sapatos. Assim como os ias, an-

    dam descalos. O sapato privilgio que s ser al-

    canado aps a obrigao de trs anos de iniciao.

    Yawo: preparado para o mistrio

    O yaw, grafado em portugus ia, segundo Be-

    niste,8 possui controvrsias em sua etimologia,

    podendo assumir dois significados: adaptao do

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