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Odararevista de arte e literatura [vol. 4]

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Reitor

Prof. Dr. Roberto Leher

Diretora da Faculdade de Letras

Profa. Dra. Eleonora Ziller Camenietzki

Chefe do Departamento de Ciência da Literatura

Profa. Dra. Flávia Trocoli

Equipe Odara

Amanda Dib, Brena Azevedo, Camila Silva Mendes, Erick

Sierpe, Flávia Natércia, Maria Júlia Santana, Pablo Rodrigues,

Paula Campello, Ricardo Pinto de Souza, Rafaela Miranda de

Oliveira.

Revisão

Amanda Dib, Brena Azevedo, Camila Silva Mendes, Erick

Sierpe, Flávia Natércia e Rafaela Miranda de Oliveira.

Diagramação

Desalinho [www.desalinhopublicacoes.com.br]

Agradecimentos

Agradecimento: aos colaboradores da revista por terem toda

a paciência de esperar a nossa quarta edição ficar pronta.

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Odararevista de arte e literatura [vol. 4]

Desacreditado Mundo

Novo

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Editorial • 7

Equipe Odara

Principia

Con.siderações sobre um conceito em expansão ou a literatura

numa casca de noz • 10

Luiza Martins Bezerra

ClaroescuroDeixando a Caverna: A questão do “nada” em Waiting for Godot e A paixão segundo

G.H. • 13

Amanda Carraro

Em nome da razão • 18

Mariana Basílio

Dito e não dito poema mais-valia • 22

Kvala do Kão

Silêncio • 25

Marcela Corrêa Menezes

Sessão Gabriel Bustilho • 31

Sumário

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Cidade Cidade fantasma • 33

Adson Santos

Lena carioca 36

Igor Damásio

XII • 42

Antônio Frederico Lasalvia

O Terceiro Rumo • 44

Amanda Dib

Perspectiva Cinema e percepção na era da reprodutibilidade • 47

Isabelle Montenegro

Vontade de catarse, vontade de purgar-se • 55

Sergio Novo da Silva

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Editorial

Equipe Odara

Cento e quarenta e um mil e seiscentos carros passam em média pela Linha Amarela todos os dias. O número, registrado em veículos, não deixa saber ao certo quantas pessoas circulam por ali diariamente. Tem-se apenas uma noção, por projeção, de que são muitíssimas. Todas a organizarem seus dias para pegarem os ônibus que atravessam a Via Expressa sem fazer paradas ou para não colocarem na pista mais automóveis do que lá podem passar ao mesmo tempo. Por conta da necessidade de cruzar a via, criaram-se gestos, como consultar notícias e celulares antes de sair de casa para saber se há engarrafamentos. Antes mesmo das obras Olímpicas atropelarem os cariocas, lá estava a Linha Amarela, como trecho de estrada e etapa diária a ser atravessada.

As favelas que se espraiam nos arredores da Linha Amarela são muito mais refletidas em imagens e interpretações do que a Via Expressa. Como se os motivos que fazem com que pas-semos pela estrutura de concreto e asfalto não fossem irmanados aos que levam as favelas a crescerem, também diariamente, em extensão e tensão. A Linha Amarela está diante dos olhos e sob os pés dos cariocas, gravada nas íris mecânicas e memórias eletrônicas das câmeras de vigilância e marcadores de velocidade. Está registrada segundo a segundo, todos os dias, em imagens disponíveis, democratizadas. A foto que estampa a capa desta edição foi roubada do site da construtora que ergueu a via. Os números de automóveis que a percorrem foram tirados do site da empresa que administra o pedágio. A qualquer momento é possível saber, seja pela televisão ao pela internet, como está o fluxo de carros. A Linha Amarela está exposta e destrinchada diante de nós, no entanto registramos mais tédio, ansiedade e cansaço do que observações sobre como ela nos orienta.

Os termos  fim da utopia  e   fim da esperança  costuraram nosso convite às colaborações para a presente edição. O tom dos escritos que recebemos foram em geral menos pessimistas. Chegaram à nossa caixa textos que através da literatura colocam em perspectiva diferentes aspectos do cotidiano contemporâneo. Seja através da capacidade da poesia de não deixar

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8 • Odara revista de Arte e Literatura [v.4/2014]

fugir aos sentidos o impacto dos mecanismos da violência, como no Poema Mais-Valia, de Felippe Lima, que escolheu assinar como Kvala do Kão, ou em uma potencial aptidão da lite-ratura para restituir valor à palavra e, por meio dela, reestabelecer a democracia, como aposta Sergio Novo. Alguns colaboradores debruçaram-se sobre instâncias aparentemente opacas da existência,  como o silêncio do conto de Marcela Menezes, ou o que estaria além da razão, como no poema de Mariana Basílio. Já Isabelle Montenegro foi mais categórica e, ao retomar o debate de Walter Benjamin sobre arte e reprodutibilidade técnica, acabou por ver no cine-ma hoje menos potenciais libertários do que via o crítico alemão no final dos anos 1930.

A Odara tem como proposta abrir um espaço que, a partir da literatura e da teoria, ini-cie reflexões e debates não só sobre o fazer literário, mas também sobre as diferentes idéias e práticas que influem na vida social. Para tanto, dividimos em seções os textos que apresentam pontos contrários ou de contato, permitindo assim, além de interpretações de cada escrito em particular, leituras mais amplas e complexas dos aspectos destacados por cada texto. Entre os integrantes da equipe da revista há diferentes visões sobre a capacidade e as formas através das quais a literatura pode colocar em causa tensões do cotidiano. Entretanto, concordamos todos em trazer na capa a imagem da Linha Amarela. 

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Principia

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Con.siderações sobre um conceito em expansão ou a literatura numa casca de

nozLuiza Martins Bezerra

A literatura cria uma relação infinita de significantes para com significados que dá ao leitor uma obra remodelada pela sua própria concepção de mundo. E que se expande, como efeito, quase como a morte de uma estrela: condensa, agita e funde os átomos até que não haja mais espaço nem gravidade para mantê-los como um único corpo; então ela explode e todas as suas partes flutuam pela imensidão do universo. Um espetáculo de vida, transcendência e o início de um novo ciclo. Eis aí o que a literatura pode fazer com o ser humano: uma supernova e a recriação da vida. A literatura será o falecimento do homem para o renascer de outro. Uma ruptura entre o indivíduo e pessoa social, criando uma fenda entre o leitor e a obra que seria preenchido com desassossegos e questionamentos sobre a realidade conhecida, que a litera-tura proporciona. Retomando a metáfora da estrela, esse preenchimento tornaria a estrela mais quente e instável. Estabelece, a partir dessa perspectiva, um movimento transcendente e de separação entre indivíduo (essência, personificação do plano metafísico) e pessoa social (mutabilidade do ser) para que ambos, após a explosão, retornem a se juntar e a criar uma nova estrela, um novo homem. Essa transformação constante do homem pode ser associada à variação de significado da obra pelo leitor. A infinidade e o prazer do desconhecido o incitam a recriar, como um instinto, o que lhe é apresentado. A obra literária, seja ela qual for, é uma nebulosa. Ela é regida por múltiplos elementos extremamente diversos um dos outros, com oscilação de massa e concentração de energia. Apesar dessas disparidades, todas são ditadas por uma força comum: a gravidade. As nebulosas são formas primárias para a formação de estrelas. Elas são a quintessência para o início e fim de uma vida, o começo de uma transfor-mação constante e volátil da formação de um ser. A força, na física, tem categorias e conceitos diversos que explicam fenômenos naturais e involuntários em relação ao ser humano. Con-tudo a força aqui apresentada diz respeito à gravidade e ela será personificação da transmu-tação e a necessidade humana de transformação. Além disso, manterá seu conceito primitivo de atração de dois corpos. A relação de nebulosa e supernova dependem inteiramente da força

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gravitacional. É ela o fator determinante de metamorfose e dissociação com um corpo avulso, o obituário que implica mesmice, que se retém no espaço, o homem sem literatura, pois ela muda, amplia, se restabelece com o tempo. O homem, entretanto, nada muda de seu íntimo, de sua ambição e forma. Porém, se consciente de sua inconstância, seu interior será o infinito, instável e o explosivo universo. Pois a literatura vai além da forma e significações preestabe-lecidas. Ela flui pelos sentidos e se encontra no ócio, criando um vício no leitor de sentir-se conturbado, de ter sempre uma necessidade de reafirmação da realidade e da mutabilidade da mesma. A literatura traz perspectivas e alteridade para reconhecer a humanidade contida no próprio ser humano e o que vai além dele.

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Claroescuro

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Deixando a Caverna: A questão do “nada” em Waiting for Godot e A paixão segundo

G.H.Amanda Carraro

Na peça Waiting for Godot de Beckett, os personagens Gogo e Didi estão presos a um lugar esté-ril a espera de Godot, alguém que nunca chega. O vazio deste lugar e da vida dos personagens se refletem por toda a peça na repetição de palavras negativas como “nada” e elementos que si-mulam o movimento de eterno retorno, como os próprios nomes Didi e Gogo. De forma similar, o livro de Clarice Lispector, A paixão segundo G.H., apresenta uma personagem que costumava viver na mesma situação de Gogo e Didi, em um mundo de projeções, esvaziado de sentido. No entanto, G.H. passou pela experiência de catábase ao encontrar-se com a barata, abando-nando a terceira perna e a ordem apolínea na qual vivia para ingressar na paixão dionisíaca. Visto isso, este artigo tem como objetivo comparar a trajetória dos personagens prin-cipais de cada obra, tomando como base a alegoria da caverna de Platão e o niilismo de Niet-zsche, para provar que Didi e Gogo são descrentes deste mundo e buscam sair desta caverna para um mundo idealizado através de Godot. Finalmente, também serão mencionados o par “ordem apolínea” e “paixão dionisíaca”, desenvolvido por Nietzsche, para argumentar que Gogo e Didi estão vivendo entre ambos os pares no estágio de “nada”, assim como G.H. esteve quando se despiu de valores projetados para sair da ordem apolínea e adentrar, através da barata na paixão dionisíaca. Sendo assim, em Beckett, Godot exerce a mesma função que a barata exerce para G.H., uma transição para o desconhecido, para a paixão dionisíaca e para o mundo idealizado.

O mundo da obra Waiting for Godot é apresentado como um lugar estéril, composto so-mente por um pequeno monte de terra e uma árvore, um símbolo comum de vida e esperança que na obra não possui nenhuma folha, reforçando a ideia de esterilidade. Neste lugar, passa um número mínimo de pessoas e não havia nenhum tipo de atividade a ser realizada. A mes-ma descrição pode ser feita em relação ao interior dos personagens. Gogo e Didi apresentam profundo tédio e descrença por este mundo e transmitem esses sentimentos através da repe-

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tição constante da palavra “nada” durante a peça. Esta situação pode ser observada na passa-gem seguinte, extraída do princípio da peça.

Estragon: (Desistindo novamente). Nada à fazer. [...] Vladimir: As vezes, sinto que é tudo a mesma coisa. Então, me sinto estranho.[...] Como posso colocar? Aliviado e, ao mesmo tempo.... [...] apavorado. APA-VORADO. Engraçado. Nada à ser feito. [...].Então ?

Estragon: NadaVladimir: Me mostre.Estragon: Não há nada para mostrar. Pg.3 (tradução minha)

O mundo construído por Samuel Beckett em sua obra, pode se adequar à alegoria da caverna de Platão. De acordo com esta, o homem vive dentro de uma caverna, virado para a parede e seu único conhecimento são as imagens projetadas de elementos que passam em frente à fogueira. Nesta alegoria, a caverna pode ser tida como o mundo sensível, o mundo em que vivemos inicialmente. O mundo isolado de Didi e Godo se aplica a este nível sensível no qual eles estão presos a projeções e submetidos a eterna espera por Godot. Porém, na alegoria o homem consegue abandonar a caverna na medida que adquire conhecimento metafísico e passa a se conhecer verdadeiramente. Logo, a espera por Godot pode se relacionar ao desejo de fuga da caverna para o plano inteligível, no qual os personagens encontrarão seu verdadeiro “Eu” e viverão em um mundo melhor por eles idealizado. O desejo de transição e a insatisfação com este mundo é evidenciado também pelas constantes tentativas de causar alguma ação, como enforcar a si mesmo. Na passagem abaixo, Estragon afirma que as pessoas são ignorantes, podendo signi-ficar o não enquadramento neste mundo e o desejo por outro nível de conhecimento. Por isso, o propõe que eles se movam, porém, Vladimir afirma que eles estão esperando por Godot.

Estragon: Quem acredita nele?Vladimir: Todo mundo, é a única versão que eles conhecem. Estragon: Pessoas são malditos macacos burros [...]Estragon: Locais encantadores. Futuros inspiradores. Vamos!Vladimir: Nós não podemos.Estragon: Porque não?

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Amanda Carro Deixando a Caverna: A questão do “nada” em Waiting for Godot e A paixão segundo G.H. • 15

Vladimir: Estamos esperando por Godot.p.4 (tradução minha)

No livro, A paixão segundo G.H. de Clarice Lispector, uma jornada similar pode ser depreendida. G.H. é acostumada a uma vida padronizada com tudo perfeitamente lim-po e claro em seu apartamento, sendo a representação de tal organização. No apartamen-to, ainda existem decorações que imitam a vida de artistas e a própria personagem diz ser tudo a projeção do real. Por esta afirmação, já é possível inferir que G.H. vivia na caver-na, no entanto, algo a incomodava e ela decide começar a organizar seu apartamento pelo quarto da empregada. Tal decisão a introduz na travessia para o abandono da caverna. Esta transição requer que ela deixe seu atual estado e entre em um estado de “nada”, no qual ela abandona todas as suas convenções. Neste estado de “nadismo”, a personagem deixa todas as projeções que a definiam pra trás, como é exemplificado no começo do livro.

Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é neces-sário, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me im-possibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi e voltei a ser uma persona que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive. [...] p. 9-10

Como foi mencionado anteriormente, o “nada” também é recorrente na obra de Beckett pela mesma necessidade de despir-se das projeções que constituem os personagens, inicial-mente. Ademais, esta repetição pode ser argumentada como sendo uma forma de mostrar desistência dessa vida, sendo esta atitude niilista. Contudo, o niilismo de Gogo e Didi mostra a recusa em desistir, eles não são capazes de suicídio e não se movem para outro lugar. Ainda que a existência deles esteja presa à um círculo infinito, Gogo e Didi nunca desistem de espe-rar por Godot. Por conta desta recusa em desistir, pode-se dizer que o niilismo existente em Beckett é baseado no conceito de Nietzsche: um niilista não é quem para de crer em tudo, mas que para de acreditar neste mundo frente a um mundo idealizado. Desta perspectiva, Godot pode ser representado como um tipo de Messias que virá e levará estes personagens para o mundo Utópico que eles idealizam.

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Estragon: DidiVladimir: Sim...Estragon: Não posso continuar vivendo assim. Vladimir: Isso é o que você acha. Estragon; E se partíssemos? Seria melhor para gente. Vladimir: Vamos nos enforcar amanhã. Ao menos que Godot venha. Estragon: E se ele vier?Vladimir: Nós seremos salvos. P.47 (tradução minha)

Outro ponto interessante a ser ressaltado quanto a presença do “nada” nas obras é a necessidade desse elemento na obra de Clarice, de forma mais ex-plícita e, o estado de “nada” entre as projeções e o inteligível em Godot. G.H. durante sua trajetória em direção a grande epifania causada pela barata, começa a aban-donar todas as suas maneiras e costumes que a identificavam até então e seu nome não é completamente revelado. Finalmente, quando ela encontra a barata e pratica “antropofagia”, no sentido Oswaldiano, ela abandona completamente sua forma humana e absorve os traços da barata, tornando-se uma. Através deste ritual G.H. é renascida após abandonar sua identi-dade prévia, sendo agora capaz de reconhecer o seu “eu” real e adquirir o real conhecimento. A seguinte passagem mostra tal transição.

“[...] Eu sempre estivera em vida, pouco importa que não eu propriamente dita, não isso a que convencionei chamar de eu. Sempre estive em vida.

Eu, corpo neutro de barata, eu com uma vida que finalmente não escapa pois enfim a vejo fora de mim - eu sou a barata, sou minha perna, sou meus cabelos, sou o trecho de luz mais branca no reboco da parede - sou cada pedaço infernal de mim. [...]” p.64

No que diz respeito a importância de Godot na peça, este pode ser comparado a barata de G.H.. Enquanto a barata foi o impulso necessário para G.H. abandonar a ordem prévia de um mundo projetado, Godot é a única esperança de Didi e Gogo de deixar seu mundo vazio em detrimento do mundo idealizado. Este outro mundo seria a forma de alcance do real co-nhecimento de si mesmos, ainda que esse conhecimento viesse a partir de uma desordem, do

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Amanda Carro Deixando a Caverna: A questão do “nada” em Waiting for Godot e A paixão segundo G.H. • 17

abandono da zona de conforto, sendo este abandono, a paixão dionisíaca, apresentada em ambas as peças.

A partir da análise das obras, é possível concluir que o “nada” é apresentado como um es-tágio necessário para a transição da ordem apolínea para a paixão dionisíaca ou de acordo com a alegoria platônica, para o abandono da caverna. Portanto, em Beckett os personagens estão nesse estágio intermediário de “nada”, expressando o constante desejo de abandono deste mundo e a espera de um outro melhor. Ainda, comparando com a obra de Clarice Lispector, o despir-se das convenções foi a ação de rompimento com o mundo sensível e de ingresso na catábase que levaria ao mundo inteligível. Assim, Godot e a barata podem ser apontados como os elementos causadores deste rompimento e consequentemente, da transição entre planos.

Referências bibliográficas

BECKETT, Samuel. Waiting for Godot. Groove Press. 1982. 111 p. COSTA, Gregory Magalhães. A trilogia romanesca trágica de Clarice Lispector. Revista

Doc., Rio de Janeiro, nº7, Junho. 2009 .<http://www.revistapontodoc.com/7_gregorymc.pdf>. Data de acesso: 18/12/2016

FURTADO, María Silvia Antunes. O vazio em Clarice e Duras. Revista Garrafa 34, Rio de Janeiro, maio-agosto. 2011. <http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa/garrafa24/volii/ova-zioemclarice_silviafurtado.pdf>. Data de acesso: 18/12/2016

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco , 2009. 180 p. NIETZSCHE, Friederich. O nascimento da tragédia. Editora Escala, 2007. 172 p. PLATÃO. A república. Martin Claret, 2011. 320 p.

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Em nome da razão

Mariana Basílio

EM Receio ser larga a hesitação de meu caminho, Ser um mito a conquista da montanha.

Lupe Cotrim Garaude

A nossa vida é mesmo estranha. Vida inexata, via-crúcis da alma.Que ferocíssimo dilema existir.

Ser ou não ser? Turvo turvo, Na turva sombra, o mundo.

Sombra de doenças incuráveis. Rastro das eras improváveis.Como loucos rebentos do sol,

Fincados pela noite d’água.

Oh circo em chamas, nascemos!Queimados na maldade insana.

Em nome da razão sorvendo Lasciva o breu da existência.

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19 • Odara revista de Arte e Literatura [v.4/2017]

Tempestade das bombas, a razão.Distância dos países, a razão.

Como se a certeza existisse e aBeleza pudesse ser uma ciência.

Como se bárbaros fossem bárbaros.Como se miragens fossem miragens.

Em nome do capital, vespas humanas.Pela construção de cada nova fome.

Pela miséria do que nos conforta.Pelos minérios que são fissuras

A naufragar como um vil espanto.

Em nome da razão: o nosso fim.

Pois os rasgos do mundo não verãoVozes e metas dos vossos tolos egos.

Os rasgos do mundo não absorverão oDescomunal julgamento do que é certo.

Os rasgos não tomarão psicotrópicos.Os rasgos não apontarão o que somos.

Centenas de desejos reprimidos.Centenas de sonhos proibidos.

Centenas de vozes caladas.Centenas de elos perdidos.

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Mariana Basílio Em nome da razão • 20

Quem sabe renasçamos palavras?Mais personas do que antes.

Na utopia que é raiz das cores Que hoje são ondas distantes.

Do teu corpo ao meu corpo.

A loucura é o que nos libertará.A loucura essência motora.Não haverá lei nem regra. Não haverá vida incerta.

Como um tremor a invadirO vazio que jaz o mundo.Força contra a violência.Fogo de toda resistência.

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Dito e não dito

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poema mais-valia

Kvala do Kão

carandiru na etimologia tupi-guarani de alguma língua arquivada em papel mofado é a soma de carandá mais irú que quer dizer abelha da carnaúba

carnaúba que faz cestos trançados cestos cheios de abelhas abelhas ociosas espremidas aos montes num enxame, uma em cima da outra

carandiru é um grande cesto-inferno de concreto preto rachado de ferro enferrujado onde mais vale setenta e quatro do que cento e onze

e o que são cento e onze perante setenta e quatro? setenta e quatro policiais armados cento e onze homens-abelhas fuzilados

abelhas arruinadas em celas  celas de abelhas enclausuradas abelhas que não fazem mais-valia pois mais vale um enxame contido do que solto do cesto

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23 • Odara revista de Arte e Literatura [v.4/2017]

mais vale a parcimônia  de vinte e quatro anos de julgamento do que o pranto das cento e onze mães desconsoladas virgens marias pretas e faveladas

indigentes aidéticos bichas sifilíticas raquíticos aviõezinhos pretos gordos nordestinos estupradores traficantes pais de família cento e onze no pátio, depois nos corredores, amontoados

o carandiru é um grande cesto cheio de sangue sangue de sabor que não o do mel da abelha  sangue amargo, sangue quente sangue dos cento e onze executados a sangue frio

sangue dos cento e onzeque também corre em veia dos outros cento e tantos incontáveishomens-abelhas durante esses mais de quinhentos anos

nessa multidão de corpos de homens-abelhas não cabe o zangão-policial pois mais vale setenta e quatro zangões de pica-revólver em riste do que cento e onze

cento e onze pelados   nenhum usava farda pois mais vale a farda dos setenta e quatro do que o despudor dos cento e onze defuntos de olhos abertos

cento e onze daria para encher quantos camburões? caberia cento e onze em uma cela só?

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Kvala Kão poema mais-valia • 24

caberia cento e onze até numa vala só vala comum de desvalidos sem direito a um valei-me deus!

cento e onze, deixe-me ver tua grande cara nesse carandiru de corpos estirados em grandes montes de cento e onze cento e tantos homens numa grande pilha de sem-nomes

apenas cento e onze

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Silêncio

Marcela Corrêa Menezes

Apenas três pessoas estavam presentes no dia do enterro de dona Fátima no Cemitério do Maruí, em Niterói. Eram elas: uma vizinha antiga, seu único neto e o coveiro – que, de fato, nunca conhecera a velha. Fátima tinha 64 anos e havia cinco que lutava contra um câncer no pulmão, causado pelo consumo de incontáveis cigarros. Em seus últimos dias, já não conse-guia se levantar e respirar era um trabalho árduo. Foi então que a morte veio como um alívio, um derradeiro suspiro que lhe retirou todo o sofrimento.

Durante toda a cerimônia, os presentes mantinham-se calados. A vizinha, porém,ora ou outra, fungava baixinho enquanto fitava melancolicamente as pétalas da solitária rosa que ti-nha nas mãos. Pedro, por sua vez, manteve-se inexpressivo até o momento em que a tampa de concreto,empurrada pelo coveiro, deslizou, ocultando totalmente a imagem do caixão. Pedro foi o último a chegar e o primeiro a partir. O sol quente sobre sua cabeça o deixava tonto e o choro de outros funerais próximos, desconfortável. Por isso, a passos rápidos, caminhouden-tre o amontoado de lápides e flores secas que o cercavam em direção a saída daquele lugar. O ar era denso demais e gotículas de suor brotavam em sua testa. Era quase meio-dia.

Ainda que tivesse alcançado a saída do cemitério, a atmosfera pesada que o rodeava não se dissipara. Os passos prestes a serem dados, contudo, motivados pela necessidade de... resolução? Resolução de um amontoado de sentimentos que o perpassavam, seguiam por um caminho tortuoso, regredindo, aos poucos, até uma colisão iminente de Pedro com suas pró-prias lembranças.

Fora assim, contudo, que os próximos quinze minutos de caminhada o levaram até a casa vazia de Fátima. Ele estava lá, em frente à escadaria, olhando fixamente para a casa velha e mal pintada no final do morro, cercada por um portão de ferro enferrujado e um muro de tijolos decorado com o verde do limo e do mato, que sem nenhuma autorização crescia nos arredores da propriedade. Com a manga da camisa, secou o suor da testa e tomou fôlego num último suspiro.

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Cada degrau era um dia a menos, um passo em marcha à ré para o passado. A cada pas-so, o ar ficava mais denso. As memórias o incomodavam tanto que mal podia encarar a figura da criança que ele mesmo fora, parada em pé em frente ao portão, no topo da escadaria. Ainda assim, prosseguiu com a cabeça abaixada, escorando a mão esquerda no chapisco do muro de um vizinho próximo. Quando alcançou o último degrau, estava exausto, mas o cansaço não o fez hesitar. Puxou o trinco e empurrou o portão de ferro, deixando um ranger soar no ar e, por consequência, provocando os latidos do cão da casa ao lado.

A chave da porta se encontrava entre as folhas do vaso de planta no canto direito da so-leira. Pedro a pegou, abriu a porta e se viu, de repente, no cenário do seu passado. O lugar era quase igual ao que se lembrava. Quase. Pois os dias passam, algumas coisas mudam e outras simplesmente vão acumulando poeira. Ele mesmo tinha mudado: já não era a criança em pé ao lado da mesa da cozinha, ou o garoto magricela deitado no sofá. Ainda assim, a mudança não isenta a camada de poeira que se deposita sobre as coisas – e esta, sem exceções, se assen-ta sobre tudo: os livros, a mesa, a cadeira e a alma.

A casa não era grande, nem bonita. Uns amontoados de livros empoeirados se espre-miam numa estante no canto da sala – que não passava de um cômodo pequeno e mal ilu-minado. Do lado direito, havia uma cozinha pequena, com uma única janela que dava para a caixa d’água no quintal do vizinho. Do lado esquerdo, uma entrada que levava a dois quartos pequenos com grades nas janelas. O banheiro ficava nos fundos. Ele esperava que o vínculo com o passado se quebrasse ao esvaziar aquela casa.

Aonde quer que Pedro fosse, a imagem de Fátima o acompanhava. Ela estava impregna-da em cada enfeite sobre a estante, no modo como as coisas tinham sido organizadas e nas flo-res secas sobre a mesa. Quase podia senti-la ali, olhando para ele, sustentando nos castanhos dos olhos um julgamento silencioso.

Ele se lembrava de seu último dia naquela casa: era uma noite abafada, quando gritou com as paredes para não morrer sufocado. Então rompeu pela porta e desceu as escadas. Ju-rou não voltar. Naquela noite os olhos de Fátima estavam serenos.

De toda forma, já não importava. Uma corrente de ar ligeira fechou a porta repentina-mente e o baque o trouxe de volta à realidade. Ele respirou e esfregou o rosto, olhando para a entrada. Não era só o vento, era o seu próprio fantasma, que rompera pela porta e descera as escadas, sete anos atrás.

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Marcela Corrêa Menezes Silêncio • 27

Pedro atravessou a sala até a cozinha, procurando algo para que pudesse começar a em-pacotaras coisas. Achou uma caixa de papelão e algumas sacolas do lado do fogão. Voltou para a sala e foi até a estante. Seus dedos abriram caminho entre a poeira.

Livros, enfeites, documentos, ocupavam lugar dentro das sacolas. Mas nenhum retra-to. Não haviam retratos. Na cozinha, um jogo de xícaras amarelado, copos, pratos, panelas se acomodavam dentro da caixa. Em contrapartida, o vazio sorrateiramente preenchia todo o espaço até que se apropriasse dos cômodos por completo. Havia muita coisa para se jogar fora – em sua grande maioria, papéis: contas vencidas, jornais, calendários passados... uma grande sacola preta de plástico recostava-se na porta da cozinha. Então ele respirou fundo e foi para o quarto.

Tudo cheirava a mofo. Pedro abriu o armário e jogou todas as roupas em cima da cama. Não eram muitas, mas suficientes para preencher metade daqueles grandes sacos pretos. Pa-rou por um segundo para vislumbrar aquela desordem. Nunca tinha visto o quarto dela da-quele jeito. Fátima era uma mulher que prezava, sobretudo, a organização. Observar o quarto daquele jeito era como se a imagem dela se dissipasse em meio ao caos.

O que não estava em caixas, estava em sacos. No quarto, apenas sobraram as manchas de infiltrações nas paredes, os móveis e as lembranças assentadas sobre as coisas. Pedro sen-tou-se na borda da cama, ao lado de um criado-mudo. Sentiu certo incômodo ao sentar-se sobre aquele colchão desgastado pelos dias, então se levantou e ergueu aquela camada de es-puma para ver o que havia ali. Entre o estrado e o colchão, repousava um livro.

A capa era preta, de couro surrado, com marcas de um título que outrora fora pintado, mas o dourado se esvaíra com o passar dos dias. No entanto, Pedro não precisava de muito para identificar que livro era aquele, ainda que só o tivesse visto poucas vezes.

Soubera pela jovem que tomara conta da velha que, em seus últimos dias, Fátima não o soltara – ainda que não soubesse ler, as palavras naquelas folhas velhas e enrugadas a acalma-vam. E assim morreu: apertando um livro contra o peito, cada vez mais, até o último suspiro. Então suas mãos se afrouxaram.

Mas lá estava ele, encarando um livro velho e indigente que costumava repousar sobre os estrados de uma cama ainda mais velha, sufocando lentamente pelo peso dos dias e do col-chão, até que,num primeiro movimento para fora de seu leito, as folhas se desprendessem e caíssem no chão.

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De fato, fora isso que se sucedera. Quando o rapaz o abriu, três folhas se soltaram e pousaram sobre o piso frio. O texto tinha pequenos buracos causados pelas traças, tais que formavam um pequeno abismo sobre a superfície de papel e arrastavam as palavras para um vazio inexpressivo. Assim,perdera-se o sentido do que outrora fora dito e restava a incomple-tude e o silêncio. No entanto, o que podia-se recuperar, nada mais era do que um resquício, uma marca da palavra que se queria dizer, e que de fato fora dita, antes do tempo e das traças a arrastarem para a imensidão de um pequeno e simples buraco. Às vezes, nossos resquícios são apenas uma letra ou um ponto final.

Tentou recolher as folhas, mas estavam tão velhas e quebradiças que, com seu toque, frases inteiras perderam o sentido. Ainda assim, pôs os pedaços que sobraram de volta no leito das páginas amarelas, protegidos pela capa de couro.

Pedro levantou com o livro na mão pronto para guardá-lo entre as coisas que seriam le-vadas dali, mas algo inesperado caiu de dentro dele. Algo um pouco mais pesado que uma sim-ples folha. O envelope chocou-se verticalmente contra o piso e repousou sem graça no chão.

Olhou com estranheza para o objeto. Ele não possuía buracos como as páginas que re-colhera, nem compunha parte daquele todo amarelo-envelhecido das folhas do livro, o tempo não o havia afetado – sua palidez era recente. Pedro abaixou-se e pegou o envelope, colocando--o sobre a capa do livro ainda em suas mãos. O olhar de curiosidade varreu cada centímetro da carta, acompanhando as linhas de papel sobreposto. Virou o envelope intrigado, analisando-o cuidadosamente. Nenhum remetente ou destinatário, apenas o branco, um branco silencioso.

Largou tudo do jeito que estava. Deixou o livro sobre a cômoda e as roupas nos sacos encostados na parede. Acariciou com o polegar o envelope em suas mãos e foi andando para a sala. Esbarrou em algumas coisas pelo caminho, que simplesmente foram empurradas para o lado com o pé. Sentou-se finalmente no sofá e encarou aquela brancura desconhecida.

Havia algo naquele envelope que o perturbava. Talvez fosse por tê-lo encontrado es-condido dentro do livro, ou melhor: escondendo-se; desejando fundir-se às páginas deste, esperando por alguém que fosse digno o suficiente para que então se revelasse. Digno? Ele nunca fora. Não aos olhos de Fátima. Então tudo não passava de uma coincidência, um mero acaso, um envelope branco.

Revirou novamente a carta, hesitando em abri-la... até que o fez. Tudo fora muito re-pentino: respirou fundo e, com as unhas, puxou a parte colada. O som do papel rasgando ecoou como um grito pelo ar. O grito dela. Então os pedaços de papel planaram no caminho

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ao chão e se chocaram contra como blocos de concreto. Silêncio. Nas mãos dele pousava já não mais um envelope, mas sim um túmulo que fora violado.

Uma rajada de ar quente escapou-lhe pela boca num longo suspiro, sua respiração era pesada e cansada. Com cuidado, tocou o papel que havia dentro da sobrecarta; temeu que o mistério se dissolvesse em suas mãos, que secasse e quebrasse em mil pedaços, escorrendo, por fim, como areia por entre os dedos. Mas o papel não atendeu aos seus temores.

Pedro o foi desdobrando lentamente. A cada dobra desfeita, seus dedos iam se envol-vendo mais e mais na terra, uma terra escura e úmida que ia se alojando no vão entre unha e carne, cavando um solitário e sombrio fosso, até que tocasse no próprio rosto de Fátima – pois não haveria mais caixão, não haveria mais nada entre ele e o que estivesse dentro daquela car-ta. Uma hora tocaria no rosto desfalecido da avó e ela abriria seus olhos – e estes já não seriam castanhos, mas brancos. Brancos como o papel.

No entanto... sua cova estava vazia. Quando o último punhado de terra fora retirado num simples dobrar de papel, ele nada encontrou. Não havia corpo, ou palavras, resquícios ou marcas do tempo – este jamais tocara aqueles papéis. A folha parecia tão sólida, diferentemen-te de tudo o que havia em sua volta: as paredes frágeis dissolviam-se cada vez mais no tempo e nas lembranças.

Aquela brancura inexpressiva o perturbou de maneira tal que já não podia dizer o que aquilo era. Uma carta? De Fátima? Ele supunha que sim, mas não sabia. A verdade é que jamais soube, porém, ainda assim, nomeou por convenção e necessidade – ele, como todos os homens, tinha a necessidade de teorizar sobre o que não entendia; o desconhecido o as-sustava. E, justamente por isso, surgiu-lhe o desejo de compreender o que aquela ausência significava ou o que ela justificava. Jamais, porém, teve certeza das palavras que abrigavam no incorruptível silêncio.

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Sessão

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Gabriel Bustilho

você ouvepassoscala-sefaz a mão comera bocao silêncioé sua chance

atenciosamente ouvepassosrezar seria um luxopor que Deus virou a caraem qual cemitério enterraramos anjose os homens comuns

você ouve maispassosvocê lembraseu pai não tem mais olhos pra chorarvocê sorri

os passos sussurram pra você:

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Cidade

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Cidade fantasma

Adson Santos

Ravel tinha sessenta anos quando viu o filho morrer. Dois tiros no peito. Quando os pais co-meçaram a enterrar as próprias crias naquele verão, algo sucumbiu sobre suas cabeças, o de-sejo perene de reerguer as estruturas antes alicerçadas ali. Ravel, contemplativo, assistia a queima de fogos anual. Sentia determinante saudade da infância e, quando vagava pelas noi-tes da cidade como fantasma faminto, entre becos amarrotados de lixo, podia ouvir os gritos. Podia ouvir o horror.

Sua mente era só passado. Conforme a avenida era ocupada por alegorias, pessoas seguiam a festividade. Brota-

vam de edifícios em ruínas, ladeiras lamacentas, vielas e becos escuros. Das casinhas na parte alta da cidade e as tapeçarias multicoloridas. Levavam flores em cestas, alguns arranjos enro-lados em pedaços de pano. Crianças se equilibravam em muros, enquanto os animais corriam assustados com o barulho dos fogos. Os fogos riscavam o céu, queimando nuvens, com frag-mentos dos sorrisos daqueles que ali depositaram tudo o que tinham.

Os olhos escuros intensificados pela noturna festividade. Pessoas se esbarravam, convi-davam. Em uma esquina, deram-lhe até beijos e lhe ofereceram flores bem cultivadas.

Ravel lembrava vagamente da sua cidade antes imune. Quando derrubaram as escolas e impediram o culto religioso, os homens mais velhos sabiam o que fazer. Juntaram poucos homens, foram até uma região mais afastada da cidade e atearam fogo nas tendas ali fincadas. Como retaliação, foram todos mortos, chamaram de incidente, fizeram uma cobertura lo-cal. Massacraram vilas, pessoas foram separadas de suas famílias. Durante aquele mês alguns homens foram esquartejados e os corpos foram exibidos em praça pública. Mulheres foram estupradas dentro de casa na frente de filhos e maridos. Os mais velhos tiveram que enfrentar severas punições em nome de quaisquer infrações cometidas pelos mais novos.

Ravel era garoto quando viu o pai, um comerciante de trigo, ser baleado pelas costas. Suas duas irmãs foram mandadas ainda cedo para uma cidade vizinha. Ficou com sua tia, a

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quem atribuía o papel de mãe. E, junto com a sua mãe acolhida, passaram quinze verões até o vento soprar sobre os calabouços da cidadezinha.

Sua infância não foi uma das piores. Brincava de gude, pega-pega, esconde-esconde, po-lícia e ladrão e baralho. Quando sua tia estava de bom humor o levava para uma fazenda com um grupo de amigos. Contavam amenidades se esgueirando pela cerca pálida, o solo fértil que parecia não ter fim. Às vezes ficavam em silêncio mastigando uma fruta, fitando as enormes laranjeiras do lado de um casebre, e batiam os pés um no outro. Pagavam cipó e ameaçavam uns aos outros de surra, imitando os próprios pais.

Simone era o nome da sua tia, uma moça de temperamento arisco. Tinha seus vinte e dois anos, os dentes alinhados, jeitosa, mas comum. Perdeu o pai cedo também. Talvez fosse um infortúnio familiar.

Ravel sempre lembrou, em seus pensamentos mais profundos, da moça jovem e sofrida que fez muito com tão pouco. Tinha sim seus sonhos latentes que foram pouco a pouco lar-gados pelo caminho árduo que lhe obrigaram a percorrer. Quinze anos ela sonhou com uma casa, uma família, o que lhe restara foi um bastardo.

Ele era só um moleque magricelo, cheio de feridas, travesso. Às vezes sentia o incômodo. Parecia algo. Esse algo banalizado e que ao longo dos anos

persiste mesmo sem propósito. Esse pensamento descartado, o sentimento não nutrido. Abandono. Simone havia lhe proporcionado a chance de viver com as próprias pernas, enquanto a vida que ele lhe roubara decerto não a permitiu andar sozinha.

O que eu fiz? Cada “tic”, cada empurrão. Os muros altos com filetes de fogos, ”tic”. Uma brisa o aconchega, “tic”. Uma castanheira, dois palitos de fósforo no bolso, um banco de con-creto, um casal se beijando, cinco pessoas chorando, um homem pedindo esmola, dois anéis em um dedo, “tic”. Um balão vermelho no céu, “tic”. Desce por uma ladeira com paralelepípe-dos, tudo sente. Sua dor, sua mão e costas. Segura algo no bolso, esse algo sem valor aparente. Como o algo que sentia, como sempre sentiu. Esse lugar vazio no banco, esses beijos camufla-dos. Esses bolsos são tão fundos, refletia.

Lágrimas desciam sem pressa, borrando a visão exuberante daquela noite festiva. Cho-rava por Lucille também. Do seu ingênuo amor. Qual é o papel dos mais velhos senão ressen-tir?

Todo mundo consegue o que quer, “tic”.

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Adson Santos Cidade fantasma • 35

Nada o incomodava e nem ninguém o atingia. Logo as pessoas se enfurnavam em bares, deixando a praça vazia. Tomou seu lugar espaçoso no canto do banco de concreto. O casal foi embora. Os pássaros apareceram. Sentia um peso no corpo todo. Lá Ravel sabia, “tic”. Ravel tinha consciência plena de tudo. Das suas francas limitações, das feridas infligidas sobre a pele flácida, “tic”.

Mergulhou timidamente sua mão esquerda em um bolso e pescou de lá algo. Segurava-o com o cuidado de um pai ao segurar um filho recém-nascido. Sua mão direita fazia sombra em cima do colo, “tic”. Levantou os olhos pela primeira vez em muito tempo, e ao levantar também o braço, fechou-os pela última. O sol, agora nascente, ricocheteou no seu relógio, “tic”. Um filete anelar, pequenas faíscas de luz soltavam no seu nariz. Abriu os olhos. O rosto dividido. Não era tarde demais, era bem cedo. Um balão caiu do céu.

Pegou algo pela mão, os dedos calejados se enrolavam em uma trama de trêmulos atos. Todo mundo consegue o que quer. Ao mendigo suas esmolas, ao casal seus beijos, aos passan-tes o festejo.

O balão caiu do céu. Sua mão caiu sobre o colo novamente. O relógio entregava as horas, as lágrimas entregavam a tristeza, os passantes lhe deram flores.

Cada um serve a um propósito. O seu não era àquele.Afogou algo no bolso fundo demais. Ravel fitou o relógio, as persianas fechadas nos edi-

fícios, os casais sorrindo baixinho, o sol sobre o ponteiro enferrujado, um moço apressado. Ravel decidiu duas coisas naquela manhã: que tinha tempo e que ainda não era tarde

demais.“tic”

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Lena carioca

Igor Damásio

Apesar das nuvens negras que toldavam os seus dias, e todos os espasmos de uma dor lanci-nante que faziam-na revirar-se na cama, de um canto ao outro, nua e fétida, incapaz de pregar os olhos, achava-se frugalmente disposta a ir à igreja naquele sábado à noite. Já havia recusado por demais os convites de Maurília – e, além do mais, apesar das perdas, havia uma sensação, por mais embrionária que fosse, de que o espetáculo tragicômico da vida necessita de uma continuação. Porém, de maneira alguma colocaria a sua melhor roupa ou maquiagem, se é que ainda tinha plena capacidade mental para escolher algo, e encontrar qualquer coisa no meio de tanta bagunça não seria fácil também – roupas jogadas ao chão, travesseiros e lençóis, papéis e fotografias, pratos de comida e de bebida, tocos de cigarro, não importava, Deus seria obrigado a aceitar toda a sua desordem.

Como se já não fosse horrível o bastante, o bife queimado na frigideira amassada. O sol havia se posto há minutos, e pequenos pontos brilhantes no céu já se faziam visíveis, indican-do-nos que seria uma noite bastante estrelada, típicas das noites de veraneio, com o plenilúnio incidindo os seus feixes pálidos e radiantes sobre a terra. Mas onde será que Matheus está já que não em seu quarto estudando para a prova final de segunda-feira? Mas que menino vadio! A pedagoga ligara há três dias para matraquear sem propósitos e uma impaciência subiu-lhe a garganta feito um vômito acre – “Oh, mamãe, Matheus está tão agressivo com os colegas, com os professores. Não quer saber de estudar, deixa as provas em branco. Nós soubemos do ocorrido, lemos o jornal, assistimos o jornal do meio-dia e sentimos muitíssimo, pois Alexan-dre sempre foi muito querido pela nossa instituição, mas não pode servir de desculpas. Na verdade, deveria servir de incentivo para que a Senhora conversasse com ele. Acreditamos na mudança e no bom senso...” Mamãe, oh céus! Queria ter gargalhado das palavras desta mu-lher! Ser mãe, o que era ser uma mãe? Não, era uma desgraça esculpida em corpo de mulher por algum tipo de Deus esquizofrênico – o marido para os braços da mulher, sua ex-amiga, da igrejinha das mulheres do véu; acabara de enterrar um filho há poucos dias e o mais jovem

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servia-se como puta para banquete de traficante. Agora a porta se abre, Matheus avisa a sua chegada com uma voz fatigada que, à medida em que ele caminha à cozinha, torna-se mais audível. O suor escorre em seu corpo corado de sol, havia herdado a palidez de seu pai, os pés e as mãos imundos de poeira – estava jogando bola ao menos, coisa de macho, o filho tinha pelos no saco. Não iria questioná-lo, boca calada não entra mosca nem amargura. Limitou-se a pôr a comida no prato – um arroz papado feito na hora, um feijão de dias no congelador e aquele bife que causava náuseas só de olhar. Talvez ovos, será que ele poderia querer? Não, não. E nem alguns tomates também? Não, de modo algum. Ambos sentaram-se à mesa, silenciosos, apenas o arranhar do garfo e das facas tocando os pratos podiam ser ouvidos, e ora ou outra o canto da cigarra, um suplício. Tentava triturar a carne dura, encarava-o (sim, usaria também um brinco, já não queria ir à igreja como um trapo). Que inconstantes suas vontades, como dizia a Sra. Cardoso! Era uma festividade de irmãs, mas será que poderia convidá-lo, o seu próprio filho? Não, não seria uma boa ideia. Droga! A carne emborrachada, carne de segunda. O seu olhar atravessou a mesa, pousou em Matheus, que parecia não degustar coisa alguma – se é que havia algo a ser degustado –, mas apenas engolia como o pai e bebia o resto do suco de caixinha. Ele é o reflexo do pai, talvez seja como o pai, Deus o livre de ser como aquele homem, inútil e insensível. Levantou-se, ele, dirigiu-se à pia e despejou o prato sobre ela. Para onde ele iria agora?

– Vou à igreja, Maurília me convidou hoje cedo mais uma vez – E logo após dizer, queria não ter dito nada, nada.

– Os caras estão jogando no campo, vou pra lá.– Tudo bem, tome cuidado. Matheus aproximou-se, tocou-lhe sua cabeça ternamente com os lábios. Amava-a, sua

mãe, tanto que às vezes anelava sua morte só para pulverizar essa massa terrível de sofrimen-to que só parecia inflar dentro de si. Manhã de terça-feira, céu cinzento, ar estático, vestido tão preto quanto a sua pele, não havia muita gente para dizer-lhe últimas palavras, e os covei-ros carregando o corpo dentro daquele caixote de madeira rumo a sua cova. O tormento do ato final, quando ela atirou-se ao caixão, choramingando feito criança em um berço à noite com medo de fantasmas e implorando ao coveiro que a enterrasse junto ao corpo dele, do jovem cuja linha vital fora cortada sem razão alguma numa noite qualquer por sabe Deus o porquê.

– Não se preocupe, mãe. A polícia já foi embora, acha que eu ficaria na rua com os caras com as armas no bolso? – ironizou, não queria preocupá-la, sua mãe – Qualquer coisa, tô lá!

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Igor Damásio Lena Carioca • 38

Por uns instantes, pôde ouvir os seus passos em direção à porta. Ao sair, até as cigarras pararam de cantarolar – em todos os aposentos, novamente, o silêncio tombou miseravelmen-te. Tocou levemente as costas de sua mão na testa, ouvindo o tamborilar do seu coração – le-vante-se, levante-se, tum tum, erga-se, o espetáculo tragicômico da vida necessita continuar, como costumava dizer a Sra. Cardoso –, e pôs-se de pé, indo até o quarto novamente, uma bagunça. Encontrou um vestido branco e um tamanco velho debaixo da cama, aquele que sua irmã havia lhe dado de presente de aniversário há uns três anos. Agarrou a sua bolsinha e atirou uns trocados que estavam em cima do seu criado mudo dentro dela – mas não era para obras da igreja, e não entregaria dinheiro algum para as obras da igreja, Deus teria que amá-la mesmo fingindo não ter um centavo no bolso.

As crianças brincavam de pega-pega. Notou que finalmente a prefeitura decidiu con-sertar os problemas dos postes de iluminação, o que possibilitou a saída dos seus vizinhos para cervejas e jogos de sueca e também para confabular sobre o que lhes viessem à mente de um modo bastante agradável. Ela caminhava, caminhava através da ruela, e ninguém, nin-guém parecia importar-se com o ocorrido há uma semana – era quase indiferente a morte de alguém em um local onde já é bastante vulgar acordar com um corpo na porta de sua casa, embora especulassem no silêncio de suas camas coisas como a que a dona Francisca e a dona Claudete faziam neste exato instante:

– Ouvi dizer que ele andava com os traficantes. Será?– Sei lá, mulher. Ninguém toma um tiro na cabeça por nada. Não olhou para trás, poderia encará-las com toda a sua estatura de mulher experiente,

mas desintegrava-se tal como manteiga em panela quente e, ao dobrar a esquina, duas meni-nas, de mais ou menos dez ou onze anos, respectivamente, quase colidiram com aquela figura que mais parecia um cadáver andante, e resmungaram algo como “Que inferno, quer desfilar no meio da rua? ” – Vadias!, berrou bem alto para si, paralisando o andar e inspirando suave-mente – merda de gato, lixo acumulado, restos de um rato em boca de cachorro –, e soltou o ar, retomando sua caminhada. Ao emergir do beco, dois policiais armados à paisana deram-lhe um “boa noite, senhora”, mas nada respondeu. Sim, também pensava, às vezes, que fora um deles, um daqueles homens que todos os dias ficam à paisana esperando a oportunidade de descontarem as fúrias pessoais em qualquer preto suspeito que aparecesse – e conseguiu lá identificar um certo titubear na voz de um deles, um nervosismo? Sim, conseguiu, pois eles a conheciam também, todos a conheciam agora, a mulher cujo filho assassinado e sabe-se lá

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quem o matou. Mas arrancar a grossa estampa que obliterava a verdade sobre a morte dele, do seu filho, não o traria de volta à vida. E ele não era um Lázaro ou um Jesus de Nazaré, um homem sortudo ou um homem “iluminado” – faça-me rir –, ou agora um espírito qualquer que pairava à terra para lhe indicar as pistas corretas que a fizesse encontrar o verdadeiro assassi-no – não, não é um filme de terror ou uma novela das nove –, era apenas um qualquer, mais um desses que estava no “momento errado e no instante errado” em que ocorreu – mais um – em-bate entre os policiais e traficantes. Era mais um zé que queria ser alguém, um zé ninguém.

O campo de futebol estava vazio, ninguém lá. Garotas em suas saias curtas e blusinhas cavadas davam risadas abafadas aos rapazes que ajuntavam-se a elas.

– Conheço uma casa abandonada, uma casa escura ao norte daqui. - disse um rapaz negro de cabelos louros.

Olhou brevemente de relance – não, Matheus não está lá!– Cê nem sabe pra onde é o norte, garoto – respondeu uma das meninas do bando que

aparentava ter uns quatorze anos, mulata de cabelos lisos.Mas sei onde é a casa, se vocês as novinhas quiserem dar um teco!Cadê, quero ver! – berrou uma, um pouco embasbacada. E o rapaz mostrou-lhe um pa-

cote, mandando-a falar mais baixo e sorrindo maliciosamente.Está bem, está bem, espera só ela passar que a gente vai. – sussurrou em resposta. O silêncio imperou por alguns instantes enquanto ela passava pelos jovens. Queria po-

der desejar-lhes boa sorte e pouca vida, seguiu o seu caminho, sem tornar a olhar de relance os jovens que dariam um “teco” e transariam na casa abandonada ao leste, não ao norte. Ou será ao oeste? Uma brisa soprou-lhe os ouvidos ao chegar em um ponto de ônibus e, juntamente com esta, como se arrastado, os berros do pastor proferindo alguma coisa sobre a prostituta que lavou os pés de Jesus com óleo. Cruzou os braços, deixou-se desfalecer os movimentos. Abriu a bolsinha, nervosamente, um maço de cigarros, um isqueiro que sabe-se lá estava bom ou não, um batom velho e terrivelmente gasto, uma bíblia pequena e uns trocados – ah, os tro-cados! Olhou para cima, descansou os olhos na totalidade do céu, nos pontinhos fulgurantes ao redor da lua. Ele morreu há uma semana em algum lugar, e não há uma outra vida, não há uma outra realidade. Ele morreu, deveria morrer também? Sim, e o caos na humanidade, um caso de doença crônica. Olhou para trás ao ouvir um grave ronco de um ônibus aproximan-do-se. Elevou o braço direito apontando o dedo indicador, e o ônibus reduziu a velocidade até parar ante a si. A porta abriu-se, e encaminhou-se a ele novamente ouvindo o berro do pastor

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Igor Damásio Lena Carioca • 40

bem longe – Sai pra lá!, pensou. O motorista sorriu, conhecia-o, ele sempre a buscava todas as manhãs quando ia à casa da Sra. Cardoso próximo à Cinelândia, retribuiu-lhe o sorriso embo-ra amuado, com um laivo de melancolia no canto esquerdo do lábio – se não a conhecesse bem, se não falassem tanto sobre esta mulher, apesar de não ser nada, dir-se-ia que sofre por amor, pelo abandono de um amante. Sentou-se ao fundo do ônibus, deixou-se calar todas as vozes que a aborreciam a mente com a canção mais triste do mundo que tocava naquele instante na rádio do veículo.

O ônibus parou em seu ponto final, Central do Brasil. Ela desceu antes mesmo do mo-torista ter a oportunidade de chamar-lhe o nome e fazer questionamentos previsíveis sobre os seus últimos dias, sobre os últimos dias da mulher de pele escura que perdera o filho sabe-se lá por quê. Nas ruas, pairava harmoniosamente uma tênue sensação de um profuso movi-mento – transeuntes dirigem-se para todos os lados; camelôs berrando as promoções do dia; mendigos sentados ao chão pediam dinheiro ou comida; aqui levantou-se um rapaz do chão e atravessou disparadamente a pista aos gritos e quase foi atropelado por um táxi, ninguém se importou; acolá, um rapaz tentava acalmar o seu amantes aos beijos e abraços após este ter so-frido um assalto há poucos minutos na Rio Branco; os olhos continuaram a percorrer o espaço em que se encontrava à medida em que os passos tornaram-se mais brandos. Contemplava minuciosamente todo o espaço, o palco da vida humana. Os carros passavam a seu lado en-quanto andejava na calçada de pedras, oh, céus, como tudo aquilo era diferente à noite, tudo era mais selvagem, imoral, com todas essas luzes incidindo sobre o seu corpo, e a lua, estática em um céu isento de nuvens, desnuda e sem vergonha, sem toda a correria dos dias vulgares.

No bar, as luzes eram todas eróticas. Nas paredes, fotografias e quadros de épocas passadas retratavam a agitação do cenário carioca. Algumas mesas e cadeiras ocupadas por gente de todos os tipos, dos mais jovens aos mais idosos, que bebericavam cervejas ou taças de vinho, comiam petiscos, gargalhavam de assuntos engraçados ou debatiam a conjuntura política atual – um partido ou outro? Oh, tanto faz! –, garçons perambulavam em uma corre-ria risível servindo com um gingado despojado. Ela, então, sentou-se em uma mesa ao canto, uma mesa para dois. Embora não havia posto o seu melhor vestido ou sapato, ou arrumado muito bem o cabelo ou feito as unhas, e ainda tinha uma bíblia em sua bolsa! Mas ela sentia--se mais leveza, uma leveza insustentável aos poucos penetrava-lhe as entranhas. O garçom aproximou-se, perguntou:

– Boa noite, você vai querer alguma coisa?

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– Sim... – E percorreu os seus olhos castanhos sobre o cardápio de bebidas. O que pode-ria beber? Uma cerveja, talvez. Sim, seria uma cerveja, e tocou com os dedos o lado inferior dos lábios, mas não... talvez um gole de vinho para que não pensassem que seria mais uma daque-las velhotas solitárias que só basta uma cerveja para dançar feito uma índia sobre uma mesa.

– Então, vou querer uma taça de vinho.– Anotado! – sorriu o garçom e deixou a mesa. Ela olhou novamente para dentro de sua bolsa, pôs-se a contar os seus trocados dis-

cretamente. Sim, tinha o suficiente. Deixou-se relaxar, pousando os seus braços sobre a mesa e inclinando um pouco para explorar mais todo aquele espaço subversivo e estonteante. Dois homens bastante idosos escolhiam canções de coração partido no jukebox; um casal de jovens de mais ou menos vinte e poucos anos, um de frente ao outro em uma mesa, acariciavam--se e, supostamente, trocavam juras de amor; um homem sentado próximo ao casal, cabelos castanhos e pele morena, encarava-a; e as fotografias de tempos não mais... Oh, Jesus Cristo, pensou, voltando o olhar para o homem de cabelos castanhos e pele morena que a encarava. Ele sorriu, mas não pode retribuir-lhe tal gesto, pois o garçom agora entrara em sua frente, tapando aquele estranho que acabara de fazê-la querer sorrir com tamanha vontade. O rapaz depôs a taça de vinho sobre a mesa, sorriu e a deixou só. Novamente ela tentou procurá-lo com os olhos, o estranho de cabelos castanhos e pele morena, mas não conseguiu encontrá-lo. O jovem casal levantou-se, de mãos dadas, para dançar a canção para os corações partidos que os velhos haviam posto no jukebox. Ela segurou a taça com a mão direita, sem um traço de finura, e levou-a à sua boca, deixando que um pequeno gole caísse para dentro de sua gargan-ta. Cerrou os olhos suavemente e sentiu-se novamente insustentavelmente leve, tal como um saco plástico ao vento deve sentir-se. Suspirou fundo, tornou a bebericar novamente outro gole daquela bebida doce que a deixava leve. Uma brisa percorreu-lhe a nuca, e no ombro sen-tiu o pesar de uma mão tocando-lhe suavemente.

– Posso me juntar a você, seja lá qual for o seu nome? Por cima do ombro, conseguiu vê-lo, o homem de cabelos castanhos e pele morena,

estático atrás de si. Ela sorriu com o canto dos lábios, não havia motivos para não fazê-lo.– O meu nome é Lena Carioca.

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XII

Antônio Frederico Lasalvia

Que glória resta ao homem-macacoQue concebeu o cérebro automáticoE se livrou de todos seus fados?

Macaco embalado avácuo;Protegido das intempériesE da própria natureza preservado

Se alimenta de pão – Carboidrato materializado – Que com a boca não deve ser saboreadoNão, os dentes primatas não podem nunca apodrecer.

Cidadão distinto do mundo civilizado,Acumula dos mais diversos títulos e atributosE exibe, vaidoso, pelugem sempre recém-cromada.

Proclama, aos sábados, os fatos inquestionáveisQue lhe diferenciam de seus primos selvagens,Os saguis, do miserável hemisfério de baixo:

1 - O tratamento dado aos fluidos2 - O número anual de suicídios3 - O juízo sobre o mundo natural

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Seus parentes, por mais que símios,Não se portam como a gente do ÁrticoE povoam florestas dúbias e dunas insensatas.

Já o homem-macaco habita a Cidade Definitiva,Que foi projetada por arquitetos elétricosE é a síntese de todo o Urbanismo

Em Jericó ele cultiva a mente e o corpo(Trabalhar se tornou antiquadoDesde o advento da Ordem Mecânica)

Nasce e vive para se entreterE o Mecanismo lhe asseguraA fabricação de todas as artes

Poesia é escrita por análise combinatóriaPinturas são impressas alaser e em alto relevoMúsica não há mais. (Foi vetada por causar surdez súbita)

Verdadeira Ogígia a morada primataA vida é eterna, a comida não custaE a chuva jamais toca um só cabelo

Nenhum mal paira sobre a vida do homem-macacoEle está livre para viver sua existência pacataEm um mundo opaco e sem esperança de morte.

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O Terceiro Rumo

Amanda Dib

Hoje fui agradecida três vezes por dois atos. E por essa gratidão me valeu a pena o trajeto difícil que fiz hoje para chegar em casa. Esse terceiro agradecimento me fez entrar no espaço mais profundo do que seria aquele simples “obrigado” dito. Pois agora nele havia olhos. O se-nhor me disse pela segunda vez o “obrigado” me olhando nos olhos, e se demorando nos meus, porque ele não queria que fosse um agradecimento qualquer, e não o era. Esse senhor, que tem pinta na bochecha e as mãos em veias grossas, me agradeceu a primeira vez quando eu disse “senhor, senta aqui”, e me levantei. Quando levantei vi que não havia bancos amarelos, só aqueles lá trás onde ninguém sabia que tinha, e que ocupava nele dois jovens dormindo na descida da serra Grajaú. Eu também dormia, e como quem abre os olhos do nada - mas vê -, vi que aquelas mãos de veias grossas seguravam-se em pé no ônibus que não lhe deu espaço. Quando sentou, pude ver seu rosto além das mãos, e então vi a pinta preta em sua bochecha. Em pé, vi que perto de mim tinha outro senhor, que entrou e fez do ônibus cheiro de biscoito amanteigado. Ele entrou e em pé se encostou num canto do ônibus para comer seus biscoitos. Em pé, eu vi o saco de biscoito se acabar, outros passageiros dormirem, e muitos não verem nada, nada mesmo. Não viram que havia sol por entre os galhos das árvores, não viram que tinha um senhor em pé segurando a bolsa, os biscoitos e a própria idade. Os passageiros, em cegueira triste, não viam o que estava dentro, nem fora do ônibus - não olhavam por fora da janela e nem o que estava à frente. O que, então, viam, senão a dormência triste de si mesmos?

O trajeto que fiz hoje não só foi difícil porque o cotidiano em uma cidade perigosa é difícil e exaustivo, mas porque essa dormência faz nossa viagem pior. Nossas idas e vindas fi-cam piores e inundadas de tédio e egoísmo, se não for o mesmo. Os passageiros estão sempre a fechar os olhos; a ignorar as cores do banco azul ou amarelo, e a esquecer da existência delas, e não só delas, como também de quem senta nelas. É difícil ver quando se está cansado, quando, de súbito, se desperta quando alguém entra dizendo “desculpe atrapalhar o silêncio e conforto da sua viagem, mas o camelô vem trazendo...”. Mas ele não deveria pedir desculpa não, eu que

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deveria agradecer, mas esse agradecimento, dos três que foram dados nesse ônibus, foi o fal-tante. Eu deveria agradecer por me despertar, e romper com a minha dormência que impediu meus olhos de verem o que eu não deveria deixar de ver. Vi que o senhor da pinta na bochecha me esperava para acordar, porque no fundo, quem quer mudança, sempre espera que algo acorde. E mudou mesmo, nos deslocamos: ele sentado, eu em pé. Depois, mesmo com os olhos em olheira porque havia acabado de acordar pra vida, pude sentir o cheiro amanteigado que deixaria passar se estivesse por aí no meio do nada, ou em mim mesma, ou cansada demais de tudo para deixar os olhos abertos. Do lado do senhor que ocupou meu lugar, a menina estava acordada e foi ajeitando a bolsa e os braços porque iria descer. O senhor pulou para a cadeira do canto e esperou que eu sentasse. Mas como num último biscoito restante do pacote, olhei para o outro senhor que seguia viagem encostado na sua, e mais uma vez vieram os olhos. Apontei para o banco e ele ajeitou tudo na mão e veio em direção à cadeira que de azul, virou amarela, por fim. Aqueles dois bancos foram os prioritários que, em ausência, abrimos espaço para tê-los ali. Foi então que o senhor da pinta na bochecha entendeu, me olhou a segunda vez e disse enquanto o outro se aproximava: obrigado.

Voltando para casa hoje, não pude fazer meu trajeto de sempre porque havia um in-cêndio de ônibus no meio do caminho, e no meio do outro havia risco de arrastão na Linha Amarela, então arrancando jeitos de conseguir me deslocar pelo Rio de Janeiro, parei num ônibus que peguei no centro da cidade. Hoje era pra ser inverno, hoje era pra eu passar em outros todos bairros que não passei, hoje era para eu ter chegado em casa duas horas antes do que cheguei, hoje não era pra eu ter saído de casa, hoje não era pro ônibus estar quente e nem hora pra estar cheio. Mas cada dia é um dia, qualquer dia vira hoje, e daqui a pouco “desculpe interromper o silêncio da sua viagem, mas o camelô vem trazendo...”. Então a gente acorda e vê o que precisa ser visto, que infelizmente a gente vê, e que infelizmente a gente não vê. A boa experiência também está em rever. Revi minha viagem inaugural e encontrei três agrade-cimentos em dois atos. E esse agradecimento a mais foi a coisa mais bonita da minha viagem. Ver, por estar acordada, uma voz falando por duas fez valer a pena abandonar a dormência do século e até comprar uma bala halls de duas por uma. Depois da minha bala na boca, quando o último senhor se sentou, ele me agradeceu e segurou minha mochila.

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Perspectiva

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Cinema e percepção na era da reprodutibilidade

Isabelle Montenegro

O presente trabalho pretende fazer uma leitura do ensaio A Obra de Arte na Era da sua Reproduti-bilidade Técnica de Walter Benjamin, especificamente sua reflexão sobre o cinema e sua captu-ra da atenção. O ensaio mostra de que forma o cinema usurpa nossa percepção e a enfraquece, causando um dano irreversível nas faculdades mentais. O cinema é um grande propagador de sensações e ao mesmo tempo um enunciador de um imperativo, um “olhe para cá” que volta nossa completa atenção ao filme. Depois da fotografia, o cinema é um tipo de reprodução téc-nica que, segundo o filósofo e leitor de Benjamin, Christoph Türcke, se tornou tão difundida em nosso cotidiano de tal maneira que, paulatinamente, transforma-nos em seres dependen-tes de estímulos audiovisuais, chocando-nos e criando em nós uma compulsão traumática.

Para este trabalho, foi realizada primeiramente uma comparação entre as duas versões do ensaio A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica (1936 e 1939), com objetivo de estabelecer uma noção da variação entre a forma original (1936), e a segunda versão alterada (1939), para determinar quais conceitos foram mudados e lapidados nesses três anos de inter-valo entre as versões. O texto de Benjamin é basilar em muitas áreas e sua contribuição para a transformação da arte no século XX é notória. O ensaio contrapõe a mudança de percepção da arte manual (irreprodutível) para a arte técnica (reprodutível) incluindo as consequências so-ciais desse processo de adequação das formas de reprodução. O envolvimento da reprodução técnica com a perda da aura se dá quando o seu original não só torna-se reproduzido, como no caso da fotografia de pinturas, comprometendo sua autenticidade, mas de fato inexiste, como no caso de filmes e discos de música, onde a obra de arte não depende de um suporte inicial.

Compondo a bibliografia que abrange a correlação entre cinema e percepção, será utili-zado o livro Sociedade excitada do filósofo alemão Christoph Türcke, mostrando como ocorre o enfraquecimento da nossa percepção, o “olhe para cá’’ que detém nossa atenção. Tal captura faz com que o sensório humano (já paralisado) tenha um súbito insight do objeto cultuado (diante do qual ocorre uma epifania); porém, tal experiência acaba sendo degradada, já que

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é feita a partir de uma retina artificial (a câmera), tornando o objeto em si incapturável, sem aura, sem essência.

Outro livro aplicado foi Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção de Detlev Schöttker, que demostra quais foram as fontes e leituras de Benjamin, o debate de sua época e sua recepção ao longo do século XX.

O diagnóstico de Benjamin foi profético, alertando problemas já percebidos por ele na década de 30. Isso levanta a questão: até que ponto seu parecer sobre a transformação da percepção é válido nos dias de hoje? Como ele pode ser encarado? O que poderia ser feito para evitar o enfraquecimento de nossa percepção?

Introdução

A Filosofia do belo na arte é o termo aplicado a partir do século XVIII para designar o campo da teoria Estética1, onde o ensaio A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica2 de Walter Benjamin é figurado. Benjamin foi um dos primeiros autores a falar sobre as mu-danças ocorridas nas formas de reproduções (de manuais para técnicas) correlacionando a percepção, cultura e artes. Fortemente inspirado por autores marxistas e ligado à Escola de Frankfurt, Benjamin com seu olhar perspicaz, inovador e extremamente visionário sobre os produtos culturais de massa aplicados à reprodutibilidade técnica, escreveu a primeira versão do ensaio A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica entre 1935/1936, posteriormente realizando diversas alterações que culminaram em sua última versão de 1939, publicada em 1955, após sua morte (1940).

1. Do grego aisthésis: percepção, sensação, sensibilidade. Ramo da filosofia que tem como objeto o estudo da natureza, do

belo e dos fundamentos da arte nascida durante a Antiguidade Clássica.

2. Do original em alemão Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit, ensaio publicado pela primeira

vez em 1936, e, posteriormente, em 1939, do crítico, ensaísta, filósofo e sociólogo Walter Benjamin (1892 — 1940).

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Técnicas de reprodução como processo artístico: Reproduções ma-nuais versus técnicas

Ao longo dos séculos houve diferentes formas de técnicas de reprodução. Em seu pri-meiro tópico do ensaio A obra de Arte, Benjamin nos mostra como “a mudança que as imagens fabricadas tecnicamente provocam na percepção e na arte.” (SCHÖTTKER, 2015, pág. 45) mos-trando-nos como nós, seres humanos, gostamos e sentimos a necessidade de imitar.

Os objetos oriundos de reproduções manuais são originais e auráticos3, peças únicas criadas, fazendo com que o conceito de autenticidade seja constituído, tornando impossível sua imitação. Benjamin, entretanto, deixa claro que as únicas formas de técnicas de reprodu-ção em série na Antiguidade foram os bronzes, moedas e terracotas; quaisquer outras formas de reprodução técnica eram peças únicas. Com o passar dos séculos, a xilogravura, imprensa, litografia e entre outras formas de técnicas de reprodução foram inventadas fazendo com que jornais, por exemplo, pudessem ser reproduzidos tecnicamente. “Ao multiplicar a reprodu-ção, ela substitui a essência única por uma essência serial. E, na medida em que a reprodução permite que o receptor tenha acesso à obra em qualquer circunstância, ela a atualiza” (BEN-JAMIN, 2012, pág. 15).

As reproduções técnicas então sob o regime da não-autenticidade, pois, cada vez que são reproduzidas sua essência se esvai, sendo apenas cópias vazias. Segundo Benjamin, a não-au-tenticidade de uma cópia, derivada de uma reprodução serial, muda a função social de sua existência.

Podemos perceber então, a contraposição entre reproduções manuais auráticas e au-tênticas versus reproduções técnicas sem aura e não-autênticas. As técnicas de reproduções em série apesar de já existirem em um contexto anterior ao século XlX, com o advento da fotografia e especialmente do cinema, essas reproduções se tornam muito mais eloquentes por desempenharem um papel de produto cultural de massa, moldando nossa percepção até os dias atuais.

3 O conceito de Walter Benjamin sobre a aura de um objeto se encontra como terceiro item do ensaio A obra de arte, tendo como base o aqui-e-agora de cada imagem, sendo assim, a essência da coisa em si.

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A lente de uma câmera como retina artificial

Criada pelo homem a fim de representar a ótica humana, a lente de uma câmera tem a intenção de recriar a sensação dos olhos, sendo então, uma “retina artificial”. Na tentativa de parecer com o olho humano, ela tem se dá de forma mecanizada e “sobre-humana”.

Diferentemente do olho humano, que fixa sua atenção em uma determinada imagem por um tempo limitado captando sua retina nitidamente apenas no centro do foco, a lente de uma câmera é incansável, capta diversos ângulos homogeneamente.

“A câmera, ao contrário, não se cansa. Suas imagens, quando bem-sucedidas, são todas elas e cada uma em particular, até o ponto mais extremo, de uma nitidez homogênea, sua distorção marginal é quase imperceptível, e o olho humano pode posteriormente, talvez com o auxílio de uma lente de aumento, estudar cada instante fixado através da fotografia e descobrir nele todos os insignificantes matizes (...) que lhe escaparam ou que nunca lhe chamariam a atenção no lugar e na posição originais.” (TÜRCKE, 2010, p. 177).

Observemos a tentativa cada vez maior do homem de transcender seus próprios limites, moldando a realidade em busca de aproximar as nossas sensações táteis, de algo criado e ma-nipulado pelo próprio homem. As sensações estão em tudo. Sempre estamos em busca de algo além de nós, encarado como algo sagrado e transcendente, como uma “salvação por meio de imagens” para nos trazer um alívio, que nos conforte, e um aparato visual é uma ferramenta muito importante para esse processo.

Podemos então concluir, que os meios de reprodução (tanto manuais quanto técnicos), os quais as imagens são difundidas, sempre foram e sempre serão necessários para os ho-mens.

Captura da nossa percepção pelo cinema

Desejo convidá-los neste momento a olharmos com nossa “objetiva-não-artificial huma-na” para o objeto em que essa problemática das imagens se agrava: o cinema. “O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico

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cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto de inervações humanas” (BENJAMIN, 1936, pág. 174). Partindo dessa afirmativa de Benjamin, observemos quais impulsos em nossa percepção o cinema desperta e de que maneira reagimos.

O cinema é um propagador de sensações e um enunciador de um imperativo, um “olhe para cá” em busca de trazer a experiência do “aqui-e-agora”. Esse imperativo se dá em cada corte de imagem, “como um golpe óptico” no espectador, um completo choque imagético. Com um ‘estalo de atenção’, essas imagens voltam nossa completa atenção ao filme, de ma-neira que “a câmera o faz mediante superfícies quimicamente preparadas” (TÜRCKE, 2015, pág 52) prontas para embotar nossa percepção e enfraquecê-la por conta da sua contínua ex-citação acarretando danos para nossas faculdades mentais. As imagens penetram em nós com uma intensidade extremamente danosa. Nossa óptica segundo o “olho mecânico da câmera” (que não distingue percepção de representação) nos induz a uma perspectiva tecnicamente manipulada.

“(...) no estúdio o aparelho impregna tão profundamente o real que o que aparece como re-alidade ‘pura’, sem o corpo estranho da máquina, é de fato o resultado de um procedimento puramente técnico, isto é, a imagem é filmada por uma câmera disposta num ângulo especial e montada com outras da mesma espécie” (BENJAMIN, 1936, pág. 186).

Diante de toda reprodução técnica, o que antes era único e aurático (com as reproduções manuais) acabou se tornando uma compulsão à repetição, e a essência do objeto em si, o obje-to cultuado, se esvaiu, de maneira que não é possível mais a experiência de sua aura, tornan-do-se incapturável. A óptica irreal que a câmera nos dá, provoca todo esse enfraquecimento de percepção, toda a sensação de entendimento, para que haja de alguma maneira, algum conforto e tranquilidade nas imagens representadas.

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O valor de culto das imagens

Partindo de uma ideia agambeniana4 de que o homem acredita nas imagens quanto imagens, pensemos de que maneira isso ocorreu ao longo da história da humanidade. Perpas-sando a “produção artística com imagens a serviço da magia5” (BENJAMIN, 1936, pág. 173) dei-xando clara a veneração do homem pelas imagens, tendo como princípio a busca da salvação, de sua tranquilidade e indo até o culto das imagens tecnicamente preparadas sob a óptica de uma câmera, que temos desde o século XIX.

Diante do cinema, o culto das imagens se estabelece de maneira que o filme manipulando nossa percepção e reação, trazendo contínua excitação e um insight do objeto cultuado, nos faça vene-rar aquelas imagens como tranquilizantes. “Ele deixa passar nas telas incontáveis momentos e direciona a percepção para aqueles mais persistentes, os que ‘fazem sensação’, os quais se destacam tanto que provocam uma percepção que permanece.” (TÜRCKE, 2010, pág. 10).

Esse insight provocado em nós está completamente relacionado a maneira que o cinema nos seduz, se utilizando de um sentimento “pré-histórico” do homem, pela busca de um con-forto nas imagens, o que faz com que automaticamente, seduzido e paralisado pelas mesmas, cultue-as sob um valor inestimável.

Epifania do sagrado no cinema

“De uma maneira ou de outra, trata-se do extremo dos sentimentos. Tanto o pavor pa-ralisado quanto o seu negativo, o instante feliz paralisado, consumam o ato da epifania do

4 “Ora, o homem é um animal que se interessa pelas imagens uma vez que as tenha reco-nhecido enquanto tais. É por isso que se interessa pela pintura e vai ao cinema. Uma definição do homem, do nosso ponto de vista específico, poderia ser que o homem é o animal que vai ao cinema.” (AGAMBEN, 1998, pág. 65)

5 A “magia” colocada por Benjamin no item V do ensaio A obra de arte, designa-se em torno do culto das imagens estabelecido pelos homens ao longo dos séculos, onde são conside-rados os princípios do culto sob a forma de religião (estatuetas, pinturas etc).

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sagrado; são sensação no significado extremo da palavra.” (TÜRCKE, 2010, pág. 192). Partindo dessa afirmação do filósofo e leitor de Benjamin, Christoph Türcke, após tudo o que foi abor-dado anteriormente, pensemos em como esse insight do objeto cultuado diante do sensório humano já paralisado, faça com que ocorra uma epifania.

Essa epifania se dá sob a forma de uma súbita sensação de total entendimento (no caso aqui relacionado às imagens cinematográficas), que acaba alimentando toda a aparelhagem daquela “retina artificial”, pois quanto mais veneramos e nos deixamos (involuntariamente) ser manipulados, nossa percepção cada vez mais será embotada de forma que sempre sere-mos enganados por essa falsa sensação de epifania. O sagrado se dá justamente pela busca incessante do homem pela salvação, a anteriormente dita “salvação por meio de imagens”, fazendo com que essa súbita sensação de entendimento do objeto cultuado (epifania do sa-grado) ocorra em nós.

Considerações finais

Como último feito, gostaria de traçar uma linha com as ideias trazidas ao longo deste artigo, clareando ainda mais os dados expostos.

As reproduções técnicas (fotografia e cinema) são passíveis de serem copiadas (reprodu-zidas em série), realizando assim, a necessidade humana de imitar.

Essa incessante busca humana de atingir o sagrado de maneira a transcender seus limi-tes, fica clara com o advento da fotografia e do cinema (especialmente deste último). Procu-rando ir além de si, o homem criou meios onde pudesse recriar a realidade sob a forma de uma “retina artificial”, buscando trazer as experiências sensoriais táteis que nós temos,

O aceleramento das máquinas, a produção em série, tudo isso pela desenfreada caçada humana por algo que nos conforte, facilite, tranquilize, nem que para isso seja necessário re-petir serialmente as imagens.

A fim de representar a ótica humana, essa “retina artificial” embota nossa percepção com sua contínua excitação, acabando por fim, paralisando nosso sensório.

Essa busca de trazer a experiência do “aqui-e-agora”, faz com que o cinema seja um grande propagador de sensações. Nós, imitadores por natureza e caçadores de uma “salvação por meio de imagens”, acabamos por cultuá-las, cada vez mais extasiados, paralisados e pros-

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trados diante das mesmas. Essa “retina artificial”, após seduzir-nos com esse grande “choque imagético” enfraquecendo nossa percepção, faz com que, de maneira completamente mani-pulada, nós tenhamos a incrível sensação de entendimento (epifania do sagrado) do objeto cultuado.

Benjamin com seu olhar altamente visionário e profético conseguiu perceber ainda nos anos 30 como o cinema é grandioso e altamente sensorial. Em seu grande ensaio A obra de arte na era na sua reprodutibilidade técnica o qual foi tratado neste artigo, mostra em diversos momentos que a sétima arte é muito além de uma câmera e uma tela para reproduzir “meras imagens”. Essas imagens têm grandes poderes, e essa câmera tem funções muito mais dano-sas e que aparentam.

BibliografiaAGAMBEN, Giorgio. Image et memoire: écrits sur l’image, la danse et le cinéma. Paris:

Desclée de Brouwer, pp. 65-76, 2004.BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1939). In: SCHÖT-

TKER, Detlev. HANSEN Mirian e BUCK-MORSS Susan. Benjamin e a obra de arte técnica, imagem, percepção. 1ª ed. trad. Marijane Lisboa e Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1936) In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. Obras Escolhidas, v. 1.

SCHÖTTKER: SCHÖTTKER, Detlev. “etc”. In: cita o livro inteiro de novo.TÜRCKE, Christoph. Cultura do déficit de atenção. Serrote. São Paulo: Nº 19, pág 51-61.

2015.TÜRCKE, Christoph. Sociedade excitada: Filosofia da Sensação. 1ª ed. trad. A. S. Zuin.

São Paulo: UNICAMP, 2010.

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Vontade de catarse, vontade de purgar-se

Sergio Novo da Silva

E considerou a cruel necessidade de amar: considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes que mataremos

por amor.1

Clarice Lispector em “A menor mulher do mundo”.

A estupefação diante da Presença estranha é antes de mais nada uma suspensão do ânimo, ou seja, um interromper a respiração, que é o fluir da vida.2

Octavio Paz em O arco e a lira.

1

Se somos seres solitários e castrados, numa busca que necessariamente pressupõe um desejo, também seremos os seres que encaram o horror na sua plena condição de ser horrível. Frente ao que é horrível, diante daquilo que temos medo, do que consideramos o Mal, a para-lisia e o próprio movimento primeiro que a desmonta são condições inevitáveis de se tomar. A inevitabilidade do movimento é algo necessário do corpo que, desejoso por respirar, age como gatilho e talvez até como medida drástica, para se tomar decisões que, simplesmente, não tomaríamos em condições ordinárias. Pergunto-me se esse desejo propulsor também não

1. LISPECTOR, Clarice. A menor mulher do mundo. In: LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. Org. Benjamin Moser. Rio de Janeiro: Rocco, 2016. p. 196

2. PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 136.

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é rastro do que há de mais horrível e violento na gente, e se não haveria a necessidade de uma cautela no ato de dar um passo a frente.

Isso talvez seja exemplificado na perda semântica de uma palavra como formidável que, no presente momento, adjetiva algo que dá certo brilho nos olhos; algo que formaliza uma imagem com uma capa de beleza ou de positividade. Entretanto, a palavra latina carregou até então o medo3. Um tipo de medo similar àquilo que é Bom e Bem demais, daquilo que trans-passa o necessário, que atravessa a borda, o limite; e que às vezes não volta para contar o que havia do outro lado. Ou quando volta, é como um estrangeiro, um corpo estranho em nosso corpo. É o demais que nos amedronta. Temos medo daquilo, que em nós e em outros, excede – da intemperança que a épica nos interdita. Basta uma palavra que atravesse uma outra pala-vra, adjetivando-a, como faz um parasita semântico, que a segunda se potencializará e se tor-nará desagradável; ou, no mais das vezes, medonhamente agradável para os nossos pudores.

A perda de traço significativo do que é formidável metaforiza a nossa vontade de des-manchar o medo, de fazê-lo escapar de nossas entranhas e nunca mais senti-lo. Afinal, ele vem de dentro e o simples ato de nomear algo externo de medonho é demonstrar e recusar o que, na verdade, temos de mais horrível na nossa própria essência. Portanto, recusamos algo que naturalmente se recusa. A perda é convenientemente aceita e concordamos com todas as suas diabruras a fim de fingir que não possuímos mais nada de horrível em nós mesmos. Por isso nos confessamos, liberamos um peso que até o momento nos parece estrangeiro. O próprio ato da confissão – seja a confissão cristã, ou mesmo a que ocorre numa conversa entre amigos íntimos – produz o caloroso e benéfico gás hélio que nos alça. Vontade de catarse, de purgar-se. A leveza parece ser o estado natural do bom ser humano que se corrompe e depois dispersa tudo que é podre para se sentir novamente bom, belo e formidável.

2

Em um conto chamado Preciosidade, Clarice Lispector nos apresenta uma menina de quinze anos, cuja preciosidade, a sua pureza de infância, é protegida por sua rigidez militar,

3 DICIONÁRIO LATIM-PORTUGUÊS. Editoração eletrônica por Fábio F. S. Moniz. 2ª edi-ção. Porto Editora, 2001. p. 293.

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de “ritmo espanhol”4. A menina, como todas as meninas – essas que saem na rua aceitando e sofrendo a violência sexual que vão enfrentar – tem medo. Tem medo de ser olhada, tem medo de alguém “lhe dizer alguma coisa”. Pois o olhar alheio é violento, a palavra é violenta. O próprio silêncio, angustiante, de “trincheira” é violento. A menina, contudo, não se resigna: sai na rua, vai para escola; enfrenta, “vigorosa”, o externo, como quem está em um combate diário. Combate cujo propósito é a preservação de sua pureza. A própria linguagem do conto, cheia de palavras de guerra e violência, nos remete a essa bipartição da realidade: onde a casa é segura e o lado de fora está repleto de perigos; tudo que está lá fora é potencialmente mal, como o vento que entra pela janela e violenta o rosto.

Chega um momento, nesse romance familiar, em que a menina sente o desejo do confron-to, sente a “falta da batalha”. E num movimento como o de Orfeu – o do seu olhar impaciente – a menina almeja sair de casa, de sua safe zone. Pergunto-me se não seria, assim como é para Orfeu, um ato necessário? O movimento que é pressuposto desde o início? Suspiro que sucede a paralisia.

E a menina sai no dia seguinte, como faz todas as manhãs: vigorosa. Todavia, a violên-cia, dessa vez, é excessiva; ela mata empiricamente e não mais apenas no mundo da ficção – como acontece quando nos entregamos à barbárie. Ela paralisa mais e só permite ao pensa-mento da menina a prece: “Fazei com que eles não digam nada, fazei com que eles só pensem, pensar eu deixo.” Pois a palavra é violenta, o toque é violento; ele é capaz de arrancar dela a sua preciosidade, a sua “joia”. Aí vem o suspiro, logo após a paralisia... Mas, agora, ele não vem imediatamente. Parece-me que Clarice conhece o perigo do movimento brusco em situações de urgência; e no momento do choque, ela diz: “ela [a menina] fez a coisa mais certa que pode-ria ter feito no mundo dos movimentos: ficou paralisada.”. Porque ela sabe – e nós o sabemos também – o que pode levar a reação imediata à violência.

3

Digamos que é inevitável dissociar o bem do mal, digamos que concordamos – como algumas vezes o fazemos realmente – com o vazamento entre as bordas que separam um do

4. LISPECTOR, Clarice. Preciosidade. In: LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. Org. Ben-jamin Moser. Rio de Janeiro: Rocco, 2016. p. 206-217.

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outro; não acreditamos mais nesse combate de duas máximas, pois há uma ambivalência do sagrado, do que se diz puro. A preciosidade inevitavelmente será perdida. Qual é o próximo passo? A angústia do ato, a angústia do agir após a descoberta da impureza, nos amedronta e inviabiliza o movimento que naturalmente se aciona. Não há mais castelo que sirva de abrigo. Pois se o impuro é inevitável, largaremos a mão das escolhas comedidas e aceitaremos a igreja do Diabo com a certeza de que, no fim, ela voltará a ser a igreja de Deus? Tomar o partido con-trário, entretanto, não me parece uma resposta satisfatória.

Estamos observando o que acontece quando a polícia, instituição de controle de alguns limites sociais, para de agir ao demandar os seus direitos, e uma parte da população se entrega a um desejo de revolta, de transgressão, e outra parte, à paralisia do medo, do recluso em suas safe zones; enquanto em algum lugar escondido, realmente seguro, os nossos responsáveis não se pronunciam. Eles aguardam o medo se alastrar; para, enfim, propor as suas medidas, pre-cisas, de urgência. Eles aguardam a reação à violência.

Peço o perdão por não oferecer uma resposta clara. Ainda estou à procura de uma que, sem a pretensão de destruir um impasse, permita uma travessia cautelosa e pela tangente. Acho que, hoje, todas as respostas andem ao lado dessa mesma cautela, dessa atenção. Assim como elas andarão também ao lado de uma tensão inevitável da palavra, de uma angústia do agir. Há muito tempo a polícia já parou de agir em determinados segmentos da sociedade, ou simplesmente age como bem entende, ou como ela se sente coagida a agir; e a população desses segmentos periféricos não deixa de viver, mas vive numa vida de cautela e medo. Eles não têm escolha.

Como já propôs Isabelle Stengers, repetindo mais uma vez o que já sabemos, deverí-amos faire attention5 – tomar cuidado com aquilo que pode ser não mais que um pharmakon, aquilo que facilmente passa do remédio para o veneno. Devemos tomar cuidado com o gift, ora inglês ora alemão, que aceitamos de nossos responsáveis ou daqueles que os almejam ser, porque eles esperam, justamente, que a nossa reação de aceitar as suas propostas com segun-das, terceiras, quartas etc. intenções seja feita abruptamente.

Essa cautela traz certamente uma instabilidade, uma travessia escorregadia. Mas não deixa de ser uma ação; um agir, diante do monstro que nos petrifica com o seu ato de fazer com que nos olhemos no espelho, para o nosso outro, mas nunca diretamente para eles. E isso

5. STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. Trad. Eloisa A. Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

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não será a única resposta. Assim como não foi a solução para a personagem de Clarice, onde a violência aconteceu mesmo com a sua precaução. Isso não faz com que salvemos a nossa preciosidade – se é que ela ainda pode ser salva –, muitos menos fará com que se resolvam pro-blemas que vão muito mais a fundo das relações sociais; problemas muitas vezes engatilhados pelo conflito entre classes e gêneros, misoginia, racismo. Clarice talvez tenha encontrado a resposta no conforto do mesmo conto: “Há uma obscura lei que se faz com que se proteja o ovo até que nasça o pinto, o pássaro de fogo.” Talvez tenhamos que, a partir de agora, nos prote-ger, à nossa maneira, desses que se dizem nossos responsáveis. Não aceitar, cautelosamente, a paralisia. Não temer, e fazer – com atos – com que, em uma democracia, quem encabece seja o povo; assim como o é na palavra. Pois a palavra é violenta; e o modo como ela será usada, isso dependerá da gente.

Referências:DICIONÁRIO LATIM-PORTUGUÊS. Editoração eletrônica por Fábio F. S. Moniz. 2ª edi-

ção. Porto Editora, 2001.PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify,

2012.LISPECTOR, Clarice. A menor mulher do mundo. In: LISPECTOR, Clarice. Todos os

contos. Org. Benjamin Moser. Rio de Janeiro: Rocco, 2016. p. 193-200.______. Preciosidade. In: LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. Org. Benjamin Moser. Rio

de Janeiro: Rocco, 2016. p. 206-217.STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. Trad.

Eloisa A. Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

Imagem que dialoga com o texto:[Composição abstrata], Fayga Ostrower. 2000, Aquarela sobre papel Arches, 76,0 x 56,5

cm. Disponível em: http://faygaostrower.org.br/acervo/aquarelas?start=60

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