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POÉTICAS LITERÁRIAS MODOS E GÉNEROS DO DISCURSO O MODO LÍRICO Reteso as cordas desta velha lira, Tonta viola que de mão em mão Se afina e desafina, e donde ninguém tira Senão acordes de inquietação. Chegou a minha vez, e não hesito: Quero ao menos falhar em tom agudo. Cada som como um grito Que no seu desespero diga tudo. E arrepelo a cítara divina. Agora ou nunca meu refrão antigo. O destino destina, Mas o resto é comigo. MIGUEL TORGA, “Prelúdio” 1. A ORIGEM DA IDEIA DE LÍRICA No seu “Prólogo” a La Casa de la Presencia, Octavio Paz (1914-1998), o poeta e ensaísta mexicano, declara que não menos assombrosa que a universalidade da poesia é a sua antiguidade: Todas las sociedades han cultivado esta o aquella forma de poesia, de los encantamientos mágicos a las canciones eróticas, de las plegarias a los himnos funerários, de los cantos que ritman los trabajos de los labradores a las baladas y poemas narrativos. Cantos en la plaza y en el templo, en el surco y el taller, en la batalla y en el festín, en el harem y la celda del monje. No todos los pueblos tienen novelas, tratados de filosofia, dramas o comedias; todos tienen poemas. 1 Segundo Paz, a poesia teria começado quando começou a própria fala humana. “En sí mismo el lenguage es ya metáfora, poesia […]. También desde su nascimiento el lenguage es rima, aliteración, onomatopeya y, en fin, ritmo.” Neste sentido, a fala tende naturalmente a transformar-se em poema. A poesia nasce com a linguagem e cada língua segrega, fatal e espontaneamente, poemas. 2 Também na sua obra Roots of Lyric (1978), Andrew Welsh tinha já alertado para algumas constantes na linguagem da poesia lírica, “some fundamental forms underlying the figures of imagery and the movements of sound and rhythm […]”. Segundo Welsh, 1 Octavio Paz, Obras Completas I. La Casa de la Presencia. Poesia e Historia, segunda edición, Galaxia Gutenberg, Círculo de Lectores, 1999, p.13. Esta obra de O. Paz constitui um prodigioso equilíbrio de rigor crítico e de intuição poética, de reflexão e de paixão. Além de abarcar as diversas culturas e literaturas do mundo, reflecte mais profundamente sobre os problemas e as interrogações do seu tempo. A obra poética e ensaística de Octavio Paz pertence ao conjunto dos livros necessários, como diria o próprio. 2 O. Paz, Op. Cit., pp. 13-14.

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POÉTICAS LITERÁRIAS – MODOS E GÉNEROS DO DISCURSO

O MODO LÍRICO

Reteso as cordas desta velha lira,

Tonta viola que de mão em mão

Se afina e desafina, e donde ninguém tira Senão acordes de inquietação.

Chegou a minha vez, e não hesito: Quero ao menos falhar em tom agudo.

Cada som como um grito

Que no seu desespero diga tudo.

E arrepelo a cítara divina.

Agora ou nunca – meu refrão antigo. O destino destina,

Mas o resto é comigo.

MIGUEL TORGA, “Prelúdio”

1. A ORIGEM DA IDEIA DE LÍRICA

No seu “Prólogo” a La Casa de la Presencia, Octavio Paz (1914-1998), o poeta

e ensaísta mexicano, declara que não menos assombrosa que a universalidade da poesia

é a sua antiguidade:

Todas las sociedades han cultivado esta o aquella forma de poesia, de los encantamientos

mágicos a las canciones eróticas, de las plegarias a los himnos funerários, de los cantos que

ritman los trabajos de los labradores a las baladas y poemas narrativos. Cantos en la plaza y en el

templo, en el surco y el taller, en la batalla y en el festín, en el harem y la celda del monje. No

todos los pueblos tienen novelas, tratados de filosofia, dramas o comedias; todos tienen poemas.1

Segundo Paz, a poesia teria começado quando começou a própria fala humana. “En sí

mismo el lenguage es ya metáfora, poesia […]. También desde su nascimiento el

lenguage es rima, aliteración, onomatopeya y, en fin, ritmo.” Neste sentido, a fala tende

naturalmente a transformar-se em poema. A poesia nasce com a linguagem e cada

língua segrega, fatal e espontaneamente, poemas.2

Também na sua obra Roots of Lyric (1978), Andrew Welsh tinha já alertado para

algumas constantes na linguagem da poesia lírica, “some fundamental forms underlying

the figures of imagery and the movements of sound and rhythm […]”. Segundo Welsh,

1 Octavio Paz, Obras Completas I. La Casa de la Presencia. Poesia e Historia, segunda edición, Galaxia Gutenberg,

Círculo de Lectores, 1999, p.13. Esta obra de O. Paz constitui um prodigioso equilíbrio de rigor crítico e de intuição

poética, de reflexão e de paixão. Além de abarcar as diversas culturas e literaturas do mundo, reflecte mais

profundamente sobre os problemas e as interrogações do seu tempo. A obra poética e ensaística de Octavio Paz

pertence ao conjunto dos livros necessários, como diria o próprio. 2 O. Paz, Op. Cit., pp. 13-14.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 2

as ‘raízes da lírica’ encontram-se primeiramente corporizadas nos enigmas, sortilégios

ou encantamentos e nos cantos da poesia primitiva e popular.3 Mais tarde, o poeta e

escritor norte-americano Gregory Orr afirmaria também que “[…] lyric poetry appears

to have been written and composed in every ancient or historical culture […]. For all we

can tell, poetry may be almost as ancient as the use of language itself.[…]”4 Referindo-

se aos “Poderes da Poesia”, Orr defende que o ‘encantamento’ (incantation) – uma

fórmula linguística falada ou cantada com o propósito de criar efeitos emocionais

intensos ou produzir resultados mágicos – é a mais primitiva e poderosa forma

linguística. Podemos encontrá-la constantemente nas poesias tribais, embora também

apareça espontaneamente nas expressões sonoras de lamentos e êxtases. Os

‘encantamentos’ associam poder emocional, magia e a repetição encantatória de sons e

frases, indicando que a poesia consiste numa série de efeitos calculados para manipular

uma audiência.5

Na sua brilhante obra sobre a história e a crítica da poesia lírica clássica, W.R.

Johnson interpreta o lírico não tanto como género ou modo mas sobretudo como ideia

quase intemporal.6 Embora as formas da poesia lírica tenham sofrido mudanças nos

tempos modernos, ele acredita que a essência ou substância daquela se manteve

inalterada. E em lugar de se perguntar, à semelhança de T. S. Eliot em “The Three

Voices of Poetry”, se alguma vez houve um género lírico e em que poderia o mesmo

consistir, Johnson prefere saber em que consiste pois vê o lírico como algo de imutável

e de universal.7

Na verdade, este autor parece considerar a reflexão abstracta sobre o problema

do lírico, ou do próprio género, quase uma impossibilidade ou um ideal invisível,

3 Andrew Welsh, Roots of Lyric. Primitive Poetry and Modern Poetics, Princeton, New Jersey, Princeton University

Press, 1978, “Preface”, vii. Nesta obra, o autor analisa as origens da imagem e do pensamento, do som e do ritmo, na

linguagem poética. Os exemplos por ele recolhidos da cultura poética europeia, africana e oriental são abordados de

forma original e reveladora, tentando mostrar que a poética primitiva ou popular conduziu directamente à teoria

contemporânea da poesia. 4 Gregory Orr, Poetry as Survival, Athens and London, The University of Georgia Press, 2002, “Introduction”

(Everywhere and Always), p. 2. Orr acrescenta: “[…] in China, the collection known in the West as The Book of

Songs or The Book of Odes was also transmitted orally for several centuries before being written down almost 2,500

years ago. […] Archaeologists in Egypt have discovered four collections of love poetry compiled during the New

Kingdom period 3,300 years ago.” 5 Orr, Op. Cit., pp. 106-107. A tese de Orr baseia-se no poder transcendental da lírica de índole pessoal, na sua

capacidade de fortalecer e restaurar os sujeitos traumatizados pelas circunstâncias da vida; é, em suma, uma defesa da

grande utilidade da poesia no mundo actual. 6 Walter Ralph Johnson, The Idea of Lyric. Lyric Modes in Ancient and Modern Poetry, Berkeley, Los Angeles,

London, University of California Press, 1982. 7 Johnson, Ibidem, p. 2. Citação do autor no original: “Have these transformations of lyric form advanced to such a

point that the substance of lyric itself has been transformed utterly, even annihilated? […] I regard this genre as

immutable and universal. […] its substance abides.” Segundo Eliot, a antiga lírica pronominal teria sido ultrapassada

pelo que ele designa como “meditative verse”, produzido pelo poeta da primeira voz (“first-voice poet”) – aquele que

exprime os seus próprios pensamentos e sentimentos a si mesmo, ou a ninguém em particular.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 3

preferindo recorrer a dados mais concretos, isto é, ao observável e enumerável. O

método de Johnson consiste em procurar as formas pronominais mais usadas pelos

poetas representantes de um certo período ou de uma mudança crucial no tratamento do

lírico.8 São três as categorias de que se serve para examinar os pronomes líricos: a

primeira corresponde ao ‘poema Eu-Tu’ (“the I-You poem”), no qual o poeta dirige ou

finge dirigir os seus pensamentos e os seus sentimentos a outra pessoa, uma metáfora ou

um mediador simbólico entre o poeta e cada um dos seus leitores – correspondendo à

forma clássica do ‘solo lírico’ ou lírica monódica; a segunda categoria é o chamado

poema meditativo, no qual o poeta se dirige a si mesmo ou a ninguém em particular e,

por vezes, a entidades inanimadas ou abstractas (meros mediadores); a terceira e última

categoria é o poema em forma de diálogo, monólogo dramático, ou poema narrativo, no

qual o poeta desaparece por completo e se limita a apresentar uma voz ou vozes ou,

ainda, uma história sem nelas intervir directamente.9

Johnson afirma que o modo provavelmente mais usual na lírica grega, e

certamente mais usual na lírica latina, era dirigir o poema (na grega, a canção) a outra

pessoa ou a outras pessoas. Esta forma implica a presença do ‘cantor’ diante da sua

audiência, a sua ‘re-criação’ de emoções universais num contexto específico, uma

história comprimida e estilizada e, finalmente, a partilha destas emoções. Segundo ele,

em Roma (e quando a lírica já não era cantada mas apenas escrita), esta intimidade

musical, este padrão pronominal retórico, esta dialéctica de Eu e Tu, este discurso lírico,

permaneceram como formas mais típicas de uma poesia que ‘re-criava’ emoções

comuns – mas complexas – em ficções particulares, “tornando visíveis os ritmos

invisíveis da personalidade”.10

Para Johnson, foi em parte graças a Catulo, e sobretudo a Horácio, que esta

típica e antiga forma lírica chegou até nós na sua perfeição literária.11 Quando Pierre de

Ronsard e Ben Jonson iniciaram as suas ‘re-criações’ da lírica, foi a esta ‘re-criação’

latina que eles inevitavelmente recorreram, na precisa e espectacular ocasião de

florescimento lírico em que a canção medieval europeia se une à lírica literária clássica.

8 Johnson, Op. Cit., p. 2. 9 Id. Ibid., pp. 2-3. Referindo-se a esta última categoria, Johnson afirma que “such a poem is sometimes lyric,

sometimes not, depending on what the poet is trying to do.” (p. 3) 10 Id. Ibid., pp. 4-5. Johnson descreve este fenómeno da seguinte forma: […] suddenly, in the lyric story, at its

essential, dramatic moment, emotions and thoughts are organized in lyrical discourse and find in metaphors – […]

intelligible re-creations, visible patterns for the inner tempests and stillnesses […]” (p.5). 11 Na sua abordagem da lírica Latina, Johnson realça a figura de Catulo como inovadora e representativa de um

momento de viragem: não apenas porque a poesia de Catulo fez das frivolidades do dia-a-dia tema digno de

tratamento lírico, mas sobretudo pela centralidade conferida à figura do poeta (incluindo sentimentos de alienação e

vulnerabilidade).

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 4

A canção medieval teria surgido provavelmente da mesma forma (ou melhor, no mesmo

lugar: a taberna) que a própria lírica grega ou que qualquer outro tipo de lírica mais

popular ou primitiva.12 De qualquer forma, o padrão pronominal prevalecente ter-se-ia

mantido aproximadamente até ao século XVII, embora a lírica literária mostrasse já

alguns sinais de uma lenta alteração (visível, por exemplo, em Henry Vaughan) que

continuou de forma imperceptível até ao século XX (culminando, nomeadamente, em T.

S. Eliot). 13

Segundo Johnson, esta alteração corporizou-se num tipo de verso

assumidamente meditativo, quer no sentido de Eliot quer no da chamada “greater

romantic lyric”, tal como Meyer Howard Abrams a definiu.14 O poeta como que se

desloca (ou é deslocado) do mundo natural circundante, onde algo prendeu a sua

atenção e que ele descreve a si próprio, para uma visão profundamente privada da

natureza onde ele se vê reflectido, avaliado e, por vezes, transformado. Neste tipo de

poesia, o papel da audiência é pouco relevante ou mesmo nulo. O poeta agora fala

consigo mesmo ou com ninguém e dispensa não só a história mas também os pronomes

de segunda pessoa. Quer as causas deste surgimento residam numa nova sensibilidade

puritana, quer na fragmentação da sociedade e consequente alienação do poeta, quer na

afirmação do individualismo secular, quer na própria revolução de Gutenberg, a verdade

é que a lírica meditativa depressa se afirma como a forma dominante. Depois de um

período de quase dormência durante o século XVIII, seria Jean-Jacques Rousseau a

testemunhar filosoficamente a sua supremacia e poetas românticos como Wordsworth,

Coleridge, Goethe, Lamartine e Leopardi a conferir-lhe brilhantes triunfos.15

Desde então, a forma meditativa tem-se também modificado de diversas

maneiras, cujos aspectos comuns incluem o isolamento, a auto-suficiência do eu lírico e

o desaparecimento virtual do Tu lírico ou da segunda pessoa. No entender de Johnson,

este último fenómeno teve efeitos negativos na lírica europeia, embora alguns autores

(como Keats, Mallarmé ou Baudelaire) tivessem sentido a velha urgência retórica ou

12 “And where did medieval song come from? No one seems to know; […] If one can hazard a guess […] medieval

song will have begun in the same place that Greek lyric began, in what Sir Thomas Browne calls ‘that vulgar and

Taverne Musick …’”. Id. Ibid., pp. 5-6. 13 Id.Ibid. 14 M. H. Abrams, “Structure and Style in the Greater Romantic Lyric”, From Sensibility to Romanticism, ed.

Frederick Hilles e Harold Bloom, Oxford, Oxford University Press,1965, pp. 527-60. 15 Johnson, Op. Cit., pp. 6-7. Nas suas próprias palavras: “[…] the ‘greater romantic lyric’ becomes the dominant

form in modern lyric.” E mais adiante: “[…] an emblem of what this shift from the I-You pronominal form to the

meditative form means and does to lyric poetry is the fate of The Prelude as Wordsworth continued to work at it

throughout his life.” (p. 7)

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 5

necessidade discursiva de forma relativamente poderosa.16 Os seus poemas fazem já

prever ou antecipar a crescente impessoalidade que caracterizaria o modo típico da lírica

moderna e que afectaria a poesia de todas as nações ocidentais e a poesia de todas as

escolas poéticas. De facto, este crítico detecta já em Stéphane Mallarmé a inutilidade, a

irrealidade da própria identidade (do homem, do poeta, de todos).17 O mito do artista

romântico como um ser banido ou exilado dá origem nos finais do século XIX a esta

nova postura. Também nos poemas de outros poetas contemporâneos, nomeadamente

em Emily Dickinson e Gerard Manley Hopkins, é possível detectar esta identidade

problemática, fragmentada e assustadora.18

Mais tarde, torna-se cada vez mais improvável encontrar um verdadeiro e

autêntico eu lírico, falando-se mesmo de um Verlorenes Ich ou de um “Lost I”

(Gottfried Benn). A poesia torna-se essencialmente pura, absoluta e não-pronominal.

Para Johnson, esta desintegração da forma pronominal acarreta consigo a desintegração

do conteúdo emocional, já que forma e conteúdo são interdependentes na lírica.19 A

essência da poesia passa a residir unicamente na imagem (uma derivação da doutrina da

ut pictura poesis), dando origem ao imagismo, ao objectivismo e ao neo-surrealismo e,

consequentemente, a uma poesia totalmente não-retórica mas também desapaixonada.20

Embora alguns poetas (entre eles, William Butler Yeats) tenham conseguido escapar a

esta impessoalidade, nomeadamente através da criação de uma audiência fictícia para os

seus poemas, a lírica moderna tende a estar desprovida não só dos seus cantores mas

também dos seus ouvintes. Sylvia Plath enfrentou esta questão ao ‘organizar’ a

desintegração da sua personalidade como poeta, imaginando quer a forma quer o

sentido da dissolução do eu lírico.21 Mas, para Johnson, a retórica, e particularmente a

forma pronominal, continuaria a ser essencial à sobrevivência da lírica.22

16 “But the loss of the lyric You had consequences that Eliot and his allies have not reckoned with. When the lyric

You vanished from the centrality it had shared with the lyric I, something peculiar began to happen both to the lyric I

and to the content of its private meditations.” Mas Johnson acrescenta que em Keats e Baudelaire “we sense the old

rhetorical urgency; in these two poets the sense of the I is extremely strong, and the sense of the need for discourse is

extremely powerful.”(p. 8) 17 Johnson explica: “This is a kind of tortured gnosticism, a litany of impotence, futility, isolation, despair” (p.9). 18 Id. Ibid., pp. 9-12. Johnson elucida, “[…] the fact of identity becomes problematic, frightening, and there is nothing

to connect with, to relate to, no escape.” (p. 11). 19 “[…] the lyric I grew first ashamed and bewildered, then terrified, by the idea of saying I, forgot how to say You,

systematically unlearned emotions and their correlatives and their stories.” (p. 15). 20 Segundo Johnson, “[…] the image, most particularly in lyric, has enjoyed a secure and necessary centrality, for

lyric poetry is about the world as we see it.” (p.13). 21 “Plath, better than any poet, understood the death of lyric. The isolations, the futilities, the suffocations […] she

was able to represent it flawlessly, unforgettably” (p. 21). 22 Id. Ibid., pp. 12-23. “[…] the purely literary lyric […] remains an essentially unsatisfactory genre. The absence of a

real audience and the failure of performance engender an anxiety, […] a sense of the poet’s irrelevance, impotence,

and unreality […]” (p. 16).

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 6

Na sua abordagem à lírica grega, onde pretende encontrar a originária noção de

‘lírica’, Johnson refere o carácter profundamente lacunar e fragmentário da mesma e,

consequentemente, a sua grande inacessibilidade. Esta dificuldade de análise é

exacerbada pelas diferenças técnicas existentes entre a poesia grega e a poesia moderna.

Enquanto que o nosso sentido poético se limita fundamentalmente à página impressa, a

ideia da poesia aliada à música e desempenhada perante uma audiência era natural para

os gregos.23 Mas, na lírica grega, a música existia unicamente para realçar as palavras;

melodia, ritmo, voz, dança, lira ou oboé, conjugavam-se para reforçar e enfatizar sílabas

e clarificar termos, resultando num desempenho inteligível. A palavra era aumentada,

iluminada e destacada pela música e, por vezes, pela própria dança coreografada (por

exemplo, na lírica coral), em que o poeta tinha de adaptar os seus ritmos aos

movimentos do coro.24 Outro aspecto que poderá surpreender o leitor moderno é que a

lírica grega não parece dar tanto relevo ao elemento expressivo como ao elemento

discursivo. Johnson argumenta, a propósito, que os fragmentos gregos mostram muito

mais uma “situação discursiva” (falante, discurso, ouvinte) semelhante à obtida na

oratória (nomeadamente na que foi definida por Aristóteles) do que uma efusão

sentimental do poeta-falante. O papel do poeta é indicar à sua audiência que paixões

devem ser acolhidas e que paixões devem ser rejeitadas, através de um propósito

educativo. A ênfase recai, deste modo, sobre o discurso e o ouvinte e não tanto sobre o

falante.25

Por detrás de cada poema lírico, existe (para Johnson) uma história, por vezes

apenas esboçada, que explica o momento presente do discurso e que explica os estados

de espírito presentes do ‘cantor’ e a sua necessidade ou opção de os cantar. A poesia

grega não é, por isso, uma mera Gefühlpoesie (“poesia de sentimento”) ou Erlebnislyric

(“poesia de experiência”) porque insiste sobretudo nas universalidades e naquele

indispensável triângulo discursivo. Por outro lado, também não é uma poesia absoluta:

porque é supremamente retórica, não pode nunca omitir o Eu lírico ou mesmo as

paixões que este partilha, ou comunica, com o Tu lírico. Segundo Johnson, esta ideia

23 Johnson cita A. M. Dale: “What music does to words, in any language, is to define the length of each syllable, to

impose a precise quantitative scheme.” (p. 26) Ele acrescenta que a lírica grega partilha este uso da música com

outras líricas, “many other bodies of high lyric poetry (Hebrew, Chinese, Provençal) even into the Renaissance, […]”

(p. 28). 24 Johnson afirma que mesmo neste género lírico ‘híbrido’ que o drama reclamou para si, todos os outros elementos

da actuação existiam em função de, e para, a palavra cantada. “[…] it was the sung word for which all other parts of

the performance existed and which they served.” (p. 28) 25 Id. Ibid., pp. 24-31. “By focusing on what he has to say, on why he is saying it, and on the person for whom […] he

is saying it […] by discoursing, describing, deliberating, he [the poet] becomes himself.” (p. 31)

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 7

grega unifica aquilo que foi dividido na moderna consciência lírica: isto é, associa

Erlebnis (“vivência”) no seu grau mais intenso a arte no seu mais puro. Imaginar a

personalidade – e não exprimi-la – para poder imaginar as emoções humanas como elas

são ou podem ser, real e idealmente, é a função da poesia lírica. Para este crítico, é no

cerne da lírica grega, e nos seus inícios com Arquíloco (VII a.C.), que está a imaginação

da personalidade (ethopoeia).26 A poesia fragmentária daquele poeta reflecte um

carácter poético vigoroso e intenso nas suas afirmações pessoais e públicas através das

situações discursivas que apresenta.

Ao analisar os fragmentos poéticos de Safo (de Lesbos), Johnson encontra uma

ênfase e uma mestria semelhantes na ethopoeia, isto é, nos modos de construção e

apresentação da personalidade poética. No entanto, Safo traz à poesia uma nova

subtileza de observação que não voltaria a ser facilmente encontrada. Uma delicadeza

de contemplação, aliada a uma forma musical e à natural auto-afirmação da lírica grega,

resulta na perfeição lírica. Na análise do fragmento poético mais famoso de Safo,

Johnson detecta uma combinação de profundidade de sentimento e de poder intelectual

(só comparável aos sonetos de Shakespeare); trata-se de um poema dentro de outro

poema, uma canção de amor privada apresentada através de uma argumentação pública;

a forte paixão e o individualismo radical são controlados através da compressão lírica e

da precisão retórica. Neste sentido, e para este crítico, o padrão e o modelo ou protótipo

da lírica monódica foram estabelecidos por Safo.27

Na sua obra, Johnson oferece ainda uma definição aproximativa daquilo que,

segundo ele, caracteriza a poesia lírica de qualidade:

What distinguishes the lyric poet from people who are not lyric poets is perhaps, in part,

his extreme sensitivity to emotions; but more important here is his ability to arrange his

perceptions of emotion into clear patterns by means of precise language. […] the lyric

poet performs two very different functions simultaneously: he particularizes a universal

emotion such as all men share […] and at the same time, he universalizes an experience

that is or was peculiarly his […]. It is this delicate yet powerful fusion of the individual

and the universal that characterizes good lyric poetry.28

26 Johnson acrescenta aqui mais um termo à terminologia usada por Ezra Pound na sua famosa tríade de “tipos de

poesia”, e que ele considera incompleta: phanopoeia (image making”), melopoiia (“music making”) e logopoeia

(“word making”; “style making”). O que parece faltar à teoria da poesia de Pound é o carácter (ethos) do falante. 27 Johnson, Op.Cit., pp. 38-49. Segundo os eruditos alexandrinos, havia um cânone de nove poetas líricos, que

viveram entre a primeira metade do século VII e a primeira metade do Século V a.C.: Álcman, Alceu, Safo,

Estesícoro, Íbico, Anacreonte, Simônides, Baquíledes e Píndaro. 28 Johnson, Op. Cit., pp. 32-33.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 8

2. O MODO LÍRICO – SUA EVOLUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO

Octavio Paz afirma que ‘criação poética’ e ‘reflexão poética’ são vasos

comunicantes e muitas vezes necessários ao poeta. 29 Para ele, cada poema implica, de

modo implícito ou explícito, uma poética, que por sua vez se resolve numa visão

filosófica ou religiosa. Não considera, assim, aventurado inferir que a retórica e a

poética nasceram quase ao mesmo tempo que os cantos e os poemas.30

No hay civilización que no posea un cuerpo poético formado por poemas y por un

conjunto de reglas para componer esos poemas. Esas reglas no son simples recetas sino

que exponen también una filosofia o una teologia. La Antigüedad grecoromana es muy

rica en ejemplos, de Pláton y Aristóteles a Cicerón y al autor del Tratado de lo Sublime.

La retórica incluye siempre una poética y esta una filosofía.31

É no livro III da A República que Platão (o filósofo ateniense nascido circa 428

a.C.) se refere a três distintas modalidades discursivas usadas pelo poeta: a simples

narrativa, a imitação ou mimese e a modalidade mista (a associação das duas

anteriores). A primeira acontece quando “é o próprio poeta que fala e não tenta voltar o

nosso pensamento para outro lado […]”; a segunda verifica-se quando o poeta fala

“como se fosse outra pessoa”; e a terceira ocorre quando o poeta mistura a simples

narrativa com a imitação. Subsequentemente, Platão faz corresponder estas três

modalidades do discurso poético a três distintas espécies literárias (contendo vários

géneros): a “narração pelo próprio poeta – é nos ditirambos que pode encontrar-se de

preferência”; na “espécie que é toda de imitação” encontra-se a “tragédia e a comédia”;

e a que é “constituída por ambas” usa-se “na composição da epopeia e de muitos outros

géneros […]”.32 Nesta tripartição, como afirma Aguiar e Silva, não fica muito claro o

estatuto da poesia lírica, quer do ponto de vista conceptual quer do ponto de vista

terminológico.33 No entanto, esta falta de clareza não significa que, como alguns críticos

têm vindo a afirmar, Platão tenha deliberadamente excluído a lírica do seu sistema.34

29 La Casa de la Presencia, Op. Cit., p. 13. Paz acredita que “En Occidente el ejemplo mayor – al menos hasta la

época moderna – de esta fusión entre el génio poético y la potencia reflexiva es Dante.” (p. 16) 30 Id. Ibid., p. 18. 31 Id. Ibid., p. 15. Octávio Paz afirma também que a tradição oriental não é menos abundante em obras de poética,

nomeadamente entre os árabes e os persas e ainda na Índia, na China e no Japão. 32 Cf. Platão, A República, 392d, 394c. Introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa,

Fundação Calouste Gulbenkian, 1976. 33 Cf. Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 6ª edição, volume I, Coimbra, Livraria Almedina, 1984, p. 341. 34 É o caso, nomeadamente, de Gérard Genette na sua obra Introduction à l’Architexte (Paris, Éditions du Seuil, 1979,

p.15). No livro X de A República, Platão passaria a considerar toda a poesia, e ainda toda a arte, como imitação.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 9

Pelo contrário, ele vê o ditirambo – uma das variedades da lírica coral grega – como a

concretização preferencial da narrativa simples ou pura.35

A concepção estética aristotélica subsequente iria alargar o conceito de mimese

(ou imitação), de forma a incluir todas as espécies literárias e artísticas. A mimese

enquanto imitação dos caracteres (ethe), das paixões (pathe) e das acções (praxeis) dos

homens, passa assim a constituir o princípio unificador subjacente a todos os textos

poéticos. Os únicos princípios diferenciadores diriam respeito aos meios utilizados

(ritmo, canto, verso), aos objectos de que se ocupa (superiores, inferiores ou

semelhantes à média humana) e aos modos segundo se realiza ou se processa a

imitação.36 Este último seria o princípio diferenciador mais importante de todos.

Quando, na sua Poética, Aristóteles (384-322 a.C.) se refere aos modos

distintos de mimese (ou de imitação) poética, ele contrapõe unicamente o modo

narrativo ou imitação narrativa ao modo dramático ou imitação dramática (“todos os

imitados como operantes e actuantes”).37 No entanto, no modo narrativo ele distinguiria

dois submodos: no primeiro, o poeta pode narrar através de uma personagem,

convertendo-se “até certo ponto em outro” (o caso de Homero); no segundo modo, o

poeta pode narrar por si mesmo e sem mudar (a sua voz). Aristóteles considera o

primeiro caso válido e louvável, mas censura o segundo como sendo próprio de maus

poetas (“Pessoalmente, com efeito, o poeta deve dizer muito poucas coisas; pois, ao

fazer isto, não é imitador”).38 Deste modo, e segundo a lógica aristotélica, quando o

enunciador do texto se identifica continuamente com a pessoa do autor não existe

imitação e, sem esta, não há poesia. Como afirma Aguiar e Silva, a Poética de

Aristóteles “é refractária ao reconhecimento da lírica como uma modalidade da poesia

equiparável à poesia narrativa e à poesia dramática.”39

A tradição da poética aristotélica daria origem de forma mais destacada à arte

poética do poeta latino Quintus Horatius Flaccus (65 -8 a. C.). A Epistola ad Pisones ou

Ars poetica de Horácio, além de conter importantes reflexões e preceitos teóricos, iria

desempenhar ao longo da Idade Média, e principalmente do Renascimento ao

35 O ditirambo é um poema destinado a celebrar o vinho, os prazeres da mesa, o prazer em geral, a alegria. Era

originalmente dedicado a Dionísio ou Baco e supunha acompanhamento instrumental e um coro (ditirambo

dionisíaco ou canto báquico). 36 Cf. Aguiar e Silva, Op. Cit., p. 343. 37 Cf. Aristóteles, Poética 1459b. Tradução e Comentários de Eudoro de Sousa, Clássicos de Filosofia, 4ª edição,

Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994. 38 Cf. Ibid. 1459b. 39 Cf. Aguiar e Silva, Op.Cit., p. 345. A. e Silva sublinha ainda que o sistema e a lógica profunda da poética

aristotélica não prevê aquela divisão triádica.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 10

neoclassicismo, uma função determinante na fixação de regras formais (sobretudo a de

unidade de tom). Embora sendo ele um poeta lírico, e fazendo referência a diversos

tipos de composições líricas (hinos, encómios e epinícios, poemas eróticos e escólios),

não se predispõe na sua obra a caracterizar e delimitar de forma adequada a lírica como

categoria genérica.40 Como bem salientou Aguiar e Silva, “O princípio de que toda a

poesia se fundava na mimese, ou na representação imitativa, da natureza bloqueava a

possibilidade de uma adequada compreensão, no plano da teoria literária, da poesia

lírica.”41

A inclusão da lírica no sistema dos géneros literários (ao lado do drama e da

narrativa), fruto de uma modificação progressiva e algo imperceptível, dar-se-ia no

Renascimento e, em particular, com a poesia lírica de Petrarca e dos poetas

petrarquistas. Ocupando esta “um lugar cimeiro na escala de valores estéticos do

público leitor”, como explica Aguiar e Silva, “tornava-se imperioso aos críticos e

teorizadores literários, superando os limites e as ambiguidades das poéticas greco-

latinas, fundamentar e caracterizar adequadamente a existência do género lírico.”42 Mas,

tal como em outras épocas anteriores, existia ainda um grande desequilíbrio entre a

maturidade e a complexidade da prática poética e as imprecisões e ambiguidades da

teoria da lírica. Neste sentido, a poética implícita que defluía dos modelos líricos

(nomeadamente, Petrarca) servia de compensação às insuficiências da metalinguagem

literária. Durante o início do século XVII, o espanhol Francisco Cascales, alegadamente

um dos primeiros teorizadores a incluir o lírico como género, define-o do ponto de vista

técnico-formal (“El lýrico casi siempre habla en modo exegemático, pues haze su

imitación hablando él próprio, […]”), mas também do ponto de vista semântico

(“Imitación de qualquier cosa que se proponga, […]”).43 Casales admite já a

possibilidade de certa classe de textos literários imitar um conceito e não apenas uma

acção.

As profundas modificações ocorridas no domínio das ideias estéticas durante o

século XVIII iriam afectar profunda e irreversivelmente a coerência da teoria clássica

40 Sobre este problema, ver António Garcia Berrio, Formación de la teoria literária moderna. La tópica horaciana en

España, Madrid, Cupsa Editorial, 1977, p. 94. Citado em A. e Silva, p. 348, n. 23. 41 Cf. Aguiar e Silva, Id. Ibid. 42 Id. Ibid., p. 351. Foi o caso de S. Minturno, na sua arte Poética de 1564, um dos primeiros a sugerir uma definição

da lírica como modo singular de imitação poética. 43 Cf. Francisco Cascales, Tablas poéticas. Édicion Benito Brancaforte. Madrid, Espasa-Calpe, 1975, p.40. Citado em

A. e Silva, p. 352.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 11

dos géneros.44 O movimento pré-romântico alemão (conhecido como Sturm und Drang)

foi dos primeiros a pôr em evidência a individualidade absoluta e a autonomia radical

de cada obra literária. Em particular, a estética do génio (primeiramente formulada e

difundida por Diderot) concebeu a criação poética como “irrupção irreprimível da

interioridade profunda do poeta”, por isso mesmo uma “actividade alheia e refractária a

modelos e a regras”.45 Apesar de tudo, a tripartição dos géneros literários estabelecida

por Platão seria retomada pelos teóricos românticos. Por exemplo, Friedrich Schlegel,

em fragmentos datados de 1797 e 1799, é mais consistente na caracterização ontológica

da lírica como uma forma subjectiva do que na diferenciação entre o drama e a épica

(alternando as designações ‘objectiva’ e ‘subjecto-objectiva’). 46 Por seu lado, August

Wilhelm Schlegel, que também identifica a lírica com a subjectividade extrema,

caracteriza as manifestações poéticas do espírito humano de forma essencialmente

dialéctica: a épica como a tese, a lírica como a antítese e o drama como a síntese.47

Friedrich Schelling, pelo contrário, vê a lírica como “género primitivo e fundamentante

de todos os outros.” – o género primigénio. A lírica, como género mais particular e

finito, seria “dominada pela subjectividade do poeta”.48 Uma outra abordagem bastante

influente foi a de Jean Paul que, em Vorschule der Ästhetic (1813), estabeleceu uma

correlação dos géneros com o factor tempo: a Epopeia representaria o passado, o Drama

o futuro e a Lírica o presente.49 Desde Hegel a Jakobson, passando por Emil Staiger,

que o género lírico é associado essencialmente ao tempo presente. Apesar destas

distinções, os autores românticos fizeram a apologia da miscigenação, isto é,

“defenderam e justificaram doutrinariamente e praticaram amiúde a mescla dos géneros

literários.”50 Foi o caso de Alexandre Herculano (1810-1877), que classificou o seu

Eurico, o presbítero como “crónica-poema, lenda ou o que quer que seja” (Prefácio).

Segundo Hegel, na sua Estética, “o que forma o conteúdo da poesia lírica […] é

o sujeito individual e […] as situações e os objectos particulares, assim como a maneira

44 Poetas e teóricos começaram, de facto, a negar o carácter imutável dos géneros e a advogar a sua historicidade e

variabilidade no tempo e no espaço. Esta atitude materializou-se na criação de novas formas literárias ao longo do

século XVIII. 45 Cf. Aguiar e Silva, Op. Cit., pp. 359-360. 46 Sobre Friedrich Schlegel e a problemática dos géneros, ver Peter Szondi, Poética dell’idealismo tedesco, Torino,

Einaudi, 1974. Ver sobretudo o estudo intitulado “La teoria dei generi poetici in Friedrich Schlegel”. Citado em A. e

Silva, p. 360. 47 Cf. René Wellek, “Genre theory, the lyric, and Erlebnis”, Discriminations: Further Concepts Of Criticism, New

Haven – London, Yale University Press, 1970, pp. 241-243. 48 Cf. Aguiar e Silva, Op. Cit., p. 362 e n. 52. 49 Id. Ibid., p. 363. 50 Id. Ibid., p. 363-364.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 12

segundo a qual a alma […] toma consciência de si própria […]”.51 Na tradição do

idealismo e do historicismo germânicos, encontramos depois a obra de Emil Staiger,

Grundbegriffe der Poetik (1946), onde este autor caracteriza o lírico como recordação,

o épico como observação e o dramático como expectativa. Staiger situa ainda a lírica na

esfera do emocional e na idade da infância, asseverando que a “brevidade é a

característica essencial do lírico”.52 Mais tarde, Northrop Frye em Anatomy of Criticism

(1957), caracterizaria o género lírico através do ocultamento e da separação do poeta em

relação aos seus leitores, já que o poeta lírico pretende em geral falar consigo mesmo ou

com um interlocutor específico (a musa, um deus, um amigo, um amante, um objecto da

natureza, etc.).53A caracterização dos géneros literários proposta por Jakobson, herdeiro

do formalismo russo, baseia-se na função da linguagem dominante ou subdominante:

assim, o género lírico faz actuar não só a função poética dominante mas sobretudo a

função expressiva ou emotiva pois está orientado para a primeira pessoa.54 Mas Paul

Hernadi e Gérard Genette seriam os primeiros a distinguir os modos literários

originados pela utilização das diversas perspectivas do discurso.55 O modo lírico, tal

como o modo narrativo e o modo dramático, representaria ao nível da forma da

expressão uma possibilidade ou virtualidade transtemporal da enunciação e do

discurso.56

Apesar de tudo, e como salienta Aguiar e Silva, o texto lírico partilha com os

outros textos (narrativo e dramático) o mesmo policódigo literário, nomeadamente: um

código fónico-rítmico (a substância sonora e a forma rítmica da expressão possibilita,

por exemplo, a musicalidade subtil e difusa do verso simbolista ou o ritmo da prosa

oratória barroca), um código métrico (que regula a organização peculiar aos textos

poéticos no que concerne a constituição, a combinação e o agrupamento dos versos em

estrofes), um código estilístico (que “regula a organização das microestruturas formais

51 Cf. G. W. F. Hegel, Esthétique, Paris, Éditions Montaigne, 1944, t. III, 2. Partie, p. 167. Citado em A. e Silva, pp.

362-363. 52 Cf. Emil Staiger, Conceptos Fundamentales de Poética, Madrid, Ediciones Rialp, 1966, p. 213. 53 Cf. Northrop Frye, Anatomy of Criticism, New York, Atheneum, 1966, pp. 249-250. “The radical of presentation in

the lyric is the hypothetical form of what in religion is called the ‘I-Thou’ relationship. The poet, so to speak, turns

his back on his listeners, though he may speak for them, and though they may repeat some of his words after him”. 54 A função emotiva visa “uma expressão directa da atitude do sujeito em relação àquilo de que fala. Tende a dar a

impressão de uma certa emoção, verdadeira ou fingida.” Cf. Roman Jakobson, Essais de linguistique générale, Paris,

Éditions de Minuit, 1963, pp. 214 e 219. 55 Ver Paul Hernadi, Beyond Genre. New Directions in Literary Classification, Ithaca – London, Cornell University

Press, 1972 e Gérard Genette, Introduction à l’Architexte, Paris, Éditions du Seuil, 1979. Hernardi distingue não só

os modos lírico, narrativo e dramático, mas também o modo ‘temático’ (manifestado nos adágios e nos dramas

alegóricos, entre outros). Genette combina a análise histórica e teorética no seu estudo intitulado “Genres, ‘types’,

modes” (1977). 56 Cf. Aguiar e Silva, Op. Cit., p. 389.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 13

do conteúdo e da expressão […] mediante normas opcionais”), um código técnico-

compositivo (que orienta e ordena as macroestruturas formais constitutivas do poema

épico ou da tragédia, formas da narrativa, etc.) e um código semântico-pragmático (que

“entra em correlação com os códigos religiosos, míticos, éticos e ideológicos actuantes

num determinado espaço geográfico e social e num determinado tempo histórico”).57

Segundo Aguiar e Silva, na abordagem que faz do texto lírico, a poesia lírica

“enraíza-se […] na revelação e no aprofundamento do eu lírico – […], tendendo sempre

esta revelação a identificar-se com a revelação do homem e do ser […]”.58 O eu do

autor textual de um poema lírico tem, deste modo, uma relação de implicação com o eu

do autor empírico mais acentuada; esta não equivale necessariamente a uma relação de

total identificação entre ambos, como defende Käte Hamburger.59 Por outro lado, o

mundo exterior “constitui um elemento semântico-pragmático do texto lírico somente

enquanto se projecta na interioridade do poeta, enquanto se transmuda, […] em

revelação íntima e ao mesmo tempo cósmica.”60 Para Aguiar e Silva, os elementos

narrativos por vezes presentes funcionam como meros pretextos para que o poeta revele

a paisagem íntima do eu lírico. Do mesmo modo, os elementos descritivos só são

liricamente válidos se forem usados como “suporte do universo simbólico do poema”; a

descrição de um lugar, de uma paisagem física, geralmente evoca o estado de alma do

poeta.61

Aguiar e Silva salienta ainda o carácter estático do modo lírico, em oposição ao

carácter dinâmico do modo narrativo e do modo dramático. Para ele, “o fluir da

temporalidade […] é alheio ao universo lírico: o poeta como que se imobiliza, enquanto

instância do discurso, sobre uma ideia, uma emoção, uma sensação, etc. […]”62 Por esta

razão, no texto lírico não existe em regra uma história para contar. Esta característica

não narrativa e não discursivista acentuou-se durante o Movimento Simbolista, que

defendeu sobretudo “uma estética da sugestão”, em que a sintaxe se dissolve e a poesia

57 Cf. Aguiar e Silva, Op. Cit., pp. 101-107. Embora afirme que “a estrutura profunda do texto é de natureza

semântica”, Aguiar e Silva reconhece que “não é possível estabelecer uma rígida linha divisória entre os factores

semânticos e os factores pragmáticos, tanto no plano paradigmático como no plano sintagmático.” 58 Id. Ibid., p. 583. 59 De facto, para Hamburger, o poema lírico é uma afirmação real decorrente de uma experiência vivida (Erlebnis) e

também ligada de forma existencial a um falante empírico, não a um sujeito imaginário ou ficcional. Cf. Käte

Hamburger, The Logic of Literature, Bloomington, London, Indiana University Press, 1973, pp. 276-278. René

Wellek faz uma análise extremamente crítica da concepção do modo lírico exposta por Hamburger, no seu ensaio

“Genre theory, the lyric, and Erlebnis” (Discriminations, pp. 225-252). 60 Cf. Aguiar e Silva, Op. Cit., p. 584. 61 Id. Ibid., pp. 584-586. 62 Aguiar e Silva ressalva, no entanto, que o tempo “como problema metafísico e existencial, como factor de

mudança, erosão e aniquilamento dos seres e das coisas” constitui um tema obsessivamente constante na lírica

ocidental. Id. Ibid., p. 586.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 14

lírica tende para a alusão e para a música. Com o advento do surrealismo, o poeta

esforçou-se por abolir os elos de ligação entre as palavras, recorrendo com frequência à

imagem, nomeadamente à imagem “profundamente redutora do discurso”. Por fim, o

concretismo levou este reducionismo até à exaustão, centrando-se na “reificação da

palavra” e no aproveitamento do espaço da página como estrutura e finalidade do

poema.63

No respeitante à forma da expressão, o modo lírico manifesta-se

predominantemente nos textos em poesia (stricto sensu), muito embora alguns textos em

prosa também possam ser considerados líricos, como bem adverte Aguiar e Silva.64

Para ele, o texto poético particulariza-se pelo facto de nele “se actualizarem normas e

convenções reguladas pelo código métrico e pela interdependência […] com o código

fónico-rítmico.” O elemento distintivo do texto poético seria, assim, o verso; mas este é

também o elemento necessário da forma de expressão do texto lírico. Aguiar e Silva

discrimina e descreve alguns dos múltiplos “processos de semiotização” que o verso

desencadeia no texto lírico:

a) o ritmo, isto é, a repetição regular de certos fenómenos fonéticos (numa

sucessão e numa combinação de semelhanças e de contrastes), resultando

essencialmente do esquema de acentos (ictos), do número de sílabas ou da combinação

de pés longos e breves;

b) o verso lírico está tão estreitamente associado aos caracteres fonológicos e

morfo-sintácticos de uma determinada língua natural que se torna quase impossível

fazer uma transcodificação linguística do poema;

c) os tipografismos ou a disposição gráfica (nomeadamente, tipográfica)

desempenha uma função semiótica fulcral no texto lírico, funcionando como marcas

externas da “poeticidade” e suscitando uma determinada expectativa de leitura;

d) a simbiose quase exclusiva da língua escrita e da língua falada no texto lírico

aproxima-o quer da música quer da pintura, pelos seus signos materiais;

e) embora pela complexidade das suas relações intertextuais o texto lírico possa

ser considerado eminentemente dialógico, pela sua unicidade de linguagem e de

63 Id. Ibid., pp. 588-589. 64 É o caso de alguns subgéneros híbridos como o poema em prosa (prevalecente na literatura romântica e pós-

romântica), o romance lírico, a narrativa poética (frequente no modernismo, sobretudo em André Gide e em Virgínia

Woolf) e o drama lírico (mais comum no Fin de siècle). Id. Ibid., p. 590, n. 64.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 15

perspectiva, e ainda estranheza face ao discurso dos “outros”, ele é intrinsecamente

monológico.65

Ao contrário desta ênfase formal, e na sua qualidade de poeta, Octavio Paz

parece encarar o poema como uma estrutura ao mesmo tempo mais contraditória e mais

abrangente:

El poema […] es un mundo completo em sí mismo, arquetípico, que ya no es pasado ni

futuro sino presente. Y esta virtud de ser ya para siempre presente, por obra de la cual el

poema se escapa de la sucesión y de la historia, lo ata más inexorablemente a la

historia.66

3. A LÍRICA E SUAS FORMAS OU SUB-GÉNEROS67

True ease in writing comes from art, not chance,

As those move easiest who have learned to dance.

‘Tis not enough no harshness gives offense,

The sound must seem an echo to the sense.

ALEXANDER POPE, An Essay on Criticism, ll. 362-365

Poema: ideograma de um mundo que busca su sentido, su orientación, no en un punto

fijo sino en la rotación de los puntos y en la movilidad de los signos.

OCTAVIO PAZ, “El Arco y la Lira”

A palavra lírica deriva de ‘lira’ (do Grego lyra), instrumento que servia para

criar uma atmosfera apropriada à transmissão da poesia: os poetas e os coros gregos

recitavam e cantavam as suas composições ao som desse instrumento. A poesia lírica

era, assim, entendida como um ‘esquema estrófico’ sujeito ao ritmo imposto pela

música e pela dança. Durante a época alexandrina, e em Roma, deixou de ser cantada e

dançada para ser lida (foi o caso de poetas latinos como Horácio, Catulo ou Tíbulo). A

poesia voltaria a ser cantada durante a Idade Média trovadoresca (séculos XI a XIV),

acompanhada por vários instrumentos, tal como o alaúde, a guitarra, a flauta, o saltério

ou a viola. No decorrer do século XV, a poesia passou a ser recitada, abandonando a

instrumentação e o canto. Seria somente no século XIX que românticos e simbolistas

65 Esta é, pelo menos, a opinião de Mikhaïl Bakhtine (Esthétique et Théorie du Roman, Paris, Gallimard, 1978, p.

118). Cf. Aguiar e Silva, Op. Cit., pp. 591-596. 66 O. Paz, Op. Cit., “El Arco y la Lira”, pp. 233-234. 67 As diferenças entre as diversas formas poéticas só se justificam dentro da retórica tradicional, pois modernamente

estas formas (sobretudo as fixas) reduziram-se a objectos de museu. Algumas delas desapareceram por completo: foi

o caso da epopeia, que cedeu o lugar ao romance.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 16

desenvolveriam uma preocupação pela melopéia – a conciliação entre a poesia e a

música lírica.68

Apesar destas e de outras mutações, a poesia lírica permaneceu essencialmente a

mesma (ao contrário da poesia épica). Segundo Massaud Moisés, “a lírica constitui uma

primeira e primária categoria estética”, isto porque “a introjeção do poeta só lhe permite

conhecer e esquadrinhar as primeiras camadas interiores” e porque o poeta lírico

“trabalha com sentimentos e emoções quase à flor da pele, em razão de seu peculiar

narcisismo.”69 Na perspectiva de Moisés, todo o poeta começa por ser lírico e quando

persevera em ver liricamente o mundo é porque não ultrapassou as dúvidas ou o

‘espanto’ do começo.70 A primeira característica do lírico seria a ambiguidade: “a

metáfora representa, distorce o conteúdo”, tornando-o ou revelando-o ambíguo. Além

do mais, o recurso à metáfora – que ostenta vários sentidos ao mesmo tempo – “dilui as

cargas significantes ao limite do esvaziamento total”, que por sua vez “conduz a uma

rarefacção semelhante à da nota musical.”71

As formas líricas (ou subgéneros líricos) são extremamente numerosas,

adaptadas a cada fim e conteúdo e “observando certo esquematismo de cadência, rima,

cesura, estrofação, etc., de modo que a cada tipo de comportamento lírico corresponde

determinada forma expressiva.”72 Por outro lado, como afirma M. Moisés, a anarquia

operada nos géneros, espécies e formas literárias acabou naturalmente por atingir em

cheio a poesia lírica. Ao formalismo clássico, dominante grosso modo até fins do século

XVIII, sucedeu o conhecido à-vontade do liberalismo romântico. De tal modo que, hoje,

“é crença generalizada que qualquer forma serve, contanto que por meio dela o artista

alcance transmitir-se e dialogar com o leitor.”73

Se um grande número de formas líricas foram sendo esquecidas pelo desuso e

pela sua inadequação aos tempos modernos, outras houve que resistiram, persistiram ou

até floresceram. Por outro lado, fórmulas arcaicas voltaram à luz do dia, como

68 Cf. Massaud Moisés, A Criação Literária. Poesia [1967], 10ª edição revista , São Paulo, Editora Cultrix, 1987, p.

230. 69 M. Moisés Op. Cit., pp.233-234. “Dessas circunstâncias resulta uma manifestação artística […] de curto alcance e

fugaz duração […] as obras que escreve somente o representam como indivíduo; quando não, tenderia a tornar-se

poeta épico.” 70 Id. Ibid., p. 235. “O poeta lírico mantém-se ‘fixado’ nesse estágio e encara o mundo emocional e sentimentalmente,

isto é, como adolescente. De onde, o impulso lírico estaria na raiz de qualquer ato estético, em especial do ato

poético.” 71 Id. Ibid., p. 236. 72 Id. Ibid., p. 258. 73 Cf. M. Moisés, Op. Cit., pp. 258-259. “Herdeiros do Romantismo, aceitamos que não há pressupostos de espécie

alguma e que toda solução se torna válida pelo resultado que determina: cada poema é uma experiência nova e única,

e como tal deve ser analisado.”

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 17

aconteceu com o Parnasianismo que, com o seu culto da forma, recuperou momentânea

e artificiosamente formas já enterradas (o rondel, o triolet, o pantum, a terza-rima, a

sextina, a oitava, a décima, a vilanela, a quadrinha, o vilancete, a balada, a lira, a

écloga, o romance, a elegia, o ditirambo, o salmo, etc.). Algumas destas retornam

ocasionalmente nos séculos XIX e XX; é o caso da quadrinha (quatro versos concisos e

ligeiros, traduzindo a condensação do pensamento poético), que foi usada por Fernando

Pessoa nas suas Quadras ao Gosto Popular (1965); mas também da balada (três oitavas

e um quarteto, com um estribilho no final de cada estrofe) e do romance (uma narração

singela, de cariz popular, sobre um assunto “terno e tocante”), que foi usado por

Almeida Garrett no seu Romanceiro (1843 e 1850).74 No século XX, como afirma M.

Moisés, “a arritmia domina em toda a sua extensão; o poema livre (sem rima, estrofação

irregular, assimétrico), ganha a praça e as consciências”. De facto, e segundo este autor,

o poema como que se liberta, procurando a reportagem, a linguagem coloquial, anti-

retórica e o despojamento; chega a assemelhar-se à prosa versificada pelo seu

andamento caótico, frenético e desestruturado.75

Na sua influente obra sobre a lírica simbolista e modernista, Die Struktur der

Modernen Lyrik (1956), Hugo Friedrich afirma que a lírica contemporânea está feita de

dissonâncias e de anormalidade, e que esse facto se reflectiu na estrutura do poema:

El poema aspira a ser una entidad que se baste a sí misma, cuyo significado irradie en

varias direcciones y cuya constitución sea un tejido de tensiones, de fuerzas absolutas,

que actuén por sugestión sobre capas prerracionales, pero que pongan también en

vibración las más secretas regiones de lo conceptual.76

A tensão dissonante do poema moderno seria manifestada também em outros sentidos:

por exemplo, o misticismo e o ocultismo surgiriam em contraste com um agudo

intelectualismo, a aparente simplicidade da linguagem com a obscuridade do conteúdo,

a precisão com o absurdo, etc.77 Todavia, esse niilismo ou anarquia não chegou a

destruir algumas formas poéticas de existência mais remota, como é o caso da ode, do

soneto, da canção e da balada. As razões da resistência ou do sucesso destas quatro

formas não são verdadeiramente conhecidas; mas poderão tratar-se de “achados

estéticos realizados com tal felicidade que acabam sendo verdadeiros protótipos.”78

74 Cf. Moisés, Op. Cit., pp. 260-263. 75 Id. Ibid., pp. 263-264. 76 H. Friedrich, La Estructura de la Lírica Moderna (De Baudelaire hasta nuestros dias), trad. de Joan Petit,

Barcelona, Seix Barral, 1974, p. 22. 77 Id. Ibid. 78 M. Moisés, Op. Cit., p. 264.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 18

No início (século VI a. C.), a ode consistia num canto monódico, executado pelo

próprio poeta, acompanhado de um instrumento de cordas, a lira (ou análogos). O verso

utilizado chamava-se sáfico (assim como a estrofe, sáfica) porque quem primeiro fez

uso dele foi Safo (a poetisa grega) e depois Alceu e Anacreonte; a ode girava em torno

do amor e dos prazeres da mesa, principalmente o vinho. Com o aparecimento do

lirismo coral entre os gregos, desenvolveu-se uma série de poemas do tipo laudatório,

filiados à vida heróica e, em lugar da lira põe-se a flauta. Instauram-se ideias épicas,

oratórias ou dramáticas e a ode passa a ter uma estrutura definida (estrofe, antístrofe e

épode), enfatizando a subida e a descida do poder emocional e pressupondo movimento

dançado por parte do coro. Píndaro (séculos VI-V a.C.) seria o representante máximo da

ode triunfal (pindárica). Na época romana, seria Horácio (século I a.C.) a fazer mais uso

da ode nas suas Carmina, mas este poeta prefere a monocórdica. Ao despoja-la do

aparato musical e dramático, torna-a objecto não de recitação mas de leitura individual,

instilando-lhe assuntos pessoais, biográficos ou intimistas, expressos em estâncias

regulares de quatro versos.79

A ode só retornaria à circulação com o classicismo renascentista (século VI),

sendo difundida em Itália e depois por toda a Europa e permanecendo como imitação de

Píndaro, Safo e Horácio até ao final do século XVIII.80 Quanto ao assunto, as odes

podiam subdividir-se em heróicas ou pindáricas, filosóficas ou sáficas e amorosas ou

báquicas. Mas desde o século XVI que, em Portugal, poetas como Camões, Sá de

Miranda, Bocage e a Marquesa de Alorna cultivaram a ode, que evoluiu de modo

semelhante ao resto da Europa – isto é, na direcção de uma estrutura mais livre e

irregular.81 Segundo M. Moisés, a ode continua presente nos nossos dias, mas nem

sempre os poetas a consideram como tal, “dando-lhe por vezes títulos que escamoteiam

a verdadeira filiação” (detectável na estrutura, no tom e no conteúdo poético), como é o

caso de “The Waste Land” de T. S. Eliot.82 Vários poetas modernos portugueses têm

feito uso da ode, tal como Fernando Pessoa, José Régio e Miguel Torga. Nos dias que

79 Os versos podem ser “rimados ou não, com o esquema aa bb no primeiro caso. Os dois primeiros versos de cada

estância são um ou dois pés mais longos do que os dois últimos, e o pé dominante é o jâmbico.” Cf. Lawrence John

Zillman, The Art and Craft of Poetry. An Introduction, New York, Collier Books, 1967, p. 83. 80 Na França, destacam-se Ronsard (cinco livros de Odes) e Malherbe; na Inglaterra, Ben Johnson, John Milton, entre

outros; na Itália, Trissino e Minturno; e na Alemanha, Weckherlin e Opitz. 81 Por exemplo, na Inglaterra, o poeta Abraham Cowley tinha adaptado o esquema pindárico de forma livre

(Pindarique Odes, 1656), abolindo a tripartição primitiva e introduzindo modificações na rima e no metro. E, em

França, Boileau comenta sobre aquela irregularidade em L’Art Poétique (1674): “Son style impétueux souvent

marche au hasard: / Chez elle un beau désordre est un effet de l’art.” (canto II, vv. 71-72). 82 M. Moisés, Op. Cit., p. 268.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 19

correm, “a ode propicia ao poeta o meio de fundir num só corpo, numa estrutura

isométrica e libertária, a visão épica da existência e os impulsos profundos da

individualidade.”83

O soneto foi inventado durante a Idade Média, no século XIII, provavelmente

pelo poeta siciliano Giacomo da Lentino, na corte de Frederico II em Palermo, inspirado

pelo trovadorismo provençal.84 Etimologicamente, a palavra “soneto” deriva do

provençal sonet, diminutivo de son, significando “a letra de uma pequena melodia”. A

origem seria uma canção popular, o estrambotto (do provençal estribot), composta de

duas quadras, às quais o seu criador teria acrescentado um duplo refrão de três versos.

Desse modo, conseguiram-se duas quadras e dois tercetos, num total de catorze versos,

geralmente decassílabos, com uma disposição de rimas variável. Foi Dante Alighieri o

primeiro grande poeta a compor nesta forma, seguido de perto por Petrarca, que aliás

conferiu ao soneto uma estrutura definida e lhe insuflou um conteúdo lírico. Desde o

século XVI, quando começa a sua grande divulgação fora da Itália, que o soneto tem

estado sempre em posição de relevo. A sua longevidade poderá dever-se às suas

características peculiares, nomeadamente a sua extensão breve, exigindo “a

concentração e a economia de meios típica das obras completas e perfeitas”.85

Em Portugal, o soneto entrou pela mão de Sá de Miranda, após o regresso da sua

viagem à Itália em 1527. O soneto português quinhentista segue as regras dos seus

modelos italianos: a composição acaba em beleza por um verso que encerra um

pensamento elevado numa cadência sem defeito. Camões foi sem dúvida o maior

sonetista em vernáculo de todos os tempos, pela sua irresistível vocação lírica aliada a

uma facilidade incontestável de feitura. Mas muitos outros poetas cultivaram o soneto:

Diogo Bernardes, António Ferreira, Pêro Andrade de Caminha, etc. Nos séculos

seguintes, a sua presença mantém-se; típicos do século XVIII são os sonetos filosóficos

e os libertinos, cultivados tanto por árcades como por dissidentes, e sobretudo por

Bocage (estes destinados sobretudo a deslumbrar o ouvido através de uma dicção

83 Id. Ibid., pp. 269-270. 84 Cf. Ernest Hatch Wilkins, The Invention of the Sonnet and Other Studies in Italian Literature, Roma, Edizioni di

Storia e Letteratura, 1959. 85 Já Boileau, na sua L’Art Poétique de 1674, afirma que “Un sonnet sans défaut vaut seul un long poème” (canto II,

v.94). M. Moisés, Op. Cit., p. 274.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 20

sumptuosa). António Nobre, Camilo Pessanha, Eugénio de Castro, Antero de Quental,

Florbela Espanca, seriam outros famosos adeptos.86

No século XX, “não obstante a actividade literária se processar sobre o signo da

revolta e da indignação social ou mítica”, o soneto persiste.87 Talvez se possa afirmar

que o ressurgimento do soneto na modernidade venha duma resposta ao caos e ao

extremado liberalismo vigentes, em busca de um necessário retorno ao equilíbrio

perdido. Uma série de poetas modernos escreveu em vernáculo alguns dos melhores

sonetos de toda a língua portuguesa: Fernando Pessoa, José Régio, Miguel Torga,

Carlos Drummond de Andrade e tantos outros. A forma tem sofrido numerosas

adaptações e transformações, incluindo mudança na ordem das estrofes, variações no

esquema das rimas e no metro; por exemplo, no Modernismo é comum o soneto de

versos brancos.88 Vale a pena referir a transformação sofrida pelo soneto na Inglaterra

nos séculos XVI e XVII, sobretudo nas mãos de William Shakespeare e de John Milton.

O chamado ‘soneto shakespeariano’ mudou o esquema original da forma petrarquista a

tal ponto que esta ficou irreconhecível: passaria a ser composto de três quadras (cada

uma com duas rimas em disposição alternada) e uma parelha (com rimas próprias).89

Evoluindo no decurso dos séculos, o soneto foi ganhando outros conteúdos que não

propriamente líricos ou confessionais; uma vez por outra, encontram-se sonetos

descritivos, satíricos, épicos ou humorísticos.90

A canção é um poema de fundo lírico e geralmente de forma culta, cuja palavra

deriva do latim cantione. Há, na verdade, “dois tipos de poema abrangidos por este

rótulo: a canção popular, vizinha do folclore e da música, […] e a canção erudita,

dotada de autor próprio e obediente a moldes cultos e relativamente definidos.”91 Esta

última abrange, por sua vez, três géneros literários diferentes: a canção provençal, a

canção italiana ou clássica, e a canção romântica. A primeira está representada entre nós

86 “Desde o Renascimento até à afirmação do Romantismo, o soneto dobrara-se em Portugal a todas as estéticas, e

fora sempre cultivado com assiduidade, se não com fúria. […] Entretanto o velho ídolo posto de parte pela primeira

geração romântica vai reaparecer mais tarde quase intacto, mas sério e pessimista, na obra de Antero. […]”. Cf.

Dicionário de Literatura, direcção de Jacinto do Prado Coelho, 3ª edição, 4º volume, S/L, “Soneto”, Porto,

Figueirinhas, 1985, p. 1042. 87 Moisés, Op. Cit., p. 276. 88 Também acontece os poetas colocarem os tercetos antes das quadras, acrescentarem mais uma estrofe (soneto de

cauda ou estrambote). 89 Por outro lado, o próprio Luís de Camões serviria de exemplar e modelo para sonetistas ingleses mais modernos,

como Elizabeth Barrett Browning (Sonnets from the Portuguese, 1850). 90 Moisés afirma, no entanto, que “[…] esses conteúdos não parecem afinar com a sua estrutura básica, ou a compacta

tradição do soneto lírico impede que o leitor a ele habituado aceite com naturalidade os conteúdos não-líricos.” Op.

Cit., p. 277. 91 Id. Ibid., p. 281.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 21

pelos poemas cultos dos trovadores galego-portugueses. A segunda é uma criação do

Renascimento, e foi cultivada em Portugal desde o século XVI até ao século XVIII. A

terceira consiste num poema lírico e simples, “expressivo quase sempre de um destino

(Canção do Órfão de Junqueiro) ou duma condição (Canção do Exílio de Gonçalves

Dias)”.92

A canção clássica, que inicialmente, tal como a provençal, se destinava

realmente ao canto, obedecia a certos preceitos formais constantes.93 Era composta de

texto e finda ou de introdução, texto e finda. A introdução era às vezes de carácter

geográfico, descrevendo ou indicando o local onde se encontrava o poeta ao escrevê-la;

na finda, mais curta que as estrofes do texto, o poeta personificava o seu poema e

invocava-o directamente; o texto era composto de estrofes regulares (com o mesmo

número de versos) e longas e a mesma simetria de rimas. O metro obrigatório era o

heróico clássico, alternando geralmente com o quebrado correspondente (seis sílabas).

Os primeiros poetas italianos que manipularam o novo molde foram Dante e Petrarca;

este último, com o seu Canzioniere, contribuiu para a sua disseminação durante o

Renascimento. A canção portuguesa quinhentista era sempre amorosa, mas a do século

XVII foi muitas vezes heróica e moral, ao contrário da do século XVIII que retomou os

temas de amor.94

Com o Romantismo, a canção perdeu a rigidez anterior, preservando a

musicalidade e a singeleza dorida, e ainda persiste nos nossos dias, se bem que mudada.

Alinham-se entre os seus cultores os seguintes poetas: Jacques Prévert, António

Machado, Frederico Garcia Lorca, Rafael Alberti, Pablo Neruda, Eugénio de Andrade,

José Régio, António Botto, Fernando Pessoa, Olavo Bilac, Cecília Meireles, entre

outros. Como afirma M. Moisés, embora o amor constitua “o assunto dileto da canção”,

ela pode “abrigar temas guerreiros, patrióticos e mesmo humorísticos ou satíricos, e

religiosos ou morais.”95 É na canção que a poesia lírica encontra o seu meio expressivo

ideal, a ponto de se tornar “a forma liricamente mais pura”.96

92 “[…] pela sua musicalidade e singeleza, […] esta canção romântica pode ser atribuída a entidades como o Vento, o

Mar, e traduzir então, graças à interpretação do poeta, o que diriam, exprimindo a sua natureza, esses seres

inanimados.” Cf. Dicionário de Literatura, Op. Cit., volume 1, A/E, “Canção”, p. 140. 93 Segundo M. Moisés, “[…] a cansó provençal, adaptando-se ao clima itálico e sofrendo naturais transformações, vai

gerar a canzone, matriz da canção erudita cultivada doravante.” Op. Cit., p. 282. 94 Dicionário de Literatura, Op. Cit., pp. 140-141. 95 Id. Ibid., p. 283. 96 Cf. Emil Staiger, Conceptos Fundamentales de Poética, trad. Espanhola, Madrid [1966], pp. 89 e 94.

O MODO LÍRICO

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O vocábulo “balada” deriva do Francês arcaico ballade, remontando ao Baixo

Latim ballare, sinónimo de “dançar”. A significação literária do termo surgiu no século

XIII com o poeta Adam de la Halle. Sob aquela designação, incluem-se duas formas

líricas convergentes mas também diferentes. A primeira pode ser encontrada tanto nos

países do Leste como do Oeste da Europa, sendo de extracção folclórica, popular ou

tradicional. Além de ser uma das mais primitivas expressões poéticas da Humanidade,

trata-se de um cantar de feição narrativa, que gira em torno de um episódio apenas,

contendo um assunto melancólico, histórico, fantástico ou sobrenatural. Este tipo de

balada possui uma estrutura dramática e dialogada, em que “a fabulação é presentificada

ao leitor” e em que “o autor se omite para que na sua voz ecoem as expectativas e os

valores do seu povo.”97 Além de ser uma obra literária anónima, a sua transmissão oral

alterava continuamente o texto primitivo. Tendo surgido inicialmente entre os povos de

fala germânica, na Idade Média, somente no século XVIII, sob o impacto da poesia pré-

romântica, é que a ballad chamou a atenção dos letrados.98

Depois de descoberto o rico filão da poesia tradicional, a balada começou a

exercer uma influência considerável sobre o lirismo romântico. Muitos poetas do século

XIX, entre os quais Robert Burns, Southey, Walter Scott, Schiller, Goethe, Heine, Vítor

Hugo, procuraram reproduzir o ingénuo contorno pré-literário, a espontaneidade

intrínseca e a liberdade formal da balada. E Portugal não escapou à moda: entre 1843 e

1850, Almeida Garrett trouxe a lume o Romanceiro, com todo o manancial da poesia

popular portuguesa remontando à Idade Média. Por seu lado, entre 1828 e 1851, A.

Durán lançava em Espanha o Romancero General. Estes títulos advêm do termo

português “romance” e do espanhol “rimance”, que equivalia na Idade Média à balada

popular. Segundo L. Zillman, “a balada é na verdade uma forma literária mista, pois

reúne elementos de poesia dramática e lírica bem como da narrativa […] pode ser

descrita como uma breve canção-história […] e via de regra sugere mais que explora

largas porções de enredo.”99

O segundo tipo de balada, de origem francesa (ballade) e de circulação erudita,

parece apresentar uma forma fixa e tende a subdividir-se em dois subtipos: a balada

97 M. Moisés, Op. Cit., p. 286. 98 Em 1765, Bishop Percy publicou as Reliques of Ancient English Poetry, a primeira compilação do género. E um

século mais tarde, entre 1882 e 1898, Frances James Child dedicou-se à recolha completa da tradição lírica, que

resultou numa colectânea de 305 baladas intitulada The English and Scottish Popular Ballads. 99 “O processo dramático de pergunta-resposta, ou diálogo, é sempre utilizado para desenvolver a fabulação, e a

chave do seu desenlace frequentemente se adia até próximo do fim”. Cf. Lawrence John Zillman, The Art and Craft

of Poetry, Op. Cit., p. 129.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 23

primitiva, desenvolvida no século XIV graças a Philipe de Vitry, mas estabelecida por

Guillaume de Machaut e cultivada por Eustache Deschamps e Jean Froissart,

distribuindo-se em três estrofes de oito versos com rima ababbccb100; e a balada

propriamente dita, que alcançou o apogeu no século XV com François Villon, Christine

de Pisan e Charles d’Orléans e se compunha de três estrofes de oito ou dez versos,

seguidas de um envoi, com esquema rimático ababbcbc ou ababbccdcd.101 Ao longo

dos séculos XVI e XVII, a balada entrou em desuso, mas no final do século XIX, com o

Decadentismo, renasceu na poesia de Austin Dobson, Andrew Lang, W. E. Henley e

Théodore de Banville. Depois de Garrett, em Portugal observa-se a presença da balada

segundo o modelo saxónico, ou numa estrutura livre, na obra de Soares de Passos, Júlio

Brandão, Augusto Gil e José Gomes Ferreira.

4. ALGUMAS TEORIAS SOBRE A LÍRICA E O LÍRICO

[…] É um duro ofício, o de poeta. Começa por ser uma vocação irreprimível e acaba por ser uma

penitência assumida. A fatalidade e a voluntariedade inexoravelmente conjugadas no mesmo

destino carismático e aziago que só encontra sentido na fidelidade com que se cumpre. O risco

supremo de enfrentar eternamente os juízos do futuro aceite como graça suprema. As imagens de

um zagal bucolicamente deitado a uma sombra a soltar melodias da avena ou a de um menestrel vagabundo a levar de castelo em castelo os frutos espontâneos da sua inspiração coadunam-se mal

com a impiedosa lucidez dos nossos dias, em que o cantor – quando se sente obrigado a prolongar

a voz mediúmnica de que é herdeiro – morre crucificado no próprio canto, a afeiçoá-lo até à exaustão, consciente de que nele que se salva ou se perde e de que tem de o erguer imponderável

como uma miragem e sólido como uma fortaleza. Cada verso de tal forma acabado que esgote no

seu rigor todas as alternativas da expressão. A vivência a comunicar formulada de uma vez para sempre, numa linguagem ao mesmo tempo tributária e original, transparente e críptica, que diga

esperança quando nomeia o desespero e nimbe os esplendores do profano dum halo sagrado. […]

MIGUEL TORGA, Prefácio a Antologia Poética

A lírica é uma noção que dificilmente se pode considerar unívoca e que tem

sofrido ao longo do tempo modificações muito notáveis. Trata-se, em suma, de uma

prática histórica mas que não se pode circunscrever a um contexto nacional ou de época

e que não pode entender-se à margem da reflexão teórica e metapoética. Segundo

Aseguinolaza, a lírica entende-se melhor como tipo de discurso centrado essencialmente

em torno de uma determinação enunciativa do que como género num sentido

100 Conforme ensinam as Règles de la Seconde Rhétorique, de autor anónimo, publicadas entre 1411 e 1432. 101 De origem provençal, o envoi consiste de meia estrofe, de quatro a cinco versos, que finaliza a balada (a quem o

trovador envia ou dedica o poema). Também chamado “ofertório” em Português, corresponde à fiinda, que

funcionava como fecho às cantigas galaico-portuguesas.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 24

tradicional.102 Mesmo assim, existe a tentação de diferenciar à partida duas grandes

correntes explicativas do fenómeno lírico; por um lado, a que destaca a atitude básica do

enunciador no texto lírico (defendida, nomeadamente, por R. Ingarden, E. Staiger e K.

Hamburger); e, por outro, a que se centra na reflexão sobre a linguagem e a forma

(cujos representantes são R. Jakobson e J. Cohen, entre outros).103

Os ensaios canónicos no que se refere à chamada poética formal, incluindo o

célebre ensaio de Jakobson “Linguística e Poética” e os trabalhos sobre a poesia de Jean

Cohen, permitem-nos sintetizar uma certa maneira de entender a poesia muito em voga

na teoria e crítica literárias do século XX e, hoje, já em crise. Em primeiro lugar, a

poesia entende-se como uma mensagem situada em pé de igualdade com qualquer outro

tipo de mensagem. No caso de Jakobson, a diferença vincula-se à chamada ‘função

poética’; no caso de Cohen, a diferença prima-se pelo desvio ou a anomalia e a poesia é

concebida como ideolecto. Ambas as aproximações enfatizam a vertente linguística

(sintáctico-semântica) da lírica em detrimento da dimensão enunciativa (pragmática);

nada incluem aparentemente sobre o poeta, o sujeito lírico, etc.104 Esta ênfase

linguística, posteriormente designada como dicção, iria opor-se à chamada ficção, que

inclui aquelas aproximações que enfatizam a dimensão representativa e mimética do

fenómeno lírico. Aseguinolaza, no seu ensaio “La lírica: um lugar teórico”, prefere

referir-se por um lado à estreita interrelação entre a teoria e a escrita lírica e, por outro, à

tendência metapoética tão própria do discurso lírico, já que ambas são veículos para a

definição da sua própria legitimidade. Para ele, a lírica ocupa um lugar privilegiado na

encruzilhada de questões de grande alcance teórico.105

Aseguinolaza começa por se referir ao trabalho de René Wellek, que em 1967

prescrevia o abandono de todo o propósito de definir a natureza geral da lírica e do

lírico. Isto a favor de uma análise histórica de géneros dependentes de convenções e

tradições particulares e, por outro lado, de uma crítica severa de dois dos trabalhos mais

influentes do século XX: o de Emil Staiger e o de Käte Hamburger.106 No seu artigo

“Genre Theory, the Lyric, and Erlebnis”, Wellek afirma que Hamburger estabelece uma

distinção fundamental entre dois tipos de poesia: ficcional ou mimética e lírica ou

102 Fernando Cabo Aseguinolaza (ed.), “Introducción. La Lírica: Un Lugar Teórico”, Teorias sobre la Lírica, Madrid,

Arco/Libros, 1999, pp. 9-10. 103 Aseguinolaza, Op. Cit., p.10. 104 Id. Ibid. 105 Id. Ibid., pp. 14 e 16. 106 O de Emil Staiger intitulado Grundbegriffe der Poetik (Conceitos Fundamentais de Poética) foi publicado em

1946. Por seu turno, Die Logik der Dichtung (A Lógica da Literatura) de Käte Hamburger seria publicado em 1957.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 25

existencial, em que o critério de demarcação é o falante: na lírica fala o próprio poeta,

na épica e no drama o poeta faz falar outros. Ela não só considera a “experiência

vivida”, a intensidade e a vivência (Erlebnis) como o critério da poesia lírica, mas

também que a lírica é um “enunciado real”. Neste sentido, Hamburger argumenta que

“devemos recorrer a investigações externas, incluindo biográficas” para explicar um

poema lírico. Por outro lado, insiste que uma narração na terceira pessoa, por muito

próxima que esteja da realidade empírica, será sempre ficção, ao passo que uma

narração na primeira pessoa, por muito fantástica e irreal que pareça, será sempre não-

ficção. Wellek considera que a teoria epistemológica de Hamburger conduz a um

resultado muito pobre: a uma “gramática da poesia”, baseada apenas na descrição dos

mecanismos estilísticos, e a uma reafirmação da antiga divisão da poesia de acordo com

a voz enunciadora.107

Por outro lado, ao referir-se à obra de cariz antropológico de E. Staiger, Wellek

salienta a correspondência do lírico com o tempo passado (contradizendo todas as

análises usuais da presença ou imediatez lírica), com o estado anímico, com a idade da

infância e com a faculdade emocional ou sensual, entre outros aspectos. Segundo ele, “o

problema fundamental deste esquema radica na sua falta de conexão com a poesia real”,

pois os exemplos dados por Steiger procedem na sua totalidade da poesia romântica

alemã, “meditações privadas e caprichosas”, em que o poema lírico se descreve em

termos de uma “fusão mística” entre sujeito e objecto.108 Para Wellek, os esquemas de

Staiger e de Hamburger estão enraizados numa longa tradição que remonta ao grande

período de especulação estética na Alemanha e que vê a lírica como subjectiva, como a

expressão do sentimento ou da experiência, Erlebnis. Wellek parece contestar a

pretensão de que a sinceridade, a emoção ou a vivência sejam garantia de uma boa arte,

acrescentando que esta teoria lírica dava sinais de ter chegado a um ponto morto.109

Nesse mesmo ano (1967), as reflexões especialmente lúcidas de José G.

Merquior reivindicavam a noção de mimese para a lírica, propondo ainda conjugá-la

com a noção de linguagem. A tese de Merquior é que a lírica é “a imitação de estados

anímicos”; mune-se, assim, de duas potentes armas analíticas, a teoria da mescla

107 R. Wellek, “La Teoria de los Géneros, la Lírica y el Erlebnis”, Teorias sobre la Lírica, ed. Fernando C.

Aseguinolaza, pp. 26-35. 108 Id. Ibid., pp. 37-41. 109 Id. Ibid., pp. 48 e 53. Em 1957, o crítico neo-marxista Theodor Adorno tinha publicado um ensaio exemplar

contrariando a resistência aparente da poesia ao social – “Poesia Lírica e Sociedade”. Adorno desloca a vinculação

material do poema, a sua participação na generalidade das coisas, para o plano da experiência individual. Na sua

leitura, a poesia pode assim configurar uma sintomatologia histórica.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 26

estilística de Erich Auerbach e a hermenêutica de Martin Heidegger, para propor uma

poética normativa. No seu ensaio sobre a “Natureza da Lírica”, ele começa por afirmar

que a lírica era inicialmente apenas um género da poesia, mas que com o “declínio do

grande poema narrativo e do verso dramático, lírica e poesia terminaram por confundir-

se.”; de tal forma que na literatura moderna um termo pode ser empregue pelo outro.110

Para ele, a obra lírica é uma mensagem linguística que tem como finalidade “a

representação fictícia de situações humanas, dotadas de interesse permanente” e a

“evidência da mímese interna nunca é maior do que na lírica.”111 Os três elementos da

imitação lírica são o ‘objecto’, o ‘medium’ e o ‘fim’, isto é, os estados de ânimo

exprimidos verbalmente com a finalidade de conhecer as verdades humanas. Neste

esquema, a originalidade ou inventividade do poeta residiria não tanto no que ele diz,

mas na forma como o diz.112

Na colectânea conjunta sobre a Teoría del Poema, Fernando Aseguinolaza e

Germán Gullón afirmam que, na actualidade, aquilo que ainda predomina é a ‘leitura

poética ou afectiva’, embora ressalvando que tanto os teóricos da lírica como os

próprios poetas têm vindo a apontar para um ‘entendimento ficcional’.113 Apesar da

tradição privilegiar uma orientação expressiva da poesia, servindo de fundamento à

consideração da lírica como ‘arquigénero’, estes autores consideram o aprofundamento

da dimensão enunciativa da lírica como merecedor de especial atenção.114 Entre os

trabalhos por eles compilados, podemos encontrar o estudo de José Maria Pozuelo

Ivancos, que caracteriza a enunciação lírica como “emergencia de la temporalidad”, ou

dito de outra forma, como criação de um âmbito enunciativo definido pela ‘presentez’,

isto é, pelo presente e pela presença absoluta, entre outras coisas, do próprio sujeito

lírico.115 Um outro estudo é o do próprio Fernando Aseguinolaza, que define duas

grandes linhas enunciativas na lírica moderna, identificadas por sua vez mediante as

referências míticas de Narciso e Filomela, e que indaga acerca da sua fundação comum

na peculiar consciência linguística, que se encontra na base regressiva e mitologizante

110 José Guilherme Merquior, A Astúcia da Mimese (ensaios sobre lírica), 2ª edição, Rio de Janeiro, Topbooks, 1997,

p.17. 111 Id. Ibid., pp. 17 e 22. 112 Id. Ibid., pp. 23-24, 28-29. 113 Cf. F. C. Aseguinolaza e G. Gullón (editores), Teoria del Poema: La Enunciación Lírica, Amsterdam e Atlanta,

Rodopi, 1998. 114 No “Prefacio” à obra acima referida, pp. 7-10. 115 O título do estudo é “Enunciación Lírica?”, pp. 41-75.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 27

da ideia de linguagem poética.116 O trabalho de Sultana Wahnón, por seu lado,

aventura-se pela relação entre a ‘ficção’ e a ‘dicção’ líricas através de uma perspectiva

histórica muito atenta às poéticas árabes e hebraicas, para pôr em relevo que o

caracterizar do texto lírico como fictício deve conceber-se antes como ponto de partida

do que como solução.117

No seu estudo, Aseguinolaza afirma que um dos paradoxos mais desconcertantes

da teoria literária tem a ver com o estatuto daquilo que designamos como lírica. Sendo

este um conceito genérico fundamentado numa concepção de raiz enunciativa, a

indagação teórica a propósito dessa determinação tem sido precária, para não dizer

insuficiente.118 A confiança implícita no seu carácter expressivo, pessoal, íntimo ou

subjectivo parece ter tornado desnecessário o deter-se no aspecto da sua delineação

enunciativa para favorecer, pelo contrário, outras aproximações alternativas, em

particular de índole linguística.119 Roman Jakobson, o representante quase por

excelência da poética linguística, estabeleceu como base inquestionável para a sua

abordagem da lírica a expressão primo pessoal. Isto é, fez suster a consideração forte da

lírica a partir da “categoria do sujeito-falante”. Assim, na conferência de Bloomington,

a lírica apareceria caracterizada pela presença da função expressiva, imediatamente

atrás da função poética.120 A força da ideia recebida a propósito do carácter efusivo,

pessoal, que caracterizaria esta forma literária levou repetidamente a dar-se como

assente a sua relação directa com o sujeito-falante, e posteriormente, a defender com

frequência a sua natureza não fictícia.121

Pelo contrário, o desenvolvimento da lírica moderna apresenta-se mais como um

processo de contínua e persistente descrença na subjectividade e na possibilidade da sua

expressão linguística. Para Aseguinolaza, “a enunciação, com as suas aporias, constitui

o cenário da problematização do sujeito e uma fonte inesgotável de significação.”122 A

questão da enunciação lírica deve ser entendida, em toda a sua complexidade, como o

resultado da interacção entre o discurso metaliterário – metapoético, neste caso – dos

próprios autores, a prática da escrita lírica e o discurso teórico-crítico. A constante

116 “Entre Narciso e Filomela: Enunciación y Lenguage Poético”, pp. 11-39. 117 “Ficción y Dicción en el Poema”, pp. 77-110. Dados os limites de extensão deste nosso trabalho, não poderemos

aqui desenvolver as interessantes perspectivas de Ivancos e de Wahnón. 118 Aseguinolaza, Op. Cit., pp. 11-12. 119 Id. Ibid., p.12. 120 Id. Ibid. Para Aseguinolaza, Jakobson não faria mais do que reformular a delineação hegeliana e romântica da

poesia lírica. 121 Na medida, claro está, em que a mencionada categoria do sujeito-falante se identifica abertamente com a figura do

autor. 122 Id. Ibid., p.13.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 28

problematização da palavra poética fez da questão enunciativa um dos eixos básicos da

lírica como discurso literário. Neste sentido, um dos traços distintivos da lírica moderna

consiste na ênfase sobre “a débil circunstanciação do discurso” e do seu enunciador.

Esta ausência é colmatada mediante uma “linguagem em plenitude” que se sobrepõe ao

eu individual e às constrições espaciais e temporais que o identificam, por meio de uma

confiança no acto de leitura e na sua capacidade de “actualização renovadora da palavra

poética”ou, até, através da ficcionalização radical (máscaras, apócrifos, heterónimos).123

Segundo uma tese de Iuri Lotman, a reconstrução de uma linguagem já perdida,

em cujo sistema um texto dado adquiriria a condição de estar dotado de sentido, resulta

praticamente sempre na criação de uma nova linguagem.124 Para Aseguinolaza,

reconstruir uma linguagem perdida é sem dúvida uma forma muito apropriada de

entender a leitura de um poema. A lírica potencia ao extremo essa capacidade de

recordação, a partir dos fragmentos ou palavras que configuram o texto poético. “A

percepção cada vez mais acutilante do poder da linguagem para antepor a sua própria

presença à figura ausente de quem a emprega, acompanha a lírica moderna na sua

trajectória.”125

Aseguinolaza detecta duas orientações decisivas na tradição poética moderna

que manifestam aquela tensão enunciativa. Uma delas situa-se sob a influência da figura

de Narciso, emblema ovidiano da “auto-complacência ensimesmada e destrutiva”.126

Esta concepção solipsística da expressão lírica manifesta-se no culto do eu como única

realidade criadora, em que o mundo seria um puro fenómeno de reflexão. Por

conseguinte, o drama de Narciso não é outro senão o da estranheza fatal diante da sua

própria imagem. Dá-se um “exacerbamento da enunciação interna por via da sua

encenação lírica”, que pode fazer uso do dialogismo, da heteronomia, do monólogo

dramático, da ficcionalização do eu lírico, etc.127 Técnicas que se vinculam a poetas

como Baudelaire, Browning, Unamuno, Eliot, Pound, Pessoa, entre muitos outros.

A outra orientação na lírica ocidental baseia-se, segundo aquele crítico, na figura

mitológica de Filomela. Transformada em rouxinol, cantando a perda e a dor na solidão

123 Id. Ibid., pp. 14-15. Segundo Aseguinolaza, estas três não são as únicas vias possíveis de o poeta se desligar do

circunstancial, mas apenas as mais frequentes. 124 I. Lotman, Acerca de la semiosfera, trad. D. Navarro, Valência, Eutopías, vol.106, 1995. Citado em Aseguinolaza

e Gullón, pp. 16-17. 125 Aseguinolaza, Op. Cit., pp. 16-17. A tradução é nossa. 126 Id. Ibid., pp. 19-20. 127 Id. Ibid., p. 21. No original: “[…] un exacerbamiento de la enunciación interna (o enunciada) por la via de su

escenificación lirica.” (p. 21). Aseguinolaza refere ainda os fenómenos da concepção heterológica da palavra poética,

o entendimento do texto a modo de palimpsesto, o desenvolvimento de poéticas da impessoalidade e a acentuação

irónica do double-bind enunciativo no interior do poema.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 29

do bosque com o seu trinar melodioso, ela seria o símbolo de uma expressividade pura,

alheia ao conceptual, desprendida do enunciativo e do eu poético tradicional. Esta

imagem permite, em suma, a identificação da lírica com uma linguagem específica,

intransitiva, provocando o “desaparecimento elocutório do poeta” e a emergência de

uma pura voz anónima, “mero substrato acústico do verso”.128 Com esta linha poética

poderiam identificar-se autores como Poe, Mallarmé, Rimbaud, Verlaine ou Breton.

Apesar de reveladoras das tensões básicas da lírica moderna e contemporânea, estas

duas orientações parecem partilhar a mesma origem: a ideia de uma linguagem

concebida como dissipadora de significados, como distância frente ao mundo ou como

mediação necessária face a ele. Segundo Aseguinolaza, não existe verdadeira

contradição entre Narciso e Filomela, nem mesmo entre uma teoria de base linguística e

uma de tom expressivo. “A enunciação lírica impõe-se não já como origem, mas como

resultado, como projecto da palavra poética.”129

Num recente e interessante artigo, “La creación de mundos possibles en el modo

lírico”, Mariela Cereceda aborda o modo lírico segundo uma dupla perspectiva: como

uma das configurações genéricas da literatura e como um modo ontológico de

vinculação do sujeito ao mundo.130 Para esta autora, cujo objectivo é analisar como se

leva a cabo esta ‘cosmificação’ no modo lírico literário, a obra artística situa-nos diante

de um cenário em que a busca de unidade se faz contemplável através do plasmar de um

mundo possível alternativo.131 O homem relaciona-se “modalmente” com o mundo

através de actos culturais (“géneros naturais”) e o sujeito pode reagir no mundo de três

modos básicos: lírica, épica ou dramaticamente. Segundo Cereceda, o modo lírico tem

os seus alicerces no passado, na “anterioridade” que se “interioriza”, para logo se

partilhar com o outro: é a emocionalidade que transcende.132 Da mesma forma, o termo

modo pode utilizar-se no sentido de forma primária da realização artística; Kurt Spang

128 Id. Ibid., pp. 22-23. Sobre a tradição literária de Filomela, ver W. Pfeffer, The Change of Philomel. The

Nightingale in Medieval Literature, New York, Peter Lang, 1985. 129 Id. Ibid., pp. 25, 31-33. “La lirica – esto es, la poesia – se convierte así en eco o en proyecto de la palabra

original.” (p. 31). 130 Mariela Insúa Cereceda. 2005. “La creación de mundos posibles en el modo lírico”. Documentos Linguísticos y

Literarios 28: 40-44. www.humanidades.uach.cl/documentos_linguisticos/document.php?id=82 (Dirección

Electrónica). 131 Cereceda, Op. Cit., p. 1. 132 Id. Ibid.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 30

tem precisamente em consideração esta dimensão antropológica das distintas

modalidades artísticas.133

Ao abordar o “modo lírico e a ficcionalidade”, Cereceda refere os estudos de

Wolfang Iser sobre a capacidade que a ficção tem de organizar a realidade de forma a

poder ser comunicada.134 Assim sendo, a ficção surge como o mecanismo da criação

artística que permite ao homem aproximar-se da ideia de unidade. Como staged

discourse a obra literária vai mais longe que o real, embora o incorpore.135 A

ficcionalidade do discurso lírico é um tema particularmente complexo, cuja dificuldade

radica na base antropológica do modo lírico. Cereceda coloca duas questões, entre

outras: como é que uma criação que se sustenta de um “condensado canto interior” se

pode configurar tendo como base “modelos do mundo que transcendam”? Como é que a

lírica plasma mundos possíveis?136

O facto de que a lírica se incorporou tardiamente na organização tripartida dos

géneros poderia relacionar-se, segundo Garcia Berrio, com a consideração da sua

carência de representação mimética.137 Foi Sebastiano Minturno, em L’Arte Poética de

1564, quem expôs pela primeira vez uma definição da lírica (ou “mélica”) como

modalidade unitária e mimética. Esta ideia seria reiterada por Francisco de Cascales nas

Tablas poéticas de 1614. Assim, surge a noção da lírica como um modo de imitação

poética, caracterizado nas palavras de Minturno: porque o poeta, ao imitar, “mantém a

sua pessoa e não se transfigura em outros”.138 Se a lírica é ficção, um “falar imaginário”

que comunica modelos do mundo, Cereceda pergunta-se de que maneira especial é que

o modo lírico trabalha a forma para se referir ficcionalmente à realidade?139

Ao falar de “comunicação e enunciação no modo lírico”, Cereceda afirma que a

teoria pragmática defendeu a necessidade de mostrar a especificidade da acção

comunicativa que a lírica propõe dentro do contexto literário.140 Deste modo, Samuel

Levin dedicou-se a analisar que tipo de acto de fala é um poema; segundo ele, cada

poema possui uma “oração real dominante” exprimindo um determinado tipo de força

133 Kurt Spang, “Modos y géneros en literatura”. Actas del Coloquio Internacional “Los géneros en las artes”. K.

Spang (ed.) Pamplona, Universidad de Navarra, 2001, 165-176. 134 Cereceda, Op. Cit., p. 2. 135 Wolfang Iser, “Fictionalizing: The Anthropological dimension of literary fictions”. New Literary History 21,

1990, pp. 939-955. 136 Cereceda, Op. Cit., p. 2 137 António Garcia Berrio, Teoría de la literatura. La construcción del significado poético, Madrid, Cátedra, 1994. 138 Cit. em Garcia Berrio, p. 582. 139 Cereceda, Op. Cit., p. 2. 140 Id. Ibid., p. 3. Cereceda refere-se, em particular, aos delineamentos feitos por Austin e Searle sobre os actos

locutivos, ilocutivos e perlocutivos.

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 31

ilocutiva; apesar de elidida, esta oração estaria sempre latente em cada acto de fala

lírico; consistiria no seguinte: Eu imagino-me a mim mesmo em, e convido-te a ti a

conceber um mundo naquilo que eu te digo.141 Deste modo, o eu projecta um mundo

imaginário que acolhe um sujeito linguístico que convida a contemplar esse mundo do

qual ele forma parte. Compreender esta oração implícita que sustenta o acto

comunicativo lírico é a base do pacto poético, isto é, da convenção básica entre autor e

leitor.142 Esta dimensão comunicativa e enunciativa da lírica é fundamental pois é o que

distingue a lírica do drama e da narrativa. A “interiorização da anterioridade” necessita

ser comunicada ou recitada e o acto enunciativo do modo lírico sugere sempre uma

viagem ao interior de um sujeito, quer a voz se apresente ficticiamente na primeira, na

segunda ou na terceira pessoa.143 A enunciação lírica é eminentemente subjectiva e o

seu olhar tende ao “recolhimento” e ao aprofundamento, sendo a forma do seu

enunciado intensa, metafórica, muitas vezes indeterminada e ambígua, povoada de

vazios e de silêncios eloquentes, com um ritmo conducente à harmonia de um todo

sugerido.144

Quando aborda a questão dos “mundos possíveis no modo lírico”, Cereceda vai

buscar a ideia de Heidegger de que o sujeito existe na medida em que constrói

interpretações do mundo e estas possuem na sua base uma atitude projectiva, pois o

sujeito projecta o seu ser sobre possibilidades.145 Ela afirma que não é necessário que

haja ‘história’ para criar mundos a um nível fictivo. A questão é que “a construção do

complexo de mundos e submundos (desejados, temidos, intuídos, sonhados …) se

realiza de maneira diferente na lírica do que na narrativa ou no drama […]”.146 Ao

contrário destas, e segundo Spang, “a lírica ficcionaliza a partir de esboços, são mundos

sugeridos, que não se apresentam em detalhe, pois afirmam-se na expressão de um

141 Samuel Levin, “Consideraciones sobre qué tipo de acto de habla es un poema”. Pragmática de la comunicación

literaria, ed. J. A. Mayoral, Madrid, Arco, 1987, 59-82, pp. 67-70. 142 Cereceda, Op. Cit., p. 3. 143 Id. Ibid. 144 Id. Ibid. No original: “En el modo lirico, como diria Alvira, la mirada tiende al ‘recogimiento’ […] La forma […]

ha de ser intensa, metafórica por esencia, muchas vezes indeterminada y ambígua […] com un ritmo que […]

conduzca a la armonia de un todo sugerido.” (p. 3). 145 Foi o filósofo alemão Leibniz que, em 1710, usou pela primeira vez a denominação “mundo possível”. Segundo

ele, existe uma “infinidade de universos possíveis nas ideias de Deus” e este escolheu um mundo de entre a

multiplicidade que se lhe oferecia para ser imbuído com a categoria do real. Desta afirmação original derivou a ideia

de que os mundos são possíveis na medida em que a eles subjaz a qualidade da alternatividade. A fim de aplicar a

categoria de mundo possível à análise da ficcionalidade, teóricos da literatura como Dolezel (1979), Van Dijk (1980)

e Eco (1978), entre outros, relacionaram a ideia leibniziana de mundo possível com noções de lógica e de semântica

modal. 146 Cereceda, Op. Cit., p. 4. No original: “[…] la construcción del complejo de mundos y submundos (…) se realiza

de manera diferente en la lirica que en la narrativa o en el drama. […]”

O MODO LÍRICO

Paula Alexandra Guimarães 32

estado profundo ou de uma vivência”.147 É possível “assomar-se” a um mundo e captar

a ideia da totalidade da sua presença através da visão parcial do mesmo; por isso, é ao

leitor que cumpre o papel fundamental de articular o mundo possível a partir do pouco

que se lhe oferece. Cereceda salienta, no entanto, que para possibilitar que o receptor

retire uma ideia de permanência da sua captação é muito importante que o poema seja o

resultado de um processo emocional de aprofundamento subjectivo.148 Neste sentido,

García Berrio sugere que o fundamento do valor poético consiste em “construir um

objecto de revelação essencial e de comoção profunda comum à maioria dos seres

humanos”.149

Quando se refere a uma das constantes do modo lírico como sendo a brevidade

(presente na sua configuração em verso), Cereceda explica que o sujeito capta sempre

porções de mundo, fragmentos “breves” e diversos, a partir dos quais tem de intuir a

unidade. Assim, “o modo lírico assenta numa plasmação ficcional que reflicta essa

realidade constitutiva da condição humana.”150 À pergunta se é possível construir um

mundo na brevidade de uns versos, de umas poucas imagens, Cereceda responde que a

existência do homem também está feita de traços, de captações difusas de partes do

mundo. O receptor de um texto lírico não se assoma a uma totalidade (como nos modos

épico-narrativo ou dramático), mas a um momento a partir do qual se pode evocar a

totalidade.151 Na afirmação de Alvira, a poesia “como representação mimética do geral

apoia a consideração do discurso lírico enquanto expressão de universais essenciais

numa configuração ficcional”.152

E também já nas palavras do próprio poeta-dramaturgo inglês:

The poet’s eye, in a fine frenzy rolling,

Doth glance from heaven to earth, from earth to heaven;

And, as imagination bodies forth

The forms of things unknown, the poet’s pen

Turns them to shapes, and gives to airy nothing

A local habitation and a name.

WILLIAM SHAKESPEARE; A Midsummer Night’s Dream

Paula Alexandra Guimarães

147 Kurt Spang, “La literatura y sus modos”. Las artes y sus modos. Actas del Coloquio Internacional “Las artes y sus

modos”. K. Spang (ed.) Pamplona: Universidad de Navarra. Anejos de Rilce, 2003: 121-142, p.131. 148 Cereceda, Op. Cit., p. 4. 149 Garcia Berrio, Op. Cit., p. 617. 150 Cereceda, Op. Cit., p. 4. “El modo lirico se asienta en la plasmación ficcional que refleja esa realidad constitutiva

de la condición humana.” 151 Id. Ibid., p. 5. 152 Rafael Alvira, “Los modos como dimensiones antropológicas”. Actas del Colóquio Internacional “Los géneros en

las artes”. K. Spang, Pamplona, Universidad de Navarra, 2001, 11-16, p. 13.

O MODO LÍRICO

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