genero lírico

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D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do Texto 2 – teoria da lírica e do drama . São Paulo: Ática, 1995. Formas e exemplos de liricidade O que é lírica O étimo da palavra lírica está relacionado com lyra, instrumento musical de corda, que os gregos usavam para acompanhar os versos poéticos. A partir do século IV a.C., o termo lírica passou a substituir a antiga palavra mélica (de melos, “canto”, “melodia”) para indicar poemas pequenos por meio dos quais os poetas exprimiam seus sentimentos. Aristóteles distingue a poesia mélica ou lírica, que era a pala- vra “cantada”, da poesia épica ou narrativa, que era a palavra reci- tada”, e da poesia dramática, que era a palavra “representada”. O gênero lírico, portanto, em suas origens, está profundamente ligado à música e ao canto. Mesmo mais tarde, quando a poesia lírica deixa de ser composta para ser cantada e passa a ser escrita para ser lida, ainda conserva traços de sonoridade através dos elementos fônicos do poema: metros, acentos, rimas, aliterações, onomatopéias. Sinais evidentes dessa interação podem ser encontrados nas denominações das formas poemáticas (soneto, canção, balada, etc.) e em algumas espécies de arte que, ainda hoje, cultivam a simbiose música-palavra: a ópera, o musical, a canção popular. O consórcio com a música nos ajuda a entender a característica mais peculiar do gênero lírico: a emocionalidade — marcante a ponto de os termos lírico e emocional serem usados quase como sinônimos. Lírico, na forma adjetiva, é visto por Émil Staiger (53) como um estado de alma, uma disposição sentimental, que o eu poemático exprime por meio de palavras fluidas, diáfanas, aparentemente sem nexo lógico. A poesia lírica é uma explosão de sentimentos, sensações, emoções. Segundo Roman Jakobson (141), tendo como fator fundamental da comunicação o emissor, o gênero lírico ativa intensamente a função emotiva da linguagem humana. Para expressar os conteúdos vagos de sua subjetividade, o poeta lírico lança mão de vários recursos estilísticos próprios da lin- guagem poética, especialmente a metáfora, que lhe permitem esta- belecer parentescos entre objetos que pertencem a campos semânticos

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Page 1: Genero Lírico

D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do Texto 2 – teoria da lírica e do drama. São Paulo: Ática, 1995.

Formas e exemplos de liricidade

O que é líricaO étimo da palavra lírica está relacionado com lyra, instrumento musical de corda, que os

gregos usavam para acompanhar os versos poéticos. A partir do século IV a.C., o termo lírica passou a substituir a antiga palavra mélica (de melos, “canto”, “melodia”) para indicar poemas pequenos por meio dos quais os poetas exprimiam seus sentimentos.

Aristóteles distingue a poesia mélica ou lírica, que era a palavra “cantada”, da poesia épica ou narrativa, que era a palavra recitada”, e da poesia dramática, que era a palavra “representada”. O gênero lírico, portanto, em suas origens, está profundamente ligado à música e ao canto. Mesmo mais tarde, quando a poesia lírica deixa de ser composta para ser cantada e passa a ser escrita para ser lida, ainda conserva traços de sonoridade através dos elementos fônicos do poema: metros, acentos, rimas, aliterações, onomatopéias. Sinais evidentes dessa interação podem ser encontrados nas denominações das formas poemáticas (soneto, canção, balada, etc.) e em algumas espécies de arte que, ainda hoje, cultivam a simbiose música-palavra: a ópera, o musical, a canção popular.

O consórcio com a música nos ajuda a entender a característica mais peculiar do gênero lírico: a emocionalidade — marcante a ponto de os termos lírico e emocional serem usados quase como sinônimos. Lírico, na forma adjetiva, é visto por Émil Staiger (53) como um estado de alma, uma disposição sentimental, que o eu poemático exprime por meio de palavras fluidas, diáfanas, aparen-temente sem nexo lógico. A poesia lírica é uma explosão de sentimentos, sensações, emoções. Segundo Roman Jakobson (141), tendo como fator fundamental da comunicação o emissor, o gênero lírico ativa intensamente a função emotiva da linguagem humana.

Para expressar os conteúdos vagos de sua subjetividade, o poeta lírico lança mão de vários recursos estilísticos próprios da linguagem poética, especialmente a metáfora, que lhe permitem esta-belecer parentescos entre objetos que pertencem a campos semânticos diferentes. Operando na linha da similaridade, por meio do processo psíquico da associação, a lírica encontra relações surpreendentes entre o sentimento do presente, as recordações do passado e o pressentimento do futuro, entre os fenômenos da natureza cósmica e os atributos do ser humano. Assim, por exemplo, o poeta espanhol Góngora compara o cabelo loiro da mulher amada aos raios do sol, os lábios vermelhos ao cravo matinal.

Evidentemente, os arroubos líricos só existem em fugazes momentos, não podendo sustentar uma longa composição literária. Daí decorre que a lírica se manifesta através de poemas curtos. Muito embora momentos líricos possam ser encontrados em gêneros literários de textos maiores, na epopéia (como o episódio de Inês de Castro em Os lusíadas, de Camões) ou no romance (a abertura de Iracema, de José de Alencar), a lírica, como gênero literário à parte, opera através de formas poemáticas reduzidas: a cantiga, o soneto, o rondó, etc. Podemos deduzir, então, que se toda lírica é sempre poesia, não importa se em verso ou em prosa, nem sempre a poesia em verso é lírica. É bom lembrar que poesia, segundo seu étimo grego, indica todo fazer artístico, qualquer criação literária. A lírica, portanto, é uma forma peculiar de poesia com as características que apontamos acima e que tem como meio de expressão as formas poemáticas que veremos adiante.

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A evolução do gênero líricoA poesia lírica é intrínseca à natureza humana. Os antigos gregos manifestavam em versos

líricos várias atividades: o sentimento religioso (hino), a disputa esportiva (epinício), a exaltação de um homem ilustre (encômio), a celebração das núpcias (epitalâmio), a dor pela morte de um ente querido (treno), o gracejo obsceno (jambo), os preceitos morais e os sentimentos da pátria e do amor (elegia gnômica, guerreira e erótica). Infelizmente, da maravilhosa produção lírica da Grécia antiga só restaram fragmentos. Os considerados mais importantes, pelo fato de que suas formas métricas e conteúdos ideológicos tiveram imitadores ao longo da história da lírica do Ocidente, pertencem a três grandes poetas: Safo (625-580 a.C.), a grande poetisa do amor; Píndaro (518-438 a.C.), que em suas famosas Odes exalta os ideais do povo grego; e Anacreonte (564-478 a.C.), o cantor das alegrias da mesa (Skólia) e da cama (Erótika).

A lírica de língua latina seguiu, de uma forma geral, os modelos criados pelos gregos, embora o conteúdo poemático espelhe a diferente sensibilidade do povo romano. A literatura latina apresenta quatro poetas líricos de primeira grandeza: Catulo, Horácio, Virgílio e Ovídio. Catulo (87-54 a.C.), considerado um dos maiores poetas líricos de todos os tempos, deixou-nos uma coletânea de 116 poemas, intitulada G. Valerii Catulli Liber, de onde se destacam as Nugae (Brincadeiras), poesias leves, de assunto amoroso, que retratam a trajetória de sua paixão infeliz pela sedutora e volúvel Lés-bia. Horácio (65-8 a.C.), o poeta mais “clássico”, foi o modelo em que se inspiraram todos os poetas europeus até a revolução estética do romantismo. Além de poeta propriamente lírico (autor de quatro livros de odes), ele foi o maior escritor de sátiras (dois livros), gênero poético inventado pelos romanos, e de epístolas, cartas em verso dirigidas a amigos, de assunto estético-filosófico. Virgílio (70-19 a.C.), mais conhecido pelo poema épico Eneida, foi autor de belíssimas líricas pastoris: Cármina Bucólica (ou Éclogas), dez cantos que exaltam a vida dos pastores; as Geórgicas, em quatro livros, poema didático que ensina o cultivo da terra, a plantação das árvores, a criação do gado e a produção do mel. Ovídio (43 a.C. — 18 d.C.) é o poeta elegíaco mais prolífero da literatura latina: Amores, Ars Amatoria, Remedia amoris, Tristia, Epistolae ex Ponto.

Na Alta Idade Média (do século V ao XI), a poesia lírica em língua latina ficou restrita quase exclusivamente ao culto da religião cristã: hinos, salmos, partes da liturgia da missa. Na Baixa Idade Média (do século XI ao XV), com a afirmação das línguas românicas, a lírica apresenta dois filões: um, autóctone, genuinamente nacional e popular, relacionado com a vida no campo; na língua galego-portuguesa temos o exemplo das cantigas de amigo. Outro filão é de origem culta, palaciana, surgido no sul da França, na Provença: é a famosa lírica trovadoresca, uma poesia de escola, rebuscada, que exalta a figura da mulher idealizada. A poesia trovadoresca fez muito sucesso, tendo sido imitada por poetas galegos, portugueses, castelhanos, italianos. Só foi destronada pela escola do dolce stil nuovo, surgida na Toscana, no século XIV. Poetas como Guido Guinizelli, Guido Cavalcanti, Dante Alighieri e Francesco Petrarca sentiram a necessidade de quebrar o formalismo da escola provençal, fazendo com que a palavra poética fosse a real expressão do sentimento. O maior lírico da última fase da Idade Média foi Petrarca (1304-1374), o primeiro grande poeta introspectivo de língua neolatina. E fez es-cola: o petrarquismo foi a moda poética que predominou na Europa até o advento do romantismo.

A renascença, o barroco e o arcadismo, que formam o período clássico da cultura moderna, retomam os filões líricos da Baixa Idade Média (trovadorismo, estilonovismo, petrarquismo, bucolismo), acrescentando-lhes a imitação de formas e conteúdos da poesia greco-romana. Entre os poetas líricos de maior destaque, citamos: Lorenzo dei Medici (1449-1492), Ângelo Poliziano (1454-1494), Jacopo Sannazzaro (1453-1530), Torquato Tasso (1554-1595), Garcilaso de la Vega (1503-1536), Luís Vaz de Camões (1524-1580), Dom Luís de Góngora y Argote (1561-1627), Francisco de Quevedo y Villegas (1580-1645), Giambattista Marino (1589-1625), John Donne (1573-1631), Metastásio (1698-1782), Bocage (1765-1805).

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O romantismo provocou uma revolução cultural que atingiu também o gênero lírico. Em nome da liberdade de sentir e de se expressar, os poetas românticos deixaram de lado os cânones estéticos do classicismo para dar larga vazão ao sentimento, cada qual poetizando segundo os impulsos de seu subjetivismo. Os estudiosos distinguem a lírica quietista dos lake’s poets, que se alimentavam de sonhos e ilusões (Novalis, Young, Keats, Wordsworth, Poe, Musset, Vigny, Lamartine, Hugo), dos poetas revolucionários, que tentaram sacudir o modelo burguês da vida (Goethe, Blake, Byron, Baudelaire). O maior poeta lírico do romantismo foi, a nosso ver, o italiano Giacomo Leopardi, que com intensidade e melhor gosto estético soube expressar o vazio existencial provocado pelo sentimento da noia, do tédio, do desgosto face à efemeridade de qualquer tipo de prazer, personificando a insatisfação própria da época romântica.

O simbolismo revigorou o gênero lírico, após a fase do realismo vazio do ponto de vista propriamente poético. Aprofundando a ética romântica, os poetas simbolistas voltaram ao espiritualismo, tentando descobrir uma alma universal, algo misterioso que estabelecesse uma correspondência entre os elementos do mundo humano, animal e vegetal. Para tanto serviram-se da metáfora sinestética, que cria associações entre sensações de campos semânticos diferentes. Os melhores poetas simbolistas foram os franceses Mallarmé, Verlaine, Rimbaud e Valéry, este último considerado o primeiro teórico da poesia modernista.

O modernismo e a contemporaneidade apresentam vários filões líricos, difíceis de serem claramente delineados, pois oscilam entre a lucidez intelectual e o impulso anárquico. Ao lado da poesia figurativista inspirada no cubismo, dos poemas surrealistas, da escritura automática, temos formas e conteúdos poemáticos tradicionais, seguindo as pegadas das estéticas clássica e romântica. Entre os mais expressivos representantes da poesia do nosso século destaca-se Apollinaire (1870-19 18), com seus Calligrammes, que dá o primeiro exemplo de lírica visual: as palavras adquirem sentido por sua forma gráfica e pelo espaço que ocupam na página. T. S. Eliot (1882-1965) é o poeta do fragmentarismo e da polifonia: sua obra mais famosa, The Waste Land (A terra devastada), é um mosaico cultural. Os Cantos, de Ezra Pound (1885-1972), influenciaram muitos poetas contemporâneos pela musicalidade (melopéia), pelo figurativismo (fanopéia) e pelo intelectualismo (logopéia). Ungaretti (1888-1970) é o pai da poesia hermética: inventor do “poema- relâmpago”, utiliza poucas palavras, das quais tenta captar a essencialidade. A lírica contemporânea da língua castelhana apresenta uma galeria de poetas de primeira linha: García Lorca, Antonio Machado, Ramón Jiménez, Jorge Guillén, Gerardo Diego, Dámaso Alonso, Vicente Aleixandre, Rafael Alberti. No Brasil, após a reno-vação cultural provocada pela Semana de Arte Moderna (1922), a poesia lírica apresenta poetas de primeira grandeza: Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Vinicius de Moraes, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar, Mário Faustino. Mas o maior poeta de língua portuguesa é, sem dúvida alguma, Fernando Pessoa (1888-1935), que se tornou imortal pela criação dos heterônimos, personalidades poéticas distintas de si próprio, cada qual expressando uma faceta estética e ideológica de sua poliédrica personalidade: Alberto Caeiro, o poeta da natureza; Ricardo Reis, o poeta da herança clássico-pagã; Álvaro de Campos, o poeta da era da máquina; Fernando Pessoa ortônimo, o poeta do saudosismo português.

O gênero lírico, entendido como expressão do sentimento do eu, apresenta, ao longo dos séculos, várias modalidades formais e diferentes atitudes ideológicas.

HinoDo grego hymnos, que significa “canto”, o hino é uma das primeiras manifestações poéticas do

homem, cujo sentimento de religiosidade o leva a exaltar suas divindades. Segundo W. Kayser (33, II; p. 225), a essência do hino é a apóstrofe lírica: o poeta, emocionado perante os poderes superiores e

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misteriosos da divindade, a ela eleva o seu canto de louvor, de agradecimento ou de súplica. Na Grécia antiga, cada deus importante tinha o seu hino: o pean, que exaltava Apolo; o ditirambo, que glorificava os feitos de Dioniso (Baco). Na religião cristã, a função do hino é exercida pelo cântico, pelo salmo e pela lauda. Vários livros da Bíblia são composições líricas de alto valor poético, além de religioso. Lembramos o Cântico dos cânticos, de Salomão, e os Salmos, do rei Davi. As laudas da Idade Média eram paráfrases de textos do Novo Testamento.

Mas o hino, geralmente poema para canto coral, além do uso litúrgico, passou também a ser utilizado com uma finalidade cívica; exaltava a pátria, os heróis de guerra, os campeões de disputas es-portivas. Daí termos hoje os hinos nacionais, estaduais, municipais e de agremiações. O hino propriamente literário também tem uma longa tradição. Lembramos a coletânea Hinos à noite, do pré-romântico alemão Novalis. O poema com tal designação não tem uma estrutura rígida de estrofes e de versos. O que caracteriza o hino é sua ligação com a música, pois trata-se de poesia composta mais para ser cantada do que para ser lida, e seu aspecto coral: quem canta é uma multidão de gente. Como exemplo de hino religioso, transcrevemos o poema considerado a primeira obra lírica em língua italia-na: Cântico de louvor das criaturas, de São Francisco de Assis (1182-1226), e a tradução de Gondim da Fonseca (133, p. 196):

Cantico

Altissimu, onnipotente bon Signore,tue son le laude, la gloria e l’onoree omni benedictione.A Te solu si confanoe nullo orno é dignu Te mentovare.

Landatu sii, mi Signore, con tutte le tue creature, specialmente miser lu frate solelu quale jorna, e illumina noi per lui;et illu é bellu e radiante cum grande splendore, de Te, Altissimu, porta significazione.

Landatu sii, mi Signore, per sora lune e le stelle.In ciclo le hai formate clarite e preziose e belle.

Landatu sii, mi Signore, per frate ventue per laire, e nubilu, e serenu, e omne tempu, per le quale a le tue creature dai sostentamentu. Landatu sii, mi Signore, per sor’acqua la quale é multa utile, e umile, e pretiosa e casta.

Landatu sii, mi Signore, per frate focu, per lu quale inallumini la nocte, e illu é bellu, e jucundu e robustissimu e forte.

Landatu sii, mi Signore, per sora nostra matre terra, la quale ne sustenta e guverna, e produce diversi fructi, e coloriti fiori, et erba.

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Landatu sii, mi Signore, per quilli che perdonano per lo tu amore, e susteneno infirmitate e tribulatione.

Beati quilli che le sustenerono in pace,ca de Te, Altissimu, serano incoronati.

Landatu sii, mi Signore, per sora nostra morte corporale, dalla quale nulo omu vivente po scampare.Guai a quilli che morranno in le peccata mortali.

Beati quilli che si trovarano in le rue santissime voluntati, ca la morte secunda non li porterá far male.

Laudate e benedicite, mi Signore, e regratiate, e servite a Lui cun grande cumilitate.

Cântico

Altíssimo, onipotente e bom Senhor!Só a ti, só perante o teu altarcabem honras, glória, e bênçãos, e louvor.Ninguém é digno, sequer, de te invocar.

Louvado sejas, ó Criador, e todas as criaturas,— especialmente o Senhor Sol, que é nosso irmão. Ele te simboliza, nas alturas, belo e radiante em seu clarão.

Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Lua,e pelos astros diamantinos.Eles falam de ti, são obra tua,e em linguagem de luz te cantam hinos.

Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Vento, pelas nuvens do céu, pelo ar, pela bruma;e pela água, humilde e casta irmã, precioso elementoque é rio, e mar, e orvalho, e espuma.

Louvado sejas, meu Senhor, por tudo o que fulgura! Pelo irmão Fogo, a quem, por sorte, coube romper, iluminando, a noite escura, belo e jocundo, robustíssimo e forte!

Louvado sejas por nossa irmã, — a Madre Terra, que nos sustenta e nos governa, ó meu Senhor! Tu crias, generoso, o que ela encerra:— a erva, o fruto, a matizada flor.

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Louvado sejas pelos mansos, por aquelesque, pelo teu amor, sofrem, sem queixa, toda a ofensa.Bem-aventurados os pacíficos, pois elesterão a vida eterna em recompensa!

Louvado sejas pela Morte! Ela a todos visita,e é nossa irmã, e ninguém foge aos braços seus.Ai do que morre condenado! Mas, benditaa alma que trilha os teus caminhos, Senhor Deus!

Homem! Exalta e louva o meu Senhor!Serve-o sempre com humildade e com amor!

São Francisco de Assis, filho de um rico comerciante, despojou-se dos bens materiais para viver integralmente o ideal evangélico e fundou a Ordem dos Irmãos Mendicantes, também chamada dos Frades Menores ou dos Franciscanos. Centrada no voto e pobreza, castidade e obediência, a Ordem espalhou-se pelo mundo todo.

Seu Cântico é poesia espontânea, sem acusar nenhuma influência de escola literária. Como se pode facilmente verificar, as estrofes são irregulares, não apresentando o mesmo número de versos; estes, por sua vez, não são homométricos. O nível fônico é constituído de rimas esporádicas, predominando a assonância.

O tema central do poema é a glória de Deus pela criação do mundo. Todos os elementos da natureza são irmanados, porque considerados filhos do mesmo Pai, nosso Senhor-Criador, conforme a ideologia religiosa da Idade Média. Assim, o poeta-santo fala de irmão Sol, irmã Lua, irmão Vento, etc., apontando de cada elemento natural sua característica mais importante, pela qual presta louvor ao seu Criador: o calor do sol, a claridade dos astros, a pureza da água, o vigor do fogo, o sabor dos frutos da terra.

Após a descrição dos elementos cósmicos, o poeta passa à exaltação das atividades dos homens bons. Parafraseando o Sermão da montanha, uma passagem do Novo Testamento, considera felizes e abençoados por Deus os que têm a capacidade de perdoar, de sofrer, de lutar pela paz. Esses não devem temer a morte, pois sua passagem para o outro mundo se dará em estado de graça, sem pecado na alma. A lauda termina com a exortação aos homens para que sempre agradeçam, louvem e sirvam seu Senhor-Criador.

Para exemplificar o hino não mais de caráter religioso, mas patriótico, utilizamos o poema de Guilherme de Almeida que integra um projeto literário inacabado, intitulado Hinário:

Canção do expedicionário

I

Você sabe de onde eu venho? Venho do morro, do engenho, das selvas, dos cafezais,

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da boa terra do coco, da choupana onde um é pouco, dois é bom, três é demais.

Venho das praias sedosas, das montanhas alterosas, do pampa, do seringal, das margens crespas dos rios, dos verdes mares bravios, da minha terra natal.

Estribilho

Por mais terras que eu percorra, não permita Deus que eu morra sem que eu volte para lá; sem que leve por divisa Esse V que simbolizaa Vitória que virá:

Nossa Vitória final,que é a mira do meu fuzil,a ração do meu bornal,a água do meu cantil,as asas do meu ideal,a glória do meu Brasil!

IIEu venho da minha terra, da casa branca da serra e do luar do sertão; venho da minha Maria cujo nome principia na palma da minha mão.

Braços mornos de Moema, lábios de mel de Iracema estendidos para mim!— minha terra querida da Senhora Aparecida e do Senhor do Bonfim!

IIIVocê sabe de onde eu venho? É de uma pátria que eu tenho no bojo do meu violão que de viver em meu peito foi até tomando o jeito de um enorme coração.

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Deixei lá atrás meu terreiro, meu limão, meu limoeiro, meu pé de jacarandá, minha casa pequenina lá no alto da colina onde canta o sabiá.

IVVenho de além desse monte que ainda azula no horizonte, onde o nosso amor nasceu; do rancho que tinha ao lado um coqueiro que, coitado, de saudade já morreu.

Venho do verde mais belo, do mais dourado amarelo, do azul mais cheio de luz, cheio de estrelas prateadas que se ajoelham deslumbradas, fazendo o Sinal da Cruz.

Como comentário, lembramos apenas algumas notícias extratextuais, que ajudam a compreender esse poema. A canção-hino foi escrita por Guilherme de Almeida em 1944, após o início da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial. A finalidade era que o “pracinha” brasileiro, o último e desconhecido integrante dos exércitos aliados, pudesse revelar aos camaradas de outros países a beleza de sua terra de origem. Musicado por Spartaco Rossi, esse hino é uma rapsódia de lendas indígenas e fragmentos de canções populares que exaltam os elementos naturais e os frutos típicos da terra brasileira.

OdeDo grego oidê que, como a palavra hino, também significa “canto”, a ode era um poema

caracterizado pela voz do cantor que se servia de um instrumento de corda (lira ou harpa) para o acompanhamento musical. Originariamente era um canto individual que expressava sentimentos pessoais, especialmente o amor. A ode ligeira, ou sáfica, constituída de três versos longos homométricos, seguidos de um quarto mais curto, foi cultivada pelos melhores poetas líricos da Grécia antiga, como Alceu, Safo e Anacreonte.

Paralelamente à ode monódica, surgiu também a forma coral da ode, de assunto mais solene, exaltando a religião, a pátria, os heróis de guerra ou de atividades esportivas. A ode, portanto, passou a exercer uma função quase igual à do hino. Estesícoro, poeta do século VI a.C., inventou a forma triádica, que se tornou modelar: a estrofe, a antístrofe e o epodo (canto posterior, final ou sintético). E que, naquela altura, a atividade poética ainda não estava separada da arte dramática: enquanto uma parte do coro cantava a estrofe dançando de um lado da orquestra, outro semicoro respondia com a antístrofe do lado oposto; em seguida, os dois semicoros juntavam-se no meio do proscênio para cantar o epodo. Esse tipo de ode foi chamado de triunfal ou pindárica.

Horácio, o poeta mais completo de todos os tempos na literatura latina, encontrou na ode sáfica

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o meio mais apropriado para expressar o melhor de sua poesia. Nos Cármia (Cantos), uma coletânea de 103 poemas agrupados em quatro livros, além de exaltar a grandeza de Roma sob o principado de Otávio César Augusto, exprime sua concepção ética guiada pela filosofia do bom senso. Algumas de suas expressões poéticas tornaram-se provérbios: “Est modus in rebus” (a justa medida na procura do prazer, da riqueza e da ambição); “Carpe diem” (o aproveitamento do momento presente, pois o futuro é incerto); “Ni quid nimis” (a necessidade de evitar qualquer excesso); “Non omnis moriar” (o valor eterno da produção artística).

Após o parêntese da Idade Média, durante a qual a cultura greco-romana foi posta de lado, a ode volta a ser cultivada pelos melhores poetas da Era Moderna, da renascença para cá. Quanto à forma, podemos apontar três tipos de ode: pindárica, que conserva a estrutura originária de três estrofes, sendo as primeiras duas (estrofe e antístrofe) iguais, e a terceira (epodo), diferente; a horaciana, composta de estrofes iguais; e a ode livre, que permite um número variável e irregular de estrofes. Quanto ao conteúdo, como já vimos, a ode pode tratar de assuntos elevados (heróica ou pindárica) ou de assuntos leves (sáfica, amorosa, anacreôntica, pastoril). Atualmente, a ode libertou-se de todo constrangimento formal, aceitando inclusive o verso-livrismo. O que leva a distinguir a ode de outras formas poemáticas é o tom grave, conferido pela linguagem eloqüente:

O deus Pã não morreu,Cada campo que mostraAos sorrisos de ApoloOs peitos nus de Ceres —Cedo ou tarde vereisPor lá aparecerO deus Pã, o imortal.

Não matou outros deusesO triste deus cristão.Cristo é um deus a mais,Talvez um que faltava.Pã continua a darOs sons da sua flautaAos ouvidos de CeresRecumbente nos campos.

Os deuses são os mesmos,Sempre claros e calmos,Cheios de eternidadeE desprezo por nós,Trazendo o dia e a noiteE as colheitas douradasSem ser para nos darO dia e a noite e o trigoMas por outro e divinoPropósito casual.

Essa ode é de autoria de Fernando Pessoa, escrita sob o heterônimo de Ricardo Reis, sua faceta poética que exalta a cultura greco-romana. Para entendermos o poema é necessário primeiro conhecer o mito sobre as três divindades pagãs a que o texto se refere. Pã é o deus dos pastores e dos rebanhos,

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personificando a fecundidade e a potência sexual; sua representação é de um ser com torso humano, mas com a cabeça e os pés de bode, adornado com um ramo de pinho, um bastão de pastor e uma siringe, flauta agreste feita de um feixe de caniços. Apolo, o deus Sol, gerador da luz cósmica e espiritual, o que desvenda os mistérios, protetor das artes, é representado como um jovem belo e imberbe, nu ou coberto pela túnica da sabedoria. Ceres, divindade latina correspondente à Deméter grega, é a deusa da terra, da germinação e das colheitas (dela deriva a palavra cereal).

A primeira estrofe apresenta as três divindades em suas funções principais: o deus Pã que percorre os campos (“os peitos nus de Ceres”) banhados pela luz e o calor do sol (“o sorriso de Apolo”). O primeiro verso contém o tema central da ode: a impossibilidade da destruição dos mitos divinos. As histórias fantásticas sobre divindades, uma vez inventadas pela imaginação popular, ficam incorporadas ao cabedal cultural do povo, tornando-se, assim, imortais. Quanto à linguagem poética, além das belíssimas metáforas do sol comparado ao sorriso de Apolo e da terra vista como a deusa mulher deitada nua para receber os raios quentes do sol, note-se também a figura de estilo do anacoluto, a abrupta mudança da construção sintática: o sujeito cada campo, seguido por uma oração adjetiva, fica sem o verbo esperado, aparecendo no quinto verso vereis, que acaba mudando a função sintática inicial de cada campo, pois este passa a exercer a função de adjunto adverbial de lugar, ligando-se a por lá aparecer do sexto verso. A interrupção do discurso, graficamente indicada pelo travessão, denota o desvio do caminho sintático no decorrer da exposição do pensamento.

Na segunda estrofe, o poeta esclarece a idéia central colocada na primeira: o advento do cristianismo não determinou o fim do politeísmo pagão. Cristo é apenas um deus a mais. Veio para acrescentar, e não substituir ou destruir. É o deus que faltava, o deus triste, que morreu na cruz para redimir a humanidade de seus pecados. A concepção antropomórfica do panteão greco-romano, segundo a qual as divindades eram criadas pelos homens a sua imagem e semelhança, espelhando seus vícios e suas virtudes, é substituída por uma religião espiritual e monoteísta, não mais inventada pelos homens, mas revelada de cima para baixo. Mas, no entender do eu poemático, a vinda de Cristo não destruiu as imagens criadas pelo politeísmo pagão, porque ele é considerado igual aos outros deuses, nem melhor, nem pior. O deus Pã continua tocando sua flauta para alegrar a terra, porque sua configuração mitopoética é parte integrante de nossa civilização.

A última estrofe explicita a concepção de divindade do eu poemático: não existe diferença entre um deus e outro; todos são eternos e imperturbáveis, pouco se importando com o destino da humanidade. Se o sol ilumina o dia e a terra produz seus frutos, isso acontece não pela vontade divina de ajudar os homens, mas por outro motivo, misterioso. Fernando Pessoa, pela personalidade poética de Ricardo Reis, revela a aceitação da doutrina do ceticismo, ensinada pelos filósofos gregos Pirron, Carnéades, Enesidemo e Sexto Empírico: ao homem não é dado conhecer os mistérios do universo; qualquer teoria sobre a constituição do mundo ou a natureza da alma humana é sempre duvidosa e provisória. A religião é um problema de crença, de fé, não de filosofia ou de ciência. Portanto, a atitude mais sábia é a indiferença, que, no plano ético, leva à ataraxia, o estado de espírito que encontra o prazer na ausência de preocupações.

ElegiaA palavra elegia foi usada por poetas gregos (Calmos, Arquíloco, Simônides) e latinos (Tibulo,

Propércio, Ovídio) para indicar um canto triste, na maioria das vezes um lamento pela morte de um ente querido. Quanto ao étimo, o termo é de origem duvidosa. Segundo Massaud Moisés (41, p. 167), a palavra derivaria do armênio elegn, que significa “bambu”. A razão dessa origem etimológica estaria no fato de que, antigamente, os cantos fúnebres, de dor ou de tristeza, eram acompanhados pela flauta de bambu, instrumento pastoril de sopro, diferentemente das modalidades poéticas acompanhadas por instrumentos de cordas (lira ou harpa), de tom musical mais alegre.

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A forma estrófica preferida era o dístico, composto de um hexâmetro e de um pentâmetro. Quanto à temática, como vimos, trata-se de um canto grave, de cunho gnômico ou didático, pois tem a finalidade de estimular a reflexão sobre os sentimentos mais profundos do ser humano: a pátria, a guerra, a morte, a dor, o amor, a amizade.

A partir da renascença, a elegia, em diferentes estruturas formais, foi um dos meios mais utilizados pelos grandes poetas da literatura ocidental: Garcilaso, Tasso, Camões, Milton, Leopardi, Hugo, García Lorca, Rilke, Cecília Meireles e tantos outros. Vejamos uma elegia da poetisa paulista.

Lamento da noiva do soldado

Como posso ficar nesta casa perdida, neste mundo da noite, sem ti?

Ontem falava a tua boca à minha boca... E agora que farei, sem saber mais de ti!

Pensavam que eu vivesse por meu corpo e minha alma!Todos os olhos são de cegos... Eu vivia unicamente de ti!

Teus olhos, que me viram, como podem ser fechados?Aonde foste, que não me chamas, não me pedes, como serei agora, sem ti?

Cai neve nos teus pés, no teu peito, no teu coração... Longe e solitário... Neve, neve... E eu fervo em lágrimas, aqui!

Esse canto é composto de cinco estrofes, cada qual de três versos. O nível fônico é caracterizado pela repetição das expressões sem ti (primeira e quarta estrofes) e de ti (segunda e terceira), que rimam com aqui (quinta). Notamos que o terceiro verso de cada estrofe, mais curto, funciona quase como estribilho, acusando um retorno sonoro a cada fim de estrofe. Tal repetição fônica sugere a repetição semântica dada pelas variações sobre o mesmo tema do sofrimento pela ausência do ente querido, motivo que perpassa o poema de ponta a ponta.

Já o título apresenta as duas personagens que atuam no plano da enunciação e no plano do enunciado, a noiva e o soldado, além do tema central, o lamento. Ao nível do discurso, o eu narrador é a noiva que se dirige ao tu, o soldado, que está ausente. Ao nível da fábula, as mesmas personagens exercem outras funções: a noiva atua como sujeito que sofre pela ausência do objeto de seu desejo. Esse objeto-valor é o soldado que partiu para um lugar desconhecido e perigoso. Tal disjunção entre sujeito e objeto cria um vácuo existencial no espírito da personagem-narrador, expresso através de várias imagens poéticas.

A primeira estrofe abre o poema com uma interrogação retórica sobre a possibilidade de se viver sem amor. A ausência do ente querido reveste de elementos disfóricos a realidade existencial: a casa é perdida, o mundo é da noite. Os semas da perdição e da escuridão envolvem a alma do eu

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poemático.

Na segunda estrofe é estabelecido o paralelo contrastivo entre o ontem da felicidade e o hoje da tristeza. O falar boca a boca revela que a comunicação entre a jovem e seu noivo se dava por meio do contato físico. Com a partida do amado isso se torna impossível, e a jovem entra num estado de desconcerto, insegurança, desvario.

O sentimento de amor profundo que liga de uma forma inseparável dois corpos e duas almas não é compreendido pela opinião comum, a dóxa, que é cega, pois não enxerga além das aparências. A terceira estrofe sugere que o amor verdadeiro é paradoxal, vai além do chamado bom senso. A afirmação de que o eu poemático vive unicamente em função do amado é uma tradução psicológica do mito grego do andrógino, da época fabulosa em que o elemento masculino e o feminino coexistiam no mesmo ser.

Na quarta estrofe aparece outra interrogação retórica: os olhos que viram o amor não podem morrer. A relação amor-morte, Eros e Tánatos, topos da lírica occitânica, está presente na última estrofe através das imagens contrastantes da neve que cobre o corpo inerte do soldado e o fogo do amor (eu fervo) que queima o corpo da noiva. A oposição semântica é conferida também pelo nível espacial: o longe, lugar do frio, da solidão e da morte, e o aqui, espaço da enunciação, da vida, do amor. Essa lírica de Cecília Meireles é o melhor manifesto contra a estupidez da guerra!

CançãoNo sentido genérico, a palavra portuguesa canção, correspondente à francesa chanson e à

italiana canzone, as três derivadas do termo latino cantionem, indica toda poesia relacionada com a música e o canto. Em primeiro lugar, é preciso distinguir a canção popular da canção erudita. Aquela é de origem autóctone de cada país, esta é produto de uma escola literária. Em segundo lugar, é preciso considerar que a canção se torna objeto de arte literária quando a letra do poema se desvincula da pauta musical e a poesia deixa de ser cantada para ser lida.

As origens da canção erudita estão intimamente ligadas ao florescer da lírica trovadoresca, movimento estético que surgiu no sul da França, na Provença, em meados do século XI, e se difundiu pela Europa, tendo subsistido até o início do renascimento. Nas cortes medievais, nos castelos e nos palácios, os trovadores, acompanhados de alaúde ou viola, exaltavam a beleza da mulher amada e professavam-lhe sua devoção, seguindo um rígido código de cortesia. Tais produções lírico-amorosas, chamadas de chanson ou cansó provençal, passaram a ser escritas na langue d’oc, o idioma do sul da França na época medieval, sendo traduzidas e recriadas pelos poetas da península Ibérica e Italiana. Dante e Petrarca, nos moldes da poesia trovadoresca, aperfeiçoaram a forma poemática da canzone, que foi largamente imitada pelos poetas da renascença européia. Em língua vernácula, Luís Vaz de Camões, o maior poeta lírico do período renascentista, escreveu belíssimas canções, seguindo o modelo artístico elaborado por Francesco Petrarca. E não só ele: Fernando Pessoa, Pablo Neruda, Cecília Meireles e tantos outros poetas maiores encontraram na forma poemática da canção um meio eficaz para expressarem seus sentimentos.

Quanto à forma canônica da canção, ela é constituída de um número variável de estrofes ou estâncias, cada qual com um número de versos oscilante entre sete e vinte. O que caracteriza a canção é o fecho do poema que termina com uma estância menor, em que se encontra o resumo do conteúdo poemático, ou a dedicatória à mulher amada. Quanto à temática, o motivo predominante é o amor idealmente sentido, mas há também canções com assuntos diferentes: sentimento patriótico, preceitos morais, sátira social, humorismo.

Uma variante da canção é a cançoneta, tradução do italiano canzonetta, diminutivo de canzone. A cançoneta literária é exatamente a metade da canzone italiana: esta é composta de estrofes de oito

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versos; aquela, de quadras. De tom mais alegre, a cançoneta é uma composição poética ultimamente feita mais para o canto no palco, com acompanhamento de piano ou orquestra. Integra representações de teatro de variedades, tais como o vaudeville francês e o music-hall norte-americano.

Um exemplo de canção popular em que a letra poética está intrinsecamente relacionada com a composição musical é encontrado na obra do poeta-músico Chico Buarque de Holanda:

Apesar de você

Hoje você é quem manda

Falou, tá falado

Não tem discussão; não

A minha gente hoje anda

Falando de lado

E olhando pro chão, viu

Você que inventou esse estado

E inventou de inventar

Toda a escuridão

Você que inventou o pecado

Esqueceu-se de inventar

O perdão

Apesar de você

Amanhã há de ser

Outro dia

Eu pergunto a você

Onde vai se esconder

Da enorme euforia

Como vai proibir

Quando o galo insistir

Em cantar

água nova brotando

E a gente se amando

Sem parar

Quando chegar o momento

Esse meu sofrimento

Vou cobrar com juros, juro

Todo esse amor reprimido

Esse grito contido

Este samba no escuro

Você que inventou a tristeza

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Ora, tenha a fineza

De desinventar

Você vai pagar e é dobrado

Cada lágrima rolada

Nesse meu penar

Apesar de você

Amanhã há de ser

Outro dia

Inda pago pra ver

O jardim florescer

Qual você não queria

Você vai se amargar

Vendo o dia raiar

Sem lhe pedir licença

E eu vou morrer de rir

Que esse dia há de vir

Antes do que você pensa

Apesar de você

Amanhã há de ser

Outro dia

Você vai ter que ver

A manhã renascer

E esbanjar poesia

Como vai se explicar

Quando o céu clarear

De repente, impunemente

Como vai abafar

Nosso coro a cantar

Na sua frente

Apesar de você

Amanhã há de ser

Outro dia

Você vai se dar mal

Etc, e tal.

Escrita em 1970, na época da ditadura militar no Brasil, essa canção é um violento protesto contra o regime opressivo e repressivo, que impedia a livre expressão do pensamento. Depois que a barreira político-ideológica foi levantada, a poesia-música de Chico Buarque de Holanda recebeu a merecida consagração nacional.

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Nessa canção-poema a divisão em estrofes é determinada pela repetição dos três versos que compõem o refrão:

Apesar de vocêAmanhã há de serOutro dia

Podemos distinguir dois momentos ideológicos centrados sobre os advérbios de tempo hoje, da primeira estrofe, e amanhã, das estrofes seguintes. Na primeira parte adquire destaque a primeira palavra da canção, o hoje, que tem como referente extratextual a época da ditadura militar. Um conjunto de semas disfóricos caracteriza esse tempo: a prepotência do senhor todo-poderoso (falou, tá falado), a submissão do povo impotente perante a força das armas (olhando pro chão), o atraso cultural (a escuridão), o sentimento de culpa provocado pelo medo (o pecado).

No segundo momento ideológico, o sentimento de tristeza pelo momento presente é superado pela esperança de um futuro de liberdade. Ao hoje da opressão deve suceder um amanhã de libertação, quando o galo não será proibido de cantar, a água de brotar, a gente de se amar. A força da natureza cósmica e humana não pode ser violentada por muito tempo. Apesar da opressão militar, o jardim vai florescer, o dia vai raiar, o céu clarear, a poesia emitir o seu canto.

A lírica de Chico Buarque de Holanda, por sua musicalidade e pela linguagem popular, não visa atingir o círculo restrito dos intelectuais, mas tem como destinatário a grande massa do povo. As imagens poéticas de que ele se utiliza são criadas a partir da experiência da vida cotidiana: o raiar do sol, a água que corre, o galo que canta. Portanto, sua compreensão não requer uma bagagem cultural. Com ele, a poesia lírica volta às origens na Grécia antiga, quando o sentido estético era indissociável da utilidade prática: a função da arte é expressar idéias e sentimentos que ocupam o coração dos homens em certos momentos de sua história.

Para exemplificar a canção literária, selecionamos um poema de Manuel Bandeira, no qual os elementos fônicos e semânticos estão intimamente relacionados:

Bacanal

Quero beber! cantar asneirasNo esto brutal das bebedeirasQue tudo emborca e faz em caco...

Evoé Baco!

Lá se me parte a alma levada No torvelim da mascarada, A gargalhar em doudo assomo...

Evoé Momo!

Lacem-na toda, multicores, As serpentinas dos amores, Cobras de lívidos venenos...

Evoé Vênus!

Se perguntarem: Que mais queres, Além de versos e mulheres?...—Vinhos!.., o vinho que é o meu fraco!...

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Evoé Baco!

O alfanje rútilo da lua,Por decolar a nuca nuaQue me alucina e que eu não domo!

Evoé Momo!

A Lira etérea, a grande Lira!...Por que eu estático desfiraEm seu louvor versos obscenos.

Evoé Vênus!

(...) p. 79-86

CantigaDa mesma origem etimológica de canção e cantar, o termo cantiga designa as primeiras

manifestações poéticas em galaico-português, ainda do tempo em que a poesia não era separada da música, do canto e da dança. A melopéia está presente não apenas na musicalidade das três estrofes (cobras), constituídas de quatro ou sete versos (palavras), mas especialmente na forma paralelística e no estribilho, sinais da antiga função dramática da cantiga. São chamadas paralelísticas as cantigas que têm a mesma estrutura fônica, lexical, sintática e semântica. Nas três estrofes, o mesmo sentimento se repete ao longo do poema, pelo uso das mesmas palavras ou seus sinônimos, distribuídas numa mesma estrutura sintática e apresentando, pela rima, o mesmo chamamento fônico. Por sua monotonia, algumas cantigas se aproximam da cantilena, um canto suave caracterizado pela repetição de palavras. O estribilho ou refrão é dado pela repetição do mesmo verso no fim de cada estrofe. Geralmente, o sujeito da enunciação do refrão é diferente do cantador das estrofes: isso cria uma “tenção” que atesta a forma dialógica e o conseqüente aspecto dramático da cantiga. Entre os vários tipos de cantiga, os três mais cultivados na Idade Média portuguesa foram a cantiga de amigo, a cantiga de amor e a cantiga de escárnio.

Cantiga de amigoCanto lírico mais genuíno da região da Galícia e de Portugal, a cantiga de amigo é anterior a

qualquer influência estrangeira. O eu poemático, o sujeito da enunciação, é uma moça que exprime sua coita (dor, aflição), a mágoa pela ausência ou pela indiferença de seu amado. Tal queixa amorosa é dirigida à mãe, a uma irmã ou a uma amiga com quem o eu poemático estabelece a tenção, um diálogo acalorado. O ambiente onde se dá tal confissão amorosa é o campo ou outro espaço da natureza, distinguindo-se, assim, a pastorela (a moça que fala é uma pastora), a barcarola (a moça dirige-se às ondas do mar ou às águas do rio), a serranilha (diálogo entre um fidalgo e uma camponesa), a alva, alba ou alvorada (ao raiar do sol a moça lamenta a ausência do namorado ou regozija-se pela noite de amor), a bailada (cantiga coral e festiva, predominando o elemento da dança) e a cantiga de romaria (o cenário é um santuário, onde a moça se encontra com o namorado ou reza para que ele volte). A este último tipo pertence a cantiga do jogral galego Martim de Guinzo, apresentada no texto original e na transcrição em português moderno feita por Natália Correia (129, p. 151):

Cantiga d’amigo

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Non poss’eu, madre, ir a Santa Ceciliaca me guardades a noit’e o dia

do meu amigo.

Non poss’eu, madr’, aver gasalhado,ca me non leixades fazer mandado

do meu amigo.

Ca me guardades a noit’e o dia; morrer-vos ei com aquesta perfia

por meu amigo.

Ca me non leixades fazer mandado; morrer-vos ei con aqueste cuidado

por meu amigo.

Morrer-vos ei con aquesta perfia, e, se me leixassedes ir, guarria

con meu amigo.

Morrer-vos ei con aqueste cuidado, e, se quiserdes, irei mui de grado

con meu amigo.

Cantiga de amigo (de romaria)

Não posso, mãe, ir a Santa Cecília, porque me guardais de noite e de dia

do meu amigo.

Sempre desolada me havereis de ver, enquanto a vontade não puder fazer

do meu amigo.

Se não me guardásseis de noite e de dia, com este cuidado eu não morreria

por meu amigo.

Se a sua vontade não puder fazer, com este cuidado me vereis morrer

por meu amigo.

Com este cuidado eu não morreria, pois, se me deixásseis, bem me salvaria

com meu amigo.

Com este cuidado me vereis morrer; mas se me deixardes, feliz hei-de ser

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com meu amigo.

O poema é composto de seis estrofes, cada qual de um dístico e mais o refrão. A estrutura paralelística atinge o nível fônico, sintático e semântico. Os dois versos decassílabos têm rima contígua na mesma estrofe, mas alternada entre as cobras, de forma que a rima do primeiro dístico se repete no terceiro e no quinto e a rima do segundo aparece no quarto e no sexto. Formam-se, assim, dois campos sonoros distintos, um que abrange as estrofes ímpares e outro referente aos dísticos pares. O som comum a todas as estrofes é dado pelo estribilho “do meu amigo”, elemento que atesta o caráter coral e dramático da cantiga de amigo: enquanto a voz de uma jovem, interpelando outra personagem que representava a mãe (madre), cantava os versos, os ouvintes, em coro, recitavam o refrão.

O paralelismo sintático é visível pela repetição das estruturas lingüísticas “Non poss’eu, madre”, “Ca me guardades”, “Morrer-vos ei". O mesmo acontece ao nível semântico: uma idéia básica repete-se ao longo das seis estrofes. É a coita, o sofrimento da moça por sentir-se impedida de exercer o direito ao amor carnal. Aqui, a tenção, a luta entre a filha e a mãe, põe em confronto os dois códigos fundamentais da vida humana, o natural e o social. A jovem, personificando a força do instinto, quer a satisfação de seu desejo amoroso, insistindo para encontrar-se com o namorado (amigo); a mãe, re-presentante dos valores morais, impede tal encontro, porque a relação sexual só era permitida após o casamento.

Enfim, a cantiga é chamada de romaria porque o encontro dos dois amantes se daria no santuário de Santa Cecília. É de se notar ainda que o problema do relacionamento sexual é colocado de uma forma trágica, mais do que dramática: a jovem sente que morrerá se não conseguir satisfazer seu desejo amoroso. O binômio alternativo amor ou morte é próprio das épocas primitivas, de paixões violentas, quando predomina o individualismo exacerbado e ainda não se chegou ao estágio da racionalização dos sentimentos. A Idade Média é uma dessas épocas. O conteúdo semântico dessa cantiga de amigo encontra um paralelo no episódio da Tentação de Galaaz, no contexto da novela de cavalaria A demanda do Santo Graal: uma jovem de apenas quinze anos suicida-se, trespassando seu peito com a espada do herói que, por ter feito o voto de castidade, não quis fazer amor com ela.

Cantiga de amorCantiga de amor é a poesia lírica em português arcaico que sofreu as influências da escola

provençal. Aqui, o trovador já não fala em nome da amada, como na cantiga de amigo, mas em seu próprio nome, assumindo o papel do eu poemático que confessa sua paixão não-correspondida, pois sua amada é uma senhora casada e pertence à aristocracia feudal. O costume da vassalagem, próprio do sistema feudal de vida que existiu na Idade Média, encontra-se espelhado no convencionalismo da lírica trovadoresca: o menestrel presta seu serviço à dama (enaltece-lhe as virtudes), sendo obrigado à mesura (o autodomínio das emoções) e ao segredo (a discrição sobre a identidade da senhora), merecendo assim o merci (a compaixão da dama que, mesmo não podendo corresponder ao seu amor, lhe será benévola).

A poesia trovadoresca, como se vê, introduz um novo conceito de amor, revolucionário e contraditório: de um lado, trata-se de um amor idealizado, apenas espiritual, pois não há esperança de posse do objeto amado tido como inatingível; de outro lado, o desejo amoroso é adúltero, pois a mulher cantada é uma senhora casada. Na tentativa de explicar as origens dessa surpreendente concepção amorosa várias teses foram apresentadas: a tese retórica das influências da lírica latina (Catulo, Tibulo, Propércio, Ovídio) nos cléricos provençais; a tese do conceito platônico do amor como idéia, introduzido no sul da França pelas traduções árabes dos filósofos gregos; a tese folclórica das festas da primavera que erotizavam o amor; a tese litúrgica do culto a Maria, Nossa Senhora: o trovador prosterna-se perante a amada como o cristão adora a Virgem; a tese cátara da sublimação do instinto

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sexual, pois tudo o que é material provém do princípio do mal.

Todas essas teorias, consideradas separadamente, são falhas, porque cada qual, embora apresente alguma verdade, por si só não consegue explicar o complexo fenômeno da concepção trovadoresca do amor. Recentemente, veio a público uma tese mais sugestiva, elaborada por Natália Correia, na Introdução à edição dos Cantares dos trovadores galego-portugueses (129): recorrendo ao mito do andrógino e à psicologia do subconsciente, ela vê no amor trovadoresco a exaltação da mulher como o elemento estável da natureza, a que o homem recorre toda vez que sua individualidade está ameaçada pelas forças castradoras do patriarcalismo machista. O amor que o trovador sente pela senhora, figura feminina altamente idealizante, o faz sofrer porque o coloca numa situação dilemática: de um lado, ele não pode viver sem ela, sendo a razão de sua segurança existencial, a outra metade de seu ser; de outro lado, ele vive um sonho impossível: a figura do marido, personificação do poder social inibidor, o impede de aproximar-se da amada. Vejamos um exemplo dessa modalidade lírica no poema de D. Dinis (1261-1325), rei de Portugal e um dos mais importantes poetas líricos da península Ibérica.

Cantiga d’amor de meestria

Proençais soen mui ben trobar e dizen eles que é con amor, mays os que troban no tempo da flor e non en outro sey eu ben que non am tam gran coyta no seu coraçon qual m’eu por mha senhor vejo levar.

Pero que troban e saben loar sas senhores o mays e o melhor que eles podem, sõo sabedor que os que troban, quand’a frol sazon á e non ante, se Deus mi perdon, non an tal coyta qual eu sey sen par.

Ca os que troban e que ss’alegrar van eno tempo que ten a color a frol consigu’e, tanto que se fôr aquel tempo, logu’en trobar razon non an, non viven (en) qual perdiçon oj’eu vyvo, que poys m’á de matar.

Cantiga de amor de mestria

Os provençais que bem sabem trovar! e dizem eles que trovam com amor, mas os que cantam na estação da flor e nunca antes, jamais no coração semelhante tristeza sentirão qual por minha senhora ando a levar.

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Muito bem trovam! Que bem sabem louvar as suas bem-amadas! Com que ardoros povençais lhes tecem um louvor! Mas os que trovam durante a estação da flor e nunca antes, sei que nãoconhecem dor que à minha se compare.

Os que trovam e alegres vejo estar quando na flor está derramada a cor e que depois quando a estação se for, de trovar não mais se lembrarão, esses, sei eu que nunca morrerão de desventura que vejo a mim matar.

Essa cantiga é chamada de mestria porque não tem refrão, é artisticamente mais bem elaborada, fugindo aos esquemas da lírica popular.

Quanto à estrutura, o poema é composto de três estrofes, cada qual de oito versos decassílabos, com o esquema rítmico abbcca, que se repete em todas as cobras, estabelecendo assim um chamamento fônico entre os versos externos (primeiro e último) e internos (segundo e terceiro, quarto e quinto) das três estrofes. A tal entrelaçamento sonoro corresponde uma interação semântica, pois as três cobras giram em torno da mesma idéia básica: o amor que o eu poemático sente pela mulher amada é muito mais sincero e duradouro que o amor cantado pelos trovadores da Provença.

Se, de um lado, o rei-trovador admite a inegável influência da poesia trovadoresca do sul da França sobre a lírica peninsular, de outro lado faz questão de ressaltar que sua poesia, fugindo do con-vencionalismo de escola, é mais autêntica, exprimindo realmente o que se passa no coração do poeta. Assim, na primeira estrofe, revela que os trovadores provençais, por cantarem apenas durante a primavera, não podem sentir a coita, a dor amorosa que ele sente por sua senhora durante o ano todo. Dá a entender, então, que os provençais são versejadores profissionais, que não sentem o que cantam. Tal momento ideológico, com pequenas variantes, encontra-se repetido nas duas estrofes seguintes.

É interessante notar que, nos dois versos finais, o eu poemático afirma que a intensidade do sofrimento de amor pode levá-lo à morte. A relação amor-morte, como já vimos, é uma constante na lí-rica occitânica. Na cantiga de amigo que analisamos, de caráter realístico, era a falta do amor carnal que poderia causar a morte da jovem apaixonada; aqui, na cantiga de amor, de caráter idealizante, é apenas a ausência, a não-visão do rosto da mulher amada, que pode causar a morte do trovador. A mulher, portanto, é quase divinizada: sua figura irradia a luz que dá a vida. A cantiga de amor contém em germe uma concepção de vida medieval que encontrará em Dante Alighieri a melhor expressão estética: especialmente no cântico do Paraíso de sua Divina comédia, as almas são tanto mais felizes quanto mais estão perto da luz celestial.

Cantiga de escárnioEm painéis satíricos e humorísticos do cotidiano, a cantiga de escárnio critica a vaidade

feminina, a rivalidade entre trovadores, a imitação da moda poética estrangeira, a pretensão de ascender na hierarquia social, a burrice, a feiúra e outros defeitos e vícios humanos. Quando o sarcasmo ultrapassa o plano da generalidade e ataca diretamente as pessoas, estamos perante a chamada cantiga de maldizer. Semelhante a esse tipo de cantiga é o serventês, de origem provençal, o canto do servo para defender seu senhor e atacar seus inimigos.

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Vejamos, por exemplo, um poema de D. Pedro, filho bastardo de D. Dinis, chamado de Conde de Portugal ou Conde de Barcelos.

Cantiga d’escarneo

Natura das animalhas que son dua semelhança é de fazerem criança, mais des que son fodimalhas. Vej’ora estranho talho qual nunca cuidei que visse:que emprenhass’ e parisse a camela do bodalho.

As que son dua natura juntan-s’ a certas sazões e fazen sas criações; mais vejo já criatura ond’eu non cuidei veê-la; e poren me maravilho de bodalho fazer filho, per natura, na camela.

As que son, per natureza, corpos dua parecença juntan-s’ e fazem nacença, —esto é sa dereiteza:mais non coidei en mia vida que camela se juntasse con bodalh’ (e) emprenhasse (e) demais seer d’el parida.

Cantiga de escárnio

É próprio dos animais que da mesma espécie são fazer filhos; para a função têm órgãos naturais. Mas vejo eu um caso raro o qual não cuidei que visse:que emprenhasse e que parisse a camela do bodalho.

Os de idêntica naturajuntam-se em certos momentos para engendrar seus rebentos;mas eis que uma criatura

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vejo onde não cuidei vê-la e com tal me maravilho:Bodalho fazer um filho naturalmente a camela.

Esses a que a natureza deu igual conformação unem-se e nessa uniãofazem filhos com justeza.Mas não vi em minha vida camela que se juntassecom bodalho, engravidasse e dele fosse parida.

Para entendermos o sentido dessa cantiga é indispensável recorrer ao extratexto. Pelas rubricas que acompanham o manuscrito, ficamos sabendo que D. Pedro quis satirizar a relação amorosa de uma freira, Mor Martins, de sobrenome Camela, com um rabino de Braga, cujo apelido era Bodalho (porco). O amor estranho e ilícito entre um sacerdote do culto judaico e uma monja cristã levou o au tor a brincar com os sobrenomes animalescos dos dois: o porco, símbolo da sujeira, junta-se à fêmea do camelo, símbolo da idiotice. A idéia central da cantiga, que se repete nas três oitavas, é a estranheza do fato de que, da união antinatural do bodalho com a camela, pertencentes a espécies diferentes, pudessem nascer crias. A sujeira e a idiotice proliferam, contradizendo as leis naturais.

SonetoDa palavra italiana sonetto, diminutivo de suono (“som”, “música , “canção”), o soneto é outra

forma poemática de origem popular e medieval, que não está ligada à lírica greco-romana. A primeira forma de soneto está relacionada com a escola siciliana, que teve seu momento de glória em meados do século XLII. A partir de cantos de camponeses durante os bailados, foram compostos poemas de quatro estrofes, dois quartetos e dois tercetos, com rimas que ligavam diferentemente os versos das quadras e os versos dos tercetos. A seguir, a escola toscana do dolce stilo nuovo utilizou abundantemente essa forma poemática, especialmente Francesco Petrarca (1304-1374), considerado o pai do soneto, pela qualidade e quantidade de seus imitadores.

O soneto regular ou petrarquiano é composto de duas quadras e dois tercetos, geralmente de versos decassílabos e com o esquema rímico abba/abba/cde/cde. As duas quadras, portanto, formam um campo fônico homogêneo pelo chamamento entre si dos versos externos e dos versos internos. Já a sonoridade dos tercetos provém de uma diferente combinação de rimas. A essa diferença fônica cor-responde também uma diferença semântica: nas duas quadras coloca-se o tema e nos tercetos dá-se a conclusão, que geralmente culmina no último verso com a famosa “chave de ouro”.

Como se vê, a forma poemática do soneto tem algo em comum com o silogismo, modo cerrado de raciocínio muito cultivado pelos filósofos da Baixa Idade Média: a uma premissa ou tese sucede uma oposição de pensamento ou antítese, terminando com a síntese, a proposta de resolução do problema.

Tal estrutura rígida do soneto, que obriga o poeta a condensar em poucos versos a expressão de um sentimento, explica talvez a preferência que têm por essa forma poemática os poetas lúcidos, aqueles que entendem que a poesia é a arte das palavras conscientemente organizadas para produzir sentidos surpreendentes. Dante Alighieri, Francesco Petrarca, Luís Vaz de Camões, Luís de Góngora y

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Argote, Antero de Quental, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes e tantos outros encontram no soneto o meio de exprimirem, de uma forma rápida e sucinta, a profundidade de suas idéias e de seus sentimentos sobre o homem e a vida.

Apenas a título de nota, lembramos que, além do soneto de estrutura regular que vimos acima, existem formas irregulares de sonetos que alteram os esquemas estrófico, métrico, rímico e rítmico. Assim, temos o soneto invertido, em que as quadras vêm depois dos tercetos; o caudado, que acrescenta alguns versos depois do último terceto; o inglês ou shakespeariano, composto de três quadras e um dístico final; o anacreôntico, com versos de cinco e sete sílabas; o doppio (duplo), uma composição de dezenove versos, intercalandose decassílabos com versos de sete sílabas.

Como exemplo da forma regular do soneto, transcrevemos e analisamos um poema de Vinicius de Moraes:

Soneto da fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atentoAntes, e com tal zelo, e sempre, e tantoQue mesmo em face do maior encantoDele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momentoE em seu louvor hei de espalhar meu cantoE rir meu riso e derramar meu prantoAo seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procureQuem sabe a morte, angústia de quem viveQuem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):Que não seja imortal, posto que é chamaMas que seja infinito enquanto dure.

(p. 97-99)

BaladaEm suas origens, durante a Baixa Idade Média, a balada era uma forma poemática composta

para ser musicada e cantada com acompanhamento coreográfico nas festas de vindima e de outras colheitas do campo. Estritamente ligada à dança e à representação, a balada era executada por um grupo de bailarinos, uns entoando estrofes e o conjunto cantando o refrão. Tratava-se de uma forma primitiva de poesia, de origem autóctone, e cada região apresentava sua forma peculiar. Assim, em Portugal, temos a bailada, um tipo de cantiga de amigo; em língua provençal, a balada; em alemão, a ballad; no francês do norte, a ballade; em italiano, ou strambotto ou canzone da ballo; em espanhol, rimance ou romance.

A balada primitiva e folclórica, no fim do período medieval, começou a ser cultivada por poetas, tornando-se, assim, uma produção propriamente literária. O que distingue essa forma poemática

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é a confluência dos três gêneros literários: o lírico, por ser expressão de sentimentos; o narrativo, porque a balada é uma canção-história, contém em seu bojo uma pequena fábula; o dramático, porque a substância factual não é contada nem por um narrador onisciente nem pelo eu poemático, mas é revelada pelo diálogo entre as personagens.

Em desuso durante a época clássica da cultura moderna, a balada foi retomada pelos poetas românticos, ávidos de ressuscitar as formas literárias medievais, populares e folclóricas, próprias de cada país. Fugindo de todo esquematismo estrófico rímico e métrico, poetas maiores como Goethe, Schiller, Hugo e Garret, entre outros, extravasaram seu potencial lírico nessa modalidade. Um bom exemplo de balada romântica é o famoso poema The Raven, de Edgar Allan Poe: construção de dezoito estrofes iguais, de cinco versos longos e de um mais curto, que funciona como estribilho pela repetição da palavra nevermore no fim de cada estrofe. O caráter de balada é dado não tanto pelo nível fônico quanto por ser um poema narrativo com aspecto dramático: o eu poemático, através do diálogo que estabelece com o Corvo, revela um episódio de sua vida marcada pela saudade da falecida Lenora.

Na época modernista e contemporânea, a balada ainda é cultivada por vários poetas, especialmente em sua forma livre. Entre os brasileiros, destacamos: Guilherme de Almeida, Jorge de Lima, Oswald de Andrade, Augusto Meyer, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, de quem interpretamos o poema que se segue.

Balada de Santa Maria Egipcíaca

Santa Maria Egipcíaca seguiaEm peregrinação à terra do Senhor.

Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir...

Santa Maria Egipcíaca chegouà beira de um grande rio.Era tão longe a outra margem!E estava junto à ribanceira,Num barco,Um homem de olhar duro.

Santa Maria Egipcíaca rogou:— Leva-ma à outra parte do rio.Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.

O homem duro fitou-a sem dó.

Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir...

- Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.Leva-me à outra parte.

O homem duro escarneceu: — Não tens dinheiro,Mulher, mas tens teu corpo. Dá-me o teu corpo, e vou levar-te.

E fez um gesto. E a santa sorriu,Na graça divina, ao gesto que ele fez.

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Santa Maria Egipcíaca despiuO manto, e entregou ao barqueiroA santidade da sua nudez.

O texto é corretamente intitulado balada, porque tem um cunho narrativo, é um poema-fábula que conta um episódio da vida de Santa Maria Egipcíaca. Essa personagem tem um referente extratextual: dicionários hagiográficos informam tratar-se de uma prostituta de Alexandria que viveu no século IV e que se arrependeu de seus pecados, passando o resto da vida em penitência. Outra característica da balada, o aspecto dramático, também está presente nesse poema: enquanto, na primeira metade, a autoria do discurso é de um narrador onisciente, na segunda parte muda o foco narrativo, pois percebemos o conteúdo fabular o episódio através do diálogo entre as duas personagens, a santa e o barqueiro.

O poema começa com a descrição da chegada da protagonista à beira de um grande rio. Além do elemento espacial, é notável o elemento temporal que forma o cenário: na hora do crepúsculo, comparado ao “sorriso de mártir”. A metáfora é belíssima e muito original, pois, além de associar o fim do dia (crepúsculo) ao fim da vida (martírio), ainda encerra um toque oximórico, colocando no mesmo sintagma dois semas contrários: triste sorriso. O crepúsculo é triste porque indica o fim do dia, assim como o martírio é triste porque sugere o fim de uma vida humana, mas, ao mesmo tempo, ambos podem sorrir porque a morte não é definitiva: amanhã surgirá outro dia e, no mundo espiritual, o mártir encontrará outra vida após a morte corporal. O verso “Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir” é importante porque, por repetir-se, funciona quase como um refrão e também porque já contém a associação, no mesmo sintagma, de semas opostos no campo paradigmático, a espiritualidade e a materialidade, que vai aparecer com força maior no fim do poema.

Nesse cenário, que tem como pano de fundo um grande rio na hora do crepúsculo, desenvolve-se a seqüência narrativa da protagonista Santa Maria Egipcíaca e do antagonista, o barqueiro. Ela precisa atravessar o rio, pois está em peregrinação à terra do Senhor, Jerusalém, mas não tem dinheiro para pagar a passagem. Por duas vezes suplica ao barqueiro que a leve à outra margem do rio, tentando compensar a falta de dinheiro pela bênção divina. Mas o barqueiro, caracterizado como um homem de olhar duro e sem dó, apresenta uma contraproposta: que a jovem pague com seu corpo. A santa aceita a proposta do barqueiro: sorri ao seu gesto indecoroso, despe-se do manto e entrega-lhe a santidade de sua nudez.

A interpretação desse poema tem instigado alguns estudiosos da literatura brasileira. Affonso Romano de Sant’Anna, em seu livro O canibalismo amoroso (153, p. 203), apresenta uma análise intertextual dessa balada, considerando-a “o fio condutor da leitura da obra de Manuel Bandeira”. Como já dissemos ao analisar a canção Bacanal, a obra poética do escritor pernambucano é quase totalmente “carnavalizada”, no sentido que dá a esse termo o crítico russo Mikhail Bakhtine: lírica que acusa as influências do espírito dionisíaco, fortemente revolucionária por questionar os valores éticos que sustentam a vida em sociedade.

No texto acima, mais do que à relação opositiva santa/prostituta, segundo a interpretação de Affonso Romano de Sant’Anna, é preciso ater-se ao sentido mais profundo da própria negação do pe-cado carnal. Com efeito, mesmo considerando a notícia biográfica de que Santa Maria Egipcíaca fora uma prostituta durante sua mocidade, no texto ela aparece como santa, e o corpo que ela entrega ao barqueiro não é o de uma mulher fácil, mas de uma jovem virtuosa. O verso final, a santidade da sua nudez, contém o sentido colocado no poema todo: nudez e santidade não são elementos opostos, antagônicos. Se a nudez é natural e a natureza é criação de Deus, logo a nudez é divina, santa. O pecado não está no corpo, mas na mente; não no ato, mas na intenção. A protagonista do poema, ao entregar-se sexualmente ao barqueiro, não está cometendo um pecado, mas uma obra de caridade,

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satisfazendo o desejo de um homem triste e abrutalhado pela solidão em que vivia. O amor verdadeiro consiste em fazer a felicidade do outro, não de si; reside em atender com um sorriso (note-se, no poema, a relação entre o sorriso do mártir e o sorriso da santa) às necessidades de quem nos solicita. Acima da doxa, a opinião comum ditada pelas injunções morais, eleva-se o paradoxo poético, revela-dor de uma verdade não-aparente, convencional, mas profunda, porque atinge a própria essência da natureza humana.

Rondó e rondel

O rondó e o rondel são formas poemáticas que, como a balada, estão relacionadas com a dança. A diferença consiste no aspecto circular: do termo latino rotundum (“redondo”) derivaram as palavras francesas ronde e rondeau, nomes de bailados populares medievais. A circularidade coreográfica transfere-se para o poema composto de estrofes e de versos que se chamam mutuamente, repetindo-se. O rondel, em sua forma canônica, compõe-se de três estrofes, duas de quatro versos e uma de seis, sendo que os dois versos iniciais da primeira estrofe são idênticos aos dois finais da segunda e da terceira estrofes. O rondó simples compõe-se de uma oitava e de uma quintilha, ambas seguidas de um estribilho; o rondó dobrado é composto de cinco quadras, sendo que o primeiro verso da primeira quadra é igual ao último da segunda quadra, o segundo verso da primeira quadra corresponde ao último da terceira quadra, e assim sucessivamente. A forma fixa do rondó medieval e arcádico é retomada livremente pelo poeta moderno Manuel Bandeira, no texto que analisaremos a seguir:

Rondó dos cavalinhos

Os cavalinhos correndo,E nós, cavalões, comendo...Tua beleza, Esmeralda,Acabou me enlouquecendo.

Os cavalinhos correndo,E nós, cavalões, comendo...O sol tão claro lá fora,E em minh’alma — anoitecendo!

Os cavalinhos correndo,E nós, cavalões, comendo...Alfonso Reyes partindo,E tanta gente ficando...

Os cavalinhos correndo,E nós, cavalões, comendo...A Itália falando grosso,A Europa se avacalhando...

Os cavalinhos correndo,E nós, cavalões, comendo...O Brasil politicando,Nossa! A poesia morrendo...O sol tão claro lá fora,

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O sol tão claro Esmeralda,E em minh’alma — anoitecendo!

O professor Antonio Candido (125), em sua instigante leitura desse poema, aponta os seguintes dados do mundo da realidade em que foi concebido o rondó: 1) O título original do poema, publicado em 1936 na coletânea Estrela da Manhã, era Rondó do Jockey Glub. 2) No ano anterior, nesse clube, foi oferecido um almoço em homenagem ao escritor mexicano Alfonso Reyes, que deixara seu cargo de embaixador do Brasil. 3) No mesmo ano de 1935, a Itália, sob o regime fascista, invadira a Abissínia, colocando-se contra a Liga das Nações. 4) O pragmatismo da vida moderna colocava em crise a poesia tradicional, inventando novos meios estéticos. 5) O sistema político do Brasil, fraco e inoperante em seu modelo democrático, irá propiciar a Getúlio Vargas dissolver o Congresso Nacional e implantar a ditadura do Estado Novo, em 1937.

O poema é composto de quatro quadras e uma septina. Os dois primeiros versos são idênticos nas cinco estrofes, funcionando como estribilho. A repetição do dístico “Os cavalinhos correndo,/ E nós, cavalões, comendo...”, a rima gerundival (endo, que indica a ação continuada, no seu acontecer) e o ritmo contínuo do primeiro verso, em oposição ao quebrado do segundo (“e nós, cavalões comendo”), suscitam duas sensações: a de retorno, do andar em roda, da circularidade, e a do movimento galopante do cavalo. Tal estrutura fônica é consoante ao sentido que o poeta quer transmitir através das imagens que surgem da leitura do texto. Mas esse paralelismo fono-semântico enseja diferentes interpretações.

Considerando que o título é elemento fundamental para a compreensão de um texto literário, pois ele aponta para seu tema principal, a mudança do título desse poema é sintomática. O título original, Rondó do Jockey Glub, inclina o leitor a ter a imagem de um hipódromo, onde pessoas da alta sociedade assistem a corridas de cavalos, realçando-se a sensação fônica do galope; o título posterior e definitivo que se encontra em Poesia Completa, de Manuel Bandeira, organizada pelo autor e editada pela José Aguilar, em 1974, é Rondó dos cavalinhos: por esse novo título o realce é dado à idéia da circularidade, pois a imagem que suscita na mente do leitor é a de um carrossel de parque de diversões.

A nosso ver, Manuel Bandeira, porque mudaram os tempos, mudou o título para democratizar e eternizar seu poema: não se trataria mais de uma composição inspirada por um acontecimento cir-cunstancial, social ou político (a despedida do embaixador Alfonso Reyes, a prepotência da Itália fascista, etc.), mas de poesia que reflete sobre as relações humanas do cotidiano, tendo como cenário um parque de diversões. Assim, ainda com referência ao refrão, a palavra cavalinhos perderia o sentido de diminutivo afetivo dos cavalos de corrida, passando a significar os pequenos cavalos de brinquedo, e cavalões não indicaria mais os ricos que almoçam no restaurante do Jockey Club durante as competições hípicas, mas as pessoas adultas da camada popular que, enquanto as crianças brincam no parque de diversões, se entretêm comendo pipocas, amendoins e guloseimas. Essa segunda interpretação é favorecida pela linguagem utilizada por Manuel Bandeira: os termos cavalões, falando grosso, avacalhando, nossa! estão mais para o circo do que para o hipódromo.

A duplicidade de interpretação dos dois versos que compõem o estribilho estende-se ao poema todo. Lembramos que a ambigüidade é uma das características da linguagem poética que, por ser polissêmica, é irredutível à unicidade de sentido. A obra de arte literária é aberta a qualquer tipo de leitura, desde que não extrapole os elementos textuais. O poema todo está centrado sobre a figura retórica da ironia, resultante da aproximação sintagmática de campos semânticos opostos. A partir da antítese básica e recorrente entre cavalinhos (o mundo da infância, da inocência, da natureza) e ca-valões (o mundo da grosseria, da hipocrisia, da prepotência), outras oposições semânticas são criadas nas cinco estrofes do poema. Aliás, cada quadra, tirando-se o refrão, reduz-se a um dístico, onde os dois versos opõem-se semanticamente: o verso de cima (o terceiro da estrofe) contém uma idéia eufórica, logo contestada pelo sentido disfórico do verso de baixo (o quarto da estrofe).

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Na primeira estrofe, a beleza de Esmeralda contrasta com a loucura do eu poemático. Esmeralda é um nome poético, pois não tem nenhum referente no mundo da realidade. Ela funciona como personagem destinatária intratextual do eu narrador, simbolizando a mulher fatal que, por seus atrativos físicos, leva o homem à loucura. A beleza da mulher, que deveria instigar sentimentos de amor, de ternura, contrariamente provoca o desequilíbrio existencial.

A segunda quadra apresenta a oposição entre os elementos espaciais e temporais do mundo da realidade e do mundo do eu poemático. Enquanto lá fora (espaço exterior) existe a claridade do sol, em minh’alma (espaço interior) há a escuridão da noite. A metáfora espacial criada pela interiorização de um lugar exterior (a tristeza do espírito comparada às trevas da noite), embora não original, pois o uso já a incorporou à linguagem denotativa, expressa a incapacidade do homem de adaptar-se ao mundo em que vive.

Na terceira estrofe, a oposição é posta entre as pessoas boas que vão embora e a gente ruim que fica. Alfonso Reyes, escritor e diplomata mexicano, como já vimos, é uma pessoa histórica; mas, colocada no texto literário, torna-se personagem de ficção, simbolizando o homem de bem, honesto e culto. A ironia do destino faz com que ele vá embora do Brasil, enquanto pessoas retrógradas e corruptas permanecem.

Na quarta estrofe, a ironia atinge a política internacional: a minúscula Itália, dominada por um ditador narcisista e exaltado, consegue disseminar o pavor entre as grandes potências da Europa.

Na quinta estrofe, o poeta se refere à efervescência das facções políticas em detrimento do cultivo das artes. Os três versos finais dessa última estrofe constituem uma espécie de cauda, onde se dá a repetição de versos anteriores. O poeta partira da constatação do contraste entre o espaço exterior cheio de vida e o vazio existencial de seu espírito. Do microcosmo do individualismo a oposição se estende ao macrocosmo das relações sociais, atingindo a política nacional e internacional e envolvendo também a própria arte da literatura. No fim do poema, ele retoma o momento ideológico inicial da incapacidade de adaptar-se ao espaço exterior: enquanto lá fora o sol, agora identificado com a amada Esmeralda, irradia luz, calor e amor, em sua alma só existem as trevas da noite.

O movimento circular, que, como dissemos, é a característica principal da forma poemática do rondó, verifica-se nesse poema quer ao nível fônico (a repetição do refrão), quer ao nível imagético (a ciranda dos cavalinhos do carrossel), quer ao nível semântico (o momento ideológico inicial é retomado no fim). O mundo é visto como uma “roda” de aberrações que gira sem fim e de cujas engre-nagens ao homem não é dado escapar.

Vilancete e redondilha

Vilancete deriva de vila, lugarejo habitado por camponeses (vilões). É uma forma poemática da península Ibérica, de origem popular. O vilancete é composto de uma estrofe-matriz, chamada vilancico, mote ou cabeça, seguida de várias estrofes denominadas voltas ou glosas. Em língua espanhola, o vilancete é chamado de vilancico, não existindo diferenças relevantes entre as duas formas. Em ambas, a estrofe inicial apresenta o tema do poema, que passa a ser glosado nas estrofes sucessivas. Semelhante ao vilancete é a redondilha, composição poética em que cada verso tem sete sílabas (redondilha maior) ou cinco sílabas (redondilha menor). Tais formas populares da lírica medie-val encontraram cultores na renascença (Camões), no simbolismo (Eugênio de Castro) e na modernidade (Goulart de Andrade). Vejamos, como exemplo, uma redondilha de Luís Vaz de Camões:

Voltas a mote alheio

A dor que minha alma sente

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Não a sabe toda a gente.

Que estranho caso de amor!Que desejado tormento!Que venho a ser avarentoDas dores de minha dor.Por se não tornar pior,Se se sabe ou se se sente,Não a digo a toda a gente.

Minha dor e causa delaDe ninguém ouso fiar,Que seria aventurarA perder-me ou a perdê-la.E pois só com padecê-laA minha alma está contente,Não quero que a saiba a gente.

Ande no peito escondida,Dentro na alma sepultada;De mim só seja chorada,De ninguém seja sentida.Ou me mate ou me dê vidaOu vida triste ou contente,Não a saiba toda a gente.

Esse poema é um clássico exemplo de redondilha vilancete: é uma redondilha maior porque composta de três estrofes, cada qual de sete versos e cada verso de sete sílabas; mas é também um vilancete porque existe o dístico inicial que apresenta o tema a ser glosado nas estrofes seguintes. A idéia posta em exame é que o sofrimento, para ser intenso e verdadeiro, não pode ser compartilhado com ninguém. Ao contrário da felicidade, que necessita da companhia de alguém, pois ninguém pode ser feliz sozinho, a dor é um sentimento exclusivo, intransferível, incomunicável. Tal verdade existencial, colocada na cabeça do poema, quase em forma de provérbio, vai receber esclarecimentos (glosas) ao longo das três septinas, onde se encontram palavras ou frases contidas no mote.

Camões, poeta renascentista que prenuncia o advento da estética barroca, aqui, como em outras composições poéticas, estrutura seu discurso sobre jogos de palavras, de idéias e de sentimentos, revelando seu estilo peculiar, algo próximo da concepção artística do seiscentismo, baseada nos princípios do cultismo e do conceptismo. A redondilha Voltas a mote alheio, como o famoso soneto Amor é fogo que arde sem se ver, é dominada pela figura retórica do oxímoro, a oposição semântica dos termos colocados no mesmo eixo sintagmático.

Na primeira septina, a oposição já aparece no segundo verso, onde o substantivo tormento, semanticamente disfórico, é qualificado pelo adjetivo desejado, que é eufórico. O sentido metafórico, provocado pela adjetivação impertinente, leva a pensar num certo masoquismo, o prazer de sofrer. Tal idéia é reforçada no terceiro e no quarto versos, os quais o eu poemático afirma não querer dividir sua dor com ninguém (avarento da dor). Nos versos finais da estrofe aparece o motivo: a revelação da dor faria com que ela perdesse a graça (tornar pior), pois, ao provocar a comiseração dos outros, tornar-se-ia vulgar.

Nas duas estrofes seguintes, há variações sobre o mesmo tema: o eu sujeito do discurso não

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ousa confiar a ninguém sua dor, com medo de ser privado dela. A oposição de termos contrários apa-rece outra vez na aproximação entre o estar contente e o padecer. Sentir prazer do sofrimento é um sentimento próprio da estética e da ideologia barroca, em que os contrários não são opostos, mas se identificam.

Madrigal

A forma poética do madrigal originou-se na renascença italiana. Geralmente composto de dois tercetos e dois dísticos, pode também apresentar uma estrutura livre. A temática que mais aparece é o idílio pastoril ou o galanteio amoroso; por isso, o madrigal foi bastante cultivado na época do arcadismo. Como exemplo, utilizamos um madrigal de Silva Alvarenga:

Vês, Ninfa, em alva escuma o pego iradoQue as penhas bate com furor medonho?Inda o verás risonho e namoradoBeijar da longa praia a ruiva areia:

Dóris e GalatéiaVerás em concha azul sobre estas águas.

Ah! Glaura! ai, tristes mágoas!Sossega o mar quando repousa o vento;Mas quando terá fim o meu tormento?

Esse poema tem todos os ingredientes da lírica arcádica: o recurso à mitologia greco-romana, próprio do neoclassicismo; a musicalidade proveniente do esquema rímico e do ritmo; a idealização dos elementos da natureza; a escolha de vocábulos eruditos (escuma, em lugar de espuma; pego, em lugar de mar; penhas, em lugar de rochas). Esse madrigal apresenta duas personagens como destinatárias intratextuais do discurso poético: no início, a Ninfa, uma figura do mundo sobrenatural; no fim, Glaura, um nome poético de mulher com o qual Alvarenga intitula toda a sua obra lírica, composta exclusivamente de rondós e madrigais.

O poema todo está centrado sobre um conjunto de metáforas criadas a partir da comparação entre a agitação do mar e o sofrimento amoroso do eu poemático. O mar bravio, sacudido pelas ondas, encontrará a calma dali a pouco, quando Dóris, filha do Oceano, esposa de Nereu e mãe das Nereidas, acompanhada pela filha Galatéia, irá aparecer numa concha azul. Então, não mais irado, o mar beijará a praia com o sorriso de um namorado. Nos dois versos finais, o contraste entre a convulsão momentânea do mar e o desassossego duradouro do poeta aparece em forma de pergunta, retórica porque irrespondível: se o mar, após a tempestade, encontra o descanso, por que a mágoa da paixão amorosa não-correspondida nunca deixa em paz o coração?

Epigrama

Do grego epí (”sobre”) e gramma (“escrito”), epigrama literalmente significa “inscrição”: um pequeno texto inciso numa lápide, numa moeda, num monumento. Como forma literária, o epigrama é uma breve composição poética composta de uma ou mais estrofes, podendo-se distinguir o nó (o tema) e o desenlace (a solução). O epigrama apresenta um estilo telegráfico e um conteúdo irônico expresso por palavras engenhosas, colocadas num contexto surpreendente.

Na literatura greco-romana, o epigrama foi cultivado por vários escritores, ao lado de outras formas poemáticas. Mas quem dedicou toda a sua produção literária exclusivamente à forma epigramática foi o poeta latino Marcial, da época imperial de Roma. Em seus doze livros de epigramas,

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ele tratou dos temas mais variados: louvou os poderosos, criticou os costumes da época, expressou seus sentimentos mais íntimos, descreveu o amor lascivo, a amizade, vícios e virtudes humanas. Uma frase sua condensa a totalidade de sua temática: “Hominem pagina nostra sapit” (“Minha poesia conhece o homem”). Na literatura ocidental, vários poetas escreveram epigramas. Em língua portuguesa, o árcade Bocage tornou-se famoso por esse tipo de composição, como se vê no epitáfio irreverente que ele sugere para seu túmulo:

Aqui dorme Bocage, o putanheiro;Passou vida folgada, e milagrosa;Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.

De tom bem mais lírico é o Epitáfio ao Sol, de Vinicius de Moraes:

Aqui jaz o SolQue criou a auroraE deu luz ao diaE apascentou a tarde

O mágico pastorDe mãos luminosasQue fecundou as rosasE as despetalou.

Aqui jaz o SolO andrógino meigoE violento, que

Possuiu a formaDe todas as mulheresE morreu no mar.

HaicaiComposição poética de origem japonesa, o haicai é semelhante ao epigrama. Tem em comum

com o epigrama a forma breve e sentenciosa. A diferença está na postura ideológica: buscando uma correspondência entre o som e o sentido das palavras através das figuras retóricas da paronomásia e da onomatopéia, e entre objetos de natureza diferente através da sinestesia, o haicai apresenta o espetáculo da vida de uma forma surpreendente mediante associações alógicas. Analisemos, por exemplo, o poemeto O lago dos haikais, de Guilherme de Almeida:

Esvoaça a libélulaEsponja verde. Uma concha.

O lago é uma pérola.

Esse haicai é formado pelas relações de sinestesia sugeridas pela aproximação sintagmática de cinco elementos: libélula, esponja, concha, lago e pérola. A libélula é vista no ato de esvoaçar, apresentando a transparência de suas minúsculas asas. A visão do inseto, por sua transparência luminosa, dá a sensação do verde, adjetivo que qualifica o segundo elemento, a esponja, pequeno ani-

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mal aquático caracterizado pelos numerosos poros. Mas as asas da libélula sugerem também uma sensação de forma, a concavidade, que se encontra no terceiro elemento, a concha, invólucro dos mo-luscos. No verso final, os dois últimos termos não estão colocados mais no plano da justaposição, mas na predicação: o lago é identificado a uma pérola. Essa predicação final retoma as associações se-mânticas estabelecidas nas justaposições dos termos nos versos anteriores, sugerindo um sentido possível do poema: o lago é uma pérola porque é verde como as asas da libélula e tem o formato de uma concha. A predominância da cor verde e a calmaria dos elementos naturais apresentados suscitam no leitor uma sensação de paz, de repouso.

Tentamos, assim, dar uma explicação lógica a esse poemeto que, sendo um haicai, por definição deveria apresentar apenas relações alógicas. E isso porque, particularmente, nos recusamos a aceitar como poesia textos que não tenham sentido!

Outras formas tradicionais

Além das formas poemáticas analisadas anteriormente, a tradição cultural nos legou outras modalidades poéticas que recebem o nome ou de uma construção estrófica peculiar ou do conteúdo temático.

Bucólica (também chamada de écloga, idílio ou pastoral): poema que exalta a vida do campo e o amor entre pastores.

Galigrama: composição poética cujo sentido é captado pelo formato gráfico e pela disposição das palavras nas páginas.

Epístola: texto literário em forma de carta que tem um destinatário explícito ou implícito.

Lira (ou silva): composição poética de extensão variável, geralmente de assunto amoroso, cujo cenário é a natureza.

Oitava (também chamada de octeto ou ottava rima): poema composto por estrofes de oito versos.

Panegírico: composição poética que elogia a vida de uma pessoa ilustre.

Parábola: texto poético que se serve de símbolos e alegorias.

Quadra (ou trova, quarteto, quarta rima): composição de estrofes de quatro versos.

Rapsódia: poema composto de uma miscelânea de temas e motivos.

Sátira: gênero poético que aponta vícios e defeitos humanos.

Sextina: poema medieval composto de seis estrofes, cada qual com seis versos.

Terceto (ou trístico, terzina, terza rima): poema composto de estrofes de três versos.

Formas livres

Vimos, até agora, modalidades poemáticas consagradas pela tradição literária. Mas a lírica pode prescindir de modelos canônicos, pois a inspiração do poeta não deve estar necessariamente atracada a esquemas estróficos, métricos, rímicos ou rítmicos, nem a temas que se tornaram topos. Com a revolução estética promovida pelo romantismo, o gênero lírico adquiriu sua liberdade de expressão. De lá para cá, os grandes poetas fizeram largo uso do verso-livrismo, libertando-se de qualquer constrangimento formal. Tomemos o exemplo de Fernando Pessoa: se, sob o ortônimo e o heterônimo de Ricardo Reis, fez poemas líricos seguindo esquemas convencionais, com o nome de Álvaro de Campos e de Alberto Caeiro escreveu poemas não menos líricos, embora não usasse nenhuma norma

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no comprimento dos versos e na divisão estrófica e não se preocupasse com rimas e acentos. São do he-terônimo Alberto Caeiro, o poeta da natureza, os dois versos esclarecedores:

Não me importo com as rimas. Raras vezeshá duas árvores iguais, uma ao lado da outra.

O mesmo acontece com o nosso Manuel Bandeira. Se, em muitos poemas, usa formas tradicionais, em outras composições líricas deixa-se levar apenas pela imaginação criadora, repudiando qualquer estética formalista e propondo a poética da libertação:

Poética

Estou farto do lirismo comedidodo lirismo bem comportadoDo lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo

e manifestações de apreço ao Sr.diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universaisTodas as construções sobretudo as sintaxes de exceçãoTodos os ritmos sobretudo os inumeráveisEstou farto do lirismo namoradorPolíticoRaquíticoSifilíticoDe todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismoSerá contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar

com cem modelos de cartas e asdiferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucosO lirismo dos bêbedosO lirismo difícil e pungente dos bêbedosO lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Assim, os poetas maiores do romantismo, do simbolismo e da modernidade (Goethe, Leopardi, Valéry, T. S. Eliot, Ungaretti, entre tantos outros) produziram poemas líricos de pequeno ou grande porte, sem preocupar-se com modelos formais. O melhor exemplo de libertação formal nos é fornecido

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pela maior glória da lírica brasileira, o poeta-cronista, o intelectual-jornalista Carlos Drummond de Andrade. Sua poesia é uma profunda e lúcida indagação sobre a essência e a existência humana, feita através da apresentação de quadros do cotidiano, usando uma linguagem coloquial, simples, acessível ao grande público. Seu poema antológico José é um interrogativo sobre a busca de solução neste beco sem saída que é a nossa vida!

José

E agora, José?A festa acabou,a luz apagou,o povo sumiu,a noite esfriou,e agora, José?e agora, você?você que é sem nome,que zomba dos outros,você que faz versos,que ama, protesta?e agora, José?

Está sem mulher,está sem discurso,está sem carinho,já não pode beber,já não pode fumar,cuspir já não pode,a noite esfriou,o dia não veio,o bonde não veio,o riso não veio,não veio a utopiae tudo acaboue tudo fugiue tudo mofou,e agora, José?

E agora, José? sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio — e agora?

Com a chave na mão

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quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora?

Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... Mas você não morre, você é duro, José!

Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde?

Não menos famosa é a seguinte Quadrilha, onde o poeta mineiro trata do amor não-correspondido, ilustrando o famoso adágio popular “Quem eu amo não me ama e quem me quer eu não quero”, máxima que sintetiza os desencontros do ser humano, sua incapacidade de ser feliz, e que Drummond, o grande inovador da linguagem poética, traduz através de uma historinha imaginária, em que destinos humanos se cruzam e se afastam ao sabor do acaso:

João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém.João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.

Já o lirismo de outro grande escritor brasileiro, João Cabral de Melo Neto, o poeta-engenheiro, o cultor da perfeição geométrica, está centrado na busca da simetria entre as estruturas da linguagem e da realidade representada. Embora, modestamente, ele não se considere um poeta e muito menos um lírico, seus versos atingem o fulgor da verdadeira poesia. Fugindo do sentimentalismo lacrimejante, veio comum de tantos poetas medíocres, ele tenta converter sua emoção em imagens coisificadas, objetivando seus sentimentos. Assim, por exemplo, a paixão erótica, a atração que ele sente pelo corpo

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da mulher, é transferida para a imagem da casa, fazendo um jogo de palavras entre o espaço material e a figura humana, de modo a criar uma sutil ambigüidade:

A mulher e a casa

Tua sedução é menos de mulher do que de casa:pois vem de como é por dentro ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui tua plácida elegância, esse teu reboco claro, riso franco de varanda.

Uma casa não é nunca só para ser contemplada; melhor: somente por dentro é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro, ou será, quando se abra; pelo que pode ser dentro de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram com seus vazios, com o nada; pelos espaços de dentro, não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro; seus recintos, suas áreas, organizando-se dentro em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem estâncias aconchegadas, paredes bem revestidas ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem efeito igual ao que causa:a vontade de corrê-la por dentro, de visitá-la.

Todo o poema é construído sobre uma metáfora espacial: o espaço físico, material da casa (externo e interno) é comparado ao espaço corporal da mulher (exterior e interior). Trata-se da interiori-zação de um espaço exterior (o da casa) e da exteriorização de um espaço interior (o da mulher).

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A primeira estrofe já deflagra a comparação: como uma casa agrada não apenas pela fachada, mas especialmente pela disposição interna dos espaços, assim uma mulher seduz não tanto por seu ros-to quanto pelo que ela tem dentro: idéias, sentimentos, capacidade de amar.

Na segunda quadra dá-se a particularização da idéia central colocada na primeira estrofe: a beleza da casa é comparada à elegância plácida, serena, da mulher, seguindo-se a imagem metafórica da transferência de sentido entre o reboco da mulher e o riso da varanda. Tal inversão cria um quiasma semântico, que pode ser traduzido pela seguinte equação: o reboco claro está para a casa como o sorriso franco está para a mulher.

A partir da terceira estrofe o foco narrativo se altera. Nas duas primeiras estrofes, notamos a relação eu/tu do plano da enunciação: o eu poemático dirige seu discurso à mulher amada, que funciona como destinatária da mensagem. Nas seis quadras seguintes, porém, o aparelho formal da enunciação perde sua evidência e a autoria do discurso passa para um narrador onisciente que, não dirigindo a palavra a ninguém, tece considerações gerais sobre o tema proposto nas duas estrofes anteriores. O discurso, então, sobre a relação mulher/casa passa da subjetividade para a objetividade, do particular para o genérico. O pronome pessoal tua é substituído pelo artigo indeterminado uma. O momento ideológico contido na terceira estrofe é que a mulher, como a casa, não é feita apenas pa ra ser contemplada, mas usada. E o melhor modo de contemplar a casa/mulher é vê-la por dentro, perscrutar sua intimidade.

A quarta, a quinta e a sexta quadras formam um único bloco ideológico, diferenciado pela repetição da preposição pelo, através de: a sedução da casa/mulher é provocada pela disposição do espaço interno — salas, corredores, recintos. São esses elementos íntimos que atraem o homem, como é dito nas duas quadras conclusivas do poema: o homem sente vontade de percorrer tais espaços, de penetrar neles, de encontrar aí o seu aconchego. As imagens eróticas que permeiam o poema todo, criadas a partir da concepção da mulher-arquitetura, encontram seu clímax nos versos finais, nos quais se intensifica a idéia da penetração e da exploração por dentro.

Enfim, pelos caminhos mais diversos, tradicionais ou inovadores, o gênero lírico continua seu percurso, revelando esteticamente as idéias e os sentimentos daqueles que são as antenas mais sensíveis da consciência coletiva: os poetas.