o lírico invasor e problematizador do drama contemporâneo aqui de martina sohn fischer

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O presente trabalho tem como objetivo realizar um procedimento de análise da peça AQUI (2011) de Martina Sohn Fischer buscando dialogar com a antiga tradição da poética dos gêneros e com a moderna teoria literária, além de trazer a tona uma perspectiva filosófica e estética em relação ao fazer artístico, buscando contemplar elementos da teoria do poema, que dialogam diretamente com a dramaturgia aqui apresentada, haja vista seu caráter intransitivo, no que se refere ao conteúdo, e no uso de versos livres e brancos, poema em prosa, trabalho prosódico, com as imagens, no seu caráter formal, dialogando com a tradição lírica e dramática. Em um primeiro momento localizaremos a dramaturga dentro do cenário teatral contemporâneo brasileiro, evidenciando seu alinhamento a um grupo muito específico de dramaturgos, diretores e encenadores do teatro, de forte viés antidramático; para adiante tratar das especificidades e problemáticas historicamente construídas e específicas do gênero dramática; para ao final propor uma análise da peça AQUI analisando quanto do lírico está presente na produção e em que medida o poético colabora para construção de uma dramaturgia que se apresentou pela crítica, de forma precoce, como “extraordinária” e “antológica”, e com potência para problematizar um gênero teatral historicamente erigido - o drama – enquanto, ainda (?), uma possibilidade discursiva na contemporaneidade.

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O lrico invasor e problematizador do drama contemporneo Aqui de Martina Sohn Fischer

Marcos Savae (UEL) [email protected]

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo realizar um procedimento de anlise da pea AQUI (2011) de Martina Sohn Fischer buscando dialogar com a antiga tradio da potica dos gneros e com a moderna teoria literria, alm de trazer a tona uma perspectiva filosfica e esttica em relao ao fazer artstico, buscando contemplar elementos da teoria do poema, que dialogam diretamente com a dramaturgia aqui apresentada, haja vista seu carter intransitivo, no que se refere ao contedo, e no uso de versos livres e brancos, poema em prosa, trabalho prosdico, com as imagens, no seu carter formal, dialogando com a tradio lrica e dramtica. Em um primeiro momento localizaremos a dramaturga dentro do cenrio teatral contemporneo brasileiro, evidenciando seu alinhamento a um grupo muito especfico de dramaturgos, diretores e encenadores do teatro, de forte vis antidramtico; para adiante tratar das especificidades e problemticas historicamente construdas e especficas do gnero dramtica; para ao final propor uma anlise da pea AQUI analisando quanto do lrico est presente na produo e em que medida o potico colabora para construo de uma dramaturgia que se apresentou pela crtica, de forma precoce, como extraordinria e antolgica, e com potncia para problematizar um gnero teatral historicamente erigido - o drama enquanto, ainda (?), uma possibilidade discursiva na contemporaneidade.

PALAVRAS-CHAVE: dramaturgia contempornea drama lrico crtica literria

Consideraes preliminares

O presente trabalho tem como objetivo realizar um procedimento de anlise da pea AQUI (2011) de Martina Sohn Fischer buscando dialogar com a antiga tradio da potica dos gneros e com a moderna teoria literria, alm de trazer a tona uma perspectiva filosfica e esttica em relao ao fazer artstico, buscando contemplar elementos da teoria do poema, que dialogam diretamente com a dramaturgia aqui apresentada, haja vista seu carter intransitivo, no que se refere ao contedo, e no uso de versos livres e brancos, poema em prosa, trabalho prosdico, com as imagens, no seu carter formal, dialogando com a tradio lrica e dramtica.Esse procedimento visa demarcar que a pea se configura em um exemplar de uma dramaturgia contempornea brasileira que dialoga com uma tradio que vem se construindo mais intensamente a partir da dcada de 1980, conforme defende o terico francs Jean-Pierre Sarrazac, em que a dramaturgia moderna e contempornea ocidental vem sofrendo um amplo processo de corroso dos limites do gnero e um aprofundamento nos procedimentos dramatrgicos de problematizao dos componentes mais tradicionais do gnero dramtico: tempo, espao, ao, personagem e com maior nfase aqui, da sua organicidade dramtica, a fbula (a composio dos atos, visando uma nica e importante ao, em moldes aristotlico-hegelianos).Cabe salientar que a jovem Martina Sohn Fischer (apenas 21 anos!) no um caso isolado, muito menos uma regra frente a excees. Seu trabalho dialoga (ou tenha sido em um primeiro momento impulsionado) poroutros dramaturgos e diretores teatrais contemporneos nascidos ps-revoluo cultural de 1968 (Roberto Alvim, Don Correa, PatriciaKamis, Newton Moreno, entre outros) que buscam uma profunda subverso do ncleo duro do gnero dramtico (dilogo intersubjetivo no tempo presente, marcado por personagens bem construdas fsica e subjetivamente, uma fbula bem composta e identificvel capaz de construir um conflito entre as personagens a ser descortinado ao final da pea) e que dialoga com o que Deleuze (2014) defende ser uma literatura menor: desterrritorializao da lngua, a ligao do individual no imediato poltico, o agenciamento coletivo de enunciao, ou seja, condies revolucionrias de toda literatura no seio daquela que se chama grande (ou estabelecida).

Martina: uma anlise precoce ou uma dramaturga prodgio?

Quando da estreia da pea AQUI em 2012, sob direo de Roberto Alvim diretor da Companhia Tearal Club Noir de So Paulo, o crtico cultural Luis Fernando Ramos do Caderno Cultural Ilustrada da Folha de So Paulo, um dos jornais impressos de maior circulao do pas pontuou, sobre o texto de Fischer, que sua estrutura aberta, claramente avessa tradio do drama de narrativas concatenadas, combina-se com uma fora e contundncia potica raras para criar uma obra desde j antolgica. (2012, grifo meu)Por este ponto de vista, a jovem dramaturga do interior de Santa Catarina pode ser considerada a herdeira mais brilhante do projeto de renovao radical do teatro no pas empreendido por Roberto Alvim. O dramaturgo e encenador, ao lado da atriz Juliana Galdino, vem, h alguns anos, irradiando na cena teatral contempornea com novas possibilidades de construo para o gnero dramtico, alm de coordenar oficinas de escrita, direo e interpretao que coadunam com essa perspectiva inovadora de interpretar, escrever e produzir para o teatro, cujas ideias esto condensadas na obra de Alvim intituladaDramticas do Transumano.Neste texto de carter filosfico-intuitivo Alvim prope novas experincias na escrita teatral que permitam tornar imanente as necessidades e as possibilidades da existnciae que tornem mltiplas as construes discursivas da experincia humana com real referencial, no drama, para alm do lgico-cognitivo (ao pautada em causa-efeito).o teatro no entretenimento j existe entretenimento o suficienteo teatro tampouco reflexo existem, hoje, inmeras instncias destinadas a istoo teatro , sim, o lugar de experienciarmos o tempo, o espao e a condio humana de outros modos, para alm da vivncia que a cultura nos proporcionaisto, s o teatro pode fazer este lugar, s o teatro pode instaurar. (ALVIM, 2010, grifo meu)

Alguns crticos e tericos como Luiz Fernando Ramos apontam que Alvim, e em extenso Fischer, dialogam com uma tradio antidramtica, ou seja, um teatro mais abstrato, que abre mo da prerrogativa aristotlico/ clssica relaes de causa e efeito, conflito, catarse no sentido atual e mais comum do termo.Mesmo Bertolt Brecht, um artista central do sculo passado, ainda estaria preso s balizas do drama. O caminho aqui outro e, no contexto posterior s vanguardas histricas do modernismo, tangencia principalmente dois autores: Beckett, que substitui a narrativa pelo foco na materialidade cnica, aproximando o teatro do que hoje se chama de instalao, e AntoninArtaud, que se concentrou nas novas possibilidades de existncia e sua traduo no palco. Num mapeamento um tanto resumido e esquemtico, Bob Wilson e Gerald Thomas seriam filhos da primeira linhagem; o Living Theatre e Jos Celso Martinez Corra, da ltima. Nomes como o francs ValreNovarina fazem uma mescla contempornea dessas duas matizes. Harold Pinter viria de outra linhagem, de lngua inglesa, e seria um ps-beckettiano com toques de drama. (LAUB, 2014)

Porm, se alar qualidade de extraordinria a escrita de uma jovem aos dezenove anos se torna algo um tanto perigoso, no se pode descartar de pronto a qualidade e relevncia de tal produo. Cabe um procedimento operatrio de anlise do fenmeno, se pensarmos que,a reiterao, conforme pontua Zumthor (2014) no processo de leitura e recepo de uma obra, compe um dos momentos na histria de um texto potico, e caminha no campo do reconhecimento daquela produo, e sua recepo, em nmero indefinido, fazendo com que aquele texto cole-se e dialogue com uma tradio de seu gnero, mesmo que sua estrutura singular esteja equidistante do ncleo duro cristalizado historicamente (no caso do gnero dramtico, o formato do drama absoluto ou drama rigoroso, pautado no embate intersubjetivo no tempo presente estruturado pelo uso do dilogo que se quer espontneo).No teatro no h revoluo, nem mesmo verdadeira mudana, seno ao nvel das obras. Nunca uma inovao de ordem cnica, por mais vlida que seja, transforma verdadeiramente a arte dramtica; no melhor dos casos, ela participa numa perturbao em cuja origem est a obra escrita, e s ela. No obstante o que pensem hoje em dia numerosos encenadores, no existem grandes datas na histria do teatro a no ser as da apario das grandes obras. (DEFRANGE in MERCADO, 2001, p. 7)

A pea AQUI provavelmente se insere, em um momento muito particular da dramaturgia contempornea brasileira e da prpria escritura dramtica como um todo: a ideia de crise, seja crise do drama enquanto gnero do discurso, e at mesmo da poesia, e do prprio processo de escrita. Contudo, pensar em crise, no pensar no fim dos tempos, de carter apocalptico, mas se instrumentalizar de um procedimento operatrio de anlise com vis poltico, de crtica e de busca de novas relaes com o real.

AQUI ainda um drama (?) que invariavelmente dialoga com a tradio...

Segundo o terico teatral francs Jean-Pierre Sarrazac durante todo processo de construo da escrita teatral ocidental, houve contnuas subverses de tempo, espao e personagens, que na contemporaneidade vem adquirindo um carter extremo, dentro da estrutura da escritura dramtica, atingindo e problematizando a fbula ou o mythos, interpretado como sistema formal de encadeamento das aes para a manifestao da mimesis, que por sua vez tambm sofre uma crise que exige do dramaturgo uma busca expressiva para construir e expressar as novas relaes do homem contemporneo com o real.Esta uma crise que remonta a origem do drama moderno,a partir do sculo XIX, em autores como Tchekhov, Materlinck, Ibsen, Shaw, que j aventavam em suas obras da impossibilidade do formato institudo do drama em abarcar a complexidade da vida.Desde a Potica de Aristteles em seu tratado sobre a tragdia, passando pela Esttica de Hegel que qualifica o drama como o gnero que melhor condensa e assim totaliza o que h de mais caro na pica e na lrica, at chegar com a ideia de distanciamento como ferramenta de reflexo em Brecht, o drama historicamente se pautou em mimetizar o real referencial por meio de uma ao que se faz una pela concatenao de eventos do aqui-agoraerigidos pela lgica de causa-efeito. Nas dramaturgias modernas e contemporneas esse paradigma sofre uma crise e um procedimento de ruptura com um formato idealizado de drama, que se diz absoluto, conforme identificou Peter Szondi em Teoria do drama moderno, engendrando um processo cada vez mais intenso de problematizao das instncias de ao, tempo, espao, personagens, dilogo, e assim, esburacando por completo os espaos do texto, a composio da fbula e dialogando intensamente entre os gneros pico e lrico.Desde o princpio, o olhar que se pretende aqui realizar um dilogo entre o gnero drama, com o lrico, por meio da anlise da pea teatral AQUI. Mais do que identificar quanto do gnero lrico contamina a escritura destinada a cena entender como essa relao se retroalimenta e colabora para explicar essa sensao de crise dos gneros, que antes de ser apocaltica, tem-se um posicionamento reflexivo frente ao que compreendemos como arte.Falar de poesia, como falar da manifestao artstica, de modo geral, falar de ns mesmos e da constituio de nosso ethos poltico. Uma prova disso que a ideia muito questionvel de sua autonomia, sua suposta averso ao poltico, combinada aqui e ali com a acusao de inpcia ou de soberba autoritria, continua sendo, at hoje, uma de suas mais frteis contribuies ao pensamento crtico. (SISCAR, 2013)

Em seu campo estrutural, ainda dialogando de forma tnue com o gnero, a pea se organiza dramaticamente (!) em oito tempos em que brotam personagens/ figuras, ora na instncia humana (figura feminina), ora no humana (animal demarcando territrio Meu mijo fica mais escuro quando como demais. Meu mijo nas folhas elas mais escuras. Tem cheiro mais forte.), e at no biolgica, como no Tempo 7 em que nos deparamos em um corpo vivo em contato a um corpo de vidro Eu quero possuir o corpo de vidro. To imvel. Frio.Se o primeiro tempo marcado por mltiplas vozes, uma preparao para o que vir posteriormente: os outros sete tempos. Aps uma rubrica indicando uma relao sensorial com a luz (Luz muito intensa), (Que cega), h uma construo textual que dialoga com as lacunas do texto, e as lacunas da folha em branco, e desdobra essas personagens/ figuras (!) em uma mirade de sensaes e um trabalho com a linguagem em carter sensorial (viso, tato e audio).O texto promove um estado de instabilidade formal (em relao ao drama enquanto gnero) e ativa a pulso de vida (carne, dente, mordida, mastiga,engole, sugando, chupando, lambe) e apulso de morte (p, vidro, sangue podre). AQUI no corrobora com o regime representativo, mimtico, de imitao de um real referencial, e sim com o que Rancire (2009) pontua como regime do esttico.Esttico, porque a identificao da arte, nele, no se faz mais por uma distino no interior das maneiras de fazer, mas pela distino de um modo de ser sensvel prprio aos produtos da arte. A palavra esttica no remete a uma teoria da sensibilidade, do gosto ou do prazer dos amadores de arte. Remete, propriamente, ao modo de ser especfico daquilo que pertence arte, ao modo de ser de seus objetos. No regime esttico das artes, as coisas da arte so identificadas por pertencerem a um regime especfico do sensvel. Esse sensvel, subtrado a suas conexes ordinrias, habitado por uma potncia heterognea, a potncia de um pensamento que se tornou ele prprio estranho a si mesmo: produto idntico ao no-produto, saber transformado em no-saber, logos idntico a um pathos, inteno do inintencional etc.(RANCIRE, 2009, p. 32)

Pensando nesses termos, de um vis esttico, para analisar literariamente a dramaturgia contempornea, Zumthor quando nos coloca que introduzir nos estudos literrios a considerao das percepes sensoriais, portanto, de um corpo vivo, coloca tanto um problema de mtodo como de elocuo crtica, abre possibilidades de interpretao e compreenso dessas dramaturgias que dialogam profundamente no s com o corpo performtico, mas com o teatro, como uma instncia, o espao da prpria performance, em que essas novas escritas dramatrgicas so mais teatros da fala, da elocuo, da voz como parte de um corpo vivo que sofre as interferncias de um espao (teatro), cuja dinmica envolve o aqui-agora, um corpo que interpreta (ator real ou virtual, em uma leitura solitria) e uma platia/ leitor que dialoga e contaminado em carter retroativo por esse texto, em que pelo seu carter potico, orgnico, a poesia mais fsica do que intelectual. Importam aqui menos as estruturas que os processos e as pulses que as colocam (ZUMTHOR, 2014, p. 43)

E que faz o modelo dramtico vibrar e tencionar com a invaso do lrico (!)

Quando entramos em contato com a escritura de Fischer buscamos em um primeiro momento alguns resqucios do gnero dramtico (dilogo; a composio das cenas; instncias mnimas de tempo e espao, personagens de fsico e psicolgico, minimamente identificveis; conflito; ao; uma fbula paradigmtica cuja mecnica possa ser compreendida), ou simplesmente elaborar seu enredo, todas as nossas expectativas so problematizadas e colocadas em estado de suspenso, de estranhamento. A princpio o texto pode sugerir uma justaposio de poemas livres e prosas poticas em que o trabalho da palavra est em lidar com diticos que aproximam e justape as ideias de vida versus morte; uma mirade de sensaes que dialogam com o humano, o animal, o vegetal, o no biolgico.Mas em um terceiro momento, o texto deve ser recepcionado como um drama, obviamente radicalmente distante na instncia do drama rigoroso - pautado em uma tenso, mas ainda assim um exemplar do gnero dramtico, de dimenso dupla: o estudo do texto, o que chamamos literatura dramtica, e o estudo do espetculo, a outra face do fenmeno teatral.Emil Staiger (1975, p. 15) considera o tom da obra muitas vezes mais importante do que sua estrutura na determinao do gnero. Para ele, no existe um obra puramente lrica ou dramtica, pois qualquer obra autntica participa em diferentes graus e modos dos trs gneros literrios, e [...] essa diferena de participao vai explicar a grande multiplicidade de tipos j realizados historicamente. No caso do texto para teatro, a classificao nesse ou naquele gnero ou forma menos importante do que sua funcionalidade dramtica.Desta forma, AQUI operacionaliza a mimese como drama, problematizado uma potica da contemporaneidade, que abarca toda a complexidade do homem ordinrio, e para isso se apropria da lrica, das lacunas e do potencial de contrio extrema dos temas que o gnero lrico maximiza, fazendo com que no contato com o espectador/ leitor o texto vibre, centrifugue as possibilidades de existncia em mltiplas possibilidades de vida no aqui-agora que o prprio ttulo da obra intensifica.O texto vibra; o leitor o estabiliza, integrando-o quilo que ele prprio. Ento ele que vibra, de corpo e alma. No h algo que a linguagem tenha criado nem estrutura nem sistema completamente fechados; e as lacunas e os brancos que a necessariamente subsistem constituem um espao de liberdade: ilusrio pelo fato de que s pode ser ocupado por um instante, por mim, por voc, leitores nmades por vocao. Tambm assim, a iluso prpria da arte. A fixao, o preenchimento, o gozo da liberdade se produzem na nudez de um face a face. Diante desse texto, no qual o sujeito est presente, mesmo quando indiscernvel: nele ressoa uma palavra pronunciada, imprecisa, obscurecida talvez pela dvida que carrega em si, ns, perturbados, procuramos lhe encontrar um sentido. Mas esse sentido s ter uma existncia transitria, ficcional. (ZHUMTOR, 2014, p. 54)

Fischer ao utilizar-se do lrico contamina o drama com novas possibilidades expressivas, para alm do carter discursivo do gnero, que pretende construir uma ao dramtica originada no princpio de causa-efeito para ser atualizada pelo palco. A obra problematiza o prprio conceito de ao dramtica que caminha para desvendar um conflito engendrado pela fbula, para uma leitura de ao que abarca tanto o intrasubjetivo, o intersubjetivo e as instncias de carter sensrio-cognitivo, que coadunem com a ideia elabora por Merleau-Ponty ao analisar a produo artstica de Czanne de que a expresso do que existe uma tarefa infinita. E este procedimento de expresso, um procedimento de carter prazeroso, no hedonista, mas de mais arcaico, ritual da faceta humana, do tempo presente, que a produo artstica conserva na poesia, no potico, na interpretao intuitiva dos fenmenos e das relaes.Verdadeiro materialista histrico no aquele que sege ao longo do tempo linear infinito uma v miragem de progresso contnuo, mas aquele que, a cada instante, capaz de parar o tempo, pois conserva a lembrana de que a ptria original do homem o prazer. este o tempo experimentado nas revolues autnticas, as quais, como recorda Benjamin, sempre foram vividas como uma suspenso do tempo e como uma interrupo da cronologia; porm, uma revoluo da qual brotasse, no uma nova cronologia, mas uma mudana qualitativa do tempo (uma cairologia), seria a mais grvida de consequncias e a nica que no poderia ser absorvida no refluxo da restaurao. Aquele que, na epoch do prazer, recordou-se da histria como a prpria ptria original, levar verdadeiramente em cada coisa esta lembrana, exigir a cada instante esta promessa: ele o verdadeiro revolucionrio e o verdadeiro vidente, livre do tempo, no no milnio, mas agora. (AGAMBEN, 2005, p. 128, grifo meu)Assim, antes de decompor e explicar os procedimentos de composio da obra de arte utilizados por Fischer faz-se necessrio evidenciar que AQUI por sua prpria essncia, um drama em oposio ao paradigma historicamente constitudo, promove um debate quanto ao estado/ sensao de crise que o gnero drama e a prpria linguagem enfrentam, representada pelo dilema e os limites que essas instncias do humano tm ao expressar toda intensidade da existncia.Talvez o que mais coaduna com esse estado de coisas o paradoxo erigido pelo pensador hngaro Michael Polanyi que pontua que ns sabemos mais do que conseguimos explicar. Assim, quando tomamos contato com uma obra que do gnero historicamente constitudo (drama rigoroso)preserva uma vaga ideia de organizao em atos, nomeando-os por tempos; o uso mnimo de rubricas que parecem ter o cuidado de no quebrar com o fluxo de leitura do texto, comportando-se mais como catalizadores de sentido do que indicaes para direo/ encenao/ atuao, como leitores/ espectadores somos constantemente lanados em um estado de insegurana e instabilidade, ou seja, de crtica, no mais de aproximao catrtica ou distanciamento pico, mas sensvel-sensrio.O que o drama no-dramtico ganha ao se apropriar do lrico, o que Patrice Pavis pontua do texto potico, se bastar por si mesmo, sua autossuficincia, chegando a recusar outro suporte que no a ressonncia sonora na mente do leitor-ouvinte. Tal carter estrutural da poesia faz com que, no campo da cena, da emisso, da mmica, e da pirotecnia visual, seja assumido pelo leitor/ interprete uma performance e um posicionamento mais contrito, econmico.Em contraponto, quase que em estgio de oximoro, a entrada da poesia no teatro, e em extenso no drama, se deve ao fato de que:[...] a poesia obriga o espectador a uma outra escuta, o que beneficia tanto a poesia quanto o teatro. A poesia reencontra a oralidade, a corporalidade, a humanidade de textos quase sempre condenados ao segredo do papel e da voz interior. [...] Assim, o teatro abre uma outra via poesia: ao teatralizar-se, ao enunciar-se em pblico, a poesia reencontra suas origens na poesia oral [...] e a encenao encontra liberdade de atuao e obriga o espectador a abrir mo de sua preguia natural, do gosto pela identificao prazerosa ou pelo distanciamento protetor, para refletir sobre o que se passa nele, e isto, unicamente durante a enunciao do texto e para favorecer uma mediao interior, uma livre associao a partir da escuta dos poemas. (PAVIS, 2011, p. 294-295)

Deste modo, o avano ou domnio do lrico dentro do drama se configura na extrema problematizao da forma do gnero dramtico e uma relao mimtica com o real referencial que extrapolam o verossmil e o necessrio, colocando a literatura em outra ordem, em um estgio de devir, em um procedimento de escrita que faz com que os limites da prpria lngua tenham sua elasticidade testada.Pode-se observar em AQUI diferentes distribuies da mancha tipogrfica na folha de papel em branco, ora recuadas direita, ora esquerda, um trabalho com o tamanho da fonte, que no so aleatrios, sugerem uma leitura/ interpretao diferenciadas, um posicionamento frente ao texto mais crtico. Espaos entre as palavras so mais intensos em alguns tempos que em outros, sugerindo lacunas que o leitor dever ou no preencher com suas experincias, num contato mais sensitivo-sensorial que cognitivo-pedaggico de compreenso da realidade.As palavras so prenhes de significado, os termos justapostos, formando neologismos, promovem uma exploso de sentidos: pele negra- p negro corpo- garganta lngua dentes areia mar sangue podre carne sopro vento danar flutuar, no Tempo 1por exemplo, o mais longo dos tempos, e; em contraposio, pele fria vidro fino transparente imvel frio olhos congelados corpo de vidro rgido gritos cortessangue, no Tempo 7.Verifica-se em determinados tempos a condensao e o uso meticuloso no uso da palavra:

Sento na areiaCansado sem psOs olhos tambm morrendo o mar tambm me lambeA pele enrugandomais devagar

Queria tanto seus olhos

O mar to grande

distantemuito

(FISCHER, 2011)

Em outros momentos (atos?) a prosa, com vis potico, que domina, como uma forma contnua dentro da mecnica da prpria escrita da dramaturga em constantemente quebrar as expectativas do leitor e construir um drama problematizador do gnero dramtico, no campo formal, e que permita o leitor adentrar em certas nuances de uma possibilidade de existncia humana, no eixo temtico, que sente concomitante prazer e dor ao ter contato com outra forma de vida (?), como por exemplo, da expressividade de um corpo de vidro, tornando imanente uma pulso de vida e uma pulso de morte Passo a lngua no corpo de vidro. Prazer. Frio. Prazer frio rgido. Circunda. O prazer e o prazer quebra o vidro mais cada vez. Os golpes so quase gritos. Possuindo o corpo de vidro. O corpo meu? Exposto em cortessangue. (FISCHER, 2011)Sem pretender-se totalizante, pode-se considerar a proposta de AQUI mais alinhada ao que se nomeia, no campo de pesquisa do drama, de poema dramtico, pelo seu carter experimental, de margem, cuja liberdade a da forma e de uma linguagem que ganharia vida e permitiria nomear as coisas.[...] o poema dramtico substitui a observao realista por uma viso fantasista, irreal ou interiorizada do mundo, privilegiando a sugesto e a emergncia de uma voz lrica. Da a importncia do imaginrio e da linguagem metafrica ou polivalente; da, s vezes, a indiferena em relao s condies materiais da representao. Embora o poema dramtico do sculo XIX tenda a se aproximar do poema, enquanto o do sculo XX revela-se mais experimental e aberto, ele antecipa a criao das formas hbridas atuais e prepara uma conscincia de espectador. Podemos consider-lo uma das manifestaes da crise do drama: pretendendo-se contestatrio, e escrevendo-se contra um certo teatro, ele est procura de outra teatralidade. Sua liberdade constitui sua fecundidade, pela diversidade das formas e da linguagem, e pelas possibilidades oferecidas, por ocasio da passagem cena. (JOLLY & SILVA, 2012, p. 141-142)

Assim, mais que uma obra extraordinria, como de pronto foi anunciada por uma parcela da crtica especializada, AQUI da jovem Fischer um exemplo de resistncia do drama, do prprio fazer potico em toda sua extenso, da literatura em si, em que a crise dos gneros, o hibridismo, os procedimentos de problematizao da sintaxe da prpria lngua so um ato de sobrevivncia.Se o drama sobreviveu e sobrevive at hoje pela sua capacidade de evoluir e se adaptar frente os anseios da sociedade: se erigindo para atingir o verossmil e o necessrio (paradigma aristotlico-helegiano); representar ou negar a realidade; ou, no drama moderno e contemporneo, proceder com a problematizao de suas prprias convenes e configuraes, e mais intensamente, manobrando com os limites da prpria lngua. Esse estgio de crise impulsiona o dramaturgo, em um dilogo direto com a tradio e o cnone, manobrar e dilatar a sintaxe da lngua[footnoteRef:1] para produzir efeitos estticos de carter sensrio-cognitivo, em detrimento a um paradigma de efeito-causalidade (carter lgico dedutvel da realidade), fazendo com que um dos elementos mais importante para a construo do drama, a fbula, adquira um nvel de porosidade, a ponto de se aventar a sua ausncia em determinadas dramaturgias contemporneas. [1: Escrever no certamente impor uma forma (de expresso) a uma matria vivida. A literatura est antes do lado do informe, ou do inacabamento, como Grombrowicz o disse e fez. Escrever um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matria vivvel ou vivida. um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o visvel e o vivido. A escrita inseparvel do devir: ao escrever, estamos num devir-mulher, num devir animal ou vegetal, num devir-molcula, at num devir-imperceptvel. [...] A lngua tem que alcanar desvios femininos, animais, moleculares, e todo desvio um devir mortal. No h linha reta, nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe o conjunto de desvios necessrios criados a cada vez para revelar a vida das coisas. (DELEUZE, 1997, p. 11-12, grifo meu)]

Torna-se cada vez mais imperceptvel identificar um fio condutor (um fio de fbula), nessas dramaturgias, que ao subverter a lngua, buscam por meio de uma sintaxe mnima ou mltipla, verter em pulso criativa toda a intensidade da vida ordinria do homem contemporneo, seja no exato momento de dispor na mancha tipogrfica uma nica palavra-texto prenhe de significados, seja problematizando ao extremo os elementos que identificam como tal o texto dramtico, ideologicamente configurados, ao longo do tempo, e cristalizados no drama absoluto de Szondi ou drama rigoroso de Rosenfeld, so eles, o conflito, a ao, o dilogo intersubjetivo no tempo presente, a personagem, o tempo, o espao, as rubricas, as divises, etc.. uma marcha inexorvel em busca de novas formas para o drama contemporneo, a dramaturgia do descontnuo segundo Ubersfeld, que teve seu incio com a aventura do drama moderno, em dramaturgias ocidentais do final do sculo XIX e incio do sculo XX.

REFERNCIAS

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