o elefante, a formiga e o estado - fe.uc.pt · um filme de jean michel meurice documentário, 2004...

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CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC DOC TAGV / FEUC INTEGRAÇÃO MUNDIAL, DESINTEGRAÇÃO NACIONAL: A CRISE NOS MERCADOS DE TRABALHO O ELEFANTE, A FORMIGA E O ESTADO UM FILME DE JEAN MICHEL MEURICE DOCUMENTÁRIO 2004 Supporters au stade Bollaert © ARTE France / Cinétévé / Anthracite, 2003.

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CICLO INTEGRADO DE CINEmA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUCDOC TAGV / FEUC

INTEGRAçãO mUNDIAL, DESINTEGRAçãO NACIONAL: A CRISE NOS mERCADOS DE TRABALhO

O ELEFANTE, A FORmIGA

E O ESTADOUm FILmE DE JEAN mIChEL mEURICE

DOCUmENTáRIO 2004

Supporters au stade Bollaert © ARTE France / Cinétévé / Anthracite, 2003.

CICLO INTEGRADO DE CINEmA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUCDOC TAGV / FEUC

INTEGRAçãO mUNDIAL, DESINTEGRAçãO NACIONAL: A CRISE NOS mERCADOS DE TRABALhO

http://www4.fe.uc.pt/ciclo_int/2007_2008.htm

GLOBALIzAçãO E DESLOCALIzAçõES:A EUROpA SEm mECANISmOS DE pROTECçãO AO EmpREGO

O ELEFANTE, A FORmIGA E O ESTADOUm FilmE DE JEAn miChEl mEUriCE

DOCUmEnTáriO, 2004

DEbATE COm A pArTiCipAçãO DE:JOSé ANTÓNIO CORREIA pEREIRINhA

pEDRO hESpANhACLARA mURTEIRA

TEATrO ACADémiCO DE Gil ViCEnTE13 DE DEzEmbrO DE 2007

Parte I. Metaleurop e a Globalização 1. Um pouco de história da indústria de fundição – o caso de Metaleurop2. O negócio da liquidação de Metaleurop Nord3. Terras e personagens desta história3.1. A reportagem Suiça3.2. Inquérito sobre a face sombria da prosperidade helvética3.3. Centro da galáxia. Glencore3.4. Os Russos e os Paraísos Fiscais: Crown Ressources AG3.5. A tomada de posição de WWF, World Wide Fund For Nature3.6. Um homem, um nome

Parte II. Um Homem, um Nome, um Sistema de Redes de Influência: Inquérito sobre uma Galáxia Opaca, de Métodos Violentos1. As incríveis redes de Marc RichAmeaçado de cento e quarenta e cinco anos de prisãoÉ um corretor de génioÉ mais forte que ele, não consegue deixar de fazer o trading2. Os piratas da gestãoEstas pessoas são ricas, poderosas, quase intocáveisNão havia nenhuma fatalidade na derrotaUma dívida de 125 milhões de eurosTrata-se de uma separação cínicaMarc Rich, o fugitivoUm dos seus corretores compra uma ilha nas Bahamas para se retirarCarregamentos afundados

Parte III. Crónica e Análise duma Luta Bem Singular no Contexto da GlobalizaçãoDignidade e justiçaMetaleurop viverá!Todos juntosTrabalhador, hojeDo defensivo ao criativo. A criação de uma organização original: Choeurs de fondeurs. Continuar todos juntosChoeurs de fondeurs, uma associação diferente das outrasConclusãoAssociação dos ex-assalariados de Metaleurop Nord sobre o filme Metaleurop-Germinal

Parte IV. O Duplo Sofrimento dos DesempregadosO encerramento, uma perda irreparável

Enfants dans le stade Bollaert © ARTE France / Cinétévé / Anthracite, 2003. Ouvriers grévistes © ARTE France / Cinétévé / Anthracite, 2003.

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pArTE i.mETALEUROp E A GLOBALIzAçãO

Extraído de WikipédiaDisponível em http://fr.wikipedia.org/wiki/Metaleurop_Nord

1. Um pOUCO DE hISTÓRIA DA INDúSTRIA DE FUNDIçãO O CASO DE mETALEUROp

A fábrica Metaleurop Nord, conhecida sob o nome de fábrica de Noyelles-Godault, está situada sobre as regiões de Noyelles-Godault e de Courcelles-les-Lens (Pas-de-Calais). Foi construída em 1893 por uma companhia mineira francesa: a Sociedade Anónima das Minas de Malfidano (criada em Paris em 1867), que não tinha nenhuma unidade metalúrgica para a produção de zinco.

A fábrica de Noyelles-Godault tratava a calamina calcinada (carbonato de zinco), da grande mina com o nome de Malfidano na (Sardenha) pelo método térmico dos cadinhos horizontais, único método em uso então e fortemente consumidor de carvão. O sítio comprado à Companhia das Minas de Dourges era então servido em boas condições pelo caminho de ferro, por estrada e pelo canal de Haute-Deule, donde chegavam os minérios de Malfidano, pelo porto sardenho de Caloforte. Não somente a produção deste novo metal exigia muito carvão, como o mercado francês e, sobretudo, parisiense, do zinco para as coberturas estava em plena expansão e era insuficientemente abastecido pelas fábricas francesas, incluindo as fábricas vizinhas de Auby criada em 1868 pela Companhia Real Asturiana das Minas e a de Viviers, construída em 1858. A produção de chumbo a partir de minério continuou a ser ínfima até 1936, data da construção de uma fábrica moderna para tratamento de chumbo nesta zona industrial. Durante a Grande Guerra, a fábrica situada a uma quinzena de quilómetros da frente foi utilizada pelo ocupante alemão como plataforma de distribuição de munições e mesmo provavelmente como fábrica de munições. Durante a batalha de Vimy, a fábrica sofreu pesados danos pela artilharia dos aliados

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e foi teatro de várias batalhas aéreas, onde se destacou o Barão Vermelho, o Barão Manfred von Richthofen que, com o seu esquadrão baseado em Douai-Brayelles, abateu vários aviões ingleses perto desta fábrica e frequentou assiduamente o “Castelo”, residência do Director da fábrica de Malfidano, onde o comando do Primeiro Corpo do exército Bávaro se tinha instalado. A fábrica, já fortemente destruída foi pilhada e arrasada pelo exército alemão na retirada. Em 1920, a Companhia Anónima das Minas Malfidano revendeu as ruínas desta fábrica e os “direitos aos prejuízos de Guerra” a outra companhia francesa, a Sociedade Mineira e Metalúrgica de Penarroya criada em 1881 pela Companhia Rothschild e irmãos e pelo genial politécnico Charles Ernest Ledoux. De 1922 a 1935, a fábrica de zinco foi reconstruída de modo idêntico e de acordo com o mesmo método térmico. Um atelier de pressão e de laminação do chumbo e do zinco começou a ser construído sobre os primeiros terrenos pantanosos, depois de tratados, que se encontravam sob a ameaça de derrocadas de minas e de munições por explodir. Uma grande chaminé de chumbo, importada dos EUA com uma estrutura metálica típica de arranha céus foi erigida e tornada o símbolo e o ponto mais elevado da fábrica até 1936, data em que se construir a primeira grande fábrica de chumbo na zona com a sua grande chaminé de 100 metros. Em 1935-1936, a fábrica moderna de produção de chumbo é construída sobre um método original, desenvolvido na zona, mas a Guerra da Espanha rebenta na Andaluzia e a linha e caminho de ferro que liga a fábrica de Penarroya - Pueblonuevo (a fábrica andaluza) - e as minas, é cortada com a guerra. A Sociedade Mineira e Metalúrgica de Penarroya está à beira da falência, enquanto a fábrica de chumbo de Noyelles-Godault recentemente construída deixou de ter matérias primas para o seu arranque. A sociedade Penarroya deverá lançar-se na compra de minério de chumbo e desenvolver a investigação mineira, em plena crise internacional. Em 1961-1962, uma nova fábrica para tratamento de zinco é construída no território de Courcelles-les-Lens com um método moderno e inovador: o método térmico Imperial Smelting Process. Os fornos do antigo método são parados progressivamente. Em 1970 todos os filtros de gases são substituídos ou modernizados. De 1975 a 1993, a fábrica volta a tratar o concentrado de zinco da mina de Saint-Salvy, contendo germânio e minérios de zinco ricos em índio 1. A produção de germânio puro e de índium de elevada pureza

1 O índio (do latim indicum, índigo ou anil) é um elemento químico de símbolo In de número atômico 49 ( 49 prótons e 49 elétrons ) e de massa atómica igual a 114,8 u. À temperatura ambiente, o Índio encontra-se no estado sólido. É um metal do grupo 13 ( 3 A ) da classificação periódica dos elementos. É pouco abundante, maleável, facilmente fundível, quimicamente similar ao alumínio e gálio, porém mais parecido com o zinco. A principal fonte de obtenção do índio é a partir das minas de zinco. Usado na fabricação de telas de cristais líquidos e na formação de películas delgadas que servem como lubrificantes. Extraído de: Wikipedia. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%8Dndio_%28elemento_qu%C3%ADmico%29.

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é estudada, desenvolvida e por último conseguida. A fábrica de Noyelles-Godault torna-se assim a primeira fábrica do mundo na produção de germânio (20 toneladas por ano) e na de índium (60 toneladas por ano). Desde 1980 a Sociedade Mineira e Metalúrgica de Penarroya e a quase totalidade dos grupos mineiros e metalúrgicos europeus estão em grande dificuldade. Devem reconstruir todos os equipamentos antipoluição, estão perante uma baixa dos preços dos metais e uma baixa do dólar e têm de enfrentar a concorrência até ao limite dos países do Leste ou dos países em vias de desenvolvimento. Os europeus tentam unir-se para propor um preço único do zinco aos produtores europeus. Tratava-se de lutar contra a desregulação e as actuações de novos actores, como os corretores, como a companhia Marc Rich Co. AG, que se tornou em 1993 Glencore Internacional AG. A Glencore Internacional AG tem a sua sede social em Baar, no cantão de Zoug, conhecido por ser ao mesmo tempo um paraíso fiscal permitindo assim assegurar o sigilo bancário e por proteger misteriosas companhias e oligarcas russos. As acções de Metaleurop estavam realmente na posse duma das sucursais de Glencore localizada nas Bermudas, outro paraíso fiscal: Glencore Bermudas.

As companhias europeias foram condenadas pela Comunidade Europeia por “acordo ilícito” ao tentarem então associarem-se num único grupo europeu de não ferrosos: em 1988, somente a Sociedade Penarroya e as actividades de não-ferrosos da Preussag puderam ser agrupados num novo grupo Europeu: Metaleurop. Em 1990 cria-se uma fábrica de tratamento de todas as águas residuais do complexo industrial. Em 1993, a fábrica de produção de chumbo é equipada com uma unidade inovadora de dessulfuração dos gases. Em 1993-1994 explode uma coluna de purificação (destilação) do zinco. Este acidente grave será seguido por um segundo sobre a mesma coluna reconstruída. Os dois acidentes provocaram 11 mortes, o encerramento total do atelier de refinação e o encerramento parcial da fábrica de zinco, assim como a saída do accionista principal Preussag substituído pelo corretor bem conhecido, Marc Rich AG. criada em 1974 e rebaptizada depois Glencore Internacional AG. A Metaleurop transforma em filiais todas as suas actividades e compra uma “Sociedade Écran” que se tornará na Metaleurop-Nord. A sociedade mãe transfere assim para as contas da sua filial, a Metaleurop-Nord, as perdas ligadas aos acidentes. Em 1996 o atelier de refinação do zinco é reconstruído totalmente e o corretor Glencore torna-se ao mesmo tempo o accionista principal (mas não responsável), o único responsável (por Metaleurop Comercial) e torna-se o concorrente da Metaleurop SA, dadas as suas outras aquisições europeias. Aquando do seu encerramento, a Metaleurop Nord refinava zinco e ainda outros metais (entre os quais chumbo, cobre, antimónio, índium, germânio, ouro, prata, cádmio, etc.). Nos anos 1990 esta fábrica era o principal empregador local daquela zona, na bacia mineira do Norte de Pas-de-Calais,

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em plena reconversão, após ter sido atingida pela crise da indústria do carvão. Pouco antes da sua declaração de falência, depois do seu abandono pela sociedade mãe Metaleurop, a Metaleurop Nord assegurava a partir de minérios, a produção de dois terços da produção francesa de chumbo (150.000 toneladas), um terço da de zinco (100.000 toneladas), a totalidade da de germânio (20 toneladas) e de índium (50 a 70 toneladas) e era então a mais importante fábrica, neste campo, no mundo. A produção de chumbo reciclado provém na sua quase totalidade do reprocessamento das baterias usadas com chumbo e é assegurada pelas fábricas da Sociedade Metaleurop SA, rebaptizadas Recylex de Villefranche e de Escaudoeuvre, e também pelas fábricas de GDE (que ficaram célebres pelas aventures desastrosas do seu Presidente Claude Delfin a confirmar o nome na Costa de Marfim) e por uma outra fábrica francesa importante para esta reciclagem (Metal-Blanc em Bourg Fidèle) que conheceu dificuldades ligadas aos resíduos da fábrica que ela gerava. Actualmente todas as grandes sociedades mineiras e metalúrgicas estão em vias de desaparecimento e uma sociedade gigante acaba de nascer: Glencore-Xstrata, transformada na maior empresa na Suíça à frente de Nestlé com mais de 100 milhares de milhões de volume de negócios. As actividades de Metaleurop foram absorvidas por esta companhia transnacional, que acaba de se formar com o oligarca Oleg Derispaka e as suas companhias russas Sual e Rusal e Century-Glencore, o maior grupo mundial de alumínio, dirigido por um homem da Glencore: Andrew Gordon Michelmore. Este último tornou-se famoso por ter tentado entregar a maior reserva de urânio do mundo (30%), pertencente à sociedade WMC Resources à Glencore. O valor potencial do grupo está estimado entre 25 e 40 milhares de milhões de dólares. O novo gigante ultrapassará assim o actual número um do sector, o americano Alcoa, assim como o grupo canadiano Alcan, com um volume produção igual. A criação deste novo gigante foi previamente aprovada pelo Presidente russo Vladimir Putine e admite-se ambições em direcção a outros metais como o cobre, o níquel, sugerindo-se assim uma diversificação do tipo da do grupo mineiro BHP Billiton. Na tormenta mundial causada pelo depredador, o grande grupo Pechiney foi absorvido pela companhia canadiana Alcan.

Os resíduos da fábrica Metaleurop eram seguidas pela Direcção Regional da Indústria, da Pesquisa e da Ambiente (DRIRE) e pela Direcção Regional do Ambiente (DIREN) responsáveis pela qualidade da água na região, bem como pela Agência do Ambiente e do Controlo da Energia (L’agence de l’environnement et de la maîtrise de l’énergie-ADEME). De acordo com o Observatório Regional da Saúde (ORS), em Outubro de 2002, 13% das crianças despistadas clinicamente nas regiões em redor da fábrica acusavam uma taxa de impregnação elevada, e em Evin-Malmaison, situada sob os ventos dominantes, esta taxa atinge mesmo os 27%.

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Em Janeiro de 2003, a Metaleurop SA fechou brutalmente a sua sucursal Metaleurop Nord, despedindo os seus 830 assalariados sem pré-aviso, sem plano social, e sem tomar a seu cargo a descontaminação da zona. Um movimento de greve, acções em justiça, e as ajudas das colectividades seguiram-se-lhe, enquanto o grupo Glencore nega toda e qualquer responsabilidade.

A cadeia das responsabilidades parece dissipar-se na vila de Zoug onde está sediada a Glencore, o operador principal da Metaleurop. Glencore é um conglomerado suíço especializado na produção e na corretagem de metais, conhecida dos operadores financeiros pela sua discrição e pela opacidade das suas operações, em especial em África, no golfo da Guiné.

Após uma queixa por “se ter posto em perigo a vida de outrem” e pela “não assistência às pessoas em perigo”, por parte do Comité de defesa de Liève, devido a numerosos casos de saturnismo 2 em redor da fábrica, nomeadamente em crianças, e após esta liquidação inesperada, foi aberto a 13 de Fevereiro de 2006 um inquérito judicial por “abusos de bens sociais” e “dissimulação de abusos de bem sociais”.

O inquérito preliminar iniciou-se a partir de 24 de Janeiro de 2005 pelo Tribunal de Paris e este surpreendeu-se com a venda (sem nenhum concurso) por Glencore da sua fábrica de electrólise de zinco de Nordenham, no norte da Alemanha. Montante da transacção realizada com o grupo Xstrata (uma empresa mineira suíça igualmente baseada à Zoug): 100 milhões de USD, em benefício do seu accionista de referência, a Glencore, que possui 40%!

2 O saturnismo, ou plumbismo é o nome dado à intoxicação pelo chumbo. Ela afeta milhões de pessoas em todo o mundo como resultado da poluição ambiental, além de outras espécies, como as aves aquáticas. Em humanos, as principais fontes de intoxicação são as tintas que contém chumbo, baterias de automóveis, pilhas, soldas, e emissões industriais. Em outras espécies, somam-se o chumbo usado em projéteis para caçada (que também são uma causa de saturnismo em humanos com projéteis alojados) e como peso para linhas de pesca, que são ingeridos por peixes, por sua vez ingeridos pelas aves. Em humanos, a intoxicação pode levar a quadro clínico evidente ou a alterações bioquímicas mais sutis. Os sintomas mais comuns são dores abdominais severas, úlceras orais, constipação, parestesias de mãos e pés e a sensação de gosto metálico. O exame físico pode demonstrar a presença de uma linha de depósito de chumbo na gengiva e neuropatia periférica. Outras alterações incluem anemia (por porfiria secundária e inibição da medula óssea), disfunção renal, hepatite e encefalopatia (com alterações de comportamento, redução no QI). Extraído de: Wikipedia. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Saturnismo.

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2. O NEGÓCIO DA LIQUIDAçãO DE mETALEUROp NORD

Metaleurop tornou-se muito conhecida aquando da liquidação da sua sucursal Metaleurop Nord, em Março de 2003, que explorava uma fundição em Noyelles-Godault. Uma longa controvérsia envolveu o despedimento dos 830 assalariados, e o abandono de um sítio considerado como o mais poluído em França.

A filial do Norte de França estava então à beira da falência, apesar dos recursos do seu principal accionista, e isto enquanto que devido à enorme procura da China em especial de metais, o preço dos metais estava em progressão regular. A filial foi colocada sob o poder judicial em Novembro de 2003.

Paralelamente, uma acção em justiça dos liquidadores e do Comité de empresa de Metaleurop Nord conduz que o Tribunal de Recurso de Douai estenda a liquidação da sucursal à sua sociedade mãe, num acórdão de 16 de Dezembro de 2004. O tribunal com efeito considerou que Metaleurop Nord não era independente de Metaleurop. A 6 de Abril de 2005, o tribunal de grande instância de Béthune atribui a retoma de Metaleurop a três grupos industriais. Mas a 19 de Abril, o acórdão do Tribunal de Recurso de Douai é quebrado. O procedimento de retoma fica, por conseguinte, caduco. O processo chega ao Tribunal de Recurso de Paris, que denega os liquidadores e o Comité de empresa, a 11 de Outubro de 2005.

Metaleurop põe em prática num plano de continuação que lhe permite inverter espectacularmente a situação. A 21 de Janeiro de 2006, o grupo volta a ser, outra vez, cotado na Bolsa de Paris, após dois anos de suspensão.

3. TERRAS E pERSONAGENS DESTA hISTÓRIA

Zoug é a capital suíça de corretagem de matérias primas. Nela estão sediadas várias empresas desta história, como Glencore, Crown Resources, Xstrata.

Glencore é uma empresa de corretagem de matérias primas, situada na Suiça, em Zoug, no cantão de Zoug. Foi fundada por Marc Rich, homem de negócios diabólico condenado nos Estados Unidos, por violação do embargo.

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Nas suas actividades de corretagem sobre petróleo, Glencore foi a iniciadora do mecanismo dos pré-financiamentos petrolíferos que permitem a um pais africano endividar-se sobre os seus rendimentos futuros, frequentemente em benefício dos seus dirigentes. Glencore compra e liquida a sociedade Metaleurop SA e a sua filial Metaleurop Nord.

Glencore é acusada por Paul Volcker de ter pago comissões a Saddam Hussein na questão do Petróleo contra alimentação e Xstrata com Glencore foram ambas acusadas pela Televisão Suiça de terem arrasado vilas inteiras na Colômbia com a cumplicidade do exército e do respectivo Governo no site carbonífero de Cerrejon.

3.1. A REpORTAGEm SUIçA

Zoug é o paraíso fiscal suíço por excelência. É aqui que empresas, como a Glencore, fazem subir vertiginosamente os seus lucros, lucros realizados no mundo inteiro. Em que condições? Desde há alguns meses, a multinacional suíça provoca a tempestade na Colômbia. Co-proprietária de imensas minas de carvão, a Glencore é acusada de ser indirectamente responsável pela expulsão de aldeões e por violações dos direitos do homem.

3.2. INQUéRITO SOBRE A FACE SOmBRIA DA pROSpERIDADE hELvéTICA

Zoug, é porto de abrigo de inúmeras holdings e sociedades de caixas de correio. A sua prosperidade actual, Zoug deve-a aos comerciantes de matérias primas, aos corretores. A sua palavra de ordem: a discrição. Estes homens, os corretores invisíveis, os traders, são ao mesmo tempo especuladores e especialistas em metais, em matérias primas ou em produto petrolíferos. É graças aos corretores que Zoug se transformou num dos maiores centros comerciais do mundo.

3.3. CENTRO DA GALáxIA. GLENCORE

No centro desta casta endinheirada, figura o império Glencore. Agrupa todas as antigas sociedades de Marc Rich, um goldenboy procurado pela justiça americana por evasão e fraude fiscal, conspiração e comércio com o inimigo (o Irão de Khomeny dos anos 80), e que foi agraciado por Bill Clinton em 2001. Hoje, Glencore é a empresa suíça mais importante. O ano passado, realizou um volume de negócios de 90 mil milhões de francos, mais que a Novartis e mesmo mais que a Nestlé.

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Os seus negócios e, por conseguinte, os seus lucros, Glencore realiza-os nos quatro cantos do globo, entre os quais na Colômbia. É co-proprietária das minas de carvão do Cerrejon, uma das maiores minas a céu aberto do mundo. Para assegurar a ampliação da mina, aldeias inteiras foram arrasadas e os seus habitantes expropriados pela força, com a cumplicidade das autoridades e do exército. Em Bogotá, o sindicato dos mineiros, dirigido pelo seu presidente Francisco Ramirez, acusa, por conseguinte, Glencore, de corrupção e de violação graves dos direitos do homem. O outro tipo negócio que enche as crónicas é o caso do povo indiano Wayùu que foi expulso pelos paramilitares colombianos das terras que ocupavam desde a noite dos tempos. Um massacre no qual uma unidade do próprio exército é implicada, uma unidade habitualmente “empregada” pela mina para supervisionar as suas instalações.

Regresso a Zoug. Debora Barros Fince, a representante do Wayùu, ela própria perdeu parentes no massacre da sua aldeia, decidiu vir em pessoa à sede de Glencore de modo a que a companhia reagisse aos acontecimentos que estão ligados à exploração da mina. Tenta igualmente interpelar o Parlamento de Zoug de modo a que intervenha junto da sociedade incriminada. Mas, em Zoug, a hora não é para a autocrítica. O governo prepara uma nova baixa de impostos para as holdings. Isto leva a acreditar que o Estado quer incentivar as empresas que, como a Glencore, parecem fechar os olhos sobre a precariedade e sobre a violência.

3.4. OS RUSSOS E OS pARAíSOS FISCAIS: CROwN RESSOURCES AG

Crown Resources AG é uma companhia de corretagem petrolífera (trading). É uma sucursal do grupo russo Alfa, domiciliada na cidade de Zoug, capital suíça da corretagem das matérias primas, e tem escritórios em Londres. Crown Resources AG esteve previamente instalada em Gibraltar.

Pouco depois do naufrágio do Prestíge, Alfa-Eco Group (Alfa), para estar segura de não inquietado com este naufrágio, revendeu Crown Resources AG a vários dos seus quadros que compraram o conjunto das acções e rebaptizaram a empresa. Crown Resources AG deixou pois de ter existência legal aquando do inquérito sobre o naufrágio. O gigante russo Alfa-Eco Group é activo nos negócios sobre petróleo, banca, telecomunicações.

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Steven Rudofsky foi o proprietário de Crown Resources AG desde Julho de 2002. É um antigo quadro da sociedade Marc Rich Investments, domiciliada também em Zoug, no cantão de Zoug. Foi ele o fretador do petroleiro Prestige naufragado ao largo das costas da Galiza em 2002. Para escapar às investigações e sobre as ordens do proprietário russo Alfa, afundou a sociedade Crown Resources AG.

Xstrata é uma empresa mineira suíça cotada na Bolsa de Londres (FTSE 100) e na Bolsa de Zurique (SWX: XTAN). É um importante extractor de cobre, de carvão, de crómio ferroso, de vanádio, de zinco e também de ouro, chumbo e prata, embora nestes três últimos produtos seja a uma pequena escala.

Tem sede em Zoug, na Suíça, opera em oito países: Austrália, Argentina, Colômbia, Alemanha, Peru, África do Sul, Espanha e Reino Unido. Empregava, em 2006, 26.000 pessoas.

Em 2005, teve um volume de vendas de mil milhões de USD, com lucros no montante de 1,7 mil milhões de USD. Desde Março de 2002, passou de uma capitalização bolsista cerca de 2 mil milhões de USD a cerca de 30 mil milhões USD em Maio de 2006. O seu mais importante accionista (34.72 %) é Glencore Internacional AG.

Em 2003, duplicou de dimensão adquirindo, por cerca de 4,9 mil milhões AUD, a empresa mineira australiana MIM Holdings (cobre, zinco e carvão). Contudo, não conseguiu adquirir a empresa australiana WMC Resources em 2005, adquirida por BHP Billiton, a maior empresa mineira actual. Em Agosto de 2005, adquire 19,9% de Falconbridge. Contudo, em Junho de 2006, Phelps Dodge e Inco propõem-se comprar Falconbridge, opondo-se assim à tentativa de aquisição por Xstrata.

A 20 de Julho de 2006, aumenta a sua oferta sobre Falconbridge para 19,2 mil milhões USD.

Glencore e Xstrata, (Xstrata, é uma sociedade que pertence parcialmente a Glencore) são denunciadas, na Colômbia dada a sua prática sobre a zona de exploração das minas de carvão do Cerrejón, de se já se falou anteriormente, assim como sobre a terrível questão do povo índio Wayùu.

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Além disso, o projecto Koniambo, situado na província do norte da Nova Caledónia (zona de Koné), está actualmente na sua posse para a extracção do níquel e, em menor escala, do cobalto. Estas empresas farão naturalmente pressões imensas sobre os meios políticos da Nova Caledónia, para começarem pelas formações florestais e para-florestais sobre solos ultramáficos(solos ricos em ferro e magnésio). Em Maio de 2007, a WWF publicou um documento de posicionamento, soba forma de 16 recomendações chamando à atenção as instâncias de decisão, para a necessidade do respeito pelos homens e pela biodiversidade.

3.5. A TOmADA DE pOSIçãO DE wwF, World Wide Fund For nature

Extraído de WWF, “L’avenir de la Nouvelle-Calédonie suspendu à des batailles financières internationales autour du nickel”, Comunicado de Imprensa, WWF França, Paris, Julho, 2006.

Disponível em http://www.wwf.fr/presse/(offset)/1/(month)/7/(year)/2006.

Comunicado:

O futuro de dois grandes projectos mineiros na Nova Caledónia (Gore e Koniambo) conduzidos pelas sociedades canadianas Inco e Falconbridge estão suspensos de manobras financeiras obscuras. OPA e anti-OPA entre diferentes conglomerados sucedem-se e ninguém sabe quem irá explorar estas reservas.

A WWF está fortemente preocupada com esta situação porque as futuras escolhas serão ditadas pelos interesses do accionista maioritário, com o risco de se ter pouco em conta as questões ambientais e sociais. Quem assumirá a responsabilidade duma catástrofe ecológica que estes projectos, de riscos fortemente sub-estimados, parecem anunciar?

A mundialização desenfreada e a preservação do meio ambiente raramente estão ligadas, para prejuízo das populações locais. A Nova Caledónia dispõe dum conjunto de características raras, entre as quais uma biodiversidade única no mundo, de que ela terá necessidade a longo prazo.

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3.6. Um hOmEm, Um NOmE

Marc Rich é um homem de negócios bastante controverso. Emigrou para os Estados Unidos, durante a Segunda Grande Guerra. Acumula as nacionalidades americanas, espanhola e israelita e vive no cantão de Zoug na Suiça.

Especialista de corretagem das matérias primas (trading) é o fundador da empresa de corretagem Glencore, também sediada em Zoug, e da empresa Marc Rich Investments.

Ganhou uma parte da sua fortuna contornando o embargo sobre o Irão, que foi imposto depois da tomada de reféns americanos na Embaixada dos Estados Unidos em Teerão, a 4 de Novembro de 1979.

Por isto foi perseguido e condenado nos EUA, mas estava refugiado na Suiça, que recusou a sua extradição solicitada pelos Estados Unidos. Marc Rich instala a sede da sua sociedade em Zoug.

De 1983 a 2001 Marc Rich figurava na lista dos fugitivos mais procurados pelo FBI. A 20 de Janeiro de 2001, algumas horas antes de abandonar a Presidência, Bil Clinton num dos seus últimos actos oficiais como Presidente dos Estados Unidos amnistiou Marc Rich, o que desencadeou um escândalo político que se ampliou ainda mais quando se soube que Denise Rich tinha feito donativos de um milhão de dólares para o Partido Democrata e para a Fundação Clinton.

© ARTE France / Cinétévé / Anthracite, 2003.Petite fille au pied d’un pylone © ARTE France / Cinétévé / Anthracite, 2003.

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pArTE ii.Um hOmEm, Um NOmE, Um SISTEmA DE REDES DE INFLUêNCIA: INQUéRITO SOBRE UmA GALáxIA OpACA, DE méTODOS vIOLENTOS

Montagem a partir de:Vincent Nouzille (2003), “Les flibustiers du management”,

L’Express, 27 de Março. Disponível em http://www.lexpress.fr/info/economie/dossier/glencore/dossier.asp?ida=386363.

Vincent Nouzille, 2001, “Les incroyables réseaux de Marc Rich”, L’Express, 8 de Março. Disponível em http://www.lexpress.fr/info/economie/

dossier/glencore/dossier.asp?ida=386368.

1. AS INCRívEIS REDES DE mARC RICh

Há perdões que são arrasadores. No entanto, esta vez, Marco Rich acreditava ter enfim a sua redenção. Perseguido desde 1983 por fraude fiscal e contorno de embargo pela justiça americana, este negociante de matérias primas, que se tornou cidadão espanhol, depois israelita, tinha-se refugiado na Suíça. Este multimilionário discreto tinha retomado as suas actividades no seu quartel geral blindado em Zoug, na Suíça, e recebia, em cada Verão, os seus amigos na sua sumptuosa casa de campo em Marbella, em Espanha. Mas, escapando a duas tentativas de rapto organizadas pelos serviços americanos, este fugitivo de colarinho branco sabia que era perseguido: tinha sempre as malas prontas e ao seu lado, no caso de ser preciso... E sonhava regular o seu processo por conciliação. Milagre? A 20 de Janeiro, no último minuto do seu mandato, o Presidente Bill Clinton atribui-lhe finalmente o seu “perdão”, numa lista de 176 agraciados. Uma decisão irreversível. Mas aí está: obtido em condições controversas, este perdão presidencial provoca uma enorme polémica nos Estados Unidos. Clinton bem tentou explicar que decidiu com base num processo fundamentado, enquanto os seus adversários republicanos gritam ao escândalo. O Senado desencadeia uma série de audições e o Procurador de Nova Iorque abre um inquérito.

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De imediato, o corretor está sob as câmaras dos media. Doravante livre nos seus movimentos, ele vai viver com a sua segunda esposa, Gisela, para o seu chalé suíço de Meggen, protegido por guarda-costas israelitas.

Ameaçado de cento e quarenta e cinco anos de prisão

É verdadeiro que Marc Rich nunca se poupou em meios para defender a sua causa. Contratou os serviços do advogado Jack Quinn, um antigo colaborador de Clinton na Casa Branca. A sua ex-esposa, Denise Rich, que escrevia as letras de canções para Céline Dion e Patti LaBelle, ofereceu um saxofone e móveis ao seu amigo Bill, financiando a campanha para o Senado de Hillary e deu 450.000 dólares à livraria presidencial de Little Rock (Arkansas).

É um corretor de génio

Além disso, Rich conseguiu que numerosas personalidades interviessem a seu favor junto de Clinton. Entre elas, o ex-primeiro ministro israelita Ehud Barak, o Prémio Nobel Shimon Peres, os presidentes da câmara municipal de Zurique e da de Jerusalém, assim como o antigo director do Mossad, ou do grande rabino francês René-Samuel Sirat. “Nós beneficiámos de donativos da Fundação Marc Rich”, escreveu o rabino, a 23 de Novembro de 2000, recomendando este “homem bom”. Criada em Israel, a Fundação Rich distribuiu centenas de milhões para obras diversas nestes últimos anos. A imensa fortuna de Rich permite-lhe, de qualquer modo, comprar o que ele quer. Mesmo a sua separação: a sua primeira esposa, Denise, não lhe reclamou ela 500 milhões de dólares, aquando do seu divórcio? “O mais incrível é que lhe foram entregues”, confia um amigo da família.

A personagem é assim: desmedida e romanesca. Nascido em 1934 em Antuérpia, numa família de peleiros, fugiu dos nazis com a sua família em 1941, via França e Espanha, para os Estados Unidos. Contratado com 19 anos como agente de câmbios pelo grande negociante de matérias primas Phibro, em Nova Iorque, Marc demonstra rapidamente uma enorme habilidade nos mercados do cobre e do petróleo. Antecipa o primeiro choque da OPEP de 1973. Considerando-se mal pago, Rich sai de Phibro em 1974 e cria a sua própria sociedade, Richco, sediada em Madrid e em Zoug. A revolução iraniana, em 1979, faz de novo disparar as cotações do petróleo, e permite-lhe ainda ficar rico. Contudo, Rich é acusado ter comerciado com os ayatollahs em plena crise dos reféns americanos no Irão.

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Ameaçado de cento e quarenta e cinco anos de prisão, prefere, em meados de 1983, abrigar-se na Suíça, país que decide não o extraditar.

Estas preocupações não travam os seus negócios. Pelo contrário. Seguindo o seu exemplo, as grandes multinacionais instalam escritórios em Zoug, paraíso fiscal que se torna a capital mundial de corretagem. Rich é o seu imperador. Fornece os empregos, patrocina o clube de hockey e a Ópera local. Em 1990, Richco, com 2.000 assalariados, apresenta um volume de negócios de 30 mil milhões de dólares, exactamente atrás de Nestlé. Não há como ele para manipular as cargas de petróleo bruto iraniano, de cobre chileno, de carvão chinês, de trigo europeu ou de arroz vietnamita. “É um corretor de génio”, afirma o seu ex-associado, John Trafford, que reformado, fortuna feita, se retira para uma ilha das Bahamas.

É mais forte que ele, não consegue deixar de fazer o trading

Rich tem amigos por toda a parte, incluindo em França. No início dos anos 90, uma das suas sucursais exporta cereais a partir de Seine-et-Marne. Compra a fábrica da mina de ouro de Salsigne, negoceia com Pechiney ou Alcatel, assina um acordo com Total. Enquanto fugitivo terá mesmo residido várias vezes em França sem estar a ser incomodado, graças a contactos em Matignon, na era Rocard e depois na era de Bérégovoy. Melhor ainda, dispõe de um amigo precioso no meio de Jacques Chirac, na pessoa de Patrick Maugein, um sulfuroso intermediário de Corrèze que começou a sua carreira ao lado de Marc Rich em Madrid e lhe serviu de guia em África e no Iraque. Durante o reino de Loïk Le Floch-Prigent na Elf, entre 1989 e 1993, Rich e Maugein asseguraram as suas entradas na casa do patrão do trading da companhia, Bernard de Combret, bem como na casa de Alfred Sirven, o homem chave das redes ocultas. Na famosa agenda de endereços de Sirven, o nome de Maugein figura de resto em lugar de destaque, nomeadamente com as coordenadas da sua assistente, situada nos antigos escritórios de Richco em Madrid. Rich e Maugein compartilham igualmente uma paixão pela ópera e vão, por vezes, no seu avião privado, aos concertos do seu amigo Placido Domingo, com Roland Dumas e Christine Deviers-Joncour. La belle époque!.

O corretor de Zoug tem ambições mundiais. Quando os preços do alumínio se afundam, adquire fábricas para controlar a produção na Jamaica e na Sardenha. E, também nos Estados Unidos, onde lhe é proibido permanecer! Impõe o lockout a 1.700 trabalhadores recalcitrantes da fábrica de Ravenswood (Vírgínia Ocidental), o que lhe vale

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fortíssimas críticas dos sindicatos americanos. Sentindo que estas provocações complicam um tanto o seu processo judicial, termina por reempregar os metalúrgicos e vender, em 1993, a sua parte na Richco aos seus principais associados, que rebaptisam a sociedade com o nome de Glencore.

É a hora da sua reforma dourada? Não, de facto. “É mais forte que ele, não pode deixar de fazer o trading”, explica um perito em matérias primas. Uma nova galáxia, de nome Marc Rich & Co, aparece, com um conjunto de actividades ecléticas. Um dia, investe na Suíça numa das mais velhas cervejarias do país, Eichoff. No dia seguinte, são os Iranianos que lhe pedem conselho para escoar o seu petróleo. Compra níquel na Austrália e interessa-se pelo magnésio extraído no Mar Morto. Paralelamente, a sua fundação financia investigações contra a leucemia ou um instituto contra o terrorismo. Apoia a campanha do presidente da câmara municipal de Jerusalém, Ehud Olmert, levanta fundos para os territórios palestinos, ajudando ao mesmo tempo o Mossad a repatriar judeus do Iémen. Israel agradecer-lhe-á.

Mas, sobretudo, Marc Rich investe muito na Rússia, que ele conhece desde há muito tempo. Em 1983, o jornal soviético Izvestia tinha protestado contra as acusações americanas, para defender este “amigo” da URSS. O desmoronamento do império apenas o embaraça: Rich mantém contactos com todos os oligarcas do alumínio e do petróleo, mesmo com os mais controversos. Aproxima-se do antigo ministro Piotr Aven, co-fundador, com Mikhaïl Friedman, do grupo Alfa, que apoia Eltsine e Poutine. Nada parece parar a expansão deste conglomerado, activo nos domínios energéticos, industriais, bancários e comerciais. Azar? Alguns dias depois de ter obtido o perdão de Clinton, Marc Rich decidiu vender todas as actividades de trading no grupo Alfa. Aos 66 anos, ex-fugitivo é ainda mais rico. Deseja, diz-se, continuar com os seus dons e completar a sua colecção de obras de arte. E esperava, após a absolvição de 20 de Janeiro, que se esquecessem dele um pouco. Falhou.

Suspeitando-se que abandonou a sua sucursal Metaleurop, tratado como “vadio” pelo governo francês, o grupo suíço de negócios não deixou de prosperar, apesar das controvérsias.

2. OS pIRATAS DA GESTãO

A carta, assinada por Russ Robinson, Presidente de Metaleurop, cotada na Bolsa de Paris, foi enviada aos accionistas no final de Dezembro de 2002. Este americano, colocado

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apenas poucos meses antes à cabeça deste grupo industrial francês de transformação de metais, prometia-lhes para 2003 que iria “criar valor” com um “balanço sólido” e um “regresso à rentabilidade”! Alguns dias mais tarde, depois destas boas e tranquilizantes boas intenções, a 16 de Janeiro de 2003, a Metaleurop anunciava brutalmente que já não dispunha de meios para apoiar a sua principal sucursal, a Metaleurop Nord. Uma confissão de fraqueza e uma sentença de morte para as fundições de chumbo e de zinco de Noyelles-Godault, na região de Pas-de-Calais.

Os gritos de cólera dos 830 assalariados, abandonados pela sua empresa mãe, e as denúncias ofensivas do governo, chocado pelos métodos de autêntico canalha do accionista principal (33%) de Metaleurop, o gigante suíço do negócio Glencore, especialista em jogadas financeiras, não resultaram em nada. A 10 de Março, no tribunal de Béthune, uma delegação das mulheres dos trabalhadores, ouviu, num silêncio comovido, a sentença: por falta de investidores, a fábrica de Noyelles-Godault será fechada. Os últimos fornos apagaram-se, símbolo de um século de trabalho em metais, deixaram em redor deles terrenos poluídos, trabalhadores destruídos, famílias doentes e uma região desolada.

Última luta: o Comité de trabalhadores tenta obter um plano social mínimo e os administradores de Noyelles-Godault esperam que o tribunal estenda rapidamente o procedimento de liquidação judicial ao conjunto do grupo Metaleurop. “Como a Metaleurop Nord estava de pés e mãos ligadas à sua casa mãe, é normal que se voltassem para ela de modo a tentar recuperar qualquer coisa.” É demasiado fácil abandonar uma sucursal sem estar a assumir o seu passivo”, diz um dos advogados dos administradores.

Estas pessoas são ricas, poderosas, quase intocáveis

Preocupados em dissuadir outros poluidores e temendo dever assumir cerca de 120 a 150 milhões de euros necessários para o desmantelamento da fábrica e para a descontaminação dos solos, o governo pediu, de momento, mas sem sucesso, ao tribunal de grande instância de Paris a nomeação de um perito sobre os movimentos de fundos entre a casa mãe e a sua sucursal. “Nós utilizaremos todas as vias de recurso, ainda que seja difícil”, diz-se no Ministério da Ecologia e do Desenvolvimento Durável, aconselhados pela sociedade de advogados Thieffry.

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“Não havia nenhuma fatalidade na derrota”

Infelizmente, o grupo Metaleurop, em plena negociação com os seus banqueiros inquietos, tinha já prevenido os mercados financeiros que corria o risco de ter ele mesmo problemas de tesouraria no final de Março, apesar da recente cessão de uma sucursal rentável. Com o encerramento de Noyelles-Godault, um milhar de assalariados dos outros locais industriais contaminados são também ameaçados, como em Estaque (Bouches-du-Rhône), Saint-Sébastien-d’Aigrefeuille (Gard), Avène (Hérault), Auby e Aubencheul-au-Bac (Norte), Arnas (Rhône) ou no vale do Lavedan (Hautes-Pyrénées). “Os estragos sociais e ambientais, consideráveis, correm o risco de ficar a cargo dos poderes públicos, enquanto os verdadeiros responsáveis continuarão a ficar impunes”, denuncia Jacky Bonnemain, da associação ecologista Robin dos Bosques.

Certos assalariados querem ir manifestar a sua cólera para Zoug, sede suíça da Glencore. Credores, pequenos accionistas e o governo esperam pôr em causa juridicamente este accionista principal. Sem grande ilusão: “estas pessoas são ricas, poderosas, quase intocáveis”, diz-nos um advogado. O grupo suíço, de resto, colocou os seus títulos da Metaleurop numa sociedade off-shore, a Glencore Finance Bermuda. Instalados no cantão que é, na Suíça, o cantão fiscalmente mais clemente possível, ao abrigo de uma cooperação judicial transfronteiriça delicada, em matéria comercial, os líderes de Glencore, até momento, não levantaram sequer um dedo para ajudar a Metaleurop. Aconselhado pelos advogados parisienses da Bredin-Prat e pelos consultores em comunicação da Euro RSCG, o presidente do grupo suíço, o alemão Willy Strothotte, recusa fazer qualquer declaração oficial, blindando ao mesmo tempo a sua posição: aos seus olhos, os mercados estão deprimidos, as sobrecapacidades de produção são flagrantes, a Metaleurop Nord acusava perdas crescentes que ameaçavam o grupo e os bancos exigiram reembolsos rápidos de dívidas, o que precipitou a sua queda. Conclusão: a Glencore lamenta a situação, mas não se sente nada responsável pelos estragos.

Uma dívida de 125 milhões de euros

Esta argumentação é contestada por aqueles que viveram este drama industrial de muito perto. “No fim de 2002, a Metaleurop afirmava ao Ministério da Economia que estava sobre a via do saneamento financeiro. A decisão brutal de 16 de Janeiro levanta mesmo sérias questões sobre o jogo da Glencore”, murmura um perito governamental.” O grupo suíço

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entrou em 1995 com 33% de participação na Metaleurop. Primeiro negociante mundial de metais, de carvão e de alumínio, multiplicou as tomadas de participação nas unidades de produção nos quatro cantos do mundo. Para o zinco, a Glencore tem assim um pé na França e um outro na Alemanha com a Metaleurop, uma sucursal na Itália (Porto Vesme), interesses no Cazaquistão (Kazzinc), no Peru e no sul-africano Xstrata. Objectivo: dominar os custos, actuar sobre as margens, proteger os seus abastecimentos.

Na sede parisiense da Metaleurop, Glencore fez-se primeiramente discreta. “Com excepção de alguns escaramuças com os seus cúmplices, as nossas relações eram quase normais”, conta um antigo líder. “Entregavam-nos ou compravam-nos produtos aos preços mundiais.” No entanto, a partir do final de 2000, Bertrand Durrande, Presidente da Metaleurop, começa a defrontar-se com o seu principal accionista sobre um assunto essencial: a reconversão do grupo em simples unidade de transformação de baixos custos para a Glencore.

O Presidente recusa esta opção, temendo que a Metaleurop fique então totalmente cativa de um só dos seus accionistas. A tensão sobe. Confrontado com uma cotação do zinco que se corrói e com uma dívida de 125 milhões de euros, a Metaleurop, sem estar na agonia, atravessa um período difícil. “Mas, como julgávamos ter convencido a Glencore da necessidade de modernizar a linha de produção de chumbo de Noyelles-Godault, com 17 milhões de euros investidos em 2001, não tínhamos nenhuma razão para nos preocuparmos muito”, recorda-se um outro quadro da casa. Para eliminarem o endividamento, o Presidente propõe mesmo a cessão da actividade de reciclagem das poeiras das siderurgias. Strothotte recusa porque considera o projecto demasiado vago!

Finalmente, o accionista principal consegue obter a demissão de Durrande, que deixa a sociedade em Junho de 2002, substituído por um americano escolhido pela Glencore, Russ Robinson. As mudanças fazem-se rapidamente sentir. “Uma vez Durrande afastado, Glencore tinha as mãos livres”, considera um dirigente. Nomeado em Julho para a direcção do estabelecimento de Noyelles-Godault, o engenheiro Christian Thomas, que aposta então num projecto ambicioso de reconversão da fileira zinco, é afastado brutalmente das suas funções, em proveito de Gilbert-Alain Ferrer, um quadro vindo da secção das compras. Este último, não tem qualquer voz na matéria. As existências da fábrica são objecto de vendas precipitadas. A Glencore, prometendo uma ajuda temporária de 25 milhões de euros, toma como fiança as acções da holding que controlam as sucursais alemãs da Metaleurop. Dois administradores demitem-se.

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Trata-se de uma separação cínica

Sobretudo, o grupo Metaleurop anuncia a cessão inesperada da fábrica de electrólise de zinco de Nordenham, na Alemanha, apresentada até há pouco tempo como uma jóia estratégica do grupo! Curiosamente, é a sociedade Xstrata, ela própria controlada em 40% pela Glencore, que compra esta jóia, por 100 milhões de dólares. O preço foi considerado “equitativo” pelo Banco Lazard, mas vários analistas financeiros consideram que é particularmente baixo. “Ainda que as cotações do zinco, muito em baixo, justificassem alguma redução, pelo menos a Metaleurop deveria ter imposto uma cláusula de revisão do preço no caso do aumento das cotações”, explica um perito. Não foi este o caso.

A Glencore afirma não ter intervindo nesta negociação, nem nas deliberações do conselho de Metaleurop que aprova esta cessação. Mas, os numerosos observadores interrogam-se sobre uma coincidência: a conclusão da venda pela Metaleurop da sua fábrica alemã à Xstrata a um preço contestado, precedeu de alguns dias o abandono de Metaleurop Nord. Explicação oficial: forçada a desendividar-se rapidamente, a Metaleurop teve que vender Nordenham, mas esta venda não foi suficiente para salvar a fábrica de Noyelles-Godault, que se tornava num poço sem fundo. Uma tese que faz ranger os dentes a certos antigos líderes: “Reunido, o conjunto era coerente e viável.” Não havia nenhuma fatalidade para esta derrocada. Mas, a Glencore teve êxito em extrair a jóia do grupo. De repente, o resto de Metaleurop tornava-se um peso morto. É uma separaçãocínico.”

Marc Rich, o fugitivo

Salvamento falhado ou pilhagem organizada? O debate terá sem dúvida sequências judiciais. Considerando que esta cessação de Nordenham se efectuou em condições desvantajosas para a Metaleurop, um administrador independente, Christian Castel, representando os pequenos accionistas, opôs-se-lhe com vivacidade, antes da demissão do seu mandato, no final de Janeiro. Igualmente com dúvidas, os auditores alertaram o Ministério Público de Paris, que abriu, no início de Fevereiro, uma acção judicial contra X, por abusos de bens sociais e de dissimulação. O inquérito foi confiado ao juiz Armand Riberolles, inquérito este que já conduziu a buscas, nomeadamente na sede de Metaleurop. Em mezza voce, os dirigentes de Glencore afirmam que não têm nada de que possam ser acusados e que cooperarão com a justiça. “Mas, antes de a justiça poder ter êxito em executar comissões

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rogatórias em Zoug, muita água terá corrido sob as pontes”, lamenta um sindicalista. O processo Metaleurop afectará realmente a galáxia Glencore? Nada disso é menos certo, do mesmo modo que o grupo Willy Strothotte, que fabrica cerveja no valor 44 mil milhões de dólares em cada ano - o que o coloca na segunda fila dos grupos suíços, atrás de Nestlé - parece inoxidável. Os escândalos que envolvem os seus fundadores e os seus métodos às vezes violentos não os impediram de prosperar nas margens do lago de Zoug desde há quase trinta anos. De acordo com uma recente confidência de Willy Strothotte ao Financial Times, a rentabilidade continua a ser mais de 10% por ano...

Os corretores de Rich têm sempre uma contrapartida a oferecer, um contacto, um financiamento. “Desde os seus inícios, são profissionais avisados, com uma agenda de endereços mundial e um conhecimento muito aprofundado de cada fileira industrial”, admite o economista Philippe Chalmin, co-autor de Cyclope, um relatório anual de referência sobre as matérias primas.

Mas, a mentalidade oportunista dos corretores nem sempre é a dos industriais. Tratado como um “saltimbanco” por Jean Gandois, então Presidente de Pechiney, Rich vê recusar pelo governo de Michel Rocard a retoma da fábrica de alumínio de Noguères. Em 1988, Rich investe, mesmo assim, no Hexágono, tomando 50% da unidade de tratamento dos detritos da mina de ouro de Salsigne (Aude), um dos locais industriais mais poluídos em França. A fábrica trabalha alguns tempos. Após a apresentação do pedido de declaração de falência da mina em 1991, Marc Rich foge, revendendo as suas partes a outros investidores. “Ele fez tudo para limitar o seu envolvimento financeiro na derrota”, recorda François Derclaye, antigo presidente da Sociedade das minas e produtos químicos de Salsigne.

Um dos seus corretores compra uma ilha nas Bahamas para se retirar

A equipa de Rich manipula com os negócios e enriquece-se. Um dos seus corretores, John Trafford, compra uma ilha nas Bahamas para onde se retira. Outros, como os franceses Claude Delfim e Eric de Turkheim, vão fundar a sua própria sociedade de negócio, Trafigura, muito activa no petróleo. Outro dos seus associados, Patrick Maugein, formado pela École Polytechnique, próximo de Jacques Chirac, lançar-se-á por seu lado em operações ainda mais sulfurosas. Braço direito de Rich, especialista do alumínio, Willy Strothotte, mantém-se com as alavancas. Indirectamente, tomou partes numa fábrica de alumínio situada em

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Ravenswood (Virgínia–Ocidental), no sudeste dos Estados Unidos. Em Novembro de 1990, após um conflito social, os gerentes despedem 1.700 trabalhadores sindicalizados sobre os 1.900 assalariados. Os sindicatos americanos exigem a sua reintegração. O braço de ferro eterniza-se. Manifestações sindicais são organizadas por toda a parte no mundo, denunciando Strothotte, o polvo Richco e “o fugitivo” Marc Rich.

Carregamentos afundados

Julgando os métodos do seu colaborador um pouco demasiado duros, Rich, que procura negociar paralelamente a sua amnistia pessoal em Washington, tenta apagar o incêndio. Em meados de 1992, os trabalhadores são reempregados, os dirigentes substituídos. Strothotte deixa o grupo alguns meses, voltando depois, uma vez passada a tempestade. Hoje, a Glencore, accionista da Ravenswood, afirma que o clima é exemplar...

Entre o fundador e o seu braço direito, os desacordos acumulam-se. O divórcio é inegável. Marc Rich revende as suas partes em 1994 e cria uma nova sociedade de negócio independente, que tentará, em vão, no início de 2001, render ao conglomerado russo Alfa, futuro proprietário do amaldiçoado barco Prestige... Em Janeiro de 2001, Marc Rich, sempre procurado pelas autoridades americanas, obterá um perdão para os seus delitos, assinado pela mão do presidente Clinton, em condições controversas.

A partir de 1994, Strothotte e os seus auxiliares mais próximos, quanto a eles, rebaptizaram a empresa de Glencore. A sua sede é situada em Baar, no subúrbio de Zoug. Os seus accionistas e os seus balanços continuam a ser confidenciais. A sua estratégia reside inalterada, misturando o trading de matérias primas em mais de 50 países e os interesses industriais diversificados nos metais. O que não deixa, de vez em quando, de criar algumas fricções. Assim, no Montenegro, a empresa de alumínio de Podgorica (KAP), principal fábrica do país, confia em Outubro de 1998 a gestão da sua fábrica à Glencore. Por outro lado, esta última compromete-se, de acordo com o jornal Les Echos, a um investimento de 20 milhões de dólares e a garantir a compra da produção a uma cotação inferior às cotações mundiais.

O negócio deu muito que falar, porque o acordo beneficiou do apoio de um homem de negócios próximo do presidente montenegrino, Djukanovic. Além disso, o principal negociador do governo é contratado seguidamente como Director Geral da empresa KAP!

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Após os bombardeamentos de 1999 sobre a Sérvia, os oficiais europeus e americanos, preocupados em ajudar economicamente o Montenegro, fazem pressão sobre o grupo suíço para que reveja o seu contrato, julgado leonino, com a KAP. A Glencore defende-se hoje em pagar mal o alumínio e põe como argumento a sua ajuda à renovação da fábrica.

Outro braço de ferro desenrola-se seguidamente na Geórgia. Em Dezembro de 2000, o conselho consultivo do Ministério da Economia critica violentamente os dirigentes da sociedade privatizada JSC Madneuli (tratamento do minério de cobre, de ouro, e de prata), especialmente pela sua aliança com a Glencore, a qual não teria respeitado os seus compromisso financeiros. De acordo com estes peritos, o objectivo desta parceria, constituída em 1998, consistia em levar a sociedade georgiana à falência e a recuperar o seu minério de ouro a baixos preços... Glencore, também aí, defendeu a sua boa fé, propondo novos investimentos.

Mas, assinar um contrato com este grupo não assegura necessariamente nenhum descanso. Michel Jehan, um empresário instalado em Rezier (Haute-Savoie), sabe-o. Antigo quadro de Pechiney, este engenheiro criou em 1996 a sua própria empresa, MCP Tecnologies, especializada no tratamento do magnésio. Não sem cautelas: tinha no bolso um contrato de exclusividade de oito anos com uma sociedade luxemburguesa de trading, Internacional Metals, sucursal do grupo mineiro sul-americano SA Minerais. “Forneciam-me o magnésio e compravam-me o produto transformado.” Pensava-me protegido”, conta Michel Jehan.. Em 1998, Glencore põe a mão sobre a empresa SA Minerais. A sucursal luxemburguesa de negócio, que não lhe interessa, vai reduzir as actividades. “Primeiro tinham-me dito que me forneceriam menos produtos, aconselhando-me a despedir metade do meu pessoal.” Em seguida, a meados do ano de 1999, deixaram de pagar as minhas facturas.” Já sem meios, a MCP Tecnologies procura apoios externos e apreende, a título de defesa, uma existência de magnésio antes de recorrer à arbitragem prevista contratualmente, uma vez que se considerava certo dos seus créditos.

Cansado! Em Março de 2001, a arbitragem única denega a PME, que deve mesmo pagar 1,3 milhões de euros de prejuízos à Internacional Metals, nomeadamente por ruptura de contrato e entrega defeituosa. “Não tendo nenhum recurso, tive que apresentar o meu pedido de declaração de falência em Setembro de 2002 e encontrar outros apoios para voltar a arrancar a minha actividade”, explica Michel Jehan, que tem o sentimento de se ter deixado armadilhar. Coincidência: a mercadoria litigiosa recebida por Glencore desapareceu, em fins de 1999, no incêndio dum grande armazém perto de Liège, na Bélgica...

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Glencore não tem decididamente sorte com alguns dos seus produtos. A 17 de Fevereiro de 2000, às 11 horas da manhã, Torben Matz, capitão do cargueiro dinamarquês Thor Emilie, refresca-se na sala de banhos da sua cabina, quando uma gigantesca explosão agita o navio, que viaja no Mar Mediterrâneo. De acordo com o seu testemunho, o capitão, projectado contra a porta, tem exactamente o tempo de se arrastar até uma canoa de salvamento e de saltar para fora de bordo. Em menos de um minuto, o Thor Emilie afunda-se a pique, por 2.800 metros de fundo, a uma centena de quilómetros das costas argelinas, com o seu carregamento de 2.000 toneladas de derivados de zinco. Seis membros da tripulação são considerados desaparecidos. O único sobrevivente, Torben Matz é recolhido dez horas mais tarde por um navio maltês. Não se reencontrará nenhum vestígio do Thor Emilie.

A 16 de Janeiro de 2003, num comunicado lacónico, a direcção da Metaleurop SA anuncia que se desliga da sua sucursal Metaleurop Nord, que se encontra deficitária.

Nem uma linha é consagrada aos 830 assalariados da fábrica. Na realidade, após um primeiro plano social conduzido em Julho de 2002, a casa mãe, sob o elevado patrocínio da Glencore, o seu accionista de referência, entregava-se desde há vários anos a actividades de tipo mafioso que lhes permitiam pilhar e com lucro a sua sucursal, na intenção de a abandonar e de se desligar das suas responsabilidades patronais face aos seus assalariados e ao Estado. Os assalariados de Metaleurop reencontram-se então desempregados, sem indemnização e sem proprietário para iniciar uma negociação ou um braço de ferro, mas têm a firme intenção de responder ao que nomeiam “de cobarde abandono”. A situação de Metaleurop não é isolada: as fábricas, em falência, abandonadas pelos seus proprietários e/ou seus accionistas são hoje numerosas. Bem frequentemente, como é o caso aqui, a produção não deixa de se continuar a efectuar. Deslocalizada, transferida para os países com baixos custos de mão-de-obra. Uma pergunta se põe então com uma grande acuidade: que futuro têm os assalariados, numa situação onde, contrariamente ao domínio desportivo, o abandono do adversário não conduz a uma vitória e torna frequentemente caducas as armas tradicionais da luta de classes e dos conflito do trabalho. É esta pergunta que nos propomos aqui abordar debruçando-nos sobre a luta dos assalariados de Metaleurop Nord.

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pArTE iii. CRÓNICA E ANáLISE DUmA LUTA BEm SINGULAR NO CONTExTO DA GLOBALIzAçãO

Montagem a partir de Delphine Corteel, Delphine Corteel, Anne Duhin e Judith Hayem, “Metaleurop: du défensif au créatif.

Chronique et analyse d’une lutte singulière”, Março, 2007.Disponível em http://berthoalain.wordpress.com/2007/04/27/

metaleurop-%C2%AB-du-defensif-au-creatif-%C2%BB/.

Como em qualquer outro encerramento, a temática do fim, o sofrimento da perda e por conseguinte a morte está muito presente3. Morte simbólica num primeiro momento. Morte real à medida que os anos passarem e que ex-assalariados sucumbirem à doença, suicidando-se brutalmente ou lentamente. No entanto, embora emocionalmente bastante atingidos, a partir da ideia de “cobarde abandono”, os assalariados de Metaleurop decidiram permanecer de pé e continuar a viver de cabeça elevada. Todos juntos, trabalhadores, empregados e quadros, comprometem-se num processo de luta singular pela “honra, dignidade e justiça”. Este processo corre sempre através das acções conduzidas por Choeurs de Fondeurs, a associação dos assalariados de Metaleurop Nord, que reúne ainda cerca de 90% de todos eles, quatro anos após o encerramento da fábrica. Como declaram os ex- assalariados eles mesmos: “uma associação que ainda não terminou a sua luta pela reconquista da honra dos seus fundidores”.

A nossa análise apoia-se sobre o estudo dos numerosos documentos produzidos sobre e pelos assalariados de Metaleurop a propósito da sua luta (filmes, artigos de jornais, de livros, etc..) e nomeadamente sobre as entrevistas realizadas por F. Fajardie, aquando da luta,

3 D. Linhart, B. Rist, E. Durand, (2002), Perte d’emploi, perte de soi, Paris: Erès.

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a convite dos assalariados4. Baseamo-nos igualmente nos materiais recolhidos aquando de quatro missões no terreno realizadas entre Outubro de 2006 e Abril de 2007, no decorrer das quais conduzimos uma dezena de entrevistas exaustivas com ex-assalariados muito activos durante a luta. O nosso trabalho mostra que esta luta ganha a sua força e a sua eficácia a partir da fábrica. Com efeito, o que os assalariados compartilham, defendem e fazem viver neste processo são as suas ideias sobre o que pode e deveria ser uma fábrica na França de hoje e a relação que deveria existir entre fábrica e assalariados. Através do conjunto das suas acções, propõem-se fazer reconhecer e tornar a efectiva proposta segundo a qual a fábrica pertence também aos seus assalariados. Não se trata nem de uma ideia passadista, nem de uma quimera. Assume, pelo contrário, hoje, uma dimensão prescritiva e pragmática.

Actualmente, distinguimos duas fases neste processo. A primeira corresponde à luta ao sentido tradicional e vai de 16 de Janeiro de 2003 a 4 de Abril de 2003, data da assinatura do protocolo de acordo relativo ao plano social. A segunda começa a 10 de Abril de 2003, data da fundação da associação. Em cada fase da luta, os assalariados encontram a forma de se organizarem e inventam uma maneira original e renovada de manter a sua ideia da fábrica. Ideia que acompanha, por conseguinte, o processo e evolui com ele.

1. Do cobarde abandono à assinatura do plano social: a fase defensiva a partir do anúncio da decisão da Metaleurop SA de cortar os fornecimentos à sua sucursal, os assalariados recusam aceitar este facto como uma fatalidade e agem muito rapidamente: continuando a produção, mas bloqueiam as entregas para evitar engordar a casa mãe que acaba de os abandonar.

A 1 de Fevereiro, por exemplo, “a marcha branca” reúne 5000 à 6000 pessoas nas ruas de Noyelles-Godault e de Courcelles-les-Lens: os assalariados vão à frente, acompanhados pelo conjunto dos sindicatos, das suas famílias, dos habitantes das duas comunas, dos políticos locais. Esta marcha marca o início de numerosas manifestações e iniciativas colectivas. A 10 de Março de 2003, na ausência de novos investidores que retomem a fábrica, a liquidação judicial é efectiva. A ocupação da fábrica torna-se mais dura. Os assalariados bloqueiam as entradas. Propõem-se “salvaguardar o instrumento de

4 F. Fajardie, (2003), Metaleurop : paroles ouvrières, Paris : Mille et une nuits.

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trabalho” e tomam o controlo das existências de matérias-primas a fim de dispor de meios de pressão aquando das negociações. Decidindo cortar os fornecimentos à Metaleurop Nord, Metaleurop SA e Glencore negam a existência dos trabalhadores que fizeram funcionar a fábrica, mas também o facto que esta é, para eles, uma fonte de trabalho e de rendimentos sem os quais, são condenados a uma morte salarial e simbólica, se não real. Esta decisão despreza os assalariados, o que eles foram para a fábrica, o que a fábrica representa para eles, mas também aquilo em que se vão tornar. Face a isto, os assalariados não hesitam em falar em crime e tomam a decisão de se comprometerem na luta. Propõem-se mostrar que, apesar dos ataques e das ameaças, continuam vivos, sempre de pé.

Dignidade e justiça

É decidida a entrada em luta. Assenta sobre um duplo processo de identificação: identificação dos princípios e dos mecanismos em jogo e (re)identificação dos princípios realizados no dia a dia de cada um. Os que entraram em luta consideram que, na situação presente, a sua dignidade está ultrajada e que é a eles que lhes cabe defenderem-na. Estas categorias subjectivas são recorrentes e compartilhadas entre os assalariados em luta. Marcam a vontade de não se deixar impor tal decisão sem estarem a reagir. Quanto à noção de justiça, é ela que traça o espaço de um outro possível, diferente daquele que se lhes propõem impor a Metaleurop SA e a Glencore. Reclamar e obter justiça, é bater-se para tentar manter a fábrica em marcha inicialmente, depois, para obter um plano social e, por último, para fazer reconhecer que é a Metaleurop SA a responsável pelo encerramento da empresa, que a casa mãe abandona o sítio sem o estar a descontaminar e que os assalariados não são os poluidores, como a polémica desencadeada sobre esta pergunta às vezes o deixa crer.

Metaleurop viverá!

Os assalariados declaram: “Metaleurop viverá!”. É necessário entender esta palavra de ordem como uma prescrição sobre a fábrica: contra a vontade dos accionistas que se comprometem numa outra via e os esmagam, a ideia que têm da fábrica viverá porque se batem para a defender. Não é somente ao proprietário que cabe decidir no que é que uma fábrica se deve transformar, e quando se para o trabalho, os assalariados têm também uma ideia da forma como a questão da fábrica, dos seus trabalhadores e da consideração do seu trabalho devem correctamente ser tratadas.

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Esta ideia apoia-se sobre as representações múltiplas que os assalariados estendem a propósito da fábrica. Alguns colocam a tónica sobre a possibilidade duma vida digna pelo trabalho para os trabalhadores, para os seus filhos, para a região, para o país. É assim que se pode compreender que, durante a luta, emergem perguntas como: “que futuro temos nós ou ainda “queremos trabalho”, gritado, nomeadamente, aquando da manifestação junto à sede de Glencore em Paris. Para outros, a ideia da fábrica assenta sobre o facto de que empenharam os seus corpos, as suas vidas, de maneira muito real, no risco à doença (intoxicação por metais, cancros...) e à morte, na sequência de doença ou aquando de acidentes do trabalho.

Estas diversas representações não podem ser ligadas a esta ou àquela categoria de assalariado, de acordo com a antiguidade na fábrica, a posição na hierarquia ou o lugar de trabalho específico: ateliers, laboratórios, escritórios. Não são exclusivas umas das outras e podem combinar-se. As identificações da fábrica pelos assalariados são múltiplas e homogéneas. Esta multiplicidade é uma das características intrínsecas da subjectividade em prática no processo e reencontra-a ao longo de todo o processo.

Inicialmente, até 10 de Março, data da liquidação judicial da empresa, a ideia sobre a fábrica toma forma em redor da mobilização de modo que a fábrica não feche. Certos assalariados tencionam retomar a fábrica, outros procuram activamente apoios financeiros e solicitam eventuais investidores, mas sem sucesso. Seguidamente, quando o encerramento da fábrica é confirmado pela liquidação judicial e pela recepção das cartas de despedimento 15 dias mais tarde, a luta concentra-se na obtenção de um plano social que reconheça a importância da vida e a saúde dos trabalhadores. Trata-se de reconhecer o que os trabalhadores deram à fábrica no passado via indemnizações de despedimento, mas também de afirmar que têm direito a um futuro graças, nomeadamente, à criação de empregos duradouros e adaptados às qualificações da mão-de-obra disponível sobre a zona. Batem-se igualmente de modo que os verdadeiros responsáveis do encerramento da fábrica sejam identificados e condenados. Esta prescrição vai de par com a vontade de terem uma palavra sobre o que se passa. Um ex assalariado declara: “o pessoal de Metaleurop tinha coisas a dizer e queriam que fossem ditas”. Tomar a palavra, é afirmar a importância desta fábrica, do trabalho que se fazia, do que se produzia, é fazer saber ouvir o que era ser trabalhador na Metaleurop: é fazer ver o ponto de vista dos assalariados.

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Todos juntos

Esta palavra de ordem, gritada em todas as manifestações, é essencial para compreender a luta e a forma organizacional que toma. Não é correcta considerá-la como uma prescrição. Entende-se como um princípio, um agir juntos e um modo de ser e de estar no mundo. Gritá-la permite reafirmar a existência dos assalariados e mostrar a sua força. Une e, tal como as representações da fábrica, é múltipla. Constitui-se quebrando com as categorias hierárquicas que existiam no momento em que a fábrica funcionava e que podiam ser factores de divisão entre as pessoas: “estamos todos juntos, não há quadros, não há trabalhadores.” É isto que faz a nossa força “. Um novo “conjunto” vê o dia, inteiramente indexado sobre a luta pela fábrica, criado para se envolver num braço de ferro com a casa mãe e, sobretudo, para iniciar o diálogo com o Estado. Assume figuras e formas organizacionais diversas, mais ou menos formalizadas.

Reveste, nomeadamente, a forma intersindical constituída com a ideia que os sindicatos devem fazer frente juntos sem estarem a fazer prevalecer questões de poder. Esta intersindical é orientada por regras de funcionamento muito estritas e muito precisas: composta por dois representantes de cada sindicato (CGT, CFDT, FO, CGC, CFTC), todos os membros participam em todas as negociações, as decisões são tomadas conjuntamente. Somente, Farid Ramou, seu porta-voz, está habilitado a comunicar oficialmente com o exterior. Jovem delegado CGT, Farid Ramou encarna uma das figuras deste agir juntos. Porta-voz de todos, em nome da intersindical, as suas tomadas de posição, quer se trate de discursos preparados ou reacções ao vivo, respeitam sempre os “todos juntos”. Nunca põe adiante a sua organização sindical. Sendo a instância mais formal e mais institucional da luta, a intersindical não constitui a única forma organizacional. É incluída num conjunto de actores mais vasto, identificado em “seis cortinas defensivas” que evocam “os talentos múltiplos, variados e complementares” (idem.) que os diferentes assalariados e as suas companheiras, contratadas aos seus lados, levaram a efeito durante a luta. Isto evidencia outra característica da ideia “de todas juntas”. Inclui a multiplicidade e a variedade dos pontos de vista e a unidade sobre os princípios, não exclui eventuais desacordos entre os seus membros. “É uma equipa organizada em seis cortinas que impedem o perfeito de dormir e é esta equipa que tocou o coração de tantas pessoas, que cada uma delas com os seus meios próprios demonstraram iniciativas solidárias”.

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As acções efectuadas para tornar visível o processo Metaleurop permitem reforçar os “todos juntos” não delegando o acompanhamento da luta somente aos sindicatos, aos dirigentes, mas sim a todos, a todas as acções, a toda a parte. Cobriram várias formas: manifestar a convicção, a coragem e a solidariedade dos trabalhadores entre si e com a sua região; “marcha branca”, manifestações em Arras, Béthune, Douai, Lens, Paris; manter a pressão mediática com certas acções espectaculares como o bloqueio do canal do Deûle ou ainda os jorros de pães de sódio neste mesmo canal; ocupar a fábrica para encarnar o frente a frente com a Glencore, mostrando que a fábrica também lhes pertence igualmente; manifestarem-se na frente dos tribunais para mostrar que não se deliberam somente sobre números, mas que se trata efectivamente de homens, etc. Por toda a parte, trata-se de fazer valer a sua ideia de fábrica, de mostrar que a Metaleurop estava viva e na rua.

Trabalhador, hoje

É notável que, nesta fase, “trabalhador”, “classe trabalhadora”, “metalo” são termos correntemente utilizados por todos os assalariados em luta, não como um estatuto objectivamente referenciável na divisão do trabalho, mas como cristalizador duma capacidade política, quer seja em referência às lutas passadas ou à situação actual da fábrica. “Eu pertenço à classe operária, eu sei que, em primeiro lugar, devemos contar apenas connosco”. Os outros empresários, viram, sabem que agora os trabalhadores não se deixarão mais fazer ex assalariados “ dizem eles a propósito da sua luta. “Trabalhador” assume aqui um espírito e uma forma de compromisso no conflito, a “todos aqueles que lutam”, independentemente do seu estatuto profissional ou quaisquer que tenham sido os seus compromisso ideológicos e políticos anteriores. A figura que emerge da luta é uma figura operária combativa, cujos membros se reencontram e se reconhecem no tempo do combate e que deixa a cada um certa autonomia. “É bastante curioso, porque à partida, eu não estava próximo dos trabalhadores, estava numa outra onda. Mas, à medida que a luta se desenvolvia, mudei de lado. Participo nas manifestações, descobri todo um conjunto de coisas”, declarou, por exemplo, o antigo responsável dos estudos informáticos.

Esta fase da luta termina a 4 de Abril de 2003, com a assinatura de um protocolo de acordo relativo ao plano de acompanhamento social e de ajuda à reclassificação do pessoal da Metaleurop-Nord, na câmara de Arras. Tendo em conta as circunstâncias específicas da falência da empresa, para além dos dispositivos legais mínimos, o Estado, o Fundo Social

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Europeu e as autarquias contribuem com uma dotação excepcional. Do ponto de vista dos trabalhadores, esta primeira fase da luta confirmou que era possível não se deixar impor pelos outros, os termos e os desafios desta situação. Os assalariados afirmaram que o encerramento da zona industrial era uma questão tanto deles como do proprietário. Bateram-se para fazer reconhecer que a questão da fábrica não se podia resumir a uma questão de rentabilidade. Tomando assim a palavra, os assalariados procuraram fazer entender e reconhecer a sua própria visão da fábrica. Se não apaga o traumatismo vivido e as suas consequências, esta tomada de posição permitiu-lhes reencontrar a dignidade em nome da qual se bateram: “Ao falar alar, voltamos a ter a palavra e a nossa dignidade” diz um ex-assalariado.

Do defensivo ao criativoA criação de uma organização original: Choeurs de fondeursContinuar todos juntos

Desde o momento em que se perfila a assinatura do plano social e que “o tempo da rua” parece inevitavelmente terminado, os ex-assalariados de Metaleurop reencontram-se perante uma nova escolha: satisfazerem-se com o que lhes concede o Estado, à maneira de prejuízo moral e financeiro ou, pelo contrário, obter os meios para continuar o processo sob outra forma de maneira a obter, para além desta primeira vitória, “o reconhecimento total de 830 honras e 830 dignidades desprezadas, humilhadas.” É esta segunda opção que retém a atenção de algumas pessoas muito envolvidas na luta e na intersindical, que anunciam rapidamente, no início de Abril de 2003, a sua intenção de levar a Tribunal a Metaleurop SA para um reconhecimento dos prejuízos causados e na esperança de fazer jurisprudência. Indicam também que contam fazer parte da operação de retoma da zona e de se constituir como interlocutores dos possíveis futuros investidores. Para esse efeito, tencionam criar uma associação de ex-assalariados, para fazer perdurar, sob outras formas, os princípios já desenvolvidos na fase defensiva. A força desta decisão apoia-se nomeadamente sobre a consciência clara que, para o fazer, é necessário renovar o dispositivo organizacional da luta antes mesmo que esta termine. Segundo o parecer dum dos seus inventores, a nova entidade deve ser criada durante o conflito, se não, não resulta é uma loucura. Além disso, esta iniciativa reconfigura, sobre vários planos, a confrontação entre duas ideias da fábrica: aquela que encarna “o abandono cobarde” da Glencore e aquela que transportaram os trabalhadores com as palavras de ordem “todos juntos” e “Metaleurop viverá!”. Se a fábrica como entidade industrial já não pode mais viver, é necessário que viva a entidade humana que a compõe, isto é, que os trabalhadores, sobrevivam

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social e economicamente, mas também que, subjectivamente, a ideia que têm deles mesmos e da fábrica permaneça. Isto implica tomar consciência que, se a fábrica é definitivamente fechada e não volta mais a arrancar, o seu desaparecimento objectivo não deve fazer morrer a ideia que dela têm os assalariados. O desafio é, por conseguinte, continuar a exprimirem-se “todos juntos” com base na capacidade subjectiva e pragmática que se constituiu e estendeu na fase defensiva da luta a fim de continuar esta de maneira “ofensiva” e “criativa”. Trata-se “de não deixar as pessoas sozinhas” perante os despedimentos e “continuar a fazer entender as suas vozes” tanto junto dos proprietários sem escrúpulos como do Estado ou da opinião pública. Para o efeito, é necessário que os ex-assalariados se constituam como interlocutores duns e dos outros, enquanto todas as instâncias próprias da fábrica e a luta vão desaparecer. “Uma vez que a empresa está fechada é necessário que haja uma entidade para poder prosseguir contra os que nos puseram à porta”.

Os ex-assalariados optam por uma associação que lhes permitirá “ser identificada como entidade em relação às autarquias para obter salas e subvenções a fim de inovarem e funcionarem”. O que acontece a 10 de Abril de 2003. A partir da sua criação, a associação tem vocação para durar o tempo necessário para alcançar o resultado (ou o malogro) dos seus objectivos – o que mostra bem que se trata sobretudo dum instrumento de luta. Outra especificidade, dos membros da Associação Choeurs de Fondeurs e que conforta a natureza específica da sua acção, é que não se consideram como uma associação de "desempregados puros", mas como "uma associação ajustada ao destino dos antigos de Metaleurop".

A passagem da intersindical à associação vai de resto a par com uma renovação das categorias subjectivas que apoiam a luta, como o sublinha um dos membros da associação: "Desde a criação da associação, não se fala mais de sindicato. Não se trabalha com a nossa etiqueta sindical, trabalha-se mais com o nosso coração e com a nossa alma." Como a intersindical que se encontrava integrada num conjunto mais vasto e mais diverso, a associação permite que outras acções individuais ou colectivas existam, acompanha-as, apoia-as e apoia-se.

Choeurs de fondeurs, uma associação diferente das outras

Com a associação, a subjectividade que se imprimiu ao processo desde o início e que se reforçou ao longo de toda a luta, dispõe de um novo lugar para se desenvolver. As suas quatro comissões constituem um quadro para fazer viver as múltiplas identificações

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da fábrica, quer se trate da possibilidade de uma vida digna pelo trabalho, quer se trate do frente a frente com a Metaleurop SA ou o colectivo humano, etc. Estas declinam-se em duas vertentes, uma ofensiva e o outra criativa.

A vertente ofensiva constitui-se na continuação do frente a frente com a Metaleurop SA e, essencialmente sobre o terreno judicial. A primeira comissão, “Agir em justiça”, constituiu um processo extremamente detalhado que demonstra a pilhagem da Metaleurop Nord pela Metaleurop SA. Rejeitado em primeira instância, este processo foi ganho em recurso em Douai a 16 de Dezembro de 2004. Esta “vitória moral” foi seguida infelizmente por uma derrota a 19 de Abril de 2005, pelo Tribunal de Instância Superior que tinha dado um parecer negativo, confirmado pelo Tribunal de Recurso de Paris a 11 de Outubro de 2005. Além disso, os membros da associação empreenderam uma acção concertada junto do Tribunal do Trabalho através do qual pedem, para todos, um prémio de 30.000 euros em reconhecimento de prejuízos morais, sanitários e financeiros. Como na fase defensiva, os assalariados estão muito mobilizados: contribuem activamente para a constituição dos processos e nas defesas vêm em massa a cada audiência para mostrar a sua determinação. Para além do alívio financeiro que a compensação representaria para eles, a sanção infligida à Metaleurop SA no caso de vitória no Tribunal do Trabalho viria então, a posteriori, reconhecer a validade da ideia dos trabalhadores sobre a fábrica.

A vertente ofensiva estende-se igualmente de maneira original nas assembleias gerais dos accionistas da Metaleurop SA. Com efeito, diversos Choeurs de fondeurs compraram acções da Metaleurop, no início de 2004.

No plano da saúde, a comissão “de acompanhamento médico pós-profissional” tem primeiro por objectivo supervisionar a saúde dos ex-assalariados, a exemplo do que acontecia quando a empresa ainda funcionava. Seguidamente, fixa-se o objectivo de fazer reconhecer o aspecto penoso do trabalho e as doenças profissionais consecutivas ao trabalharem com chumbo, cádmio e com amianto a fim de obter, para certos trabalhadores, reformas antecipadas.

Esta é também, uma forma de reconhecer e compensar de maneira adaptada à situação, o trabalho efectuado na fábrica, a natureza específica deste último, e os seus efeitos sobre os que o efectuaram.

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Poder-se-á inscrever o trabalho das outras três comissões sobre a vertente criativa?

A comissão “reactivação da bacia de emprego” constitui um instrumento para incentivar e acompanhar a criação de empregos duradouros e adaptados às qualificações dos assalariados sobre o sítio e na região, e velar pela qualidade destes. A sua acção mais original foi sem dúvida a avaliação dos projectos dos industriais candidatos a instalarem-se no local. Dois projectos de plataformas de triagem dos desperdícios se confrontaram. A fim de se fazer uma ideia precisa do tipo de trabalho e de postos susceptíveis de ser criados, os membros da comissão foram visitar várias empresas deste tipo na região. Seguidamente elaboraram um caderno de encargos, convocados os dois candidatos, ouvidas e avaliadas as suas propostas. Na sua prescrição, o juiz-Comissário para a liquidação judicial de Metaleurop Nord no Tribunal de Grande Instância de Béthune, sublinha que o projecto de Sita, que tem a preferência dos ex-assalariados, e igualmente os deles, “foi elaborado em concertação com os antigos assalariados representados pela associação Choeus de Fondeurs”. Esta diligência inédita é coerente com a implicação inicial dos ex-assalariados para a sobrevivência do sítio e, através dele, dos seus empregados e mais largamente da região. Ela conforta o reconhecimento de “Choeurs de Fondeurs “ pelos poderes públicos.

Os membros da comissão empenharam-se igualmente em apoiar alguns dos seus colegas desejosos de montar uma cooperativa operária de produção (o Scop ACE) encarregado, pela Sita, da descontaminação do local. Para esse efeito, organizam uma rede de competências que reúnem trabalhadores, agentes de controlo e técnicos de cada atelier. Como diz o seu fundador: “o nosso projecto não teria podido ver a luz do dia sem a Choeurs de Fondeurs”. A criação deste Scop, que depois se desenvolveu bastante, emprega actualmente mais de 40 pessoas, constitui um dos exemplos de iniciativas que se desenvolveu em relação com a associação e compartilhando a subjectividade.

A comissão “acompanhamento social” interessou-se pela evolução de todos estes ex-assalariados e trabalhadores temporários. Trabalha primeiro em parceria com a célula de reclassificação e com o Comité de financiadores. Os seus promotores assumem como missão o mostrar “aquilo que as pessoas são capazes” perante as comissões de Validação dos Níveis da Experiência e aquando dos pedidos de formação de postos de trabalho. Levados pela sua ideia de uma figura positiva do trabalho, o conhecimento dos antigos assalariados, a dos postos de trabalho, a dos métodos técnicos postos em prática na fábrica e o espírito

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de “todos juntos”, os membros da comissão permitiram a numerosas pessoas reencontrar uma situação estabilizada (CDI, criação de empresa, dispensa de investigação de emprego e de reformados) satisfazendo certas insuficiências da célula de reclassificação. Com efeito, com o desaparecimento desta, a comissão criou dois postos de “referentes sociais”5 a fim de prosseguir o trabalho em que se tinham empenhado, a partir da criação da associação. A 1 de Janeiro de 2007 o número de assalariados estabilizados atinge 439 pessoas, um número que não parou de aumentar. Como diz um dos “referentes sociais”: “Não somos nem assistentes social, nem o ANPE.” Somos uma ligação para ajudar, fazer o acompanhamento social, ajudar a reencontrar um emprego nas melhores condições”.

Neste espírito, continuou-se a desenvolver a rede de parceiros (como a ANPE e outros), que permitem fazer face, o melhor possível, aos diversos riscos da vida diária dos assalariados. Estes alimentam igualmente esta rede não deixando de informar os referentes sociais das oportunidades que são referenciadas. “A mentalidade dos metalos” feita e solidificada no e pelo trabalho e na luta que perdura: “a palavra solidariedade realmente é aqui empregada com todo o seu sentido, na associação.” Quando alguém vê um tipo de trabalho que pode interessar a um antigo trabalhador de Metaleurop, vêm-nos chamar e quando se fala em solidariedade, há pessoas que chegam a ser ajudadas e que nos vêm comunicá-lo, fazem passar a informação. É isto a solidariedade.”

A “promoção dos valores dos assalariados”, é o desafio que enfrenta a quinta comissão que se confunde com a precedente a partir de 2005. Trata-se de manter activos os espaços de convivialidade e lazer assim como “os encontros dos metalos” às terças-feiras de manhã na Câmara Municipal de Courcelles-les-Lens ou na refeição de Santo Eloi patrono dos metalos, em todos os dias 1 de Dezembro.

Embora nenhuma comissão enquadre formalmente esta actividade, a tomada de palavra sobre a fábrica, as suas características e a luta efectuada para a preservar prosseguiu-se igualmente por iniciativa de certos membros da associação. Assim renovaram e diversificaram a rede de parceiros e de interlocutores ligados ao Choeurs de fondeurs. As tomadas de palavra assumiram formas diversas, mas evocaremos apenas

5 D. Stayeart, (2005), Remonteur de moral, Paris, Le cherche midi.

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algumas aqui. Foram numerosas as projecções-debate dos filmes que contam a luta de Metaleurop para as quais os fundidores foram convidados a participar, não somente em França mas também na Bélgica. Geralmente presentes em grupos de 3 ou 4 pessoas, os Choeurs de fondeurs exprimiram-se para plateias de militantes (Liga dos Direitos do Homem, ATTAC, Sindicato da Magistratura, etc.), alunos de liceu ou outros estudantes com a vontade de darem a entender o que era a fábrica, a especificidade de trabalho que se fazia, mas também o que lhes aconteceu. Para além do testemunho trazido e da vontade de não ceder à sua própria ideia da fábrica, tratava-se para alguns metalos de prosseguir a denúncia da Metaleurop SA junto dum público mais largo. Propõem-se suscitar preventivamente uma tomada de consciência sobre a necessidade de legislar para impedir mais amplos prejuízos provocados por “empresários desonestos “e tentam apoiar a luta dos assalariados atingidos por despedimentos fazendo-o beneficiar da sua experiência pessoal. Iniciativas comparáveis tiveram lugar por ocasião de um Fórum Social Europeu em Saint-Denis e em colaboração com ATTAC para realizarem um documentário sobre o desmantelamento da Metaleurop SA.

Este filme veio apoiar o trabalho da comissão “Agir em Justiça”. Mas os ex-assalariados também criaram os seus próprios materiais para interpelar o público e conservar viva a sua ideia da fábrica ou, pelo menos, a memória desta. Foram mesmo escritos livros sobre a fábrica por ex-assalariados6 ou estão ainda em curso de realização sobre a história do sítio. Canções foram compostas e oferecidas por habitantes ou por assalariados para celebrar a coragem dos metalos, testemunhando uma solidariedade indemne, mesmo depois da luta. Deslindar o que é da competência dos desafios da memória e que é investimento militante nestas tomadas de palavra exigiria uma análise mais exaustiva. No entanto, a criatividade e a vitalidade mobilizadas nestas iniciativas pelos assalariados confirmam que a representação subjectiva da fábrica que souberam preservar constitui, para eles, um recurso essencial, dado que se trata de enfrentar o futuro.

Através das suas diversas actividades, Choeurs de fondeurs chegou, por conseguinte, já para além do encerramento do sítio industrial, a manter e fazer valer a ideia de que os antigos assalariados de Metaleurop têm da sua fábrica, sem se estarem a fechar com isso num passado

6 S. Knopik, (2004), Jour comme un autre, Lille, Editions du Sansonnet.

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que já não há mais, mas permitindo-lhes, pelo contrário, voltarem-se para o futuro e de maneira activa. Isto permitiu-lhes sob diversos registos continuar a sua luta para o reconhecimento pelo Estado e pela Glencore da relação que unia a fábrica aos trabalhadores.

Conclusão

A luta dos antigos assalariados de Metaleurop prossegue por conseguinte desde há 4 anos. Conheceu várias fases e conhecerá certamente outras mais que a continuação do inquérito terá por tarefa identificar e analisar. Mas, o que caracteriza a sua actividade reside, indiscutivelmente, na sua capacidade de por em prática e de adaptar os princípios sobre os quais ela se constituiu. Assim, na conjuntura relativamente nova que constitui o abandono cada vez mais frequente das empresas pelas suas casas mãe, o nascimento da Choeurs des fondeurs constituiu um protocolo de acção eficaz, a julgar-se pelos sucessos acumulados pela associação e pelo apoio que lhes reservaram os poderes públicos. Com efeito, como acaba-se de se ver, os membros da Choeurs des fondeurs chegaram, sem se estar a substituir ao Estado, a fazerem-se reconhecer como interlocutores legítimos e incontornáveis quando se tratava da evolução dos assalariados da Metaleurop.

A capacidade política afirmada também provou que era possível evitar que à catástrofe industrial se acrescentasse a fatalidade do desastre individual; pelos seus princípios e pelas suas acções constituíram um campo de possibilidades para eles, para a sua região e para o país. Mas, sublinharam igualmente que a nova conjuntura internacional exige que se intervenha a montante da desobrigação das empresas no que diz respeito aos seus assalariados. A sua experiência convida a uma revisão dos quadros jurídicos nacionais e internacionais que permita fazer face aos “empresários desonestos” uma vez que no estado actual do Direito do trabalho, os assalariados não estão em condições de agir sozinhos neste plano. Mais fundamentalmente, os Choeurs des Fondeurs convocam o Estado a pronunciar-se sobre o papel das empresas e dos homens que trabalham num país dado, sublinhando a sua incapacidade actual em desempenharem um papel de regulador e a grande necessidade em obviar a esta carência.

Associação dos ex-assalariados de Metaleurop Nord sobre o filme Metaleurop-Germinal

Depois do encerramento selvagem da fábrica Metaleurop, este documentário é um dos mais belos testemunhos sobre o sofrimento dos ex-assalariados e das suas famílias e sobre o seu

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combate para encontrarem a sua dignidade de homens e de mulheres e de se reconstruírem. Crónicas dos desgastes colaterais nas famílias atingidas por este naufrágio. Quem quer que sejam os seus responsáveis, não sabem eles que por detrás das suas decisões existem homens e mulheres em sofrimento? É também o retrato de um homem, ex-assalariado, militante sindicalista e político que recusa abdicar e se reconstrói criando, em conjunto com outros colegas, uma cooperativa de operários.

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pArTE iV. O DUpLO SOFRImENTO DOS DESEmpREGADOS

Montagem a partir de Danièle Linhart, “La double peine des chômeurs”, In Catherine Pozzo di Borgo (Dir.), Vues de l’Europe d’en bas: Chômage et résistances,

Paris, L’Harmattan, 2005.

A vida sem trabalho angustia e mete medo, porque com o trabalho também, se procura dar um sentido à vida. Não será tanto o trabalho que atrai, mas é o vazio da sua ausência que assusta. O vazio, numa sociedade concebida, moldada pelo e para o trabalho. Cada um, refugiando-se no trabalho, alimenta e reforça de facto o processo de desumanização que opera o trabalho no seu ambiente. Individualmente não há outra solução para sair da armadilha a não ajudar cada um a se fechar sobre todos os outros. Ter um emprego torna-se cada vez mais indispensável para se dotar duma identidade e encontrar lugar na sociedade, mas o trabalho só por si produz sistematicamente o vazio à volta de si, produz a alienação.

O trabalho é o grande ordenador do tempo. Impondo a sua própria duração, ele anula o tempo em que não se sabe o que se há-de fazer, em que se está entregue a si mesmo, num quadro de vazio. O trabalho é sobretudo o tempo limitado e fraccionado, regido por uma lógica exterior ao indivíduo, é um tempo que não lhe pertence, mas durante o qual escapa ao vazio e a si-próprio, encontrando os outros. A dimensão da socialização e de sociabilidade é central e muito positiva mesmo quando se tem a consciência que o reencontro com os outros se faz ao custo duma desapropriação do tempo. Quebrando a continuidade do tempo, o trabalhador carrega-o de significação. O trabalhador produz o tempo livre e alimenta-o. O tempo livre, os lazeres, aparecem unicamente em função do tempo limitado que representa o trabalho. Os desempregados não têm um tempo restrito, limitado, mas um tempo vazio, os inquéritos mostram-no bem. A relação com o trabalho é pois uma relação de ordem vital. Mesmo se a relação com o trabalho é na maioria dos casos uma alienação, ela é uma relação vital no sentido em que trabalho = vida, mas também, e sobretudo, no sentido em que o não trabalho = morte.

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A socialização passa agora sobretudo pelo trabalho uma vez que as outras funções sociais perderam parte da sua substância. Não se sente socialmente útil e considerado a não ser que se encontre a trabalhar. Trabalhar é dar sentido à sua própria vida mesmo se esta é muito difícil, de viver e mesmo que o trabalho que se esteja a fazer não tenha grande sentido.

A hegemonia tirânica do trabalho sem o qual não se pode passar é o centro mesmo da contradição que rege a relação de cada um com o trabalho. Existem pois no trabalho dois pólos contraditórios e antagónicos entre os quais os indivíduos oscilam, numa procura incessante da sua identidade e da sua inserção social: necessidade e negação.

É o contexto que favoriza a expressão de um pólo em vez do outro. Em período de crescimento económico e de grandes convicções ideológicas, é a rejeição que importa e que se encontra expressa, e muito naturalmente, sobretudo pelos jovens, eles que não se podem imaginar, antes de se iniciar a sua vida profissional, a meterem-se numa desapropriação de si – mesmos, e sem retorno. A recusa da dimensão hegemónica do trabalho que não deixa espaço para as outras actividades sociais, para as outras formas de expressão e de realização encontrámo-la sobretudo nos jovens, como bem o mostraram em Maio 68.

Mas não se poderá, só por isso, deduzir que existe apenas este pólo. Vê-se frequentemente que este se apaga desde que o espectro do desemprego se alargue e domine. A expressão necessidade de emprego afirma-se então com uma grande força. O mal-estar dos desempregados não está somente ligado às dificuldades financeiras e mostra, de certa maneira, que o trabalho preenche um papel, uma função completamente essencial nos processos de inserção.

A recusa do trabalho que exprimem ainda alguns jovens, o desinteresse mostrado por uma sociedade completamente articulada em torno do valor trabalho, traduz frequentemente a dimensão da sua frustração. Eles sabem as dificuldades que irão ter para encontrar o seu lugar no mundo do trabalho, em que tudo se continua a decidir, evidentemente sobre o plano financeiro, mas igualmente identitário e simbólico. O colocar em causa o valor do trabalho por certos jovens testemunha a importância da sua frustração em vez duma orientação para outros valores. Está-se longe da posição das pessoas de 68 que punham em causa tudo o que lhes era oferecido. Eles só põem em causa o que lhes é inacessível, e recusado. Eles rejeitam o que constrói a exclusão em que correm o risco de serem as vítimas.

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A análise do que se passa no quadro do encerramento duma fábrica, mesmo com planos sociais, faz sobressair de forma trágica o que os homens e as mulheres investem no seu trabalho. Este trabalho que lhes permite ter uma vida familiar, através do consumo tornado possível e ter a capacidade de ter algum domínio sobre o seu futuro, este trabalho reforças a sua identidade. Nas empresas frequentemente estigmatizadas como arcaicas, os trabalhadores associam qualificações pouco reconhecidas para fundarem uma competência colectiva de qualidade, constituída por uma comunidade de trabalho inscrita na duração do tempo, em que cada um tem o seu lugar assegurado. Cada trabalhador isoladamente não poderá invocar uma qualificação elevada, mas sabe pertinentemente que faz viver um colectivo eficaz, capaz de proezas técnicas e com o qual se pode identificar. O trabalho, não é somente o trabalho, é também uma sociabilidade muito rica, produtora de uma cultura de classe, de valores, e de um potencial de contestação que serve de base a um contra-poder. Paradoxalmente descobre-se como é que trabalhadores inscritos numa relação de dependência forte relativamente à empresa tayloriana-fordista conseguem colectivamente e ao longo do tempo produzir um certo tipo de independência: uma vida privada que não tem que suportar as violências da incerteza do emprego, uma inscrição profissional sólida apesar duma fraca qualificação, e uma cultura, valores à distância da racionalidade e da ordem social da empresa. De qualquer modo, um mundo com uma relativa autonomia e uma dignidade possível, mesmo se é estabelecido na base de um trabalho de rotina, extenuante e pouco gratificante.

É este mundo que hoje é desprezado, negado, quando se fecha uma empresa. Considera-se que há todo um caminho de desqualificação envolvido, para legitimar os despedimentos, as rupturas de contrato que representam os planos sociais e os encerramentos de empresas. Desqualificação duma maneira de estar no trabalho, duma maneira de construir a sua vida, duma relação para com o mundo. Repentinamente, tudo o que está associado a estas atitudes, a estes valores, é desconsiderado, torna-se ilegítimo tal como as próprias pessoas.

Estas pessoas perderam os seus lugares, porque estão associadas a um modo de mobilização e de gestão do trabalho que procura rejeitar a gestão moderna e esta quer ter as mãos livres. Elas são assim acusadas de obsolescência, as suas competências colectivas consideradas fora de uso, inadaptadas às novas exigências, em suma, inúteis. São muitas as empresas que encerram devido a reorganizações logísticas e financeiras. As razões desta infelicidade para os trabalhadores são frequentemente nebulosas, o que acresce o sentimento de injustiça. O naufrágio passa, na maior parte do tempo, numa quase indiferença,

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principalmente quando o problema parece ser resolvido pela existência dum plano social destinado a acompanhar estas pessoas em dificuldade.

A exclusão que passam a sofrer é dupla. Sentem-se, por um lado, excluídos e sem razão, do seu ponto de vista, dum mundo com o qual se identificavam, de que obtinham a sua própria legitimidade; agora encontram-se precipitadas, por outro lado, num outro mundo relativamente ao qual não só se sentem desarmadas mas cujos valores e regras lhes são desconhecidas. Um mundo em que já não se enraíza, em que cada um está sempre a ser posto em causa, um mundo assente na concorrência generalizada, um mundo em que cada um segue a sua rota solitária.

É que, de facto, o mundo “antigo” está completamente desqualificado e perdeu toda a sua legitimidade, como a perderam aqueles que com ele se identificavam, que com ele construíram a sua identidade, elaboraram os seus projectos. E que não compreendem porque é o que existia antes já não pode existir mais.

O encerramento, uma perda irreparável

É sob este ângulo que se deve apreender a forma como são vividos os planos sociais que acompanham as reestruturações e os encerramentos de empresas. Como o fim de um mundo, como uma perda irreparável para aqueles que continuam a partilhar os seus valores. É precisamente este sentimento de irreparável que transparece dos inquéritos que nós fizemos junto de mais de uma centena de assalariados despedidos duma grande empresa, na ocorrência a fábrica de calçado Chausson, três anos depois dos seus despedimentos e do fecho da sua empresa. Contudo, neste caso, tratava-se de um plano social, no sentido em que, depois de uma forte mobilização dos trabalhadores organizada pelos sindicatos e com a acção de um mediador, os trabalhadores obtiveram indemnizações consistentes, um período de reconversão e aplicação de uma equipa de reclassificação eficaz. A taxa de reclassificação foi excepcionalmente elevada, uma vez que mais de 80% encontraram um posto de trabalho.

A noção de irreparável traduz a profundidade do enraizamento na empresa e da “certeza” da sua eternidade. Esta empresa que eles perderam está associada à sua história e, para muitos deles, também à da sua própria família.

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O fim de Chausson traduz também, e de modo claro, o fim de trajectórias familiares evidentes. É em filigrana que põe em causa a capacidade dos mais velhos em preparar, proteger, organizar o futuro profissional dos seus filhos. É como se tudo o que tinham feito já não servisse para nada. Uma ruptura dramática é introduzida e que desqualifica de facto tudo o que os mais velhos tinham conseguido impor. Apesar da fragilidade do capital cultural, financeiro e social que lhes podem transmitir, estes desfavorecidos da reprodução tinhas conseguido construir uma relação para com a empresa que tinha em vista uma solução para os seus filhos. Foi todo um equilíbrio familiar que foi abruptamente posto em causa. É a validade dum passado abrindo para direitos para si como para os seus descendentes que foi posto em questão.

Para aqueles que não têm trajectórias familiares inscritas na empresa Chausson, ou porque vieram do campo ou eram imigrantes, o facto de entrarem nesta empresa parecia para eles uma garantia para o resto da vida. Uma garantia de vida: “Chausson, quando entrei, já lá vão vinte anos, com a notoriedade que tinha a empresa eu disse a mim mesmo, fico tranquilo para toda a minha vida, para a reforma, enfim para toda a minha vida”.

Através das entrevistas aos empregados de Chaussons afirma-se o sentimento do que o que desapareceu não é, muito longe disso, uma simples entidade económica e técnica, mas uma empresa marcada pela sua história e reciprocamente histórias familiares marcadas por ela. Há indiscutivelmente, mesmo se isto não é sempre explícito, o sentimento de um direito sobre a fábrica ligado ao facto de nela se terem empenhado a fundo e ao longo de toda sua vida: ela tem a marca deles e eles identificam-se com ela.

Sentem-se todos desapossados de qualquer coisa que também lhes pertence, que faz parte da vida deles. Aparentemente nunca teriam pensado que a vida deles pudesse seguir uma lógica escapando totalmente à da sua empresa. Que se possa colocar um fim, de modo definitivo, não somente na transmissão dum património de empregos, numa sociabilidade, a um sistema de valores que contam infinitamente mais para eles e que eles valorizam nas suas entrevistas, mas também à sua capacidade em virar uma situação de dominação num mundo onde se possa viver e que tenha sentido!

Para compreender o que isto representa, para estes assalariados, o fim deste universo é necessário ter na memória o que o caracteriza, e que acabámos de evocar sucintamente, e mais

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ainda, é necessário ter também presente o que define o novo mundo do trabalho, aquele para o qual vão ser projectados. Porque, e isto ajuda a compreender o seu mal estar e a sua recusa, trata-se de mundos completamente antinómicos em que um representa e significa a desqualificação do outro. Não há nenhuma continuidade entre eles. Se um se funda sobre a estabilidade, sobre o tempo de permanência e empenho na empresa, o outro afirma-se pela sua exigência de fluidez, de mobilidade dos assalariados. Se um se articula em trono de qualificações precisas e pouco complexas, o outro procura e coloca exclusivamente em cena as competências valorizando a capacidade de iniciativa, a capacidade de reacção, a autonomia, o domínio das inovações. Se um é expressamente constituído na base de grandes categorias colectivas, se ele se identifica com lógicas de massa que alimentam os valores dos trabalhadores e permitem sindicatos fortes e mobilizadores, o outro expressa, pelo contrário, o registo do individual, da pessoa, da negociação atomizada de cada um com a sua hierarquia. Num, os assalariados trabalham no quadro de vias balizadas, com referências sólidas, com garantias quanto à progressão na carreira e quanto ao seu futuro enquanto no outro eles funcionam de modo a estarem sempre à prova, do por em causa permanente, da incerteza e da concorrência. Para esquematizar um pouco mais, num valida-se as aquisições e a estabilidade enquanto no outro se defende as situações efémeras e precárias.

Esta oposição que assenta sobre elementos de mudança incontestáveis é ela própria uma figura de retórica de gestão, que apresenta uma tendência evidente em raciocinar em termos dicotómicos de antes e depois da modernização. E a opô-los de forma dramática e espectacular.

É de facto um dos aspectos notáveis da gestão e do marketing de que não se pode fazer tábua raza. Há uma desqualificação sistemática do passado e uma exaltação do que é radicalmente novo. Mas, quem poderá nos fazer crer que estes assalariados que são despedidos por causa da obsolescência não tiveram que se adaptar a múltiplas mudanças tecnológicas e organizacionais ao longo das suas vidas de trabalho?

Não deixa de continuar a ser verdade que estes discursos orquestrados através da comunicação desavergonhada de empresas, entra nas nossas cabeças e cada um avalia-se na linha destas estigmatizações. Os assalariados da indústria “clássica” não estão longe de se compreenderem eles próprios como os antiquados da modernização e futuramente a serem abandonados à sua sorte. O medo legítimo destes assalariados de se verem propulsionados sobre um mercado de trabalho agressivo e pouco aberto ao seu tipo de qualificações é ainda mais ampliado pela retórica de gestão empresarial difundida pelos media.

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Concebe-se tanto melhor o sentimento de injustiça e de violência sentida que anima os assalariados que estes dois mundos, longe de serem mundos naturais, foram pacientemente, progressivamente, construídos pelas direcções das empresas para satisfazerem as suas necessidades. Nos anos cinquenta, as direcções das empresas desenvolveram políticas sistemáticas de fidelização da sua mão-de-obra e tudo fizeram para os fixar: aumento e promoção com a idade, cantinas, carro de transporte, ajuda na habitação, etc. A dependência tão fortemente denunciada por certos médias, os homens políticos e os gestores não são eles mais do que a resultante de políticas voluntaristas das entidades patronais.

A troca é desigual. Eles mostram-se como estrangeiros expulsos das suas fábricas.

“Eu, eu pensava não ter dado pouco à fábrica, mas na realidade, mas, na verdade, apercebemo-nos de que o patrão nem sequer nos conhece. Trabalha-se, é-se pago, e é tudo. Há pessoas que exigem serem reconhecidas”.

“Eu penso que, para eles, tinham vantagem em fechar a fábrica, mas não para nós, não se ocuparam o mínimo que fosse com o pessoal. É verdade que quando se vê o dinheiro que gastaram para reindustrializarem o local e tudo, eles deram não sei quanto para despedir todo o pessoal”.

É a lógica tayloriana que triunfa e impõe a sua visão do mundo. Os trabalhadores não são assim tão diferentes das máquinas. No fim de contas, entre os trabalhadores e o seu patrão não se passava nada do domínio do humano. Pode-se viver durante vinte anos lado a lado sem existir para os decisores, sem reconhecimento algum do que se trouxe de si mesmo para a fábrica. Os assalariados são apenas um custo, em nada se distinguem dos factores de produção que se tornaram obsoletos.

“Eu penso que o director da empresa não conhece os seus trabalhadores. Ele só conhece o andamento da empresa e os seus resultados financeiros. Deixámos que nos dessem a volta; não como gente indecente mas enfim quase, como gente gasta: não precisamos mais de vocês. Acabou-se, desenrasquem-se vocês. Fecha-se a porta e vamo-nos embora” Brutalmente, não são mais nada na empresa.

“Deixámos a fábrica da seguinte maneira. Eu disse: preciso de recuperar os meus

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pertences. Eles responderam-me: se tem colegas, eles vão recuperá-los. Foi exactamente assim: Aquele que sai da fábrica, desde que assina os papéis, vai-se embora. Assinou a carta de despedimento.”

Neste contexto de extrema destabilização onde poderiam eles encontrar então os recursos para enfrentarem o futuro como lhes pedem os consultores dos organismos de reconversão. Ao sentimento de humilhação acresce-se o sentimento de traição. No fundo, nunca compreenderão porque fechou a sua fábrica.

Encontra-se assim a situação descrita por Barel a que chama de sociedade do vazio no sentido em que já não há nenhuma forma da base compreender as decisões nem de saber onde é que estas se tomam.: o vazio social, é primeiramente o aparecimento desta distância quase inultrapassável entre a base e o topo, o local e o global, distância criada pelo desaparecimento e pela usura de numerosos canais de mediação, códigos de comunicação. A base deixou de saber onde é que está o poder, como o procurar, como se lhe dirigir para se fazer entender e para o influenciar.

Anos depois do encerramento de Chausson, muitos não foram capazes de ultrapassar o fecho da empresa. Cada um encontra-se reenviado à sua situação individual. O trabalho do luto (pelo trabalho perdido) faz-se sozinho. O encerramento da fábrica é vivido por muitos deles não somente como o pôr em causa o seu futuro mas igualmente como um apagamento, uma negação do seu passado. Induz-se assim para eles, uma perda do seu passado, uma perda das suas lembranças. Não se é mais nada.

Ciclo organizado pelos docentes da disciplina de Economia Internacional

da Faculdade de economia da Universidade de Coimbra

Colaboração do Núcleo de Estudantes de Economia da Associação Académica de Coimbra

Apoio da Coordenação do Núcleo de Economia da FEUC

Com o apoio das instituições:

Caixa Geral de Depósitos

Fundação Luso-Americana

Fundação para a Ciência e Tecnologia

Fundação Calouste Gulbenkian

Ciclo Integrado de Cinema, Debates e Colóquios na FEUC

DOC TAGV / FEUC

Integração Mundial, Desintegração Nacional:

a Crise nos Mercados de Trabalho

Textos seleccionados, traduzidos e organizados por:

Júlio Mota

Luís Peres Lopes

Margarida Antunes

Globalização é um daqueles termos que passaram directamente da obscuridade

para a ausência de sentido, sem qualquer fase intermédia de coerência.

Mas deixem-me dizer apenas o seguinte: a globalização é também muito importante

e é totalmente consistente com mais e melhores empregos,

salários decentes e empregos decentes.

Robert Reich