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Candido Portinari O Direito à Alimentação sob o Olhar dos Líderes da Pastoral da Criança no Município de São João de Meriti Juliana Pereira Casemiro

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Candido Portinari

O Direito à Alimentação sob o Olhar

dos Líderes da Pastoral da Criança no

Município de São João de Meriti

Juliana Pereira Casemiro

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Ministério da Saúde

Fundação Oswaldo Cruz

Mestrado em Saúde Pública

Departamento de Endemias Samuel Pessoa

O Direito à Alimentação sob o Olhar dos Líderes da Pastoral da Criança no Município de São João

de Meriti

Juliana Pereira CasemiroJuliana Pereira CasemiroJuliana Pereira CasemiroJuliana Pereira Casemiro

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Saúde Pública no Departamento de Endemias Samuel Pessoa da Escola Nacional de Saúde Pública - FIOCRUZ, como requisito parcial para obtenção do grau de mestre. Área de concentração: Endemias, Ambiente e Sociedade.

Orientador : Victor Vincent Valla

Rio de Janeiro Março/2006

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O Direito à Alimentação sob o Olhar dos Líderes da Pastoral da Criança no Município de São João de Meriti

Autora: Juliana Pereira Casemiro Orientador: Victor Vincent Valla

BANCA EXAMINADORA: Prof. Dr. Victor Vincent Valla Escola Nacional de Saúde Pública – FIOCRUZ Prof a. Dra. Maria Beatriz Lisboa Guimarães Escola Nacional de Saúde Pública – FIOCRUZ Prof a. Dra. Cláudia Valéria Cardim da Silva Instituto de Nutrição - UERJ

Dissertação apresentada e aprovada em 29 de março de 2006.

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CASEMIRO, Juliana Pereira O Direito à Alimentação sob o Olhar dos Líderes da Pastoral da Criança no Município de São João de Meriti – Departamento de Endemias Samuel Pessoa da Escola Nacional de Saúde Pública – FIOCRUZ, Rio de Janeiro - RJ, Março, 2006, p. [Dissertação de Mestrado] (...)

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AGRADECIMENTOS

“Este meu canto é grito de alegria“Este meu canto é grito de alegria“Este meu canto é grito de alegria“Este meu canto é grito de alegria É um canto d’alma que traduz um brado;É um canto d’alma que traduz um brado;É um canto d’alma que traduz um brado;É um canto d’alma que traduz um brado;

Como um poema que nasce neste dia,Como um poema que nasce neste dia,Como um poema que nasce neste dia,Como um poema que nasce neste dia, Numa palavrNuma palavrNuma palavrNuma palavra tão terna a tão terna a tão terna a tão terna –––– obrigado!” obrigado!” obrigado!” obrigado!”

(Maria Stella de Almeida Moura)

Agradeço a Deus. Agradeço ao professor Valla pela orientação neste trabalho e pelos novos caminhos que me apresentou, ajudando-me a enxergar a pobreza de outra forma e desvendando-me de muitas miragens deste mundo. Agradeço de coração à querida professora Beatriz Guimarães por sua generosidade, apoio e atenção. Sou grata pela orientação, amizade e incentivo. Minha eterna gratidão à minha amorosa família: aos meus pais, com orgulho pelos referencias de vida; ao Zé e à Carol, meus queridos irmãos; ao tio Janér e tia Angelina que acompanham com zelo e amor cada passo de nossas vidas. Agradeço também à tia Gilka pelo incentivo, inspiração e carinho. Agradeço com muita estima a todos os lutadores e lutadoras da Pastoral da Criança pela generosa acolhida que deram a este trabalho. Aos Líderes de São João de Meriti pelo interesse, carinho e participação. Sou muito grata à Isabel (Coordenadora Estadual da Pastoral da Criança) e ao Mário pela confiança e carinho e também à Bárbara, Ana Cláudia e Chaves, tão queridos e atenciosos. Muito Obrigada! Agradeço à Regina de Oliveira, ao Jorge Monção e Andréa David grandes amigos e lutadores incansáveis na promoção do Direito Humano à Alimentação. Agradeço aos colegas de Mestrado pela troca, pelos debates e pelas risadas de intervalo. Em especial agradeço às minhas grandes amigas Luciana Garritano, Carla Decoteli, Rafaela Cotrim e Graziela Scarlécio. Agradeço aos funcionários da secretaria do Departamento de Endemias pelo apoio e disponibilidade, em especial à Carla sempre tão prestativa e atenciosa. Agradeço aos professores do Departamento de Endemias Samuel Pessoa e aos demais professores da ENSP pela dedicação e pela inestimável contribuição em minha formação profissional. Agradeço à colaboração e atenção de Edson Fernando de Almeida, avaliador na Qualificação, e Cláudia Valéria Cardim da Silva, avaliadora na Defesa desta Dissertação, que contribuíram de forma tão generosa e rica para a construção deste trabalho.

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RESUMO Os casos de violação do Direito Humano à Alimentação no Brasil, sob suas diversas manifestações, não se distribuem ao acaso: são construções históricas fruto de decisões tomadas pela elite econômica e política de nosso país. A religião popular tem revelado um grande potencial agregador, representando em muitas ocasiões a possibilidade de um espaço de livre expressão e de apoio às pessoas em suas dores, constrangimentos, dúvidas e aflições. O final da década de 1980 revela mudanças nas relações entre religião, sociedade e política relacionadas com experiências de engajamento social e político de instituições e grupos religiosos através da igreja popular, as comunidades de base, a teologia da libertação, o movimento ecumênico e o movimento de direitos humanos. Criada em 1983, a Pastoral da Criança da Igreja católica trabalha de forma ecumênica a mobilização social em torno das ações básicas de saúde voltadas à população materno infantil, “capacitando” lideranças que residem na própria comunidade. A Pastoral da Criança atua há aproximadamente dez anos em São João de Meriti: município essencialmente urbano localizado na região metropolitana do Rio de Janeiro. Este estudo foi realizado a fim de investigar a percepção dos Líderes da Pastoral da Criança que atuam em de São João de Meriti sobre as condições de promoção e defesa do direito à alimentação neste município. Realiza-se ainda um debate acerca das relações estabelecidas entre religiosidade e enfrentamento da pobreza, identificando fatores que intervêm na mobilização deste grupo. Trata-se de um estudo qualitativo que reuniu um grupo de dez Líderes da Pastoral da Criança em três sessões de Grupo Focal (utilizando “Roteiros de Debates” pré-elaborados e registrando através de gravações em fita K7). Complementarmente foi utilizada a técnica de Observação Participante com registro em Diário de Campo. Destaca-se como resultado que desemprego e subemprego e a dificuldade de acesso aos serviços públicos de saúde, assistência social e saneamento foram apresentados como principais obstáculos para a efetivação do Direito Humano à Alimentação. As falas apresentaram análise crítica sobre as ações poder público e revelaram desalento ao tratarem do assistencialismo. A religião tem para este grupo uma função de “protesto simbólico” (Parker, 1996) frente aos grandes desafios impostos por uma realidade de extrema desigualdade e pobreza, perpetuadas pelas lacunas deixadas pelo poder público.

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ABSTRACT

The cases of violation in human right to food in Brazil, under its many manifestations, are not distributed at random: they are historical constructions derived from decisions made by the economical and political elite in our country. The popular religion has revealed a huge aggregate potential, representing, in many occasions, the possibility of a space for open expression and support to people in their pains, embarrassments, doubts and afflictions. The end of the 80’s shows relation changes in religion, society and politics. Such changes are related with social and political commitment experiences from religious institutions and groups through the popular church, the base communities, the liberation theology, and the ecumenical and human rights movement. Created in 1983, the Pastoral da Criança from the Catholic Church works the social mobilization in basic health actions concerning maternal childhood population in an ecumenical way, enabling leaderships that live in the very community. The Pastoral da Criança acts in São João de Meriti for about ten years. This town is an essentially urban one located in Rio de Janeiro’s metropolitan area. This study was done in order to investigate the perception from the Pastoral da Criança leaders that act in São João de Meriti over the promotion and defense of the right to food in that town. There is also a debate over the established relations between religiosity and poverty confrontment, identifying factors that interfere in the mobilization of this group. It is about a qualitative study that gathered a group of ten Pastoral da Criança leaders in three sessions of Focal Group (using “Debate Guides” elaborated in advance and registering it through recordings in K7 tapes). The Participant Observation technique was used complementarily with registers in a field diary. It stands out as a result that unemployment and underemployment, and the access difficulty to the public health systems, social assistance and sanitation were presented as main obstacles for the effectiveness of the human right to food. The speeches presented a criticism analysis over the public power actions and revealed discouragement when dealing with assistance. For this group the religion has a role of a “symbolic protest” (Parker, 1996) when facing the big challenges imposed by an extreme inequality and poverty, perpetuated by the public power omissions

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SUMÁRIO

1- Apresentação ........................................................................................................ 01

2- Introdução ............................................................................................................. 04

2.1. Objetivos ......................................................................................................... 07

2.1.1. Objetivo Geral ..................................................................................... 07

2.1.2. Objetivos Específicos .......................................................................... 07

3- Metodologia .......................................................................................................... 08

4- Situação Problema: Pobreza Metropolitana: O Caso da Pastoral da Criança em

São João de Meriti ................................................................................................ 14

4.1. Pobreza Metropolitana: O Contexto do Rio de Janeiro ................................... 14

4.2. São João de Meriti: História e Dados Socioeconômicos ................................. 19

4.3. Pastoral da Criança em São João de Meriti .................................................... 25

5- Revisão da Literatura: O Direito Humano à Alimentação ..................................... 35

5.1. Direito Humanos no Brasil: Um Breve Contexto ............................................. 36

5.2. Direito à Alimentação: Instrumentos de Afirmação e Proteção ....................... 38

5.3. Direito ao Alimento que Nutre ......................................................................... 42

5.4. A Violação do Direito Humano à Alimentação: Uma Prisão Invisível ...............44

6- Resultados e Discussão ....................................................................................... 48

6.1. Direito Humano à Alimentação Sob o Olhar dos Líderes da Pastoral da

Criança ......................................................................................................... 48

6.2. Religiosidade e Pobreza Sob o Olhar dos Líderes da Pastoral da Criança ..70

7- Considerações Finais .......................................................................................... 84

8- Referencia Bibliográfica ....................................................................................... 90

9- Anexos ................................................................................................................. 97

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A casa onde a fome mora

(Antônio Francisco – de Mossoró) Eu de tanto ouvir falar Dos danos que a fome faz, Um dia saí atrás Da casa onde ela mora Passei mais de uma hora Rondando numa favela Por gueto, beco e viela, Mas voltei desanimado. Aborrecido e cansado Sem ter visto o rosto dela. Vi a cara da miséria Zombando da humildade, Via a mão da caridade Num gesto de um mendigo Que dividia o abrigo, A cama e o travesseiro Com um velho companheiro Que estava desempregado; Vi da fome o resultado Mas, dela, nem o roteiro. Vi num barraco de lona Da esperança um rápido brilho Nos olhos tristes do filho De um pai abandonado Primo carnal do pecado, Irmão dos raios da lua Com a carcaça seminua, Tatuada de caliça, Pedindo um pão de justiça Do outro lado da rua. Vi a gula pendurada No peito da precisão. Vi a preguiça no chão Sem ter força de vontade, Vi o caldo da verdade. Fervendo numa panela, O jejum numa janela Dizendo: aqui ninguém come. Ouvi os gritos da fome Mas não a garganta dela. Vi o orgulho ferido Nos braços da ilusão, Vi pedaços de perdão Pelos iníquos quebrados Vi sonhos despedaçados, Partidos antes da hora. Vi o amor indo embora, Vi o tridente da dor... Nem de longe eu vi a cor Da casa que a fome mora. Passei a noite acordado, Sem saber o que fazer Louco, louco pra saber Onde a fome residia.

E, porque naquele dia, Ela não foi na favela? E qual o segredo dela Que a tantos milhões pisava, Amolecia e matava Mas ninguém matava ela. Quando o dia amanheceu Saí de novo atrás dela Mas não naquela favela... Fui procurar num sobrado Que tinha do outro lado Onde morava um sultão. Quando pulei o portão, Eu vi a fome deitada Em uma rede estirada No alpendre da mansão. Eu pensava que a fome Fosse magricela e feia Porém era uma sereia De corpo espetacular. E quem iria culpar Aquela linda princesa De tirar o pão da mesa Dos subúrbios da cidade E pisar sem piedade Numa criança indefesa? Engoli três vezes nada E perguntei o seu nome Respondeu-me: sou a fome Que assola a humanidade, Ataco vila e cidade, Deixo o campo moribundo. Eu não descanso um segundo, Atrofiando e matando, Me escondendo e zombando Dos governantes do mundo. Alimento-me das obras Que são superfaturadas, Das verbas que são guiadas Pra os cofres dos marajás, E me escondo por trás Da fumaça do canhão Dos supérfluos da mansão, Da soma dos desperdícios Na queima dos artifícios Que cegam a população! Tenho pavor à justiça, Tenho medo da igualdade, Banho-me na vaidade Da modelo desnutrida. Da renda mal dividida Na mão do cheque sem fundo Sou pesadelo profundo Do sonho do bóia-fria. E almoço todo dia Nos 5 estrelas do mundo!

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1 - APRESENTAÇÃO:

“Uma pessoa com fome está rebaixada em sua dignidade, em sua qualidade de pessoa; o pão restitui energias ao corpo, porém regenera - ao mesmo tempo – a dignidade à pessoa e permite que ela se reintegre ao mundo dos seres humanos, deixando para trás o mundo dos ‘menos válidos e dos indigentes.’” (PARKER, 1995: 275)

No ano de 2002 tive a primeira aproximação com Líderes da Pastoral da Criança

durante o período em que trabalhei como Nutricionista na Secretaria de Estado de

Saúde do Rio de Janeiro, no CRESCER - Programa de Combate à Desnutrição Infantil

na Baixada Fluminense.

O CRESCER foi proposto a partir de um Planejamento Estratégico de Governo em

resposta às demandas apresentadas pelo Mutirão de Combate à Desnutrição Materno

Infantil1 dos municípios de São João de Meriti e Duque de Caxias e tinha como objetivo

traçar o diagnóstico nutricional das crianças menores de cinco anos da região e a sua

inclusão em programas de complementação de renda e de combate a carências

nutricionais. Sua sede foi a Secretaria de Estado de Desenvolvimento da Baixada

Fluminense (SEDEB), localizada no município de Nova Iguaçu. Foi implantado em cinco

municípios entre junho e dezembro de 2002 tendo como principais resultados: a

captação de mais de 31.000 crianças - o que representa em média 38% da população

infantil destes municípios (IBGE, 2001) - e a identificação e o beneficiamento de mais

de 8.450 crianças em baixo peso - o que representa 26,95 % da amostra, extrapolando

a previsão de 16,93% da PNDS (1996). Foram envolvidas cerca de 1.300 pessoas,

entre voluntários da Sociedade Civil (dentre estes Líderes da Pastoral da Criança),

estudantes Universitários e de Cursos Técnicos de Enfermagem e profissionais de

saúde de várias categorias.

Após a transição do Governo Estadual em janeiro de 2003 o Programa ficou sob

avaliação durante pouco mais de um mês. Em cinco de fevereiro foi publicado em

Diário Oficial que havia a intenção do governo estadual de integrar o CRESCER a outro

1 O Mutirão de Combate à Desnutrição Materno Infantil tem como principal porta-voz o Bispo Diocesano Dom Mauro Morelli. É uma articulação de diversas entidades da sociedade civil: Diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti, Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal – IPPUR-UFRJ, Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE, Conselho de Entidades Populares, Associação Batista Meritiense – ABM e Casa da Cultura – Centro de Formação Artística e Cultural da Baixada Fluminense (SILVA, 2003).

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programa do estado, o Cheque-Cidadão. A transição para este outro programa não

ocorreu e o CRESCER foi extinto. A avaliação do desdobramento deste trabalho foi

prejudicada, porque os contatos em nível institucional tiveram que cessar com o fim do

Programa. Os impactos, negativos ou positivos, se existiram, não foram avaliados.

Estes acontecimentos causaram grandes inquietações e questionamentos que, durante

o Curso de Especialização em Saúde Pública – ENSP/FIOCRUZ (2003), motivaram a

escolha do objetivo para minha monografia que foi analisar a práxis da Pastoral da

Criança no combate à fome, a partir de uma reflexão crítica sobre a história das

Políticas de Alimentação e Nutrição no Brasil e a atuação das organizações da

sociedade civil para a construção dessas políticas. Foi um estudo qualitativo que

registrou um Curso de Formação de Líderes da Pastoral da Criança e entrevistas

realizadas com Coordenadores Estaduais da Pastoral da Criança.

A opção de estudar a Pastoral da Criança da Igreja Católica deu-se por seu

reconhecimento, em nível nacional e internacional, e pelo grau de organização das

informações geradas por essa entidade. Desde o primeiro contato foi possível identificar

uma uniformidade nas ações desenvolvidas pelos diversos grupos, mas com algum

grau de adaptação às características locais, um traço que chamou bastante atenção.

Para a realização da monografia entrei em contato com a coordenadora estadual da

entidade que me autorizou a fazer o Curso de Formação de Líderes da Pastoral da

Criança, realizado durante o mês de setembro de 2003. Enxergando a construção

compartilhada do saber como ferramenta essencial de trabalho e acreditando na

importância da união do saber técnico ao saber popular coloquei-me a disposição da

entidade. Fui convidada pela coordenação estadual da Pastoral da Criança para atuar

no Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado do Rio de

Janeiro (CONSEA – RJ) e desde então tenho realizado este trabalho voluntário.

Esta atividade representa a possibilidade de estar em um local privilegiado de

observação do cenário nacional e estadual no que se refere a Segurança Alimentar e

Nutricional num momento histórico e perigoso. Isto porque, se por um lado foi expressa

a intenção de iniciar uma longa jornada, quando em seu discurso de posse o presidente

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Luis Inácio Lula da Silva assume o combate à fome como prioridade de seu governo,

por outro este debate tem sido palanque para especulações e rivalidades.

Das reflexões e conclusões de minha monografia a que mais motivou este novo estudo

foi a observação de que há muita força nos que se propõe a esse trabalho voluntário.

Essa força não é só braço (para pesar e registrar), não é só ouvido e voz que (que

escuta e repete) é coração e cérebro que sente e pensa, capaz de propor outros

caminhos e capaz de alcançar a comunidade como um todo. Como “grito do oprimido”,

proposto por Marx, ou “protesto simbólico”, por Parker, o fato é que existem vozes a

serem ouvidas.

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2 - INTRODUÇÃO:

Este estudo pretende investigar a percepção dos Líderes da Pastoral da Criança que

atuam no município de São João de Meriti, Estado do Rio de Janeiro, sobre as

condições de promoção e defesa do direito à alimentação neste município.

O combate à fome tem estado na pauta dos governos com propostas que enfatizam o

papel central da sociedade civil, seja ele no controle público das ações seja no que se

refere ao trabalho voluntário para desenvolvimento das ações.

É importante salientar que a política da fome no Brasil é uma das faces de um país

desigual marcado por escolhas de elites cúmplices aos interesses internacionais,

seduzidas pelo lucro fácil e manutenção de privilégios. Entre tantas dívidas acumuladas

no decorrer dessa história a maior de todas e também a mais difícil e urgente de ser

quitada é a dívida social. Gerações de brasileiros sobrevivendo de promessas, de

caridade e das sobras deste Brasil das elites. Essa dívida, que hoje tem lugar cativo nas

manchetes, foi camuflada e negligenciada por décadas e, finalmente, revelada pelos

movimentos de redemocratização da década de 1980, quebrando a “conspiração de

silêncio”2 a que se referia Josué de Castro.

A relevância deste estudo reside no fato de estar se propondo a analisar um município

de uma região metropolitana e que tem forte experiência com a mobilização popular

articulada à religiosidade, dando a possibilidade de abordar temas considerados

importantes ao entendimento das condições de vida e saúde das classes populares. As

regiões metropolitanas representam atualmente as áreas de maior concentração

populacional do país e também as que mais concentram graves problemas como

desemprego, violência e precariedade de oferecimento de serviços públicos.

No que se refere à religião, deve-se lembrar seu grande potencial agregador,

especialmente no que diz respeito às práticas populares, que têm representado em

muitas ocasiões a possibilidade de um espaço de livre expressão e de apoio às

pessoas em suas dores, constrangimentos, dúvidas e aflições. Valla (2001) alerta para 2 Josué de Castro, em 1946, no prefácio de seu clássico livro Geografia da Fome o dilema brasileiro: pão ou aço afirma que o tema da fome por ser tão delicado e perigoso se constitui num dos tabus de nossa civilização. Destaca a escassez bibliográfica acerca do assunto afirmando este fato como uma “conspiração de silêncio” (Castro, 2001).

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a necessidade de um cuidado especial ao interpretar a ações das classes populares e

sua relação com a religião: o que pode ser visto apenas como estratégia para resolver

um problema material pode ser também uma forma de procurar explicação e sentido,

“algo que faz a vida mais coerente” (VALLA, 2001: 49), encontrando relação com a

proposta de apoio social.

David (2001) afirma um retorno da religiosidade nas sociedades modernas e apresenta

como fator determinante para esse fenômeno o reconhecimento dos limites da

racionalidade científica ocidental (reducionista e fragmentada) como utopia e

possibilidade de libertação da humanidade. Esta autora, citando as reflexões de

Martins, diz que às promessas não cumpridas pela ciência somam-se outras

explicações como: a perda dos referenciais e valores éticos, fracasso das grandes

utopias políticas que pregavam a libertação das massas, e uma valorização crescente

da esfera da psique individual e da microesfera da vida cotidiana, inclusive na área da

pesquisa sociológica (DAVID, 2001).

Desde o final da década de 1980 observam-se mudanças nas relações entre religião,

sociedade e política relacionadas com experiências de engajamento social e político de

instituições e grupos religiosos através da igreja popular, as comunidades de base, a

teologia da libertação, o movimento ecumênico e o movimento de direitos humanos

(BURITY, 2003).

Criada em 1983, a Pastoral da Criança da Igreja católica trabalha de forma ecumênica a

mobilização social em torno das ações básicas de saúde voltadas à população materno

infantil, “capacitando” lideranças que residem na própria comunidade.Tem como áreas

prioritárias: saúde da gestante, aleitamento materno, vigilância nutricional, reidratação

oral e vacinação3.

Existe uma constatação unânime de que a redução da mortalidade e da desnutrição

infantil ocorridas nas últimas décadas estão fortemente relacionadas à priorização das

ações básicas de saúde e às melhorias no acesso a serviços públicos como

saneamento básico. Contudo, a distribuição destas conquistas não se deu de forma

3 www.pastoraldacrianca.org.br/portugues/estat

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igual – encontram-se excluídos deste processo parte do Norte e Nordeste, áreas rurais

e os bolsões de pobreza de regiões metropolitanas.

São João de Meriti é um dos 13 municípios que compõem a Baixada Fluminense na

região metropolitana do estado do Rio de Janeiro. É uma cidade essencialmente

urbana, com uma das maiores densidades demográficas do país que expõe sua

população a precariedades no que se refere ao oferecimento de serviços públicos,

sobretudo de saúde, saneamento e assistência social.

Este trabalho terá como eixos norteadores os debates acerca do Direito Humano à

Alimentação e a relação da Religiosidade Popular com estratégias de enfrentamento da

pobreza vivenciadas pelas classes populares. Neste sentido, a descrição da situação

problema refletirá sobre a pobreza em regiões metropolitanas, destacando as

características da metrópole fluminense e inserindo o município de São João de Meriti

neste contexto. Refletirá ainda, sobre o histórico e as ações da Pastoral da Criança

retomando aspectos do contexto histórico do período de sua criação. Apresenta-se uma

revisão bibliográfica acerca das condições de promoção e defesa do Direito Humano à

Alimentação no Brasil. Em seguida, os resultados são apresentados em dois momentos

distintos: um destinado às falas dos Líderes sobre direito à alimentação e outro

destinado às reflexões sobre religiosidade. Por último são apresentadas as

considerações finais.

Esta dissertação apresenta reflexões iniciais sobre temas complexos e polêmicos.

Utilizando “lentes” emprestadas pelos Líderes da Pastoral da Criança de São João de

Meriti, pretende-se aproximar o foco sobre o Direito Humano à Alimentação. Será um

olhar que não se afirma nem como neutro nem tão pouco como definitivo. Não há a

pretensão de esgotar o assunto, muito pelo contrário pretende-se contribuir para que

seja provocado o debate: incomodar a comodidade tanto do “ser especialista” quanto do

“ser organização da sociedade civil” na clausura de suas certezas e incertezas.

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2.1- Objetivos:

2.1.1- Objetivo Geral

Investigar a percepção dos Líderes da Pastoral da Criança que atuam em São João de

Meriti sobre as condições de promoção e defesa do direito à alimentação e nutrição

neste município.

2.1.2- Objetivos específicos

• Identificar quais fatores intervem na mobilização dos Líderes, dando ênfase

ao papel da religiosidade, da caridade e da dádiva;

• Debater o trabalho cotidiano dos Líderes, em especial no que se refere a

ações de promoção e defesa do direito à alimentação e nutrição;

• Conhecer as percepções dos Líderes da Pastoral da Criança acerca dos

determinantes da fome e desnutrição no município de São João de Meriti;

• Contribuir para a reflexão sobre as relações que os Líderes da Pastoral da

Criança estabelecem entre controle público e direito à alimentação.

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3 - METODOLOGIA:

“O conhecimento científico é sempre uma busca de articulação entre uma teoria e a realidade empírica; o método é o fio condutor para formular esta articulação”. (MINAYO, 1993:240)

Tendo como objetivo investigar a percepção dos Líderes da Pastoral da Criança que

atuam em São João de Meriti sobre as condições de promoção e defesa do direito à

alimentação em seu município, realizou-se um estudo qualitativo, utilizando a

observação participante e o grupo focal.

Deve-se destacar que este estudo utilizou uma concepção denominada “investigação

científica do ponto de vista popular” que Valla (2004) descreve a partir de reflexões de

José Luís Corrágio. Sob esta perspectiva, trata-se de realizar uma pesquisa através de

métodos e instrumentos científicos “porém a luz do olhar das classes populares”. Valla

(2004) apresenta esta estratégia como forma de realizar uma pesquisa que posicione-

se nas “lacunas” deixadas pelas informações veiculadas pelos meios de comunicação

em massa e difundidas pelos governantes, que estão distantes de refletir o dia-a-dia

das periferias(VALLA, 2004).

A primeira etapa deste trabalho foi a análise bibliográfica. Para o debate da religião

recuperou-se a recente trajetória da religião na América Latina. Para a análise da

motivação (mobilização) para o trabalho e a agregação de voluntários foram visitados

textos acerca da religiosidade popular. O direito à alimentação foi o tema mais

intensamente refletido tendo como referencial os debates sobre Segurança Alimentar e

Nutricional e sobre os direitos humanos no Brasil. Para a caracterização do problema,

foi recuperado um histórico sobre a Pastoral da Criança e suas principais ações e, em

especial, sua trajetória em São João de Meriti.

No entrelaçar destes debates, bem como nas etapas subseqüentes, procurou-se

realizar análise segundo uma abordagem dialética considerando contradições e os

contextos.

Parece ser o cotidiano dos Líderes da Pastoral da Criança o mais revelador da atuação

da entidade e sobre as motivações para este trabalho voluntário. Neste sentido, DAVID

(2001) cita Neves para afirma que os estudos sobre religiosidade devem utilizar como

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opção metodológica o cotidiano, compreendendo a visão da religiosidade não apenas

em seu aspecto institucional – a Igreja – mas perpassando vários domínios sociais o

que permite examinar uma forma de conhecer e conceber o mundo que absorve parte

do “cotidiano dos devotos” (DAVID, 2001: 73).

Segundo Minayo (1993), a fala é reveladora de condições estruturais, de sistemas de

valores, normas e símbolo (sendo ela mesma um deles) e ao mesmo tempo “possui a

magia de transmitir, através de um porta-voz” representações de grupos determinados

em condições históricas, socioeconômicas e culturais específicas. Afirma ainda que:

“O material primordial da investigação qualitativa é a palavra que expressa a fala cotidiana, seja nas relações afetivas e técnicas, seja nos discursos intelectuais, burocráticos ou políticos”. (MINAYO, 1993: 245)

Em geral, a finalidade de uma pesquisa qualitativa é intervir em uma situação

insatisfatória e mudar condições percebidas como transformáveis (CHIZZOTTI,1991). A

pesquisa baseada na participação se desenvolve como resposta política contra a

marginalização de determinados setores sociais, concebidos como meros receptáculos

de um assistencialismo que pretende doar seus conhecimentos (RIZZINI, 1999).

A observação participante se dá por meio do contato direto do pesquisador “com o

fenômeno observado”. Este método permite o contato com os atores em seu contexto

natural de forma que sejam recolhidas informações a partir da compreensão e sentido

que os atores atribuem a seus atos (CHIZZOTTI, 1991).

“A observação participante é uma técnica de pesquisa que pressupõe a não neutralidade do pesquisador em relação ao objeto de estudo. O pesquisador procura, através dessa influência, integrar-se ao grupo estudado a fim de ter mais informações sobre os fenômenos, por estar vivenciando juntamente com os sujeitos pesquisados as situações do seu dia-a-dia” (RIZZINI, 1999:67).

Neste estudo a observação participante foi realizada através de acompanhamento das

atividades da Pastoral da Criança em paróquias de São João de Meriti, no estado do

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Rio de Janeiro. Foram objeto de observação: “Reunião para Reflexão e Avaliação”4;

“Celebração da Vida”5 e “Visitas Domiciliares”6..

A fim de não causar constrangimentos ou mudanças de atitude, foi utilizado um “Diário

de Campo”. Segundo Rizzini (1999) o “Diário de Campo” consiste em relato escrito do

que o investigador presencia, ouve, observa e pensa durante o recolhimento de dados.

Afirma que bons resultados pressupõem anotações precisas e detalhadas (RIZZINI,

1999).

A utilização das técnicas de observação participante e de grupo focal ocorreu de forma

integrada e concomitante. Segundo Neto et al (2001), pode-se definir Grupo Focal

como:

“(...) uma técnica de pesquisa na qual o pesquisador reúne, num mesmo local e durante um certo período, uma determinada quantidade de pessoas que fazem parte do público-alvo de suas investigações, tendo como objetivo coletar, a partir do diálogo e do debate com e entre eles, informações acerca de um tema específico”. (NETO et al, 2001:9)

Krueger apud Neto et al (2001) afirma que o número de participantes de um Grupo

Focal deve ser de no mínimo quatro e no máximo doze pessoas, sendo “pequeno o

suficiente para que todos tenham a oportunidade de expor suas idéias e grande o

bastante para que os participantes possam vir a fornecer consistente diversidade de

opiniões” (NETO, 2001: 16).

A definição do grupo tanto ao que se refere à quantidade de participantes quanto à

seleção dos mesmos deu-se durante o trabalho de campo, tendo como base os

contatos realizados neste período. Foram convidados Líderes que atuavam a mais de

seis meses, na Pastoral da Criança em São João de Meriti.

4 Reuniões mensais entre os Líderes onde discutem o andamento dos trabalhos e trocam experiências. Neste trabalho foram observadas as “Reuniões de Área” que correspondem à todas as Paróquias que possuem Pastoral da Criança no município. 5 Encontro mensal em que os Líderes reúnem mães, responsáveis e crianças para que estas sejam pesadas. De acordo com programações dos Líderes podem ocorrer atividades tais como: orações, lanches, recreação e atividades educativas ou de troca de experiências com as mães. 6 Visitas realizadas pelos Líderes às famílias utilizando o Guia do Líder e outros materiais produzidos pela Pastoral da Criança.

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Para a seleção dos participantes Neto et al (2001) sugerem: que devem fazer parte da

população-alvo; devem ser convidados com antecedência e estar devidamente

esclarecidos sobre o tema abordado e os objetivos da pesquisa; e que os critérios

utilizados na seleção dos componentes de cada grupo devem estar vinculados aos

objetivos e aos resultados que a pesquisa deseja alcançar.

A “fala” no Grupo Focal não é meramente descritiva ou expositiva, mas sim uma “fala

em debate”. Por este motivo, as questões apresentadas pelo pesquisador devem ser

capazes de incentivar o debate entre os participantes, sem que isto equivalha à

preocupação com a formação de consensos. Destaca-se que é importante que todos

tenham possibilidades equânimes de apresentar suas concepções e que elas sejam

discutidas e refinadas. Ressalta-se que, por trabalhar com reflexões expressas através

da ‘fala’ dos participantes, permite que estes apresentem seus conceitos, impressões e

concepções sobre o tema (NETO et al, 2001).

Para cada encontro foi elaborado um “Roteiro de Debates” (ANEXO 2), contendo os

tópicos a serem discutidos. A literatura sugere sua utilização pelo “mediador” para

conduzir o Grupo Focal para que as sessões sejam bem direcionadas e nenhum tema

deixe de ser mencionado. Cada Roteiro é composto por um grupo de “questões-chave”,

que devem propiciar o levantamento e a obtenção de informações elucidativas acerca

dos objetos específicos propostos pelo trabalho (NETO et al, 2001).

Foram realizados três encontros nos meses de outubro e novembro de 2005, abornado

os seguintes temas:

- 1ª Sessão: Acesso à alimentação e nutrição no município de São

João de Meriti;

- 2ª Sessão: Os fatores que mobilizam e integram os Líderes para as

ações da Pastoral da Criança em São João de Meriti e as reflexões

sobre o trabalho cotidiano dos Líderes;

- 3ª Sessão: Perspectivas para as ações de promoção do direito à

alimentação e sobre o controle público.

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12

Os encontros foram realizados na sede da Pastoral da Criança em São João de Meriti

em datas e horários definidos junto ao grupo. As sessões tiveram duração média de

uma hora e meia.

Por ser uma técnica que visa a coleta de dados qualitativos, tanto as relações de

amostragem quanto o número de Grupos Focais a ser realizado não são rigidamente

determinadas por fórmulas matemáticas, mas pelo esgotamento dos temas. Destaca-se

também que não há necessidade de recrutar todos os componentes do público-alvo e

que jamais poder-se-á inferir que as informações obtidas sejam válidas para todo

universo pesquisado (NETO et al, 2001).

Segundo Neto et al (2001), para a realização do Grupo Focal é necessário o

desempenho de seis funções. O “mediador” é responsável pelo início, motivação,

desenvolvimento e conclusão dos debates, sendo das seis funções a única que deve

intervir e que pode interagir com os participantes. O “relator” deve anotar as falas,

nominando-as e associando-as aos motivos que as incitaram, e deve registrar a

linguagem não verbal dos participantes (tons de voz, expressões faciais e gesticulação).

O “observador” tem como função analisar e avaliar o processo de condução do Grupo

Focal. O “operador de gravação” deve gravar integralmente os debates. Ao contrário

das primeiras, as duas últimas funções, a de “transcritor de fitas” e de “digitador”, são

posteriores ao momento de realização ao debate.

Os debates foram registrados através de gravação em fita K7, com posterior transcrição

literal por profissional contratado. Neto et al (2001) defendem que os próprios

pesquisadores devem realizar os grupos focais, uma vez que a proximidade, o estudo e

o conhecimento do objeto de investigação são de fundamental importância para o bom

desenvolvimento da técnica e que a participação no processo de debate é vital para a

interpretação dos dados.

A fim de construir um quadro síntese com informações sobre os participantes do grupo

foi solicitado o preenchimento, por todos os participantes do Grupo Focal, de um

Questionário (ANEXO 3) contendo dados pessoais, familiares e de suas

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atividades/funções na Pastoral da Criança. Estes dados são apresentados em anexo

(ANEXO 4).

Para facilitar a apresentação do material produzido em grupos focais e pela observação

participante, as falas foram apresentadas segundo categorias definidas após revisão e

reflexão criteriosos.

3.1. Análise dos Aspectos Éticos: Quanto à análise de aspectos éticos, deve-se destacar que este estudo baseia-se nas

resoluções descritas nas “Diretrizes e Normas Reguladoras de Pesquisa Envolvendo

Seres Humanos” – Decreto nº 93933 de 14 de janeiro de 1987. Anteriormente à

realização deste estudo sua relevância foi extensamente apresentada, deve-se,

contudo, destacar a importância de estar propondo-se uma “investigação científica do

ponto de vista popular” tendo como foco um tema que tem sido muito debatido dentro

das academias e institutos de pesquisa: a fome.

A participação e o registro com fins de pesquisa foram condicionados a prévia

autorização da Pastoral da Criança, respeitando a hierarquia da entidade

(Coordenações Estadual, Diocesana e Paroquiais). A entidade foi esclarecida quanto à

metodologia (Observação Participante e Grupo Focal) e quanto aos seus benefícios e

riscos desta pesquisa.

Os participantes das Sessões de Grupo Focal foram previamente esclarecidos sobre os

procedimentos e objetivos da pesquisa e assinaram um Termo de Consentimento Livre

e Esclarecido (ANEXO 1).

A construção de um quadro síntese com informações sobre os participantes do Grupo

Focal, conforme relato anterior, fez-se necessário para captar as características locais

dos Líderes da Pastoral da Criança. Cabe ressaltar que os participantes não foram e

não serão identificados.

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4- SITUAÇÃO PROBLEMA

Pobreza Metropolitana: O Caso da Pastoral da Crianç a em São João de Meriti

“Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era. (...) Que iriam fazer? Retardaram-se temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos” (GRACILIANO RAMOS).

4.1. Pobreza Metropolitana: O Contexto do Rio de Ja neiro

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 19991

estima-se um total de 44 milhões de brasileiros muito pobres2, o que representa 28% da

população. Grande parte concentra-se em áreas urbanas não metropolitanas (20

milhões de pessoas), seguido de áreas metropolitanas (com 9 milhões de pessoas) e

áreas rurais (15 milhões).

No Estado do Rio de Janeiro a pobreza é essencialmente metropolitana . A metrópole

concentra 85% dos pobres do Estado, isto devido a dois fatores: ao tamanho da

população metropolitana (77% da população do Estado) e por ela apresentar a mais

elevada proporção de pobres (33%)(ROCHA, 1997).

Na região metropolitana do Rio de Janeiro vê-se que a distribuição desigual de serviços

públicos e da renda apresenta-se em sua forma mais cruel: populações tão próximas

fisicamente destas conquistas que o horizonte visto de suas janelas pode contemplar

esta, que ao menos de longe, tem algo de “terra prometida”. A distribuição desigual tem

formado ilhas tanto de riqueza quanto de pobreza3.

O Estado do Rio de Janeiro passou a ter maior participação na pobreza nacional e teve

um crescimento da proporção de pobres a medida em que a sua importância para a

economia brasileira diminui. A partir da década de 1970 o Estado passa a apresentar

1 Dados utilizados na formulação “Projeto Fome Zero”. 2 Foram considerados muito pobres aqueles que ganhavam menos de um dólar por dia. 3 Reflexão retirada de minha Monografia para o Curso de Especialização em Saúde Pública – ENSP/FIOCRUZ: “Fome, Pobreza e Desnutrição: Um Olhar Sobre a Práxis da Pastoral da Criança”

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uma participação declinante no PIB (Produto Interno Bruto) nacional. As décadas de

1980 e 1990 são marcadas por um “esvaziamento econômico” devido a determinantes

macroeconômicos e a “vulnerabilidade de alguns setores-chave da economia

fluminense” (ROCHA, 1997).

Comparando diferentes regiões metropolitanas, Rocha (2003) destaca uma “evolução

perversa no Rio de Janeiro” da proporção de pobres que era de 27,2% em 1981 e

passando a 32,2% em 1990, no mesmo período o resultado total para o Brasil foi de

29,1% em 1981 para 28,9% em 19904 (ROCHA, 2003).

Para Rocha (1997), considerando a década de 1980, provavelmente este resultado

adverso com relação à pobreza se relaciona a características locais de estrutura

produtiva e qualidade dos postos de trabalho gerados: pequena participação da

industria no PIB estadual (30% em 1994) e baixo rendimento médio do trabalho – R$

447 em setembro de 1995 ou 2/3 do rendimento médio do trabalho na metrópole

paulista (ROCHA, 1997).

O processo de “metropolização da pobreza” (SOARES, 2004) destaca-se como uma

tendência atual. Não representa, portanto uma característica exclusiva ao Rio de

Janeiro. É uma tendência que encontra grande contribuição na estagnação econômica

(SOARES, 2004):

“O capitalismo de hoje prescindi do trabalho, particularmente em capitalismos como os nossos, periféricos e dependentes. Trata-se de lucrar com o capital financeiro e não de investir na produção ou na atividade econômica que gera emprego e renda. Estudos recentes na América Latina mostram que, apesar de uma parcela dos jovens aumentar sua escolaridade e qualificação, não encontram no mercado de trabalho empregos equivalentes, o que a Cepal denomina de espaços crescentes de frustração para esses jovens” (SOARES, 2004: 58).

Segundo Rocha (2003) já é bem documentado na literatura internacional como uma

característica das metrópoles de Terceiro Mundo, apresentar uma proporção de pobres

sistematicamente mais elevadas nas periferias que nos núcleos5. No Rio de Janeiro em

4 Dados apresentados por Rocha (2003) foram retirados da PNAD 5 “Quanto maior o desvio relativo entre a proporção nas duas subáreas, mais marcante é a periferização da pobreza, entendida não necessariamente como processo, mas como um padrão de repetição da pobreza entre as duas subáreas da metrópole.” (ROCHA, 2003 :104)

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1990 a proporção total de pobres na região metropolitana era de 32%. Realizando uma

comparação entre as subáreas pode-se observar que enquanto no núcleo a proporção

de pobres era de 25%, na periferia era de 41% conseqüência “da periferização

combinada ao empobrecimento da metrópole como um todo durante a década de 1980”

(ROCHA, 2003 :104).

Outro destaque neste contexto metropolitano e urbano é a constatação do

aparecimento de uma “nova pobreza”, fenômeno que atinge toda América Latina e é

responsável por uma “perversa superposição, em que pobreza e desigualdade social

assumiram uma também crescente complexidade, agregando “novos pobres” ao

contingente de “antigos pobres” ou miseráveis” (SOARES, 2004: 41). Dito de outra

forma, “às parcelas da população historicamente marginalizadas econômica e

socialmente, soma-se um novo contingente de trabalhadores empobrecidos”(VALLA,

2005: 49).

O processo de criação e consolidação desta “nova pobreza” é conseqüência do ajuste

estrutural imposto aos países pobres e tem como características fundamentais o

desemprego crescente e a precarização das relações de trabalho com suas cruéis e

inevitáveis conseqüências: escassez dos meios de sobrevivência; aumento da

vulnerabilidade social; e a instabilidade e a ausência de garantias nas relações de

trabalho (SOARES, 2004; VALLA, 2005).

A política econômica adotada no Brasil na década de 1990 vem agravando as

condições de emprego: (1) o trabalho informal cresceu 62% na década; (2) das 433 mil

pessoas que entraram no mercado de trabalho no final da década, 78% não têm

registro em carteira; (3) a proporção de pessoas ocupadas com carteira assinada

diminuiu de 56,9% em 1990 para 44,5% em 1999, uma queda de 12,6%6 (SOARES,

2004: 57).

Completam este cenário as constatações de redução salarial atrelada às crescentes

taxas de desemprego urbano, a destruição de postos de emprego e a diminuição de

6 Dados retirados de Soares (2004) com base na Pesquisa Mensal de Emprego - PME/ Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, dez./1999

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demanda por mão de obra. Há uma tendência de manutenção dos altos níveis de

desemprego dadas às previsões de persistência de “fatores estruturais ligados ao

desemprego” e uma “lentidão maior na recuperação dos níveis de ocupação depois de

períodos de contração de crescimento” (SOARES, 2004: 51). Neste contexto, Soares

(2004) denuncia a necessidade de se estabelecer mecanismos de proteção que cubram

esse “risco”.

Os períodos de desemprego agravam a situação de vida das famílias pobres e jogam

na pobreza famílias antes “incluídas”, trazendo novas situações de instabilidade e de

“semipobreza”. O desemprego firma-se, portanto, como um dos principais

determinantes da pobreza e da desigualdade. Soares (2004) alerta sobre uma

concentração do desemprego em áreas metropolitanas, que “embora tenha atingido a

todos os setores da sociedade, se matem com taxas elevadas nas famílias de mais

baixa de renda e nos jovens” (SOARES, 2004: 56).

A utilização da linha da pobreza como estratégia de definição de público-alvo e

monitoramento de ações está longe de ser um consenso. Para Laura Tavares Soares

(2004), a focalização dos Programas Sociais com a utilização de linha de pobreza traz

grandes riscos por esconder ou promover iniqüidades. Considera problemática a

definição da “clientela” por corte de renda baseada em “linhas de pobreza”, para

promover um “cadastramento de pobres”. Destaca como argumentos: a ineficiência

administrativa desse tipo de cadastramento, provocando custos desnecessários; a

geração de uma “discriminação negativa”, por excluir famílias e pessoas que também

estão em condições de pobreza e vulnerabilidade mesmo com alguns reais “acima da

linha da pobreza”; enorme rotatividade das famílias para cima e para baixo dessa linha

e porque a pobreza tem uma espacialidade – territórios onde as condições de

precariedade são generalizadas (SOARES, 2004).

Soares (2004) acrescenta que a utilização de “Linha de pobreza” produz uma forma de

“antipolítica” social porque a “inclusão” é feita não por direito de cidadania, mas por ser

mais “pobre” do que o vizinho e desta forma não garante a igualdade necessária à

“verdadeira política social”. Serviços e bens públicos devem chegar aos mais pobres de

forma universal e não discriminatória, garantindo qualidade de vida independentemente

da renda monetária disponível. Defende, portanto uma “universalização territorial” dos

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programas sociais que promoveria: (1) maior impacto na mudança das “condições de

vida da coletividade”; (2) potencializaria a integração de ações; (3) reforçaria o caráter

de cidadania e de direito social, em substituição ao estigma de um cadastro de pobreza;

(4) tornaria mais difícil o clientelismo (SOARES, 2004).

Por outro lado, Rocha (2003) argumenta que a utilização de linhas de pobreza “é uma

abordagem adequada no contexto brasileiro” (ROCHA, 2003: 43). Acrescenta que a

economia brasileira é “largamente monetizada” e por isso a renda é capaz de revelar as

condições de bem-estar das famílias no que se refere ao consumo em âmbito privado

(ROCHA, 2003).

“Nas economias modernas e monetizadas, onde parcela ponderável das necessidades das pessoas é atendida através de trocas mercantis, é natural que a noção de atendimento às necessidades seja operacionalizada de forma indireta, via renda” (ROCHA, 2003: 12).

Afirma que a adequação também está relacionada à disponibilidade, a partir da década

de 1970, de dados sobre consumo, rendimento e características socioeconômicas das

pessoas e das famílias (ROCHA, 2003).

Segundo Soares (2003), para um diagnóstico multidimensional e integrado das

condições de pobreza que dêem base a um conjunto de políticas pública que vá além

da transferência de renda, os estudos sobre a pobreza urbana e metropolitana precisam

“recuperar a tradição de análise que leva em consideração indicadores que incorporam outras variáveis além da renda, como a participação dos pobres no mercado de trabalho local, condições de acessibilidade à infra-estrutura social e posse de bens duráveis” (SOARES, 2004: 59).

Rocha (2003) sustenta que com o “sucesso da estabilização de 1994” a pobreza

absoluta tornou-se uma questão central e que o tema vem assumindo um destaque

cada vez mais significativo. Com freqüência pobreza e indigência no Brasil são

associadas à fome, especialmente em informações apresentados pela imprensa. Na

maior parte das vezes os dados são utilizados de forma incorreta, na medida em que o

número de pobres e indigentes é definido a partir de renda não necessariamente esta

correlação esta presente (ROCHA, 2003).

“Em países de renda média como o Brasil, com a economia urbana e monetizada, mas onde persiste importante contingente populacional desprivilegiado, a abordagem da pobreza absoluta ainda é relevante. (...) os indigentes são definidos como aqueles que não dispõem de renda para

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adquirir a cesta alimentar básica, o que não permite fazer inferências sobre o seu estado nutricional.”(ROCHA, 2003: 17)

Para Monteiro (2003) com o lançamento do Programa Fome Zero uma antiga discussão

é retomada: a distinção entre os conceitos de pobreza, desnutrição e fome. O autor

ressalta sobre estes conceitos que mesmo sendo igualmente graves e indesejáveis e

ainda que compartilhem causas e vitimas, são fenômenos diferentes. Segundo o autor

“pode-se dizer que pobreza corresponde à condição de não satisfação de necessidades

humanas elementares como a comida, abrigo, vestuário, educação, assistência à

saúde, entre outras”. A desnutrição ou, mais corretamente, “as deficiências nutricionais,

são doenças que decorrem do aporte alimentar insuficiente em energias e nutrientes ou

ainda, com alguma freqüência, do inadequado aproveitamento biológico dos alimentos

ingeridos – geralmente motivado pela presença de doenças”. A fome é um conceito

mais complexo, sendo importante distinguir a fome aguda - momentânea, que equivale

à urgência de se alimentar - e a fome crônica - permanente, que ocorre quando a

alimentação habitual, não garante ao indivíduo energia suficiente para a manutenção do

seu organismo e para desempenho de suas atividades cotidiana (MONTEIRO, 2003).

Josué de Castro em Geografia da Fome afirmava: “(...) já é tempo de precisar bem o

nosso conceito de fome – conceito demasiado extenso e, portanto, suscetível de

grandes confusões” (CASTRO, 2001: 18). Passados mais de cinqüenta anos desta

afirmação, o estabelecimento de consensos sobre o conceito da fome e de termos afins

continua a ser um desafio, não apenas por sua complexidade, mas também pela sua

associação com interesses econômicos e políticos.

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4.2. São João de Meriti: História e Dados Socioecon ômicos

Durante a década de 1950 pôde-se observar um aumento do fluxo de imigrantes em

direção ao Rio de Janeiro, principalmente de nordestinos. Vinham em busca de

melhores condições de vida e das oportunidades de trabalho promovida pela

industrialização. A cidade do Rio de Janeiro não tinha como absorver este aumento da

população e, por outro lado, a moradia era de alto custo o que excluía a população de

baixa renda. A Baixada Fluminense passa a funcionar como área de expansão

abrigando este “excedente” populacional e por isso apresentando um aumento do

número de loteamentos com moradias de baixos custos, mas com carência de infra-

estrutura.7

Este acentuado processo migratório ocorrido nas décadas de 1950 e 1960 destinava-se

a corresponder às necessidades das industrias que exigiam um grande contingente de

mão-de-obra barata. Segundo Rocha (2003) este fluxo migratório marcou outras

metrópoles brasileiras e destaca que:

“Ao forte crescimento populacional também correspondeu um empobrecimento relativo, uma vez que parte dos grandes contingentes migrantes afluindo às metrópoles era formado por pobres rurais, os quais se transformavam em pobres metropolitanos” (ROCHA, 2003 :103).

Neste período a Baixada Fluminense retoma seu papel na circulação de riquezas8: a

linha férrea levando os trabalhadores de suas residências aos locais de trabalho e a

Rodovia Presidente Dutra (inaugurada em janeiro de 1951) transportando a produção

agrícola e industrial.

São João de Meriti é um dos 13 municípios que compõem a Baixada Fluminense na

região metropolitana do estado do Rio de Janeiro. Nesta cidade, a dinâmica de

ocupação intensa tem início na década de 1940. Cresce através de loteamento, em

sistemas de “auto-construção”, onde cada família construía sua casa com os poucos

7 (www.feth.ggf.br/Baixada.htm, acesso em 20/07/2004) 8 No período colonial era ponto importante de circulação. Escoava a produção agrícola (milho, mandioca, feijão, arroz, legumes, açúcar e aguardente) e recebia produtos importados. Com a decadência do açúcar nordestino e a mudança do eixo econômico, torna-se passagem o café do Vale do Rio Paraíba e o ouro de Minas Gerais (www.baixadafacil.com.br, acesso em 06/07/2004).

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recursos que dispunham: “pequenas habitações e mais de uma unidade por lote”.9

Emancipada em 1947, está localizada a 35 Km da capital do Estado e suas principais

atividades econômicas são a indústria e o comércio (FUNDAÇÃO CIDE, 2000).

A intensa urbanização deste período muda a paisagem da Baixada Fluminense que

originalmente era predominantemente composta por florestas, terrenos alagadiços,

brejos pantanosos, morros, planícies e rios. Muitas transformações ambientais

ocorreram em conseqüência destas mudanças no cenário político e econômico da

região:

“Os manguezais foram destruídos, sua área reduzida pela metade, além da poluição e os aterros clandestinos, que os liberou para a instalação de favelas às suas margens.”10

A partir da década de 1980 com o processo de redemocratização do país pode-se

constatar uma maior atuação dos movimentos sociais no sentido de reunir as

comunidades em torno do debate sobre suas principais necessidades e reivindicações.

No município de São João de Meriti o histórico de enchentes devido a fatores

relacionados à forma de ocupação do espaço, associados à precariedade dos serviços

públicos de recolhimento de lixo e uma rede de saneamento básico ineficiente

funcionou como motivação para o surgimento de diversas Associações de Moradores,

Centros Comunitários e Movimentos Pastorais.

Em uma situação de “impasse”11 (VALLA, 1999) gerou-se um “caminho de mão dupla”:

a população organizada em torno das ações emergenciais ao seu alcance e ao mesmo

tempo mantendo-se mobilizada para reivindicar atitudes dos governos. A mobilização

destes grupos tinha como objetivo “pressionar os Governos Municipal, Estadual e

Federal” a tomar atitudes em relação à garantia de saneamento básico. Nesta época

70% das casas não possuíam esgotamento sanitário e distribuição regular de água

potável.

9 (www.ipahb.com.br/saude_sanea.php, acesso em 13/07/2004). 10 (www.feth.ggf.br/Baixada.htm, acesso em 20/07/2004) 11 “A perplexidade certamente inclui, de um lado, uma preocupação com a dimensão gigantesca do problema a ser superado e, de outro, o reconhecimento do compromisso de “fazer algo” (...). Possivelmente a sensação de estar “batendo em ponta de faca” seja o sinal de que a discussão chegou a um certo impasse. Não que o fato de reivindicar uma política mais coerente dos governantes não seja necessário, mas talvez haja outras dimensões do problema a serem vistas” (VALLA, 1999: 10).

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Nos últimos anos o combate à desnutrição e o acesso à creche têm mobilizado a

Sociedade Civil de São João de Meriti através do “Mutirão de Combate à Desnutrição

Materno-infantil12” (início em 2001) e o “Movimento Pró-Creche13” (início em 2003).

Atualmente São João de Meriti tem 100% da população vivendo em área urbana com

148.920 domicílios em seus 34,7 Km². Seu território corresponde a 0,08% da área total

do Estado, contudo sua população corresponde a 3,13% da população do Estado

(FUNDAÇÃO CIDE, 2000). Com uma população de 449.476 habitantes possui uma das

maiores densidades demográficas do país com 12.901hab/km2(CENSO 2000 IBGE).

Sobre este aspecto, destaca-se que:

“(...) a alta densidade populacional exige boa infra-estrutura urbana – transporte e saneamento básico, sobretudo –, fazendo com que a ocorrência de carência nesse particular torne as condições de vida dos mais pobres especialmente adversas” (ROCHA, 2003 :103).

Quanto ao “percentual de pessoas que vivem em domicílios urbanos com serviço de

coleta de lixo” passou de 64,8% em 1991 para 97,5% em 2000 (DATASUS, 2006.

IBGE/CENSOS). Instalações sanitárias, através de Rede de Esgoto ou Pluvial, chegam

a 66,3% dos moradores. No tocante ao abastecimento de água, em São João de Meriti

95,2% dos moradores tem acesso à Rede Geral (DATASUS,2006. IBGE/CENSOS). O

problema de abastecimento de água centra-se na qualidade do atendimento. A

pesquisa da APB – Agência de Projetos da Baixada – identificou que cerca de 22% dos

domicílios tem abastecimento intermitente ou precário. Nos bairros periféricos a água só

chega duas ou três vezes por semana.

Este fato encontra semelhança com as análises de Pádua (2003) que afirma que o

atendimento em todo Brasil apesar de ser significativo em espaço urbano, quando se

examinar a qualidade dos serviços de saneamento “observa-se o quanto o mero

atendimento quantitativo é limitado para indicar qualidade de vida” e que a parcela não

12 O Mutirão de Combate à Desnutrição Materno Infantil é uma articulação de diversas entidades da sociedade civil. Mobiliza lideranças comunitárias para a realização de avaliação nutricional – através de pesagem de crianças menores de seis anos –, atividades de educação nutricional e divulgação de dados sobre a desnutrição no município. 13 O Movimento Pró-creche foi criado pela ABM, Fórum de Conselheiros da Sociedade Civil de São João de Meriti e Mutirão de Combate à Desnutrição Materno-Infantil para garantir o direito das crianças de zero a três anos a acesso a creche. Denuncia que 99% das crianças não encontram vagas em creches públicas.

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23

atendida ou atendida precariamente “localiza-se basicamente em área periféricas e

favelas da cidade” (PÁDUA, 2003: 60).

Pádua (2003) ressalta que a degradação do espaço vivido faz com que o estado de

saúde da população seja muito grave, lembrando a relação entre mortalidade infantil e

falta de saneamento básico. Destaca ainda que em regiões altamente urbanizadas:

“Existe uma carência generalizada de saneamento, habitação, serviços básicos e alimentos. O não-atendimento das necessidades populares constitui um fator crucial dos padrões de produção e consumo estabelecido no Brasil, distorcido pelo elitismo e pela exclusão social” (PÁDUA, 2003: 62).

Em São João de Meriti existem 04(quatro) Unidades de Saúde da Família – PSF,

11(onze) Centros de Saúde, 01(uma) Policlínica, 03(três) Pronto Socorros. A rede

hospitalar é constituída por um Hospital Público e sete particulares, sendo um

Filantrópico e seis contratados (DATASUS, 2006). Na Baixada Fluminense localizam-se

ainda 01(um) Hospital Federal e 1(um) Hospital Estadual. No período de realização

deste estudo 04 unidades de saúde encontravam-se fechadas para reforma, o que

estaria causando grandes transtornos à população segundo informações de um

membro do Conselho Municipal de Saúde.

Quanto ao acesso a programas de suplementação alimentar e renda mínima, os dados

do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (COMDCA)

em São João de Meriti relatam que 3.700 crianças são beneficiadas pelo Leite Saúde14

e 1.774 famílias recebem o Cheque Cidadão15. Até dezembro de 2003, utilizando-se

dados Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 875 famílias recebiam

o Bolsa Família16.

Segundo dados do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), a renda per

capta média do município cresceu 38,02%, passando de R$ 168,90 em 1991 para R$

233,12 em 2000. Houve um aumento da renda apropriada pelos 20% mais ricos

(passando de 49,6% em 1991 para 51,5% em 2000) e uma diminuição da renda

14 Programa do governo estadual que atende às crianças de 2 a 12 anos através da distribuição de 2 Kg de leite em pó por mês. 15 Programa de renda mínima do governo do Estado que beneficia famílias com renda per capta inferior a 1/3 do Salário mínimo.

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24

apropriada pelos 20% (quinto) mais pobres (passando de 4,5% em 1991 para 3,4% em

2000). A média da renda domiciliar per capta em 2000 dos 20% (quinto) mais pobres

era de R$ 38,36 (www.ipeadata.gov.br/ipeawebdll ).

A desigualdade cresceu: o Índice de Gini passou de 0,44 em 1991 para 0,48 em 2000.

(ATLAS DE DESENVOLVIMENTO HUMANO NO BRASIL, 2003). A pobreza (medida

pela proporção de pessoas com renda domiciliar per capta inferior a R$ 75,50) diminuiu

23,18%, passando de 27,1% em 1991 para 20,8% em 2000. Contudo, de 1991 a 2000

houve um aumento da Intensidade de Pobreza17. Quanto a linha R$ 37,75 (equivalente

à um quarto do salário mínimo vigente em agosto de 2000) em 1991 era de 39,66% e

em 2000 passou para 63,08% e tomando-se a linha de R$ 75,50 (equivalente à metade

do salário mínimo vigente em agosto de 2000), em 1991 era de 39,11% para 46,08%

(www.ipeadata.gov.br/ipeawebdll ).

O Índice de desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) de São João de Meriti cresceu

9,48%, passando de 0,707 em 1991 para 0,774 em 2000. A dimensão que mais

contribuiu para este crescimento foi a longevidade, com 37,1%, seguida pela educação

36,1% e pela a renda com 26,7%. Caso o município mantivesse esta taxa de

crescimento do IDH-M, levaria 16,4 anos para alcançar São Caetano do Sul (SP), o

município com o melhor IDH-M do Brasil (0,919), e 12,9 anos para alcança Niterói (RJ),

município com melhor IDH-M do Estado (0,886). Em relação aos outros municípios do

Estado, São João de Meriti tem hoje o 35º Índice de Desenvolvimento Humano (ATLAS

DE DESENVOLVIMENTO HUMANO NO BRASIL, 2003).

A história de ocupação do espaço e as condições de vida da população observadas em

São João de Meriti encontram semelhanças com a realidade de grande parte da

população brasileira. O intenso processo de urbanização do País deixou suas marcas,

principalmente no que se refere ao acesso a políticas públicas, como saneamento e

saúde, e também no que tange à falta de políticas de ocupação do espaço e de controle

da degradação ambiental (PÁDUA, 2003).

16 Programa criado com a finalidade de unificar ações de transferência de renda do Governo Federal: Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Programa Auxílio-Gás. 17 Este indicador representa em termos percentuais o valor que falta para os indivíduos miseráveis (renda de inferior a R$ 37,75) e pobres (renda de inferior a R$ 75,50) deixarem de ser miseráveis e pobres.

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25

Segundo Pádua (2003), se por um lado a dinâmica de urbanização provocou algumas

transformações que podem ser consideradas como avanços por que são típicas deste

processo em várias partes do mundo (tendência a uma diminuição da taxa de

mortalidade e crescimento da esperança de vida), por outro destaca-se que em grande

parte, viver mais significa “sofrer as agruras de uma sociedade injusta e uma vida sem

qualidade, submetidas a pressões e violências de todo tipo” (PÁDUA, 2003: 58).

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26

4.3. Pastoral da Criança em São João de Meriti

Pôde ser observada, em uma primeira aproximação com a Pastoral da Criança18 a

capacidade de seus voluntários19 para diagnosticar situações desfavoráveis – quando,

por exemplo, foram levantadas questões como as barreiras do tráfico ou o

assistencialismo dos programas de complementação de renda ou os problemas no

atendimento em unidades de saúde. Entretanto, as formas de intervir e de se

posicionar, para além das ações da entidade, pareceram variar de um local para outro.

A Pastoral da Criança é formada pela Coordenação Nacional e Coordenações

Estaduais, Diocesanas, de Área, Paroquiais (de Ramo) e Comunitárias.

Aproximadamente 75% dos recursos são gerenciados diretamente pelas equipes

regionais, nas dioceses, que os distribuem às equipes paroquiais e comunidades, para

a realização do acompanhamento de crianças e famílias. As Coordenações Diocesanas

prestam contas de seus gastos e de suas ações à Coordenação Nacional. É a

Coordenação Nacional que concentra a burocracia e distribui os recursos (PASTORAL

DA CRIANÇA, 2004).

Os municípios de São João de Meriti e Duque de Caxias pertencem a Diocese de

Duque de Caxias. Os dados20 do terceiro trimestre de 2005 da Pastoral da Criança em

São João de Meriti revelam sua presença em 35 comunidades (em Igrejas Católicas e

Evangélicas e em um Centro Espírita) divididas em 08 Paróquias. São 126 Líderes e

130 pessoas trabalhando como “Apoio”, acompanhando 1155 famílias: 1575 crianças e

73 gestantes.

Para que seja introduzido o debate acerca do trabalho da Pastoral da Criança é

necessário que se examine o contexto histórico e político da América Latina e do Brasil

nas décadas que antecederam sua criação e a própria década de 1980 – localizando

como a Igreja Católica (instituição) e os católicos (com especial enfoque sobre sua

expressão popular da religião) inseriram-se neste conjunto.

18 Durante a realização da monografia do Curso de Especialização em Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ) 19 Cabe ressaltar que todos os Líderes da Pastoral da Criança são voluntários. 20 (http://www.pastoraldacrianca.org.br/organizacao/estat_mun.php. Acesso em 22 de janeiro de 2006).

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27

A América Latina é um continente essencialmente cristão e com forte influência católica

(LÖWY, 2000; PARKER, 1995), assim como também o é o Brasil (BANDEIRA, 2000).

Atualmente muitos autores têm se interessado pelo “retorno” da religiosidade que se

observa de diferentes formas nas diversas camadas sociais (DAVID, 2001; VALLA,

2001; SOUZA, 1986; BELLAH, 1986). O fenômeno de crescimento de Igrejas

Evangélicas tem sido objeto de estudo de vários pesquisadores (CORTEN, 1996;

BONFATTI, 2000). Destaca Steil (2001), que apesar da crescente pluralidade religiosa

apresentada pela realidade brasileira, os católicos ainda representam 74% da

população.

Valla (2001) destaca que se deve ter cautela ao interpretar as relações das classes

populares com a religião, uma vez que pode ser visto, por um lado, como tentativa de

resolver um problema material, mas também pode ser o resultado da “vontade de viver

a vida da maneira mais plena possível”. O autor alerta que

“Atrás dessa procura está também o próprio processo de crescimento da urbanização, juntamente com o conseqüente aumento das demandas dos bens coletivos e individuais, e, ao mesmo tempo, a dilapidação dos direitos sociais e humanos”. (VALLA, 2001: 126)

Na história política da América Latina, até a Segunda Guerra Mundial presenciou-se

vários movimentos em busca de mudanças (revoluções, golpes de Estado, greves

sangrentas) e respostas das oligarquias, inconformadas em perder o poder. Deste

momento até as lutas contra os regimes autoritários na América do Sul e América

Central na década de 1970, passando pelos processos de democratização, segundo

Parker (1995):

“... o panorama político latino-americano continua sendo agitado e a violência sob suas diversas manifestações (miséria, repressão, terrorismo, narcotráfico) é o pão de cada dia do povo que busca na religião um cabo simbólico por meio do qual possa orientar-se e dar coerência à sua vida ”21 (PARKER, 1995: 242).

A expressão “religião é ópio do povo”, considerada a quinta-essência da concepção

marxista do fenômeno religioso, é uma afirmação que tem sido encontrada em vários

contextos e em ensaios de diversos autores. O debate sobre o caráter alienante da

21 Grifos nossos

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28

religião tem estado presente em boa parte das interpretações críticas da religião

(LÖWY, 2000; PARKER, 1995).

A religião e a história da América Latina têm apresentado muitos elementos para este

debate. Segundo Löwy (2000), o relato de uma série de episódios mostrando o

envolvimento de religiosos em lutas populares na América Latina frustraram e

confundiram muitos marxistas que não reconheciam a diferença comum entre a prática

social válida destes cristãos e sua ideologia religiosa, definida como necessariamente

reacionária e idealista. Este autor afirma que com a Teologia da Libertação surge “um

pensamento religioso que usa conceitos marxistas e que serve de inspiração para as

lutas pela libertação social”(LÖWY, 2000: 12).

A Conferência dos Bispos Latino-Americanos de Puebla (em 1979) foi um marco para o

desenvolvimento da Teologia da Libertação e ficou marcada por uma expressão: “a

opção preferencial pelos pobres” – esses pobres como agentes de sua própria

libertação e sujeitos de sua própria história e não somente, como na doutrina tradicional

da Igreja, objeto de atenção caridosa (LÖWY, 2000).

A Teologia da Libertação, segundo Löwy (2000) “é a expressão de um vasto movimento

social que surgiu no começo da década de 60” e representa “o produto espiritual” (termo

utilizado por Marx em A Ideologia Alemã) desse movimento social. O autor afirma

entretanto que: a teologia da libertação “não é discurso social e político e sim, antes de

qualquer coisa, uma reflexão religiosa e espiritual” (LÖWY, 2000: 59)

Leonardo Boff, considerado como um dos mais importantes pensadores da teologia da

libertação, traduz a opção preferencial pelos pobres como a expressão teológica que

subjaz ao compromisso cristão. O autor acrescenta que os pobres foram os

privilegiados por Jesus, não pelo fato de serem bons e abertos, mas pelo fato de serem

pobres (Boff, 1986).

Parker (1995) apresenta como hipótese que o “povo, enquanto agente histórico-social”,

produz coletivamente suas representações e práticas simbólico-religiosas, através de

um processo no qual se evidencia, de maneira diferenciada, segundo a posição relativa

na estrutura de classes e no campo religioso, seu caráter dominado e, ao mesmo

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29

tempo, relativamente autônomo. Segundo o autor daí decorrem as manifestações

religiosas que ele chama de “protesto simbólico” : nem sempre aberto e só em alguns

casos chega a ser funcional à constituição de uma autêntica consciência de classe nas

massas proletárias e subproletárias. Este autor sustenta “que os elementos alienantes

da religião popular, quando os há, nunca são por essência, mas por existência concreta

e historicamente situada” (PARKER, 1995: 292).

Parker (1995) refletindo sobre a “religião das classes subalternas” afirma que,

dependendo de sua articulação com as outras representações sócio-culturais,

correspondentes a cada situação de classe, pode ter diversas funções sociais:

“Estas se apresentam, às vezes de forma excludente, às vezes paralelamente e, inclusive, podem coexistir contraditoriamente no seio da cultura popular. Fator de alienação, fator de identidade popular, de impugnação simbólica da cultura e da religião oficial, enfim, reforço ético para um projeto de ascensão social ou para um projeto de transformação social: a religião popular pode ser e não ser isso, depende ndo da situação social e histórica ”22 (PARKER, 1995:292)

Este estudo está centrado no cotidiano, na experiência “dos fiéis”, onde a religião

popular se (re)constrói e toma seu significado.

Como já mencionado anteriormente, a década de 1980 apresenta um aumento da

participação de movimentos religiosos no espaço público, trazendo mudanças nas

relações até então estabelecidas entre religião, sociedade e política (BURITY, 2003).

Deve-se destacar que neste período (anos 80) os debates sobre Segurança Alimentar e

Nutricional ganham impulso e vários são os exemplos de movimentos e religiosos

(laicos ou não) que se envolveram e militaram nesta área.

A luta pela redemocratização dos anos 80 trouxe a introdução de elementos

politizadores em diversos segmentos sociais marcados pelo seu isolamento ou

conservadorismo. As relações entre religião, sociedade e política têm forte relação com

experiências de engajamento social e político de instituições e grupos religiosos

desenvolvidos nos anos 50 adquirindo visibilidade entre fins dos anos 70 e início dos 80

através da igreja popular, as comunidades de base e movimentos de bairro, a teologia

22 Grifo nosso.

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da libertação, o movimento ecumênico e o movimento de direitos humanos (BURITY,

2003).

Acompanhado estes acontecimentos observa-se que, em meio a este confuso e

decisivo processo de mudança das relações entre Estado e sociedade, mudam também

as relações entre estes e a religião, determinando o crescimento da participação de

grupos e organizações religiosas no campo das políticas sociais. A busca de

alternativas para os sérios problemas de acesso e distribuição de bens e serviços

públicos recolocou na agenda a relevância das ações filantrópicas, tradicionalmente

relacionadas às práticas religiosas (BURITY, 2003).

Para Burity (2003) a observação local sugere algo mais que simples volta à filantropia.

Uma orientação assistencial de caráter individual e compensatório, movida por valores

religiosos de compaixão e humanidade, “ressurge” nos anos 90 à medida que recua o

modelo estatal de provisão social. Ressalta-se, contudo, que a filantropia vem sendo

exposta como face imediata e visível destes projetos que aliam a estas experiências,

discursos de cidadania e solidariedade (BURITY, 2003). Como exemplo podemos

destacar uma fala de Dom Mauro Morelli, Bispo Diocesano de Duque de Caxias e São

João de Meriti, no livro de Valente (2002), onde faz uma leitura deste movimento,

afirmando que:

“Os ensaios iniciais, formulados na década de 1980, tomaram corpo nos movimentos sociais a partir de uma luta histórica do povo brasileiro contra a corrupção, em 1992. A fome, uma questão ética; o progresso do Brasil, uma aberração! Assim, após o impeachment que arrancou a corrupção com assento na cadeira presidencial, o Movimento pela Ética na Política lança a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Um movimento de solidariedade e de cidadania responsável pela transformação da fome em questão política de primeira grandeza.” (MORELLI, 2002: 15)

De acordo com Burity (2003), a participação de grupos religiosos em campanhas e o

engajamento político em movimentos referenciados em valores de moralidade pública e

solidariedade como Movimento pela Ética na Política e Ação da Cidadania Contra

Fome, a Miséria e pela Vida e o trabalho realizado pelas pastorais sociais da Igreja

Católica levaram ao credenciamento das igrejas como agências de trabalho social por

parte das agências e programas governamentais e das organizações não-

governamentais .

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31

O sociólogo Herbert de Souza (1993), idealizador da Ação da Cidadania Contra Fome,

a Miséria e pela Vida, ao contextualizar este período denuncia que:

“Nos anos 90, aprendemos que em sessenta anos de industrialização, o Brasil havia gerado três categorias sociais – ricos, pobres e indigentes. É como se elas habitassem países diferentes. Existe a minoria rica, branca, sofisticada, formando uma sociedade mais ou mentos comparável à do Canadá. Tem a maioria pobre, negra, silenciosa e resignada, do tamanho do México. E há 32 milhões de indigentes, uma Argentina dentro do Brasil. Esses 32 milhões são brasileiros que o Brasil trata como estrangeiros, uma população indesejada, descurada, quase inimiga”(SOUZA, 1993: 17)

A Pastoral da Criança surge na década de 80, período em que fervilhavam idéias e

atitudes de diferentes naturezas: “a opção preferencial pelos pobres” – herança da

Teologia da Libertação –, o posicionamento da ala conservadora da Igreja Católica, o

movimento pela redemocratização do país e seus desdobramentos. Ao mesmo tempo,

as estatísticas revelavam um quadro ainda alarmante da desnutrição e urgência de

proposição de soluções concretas. Internacionalmente, a Conferência Internacional

sobre Cuidados Primários de Saúde, Alma-Ata (1978) , afirmou os cuidados primários

de saúde como base para a meta de “saúde para todos até o ano 2000”.

Em 1982, numa reunião da ONU em Genebra, quando o Cardeal Dom Paulo Evaristo

Arns, então Arcebispo de São Paulo, encontrou-se com James Grant, Diretor Executivo

do UNICEF na época, surgiu a idéia de que Igreja Católica poderia atuar junto às

crianças que morriam de doenças preveníveis como, por exemplo, a desidratação

causada pela diarréia. A reidratação oral era considerada um dos maiores avanços da

medicina na época. Voltando ao Brasil, Dom Paulo conversou com sua irmã, a médica

pediatra e sanitarista Dra. Zilda Arns Neumann (PASTORAL DA CRIANÇA, 2003).

No ano seguinte, a CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - designou a Dra.

Zilda Arns Neumann e a Dom Geraldo Majella Agnelo, então arcebispo de Londrina

(Paraná), a tarefa de criação e desenvolvimento da Pastoral da Criança. Em setembro

de 1983, a Pastoral da Criança iniciava suas atividades no município de Florestópolis

(Paraná) que, naquele momento, apresentava a maior taxa de mortalidade infantil deste

Estado. Após a identificação de líderes e coordenadores para as comunidades, estes

foram “treinados” nos temas previamente selecionados: saúde da gestante, aleitamento

materno, vigilância nutricional, reidratação oral e vacinação. Inicialmente eram

coletadas informações de forma verbal, em conversas, sobre quantas crianças nasciam,

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quantas em baixo peso, quantas estavam em aleitamento materno exclusivo e outros

dados referentes aos temas de atuação. No terceiro mês de trabalho as líderes

sugeriram a utilização de um caderno para estas perguntas e suas respostas, surgia o

“Caderno do Líder”23. Paralelamente, foram desenvolvidos outros trabalhos como hortas

caseiras, com apoio de pessoas da comunidade e da prefeitura municipal (PASTORAL

DA CRIANÇA, 2003).

Em 1984 o trabalho da Pastoral da Criança foi apresentado na Assembléia dos Bispos

onde foi bem recebida, em especial pelos Bispos do Nordeste. O trabalho começou a

ser desenvolvido no Nordeste. Após três anos o trabalho foi avaliado e verificou-se a

necessidade de recursos para treinamento. A experiência foi apresentada à presidência

do INAMPS e foi pedido apoio financeiro. Foi assinado um convênio que, somou-se ao

apoio do UNICEF. Os recursos destinavam-se a apoio para treinamento e compra de

balanças para pesar as crianças. Em 1987 foi elaborado o “Guia do Líder”24 contendo

ações básicas de saúde e que é o instrumento utilizado em todas as comunidades que

possuem Pastoral da Criança (PASTORAL DA CRIANÇA, 2004).

Com o crescimento da Pastoral da Criança, os dados passam a ser informatizados,

criou-se a Folha de Acompanhamento e Avaliação Mensal de Ações Básicas de Saúde,

Nutrição e Educação na Comunidade – FABS (PASTORAL DA CRIANÇA, 2003).

A dinâmica do trabalho da instituição consiste em capacitar líderes comunitários que,

preferencialmente, residam na própria comunidade, para mobilização das famílias nos

cuidados com os filhos. Três momentos são destacados como de intercâmbio de

informações que ajudam no fortalecimento da solidariedade: Visitas domiciliares

mensais (realizadas pelos líderes a cada família acompanhada); Dia do Peso ou

Celebração da Vida; e as Reuniões mensais (entre os líderes de uma mesma

comunidade, para refletir e avaliar o trabalho realizado no mês anterior e para reforçar a

soma de esforços para superar as dificuldades) (PASTORAL DA CRIANÇA, 2004).

23 Instrumento atualmente utilizado para a coleta de dados de acompanhamento durante as Visitas Domiciliares às crianças e gestantes cadastradas pela Pastoral da Criança. 24 Material usado na formação dos Líderes da Pastoral da Criança e que contém informações técnicas sobre ações básicas de saúde, descrições sobre a missão e objetivos da Pastoral e noções de cidadania.

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Em cada comunidade atendida pela Pastoral da Criança há orientação para o

desenvolvimento de um conjunto de ações: apoio integral às gestantes, incentivo ao

aleitamento materno, vigilância nutricional, alimentação enriquecida, controle de

doenças diarréicas, controle de doenças respiratórias, remédios caseiros, estímulo à

vacinação de rotina das crianças e das gestantes, educação essencial, prevenção de

acidentes domésticos, prevenção da violência contra a criança no ambiente familiar,

prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, Saúde Bucal, catequese do ventre

materno aos seis anos de idade (http://www.rebidia.org.br).

Estudos sobre a Pastoral da Criança revelam resultados positivos de suas ações,

através de suas intervenções comunitárias com ênfase em cuidados primários de saúde

e combate a desnutrição (NELMANN at al, 1999).

Os dados apresentados pela Pastoral da Criança apontam que a mortalidade de

menores de um ano nas comunidades em que a instituição atua é 60% menor do que a

média nacional. Afirma que este resultado é ainda mais significativo se considerado o

fato de que a Pastoral tem sua ação concentrada em bolsões de pobreza e miséria,

onde esse índice costuma chegar ao dobro da média nacional

(http://www.rebidia.org.br).

Destaca-se também que há um posicionamento de sua coordenação. Em entrevista ao

jornal O Globo (2004) a fundadora da Pastoral da Criança, Drª Zilda Arns, ao analisar a

atuação do atual governo federal na área social quando questionada sobre os

beneficiados pelos programas governamentais afirmou:

“Não temo (que não recebam), tenho certeza que não estão recebendo, eu vi. São pobres que não têm registro de nascimento. Podiam ter feito primeiro um grande cadastro da pobreza e, em seguida, implantar (...) E o governo não chega realmente aos bolsões de miséria. Eu vou e pergunto e eles dizem que não estão participando dos projetos. O governo poderia usar entidades, como a Pastoral da Criança” (AGGEGE, 2004).

Este posicionamento crítico diante das políticas para o setor também aparece nas

publicações oficiais:

“Contudo, não se pode deixar de ressaltar que a justa distribuição de renda e da terra, a educação, a saúde, a segurança alimentar, o saneamento ambiental, o acesso ao emprego são condições fundamentais para que haja justiça e paz no país” (http://www.rebidia.org.br).

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Neste sentido, fica explícito que há um posicionamento da entidade frente ao poder

público e o reconhecimento do papel da Pastoral da Criança enquanto sociedade civil

em nível de coordenação.

Uma outra questão que se coloca para a reflexão é a participação da sociedade civil,

que tem sido vista com freqüência de forma ambígua. Para alguns pode apontar

reivindicações diante da inoperância do Estado e para outros são formas de

desenvolver trabalhos que seriam da responsabilidade governamental, e, neste sentido,

ajudam os governos a reduzirem seus gastos (VALLA, 1999). Neste sentido cabe

destacar uma afirmação feita pela entidade:

“O trabalho da Pastoral da Criança é uma ação de solidariedade e de cidadania, pois cada voluntário assume sua própria transformação pessoal e o compromisso com sua comunidade. Convém ressaltar que, se a Pastoral fosse pagar pelos serviços dos mais de 153 mil voluntários, necessitaria de, pelo menos, 70 milhões de dólares por ano” (http://www.rebidia.org.br).

Para a realização de suas atividades a Pastoral da Criança conta com recursos

comunitários – o trabalho dos voluntários – e com o apoio financeiro do Ministério da

Saúde, UNICEF e outros parceiros.

Por fim, deve-se refletir que comumente percebe-se que há uma grande expectativa

tanto por parte da população quanto por parte dos profissionais para que o resultado

das ações de saúde seja o estabelecimento de regras de conduta e de boas práticas

para uma substituição de hábitos alimentares “errados” por “certos” a fim de diminuir

agravos e riscos à saúde. Esta fixação sobre receitas e prescrições pode dificultar ou

adiar a busca de propostas que visem reconhecer a realidade e montar estratégias

locais, apontadas pela população e apoiadas pelos técnicos.

Neste sentido, Valente (1989) alerta sobre os riscos da chamada “educação nutricional

tradicional” que tem sido eficiente ao cumprir o papel de favorecer a perpetuação dos

processos sociais de exploração, visto que ao colocar a culpa pela desnutrição sobre o

desnutrido ou sobre a mãe do desnutrido, desvia a atenção dos reais mecanismos que

a causam (VALENTE, 1989). Esta afirmação pode ser vista como um importante alerta

tanto para profissionais de saúde quanto para lideranças comunitárias que se apóiam

neste papel prescritivo que reproduz recomendações e transfere às mães, ainda que

sem intenção, a “culpa” pela desnutrição das crianças acompanhadas.

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35

5- REVISÃO DE LITERATURA: DIREITO HUMANO À ALIMENTA ÇÃO

“Se a fome é o principal fator de morte precoce e vergonha para a civilização do século XXI, por que não provoca mobilização? Por uma razão cínica: ao contrário do terrorismo e da guerra, do câncer e de outras doenças, a fome faz distinção de classe. Só atinge os miseráveis.”(FREI BETTO)

Ao debater o Direito Humano à Alimentação no Brasil deve-se ter como pressuposto

que desnutrição, fome, pobreza e miséria não se distribuem ao acaso. Ao contrário, elas

são construções históricas fruto de decisões tomadas pela elite econômica e política de

nosso país, seduzida por promessas de lucro farto e cúmplices de interesses

internacionais.

Desde a década de 1970 informações sobre alimentação e nutrição têm sido produzidas

no Brasil através de inquéritos de base nacional. Contudo, ainda são muitas as

controvérsias sobre a real magnitude da fome e má nutrição no Brasil. Flávio Valente,

Relator Nacional para os Direitos Humanos à Alimentação, Água e Terra Rural, afirma

que fome, má nutrição e desnutrição constituem manifestações claras de violação do

Direito Humano à Alimentação Adequada (VALENTE, 2003).

A alimentação é reconhecida, em âmbito internacional e nacional, como um Direito

Humano Básico sem o qual “não há direito à vida, não há cidadania, não há direito à

humanidade, isto é, o direito ao acesso à riqueza material, cultural, científica e espiritual

produzida pelo gênero humano” (VALENTE, 2003: 71).

Os Direitos Humanos foram afirmados internacionalmente pela Declaração Universal

dos Direitos Humanos (1948) e constituem-se em um conjunto de prerrogativas que

todos os indivíduos possuem por serem parte da espécie humana. Estes direitos são

universais, aplicando-se a todos os seres humanos de forma indistinta; são

indivisíveis e interdependentes, por isso um direito não será garantido se outro for

violado; e são pautados pelo respeito à diversidade , não admitindo nenhum tipo de

discriminação política, religiosa, cultural, ética ou de gênero (CONSEA, 2004). A

Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) em seu Artigo 25 - parágrafo 1

afirma que:

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“Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação 1, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários; e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice e noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade” (ONU, 1948).

Posteriormente o Direito à Alimentação foi reafirmado no Pacto Internacional sobre

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), instituído no Brasil pelo Decreto no 591

de 06 de junho de 1992. Seu Artigo 11 declara que:

“Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação 2, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento” (BRASIL, 1992).

Para a construção deste referencial teórico sobre o Direito Humano à Alimentação

torna-se necessário explorar as reflexões atuais sobre o direito humano à alimentação,

bem como realizar uma aproximação do histórico de lutas e debates acerca dos direitos

humanos no país.

5.1. Direito Humanos no Brasil: Um Breve Contexto

A garantia da dignidade da pessoa humana e seu reconhecimento como sujeito de

direitos, como cidadão, não se alcança apenas com palavras, como ressalta Carbonari

(2003) ao introduzir uma síntese sobre a situação dos direitos humanos no Brasil. Esta

preocupação é apresentada em diversos trabalhos (VALENTE, 2003; BURLANDY E

MAGALHÃES 2004; LOPES, 2000; CARBONARI, 2003)

Segundo Lopes (2000) a defesa dos direitos humanos se faz em duas esferas

igualmente importantes: a institucional (recursos colocados à disposição de qualquer

1 Grifo nosso 2 Grifo nosso

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pessoa para a sua defesa) e a filosófica, justificadora destes direitos. Enfatiza a

necessidade de constante reafirmação de direitos.

“A todo momento estão a entrar novos membros nesta grande esfera de intervenção que é a sociedade (...) A justificação dos direitos humanos é, portanto tarefa permanente, como permanente é a sua reinterpretarão”. (LOPES, 2000: 78).

Carbonari (2003) destaca que a luta pelos direitos humanos no Brasil tem

acompanhado o processo de aprendizagem de luta popular (caso da anistia; diretas já;

impeachment; pelo fim da corrupção; reforma agrária e urbana e outras) e tem

caminhado junto à construção e implementação de políticas públicas centradas na

garantia de direitos – como é o caso do Sistema Único de Saúde e o Estatuto da

Criança e do Adolescente.

Lopes (2000) analisa que a década de 1980 marca no Brasil um expressivo movimento

em defesa dos direitos humanos. Nesta época observa-se a associação dos mais

diferentes setores sociais unidos contra o regime militar, então em processo de

extinção.

“A rigor, um dos elos que unia os diversos grupos era a defesa genérica dos direitos de redistribuição. (...) Nestes termos, as questões de autonomia e diferença eram subordinadas ou ocultadas da agenda política. Em geral apresentou-se a democracia como o meio mais eficaz de promover simultaneamente o crescimento nacional, o desenvolvimento e a distribuição da riqueza”. (LOPES, 2000: 90).

Os anos 80 e 90, segundo Lopes (2000), frustram parte destas expectativas. Entende-

se que os “direitos de redistribuição” querem pôr fim à injustiça econômica,

compensando ou transformando os mecanismos de mercado e que os “direitos de

reconhecimento” querem dar remédio às injustiças culturais. A redistribuição implicaria

alguma forma de reconhecimento: o da igualdade de todos perante as necessidades

materiais. (LOPES, 2000: 92)

Dentre as dificuldades para a efetiva garantia dos direitos humanos no Brasil Carbonari

(2003) destaca: (1) os “programas de ajuste estrutural” que tem levado o país ao

aumento do endividamento externo e interno e, conseqüentemente, à redução dos

investimentos sociais; (2) pouca utilização de recursos frente ao que é previsto e

necessário à garantia dos direitos; (3) a pobreza e a desigualdade que impedem grande

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parte da população de ter acesso às condições básicas de satisfação de direitos

fundamentais; (4) a impunidade e o aumento da violência, sobretudo do crime

organizado nas grandes cidades; e (5) a criminalização dos movimentos sociais com a

perseguição de seus lideres (CARBONARI, 2003). O autor afirma que há a necessidade

de avançar na garantia dos direito humanos:

“Além de qualificar o marco legal e institucional para sua garantia e efetivação, o fundamental é dar passos significativos no sentido de reduzir as desigualdades e a pobreza 3 que ameaçam a vigência dos direitos de milhões de brasileiros” (CARBONARI, 2003: 39).

Contudo, Carbonari (2003) destaca que apesar de ainda haver, em alguns casos

específicos, a necessidade de aprimoramentos dos instrumentos legais disponíveis, na

imensa maioria das áreas o Brasil reconhece os direitos humanos disponibilizando

recursos para a sua promoção e proteção. Começando pela Declaração Universal dos

Direitos Humanos (de 10 de dezembro de 1948) o Brasil tem ratificado os principais

instrumentos globais e regionais de proteção dos direitos humanos. A Constituição

Brasileira reconhece integralmente a vigência dos direitos humanos, parte deles

afirmados explicitamente na Constituição e também por meio de legislações especificas,

como por exemplo o direito à saúde (CARBONARI, 2003).

Além disto, entidades e os militantes têm ocupado os espaços de controle social:

conferências e conselhos. Afirma por isto, que vêm sendo construídos “instrumentos e

mecanismos concretos que reforçam a idéia de que o Estado deve ser colocado, sob o

controle da cidadania, a serviço do interesse público”(CARBONARI, 2003: 22)

5.2. Direito à Alimentação: Instrumentos de Afirmaç ão e Proteção

“A alimentação humana se dá na interface dinâmica entre o alimento (natureza) e o corpo (natureza humana), mas somente se realiza integralmente quando os alimentos são transformados em gente, cidadãos e cidadãs saudáveis”(VALENTE, 2003:53).

A realização do direito humano à alimentação, segundo o Comentário Geral nº 12 do

Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU implica em obrigações do

Estado e da sociedade em:

“... respeitar, proteger, promover e prover: a) acesso físico e econômico a uma alimentação saudável e diversificada de forma

3 Grifo nosso.

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sustentável; b) condições que propiciem um cuidado adequado na escolha, preparação e ministração do alimento (higiene, preparação de alimentos, creche, etc); c) condições de vida que promovam a saúde e d) atenção integral à saúde” (VALENTE, 2003:55).

Burlandy e Magalhães (2004) sublinham a necessidade de que se reconheça não só a

força como também as possíveis fragilidades de se ter a o direito à alimentação como

“farol” para as políticas sociais de Segurança Alimentar e Nutricional4. Enfatizam que o

direito humano à alimentação traz o apelo simbólico, filosófico e humanitário e que se

remete a um ser humano essencial, contudo é no plano da nação que são socialmente

construídos os critérios responsáveis por definir o que é ou não direito. Esta definição

depende do “significado social dos bens e de como são transformados e apropriados

por conflitos e embates políticos completos” (BURLANDY E MAGALHÃES, 2004: 62).

Assim, defendem que na sociedade contemporânea não basta que a pessoa exista

como ser humano é necessário que exista “como cidadão(ã) inserido(a) numa

determinada comunidade sócio política.” Neste sentido, afirmam a defesa do direito a

alimentação não apenas na dimensão humana, mas em uma “ótica cidadã”

(BURLANDY E MAGALHÃES 2004: 62).

Neste sentido, é importante enfatizar que direito à alimentação e nutrição inscreve-se no

direito à saúde e tem estado no centro dos debates das Conferências de Promoção da

Saúde na perspectiva de que a saúde constitui-se recurso para o desenvolvimento

social, econômico e pessoal e inserida no contexto de busca de melhor qualidade de

vida.

A Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, Alma-Ata (1978),

enfatiza a saúde – completo bem-estar físico, mental e social e não simplesmente a

ausência de doença ou enfermidade – como um direito humano fundamental. Ao tratar

dos cuidados primários de saúde (item VII) ressalta que:

“Incluem pelo menos: educação, no tocante a problemas prevalecentes de saúde e aos métodos para

4 A II Conferencia Nacional de Segurança Alimentar e Nu tricional define a Segurança Alimentar e Nutricional como a realização do direito de todos e todas ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentável.

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sua prevenção e controle, promoção da distribuição de alimentos e da nutrição apropriada 5, previsão adequada de água de boa qualidade e saneamento básico, cuidados de saúde materno-infantil, inclusive planejamento familiar, imunização contra principais doenças infecciosas, prevenção e controle de doenças localmente endêmicas, tratamento apropriado de doenças e lesões comuns e fornecimento de medicamentos essenciais” (BRASIL, 2001).

A Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, Ottawa (1986),

destaca que a saúde deve ser vista como um recurso para a vida e não como objetivo

de viver. Afirma como condições e recursos fundamentais para a saúde “paz, habitação,

educação, alimentação 6, renda, ecossistema estável, recursos sustentáveis, justiça

social e eqüidade” (BRASIL, 2001).

O movimento sanitarista brasileiro ampliando a concepção de saúde – bem-estar físico,

psíquico e social – contrapôs-se ao modelo de assistência à doença. O esforço da

sociedade e sua atuação no processo de redemocratização do país garantiram, em

nível nacional, que a Constituição Federal e o Sistema Único de Saúde (SUS)

incorporassem este conceito de saúde e o debate acerca do direito à alimentação e

nutrição.

A Constituição Federal (1988) em sua Seção II Artigo 196 declara que: “A saúde é um

direto de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas

que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e

igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL,

1990).

A Lei Nº 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e

recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços de saúde, afirma

em seu Artigo 2º que: “A saúde é um direito fundamental do ser Humano, devendo o

Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”. Em seu Artigo 3º

define que: “A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a

5 Grifo nosso. 6 Grifo nosso.

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alimentação 7, a moradia o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a

educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de

saúde da população expressam a organização social e econômica do país”. No Artigo

6º sobre o “campo de atuação do SUS” inclui no parágrafo IV “a vigilância nutricional e

orientação alimentar” (BRASIL 1990).

No ano de 1996, em Roma/Itália, a Cúpula Mundial de Alimentação, promovida pela

Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e pela

Organização Mundial de Saúde (WHO), na qual o Brasil esteve representado, aprovou

uma Declaração e um Plano de Ação objetivando o combate à fome no mundo. Os

países participantes reconheceram o direito de toda a pessoa a ter acesso a uma

alimentação sadia e nutritiva e assumiram o compromisso de realizar esforços

constantes para erradicação da fome.

No Brasil, os Conselhos e Fóruns de Segurança Alimentar nas três esferas (nacional,

estadual e municipal) têm representado espaços privilegiados de debates, trabalhando

na tentativa de conciliar conhecimentos e falas populares, acadêmicas e técnicas.

O Relatório da II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional apresenta

entre as “Propostas Prioritárias Aprovadas em Plenária” um item referente ao Direito

Humano à Alimentação. Defende a “exigibilidade imediata da Constituição Federal pelo

Poder Judiciário, para efetivar o direito humano à alimentação adequada como direito

básico ...”(CONSEA, 2002: 11) . Ainda com relação a este tema destaca a necessidade

de:

“Aplicar uma política econômica com redistribuição de renda que privilegie o desenvolvimento e crescimento econômico, negociando de forma soberana os acordos com organismos financeiros internacionais, como premissa para a existência de uma política nacional de SAN e do Direito Humano à Alimentação: como controle de câmbio para evitar a fuga de capitais; a imediata redução de taxas de juros para que haja investimentos na geração de emprego e renda, na produção industrial na agricultura, na saúde, na educação, etc.” (CONSEA, 2002: 11).

7 Grifo nosso.

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A proposição de ações para área de alimentação e nutrição deve dar conseqüência

prática à afirmação do direito humano à alimentação, dando sentido a todo debate e

aporte legal criados em torno do tema. Na década de 1940 Josué de Castro já afirmava

que:

“(...) nada existe de específico contra a fome, nenhuma panacéia que possa curar este mal como se fosse uma doença de causa definida. A fome é mais do que uma expressão – a mais negra e mais trágica expressão do subdesenvolvimento econômico (...) O que é necessário por parte dos poderes públicos é condicionar o desenvolvimento e orientá-lo para fins bem específicos, dos quais nenhum se sobrepõe ao da emancipação alimentar do povo. É dirigir nossa economia tendo como meta o bem-estar social da coletividade” (CASTRO, 2001: 291).

Neste sentido é preciso pensar o direito a alimentação como a mais veemente negação

da fome e de seus determinantes cruéis de aprisionamento e de exploração e é negar

todas as formas de assistencialismo que perpetuam a dependência e impedem que os

indivíduos se posicionem enquanto cidadãos.

5.3. Direito ao Alimento que Nutre

“O direito à alimentação adequada é alcançado quando todos os homens, mulheres e crianças, sozinhos, ou em comunidade com outros, têm acesso físico e econômico, em todos os momentos, à alimentação adequada, ou meios para a sua obtenção”.(ONU, 1999)

O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU afirmou em seu

Comentário Geral nº 12 (1999) que a “adequação” mencionada não se refere apenas a

um “pacote mínimo de calorias, proteínas e nutrientes”, mas também às condições

sociais, econômicas, culturais, climáticas, ecológicas.

Este conceito impõe um olhar integral para o alimento e para o ato de alimentar-se,

tornando-se indispensável uma reflexão sobre os tipos de representações e sentidos

atribuídos à chamada “alimentação adequada”.

A forma de adquirir, preparar e consumir os alimentos revela muito sobre as

características das sociedades humanas e sobre as relações estabelecidas em cada

grupo (HELMAN, 2003; VALENTE, 2003; BURLANDY E MAGALHÃES 2004).

Refeições ou festas comunitárias marcam muitas ocasiões importantes na vida de um

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grupo devido ao seu papel central na definição e na recriação de identidade e de

coesão de grupos (HELMAN, 2003). Os alimentos consumidos na presença e outras

pessoas e que possuem um valor simbólico, sendo chamado por Helman (2003) de

“alimentos simbólicos”.

Como destaca Helman (2003), a comida não é apenas uma fonte de nutrição, ela tem

muitos papeis e está profundamente entrelaçada aos aspectos religiosos e econômicos

do dia-a-dia porque “...a comida traz uma gama de significados simbólicos, que

expressam e criam as relações entre os seres humanos, entre eles e seus deuses e

entre eles e o ambiente natural.”(HELMAN, 2003 :49)

Resumindo os múltiplos papeis que o alimento tem na sociedade humana poderia ser

dito que: “Criar e sustentar relações sociais, sinalizar status social e ocupacional e

papeis de gênero; marcar mudanças importantes na vida, aniversários e festivais e

reafirmar identidades religiosas, étnicas ou regionais.” (HELMAN, 2003 :58)

Embora a cultura guarde forte relação com os hábitos e escolhas alimentares, deve-se

em certa medida relativizar visto que, deve ser sempre colocada em um contexto social,

político, econômico e ambiental mais amplo (HELMAN, 2003:59). A garantia do direito

humano à alimentação adequada não se garante apenas com disponibilidade de

alimentos:

“Depende do respeito a práticas e hábitos alimentares, do estado de saúde das pessoas, da prestação de cuidados especiais a grupos humanos social e biologicamente vulneráveis (crianças, gestantes, idosos, portadores de necessidades especiais, entre outros) e de estar inserido em um processo de construção da capacidade de todo ser humano de alimentar e nutrir a si próprio e à sua família, com dignidade, a partir do seu trabalho no campo ou na cidade. Esta conceituação mostra a indivisibilidade e interação entre o direito humano à alimentação adequada e à nutrição e o direito humano à saúde. (VALENTE, 2003:54)”.

A definição de conceitos e de indicadores de mensuração relacionados à fome, pobreza

e desnutrição tem ocupado o centro de debates acadêmicos, da sociedade civil e do

poder público. Para Monteiro (2003) o lançamento do Programa Fome Zero despertou

esta “antiga polêmica brasileira” sobre a verdadeira dimensão destes problemas no país

e, mais importante, as formas de melhor combatê-los. Ao analisar os conceitos de

pobreza, desnutrição e fome o autor afirma que mesmo sendo igualmente graves e

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indesejáveis e ainda que compartilhem causas e vitimas, são fenômenos diferentes, que

alcançam magnitudes diferentes no país e comportam soluções distintas (MONTEIRO,

2003).

A associação entre pobreza, desnutrição e fome foi evidenciada pelos dados da PNSN -

19898 que revelaram um predomínio das formas crônicas de desnutrição infantil9,

intimamente associadas ao nível de renda. Os segmentos mais afetados pela

desnutrição eram também as áreas com maior proporção de famílias pobres e com

menor acesso a serviços públicos essenciais como saúde, saneamento e educação

(MONTEIRO, 1997).

A especificidade de cada um dos conceitos sinaliza a existência de fronteiras e

permeabilidade entre a pobreza, a desnutrição e a fome. A existência desta inegável

correlação determina que em muitos momentos estas passem a ser analisadas do

ponto de vista de suas interseções, do fato de que suas causas e possíveis soluções

estão por isso intimamente ligadas.

Segundo Valente (2003) muitos e diferentes são os olhares sobre a fome e por isso

existem diferentes diagnósticos, mas as pessoas não falam de diferentes realidades:

“... questão da alimentação, da fome e da má nutrição não pode ser olhada exclusivamente em sua dimensão econômica (acesso à renda), alimentação (disponibilidade de alimentos) ou biológica (estado nutricional)”. (VALENTE, 2003:53)

Valente (2003) alerta que o ato de alimentar-se reflete a riqueza de processos históricos

de construção de relações sociais que “se constituem no que podemos chamar de

‘humanidade’”. Neste sentido defende que uma abordagem adequada exige a

incorporação do quadro de referência dos Direitos Humanos que, permite um olhar

baseado em “princípios básicos de universalidade, equidade, indivisibilidade, inter-

relações na realização, respeito à diversidade e não discriminação” (VALENTE, 2003).

8 Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição. 9 Identificada a partir do retardo de crescimento das crianças menores de cinco anos – alturas aquém de dois desvios-padrão da altura média esperada para idade e sexo, de acordo com padrão recomendado pela OMS (MONTEIRO, 2003).

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45

5.4. A Violação do Direito Humano à Alimentação: Um a Prisão Invisível

“Ver os filhos passarem fome é passar fome. Comer lixo é passar fome. Comer resto do prato dos outros é passar fome. Passar dias sem comer é passar fome. Comer uma vez por dia é passar fome. Ter que se humilhar para receber uma cesta básica é passar fome. Ter medo de passar fome é estar cativo da fome. (VALENTE, 2003:57)”

A fome e a alimentação, dentro de uma perspectiva de direitos humanos não aceita

redução à dimensões econômicas ou à impactos biológicos, incorporam dimensões

relacionadas a diferentes necessidades históricas, culturais, psicológicas e espirituais

dos seres humanos, incluindo a questão básica da dignidade (VALENTE, 2003)

Debatendo as questões referentes à liberdade e autonomia Lopes (2000) afirma que o

discurso sobre direitos humanos tem sido marcado pelo apelo à “dignidade da pessoa

humana” e destaca a existência de duas vertentes de entendimento: uma substantiva e

outra procedimental.

As de caráter substantivo tendem a tratar a dignidade como um valor, ou seja, um

“objeto ideal”. Há uma tendência a ser prescritiva: maneiras de ser mais ou menos

dignas. Aqueles que não atingem “o ideal substantivo da pessoa digna” passam a ser

tratados com certa condescendência ou paternalismo e esta “tolerância” no sentido

negativo do termo (tolera-se o que a rigor se poderia suprimir) gera uma atitude política

de corte autoritário. Para Lopes (2000) a concepção de dignidade como “status ideal a

ser atingido” provoca uma divisão em extratos: a humanidade tem pessoas mais ou

menos dignas. Segundo esta perspectiva, seria tarefa da elite, do governo ou da

autoridade “tornar os homens bons”, sendo condescendentes com os que não logram

atingir o ápice dos ideais substantivos e normativos compartilhado pelo grupo dos bons

e quem não vive neste grupo vive abaixo do padrão de dignidade. Esta idéia resulta

paradoxalmente, em demérito dos que não atingem este ideal, perdendo a sua

dignidade. “De instrumento de defesa das pessoas, a expressão dignidade termina por

transformar-se em instrumento de exclusão” (LOPES, 2000: 86).

Utilizando-se de formulações de Kant, Lopes (2000) define uma segunda concepção de

dignidade como concepção “moderna”: a dignidade humana na Fundamentação da

Metafísica de Costumes. Diz que no reino dos fins tudo tem um preço: tudo pode ser

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escolhido e, portanto, trocado no universo da liberdade. Aquilo que não pode ser

trocado, substituído e que não tem equivalente não tem preço: seu valor chama-se

dignidade” (LOPES, 2000: 86). A dignidade passa a ser tratada como um fim em si, que

não pode ser “objeto ou instrumento de nenhuma ação”. Lopes(2000) afirma que os

seres humanos devem reconhecer-se como um fins em si mesmos, devem reconhecer

a humanidade em si e nos outros. O reconhecimento recíproco da dignidade de cada

um é o respeito (LOPES, 2000).

Sobre as discussões Kantianas, Lopes (2000) destaca aquilo que ele chama de

“antropologia da liberdade” e afirma:

“A dignidade da pessoa humana está ligada a sua capacidade de agir humanamente, e agir de maneira humana é agir livremente, deliberando, escolhendo seus planos e seus fins. (...) A liberdade moderna, significa ausência de coação, exige tarefa crítica de conhecer e determinar o que de fato coage e limita a vida dos homens.” (LOPES, 2000: 86)

O respeito à igual liberdade de todos tende a favorecer uma perspectiva menos

autoritária da vida social e a noção de autonomia tem implicações que tornam

revolucionária em certas circunstâncias sociais, destaca Lopes (2000). Deste ponto de

vista, poder-se-ia refletir que as ações puramente assistencialistas ferem um principio

básico do respeito e promoção do direito humano à alimentação: o da autonomia e

liberdade. Recuperando uma fala de Josué de Castro:

“O fenômeno da fome se revelou espontaneamente a meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade do Recife (...) Esta foi a minha Sorbone: a lama dos mangues do Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de caranguejos, pensando e sentindo como caranguejos...” (CASTRO, 1984: 18).

Vasconcelos reflete que no mar de lama, miséria e fome dos anos 30 era possível a

convivência de caranguejos e homens feitos de carne de caranguejo. Examinando esta

trajetória dos anos 30 aos 90 questiona:

“... no mar de lama, de miséria, de fome, de violência e de corrupção que se espalha, hoje, por todo o país, será possível a convivência de alguns gabirus e homens feitos de restos de comida dos gabirus, pensando e sentindo como gabirus?” (VASCONCELOS, 1994).

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Neste sentido torna-se interessante pensar se não está sendo criada uma outra

categoria de homens, a daqueles que sobrevivem de medidas sempre emergenciais e

nunca estruturais contidas nos programas de alimentação e nutrição. Homens feitos da

dependência, pensando e sentindo de forma dependente.

Na verdade é uma retomada de uma reflexão antiga: Se você é o que você come

quando você não tem o que comer quem você é?10 Se eu sou incapaz de garantir

minha própria sobrevivência e das pessoas que de mim dependem será que posso

questionar ou tomar decisões? Este é um tipo de reflexão que não tem sido realizada. A

conseqüência provável desta omissão é a criação de novas gerações dependentes e

prisioneiras da fome.

10 Reflexão muito presente no Movimento Estudantil dos cursos de Nutrição

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6- RESULTADOS E DISCUSSÃO 6.1. Direito Humano à Alimentação em São João de Me riti Sob o Olhar dos

Líderes da Pastoral da Criança

As falas dos Líderes da Pastoral da Criança de São João de Meriti registradas durante

três sessões de Grupo Focal serão apresentadas e analisadas segundo categorias de

análise inspiradas na definição de Direito Humano à Alimentação de Valente (2003)1.

Procurou-se nesta análise captar as dinâmicas, os conflitos e as contradições expostos

através das reflexões realizadas sobre da atuação cotidiana dos Líderes e de suas

avaliações acerca das condições de alimentação e nutrição em suas comunidades e no

município como um todo.

Atentou-se ainda para o fato de que a atuação comunitária e o discurso que as

acompanha são potencialmente reveladores da “capacidade dos indivíduos em

mobilizar recursos ou formular estratégias de enfrentamento de seus problemas

cotidianos e de suas necessidades básicas (GERHARDT, 2003: 715).

a) Acesso físico e econômico a uma alimentação saudável e diversificada de forma

sustentável;

i) Direito Humano à Alimentação

Aparece no discurso dos Líderes características essenciais relacionadas ao direito

humano: a universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos e respeito à

diversidade.

“(...) a gente pensa logo no que é direito, pensa-se na igualdade para todos (...) se tem essa diferença, o direito não está se fazendo valer, (...) Então tanto do ponto de vista legal e até do ponto de vista religioso, a distribuição de maneira que atendesse a todos teria que acontecer, esse é um direito de todos. Seja ele quem for: Criança, adulto, negro, branco, índio... O direito a terra, o direito à alimentação, ao vestuário, é um direito de todos. Mas essa distância existe por não ter salário digno, esses direitos não são cumpridos.”

1“A realização do direito humano à alimentação adequada implica em obrigações específicas do Estado e da sociedade de respeitar, proteger, promover e prover: a)acesso físico e econômico a uma alimentação saudável e diversificada de forma sustentável; b)condições que propiciem um cuidado adequado na escolha, preparação e ministração da alimentação (higiene, preparação dos alimentos, creche, etc); c)condições de vida que promovam a saúde e d)atenção integral à saúde”(Valente, 2003:55).

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Há grande lucidez na afirmação de que a simples constatação da alimentação enquanto

um direito não é o suficiente para garantir o acesso. Durante as sessões as falas

sempre dão ênfase a esta distância entre reconhecer e efetivar o direito à alimentação,

associado diversas vezes com a questão da renda.

“(...) tem que ver a diferença, a barreira que existe entre direito alimentar e acesso a alimentação. (...) O dia que eu vi uma família com 7 crianças num cubículo e ela falou assim: “Eu quero me apresentar, olha o que eu tenho”. Era um armário vazio. Sabe assim, um saquinho com um pinguinho de arroz no final que não dava nem para fazer pra 7. E a geladeira pura, só com água, a menina tinha água. (...)”

ii) Acesso Econômico: Emprego e Renda

Quando teve início a atividade de grupo focal, a primeira fala registrada referiu-se a

grande associação entre a garantia de emprego e renda e as condições de

promoção e defesa do Direito Humano à Alimentação. Esta afirmação foi consenso

entre os Líderes.

“Sobre o direito da alimentação (...) eu acho que em primeiro lugar é um salário digno (...) E a maioria que a gente trabalha não tem salário, trabalha de biscate e sabe que no final do mês 2 não dá para completar a bolsa de alimentação(...)”

“(...) se você tem condições de uma renda, tem condições de uma boa alimentação.”

“(...) o importante é ela saber se ela tem aquele salário, mas dentro do mês 3.”

A imprevisibilidade, a instabilidade e a sensação de vulnerabilidade a que são expostas

as famílias fizeram parte dos discursos dos Líderes que deram notada ênfase ao

desemprego e o subemprego (referido como biscate) como principais obstáculos à

garantia do Direito Humano à Alimentação.

Sobre isto Valla (2005) alerta que as pessoas submetias a essas formas de trabalho

sofrem com a sobrecarga, o pouco descanso e com a “impossibilidade de

previsibilidade e organização da vida em projetos de médio e longo prazos” o que “torna

frágil a saúde do trabalhador e as suas condições morais no controle da própria

vida”(VALLA, 2005: 50).

2 Grifo nosso. 3 Grifo nosso.

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As falas Líderes mostram a percepção de que não bastam atividades informais ou a

confecção de produtos com pouco (ou sem) valor de comércio. Deve-se ressaltar que

nos últimos anos diversas iniciativas deste tipo têm sido incentivadas e promovidas,

tanto pelo setor público quanto por iniciativas da sociedade civil, como resposta ao

crescente desemprego em bairros empobrecidos.

“Atividade é uma coisa, tirar fonte de renda é outra coisa, (...) fazer é fácil, difícil é vendar.” “O lance de você produzir esses tipos de coisinhas de artesanato barato não vende , porque ninguém quer. Oh, já dizia Joãozinho Trinta: Pobre gosta de luxo, não gosta de pobreza!”

Destaca-se que há uma associação entre o oferecimento de atividades que gerem

emprego e renda e a recuperação da auto-estima das mães. As falas apresentam uma

reflexão entre duas funções: de um lado como forma de agrupar e gerar esperança

entre as mães (ressaltam um potencial enquanto terapia) e de outro questionam a

possibilidade real de transformação real das condição econômica que é, de fato, o

problema de fundo a que se quer combater.

“(...)estamos querendo, assim, querendo fazer alguma coisa para levantar essa auto-estima dessas mães, que muitas dessas mães elas quase não saem de casa, elas vivem ali dentro, (...) a gente está querendo criar emprego renda, (...) em termos de garrafa peti, cestinha de jornal, coisas que não tem gasto, bem dizer, e eu queria saber também a opinião de vocês, (...) se valeria a pena ou não?”

Há uma ênfase na afirmação de que a segurança e a certeza de efetivação do Direito

Humano à Alimentação está em ter um emprego, com salário no final do mês.

Destacam ainda as dificuldades de garantia de um posto de trabalho e o sofrimento

ocasionado em conseqüência desta constatação.

“A mãe estava preocupada. “Não tenho nada para dar a meus filhos hoje, meus filhos até essa hora ainda não comeram ”. (...)é muito grave porque a maioria são homens desempregados, porque hoje em dia você vê, não é? Para conseguir um emprego na Comlurb a pessoa tem que batalhar. (...)são tudo pessoas que não tem escolaridade não vai arrumar em prego mesmo não, nem pra bico mais vai arrumar mais não. E tem mãe lá que a gente estava começando a botar na idéia (...) “Você vai estudar porque não sei, alguma coisa tem que ser feita. Não adianta falar: “Vai procurar emprego, na casa de família” Não arruma não. Eu falo por mim, eu sou diarista, estou desempregada (...)tem muitas mães que passam fome , (...) a gente trabalha com a pobreza . E elas que são mulheres elas sentem vergonha , não é4?”

4 Grifos nossos.

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A escolaridade é vista pelos Líderes como uma alternativa de alcançar o status de

assalariado. Sobre isto Stotz (2005) reflete que “(...) escolaridade em nível médio

completo (antigo segundo grau) tornou-se uma exigência no mercado de trabalho, mas

os salários não aumentaram por conta disso” (STOTZ, 2005: 67).

As falas imputam ao estudo (educação formal) a responsabilidade de ser única (e

última) alternativa. Este é um dos reflexos de um processo de mudança do papel da

educação, que segundo Soares (2003) deixa de ser um direito de cidadania ou

possibilidade de libertação (lembrando Paulo Freire) para transformar-se em

precondição para a “competitividade”.

As possibilidades de frustração são cada vez maiores, neste caso, já que não existem

vagas para todos. Sobre este caráter excludente do capitalismo, deve-se ressaltar o

contingente gigantesco de população que estaria “sobrando ”(STOTZ, 2005: 66).

As reflexões sobre emprego e renda aparecem fortemente associadas à questão de

gênero. Mais uma vez a escolaridade é destacada como um fator central na indicação

da forma de inserção no mercado de trabalho.

“(...) as mães solteiras muitas delas se prostituindo (...)ela não tem o estudo necessário para disputar uma balconista, alguma coisa, porque ela não sabe ler nem escrever, mas ela sabe a gíria , tem um corpinho bonitinho, ela consegue ter uma calça de marca, um alimento melhor, traz... Dá um mínimo para o filho, não é? Então ela consegue se vender para obter um ganho melhor e ter uma aparência melhor, casa, adquirindo até móveis, aparelhos eletrônicos domésticos , superiores a outro trabalhador que está se laçando lá, o pedreiro que está se danando (...).os filhos estão com (...) o pai dela e com a mãe, e ela sai para trazer aquele dinheiro, até não só sustentando os filhos, mas a família toda, nessa condição. É isso que a gente tem observado em termos de segurança alimentar em busca do alimento como está sendo feita a troca árdua 5”.

Existe uma percepção da vulnerabilidade das mulheres, sobretudo chefes de família e

mães solteiras, obrigadas a criar artifícios para garantir sua sobrevivência e de sua

família. A segunda fala revela uma que muitos dos “sacrifícios” estão relacionados a

uma tentativa de aproximar-se aos atuais padrões estéticos e de consumo da

sociedade. O corpo nesta negociação torna-se apenas mais uma mercadoria: uma

“troca árdua”, mas é uma troca.

5 Grifos nossos.

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Soares (2004) afirma que é importante entender que as mulheres são mais vulneráveis

para enfrentar a situação de pobreza, destacando que observa-se a cada dia “mais

mulheres trabalham fora de casa, mas o desemprego é maior entre as mulheres em

relação aos homens; recebem uma remuneração menor; e, são em maior número nos

trabalhos informais” (SOARES, 2004: 119).Encontra-se este destaque na fala dos

Líderes:

“(...) ela foi abandonada pelo marido, como uma situação que hoje muitas mulheres acabam vivendo (...) vive daquele dinheiro que ele acaba dando e faz um biscate daqui, faz um biscate daí. Então ali perto da prefeitura tem um sacolão (...) fica um caminhão ali que eles botam a sobra de alimento (...) Puxa, a pessoa se sente humilhada.”

O fato de terem pouca autonomia econômica, que se expressa na capacidade de gerar

renda própria, coloca a mulher numa situação de mais vulnerabilidade e aumenta a

possibilidade de que muitas caiam na pobreza caso sejam modificadas as

circunstâncias familiares e conjugais.

Outra relação analisada por Soares (2004) a relação entre a pobreza das mulheres e a

chefia de família. Dados do IBGE revelam um aumento do número de domicílios

chefiados por mulheres: “em 1992 eram 19% dos domicílios e em 2002 eram 32,1%. O

fato de os domicílios chefiados por mulheres não ter ajuda do cônjuge para garantir

renda adicional aponta para oportunidade desigual de sustento da família” (SOARES,

2004: 120).

Todos estes relatos demonstram que em seu dia-a-dia os Líderes identificam no

desemprego e subemprego (ou em suas conseqüências) um importante determinante

dos casos de violação do Direito Humano à Alimentação em suas comunidades.

iii) A fome como parte do cotidiano dos Líderes

Seja nas atividades de visita domiciliares ou em atividades coletivas (como a

Celebração da Vida), a fome apresenta-se como um fator de constante urgência e

sofrimento no dia-a-dia dos Líderes, obrigando-os a adaptações e à procura de

alternativas criativas.

Em muitas comunidades a opção foi trocar os tradicionais lanches (bolo, refresco,

cachorro-quente, etc) servidos durante a “Celebração da Vida” por sopa. Segundo os

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depoimentos, várias comunidades têm servido sopa e esta modificação foi bem aceita

pelas crianças, o que surpreendeu muitos Líderes. Eles afirmam que isto se dá porque

muitas famílias estão sem comida em casa.

“(...) dois panelões de sopa, todo mês, porque a gente viu que é a comida que alimenta, não adianta ficar dando um bolinho e um lanchinho (...) olha tem criança de um ano que ela come 4 horas, 5 horas da tarde, e aquela é a primeira refeição do dia para aquela criança.” “(...)a gente achava que sopa de tarde não ia dar certo, porque as crianças já vinham alimentadas não iam querer e realmente você vê que a fome...A fome é negra.”

É importante acrescentar que a “Celebração da Vida” é o dia em que mães e Líderes

das comunidades reúnem-se para pesar as crianças e “celebrar” o ganho de peso e a

recuperação da “saúde”. Tradicionalmente é um momento festivo para a comunidade,

neste caso a alimentação (lanche) teria um significado mais simbólico. Em muitas

ocasiões aproveita-se este momento para discutir sobre estratégias para uma

alimentação “saudável” e prepara-se a “Alimentação Enriquecida”6, mas ainda assim

matem seu caráter festivo.

A opção pela sopa, que alimenta e que é muitas vezes a primeira refeição daquele dia,

parece mudar o sentido da alimentação nesta atividade. Como ressalta Helman (2003)

quando o alimento é consumido numa atmosfera comunitária, diz muito sobre os

participantes e sobre a sua relação um com o outro e com o mundo externo. Neste

caso, pode-se questionar o que muda quando do lanche, refeição festiva partilhada por

todos, é trocado por uma sopa que é dada pelos Líderes aos outros membros de sua

comunidade.

Os dois depoimentos seguintes referem-se a visitas domiciliares. Nota-se um forte

sentimento de impotência diante de situações extremas pobreza. Apesar de serem fatos

muito presentes no cotidiano destes Líderes, há sempre um tom de perplexidade e

sofrimento nestes depoimentos.

“Não adianta você também visitar e deixar a pessoa lá com a barriga vazia, que às vezes a gente chega nas casas elas abrem o armário e só tem uma

6 A pastoral da Criança denomina como “Alimentação Enriquecida” as preparações que utilizam integralmente os alimentos, ou seja, suas partes convencionais e também as não convencionais. Por exemplo, um bolo de banana que utiliza a banana, mas também a casca da banana em sua receita. A “Alimentação Enriquecida” também refere-se às formas alternativas de apresentar os alimentos como, por exemplo, suco de limão com beterraba ou suco de abóbora com maracujá.

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sujeirinha lá no armário: “Ó, só tenho isso”. Formiga. Então como é que você vai falar de Deus, vai falar de Pastoral para uma pessoa que não tem... que não tomou café, que está sentada e até dormindo para não pensar na fome.” “Aí chegou naquela porta ali, está chamando, chamando, chamando... Ela disse que algo impulsionou pra que ela entrasse. Quando ela chegou lá a menina deitada, numa fraqueza incomum , que ela já com 5 meses de gravidez e duas crianças roendo caroço de cajá 7 que era a única coisa que tinha pra comer.”

Os Líderes têm uma “metodologia” própria de diagnóstico e acompanhamento de sua

comunidade. Empiricamente, a partir de sua realidade, encontram formas de registrar a

situação e de acompanhar as condições de vida em sua comunidade.

“Vejo as famílias que tinham alguma coisa e que hoje estão fazendo obras, melhorou alguma coisa (...) Porque a gente é o termômetro da comunidade, então vê passar com mais bolsinha, quem não ía na padaria que não comprava pão, hoje o garotinho já vai com um real para comprar uma sacolinha de pão (...) e a outra nem isso tem. Você vê a mãe até às vezes mandar o filho ir pra casa da vizinha, que viu passar o pão, para ir brincar com o menininho para ver se ele vai comer alguma coisa.”

“(...) estive observando desse janeiro para cá e que algumas famílias ficaram bem mais pobres na qualidade de miseráveis 8 (...).” “Que as condições do país começou a melhorar um pouquinho os alimentos começou a cair, as pessoas começaram a ter um acesso (...) mais quantidade, não é dizer que melhorou não, ele pode comprar mais arroz, mais feijão, entendeu? (...) quem não tinha nada continuou miserável mesmo 9, entendeu? São essas famílias que a gente passou a atuar em cima(...)” “(...) a gente como Pastoral da Criança a gente está trabalhando com essa faixa bem baixa mesmo (...). Porque hoje ganha uma bolsa, a bolsa só dá uma semana, eles estão famintos. Como é que você controla um pouquinho por dia se a necessidade é comer tudo naquele dia.”

Constatam, portanto que os miseráveis estão mais miseráveis e que para quem tem um

emprego as condições estão um pouco melhores. Esta observação encontra relação

7 Grifos nossos. 8 Grifos nossos. 9 Grifos nossos.

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com dados do IPEA apresentados no capítulo anterior que ressalta aumento da

Intensidade de Pobreza10 no município de São João de Meriti.

Outro fato enfatizado pelos Líderes é o papel da mídia na rápida divulgação de novos

padrões de consumo, agregando novas dificuldades ao seu trabalho cotidiano e ao dia-

a-dia das famílias. Estas mudanças de padrão interferem nas escolhas e nas

estratégias de sobrevivência, sobretudo dos jovens.

“(...)Hoje em dia moda disso, moda daquilo que a própria mídia vem trazendo. E aqueles que não têm? Então chega na adolescência vem aquela cobrança e a gente vai vendo determinadas jovens oriundas de famílias assim às vezes acabando se prostituindo, tendo filhos cedo, não é? Se trocando por qualquer coisa. Por quê? São crianças com a mesma vaidade de outras (...).” “E ao mesmo tempo mostrando uma realidade que dentro da pobreza, dentro da miséria eles não têm como viver, a não ser se prostituindo , indo pra o mundo das drogas 11. Então eu acho que é um compromissos também que a gente sente de ofertar uma outra face. Existe algo diferente desse mundo, não é?”

Segundo Stotz (2005), pode-se dizer que a pobreza “(...)diz respeito a uma situação na

qual uma pessoa (ou uma família) não tem condições de viver dentro dos padrões

socialmente estabelecidos em um certo momento histó rico 12” (STOTZ, 2005: 53).

Deve-se, portanto estabelecer um debate sobre que padrões são estes e como

interferem no cotidiano das pessoas.

As atividades ilícitas também necessitam ser refletidas. Na medida em que geram renda

e estão com as “portas abertas”, as atividades ilícitas vêm se banalizando e

transformando-se em mais uma estratégia. Para Stotz (2005) parte da população

“sobrante” criada pelo capitalismo encontra no crime organizado uma possibilidade de

sobrevivência, abrindo as portas a jovens miseráveis nas favelas e bairros populares: “o

capitalismo transforma tudo em mercadorias, pouco importa sua origem e natureza”

(STOTZ, 2005: 67).

10 Este indicador representa em termos percentuais o valor que falta para os indivíduos miseráveis (renda de inferior a R$ 37,75) e pobres (renda de inferior a R$ 75,50) deixarem de ser miseráveis e pobres. 11 Grifos nossos. 12 Grifos nossos.

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iv) Alternativas de enfrentamento: as sobras, a Mul timistura e outras

estratégias

Chama a atenção uma grande insistência na afirmação das feiras livres como única

opção de abastecimento para as famílias mais vulneráveis dentre as acompanhadas

pela Pastoral da Criança. As falas revelam grande insistência em estabelecer como

uma função (ou missão) inerente às suas atividades de Líderes transformar a ida às

feiras e a coleta de sobras menos degradante e menos humilhantes para as mães.

Porém, como realizar uma tarefa tão difícil? Eles mesmos deixam transparecer esta

dificuldade.

“Quando a gente não tem o valor para comprar é uma coisa, porque para a mãe que não tem ela vai na feira e ela tem vergonha , ela se sente mais diminuída ainda, mais pequenininha ainda de estar pegando aquilo ali. (...)a auto-estima precisa ser trabalhada para que elas retornem ao meio social onde elas se sintam alguém, onde elas se sintam digamos que gente, porque elas não se sentem gente , elas acham que elas não existem. E nós perguntamos para nós mesmos isso: “Ela existe?” Uma mãe que ela não se acha capaz de preparar o alimento para o seu fil ho com qualidade... 13” “Tem feira livre que você vai, você pede as pessoas às vezes não querem dar.(...) tem coisas que eles já estão direcionado a certa pessoa, para comida para porco, para comida para galinha, para t artaruga. (...) Elas não precisam ter vergonha (...) Não é porque ela é pobre, é porque ela está buscando enriquecer a qualidade de vida da família.” “...a auto-estima dela, que é realmente a televisão mostra , não mostra justamente a realidade aqui do local, (...) e as mães sentem um pouco de vergonha sim de ir lá na feira pegar, por mais que você líder vá com ela, (...) ela sabe que você está ali para ajudá-la, ela está ali sem opção , porque ela não tem nada em casa.”

A fala que questiona se aquela mãe “pode existir” expõe este conflito entre o que

orientam e que verdadeiramente sentem os Líderes. São muitos os constrangimentos

apresentados nas falas: o fato de algumas vezes as mães terem que “disputar” as

sobras com animais; a possibilidade de terem seu pedido negado; a doação ser a única

opção que a mãe possui por não ter dinheiro algum; a possibilidade de encontrar-se

com vizinhos e ter que expor situações extremas e “íntimas” de sua família.

Por todos estes fatores esta alternativa, apesar de toda a boa vontade dos Líderes,

torna-se um caso clássico de violação do direito humano à alimentação: é humilhante e

13 Grifos nossos.

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degradante; não garante nem qualidade nem quantidade; e impossibilita o direito de

escolha e o acesso de forma digna a alimentação.

Outro destaque observado nas falas é a doações de alimentos e de sobras por pessoas

que “colaboram” ou pela Igreja estão presentes nas falas como forma de aquisição de

alimentos. Em um contexto tão adverso e de extrema dificuldade, mais uma vez

determina a convivência com situações constrangedoras que acabam por ser aceitas e

legitimadas pelas ações cotidianas, na árdua tarefa de conviver com as urgências.

“(...)encaminha para a pastoral do quilo, mas tudo isso deixa ela muito caída, nem sempre ela vai pegar alimento, tem vergonha de pedir. É humilhante.” “(...)Numa casa de família, a maioria das vezes as pessoas colaboram com cesta básica , com roupinha, sobra de alimentação 14, então mesmo com pequeno salário, (...) essa família sendo caridosa com certeza no final da tarde também ela leva um pouquinho de alimentação pra sua casa.” “Olha, eu posso varrer, entendeu? Se houver alguma coisa que você possa fazer em troca, no final, de alguma coisa que não sirva para vender”. E eles fizeram negócio com ela. E aí foi com um certo tempo ele já saía de lá com a bolsinha e ninguém via ela catando.”

Nas falas pode-se perceber que o estabelecimento de uma “rotina” destas doações é

visto pelos Líderes como uma forma de segurança, a partir desta “inclusão” ou do

estabelecimento deste vínculo tem-se algum acesso, ainda que não seja a forma

desejada de acesso.

Cabe refletir neste caso a proposta de integração de grupos ‘marginalizados’ que parte

do princípio de que uma parte da população, em razão da sua pobreza, encontra-se

‘fora’ da sociedade. A dificuldade de acesso aos produtos e serviços básicos seria

decorrência da ignorância e passividade desses excluídos – os que estão ‘fora’ por sua

própria culpa, precisando ser incentivados e esclarecidos para poderem participar dos

benefícios do processo econômico e cultural. A verdade é que estes grupos nunca

deixam de fazer parte da sociedade, mas sua participação na riqueza produzida se dá

de forma desigual. Em decorrência, esta concepção tem inspirado programas

governamentais e religiosos visando integrar os ‘marginalizados’ (VALLA, 1998).

14 Grifos nossos.

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De todas as ações da Pastoral da Criança sem dúvida a mais polêmica e também a

mais conhecida é a utilização da Multimistura. Condenada academicamente e alvo de

constantes críticas de profissionais de saúde, sobretudo Nutricionistas, a Multimistura

tem deixado de ser consenso inclusive dentro da própria Pastoral da Criança.

A Multimistura é uma farinha obtida a partir da mistura de subprodutos tais como:

farelos de trigo e arroz, farinha de trigo torrada, fubá, folhas verde-escuras, pó de

sementes e de casca de ovo. Desperta muita polêmica por sua utilização como

suplemento alimentar e por seu título de “pó milagroso”. A Multimistura não tem eficácia

comprovada no combate à desnutrição, seu conteúdo nutricional assemelha-se muito

ao de outras farinhas. São relatados problemas quanto à sua manipulação e

embalagem, ocasionando alto potencial de contaminação (AZEREDO, 1999).

Já existe um número considerável de estudos realizados acerca da Multimistura,

contudo o foco deste trabalho não está no debate de características nutricionais e

aspectos higiênico-sanitários do produto, mas sim nas representações e interpretações

apresentadas pelos Líderes da Pastoral da Criança em São João de Meriti.

Recentemente um artigo publicado pela Coordenação Nacional da Pastoral da

Criança15 ressalta a não comprovação de sua eficiência no combate a anemia. O estudo

foi realizado com crianças de uma creche em Pelotas que foram divididas em dois

grupos: um consumiu a Multimistura e o outro não. Em muitas das falas os Líderes

mostram-se revoltados e ressentidas com a publicação deste estudo.

“Na minha paróquia pelo menos quando houve essa fala com relação a multimistura foi uma frustração, todas se chocaram (...) o que nós vamos oferecer diante de um município que não tem nada 16, aí você vai oferecer o quê?” “(...) os Líderes se apegam na Multimistura, no leite forte, que a gente sabe que não é isso que transforma, mas (...) dá um poder de transformação para o próprio Líder porque pelo menos ele se sente leva ndo algo para aquelas famílias 17.”

15 Periódico publicado pela Pastoral da Criança denominado de “DICAS” no 29 de junho de 2005. www.pastoraldacrianca.org.br 16 Grifos nossos. 17 Grifos nossos.

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A não aceitação dos resultados está fortemente relacionada às suas experiências

cotidianas. Apesar de relatarem também experiências mal sucedidas – como casos de

diarréia – os Líderes são unânimes em destacar o “valor” da Multimistura.

“(...) vem aquela pessoa e fala assim: “Não, mas a Pastoral da Criança não é a Multimistura”, (...) e falam: “Não sei por que vocês dão isso, não adianta nada!” (...) nós que atuamos ali sabemos dessa realidade, se ela realmente faz a diferença ou não” “(...) seja qual for o Líder, faça o teste, (...) aquela família que esteja dentro do seu feijão e arroz colocando essa alimentação... Porque as famílias não têm outra coisa. Não adianta pensar que aquela família vai ter carne, vai ter legumes, vai ter frutas, as famílias não têm. Uma alimentação colorida, não é? Porque o colorido que as nossas famílias conhecem é o preto do feijão, o branco do arroz, o amarelo do fubá 18. E as crianças, o relato de (...) eles chamarem a Multimistura até de carne.(...) Então acaba tendo aquela função de um complexo vitamínico que vai estar atuando naquelas outras alimentações.” “Tem mães que exageram, às vezes dá diarréia por iso, dá uma dose muito alta, (...).”

As falas revelam que a Multimistura tem para o Líder um valor que vai muito além do

nutricional: tem um apelo místico e humanitário. Desta forma, um olhar puramente

técnico, no sentido de análise nutricional, não dá conta de captar os muitos significados

atribuídos a Multimistura: a doação, a criação de vínculo com a família e, acima de tudo,

a celebração de um sentimento de “dever cumprido” porque ainda que potencialmente

aquele farelo não propicie (ou não represente) ganho em termos nutricionais, o Líder fez

o que estava ao seu alcance e tem fé de que sua atitude fará a diferença no dia-a-dia

daquelas crianças, gestantes e idosos.

Por fim, uma outra estratégia que teve destaque na fala dos Líderes foi a Agricultura.

Grande parte da população do município de São João de Meriti é constituída por

imigrante de áreas rurais de outros estados, sobretudo do Nordeste. Provavelmente por

isto a produção de alimentos apareceu neste debate urbano, recuperando uma

experiência anterior das famílias e dos Líderes com a agricultura.

“Nós não vivemos assim numa zona rural e as pessoas perderam esse hábito de plantio, então por mais que a gente fale foge, da realidade, porque as pessoas já estão num desânimo tal que resgatar os valores que a gente fala, nem nós mesmos praticamos.”

18 Grifos nossos.

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“Às vezes nós temos um quintal imenso e nós mesmos os Lideres, não plantamos nada ali, então a orientação é a partir de nós mesmo, a mudança é nossa, a transformação é nossa.”

Os debates sobre Segurança Alimentar e Nutricional têm destacado a Agricultura

Urbana como uma estratégia a ser incentivada junto à população. Os resultados

apresentados parecem estar mais relacionados ao fortalecimento de vínculos

comunitários, ao trabalho de auto-estima e resgate de hábitos alimentares do que

propriamente para subsistência (MONTEIRO & MENDONÇA, 2004).

Para Rocha (2003) em uma economia essencialmente monetária as famílias mais

pobres metropolitanas pouco podem recorrer a autoprodução (subsistência). Mudam

também os vínculos sociais que se tornam mais tênues do que em áreas rurais e

centros urbanos menores (ROCHA, 2003:103).

b) condições que propiciem um cuidado adequado na escolha, preparação e

ministração da alimentação (higiene, preparação dos alimentos, creche, etc);

Neste tópico voltamos às reflexões feitas anteriormente. Uma pessoa cuja única fonte

de alimentação seja o recolhimento de sobras tem o seu direito à alimentação

respeitado? Há qualidade no que se recolhe?

“Eu já fiz feira com duas mães e sai catando coisa no chão, e depois lavava, deixava nas gotas de cloro, essas histórias todas, e fazer e comer junto delas, a diferença que é, porque até então eu estava pagando mico, não é? (...). Eu falei: “Está vendo, ninguém passa fome”. “E pela aparência dos legumes você vê que não é tipo assim algo que foi comprado, ou foi ganhado ou foi recolhido em algum lugar. Mas mesmo assim tem aproveitamento.” “Eu quero saber se existe alguma diferença de vitamina 19, por exemplo, de uma cenoura murcha e uma cenoura novinha, da qualidade. (...) Porque na Zona Sul você chega o próprio mercado a alimentação, o verde é diferente, a cenoura é diferente, a beterraba é diferente, quando chega aqui no mesmo valor já é uma qualidade diferente.”

Revela-se com as falas que, mesmo quando há a possibilidade de compra, a qualidade

do produto colocado à venda não obedece ao mesmo padrão de localidades com maior

poder de consumo, citando na fala a Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro.

19 Grifos nossos.

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Destaca-se que a preocupação revelada pela Líder procede: frutas, legumes e

hortaliças frescas dispõem de melhor qualidade sensorial e maior segurança higiênico-

sanitária e que seu “envelhecimento” provoca oxidação e, conseqüentemente, perdas

de micronutrientes, diminuindo seu valor nutricional.

Ressalta-se contudo que é essencial para a garantia do direito à alimentação que se

enxergue o alimento não apenas fonte de nutrientes ou como mercadoria, mas como

um direito humano básico e forma de contato com o mundo, integrado a hábitos,

cultura, festividades e confraternização. Estes aspectos ficam bem marcados nas falas.

Os hábitos alimentares são formados nos primeiros anos de vida e nesta fase as

crianças são fortemente influenciadas pela televisão, tendendo a acreditar em todas as

informações contidas nos comerciais (LEWIN, 1992). Este período seria o momento em

que as crianças estariam conhecendo os hábitos alimentares da família: os horários e a

composição das refeições. Atualmente com a maior inserção das mães no mercado de

trabalho as crianças passam a maior parte do tempo expostas ao mundo sedutor das

propagandas.

“(...) é diferente do zelo de uma mãe e de uma mulher na cozinha e o de um homem se ele também não tem conhecimento.(...) se ele tem o feijão e o arroz ele tem o sustento. Aquilo aí que enche a barriga pra não deixar passar fome é que é a sobrevivência. (...) Então essa saída da mulher de casa e o homem ficando, essa troca que está havendo em busca do sustento dificulta o nosso trabalho também.”

A insuficiência de renda e o não acesso a determinados tipos de alimentos foram

apontados como forma de discriminação e, mais uma vez, foi lembrada a interferência

da televisão sobre a determinação de necessidades.

“(...) tem crianças que não conhecem determinados alimentos porque eles não têm esse acesso. Eles teriam direito de comer Danoninho , tomar iogurte, eles só vêm aquilo lá no programa de televisão (...) Seria um direito deles, como toda criança ter direito a frutas, a legumes e eles não têm esse acesso a isso. Então direito todos têm, agora chega até todos? Não. É uma descriminação 20 (...)” “A gente dava para as crianças elas olhavam com uma cara assim... Aí abria, ela catava a banana e a laranja da salada de fruta. Uva, mamão, maçã... (...) “Não tia, mas eu não gosto disso não.” “Não, mas é bom”. “Mas eu nunca comi”. Você fica com aquela dor no coração: nunca comeu uma

20 Grifos nossos.

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uva, de repente nunca comeu uma maçã e pelo outro lado, não conhece e não vai conhecer porque não tem o hábito.”

O direito a alimentação deve estar integrado ao direito de escolha, que exige este

exercício de refletir sobre as opções e informações que nos são apresentadas. No caso

das crianças na faixa etária de atuação da Pastoral da Criança as informações a que

tem acesso são os sabores, cores e texturas dos alimentos que lhes são apresentados

por sua família ou creche, reforçando a importância de uma diversidade alimentar neste

período da vida.

O potencial de atuação da Pastoral da Criança para a realização de atividades

educativas exitosas foi documentado por Neumann (1999). Neste estudo identificou que

a atuação da Pastoral da Criança esteve significativamente associada ao conhecimento

materno quanto à conduta alimentar durante a diarréia, à idade ideal para o aleitamento

materno exclusivo, à contra-indicação do leite em pó, à interpretação da curva de

crescimento e quanto ao esquema de vacina (NEUMANN, 1999). No discurso dos

Líderes há grande ênfase nas atividades educativas, contudo pôde-se observar por

vezes uma postura prescritiva que tende a culpar as mães.

“(...)as mães também precisam ser educadas para saber, muitas não sabem. De manhã, eu tenho um caso na família, dá uma comida para a criança que não tem nada a ver com alimentação, principalmente massa de manhã, joelho, essas coisas, besteirinhas, que não alimentam.” “(...) se a mãe não tem aquele habito alimentar enriquecido fica difícil ela passar para o filho.” “(...) a orientação que a gente vai passar pra que elas possam estar realmente passando para os seus filhos, mesmo com sua renda mínima, passando, digamos, que um rico café da manhã, um rico almoço, um rico lanche da tarde, um rico jantar (...).”

Durante a realização dos grupos focais as Líderes apresentaram um discurso bem

afinado quando o assunto refere-se sobre as vantagens do aleitamento materno.

Fizeram um diagnóstico e apontaram possíveis causas para o desmame precoce.

Todas fizeram questão depor sobre a importância do aleitamento materno.

“E dentro da minha comunidade são crianças que com 16 dias que eu fui visitar a criança não estava mais mamando leite materno. Não sei como que as mães com dificuldade em tudo acha que o leite materno não é o principal(...), elas fizeram pré-natal em casa de saúde particular conveniadas com o SUS e não foram orientadas nem a alimentar seu neném.”

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“É um direito que a mãe tem também de se informar, de se educar pra poder criar o seu filhinho também. (...) Estamos com 8 crianças com menos de 4 meses de idades, todas já na mamadeira e a maioria tudo fora do seio materno. ”

O aleitamento materno é considerado como a primeira forma de Direito à Alimentação.

Houve grande ênfase quanto ao direito da mãe de amamentar. Os benefícios do

aleitamento materno tanto para a mãe quanto para criança são amplamente conhecidos

e documentados, constituindo-se em um direito reconhecido internacionalmente e

garantido por lei.

No entanto, este direito tem sido violado (BIHAN, 2002), por influência de massivas

propagandas de industrias a favor de substitutos do leite materno, fenômeno muito forte

em décadas de passadas, e a precarização das relações de trabalho, já que apenas os

contratos formais garantem a licença maternidade e o direito de a mãe amamentar

durante o período de trabalho.

O acesso à creche também foi relacionado ao direito à alimentação. É interessante

observar que creche aparece no discurso como direito não atendido, que exige ser

tratado como política pública. No município de São João de Meriti existe desde de 2003

um movimento denominado “Pró-Creche” que denuncia a falta de vagas em creche para

99%das crianças.

“(...) famílias têm necessidades e porque também o poder público não está oferecendo creche e pré- escola, porque teria direito a pelo menos três refeições aquela criança.” “Se tivesse creche(...) que é um direito da criança. (...) com 6 anos entra escola, quando consegue vaga, e é discriminada por ser pobre, por ser negra, por não saber sentar porque não tem aquele tino de atenção, e vai para merendar, essa que é a grande descoberta da criança que vai p ara a escola pra ter a merenda . Agora, se ela tem uma creche, ela vai crescendo dignamente, (...) a criança bem alimentada ela tem uma capacidade de raciocínio bem melhor do que a outra. Então isso me dói em São João.(...) Diz que é 1,8%... ou 1,2 de criança em creche. Uma creche que é partidária, uma creche que é de política, e a política da cidade não é católica, não é?”

Sobre esta associação entre creche e estado Silva(2000) realizou um estudo utilizando

dados da PNSN (Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição), realizada em 1989. Em

seu artigo destaca a pertinência da análise das creches por dois fatores: o principal

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problema nutricional verificado entre crianças brasileiras é a desnutrição crônica21 e é

reconhecida a importância da alimentação adequada como fator decisivo para o

crescimento infantil. Os resultados demonstram que os programas de creche favorecem

a crianças mais com dois anos ou mais, consideradas menos vulneráveis; que apenas

8,49% das crianças com renda domiciliar per capita menor que US$ 40,00 freqüentam

creche; e que analisando o estado nutricional verifica-se que as crianças que não

freqüentam creche revelam déficits de altura maior (16,67%) do que aquelas que tem

acesso a esse tipo de serviço (12,56%) (SILVA et al, 2000).

Destaca-se que as crianças desnutridas e pobres ganham um rótulo de crianças

incapazes, futuros adultos com menores possibilidades, o que é uma inverdade. Este

rótulo ideologicamente inculcado pelas elites com interesses de subjugar as classes

populares acaba acompanhando esta criança pelo resto da vida.

A afirmação de que a creche é partidária e que a política no município não é católica

criou um grande desconforto nos participantes. A explicação dada foi que a seleção das

crianças é feita por políticos, em sua maioria ligados a igrejas evangélicas.

c) condições de vida que promovam a saúde

O saneamento e o fornecimento de água são problemas crônicos no município de São

João de Meriti. As falas reforçam estatísticas e dados historicamente conhecidos.

Chama a atenção que estas questões foram reconhecidas pelos Líderes como barreiras

à efetivação do direito humano à alimentação.

Os Líderes denunciam uma realidade em que o simples fato de dar banho em seus

filhos e lavar a roupa de sua família torna-se um evento, enquanto para outras famílias

“correr” de enchentes se torna rotina.

“(...) ela falou: “Nossa, carreguei tanta água !” Você vê quanto custou aquele banho que ela deu naquelas crianças.” “(...) são realmente dois valões, dois ricos negros . Então tem poluição, as famílias ficam no meio, quando a enchente elas correm tudo para o centro onde tem terra , e as casas eles abandonam porque enche.”

21 A PNSN revela que 16,13% das crianças analisadas apresentavam déficits de altura.

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As falas denunciam que ao descaso e à lentidão do poder público soma-se a uma

constatação de uma realidade tão difícil que mesmo a “igreja” esforçando-se não tem

possibilidade de intervenção efetiva.

“É um bando de casinha assim, não tem sanitário com a exceção de um que a casa é tipo um palafita (...) já foram na igreja várias vezes, deram dinheiro pra poder comprar remédio, (...) e se você passa um ano, dois, três visitando aquela família a realidade é a mesma .” “ Algumas ações da prefeitura elas só vão até o muro(...) Aí eu perguntei pelo plano habitacional, que eu já participei de reunião com o secretário de desenvolvimento do município (...) A explicação que ele deu que aí tem que passar projeto disso, projeto daquilo, orçamento disso , orçamento daquilo se aprovar... Então em suma não tem nada pra ser fazer por aquela família (...) Aí enquanto igreja nós resolvemos estar fazendo uma casa, um banheiro.”

Pádua (2003) faz uma análise sobre a degradação em áreas urbanas que muito

se assemelha à realidade meritiense. Destaca que a falta de infra-estrutura

urbana e de serviços de saneamento, o lançamento de efluentes industriais e

sanitários sem tratamento, o despejo de lixo e entulho em encostas ou

diretamente nos cursos d’água, o desmatamento e a ocupação de margens e

encostas, entre outras atividades, causam inúmeros problemas, inclusive zonas

sujeitas a inundações periódicas (PÁDUA, 2003).

Devido à forma de ocupação da cidade de São João de Meriti, as casas foram

construídas muito próximas umas das outras e por isso têm quintais muito pequenos.

Os Líderes destacam que os animais e as crianças dividem espaço e ressaltam a pouca

higiene.

“E aí quando eu entro assim naquele pedacinho de espaço, 4 cachorra, sabe? Cachorra, coelho, gato... Aí, quer dizer, o espaço que tem pras crianças brincar que não é nenhum, é ocupado tudo de que, de bicho.” “ engraçada a relação dessas pessoas com os animais. Já não é a primeira casa que eu passei por essa experiência: O pessoal cria rato . (...) Porque elas botam comida pro rato (...) rato vai tudo quanto é canto, entra em tudo quanto é canto(...) convivem com uma naturalidade que é espantosa. (...) Tinha uma que o rato comia os alimentos e ela tirav a assim... ” “Ficava o armário lá aberto, o rato passeava e ela voltava a comer aquele alimento, quer dizer, o rato era um animal doméstico.E aqui o município está empestado”

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Foi um consenso entre o grupo o sentimento de perplexidade diante da relação

estabelecida entre as famílias e os ratos vários Líderes relataram experiências

semelhantes de uma naturalização da presença desses animais nas casas.

As falas mostram que os Líderes encontram forte correlação entre a presença de

animais (domésticos ou não) com a falta de higiene. Contudo, ressaltam mais uma vez

as dificuldades geradas pela escassez, neste caso de produtos de limpeza. Fizeram

questão, no entanto de ressaltar que não há um vínculo direto entre pobreza e sujeira.

“Você vai conversar com uma pessoa sobre higiene a pessoa não tem nem sabão. (...) Então fazer como aquela musiquinha: “Uma casa muito engraçada”, não tinha nada, não tinha nada. Então é com isso que o Líder acaba vivenciando.” “Que às vezes não é a pobreza, que tem gente que fica tudo sujo, tudo desarrumado porque é pobre, mas não é isso (...).”

d) Atenção integral à saúde

Revelam-se pelas falas vários artifícios e atalhos desenvolvidos pelas mães e pelos

Líderes para conseguir alguma forma de acesso aos serviços, sobretudo exames e

internações. O “acesso” através de “conhecimentos” ou “contato político” foi relatado

várias vezes.

“(...) aí procuramos ver, iríamos arranjar uma ultra-sonografia para ela através de conhecimento (...).” “(...) a gente tem que chega 8 horas da manhã para apanhar o número e fica o dia inteiro (...) e o médico passa só olha assim rapidinho, não tem nenhum tipo de orientação não.”

O acompanhamento da Pastoral da Criança vai desde a gestação até os seis anos de

idade. Para os Líderes há uma grande contradição porque uma das atividades mais

enfatizadas pela Pastoral da Criança é o incentivo ao pré-natal e ao acompanhamento

médico. O incentivo à procura do serviço público de saúde traz novas responsabilidades

para o Líder, já que, segundo referem, há dificuldade de acesso e baixa qualidade de

atendimento de pré-natal e parto no município.

“Agora a alimentação no seio materno eu acho um absurdo, porque as mães não estão dando mesmo. Pergunta onde ela ganhou neném: na casa de saúde conveniada com o SUS. (...) O SUS deve estar pagando o pré-natal dessas mãezinhas, não é? E não está sendo bem feito.”

A gravidez na adolescência foi apresentada como importante preocupação dos Lideres

que destacaram que há um maior despreparo no cuidado com as crianças.

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“Eu estava com 15 barrigudas no caderno e eu orientei elas a amamentar. (...) A mais velha no meu caderno tinha 18 anos, a mais velha.” “As mães hoje em dia às vezes são crianças, são adolescentes que muitas vezes se comportam realmente como crianças ainda, não sabem nem o que é ser mãe e a partir do momento que dá a luz a um filho não sabe nem como cuidar, e a alimentação, o leite materno é realmente muito importante.”

A ocorrência de gestação durante a adolescência é um tema que tem merecido

destaque em todo o mundo, particularmente nos países subdesenvolvidos, constituindo

problema de grande relevância no campo da saúde pública. No Brasil, a gravidez em

adolescentes apresentou um acréscimo de cerca de 10% na última década. Atualmente,

mais de 20% dos nascidos vivos são filhos de mães adolescentes, com percentual

crescente na faixa entre 10 e 14 anos.

A realidade da atenção à criança é muito semelhante à observada na atenção ao pré-

natal. Os relatos foram de dificuldade de acesso e pouca satisfação com atendimento.

Pode-se extrair ainda das falas críticas à postura de profissionais de saúde. Algumas

vezes de forma revoltada e de outras sarcástica apontam um despreparo e um

desconhecimento da realidade local por parte destes profissionais.

“(...)o teste do pezinho. Você fica horas e horas naquela fila pra poder fazer esse teste, uma imensidão de mães ali com os filhos no colo. A mesma coisa com a vacina BCG. (...) E a gente não vê solução por mais que se denuncie, por mais que se corra atrás (...) não consegue uma solução concreta.”

“Ela não tem vergonha com a gente, mas o médico é aquele doutor, não é? Que eles coloca... Então eu lembro de na consulta a doutora: “Essa criança se alimenta, come fruta?” “Come”. “Come” E a gente sabendo que ela não tinha nada.” “(...) médico ele foge da realidade, ele não está preparado pra poder conversar com essas pessoas e ver um meio de alcançar a realidade delas, porque vai encaminhar pro nutricionista. (...)fica passando aquilo ali tudo pra mãe pra levar para casa uma receita (...).”

Quando as mães e seus filhos conseguem acessar os serviços públicos de saúde

encontram outro desafio: encontrar meios de seguir orientações e prescrições.

Inúmeras vezes foram dados exemplos e casos de famílias acompanhadas pela

Pastoral da Criança em que as Líderes foram à farmácia básica ou ao serviço de

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assistência social, mas não tiveram êxito. Quando há a possibilidade recorrem a

recursos de doação da “igreja” ou aos “conhecimentos”.

Com tantas dificuldades em acessar e garantir atendimento das mães e crianças pelos

serviços de saúde e assistência social do município, vale a pena examinar que tipo de

avaliação e de relação os Líderes estabelecem com o poder público e com as atitudes

clientelistas, muitas vezes única opção de acesso.

Por diversas vezes foram apresentados relatos denunciando uma tentativa de inversão

de papéis: os serviços de saúde e de assistência social encaminhando crianças e

famílias para a Pastoral da Criança acompanhar.

“Aí se bobear, aqui é realidade em quase todas as paróquias, a prefeitura que deveria estar fazendo alguma coisa, a ação social. Não, é o inverso. Manda para a Pastoral da Criança.” “Aqui tem acontecido um papel invertido, não é? Os pediatras quando pegam essas famílias miseráveis, ele mesmo vê, pega caso de desnutrição, ele não tem para onde encaminhar, ele encaminha para a Pastoral.”

Os Líderes da Pastoral da Criança por sua vez persistem com as tentativas de

encaminhar as famílias para os serviços públicos de assistência social e de saúde e,

segundo relatos, com pouco sucesso. Foram feitos relatos de repetidos insucessos que

acabam por despertar descrença e desanimo entre as famílias e no próprio Líder.

“(...)eu tinha a ilusão e eu passava isso para as Lideres, que a família que estivesse numa situação de carência muito grande ou determinadas necessidades que poderiam ser encaminhadas pra esse programa que viesse procurar a ação social da prefeitura. (...)nada estava funcionando. (...)Lá na paróquia eu recebo bilhetes de assistentes sociais que mandam me procurar, já me procuraram até para comprar remédio” “(...)Aí, chega ali naquela esperança, naquela expectativa de que vai ser conseguir, aí pronto, você sai dali.. Melhor que você nem tivesse ido lá. Ficasse com aquela sua esperança, (...).”

O mesmo desanimo aparece nas falas referentes à representação em Conselhos,

acrescentando-se o medo e as ameaças. Destacam também o incomodo de ter um

papel mais figurativo, de legitimadores de decisões.

“ Existem conselhos que de acordo como o que você fala, você amanhã não está pra contar a história.”

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“(...) eu já cansei de ouvir falar que às vezes 10 minutos antes de começar o conselho já vem ali uma pilha de documentos que você tem que analisar pra aprovar, quem vai fazer isso? Então o nível de desrespeito... É complicado.”

Foram relatadas mudanças de cenário em período eleitoral. O contexto de tantas

necessidades e demandas não atendidas torna-se terreno fértil para que serviços e

favores virem troca de moeda.

“Vai chegando o momento político, você vê todos os políticos na rua, nesses lugares mais humildes lá estendendo as mãozinhas pra pegar nas mãos dos bobos pra obter seus votos.” “Você não consegue ver uma transformação ou uma esperança no olhar de cada um. Principalmente por isso, não é? Acabam se acostumando a realmente ter que receber alguma coisa, porque há sempre aquela troca meio de voto, meio de alguma coisa pra poder estar votando neles. Então é.. Aí, é revoltador! A gente fica muito triste com isso”

Farias (2000) afirma que uma ampla corrente da Ciência Política resume o debate a

uma oposição entre o clientelismo (barganha político-eleitoral) e a democracia sob dois

argumentos: (1) o clientelismo é a apropriação privada da coisa pública; (2) a barganha

do voto representa uma corrupção da democracia. Para este autor há uma

compatibilidade entre o clientelismo e um tipo de democracia, a “democracia

capitalista”.

Enquanto a elite econômica engendra formas cada vez mais sofisticadas de

manutenção do poder e de aumento de lucros, a população pobre ocupa-se de sua

sobrevivência. Sob este aspecto vale ressaltar a discussão de Valla (2001) sobre as

categorias previsão e provisão: “não se pensa no futuro (previsão) porque todas as

energias estão mobilizadas para evitar a sensação de fome que já havia passado, e

garantir a subsistência no dia de hoje (provisão)” (VALLA, 2001:54). Desta forma, a

naturalização das práticas clientelistas fazem todo o sentido para as classes populares

que vivem sob a influência das urgências do presente. Por outro lado o clientelismo não

pode ser explicado puramente pelo nem pelo empobrecimento e nem pela “falta de

consciência dos valores básicos da cidadania política”, uma vez que se pode identificar

um conhecimento dos mecanismos de manipulação do voto através da utilização de

expressões que avaliam a maioria dos políticos como “desonestos” ou “interesseiros”

(FARIAS, 2000: 63).

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6.2. Religiosidade e Pobreza em São João de Meriti Sob o Olhar dos Líderes da Pastoral da Criança

Para Groetelaars (1981) não há teoria geral que possa dizer o que seja religiosidade

popular. Pode-se dizer da religiosidade popular, segundo Parker (1996) que ela pode

ser fator de alienação, fator de identidade popular, de impugnação simbólica da cultura

e da religião oficial; pode ser reforço ético para um projeto de ascensão social ou para

um projeto de transformação social: “a religião popular pode ser ou pode não ser isso,

dependendo da situação social e histórica” (PARKER, 1995: 292)

Este debate partiu do pressuposto que para além do discurso institucional da Pastoral

da Criança existe a sua vivência popular orientada pelas normas, práticas e valores

institucionais, mas re-significada em cada localidade, de acordo com as experiências e

desafios apresentados em cada realidade. A proposta deste capítulo é examinar

motivações e ações da Pastoral da Criança a partir de falas produzidas durante as três

sessões de grupo focal.

a) Motivações para o trabalho na Pastoral da Criança: fatores que animam e

mobilizam os Líderes em São João de Meriti.

i) Fé, Esperança e Messianismo:

Quando o grupo foi questionado sobre qual o principal fator de animação para o

trabalho, a esperança foi dada como resposta1 imediata. O consenso que esta resposta

gerou no grupo foi impressionante. Os Líderes se olharam e sorriram. Alguns acenaram

com a cabeça como forma de aprovação. Seguiram-se alguns segundos de silêncio

como se aquela frase fosse suficiente para sintetizar o sentimento de todo grupo:

“A esperança de um dia mudar”.

Este questionamento foi feito no final da segunda sessão logo, já havia sido abordada

uma grande parte das dificuldades e dos desafios do cotidiano dos Líderes. Esta frase

pareceu ter algo de desabafo ou de “protesto simbólico” (PARKER, 1995: 292). Para o

autor, indivíduo que leva nas costas uma série de experiências traumáticas de

1 Esta resposta foi dada por uma das participantes que esteve em todas as sessões, uma das mais pontuais e interessadas, mas que pouco falou. Seus olhos durante as sessões pareciam querer captar alguma novidade, alguma nova proposta de enfrentamento a partir dos relatos de outros Líderes. Anotava tudo. Durante os encontros além de opinar se preocupava em perguntar e propor: o que vocês acham de tal iniciativa e se fizéssemos uma mobilização.

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humilhação e opressão protesta silenciosamente: “Silencioso porque silenciado, mas

nem por isso mudo”(PARKER, 1995 : 292).

Esta frase revela ainda um tom messiânico. Em meio a tantas adversidades e a

exigência cada vez maior de dedicação, os Líderes colocam as expectativas no futuro,

no por vir. Segundo Libanio (2003) na tensão do passado e futuro emerge o fenômeno

do messianismo que revela o desejo de encontrar no futuro o ideal de perfeição: “(...)

jogam com a insatisfação do presente e com a promessa de um futuro melhor. Quando

o presente se carrega de crise, de carências, de condições insuportáveis,

especialmente para os pobres e camadas populares, pululam tais movimentos”

(LIBANIO, 2003: 9).

As falas parecem demonstrar que quando os problemas são considerados grandes

demais para serem resolvidos no presente ou quando estão fora do campo de ação dos

Líderes, a esperança torna-se um abrigo. A esperança num futuro que é incerto e por

isso mesmo mutável. A esperança que existam mudanças para melhor.

“(...) sempre vivi na esperança de que um dia todo mundo vai poder se alimentar 4 vezes ao dia. Não é? Eu posso, eu acho que eu tenho alimento até de mais.”

“Quisera Deus que realmente pré-natal fosse de se dar atenção a mãe”.

“Às vezes alguém bate lá na minha porta (...) E isso me anima, não que ela fique pedindo toda vida, que todo mundo fique pedindo, mas que (...)vai fazer um questionamento com essas pessoas que não tem animo de fazer alguma coisa; que a política do nosso país mude(...).” “Então só o próprio Deus mesmo para nos impulsionar e nos levar a pensar o que fazer.”

Constantemente a fé aparece nas falas como o aspecto mais forte da animação. A fé

que protege nas incertezas e angustias da vida comum. Em virtude da complexidade

desta constatação, cabe apenas refletir que “trata-se de fé e não ciência. (...) ‘Tenho fé

em Deus que vou ganhar na loteria esportiva(...)’. Não há explicação explicativa e sim

explicação evocativa” (GROETELAARS, 1981: 69)

“(...) temos que ter fé. (...)Como vai estar aquela família que nós deixamos no mês passado ou a 15 dias, entendeu? Nós temos que ter fé e a esperança de que esta sempre melhor”.

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“A gente fica tentando, não perde as esperanças, e aí onde vem a fé. Porque é a única coisa que permanece ali em pé que você tenta e vê um Deus vivo pra poder você poder continuar, (...) deixar plantada ali alguma coisa pra que ela possa estar realmente melhorando(...)”

Os Líderes unem fé, esperança e messianismo em suas falas, trazendo estes

elementos para junto das necessidades concretas do dia-a-dia como uma estratégia de

sobrevivência. “É fé mesmo e não certeza científica de uma sociologia, que nunca tem

este grau de certeza, nem pode ter (...)” (GROETELAARS, 1981:107).

ii) Caridade, Dádiva e Apoio Social :

Os significados atribuídos à caridade em dicionário são: “1. o amor que move a vontade

à busca efetiva do bem de outrem, 2. A prática da caridade; beneficência, filantropia, 3.

benevolência, complacência, 4. uma das três virtudes teológicas” (FERREIRA, 2004).

As falas colocam o amor cristão como um grande fator de mobilização.

“Eu acho que a caridade é em primeiro lugar. É uma atitude cristã. Não tem como você virar as costas”.

“E é isso que dá força, que dá coragem, que dá animo pra gente, (...) amar aqueles cristãos ao nosso redor, amar a Deus, amar a mim mesmo e aqueles que estão em volta da gente. Eu acho que o amor acima de tudo(...).” “(...)é um trabalho que se você for ver na Bíblia Ele pede muito que nós amamos ao próximo, ajudar o nosso próximo, e a Pastoral da Criança faz isso, (...) ela não se fecha dentro da igreja”. “(...)retorno não volta naquela família pra gente, mas vem de Deus.”

O amor revela-se dentro de um discurso religioso, que se inspira ou segue orientações

cristãs, bíblicas. Contudo, percebe-se que há uma grande valorização dos laços

criados. Existe muita a satisfação no pertencimento a um grupo, em contraposição ao

individualismo e ao egoísmo cultivados pela “modernidade”.

“Não tem, não tem uma coisa maior que esse amor que eles têm pela gente, eles pegam realmente um amor, é o laço que a gente cria (...)” “Antigamente as famílias viviam tudo muito próximo. Hoje em dia não, a gente vive distante e cada um vivendo ali a sua vida, então essa vida comunitária, muitas e muitas das vezes a gente percebe até irmãos de igreja falando:“Puxa, não somos parentes, mas temos laços.”

“Hoje em dia a gente vive uma cultura assim, é um egoísmo, não é? Cada um vai vivendo a sua vida, ninguém se preocupa com ninguém. Ninguém ama ninguém.”

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“(...) eles sentem a nossa falta, então, por isso que o que motiva a gente é isso, não tem como você parar o trabalho.”

Sobre isto cabe destacar Minkle Apud Valla (1999) utiliza a idéia de apoio social 2 que

se mostra muito presente nas falas. Define-se apoio social como “qualquer informação,

falada ou não, e/ou auxílio material oferecidos por grupos e/ou pessoas que se

conhecem e que resultam em efeitos emocionais e/ou comportamentos positivos”. Este

é um processo recíproco que gera efeitos positivos tanto para quem recebe como para

quem dá o apoio, dessa forma permitindo que ambos tenham mais sentido de controle

sobre suas vidas. Esse apoio normalmente se dá entre pessoas que se conhecem e se

freqüentam de uma forma sistemática e por isso geralmente está associado a uma

instituição ou entidade. O apoio social teria efeito na manutenção da saúde e prevenção

de doenças (VALLA, 1999).

Outra reflexão possível a partir do discurso dos Líderes refere-se à dádiva. Segundo

Goldbout (1999) pode-se dizer sobre a dádiva que ela “não é uma coisa, mas uma

relação social” (GOLDBOUT, 1999).

Para Goldbout (1999) há uma recusa moderna em reconhecer a dádiva porque ela

representa a imagem invertida do interesse material egoísta e porque existe a influência

da maneira pela qual a tradição do pensamento utilitarista permite a organização destas

questões. Goldbout (1999) ressalta que a modernidade cobra dos indivíduos que estes

percam esta “ingênua crença”: “O homem moderno aceita que o acusem de muitas

coisas, mas certamente não de ser ingênuo (...) é realista. Sabe portanto o que se

esconde por trás da dádiva.” (GOLDBOUT, 1999: 11).

Um fator central ao debate da dádiva é a crítica antiutilitarista que, para Martins (2004),

tem por fim denunciar “o equívoco de toda tentativa de limitar as motivações humanas

apenas à moral do interesse egoísta e privilegiar a economia de mercado como

instância privilegiada na produção de bem-estar social” (MARTINS, 2002: 2).

2 “social support”

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Martins (2004) alerta que os debates sobre dádiva a partir da síntese de Marcel Mauss3

tem uma visão ampla que extrapola o senso comum estabelecido sobre dádiva,

identificada como caridade ou benção. Segundo o autor caridade e benção

correspondem a um tipo de dádiva, a cristã. Acrescenta ainda que a dádiva seria a

definida pela universalidade de uma tripla obrigação de “dar, receber e retribuir”.

As falas indicam a construção de vínculo ou laços a partir da caridade – do amor

Cristão. O vínculo é relacionado a um trabalho voluntário que não espera recompensas

do outro.

"(...) o que mais me motiva dentro da Pastoral da Criança em continuar meu trabalho é o simples sorriso que as crianças dão. (...) eu falo: “minhas famílias”.

“(...) a gente passou a conhecer aquelas famílias a gente integrou elas na nossa vida e na nossa comunidade então aquilo ali se torna uma coisa que a gente dá força, que dá coragem e dá animo.”

Pode-se então dizer que pela dádiva o “... bem circula a serviço dos vínculos .

Qualifiquemos de dádiva qualquer prestação de bem ou serviço sem garantia de

retorno , com vistas a criar, alimentar ou recriar os vínculos sociais entre as

pessoas”.(GOLDBOUT, 1999:29)4

iii) Mística e a Auto-identificação com a realidade

Uma das grandes revelações deste trabalho foi a constatação de que são as

experiências de vida muito mais do que os ensinamentos religiosos que motivam este

trabalho. Ao menos no contexto da Pastoral da Criança de São João de Meriti o que

mais tem peso nesta motivação ao trabalho voluntário são as marcas deixadas por um

cotidiano difícil e cheio de infortúnios.

Trabalhava-se neste estudo com a hipótese de que a mística seria o primeiro ponto a

ser lembrado pelos Líderes e que teria a maior ênfase quando se questionasse a

motivação e animação para o trabalho. Isto porque a mística é tida no material didático

de formação do Líder como o fator principal de animação. No Guia do Líder da Pastoral

3 A teoria da dádiva foi sintetizada pelo antropólogo, etnólogo e sociólogo Marcel Mauss em 1924 sob o título Ensaio sobre Dádiva. Na década de 1980 surge na França o M.AU.S.S. – Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais. 4 Grifo nosso.

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da Criança, a mística é considerada “a força que impulsiona e anima a caminhada; é

seiva que alimenta e sustenta a Vida, que brota da experiência pessoal e comunitária

com Jesus” (PASTORAL DA CRIANÇA, 2003).

Apesar de não ser lembrada de imediato quando se perguntou sobre a motivação e

animação para o trabalho na Pastoral da Criança, a mística esteve presente nas falas

em outros momentos.

“Ali lá realmente ali eu tive o meu encontro com Deus, porque olha; eu não parei de chorar um minuto sequer. Olha, até falar eu me arrepio. (...) ali eu encontrei Ele, (...) até no falar eu já fico me emocionando. Eu acho que assim, a gente tem que fazer tipo assim um retiro com as mães, (...) mas assim do encontro dela com Deus, ela procurar um som, um galho de árvore, uma flor, um pedacinho de mato e explicar para ela encontrar Jesus, e aí de repente ela se abre.” “ É como a gente no início da capacitação como fala na mística, fé e vida é a base. (...) A oração nós precisamos dela permanentemente, a gente às vezes se torna fraco diante das dificuldades, diante dos caminhos que às vezes é tão longo e às vezes é muito estreito”.

A palavra mística é um adjetivo de mistério e que está ligada à experiência religiosa,

nos ritos de iniciação: “A pessoa é levada a experimentar, por meio de celebrações,

cânticos e danças, dramatizações e realização de gestos rituais, uma revelação ou uma

iluminação conservada por um grupo determinado e fechado. (...) o mistério está ligado

a essa vivência/experiência globalizante”(BOFF, 1999: 12).

“Porque só os missionários que saem das suas casas, das suas famílias pra poder estar ajudando os outros. (...)esse ir ao encontro do outro e estar vendo as suas necessidades e tentando fazer algo que acaba impulsionando, independente da religião. Porque Deus se revela a todos, independente da religião. E eu acho que é essa revelação que faz com que a gente veja nesses outros irmãos a própria presença de Deus. Eu acho que é isso que acaba alimentando, sendo uma comunhão, impulsionando ali a continuidade”.

Neste trabalho constatou-se que a mística não é um traço tão marcante – ao menos

entre os Líderes de São João de Meriti. Ao contrário, a mística é relatada como um fator

secundário, ainda que apareça nos discursos. Como fazia parte da pesquisa provocou-

se, através de pergunta especifica, um debate sobre o significado da mística para

Líderes.

“Olha, quando eu percebo que uma Líder está muito, está desmotivada eu sempre leio a mística, a gente lê na reunião a mística para crescer o ânimo (...).”

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“Eu quando eu fiz a minha capacitação (...)essa parte da mística era uma coisa muito forte, hoje eu percebo assim que algumas capacitações que eu já vi eu ainda não vi assim a criatividade dos capacitados, não é? Nessa questão da mística, porque quando você é tocado ali por essa parte você tem a tendência de levar ali para a sua comunidade sempre buscando esse lado da espiritualidade porque se você ficar bloqueada ali só para a ação(...).” “Lideres que têm mais experiência nesse sentido, até na visita ele leva sempre a palavra, mas outros que ainda não estão ficando bem treinados a gente percebe que não. Ele se choca e aí ele fica sempre muito mais voltado só para o lado social. Ele quer levar um remédio, ele quer levar o alimento”.

A partir do debate provocado sobre a importância da mística percebeu-se que no

cotidiano ela parece ter deixado de ser um sentimento-experiência e tornou-se uma

“coisa”: mais um instrumento ou ferramenta.

Boff (1999) ressalta ainda a existência de uma “mística político-social” que neste sentido

representa “... o conjunto de convicções profundas, as visões grandiosas e paixões

fortes que mobilizam pessoas e movimentos na vontade de mudanças, inspiram

práticas capazes de afrontar quaisquer dificuldades ou sustentam a esperança face aos

fracassos históricos” (BOFF, 1999: 24).

Sob este aspecto apresentado por Boff (1999), a mística pode ser identificada nas falas.

Não tanto sob um aspecto puramente religioso, mas atribuída a convicções e

alimentada pela realidade. É certo que o caráter religioso está presente no discurso,

mas parece haver uma grande complexidade que não pode ser atribuída unicamente à

mística religiosa. Deve-se destacar neste sentido que o sentimento de auto-identificação

com a realidade das famílias ficou muito marcado.

“Eu já passei por isso, por isso eu estou te dando essa idéia. Os meus filhos também pequenos, a necessidade era grande, não tinha ninguém que me orientasse no ambiente familiar”. “(...) a pessoa ela já viveu alguma experiência, ela já passou por algo que a faz querer fazer algo por alguém.(...) Se a gente não acreditar no homem, na transformação do homem, não é? Diante de tantas coisas que a gente vê.”

A experiência pessoal dos Líderes não só foi apontado espontaneamente como

motivação como foi por diversas vezes reforçada. Muitos Líderes têm em comum o fato

de, direta ou indiretamente, terem vivenciado alguma experiência pessoal com a fome e

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com a pobreza: algum familiar, uma história que o comoveu, um trabalho comunitário

anterior.

b) O Cotidiano da Pastoral da Criança em são João de Meriti

i) Os Líderes da Pastoral da Criança

Os Líderes em são João de Meriti são geralmente moradores das comunidades em que

trabalham e têm níveis diferentes de escolaridade. Em sua maioria são católicos, mas

também espíritas e evangélicos. São senhoras, são jovens, são chefes de família,

homens e mulheres. Há em comum um grande comprometimento com as condições de

vida dos moradores de suas comunidades.

“(...) quem caminha realmente como Líder sabe o valor que o Líder da Pastoral da Criança tem. É só dessa forma, é só atuando como Líder que a gente via saber o que é o trabalho da Pastoral da Criança.” “Eu acho que cada líder tem um potencial, porque nós temos Lideres às vezes que são analfabetos e temos Lideres às vezes que são formados em faculdade.” “... diz que Deus ele não escolheu pessoas capacitadas, mas ele capacitou os seus escolhidos. (...).”

O discurso revela uma grande preocupação em enfatizar que todos são capazes, que

cada um pode contribuir. As falas revelam sempre uma necessidade de auto-afirmação.

O sofrimento e a necessidade de superação foram constantes durante todos os

encontros. Vários Líderes após a sessão afirmaram sentir-se bem com as sessões

porque oportunizaram momentos de desabafo e de partilha. As dificuldades de uma

comunidade e outra são bem parecidas e a troca parece diminuir as tensões, parece

permitir que os “fardos” sejam compartilhados.

“Então o todo quando a gente vê assim tanta coisa que não funciona, eu acho que o Líder é um grande sofredor, porque às vezes eu como coordenadora desse ramo, às vezes quando eu caio na besteira de me sentir abalada e chegar pra um Líder e desabafar eu depois me arrependo (...)o Líder ele pega uma sobrecarga muito grande.” “Eu saí de lá assim tão transtornada da vida, na hora eu lutei pra ficar na minha, mas eu chorei um dia inteiro, eu não tive como. Eu cheguei em casa não tive condições de me alimentar.” “(...) fica querendo solucionar assim a necessidade daquela pessoa, mas ela entra num desânimo em função disso e a gente tem que lutar para poder não desanimar e entender.”

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“(...) uma pessoa que não tem... que não tomou café, que está sentada e até dormindo para não pensar na fome. (...) o Líder também sofre muito com essa situação.”

Por viverem tão próximos fisicamente das famílias acompanhadas e por participarem

ativamente de suas dificuldades diárias, acabam compartilhando de seus sentimentos.

“E a gente sofre junto, sofre mesmo. Sofre de às vezes até chorar, não é?” “Eu me emociono porque eu tenho duas filhas, eu acho que se chegasse a esse ponto eu também seria uma pessoa desesperada”. “Às vezes até a gente mesma fica envergonhada”. “Então a gente não pode dar nada, primeiro que a gente não tem nada, as pessoas que eu oriento são os meus vizinhos(...)” “(...) você sai totalmente fraca, parece que você carregou toda aquela carga pra você.”

As falas revelam que lidar não só com uma realidade difícil, mas acima de tudo a pouca

capacidade de intervenção é frustrante e difícil. Causa sofrimento a impotência diante

de gigantescos problemas. Problemas históricos, mas nem por isso naturalizados, nem

por isso menos sofridos.

Apesar da Pastoral da Criança trabalhar com metas de cobertura e cobrá-las das

Dioceses e, conseqüentemente, dos Líderes dois traços são marcantes: o número de

famílias acompanhadas por cada Líder não pode ser muito grande, para garantir que

seja feito o vínculo, e prima-se pelo respeito à realidade local, incentivando-se as

adaptações.

“Nós não vamos atrás da quantidade de famílias na rua, nós vamos atrás da qualidade de vida (...). Cada bairro tem uma realidade diferente.”

Dentre as ações dos Líderes eles destacam a visita domiciliar como a parte mais

importante e gratificante do trabalho de Líder. Pela descrição realizada nesta fala

percebe-se que há um caminho de persistência. Para criar vínculo e ganhar a confiança

da família exige-se tempo e dedicação do Líder. Talvez este seja um dos principais

diferenciais das visitas realizadas pela Pastoral da Criança: prioriza a qualidade do

contato e o envolvimento. Algumas das falas destacaram que através das visitas os

Líderes passam representar um “agente de transformação”.

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“(...) aí você vai conversando, você vai só olhando, e conversando com elas. Elas não deixam você entrar num primeiro momento, mas depois elas já pegam confiança (...) À medida que você vai visitando, e ela até vai contando os problemas pessoais dela com o marido, que ela está grávida outra vez e é aquela coisa, ela não queria. (...) é através da visita que ele vai identificar a situação daquela família, vai criar laços e vai tentar ser ali um agente de transformação”.

Por outro lado, destacaram também que muitos espaços são abertos à Pastoral da

Criança, abrindo a possibilidade de trabalhar em outras frentes que não só nas ações

cotidianas. O estabelecimento de prioridades parece ser um ponto de conflito e de

dúvidas.

Duas cenas presenciadas durante a etapa de Observação Participante mostram bem

isto. Em uma delas uma Líder relatou que estava participando de um grupo de debates

sobre políticas públicas no município e teve acesso a dados sobre recursos e

obrigações dos serviços de saúde que ela desconhecia. Ela sentiu-se extremamente

surpresa e disse que ali ela entendeu a forma como era tratada em reuniões com

representantes do poder público, disse que percebia muita cautela. Ela disse: “Eles

pensavam que eu sabia coisas que eu não sabia. Mas agora eu que sei!”

Em outra situação durante uma reunião entre coordenadores paroquiais uma Líder e

Coordenadora Paroquial foi chamada a atenção por outros membros da Pastoral da

Criança porque estava se dedicando muito às atividades do Conselho Tutelar e que isto

estava prejudicando suas atividades na Pastoral Criança. Este tipo de conflito e

contradição também aparecem nas falas.

“Eu vejo a pastoral como um grande leque. (...) Então pára só da visitação, no Dia da Celebração da Vida e, às vezes não tem aquela percepção do poder que ele tem nas mãos de estar informando, de estar encaminhando, de estar correndo atrás de determinadas coisas. (...) se torna também muita coisa”.

Outro destaque das sessões foi a ênfase dada ao caráter e a prática ecumênica da

Pastoral da Criança. Em São João de Meriti existem atividades e Líderes em Igrejas

Evangélicas e em um Centro Espírita. Existe este apelo ao ecumenismo. Durante a

“Celebração da Vida” há sempre um momento de orações e leitura da Bíblia efetuado

de acordo com a comunidade. Segundo as Líderes há uma orientação para que não se

reze a Ave Maria apenas o Pai Nosso, como uma oração “de todos”. Esta orientação é

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seguida, sobretudo nas atividades fora da Igreja Católica. O fato de um grande número

de mães ser evangélica também reforça este cuidado entre as Líderes.

“(...)ela já tem o círculo bíblico na igreja dela. Então a gente não cobra essa parte(...) e a gente reza o Pai Nosso”.

“(...) a Pastoral embora ela seja ecumênica, a base dela, a estrutura é católica, e eu percebo assim nas outras denominação, tudo que as outras denominações fazem, elas fazem só para si (...)E não consegue entender que a gente não exige que aquela pessoa venha a participar.” “(...)mas você não passa a estar cobrando das famílias a religião. Só se elas não tiverem religião nenhuma e a gente convidar participar da comunidade sem interesse nenhum.”

Destacam também que em outras religiões e mesmo dentro de suas comunidades

católicas há uma preocupação em aumentar o grupo de fieis ligados à Igreja, mas que

esta não é uma preocupação da Pastoral da Criança.

ii) As Famílias acompanhadas pela Pastoral da Criança

Segundo os relatos das Líderes a pobreza parece deixar um sintoma bem claro e

comum: problemas com a auto-estima. Os relatos são de mães deprimidas,

desmotivadas, que se sentem incapazes de reagir. Entorpecidas pelo sofrimento,

presas a uma realidade com poucas possibilidades de mudanças.

“Então eles vão se deprimindo mesmo, vão ficando triste, vão ficando para baixo e a gente? A gente tem que trabalhar com a auto-estima dela.” “E a gente percebe, muitas vezes você chega para mãe e ela não consegue responder a data do nascimento, quando o filho nasceu.” “Ela teve no 13º filho e ela graças a Deus ligou, porque uma pessoa assim de viver tão alienada que uma vez ela falou que era tanta criança que ela não sabia nem ao que ela dava comida. (...) E a gente percebe que essas pessoas acabam se voltando para o alcoolismo, não tem dinheiro para comer, mas sempre acaba tendo ali uma condição para uma cachacinha, não é? E o marido você chega na casa está dormindo, está em casa, a mulher às vezes com aquele maior barrigão ainda tendo que cuidar da roupa, da casa, das coisas, então eu acho que a mulher ela acaba ficando assim com a estima dela tão baixa que ela nem está aí (...) que vai entrando aquela desesperança que mesmo ela vendo toda a situação ela não se apega.”

Tanto durante as realizações de grupo focal quanto nas observações anotadas em

diário de campo chama a atenção o quanto preocupa e mobiliza a falta de auto-estima

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entre as mães acompanhadas pela Pastoral da Criança. Os Líderes defendem que

trabalhar a auto-estima das mães é um grande desafio e também um ponto de partida

para as outras ações.

“Porque ela está indo porque chamou, não tem o que fazer; está ali querendo uma ajuda que nem ela mesma sabe o que... Se você perguntar não sabe nem te responde.” “E aí você vê o quanto que aquela pessoa ela está ali deprimida. Então, quer dizer, ela não está bem, se ela não está bem o que ela vai para os filhos”

“(...) mulheres que têm 12 filhos que não dá um sorriso, (...) Elas chegam com os filhos delas magrinhos e você começa a colocar, a levantar a auto-estima dela e começa a conversar, e você vai vendo que ela vai dando a multimistura. Agora aquelas que entram no alcoolismo, que não ligam para nada essas não dão mesmo.”

Para Parker (1995), quando os problemas da vida aparecem como problemas urgentes,

diretamente relacionados a satisfação de necessidades vitais como é o caso da fome,

cria-se um quadro de incertezas onde a própria vida está ameaçada. Afirma que nesses

casos o problema é tão agudo que não interessa à pessoa investigar intelectualmente

as causas de sua situação atual. “Seu problema fundamental é urgente: como iremos

nos alimentar com meus filhos e com meu marido hoje?” (PARKER, 1995: 276)

c) Atuação da Pastoral da Criança na Promoção e Defesa do Direito à Alimentação

Durante a terceira sessão do grupo focal foi questionado se os Líderes consideravam

que a Pastoral da Criança em São João de Meriti contribuía para a promoção do direito

à alimentação. A resposta foi prontamente dada e houve concordância no grupo:

“Muito pouco. Eu acho que não. (...) É somente o farelo, não tem nada, nada, nada. Nem o próprio governo.”

“Eu acho que não porque você vê o que a Pastoral da Criança faz dentro da nossa realidade? Esmola à ação social pra dar uma cesta. Eu acho que isso é uma realidade de quase todas as famílias, nós fazemos um serviço de esmola.”

“Eu achava que a Pastoral da Criança que acompanha essas crianças deveria ter o apoio maior, uma força maior de chegar e levar a essas crianças uma alimentação mais reforçada e certa. Não é uma alimentação de dose, um mês tem, outro o mês não tem, outro mês tem, ser sorteada. “Porque tem o cadastro das famílias todas, tem o cadastro das crianças todas. (...) O que eles precisam mesmo gente é a alimentação pra poder se tornar uma cidadão e uma criança quando chegar em idade escolar poder captar alguma coisa porque realmente fica doente...”

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Seja fruto da realidade difícil e precária ou seja furto do desanimo desencadeado pelos

poucos recursos passiveis de serem acessados, o fato é que os Líderes não acreditam

que suas ações contribuem para a promoção do direito à alimentação.

Cabe lembrar que quando questionados sobre o principal obstáculo à satisfação do

direito à alimentação em São João de Meriti, eles responderam que era a falta de

emprego e de “salário no mês” que impediam o acesso ao alimento.

“Eles necessitam de ajuda. E são, geralmente essas famílias são as que estão iniciando a vida, são crianças que os pais são muito jovens, entendeu? Geralmente eles estão desempregados, iniciando a vida profissional, então eles precisam de ajuda e de apoio que não tem, e a Pastoral também, o Líder, não tem como oferecer a eles.”

Os Líderes identificam fatores de vulnerabilidade que estão além de sua área de ação.

As esferas de intervenção são outras. Há na verdade uma grande vontade de

experimentar outros tipos de intervenção, de ter acesso a outros recursos e outras

soluções.

d) Principais Desafios da Pastoral da Criança em São João de Meriti

A cultura clientelista que vem se consolidando há décadas em nosso país tem deixado

cicatrizes profundas. O discurso usual e atual apresenta tudo como mercadoria e tudo

pode ser negociado e trocado. O nome do jogo é: “O que eu ganho com isso?” Para os

Líderes este é um dos maiores desafios.

“E as mães que procuram a Pastoral da Criança geralmente elas querem ganhar uma coisa (...).” “(...)dificilmente a gente vê uma família que ela se sinta satisfeita apenas ali com as orientações. Embora a própria mídia o tempo todo vai falando da Pastoral da Criança, e colocando que a Pastoral não é assistencialista(...).”

A Pastoral da Criança tem fortemente marcado em seu discurso institucional que é

contra as práticas assistencialistas e a favor da “construção de estratégias de

cidadania”. Para os Líderes em São João de Meriti aí residem grandes conflitos.

“(...)o maior problema com a Pastoral da Criança (...) é a política assistencialista, porque eles chegam na gente sempre querendo sacola de alimento. E isso é uma coisa que chega a incomodar o trabalho, não vai em frente. Então a gente não pode dar nada, primeiro que a gente não tem nada(...)”

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“(...) cada um que faz a capacitação sabe que a Pastoral da Criança ela não é assistencialista, mas dentro do ponto de vista até humanitário, como que você vai ver uma pessoa passando fome e você vai virar as costas? (...)Quer dizer, não é justo, não é? Eu acho que a gente tem que refletir. Sabe-se, qual é a nossa função? Educar, orientar, mas você não pode, eu acho que o Líder ele não pode se sentir como se ele estivesse fazendo algo de errado quando ele se sente ali desesperado com a necessidade e com a fome do outro.”

“Se a gente vai levar uma cestinha básica assim de uns 3 quilos de arroz ou 2 quilos de açúcar aquilo só vai dar para um final de semana no máximo.”

Existe entre os Líderes disposição para tomar outros caminhos, contudo ao menos em

São João de Meriti, não parece muito concreto o que fazer ou para onde caminhar.

“Eu quero acrescentar que no meu modo de pensar eu acho que a mobilização seria um grande passo assim, para mobilizar, até mesmo para conscientizar as mães pra participar mais, (...) É tipo passeata. Uma passeata, eu não sei como”.

Quando foi feita esta proposta houve uma concordância de que era preciso fazer

alguma outra coisa, mas parece faltar um projeto.

A partir dos desafios apontados pelos Líderes, cabe lembrar as reflexões de Burity

(2001) que apresentam pistas para este entender este contexto. Para Burity o religioso

“emerge na esteira de um cansaço com a política e a religião institucionalizadas”

(BURITY, 2001: 35), fato que pode ser observado pela utilização de uma religiosidade

mística ou difusa como terapias anti-stress nas empresas, ou quando militantes

políticos/ sociais que buscam amparo ou consolo da religiosidade para renovarem suas

energias utópicas ou mesmo em substituição à atuação política. Acrescenta que

atualmente, o religioso e o político se desterritorializam – multiplicando-se suas

instâncias e ‘flutuando’ através das fronteiras culturais, políticas e mesmo econômicas

das muitas sociedades contemporâneas” (BURITY, 2001: 35).

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7- CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Um dos saberes primeiros, indispensáveis a quem, chegando a favelas ou realidades marcadas pela traição a nosso direito de ser, pretende que sua presença se vá tornando convivência, que seu estar no contexto vá virando estar com ele, é o saber do futuro como problema e não como inexorabilidade. O mundo não é. O mundo está sendo.” (Paulo Freire, 1999: 85)

Durante a realização deste trabalho pode-se confirmar a importância de se observar a

Pastoral da Criança e outras entidades ligadas a igrejas para além das suas

características institucionais. As falas dos Líderes foram muito reveladoras e

consistentes, apresentando detalhes que fogem ao discurso institucional e aproximam-

se da prática local.

Neste estudo havia uma hipótese de que as experiências de mobilização social sob a

influência religiosa1 que ocorreram nos últimos anos em São João de Meriti fossem

constituir o cerne dos debates gerados. A aproximação revelou que é o impasse

(VALLA, 1999) o elemento fundamental para as reflexões deste trabalho, contudo

mobilização social e religiosidade têm seu lugar nas reflexões apresentadas.

A religiosidade tem sido refúgio e espaço de reflexão das classes populares,

representando uma forma de recuperar o sentido e a dignidade perante as adversas e

rudes condições de vida diária e de vida coletiva:

“(...)a partir da rede de práticas da vida diária e da vida coletiva, tende a resistir – de forma objetiva – às conseqüências negativas da modernização capitalista, porém sob muitos aspectos, é uma maneira de incorporar-se (não sem contradição) o processo de modernização que está em curso e que vai influindo dialeticamente também na mesma produção religiosa popular” (PARKER, 1995: 293).

As falas dos Líderes bem como as anotações de observação participante revelam um

cotidiano angustiante e sofrido, mas fortalecido por um sentimento de esperança.

Pensar o futuro parece dar significado ao trabalho presente que está centrado nas

urgências do dia-a-dia das famílias pobres acompanhadas.

1 O Mutirão de Combate à Desnutrição Materno-infantil, já mencionado anteriormente, surgiu a partir da Igreja Católica (sob a influência do então Bispo Diocesano Dom Mauro Moreli) e da Associação Batista Meritiense.

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O desemprego (e subemprego) e a dificuldade de acesso aos serviços públicos de

saúde, assistência social e saneamento foram apresentados como principais obstáculos

para a efetivação do Direito Humano à Alimentação em São João de Meriti.

Numa realidade com poucas alternativas e constantes situações de impasse, num

presente que oportuniza poucos caminhos, mesmo as opções mais degradantes e

humilhantes de sobrevivência acabam sendo tidas como inevitáveis. Destaca-se aqui a

grande importância dada pelos Líderes à utilização de sobras de feiras livres na

alimentação que, como dito anteriormente, apesar de toda boa vontade dos Líderes

apresenta-se nas falas como grave violação do direito humano à alimentação por ser

humilhante; por não garantir nem qualidade nem quantidade; e por impossibilitar o

direito de escolha e o acesso de forma digna a alimentação.

Os Líderes têm um discurso de legitimação destas opções que se por um lado torna

suportável conviver com a situação de miséria estabelecida em muitos domicílios, por

outro ocasiona uma espécie de naturalização dos problemas e deste tipo de estratégia.

Não porque a miséria e a fome lhes pareçam aceitáveis, mas porque aquela realidade

não permite que enxerguem alguma alternativa concreta de mudança a curto ou médio

prazo.

A religião parece ter para este grupo uma função de “protesto simbólico” (PARKER,

1996) frente aos grandes desafios impostos pelas lacunas deixadas pelo poder público.

Sobre o “protesto simbólico” deve-se acrescentar que se trata de uma forma de protesto

que possibilita a sobrevivência ao reconstituir um mundo significativo dificilmente

redutível a esquemas racionalistas: “maneira que o povo encontra para defender-se no

plano simbólico contra a lacerante e destruidora opressão que está submetido no plano

material” (PARKER, 1995: 292). Parker (1995) acrescenta que esta forma de “protesto

simbólico” serve em seguida aos interesses dos dominantes.

Neste sentido pôde-se observar que as falas dos Líderes apresentaram uma análise

crítica sobre as ações do poder público e revelaram desalento ao tratarem do

clientelismo. O sentimento de impotência sentido diante desta constatação serve aos

interesses dominantes na medida em que desencoraja atitudes mais firmes. Há um

diagnóstico que é coincidente, sob muitos aspectos, com os apontamentos de

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pesquisas e reflexões recentes sobre o Direito Humano à Alimentação em regiões

metropolitanas: desafios gigantescos de uma realidade em que a pobreza e a fome ou

são naturalizadas ou se revertem em moeda de troca durante as eleições.

Diante de uma situação de infinita e perturbadora impotência, apresenta-se uma

afirmação que foi constante durante todo o período deste estudo: não há como se

“preservar a auto-estima” diante deste cenário tão desolador. As famílias, pais, mães e

os(as) próprios(as) Líderes precisam constantemente estar “retomando” e “recobrando”

o seu valor enquanto pessoa humana. Palavras e termos como vergonha, humilhação,

desanimo, sentir-se diminuído ou pequeno são associadas a todo o momento quando

se pensa em aquisição de alimentos. O que mais parece contribuir para estes

sentimentos é a pouca possibilidade de vislumbrar perspectivas mais justas e dignas de

sobrevivência. Percebe-se por isso uma tendência à estagnação ou ao congelamento

das famílias diante das dificuldades.

A auto-estima aparece como desafio aos Líderes e às famílias e é trabalhada numa

perspectiva de mudar o mundo de dentro para fora. Há uma tentativa diária de

recuperar a dignidade e a auto-estima, como se estas fossem alheias ao cenário. Neste

sentido, são geradas muitas angustias porque os problemas são exteriores aos

indivíduos e porque parecem (e são) muito maiores do que a capacidade de intervenção

individual e mesmo coletiva. Este é um ponto que merece melhor apreciação e análise.

A fé e esperança foram identificadas como principais responsáveis pela animação do

grupo que é mobilizado ainda por um sentimento de auto-identificação, visto que

muitos(as) Líderes têm condições de vida muito semelhantes a das famílias que

acompanham.

Destaca-se, contudo que esta esperança colocada no futuro não se apóia em projetos

concretos ou em qualquer forma de mobilização que permita uma postura mais concreta

ou propositiva. Ao que parece alimenta-se de uma perspectiva messiânica, numa

aposta de que a “caminhada” sofrida será recompensada. Por isso colocam as

esperanças no futuro.

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87

Diz-se que quando se olha um objeto muito de perto, perde-se o foco e pouco se

enxerga. Talvez esta seja uma das grandes limitações da atuação não só dos(as)

Líderes da Pastoral da Criança, mas de outras lideranças locais. Num contexto de

crescente desresponsabilização do Estado assistido nas últimas décadas empurra-se o

foco da sociedade civil para as urgências cotidianas. Retoma-se assim, aquele antigo

conflito sobre o papel da sociedade civil: controle público, legitimador de decisões ou

mão-de-obra barata.

Valla (1998) analisa que no Brasil, os governos agem de forma autoritária,

determinando quantidade e qualidade de serviços oferecidos. Quando não dão conta,

convocam a população para trabalhar: “as populações pobres continuam produzindo

aquilo que um salário mais digno ou um governo popular deveriam estar facilitando”

(VALLA, 1998). Sobre a “participação popular em mutirões”, Valla (1998) define como

um convite à população, principalmente bairros periféricos e favelas, para que realize,

com seus meios próprios (com seu trabalho, tempo de lazer e, muitas vezes seu

dinheiro) ações e obras de responsabilidade do governo (VALLA, 1998).

A Pastoral da Criança têm corrido esse risco ao assumir tantas responsabilidades sobre

comunidades inteiras, demonstrando a vontade de ajudar a resolver problemas.

Contudo, estas iniciativas têm resultados ambíguos: ora denunciam e ora mascaram a

inoperância e a fragilidade das ações dos governos.

Deve-se recordar que a Pastoral da Criança nasce herdeira dos discursos da Teologia

da Libertação propondo-se ao trabalho com os mais pobres entre os mais pobres.

Contudo, ela se consolida enquanto instituição neste contexto de desresponsabilização

do Estado e incentivo às estratégias comunitárias. Estratégias comunitárias vistas como

a utilização da criatividade popular para preencher o vazio deixado pelo Estado. As

populações pobres são cada vez mais incentivadas a procurar suas próprias saídas.

Como afirma Valla (2005), diante de todos os problemas criados para a população

(desemprego estrutural, condições e vida precária) as recomendações do Banco

Mundial e do Fundo Monetário Internacional têm como pressupostos “a idéia de que as

pessoas e suas comunidades devem ser ‘criativas’ e ‘se virar’ para compensar os

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problemas criados por essa lógica de individualismo e lucro que prejudica os mais

fracos e vulneráveis” (VALLA, 2005: 51).

Dentro desta lógica foi constatada ainda, a importância do estabelecimento de circuitos

de ajuda mútua (GODBOUT, 1999; MARTINS, 2002). As falas mostraram forte ligação

entre dádiva e caridade, dando ênfase a valores Cristãos, mas localizando-se para além

dos espaços da Igreja.

Ainda com relação a estes circuitos de ajuda mútua deve-se acrescentar que

muitos(as) Líderes ingressam na Pastoral da Criança após anos de experiência como

pais ou mães de crianças acompanhadas. São inúmeros os relatos sobre “ganhos” em

relação à saúde e bem estar daqueles que pertencem a este grupo. Desta forma

aproxima-se da abordagem de “apoio social” entendido aqui como:

“(...) os diversos recursos emocionais, materiais e de informação que os sujeitos recebem por meio de relações sociais sistemáticas, (...) um processo recíproco – isto é, que gera efeitos positivos tanto para quem recebe como para quem oferece o apoio –, o que permite que ambos tenham uma sensação de coerência de vida e maior sentido e controle da mesma.”(VALLA, 2006: 104)

Os relatos sobre as sensações e “recompensas” identificadas a partir do vínculo criado

com as crianças e suas famílias relacionam-se a um “sentir-se bem”, revelando um

sentido terapêutico neste precisar do outro(a) que precisa também de mim.

Este aspecto remete ao debate sobre a integralidade na atenção e no cuidado à saúde,

colocando-se em pauta a necessidade de investigar o papel das emoções e do apoio

social no processo de saúde-doença. A rede de saúde pública (centros municipais de

saúde e hospitais) tem suma importância para as condições de vida das classes

populares. Há uma crença dessa população de que os serviços públicos são

importantes para a sua saúde, mas há também a percepção de que muitos problemas

de saúde não podem ser resolvidos nesses locais. De acordo com algumas pesquisas

quanto mais pobre uma pessoa, pior é sua saúde, não importando se ela tem ou não

acesso a tratamento médico (VALLA, 2006).

O contexto da (des)assistência relatada por Líderes também faz parte das angustias

dos profissionais de saúde e de assistência social. Com os escassos recursos

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disponíveis nos serviços públicos2 vêem-se obrigados a promover um caminho inverso

na parceria com lideranças comunitárias: passam eles a encaminharem a população

para acessar recursos comunitários.

Os Líderes sentem-se mais preparados que os profissionais de saúde a acolher as

queixas e perceber as situações familiares. Sobre isto se destaca que o cuidado tem

sido abandonado pela maior parte dos profissionais de saúde. A lógica econômica

imposta aos serviços públicos disponibiliza pouco tempo para cada consulta. É preciso

considerar ainda que faz parte da racionalidade da biomedicina não se ater ao relato do

paciente, muitas vezes considerado “impreciso”e “subjetivo”, mas encontrar a doença

no organismo, por meio de exame clínico e de instrumentos técnicos (VALLA, 2006).

Por fim é preciso refletir esta relação estabelecida com o tempo e com a vida nestes

bairros empobrecidos parece ser chave para compreender este contexto: o passado

através das experiências de vida é forte fator de mobilização; o presente apresenta-lhes

os problemas urgentes de cada família; e o futuro é incerto. O futuro alimenta o

presente com as esperanças de dias melhores, mas na falta de um projeto concreto

que, no presente, prepare um futuro mais justo e seguro as incertezas tornam-se cada

vez maiores.Cria-se um ciclo de incertezas: um limiar de esperanças que entorpece

dores e revoltas. Logicamente pensar num projeto que crie perspectivas mais justas e

seguras para todos não se limita à ação da Pastoral da Criança. Trata-se na verdade do

atual e urgente desafio de construir-se um novo projeto de sociedade.

É importante salientar que foge à compreensão dos menos atentos as dificuldades e as

estratégias de sobrevivência criadas pelas populações pobres das regiões

metropolitanas. Em alguns casos tende-se a banalizar os relatos de lideranças e

famílias de bairros pobres, já que não há nada de novo nestes problemas. São

problemas históricos. Na verdade, a pobreza metropolitana, por estar tão próxima à

riqueza parece camuflada. Como se houvesse um jogo de espelho que só permitisse

enxergar uma parte: a dos números. Mas os números não chegam nem perto das vidas

que estão se perdendo neste tempo de infinita espera.

2 Lembrando aqui dos relatos de falta de remédio e de vagas para a realização de exames no setor saúde e a falta de cestas básicas e dificuldades em acessar programas de renda mínima no setor de assistência social. Sem contar a ausência de infra-estrutura de saneamento básico e fornecimento de água também presente nas falas dos Líderes.

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9- ANEXOS

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ANEXO 1 Ministério da Saúde Fundação Oswaldo Cruz Escola Nacional de Saúde Pública Departamento de Endemias Samuel Pessoa

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Você está sendo convidado(a) a participar da pesquisa “O Direito à Alimentação

sob o Olhar dos Líderes da Pastoral da Criança no M unicípio de São João de

Meriti”, que tem como objetivo investigar como os Líderes da Pastoral da Criança que

atuam em São João de Meriti avaliam as condições de promoção e defesa do direito à

alimentação neste município.

Você foi selecionado por ser um Líder da Pastoral da Criança que tem estado em

contato com os debates sobre direito a alimentação em seu município e sua participação

nesta pesquisa consistirá em três encontros de reflexão (Grupos Focais).

Este termo garante que ao participar da pesquisa você tenha os seguintes direitos:

(1) solicitar, a qualquer tempo, maiores esclarecimentos sobre esta Pesquisa; (2) sigilo

absoluto sobre qualquer informação que possa levar a identificação pessoal; (3) ampla

possibilidade de negar-se a responder a quaisquer questões ou a fornecer informações

que julguem prejudiciais à sua integridade física, moral ou social; (4) opção de solicitar

que determinadas falas e/ou declarações não sejam incluídas em nenhum documento

oficial, o que será prontamente atendido; (5) desistir, a qualquer tempo, de participar da

Pesquisa.

Você receberá uma cópia deste termo onde consta o telefone e o endereço do

pesquisador, podendo tirar suas dúvidas sobre o projeto e sua participação.

__________________________________________

Juliana Pereira Casemiro

Endereço: Rua Leopoldo Bulhões, nº 1480 Rio de Janeiro – RJ / CEP: 21041-210 Telefone: (21) 2598-2654 Declaro que entendi os objetivos, riscos e benefíci os da minha participação na

pesquisa e concordo em participar.

_________________________________________________

Sujeito da Pesquisa

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ANEXO 2

Roteiros de Debates Para cada encontro do Grupo Focal estabeleceu-se um conjunto de questões ligadas

diretamente ao objetivo da respectiva sessão. Obrigatoriamente a primeira e a segunda

questões serão lidas no início e/ou durante a sessão, ficando as demais destinadas a

complementar os debates caso não se alcance o objetivo.

1ª Sessão : Acesso à alimentação e nutrição no município de São João de Meriti.

Questões Geradoras:

1- O que quer dizer ter direito a alimentação?

2- Em São João de Meriti este direito é respeitado?

3- Em São João de Meriti todas as pessoas têm acesso a uma alimentação

adequada? Para vocês, o que é ter uma alimentação adequada?

4- Existem pessoas que passam fome ou tem dificuldades para conseguir alimentar-

se? Em caso de resposta afirmativa, porque isto acontece?

5- Os governos (municipal, estadual e federal) tem atuado neste sentido? Em caso

de resposta afirmativa, como tem sido esta atuação? Em caso de resposta

negativa, deveriam atuar?

6- A sociedade civil deve atuar neste sentido? Em caso de resposta afirmativa, como

tem sido esta atuação? Em caso de resposta negativa, deveriam atuar?

Objetivo: estimular o debate sobre o conceito e sobre as condições de promoção e

defesa do direito à alimentação em São João de Meriti, de acordo com as perspectivas

dos Líderes. Conhecer os determinantes da fome e da desnutrição no município segundo

a interpretação destes Líderes.

2ª Sessão : Os fatores que mobilizam e integram os Líderes da Pastoral da Criança em

São João de Meriti e as reflexões sobre o trabalho cotidiano dos Líderes.

Questões Geradoras:

1- Em São João de Meriti o que motiva os Líderes que trabalham na Pastoral da

Criança?

2- Vocês acham que os Líderes da Pastoral da Criança atuam na defesa e na

promoção do direito à alimentação em São João de Meriti? Em caso de resposta

afirmativa, que ações do dia-a-dia vocês destacariam como importantes? Em caso

de resposta negativa, porque?

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3- Aspectos religiosos como a mística, a caridade, a dádiva ou outros influenciam na

união e motivação do trabalho dos Líderes?

4- A Pastoral da Criança em São João de Meriti tem atuação nas comunidades

(diretamente com as famílias) e tem participação em fóruns e conselhos

municipais. Alguma dessas ações tem relação com a promoção do direito à

alimentação?

Objetivo: discutir sobre o que motiva os Líderes da Pastoral para a realização de trabalho

voluntário e investigar como os Líderes percebem a sua atuação no que se refere à

promoção do direito à alimentação.

3ª Sessão: Perspectivas para as ações de promoção do direito à alimentação e sobre o

controle público.

Questões Geradoras:

1- Lembrando das reflexões dos encontros anteriores, é possível que seja sugerida

alguma ação ou estratégia para o município em relação a garantia e promoção do

direito à alimentação?

2- A Pastoral da Criança pode contribuir de alguma forma para a promoção do direito

à alimentação? Em caso de resposta afirmativa, que tipo de contribuição?

3- É importante que os Líderes conheçam e acompanhem as ações do governo com

relação ao direito à alimentação? Em caso de resposta afirmativa, este trabalho

tem sido feito? Em caso de resposta negativa, porque?

4- O acompanhamento das ações de governo realizado pelos Lideres precisa de

alguma modificação?

Objetivos: investigar como é o relacionamento com o poder público (ou se existe);

investigar como (ou se existe) é exercido o controle público e refletir sobre perspectivas

para o futuro.

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ANEXO 3

Ministério da Saúde Fundação Oswaldo Cruz Escola Nacional de Saúde Pública Departamento de Endemias Samuel Pessoa

“O Direito à Alimentação sob O Olhar dos Líderes d a Pastoral da Criança no

Município de São João de Meriti”

1) Paróquia ______________________

2) Telefone (____)_________________

3) Sexo ( )F ( )M

4) Idade_________________________

5) Escolaridade (estudou até qual série?) ___________________

6) Profissão______________________

7) Religião_______________________

8) Há quanto tempo trabalha na Pastoral?____________________

______________________________________________________

9) Participa de outros movimentos ou grupos?

( ) Não ( ) Sim Qual? __________________________________

_____________________________________________________

_____________________________________________________

Questionário nº______ Iniciais do Participante:_______

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ANEXO 4 Quadro Síntese com Informações sobre Participantes dos Grupos Focais 1

CARACTERIZAÇÃO P1 P2 P3 P4 P5 P6 P7 P8 P9 P10

Iniciais I V K L G E B E S C A C Sexo F F F F F F F F F F

Idade (anos) 65 62 38 42 60 47 41 20 40 36 Escolaridade 1o grau 3o grau 3o grau

incompleto 1o grau 2o grau 2o grau 2o grau 2o grau 3o grau

incompleto 2o grau

Profissão Dona de Casa

Enfermeira Dona de Casa

Dona de Casa

Aposentada Telefonista Dona de Casa

Estudante Vendedora Vendedora

Religião Católica Católica Católica Católica Católica Católica Católica Católica Católica Católica Tempo de Atuação

na Pastoral da Criança

2 anos 6 meses 6 meses 1 ano e 5 meses

5 anos 3 anos 1 ano 3 anos 4 anos 5 anos

Função na Pastoral da Criança

Líder Líder Líder Líder Líder Líder Líder Líder Líder Líder

Participa de outros grupos

Não Não Não Sim Sim Não Não Sim Não Não

Movimento Grupo

- - - Catequese e Liturgia

Catequese e Legião de

Maria

- Vigilantes de Cristo

Liturgia - -

1 A fim de construir um ambiente agradável aos participantes, os questionários não foram aplicados na primeira sessão, mas sim na segunda. Por isso, um casal de Líderes que participou apenas no primeiro dia não respondeu ao questionário.