o diário de turma na vida de um grupo de jardim de...

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6 ESCOLA MODERNA Nº 36•5ª série•2010 Introdução A presente pesquisa foi desenvolvida no âm- bito do Programa de Investigação-Forma- ção do Movimento da Escola Moderna Portu- guesa. Este trabalho surge na perspectiva de fo- mentar no professor/educador um trabalho de investigação da sua prática pedagógica, tor- nando-a num processo sistemático e organi- zado, com recolha de documentação, registo de informações e tratamento de dados, com vista a uma atitude investigadora perante a própria profissão, desenvolvendo, em simultâ- neo, uma atitude reflexiva. Isabel Alarcão (2001) defende que “esta ati- tude e actividade de pesquisa contribuem para o desenvolvimento profissional dos professo- res e para o desenvolvimento institucional das escolas” (p. 2). No âmbito deste Programa de Investigação- Acção defini como componente a investigar a implementação do instrumento de pilotagem Diário de Turma/Grupo, fixando como ques- tão a responder Como é que as crianças entendem a função do Diário?. O Diário de Turma é um instrumento do modelo pedagógico do Movimento da Escola Moderna Portuguesa, através do qual é imple- mentado o princípio da participação democrá- tica na vida da escola e, futuramente, na socie- dade. Este ano, tenho um grupo de crianças muito participativo: elas escrevem sozinhas no Diá- rio sobre coisas que acontecem durante o dia para depois exporem o problema/o seu ponto de vista. Mas será que elas estão a utilizar de- vidamente este instrumento? Todas as crianças participam? A partir dos momentos de escrita livre, pre- tendi saber quem escreve, o que escreve, como, em que momentos e porque escreve, e aprofundar se estou a promover a participação das crianças no Diário enquanto instrumento promotor de uma comunidade cooperativa; se as crianças entendem a sua função, se o utili- zam no seu correcto sentido. Fundamentação Teórica Este trabalho de investigação pressupôs uma pesquisa teórica. Procurei fazer várias lei- turas que me ajudassem a perceber melhor as questões inerentes ao Diário de Turma e que constituíssem um suporte teórico ao tema. O Diário de Turma utilizado, hoje em dia, como instrumento de pilotagem do modelo pedagógico da Escola Moderna Portuguesa de- corre, em termos históricos, do Jornal de Pa- rede de Freinet. Para Freinet, a escola tradicional da época revelava-se, “nas suas finalidades e métodos, reaccionária, antidemocrática e agente de alie- O Diário de Turma na vida de um grupo de Jardim de Infância Aurora Sofia R. Garcia* * Educação Pré-Escolar. REVISTA N.º 36 08/07/10 12:31 Page 6

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Introdução

Apresente pesquisa foi desenvolvida no âm-bito do Programa de Investigação-Forma-

ção do Movimento da Escola Moderna Portu-guesa.

Este trabalho surge na perspectiva de fo-mentar no professor/educador um trabalho deinvestigação da sua prática pedagógica, tor-nando-a num processo sistemático e organi-zado, com recolha de documentação, registode informações e tratamento de dados, comvista a uma atitude investigadora perante aprópria profissão, desenvolvendo, em simultâ-neo, uma atitude reflexiva.

Isabel Alarcão (2001) defende que “esta ati-tude e actividade de pesquisa contribuem parao desenvolvimento profissional dos professo-res e para o desenvolvimento institucional dasescolas” (p. 2).

No âmbito deste Programa de Investigação-Acção defini como componente a investigar aimplementação do instrumento de pilotagemDiário de Turma/Grupo, fixando como ques-tão a responder Como é que as crianças entendema função do Diário?.

O Diário de Turma é um instrumento domodelo pedagógico do Movimento da EscolaModerna Portuguesa, através do qual é imple-mentado o princípio da participação democrá-

tica na vida da escola e, futuramente, na socie-dade.

Este ano, tenho um grupo de crianças muitoparticipativo: elas escrevem sozinhas no Diá-rio sobre coisas que acontecem durante o diapara depois exporem o problema/o seu pontode vista. Mas será que elas estão a utilizar de-vidamente este instrumento? Todas as criançasparticipam?

A partir dos momentos de escrita livre, pre-tendi saber quem escreve, o que escreve,como, em que momentos e porque escreve, eaprofundar se estou a promover a participaçãodas crianças no Diário enquanto instrumentopromotor de uma comunidade cooperativa; seas crianças entendem a sua função, se o utili-zam no seu correcto sentido.

Fundamentação Teórica

Este trabalho de investigação pressupôsuma pesquisa teórica. Procurei fazer várias lei-turas que me ajudassem a perceber melhor asquestões inerentes ao Diário de Turma e queconstituíssem um suporte teórico ao tema.

O Diário de Turma utilizado, hoje em dia,como instrumento de pilotagem do modelopedagógico da Escola Moderna Portuguesa de-corre, em termos históricos, do Jornal de Pa-rede de Freinet.

Para Freinet, a escola tradicional da épocarevelava-se, “nas suas finalidades e métodos,reaccionária, antidemocrática e agente de alie-

O Diário de Turma na vida de um grupo de Jardim de Infância

Aurora Sofia R. Garcia*

* Educação Pré-Escolar.

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nação, representando uma ameaça para o equi-líbrio físico, psíquico e moral do indivíduo.”(Nunes, 1989/90, p. 15). Em oposição a esta li-nha de pensamento, Freinet introduziu novosinstrumentos e técnicas de ensino, cuja finali-dade consistia em formar indivíduos conscien-tes do seu papel de homens e cidadãos na lutapor uma nova sociedade.

A pedagogia Freinet construiu-se comouma pedagogia social que partia da motivaçãodo aluno, da sua cultura e se adaptava às exi-gências da época. Freinet acreditava que a es-cola deveria privilegiar o desenvolvimento daautonomia, da cooperação e da criatividade nacriança.

A Assembleia de Turma, a partir do Jornalde Parede, permitia a cada um apresentar assuas propostas, dar o seu ponto de vista nasdiscussões e ouvir o dos outros, organizar otrabalho, propor actividades e resolver proble-mas. As crianças tomavam nas suas mãos avida escolar: estabeleciam as suas leis, dis-cutiam-nas e tentavam aplicá-las.

Hoje, o modelo pedagógico da Escola Mo-derna Portuguesa, baseado nas teorias sócio--culturais, assenta num conjunto de princípiosestratégicos que se operacionalizam em meto-dologias activas e diferenciadas de trabalho pe-dagógico, promotoras da participação demo-crática e do desenvolvimento sociomoral dosalunos. Já dizia António Sérgio que a escola de-veria ser espaço de formação ética, resultantede uma prática reflexiva em torno da acção co-munitária, dando destaque às vivências que osalunos fazem em conjunto, sendo por meiodessa vida em cooperação que cada umaprende a ser cidadão (Serralha, 2009).

Da avaliação social fundada na assembleiacooperativa de Freinet passou-se a uma regula-ção fixada em Conselho de Cooperação Edu-cativa que consiste na reunião de todos osmembros da turma (alunos e professores) paradiscutir e tomar decisões sobre os vários as-suntos da turma, quer no âmbito das relaçõessociais que se estabelecem no grupo, quer no

que diz respeito à avaliação e programação dotrabalho.

O Diário de Turma é assumido, na defini-ção de Sérgio Niza (1991), como “a memóriahistórica e registo cultural de um grupo de alu-nos com o seu professor, ou de uma escola”(p. 27). É o instrumento mediador que assegurao controlo da execução das actividades e dosprojectos combinados e que dá lugar ao debatedas normas de convívio e dos comportamen-tos sociais do grupo. Esta regulação social dogrupo e do processo de negociação torna oConselho de Cooperação Educativa comoo centro de tomada de decisões democratica-mente negociadas.

Durante a semana, alunos e professor regis-tam livremente no Diário de Turma as ocor-rências que consideram mais relevantes, paraque não fiquem esquecidas, assegurando queessas questões sejam discutidas, que todos ecada um possam dar as suas opiniões e suges-tões acerca da vida do grupo. É um instru-mento essencial para dar espaço à voz dacriança e para promover a participação activados alunos nos processos de tomada de deci-são sobre aquilo que lhes diz respeito.

Para além deste aspecto, pode-se tambémentender que o Diário de Turma possui umadimensão curricular referente ao processo deaprendizagem da leitura e da escrita. Já diziaVigotsky que “ler e escrever devem ser coisasde que a criança necessite (…) [e] escrever deveser relevante para a vida” (citado por Folque,1999, p.10). As crianças, ao escreverem, sobreo que acontece ao longo do dia ou registandosugestões de trabalho, estão a ampliar as suasexperiências de leitura e de escrita, dando à es-crita um verdadeiro sentido social.

Este instrumento, pelos fins pedagógicos járeferidos, é utilizado em todos os níveis de en-sino, desde o pré-escolar até ao ensino supe-rior, pelos professores que adoptam o Modelodo Movimento da Escola Moderna.

O Diário poderá dispor das mesmas catego-rias em qualquer nível de ensino dado que setrata de um instrumento mediador (de registo)

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do processo de planeamento e avaliação do tra-balho intelectual e do desenvolvimento moral esocial dos educandos (Niza, 1991, p. 28).

Os registos no Diário de Turma repartem-sepor quatro colunas, correspondendo geral-mente a quatro áreas: as ocorrências negativase positivas, as realizações mais significativas eas propostas/sugestões de trabalho a realizar.

O modelo pedagógico da Escola ModernaPortuguesa assume a promoção do desenvolvi-mento moral e cívico das crianças como umadas suas principais finalidades. Nas duas pri-meiras colunas escrevem-se os juízos negati-vos e positivos sobre as ocorrências mais signi-ficativas ao longo da semana, que se prendemessencialmente com as questões sociais e mo-rais.

António Sérgio defendia que “se a escolalhe não fornece condições para genuínos actossociais (…) a doutrina moral resulta oca, ver-balista, cadavérica e, pelo tanto ineficaz” (ci-tado por Serralha, 2001b, p. 55), sublinhandoainda que “a escola tem de ser um espaço deformação ética e não de discursos moralizado-res, que prepara as crianças, pelas vivências dodia-a-dia, para a vida adulta” (citado por Serra-lha, 2001b, p. 56).

Mas isto acontece porque neste modelo pe-dagógico se promove um clima de livre ex-pressão dos alunos que, ao ser multiplicadordas interacções comunicativas, oferece diver-sas oportunidades de promover o crescimentopara as crianças.

Na opinião de Sérgio Niza (1991), o Diáriode Turma possui ainda uma vertente de “cata-lisador emocional” (p. 28). Segundo esta pers-pectiva, as crianças, ao escreverem sobre osproblemas e os conflitos que as atingem, tam-bém estão a aprender a conter a sua impulsivi-dade, a evitar agir de forma emotiva e a racio-nalizar as suas emoções através da escrita.

Estas ocorrências são debatidas à sexta-feira. A possibilidade de explicitar, semanal-mente, os eventos que consideram injustos ouerrados faz com que a livre discussão desses

registos negativos em Conselho possibilite agestão cooperada de conflitos e dela possamemergir as regras de convivência social. É im-portante que os alunos possam reflectir sobreas suas vivências; ao fazê-lo, usufruem dos di-reitos que lhe estão consignados, preparando--se para a vida adulta. A resolução cooperadado que corre mal na escola e no grupo permiteuma consciencialização colectiva dos inciden-tes sensibilizando, não só os implicados comotodos os colegas, a evitarem situações idênti-cas no futuro. Estes momentos caracterizam-se como exercícios de verdadeira democracia,dando espaço à negociação, ao acordo e aoscompromissos.

Em suma, segundo este modelo pedagó-gico, o desenvolvimento social e moral de umacriança é estimulado com a criação de um con-texto, de um instrumento de registo (Diário deTurma) e de uma estrutura (Conselho de Coo-peração Educativa) num tempo semanal parafazer a regulação da vida e do trabalho naturma. Desta forma, os incidentes vividos, de-pois de registados e discutidos, permitem aelaboração de um conjunto de normas queproporcionam o desenvolvimento sociomorale o crescimento humano a todos os alunos.

Para além de motor do desenvolvimentosociomoral, o Diário de Turma é, enquantoinstrumento que operacionaliza o princípio dacooperação educativa, o impulsionador da pla-nificação e avaliação do trabalho e das apren-dizagens na prática pedagógica da Escola Mo-derna Portuguesa.

A terceira coluna – designada geralmentepor Fizemos – destina-se ao registo das realiza-ções consideradas mais significativas ao longoda semana e traduz a avaliação cooperativa dotrabalho escolar. A quarta coluna é um espaçodestinado a propostas e sugestões, exercendouma influência mais directa na planificaçãocooperada do trabalho a realizar.

À semelhança do que fazem nas colunas an-teriores, os alunos são livres, durante a se-mana, de escrever sobre as realizações daturma e de inscrever novas sugestões de traba-

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lho no Diário de Turma. Desta forma, a parti-cipação dos alunos é também uma constantenas actividades de planificação e avaliação dotrabalho educativo desenvolvido pela turma,constituindo uma forma de partilhar com ascrianças o poder de decisão e a avaliação dosseus percursos de aprendizagem e de regula-ção dessa caminhada em colectivo.

Semanalmente, à sexta-feira, em Conselhode Cooperação Educativa, todos os registossão lidos e discutidos, fazendo-se um balançosobre o trabalho que foi realizado, e apon-tando orientações para a vida e trabalho dogrupo, a partir das inscrições no Diário deTurma.

É por esta vivência – pondo à prova os valo-res humanos que sustentam a justiça, a recipro-cidade e a solidariedade – que a organização dotrabalho e o exercício do poder partilhados virãoa transformar os estudantes e os professores emcidadãos implicados numa organização em de-mocracia directa.

(…) Esta relação democrática pressupõe agestão cooperada do currículo escolar – o quecompreende o planeamento e a avaliação comooperações formativas de todo o processo deaprendizagem (MEM, s.d.)

Em conclusão, o Diário de Turma é o “(…)meio de que o Conselho dispõe para realizar assuas finalidades educativas” (Niza, 1991, p. 28).É a ferramenta que permite que o princípio dacooperação educativa, enquanto estrutura or-ganizativa do trabalho na sala de aula, se con-cretize, assumindo-se a escola como uma expe-riência de democracia directa. Sem este instru-mento, a escola, segundo o modelo pedagógicoda Escola Moderna Portuguesa, não seria umespaço de iniciação às práticas democráticas,que permitem, no futuro, a inserção plena doscidadãos na vida da sociedade.

Contextualização

O presente trabalho de pesquisa decorreuno Jardim de Infância n.º 2 do Entroncamento,

pertencente à rede pública de Educação Pré-Es-colar, que se localiza no centro da cidade doEntroncamento, no distrito de Santarém. É umJardim de Infância com 96 crianças distribuídaspor quatro salas.

O grupo de crianças da sala 4 é heterogé-neo, no que respeita a idades e géneros, e com-posto por 22 crianças, distribuídas da seguinteforma:

Destas 22 crianças, 13 frequentaram estejardim de infância no ano lectivo anterior, 6frequentam pela primeira vez e 3 vieram deoutros estabelecimentos de educação pré-esco-lar e nenhuma delas havia experimentado an-teriormente a metodologia do Movimento daEscola Moderna.

Logo no início do ano, as crianças revelaramuma excelente adaptação ao jardim de infân-cia, à nova educadora e à nova organização dasala, sendo um grupo muito interessado, parti-cipativo e conversador. Frequentemente e comgosto se envolviam nas actividades propostasou escolhidas e faziam muitas propostas detrabalho. Embora fosse um grupo bastante au-tónomo, como ainda não tinha trabalhado se-gundo esta metodologia, no início, foi necessá-rio dar apoio individualizado para que as crian-ças adquirissem autonomia no saber fazer(planear, ir buscar o material sozinho, escrevero nome, etc.).

Na organização do espaço educativo, pre-tendi oferecer um ambiente estimulante,atractivo, procurando organizar a sala demodo a permitir às crianças serem protagonis-tas do seu conhecimento, oferecendo-lhesoportunidades de realizarem experiênciasactivas e significativas dentro das diferentes

3 anos 4 anos 5 anos Sub-totalFeminino 3 6 4 13Masculino 0 7 2 9Sub-total 3 13 6 22

Quadro 1 – Distribuição do grupo de crianças

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áreas curriculares. Devido à sua dimensão fí-sica, a organização do espaço obedece tam-bém a um critério de versatilidade e funciona-lidade. A sala possui as seguintes áreas paratrabalho autónomo: matemática, ciências,mesa da escrita, computador, faz-de-conta, jo-gos de construção, jogos didácticos, bibliotecae expressão plástica. A sala possui ainda umaárea polivalente com uma mesa grande queserve de apoio a várias actividades, e está pró-xima do placard com os instrumentos de pilo-tagem.

Em termos de dinâmica da sala, a organiza-ção do tempo e das actividades procura corres-ponder às orientações do modelo pedagógicodo M.E.M., adequado à especificidade dogrupo de crianças e ao funcionamento desteJardim de Infância, compreendendo activida-des dedicadas às várias áreas curriculares deacordo com as Orientações Curriculares Para aEducação Pré-Escolar (Lopes da Silva, 1997),com momentos de trabalho em grande grupo,em pequeno grupo, a pares e individual. Desta

forma, é possível aos adultos apoiarem indivi-dualmente as crianças que necessitam; às crian-ças mais velhas ajudarem os mais novos; e aospares apoiarem-se mutuamente.

A rotina no jardim de infância decorre daseguinte forma (ver Quadro 2).

A manhã é preenchida fundamentalmentecom actividades centradas no trabalho autó-nomo e na execução de projectos, com a distri-buição das crianças pelas várias áreas de activi-dades, conforme o que ficou planificado, en-quanto a tarde é preenchida por actividadescurriculares, sociais e culturais de grandegrupo.

A gestão democrática, inerente a toda a prá-tica educativa, é facultada pela organização doespaço e do tempo e pela implementação dosinstrumentos de pilotagem.

Os instrumentos de pilotagem, ou seja, osmapas existentes na sala, têm como objectivoauxiliar a organização do grupo durante as acti-vidades, possuindo ainda o carácter de perdurarinformações sobre o que já aconteceu, não

Horas Segunda-feira Terça-feira Quarta-feira Quinta-feira Sexta-feira

9.00 Acolhimento: marcação de presenças e inscrições para Contar, Mostrar e EscreverBons-dias, conversa e registo escrito de textos

Planificação em Conselho das actividades a realizarTrabalho autónomo/ Projectos

Avaliação do Mapa de Actividades10.30 Lanche

Recreio no exterior11.30 Comunicações12.00 ALMOÇO13.30 Jogos de mesa14.00 Trabalho Curricular Animação Trabalho Curricular Animação Reunião

Comparticipado Cultural Comparticipado Cultural de Conselhoou Balanço da de 6.ª feiraVisita de Estudo

15.00 Balanço do dia15.30 SAÍDA

Quadro 2 – Distribuição da rotina semanal

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deixando de possuir uma componente deaprendizagem curricular. São eles: o Diário deTurma/Grupo, o Mapa de Presenças, o Mapade Actividades e o Quadro de Tarefas e os In-ventários.

A estratégia prioritária da gestão democráticaconsiste na organização do grupo, adultos ecrianças, enquanto Conselho de CooperaçãoEducativa, onde todos têm uma palavra a dizersobre tudo o que se passa na sala, onde se pla-neia, executa e avalia o trabalho desenvolvido nasala, individualmente ou em grupo, assente noverdadeiro exercício da democracia e da coope-ração.

Presente em vários momentos:

• diariamente pela manhã quando o grupose reúne para planear as actividades a rea-lizar;

À segunda-feira lemos a coluna Queremos fa-zer do Diário de Turma, onde estão registadosos planos de trabalho que se mantêm da se-mana anterior. Planeia-se o que é possível fazerpara aquele dia e distribui-se o trabalho pelosimplicados. As crianças com texto escrito per-manecem na mesa, onde ilustram a sua notícia,preenchem lacunas, etc. As restantes vão regis-tar no Mapa de Actividades a área onde vão tra-balhar, de acordo com os projectos enunciadosno Diário ou para trabalho autónomo.

• na realização de tarefas de manutenção dasala;

As responsabilidades da sala são assegura-das pelas crianças, tendo um carácter rotativomensal mediante inscrição individual, emborasejam executadas a pares. Ao desempenhar de-terminada tarefa, a criança sente-se responsávele útil, contribuindo para a vida cooperativa esocial do grupo.

• quando se efectua o registo das ocorrên-cias positivas ou negativas, das actividadesou das aspirações no Diário de Turma;

Ao longo do dia, as crianças são livres de re-gistarem no Diário o que entendem. Um dosacordos internos da sala é que as crianças de-vem evitar interromper alguns momentos detrabalho para vir contar o que aconteceu, demodo a evitar as “queixinhas” junto do adulto(que pressupõem a resolução externa do con-flito e não a autonomia) e são encorajadas a es-crever no Diário para poderem falar sobre oacontecido no final do dia. Com esta segurançade que o dia não vai acabar sem que tenhamoportunidade de falar sobre o que as inquietou,as crianças aguardam o momento de balançodo dia.

• quando o grande grupo se reúne para fazero balanço do dia;

No final de cada dia, fazemos um balançodo que ocorreu de mais significativo, e as crian-ças que escreveram no Diário explicam aos co-legas o que registaram, expondo o problema,a sugestão, etc. ao grupo.

• e na reunião semanal de sexta-feira.

À sexta-feira à tarde realiza-se a reunião se-manal de Conselho de Cooperação, onde se faza avaliação semanal, com a leitura e discussãodos registos inseridos no Diário de Turma, aavaliação das tarefas e se elabora uma previsãode trabalho para a semana seguinte.

Concretamente, lemos todos os registos nacoluna do Não Gostamos e fazemos um debatesobre o seu conteúdo geral, sobre o que é ounão importante, sobre o que deve ser escritonesta coluna, salientando, por vezes, o que foimais grave, no sentido de encontrar uma solu-ção para a resolução do problema como, porexemplo, a elaboração de uma nova regra desala. Fazemos o mesmo para a coluna do Gos-tamos, elogiando as acções ou reflectindo sobrea necessidade de ter um olhar mais apurado so-bre as coisas positivas que acontecem e quenão ficam registadas. Relemos a coluna do Fi-zemos para relembrar o que conseguimos reali-zar e a coluna Queremos fazer, analisando o que

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já foi realizado, o que ainda queremos realizarou deixando cair algumas sugestões que já nãotêm interesse para o grupo.

Trabalho de Pesquisa

Objectivos

Os objectivos deste trabalho de pesquisasão: perceber se estou a promover a participa-ção das crianças no Diário de Turma enquantoinstrumento promotor de uma comunidadecooperativa; se as crianças entendem a sua fun-ção; se o utilizam no seu correcto sentido; e setodas as crianças participam.

Ao recolher e analisar os Diários de Turma,pretendo traçar o percurso da vida deste grupode crianças, fazendo uma comparação entre oinício do ano lectivo e o fim do 2.º período lec-tivo.

Pretendo, ainda, contribuir para o esclareci-mento da sua função pedagógica, como instru-mento de apoio e incentivo ao desenvolvi-mento sócio-moral e instrumento de planea-mento e avaliação do trabalho educativo navida do grupo.

Metodologia

Os dados deste estudo dizem respeito aosregistos no Diário de Turma, nas quatro colu-nas que o compõem. Por considerar que ascrianças, nos momentos em que escrevem so-zinhas no Diário, estão a fazer uso do seu di-reito de livre expressão dos seus pensamentos,defini estes registos formulados espontanea-mente pelas crianças sobre o quotidiano davida do grupo como dados a recolher nesteestudo.

Foram recolhidos, num conjunto de 25 Diá-rios, 251 registos escritos, desde Setembro de2009 a Março de 2010. Foi nessa altura, fim dosegundo período, em que se procedeu ao iníciodo tratamento dos dados recolhidos.

Por não se poder separar o Diário de Turmados momentos de Conselho de Cooperação

Educativa, por vezes, a informação colhida serácompletada com alguns comentários das crian-ças e reflexões da educadora, recolhidos sob aforma de notas de campo.

Os dados recolhidos foram organizados emtabelas com o registo fotográfico do que ascrianças escreveram e respectiva explicação,para facilitar o tratamento dos dados. Foramtambém elaboradas tabelas mensais para le-vantamento do número de registos em cada co-luna e por cada criança, de modo a perceberquem escrevia e onde escrevia.

A análise de conteúdo foi organizada a par-tir de um sistema de categorias. Embora não setivesse partido de categorias pré-definidas, e es-tas resultassem da análise dos elementos reco-lhidos, foram tidos em consideração na sua de-finição os estudos de Filomena Serralha (1992)e de Fátima Vieira (2004).

Os dados foram distribuídos por 21 catego-rias, agrupadas em 6 blocos de informação, ilus-trados com alguns indicadores e exemplos, paramelhor especificação do que se insere em cadacategoria, conforme apresentado no quadro 3.

Apresentação dos Resultados

Os dados recolhidos foram analisados sobdiferentes perspectivas, procurando apresentarrespostas às questões levantadas no iníciodeste projecto de investigação-acção.

Assim, em resposta à questão de quem es-creve no Diário de Turma verifiquei que, em-bora seja um grupo muito participativo, trêscrianças do grupo nunca escreveram. Contra-riamente, conforme os dados apresentados nográfico 1, existem crianças muito participati-vas, com grande número de registos, como é ocaso da Mariana, com 55 registos, e do TomásA. com 34 registos (Gráfico 1).

Uma vez que este foi o primeiro ano que ascrianças experimentaram esta organização de-mocrática, verificou-se uma apropriação pro-gressiva do Diário de Turma ao longo do 1.ºperíodo. O primeiro obstáculo a superar foi aquestão da escrita, uma vez que as crianças ti-nham interiorizado a noção de que não sabiam

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Quadro 3 – Categorias para análise de conteúdo

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escrever. Aos poucos, foram percebendo quepodiam ter uma participação activa na discus-são da vida do grupo e que o Diário era o ins-trumento que podiam utilizar para dar voz àssuas opiniões. Assim, começaram por escrever(com rabiscos ou com a sua assinatura) no NãoGostamos, passando gradualmente às restantescolunas.

De facto, verificou-se que as crianças maisnovas no grupo demoraram mais tempo parase apropriarem deste instrumento de pilota-gem, como é o caso da Margarida (3 anos) quesó escreveu pela primeira vez no mês de Feve-reiro, podendo este ser o factor de justificaçãopara duas das crianças que nunca escreveram,uma vez que têm 3 anos de idade, e iniciarama frequência no Jardim de Infância mais tardia-mente (em Novembro e em Março).

Quanto aos momentos em que escreveram,

as crianças adoptaram o acordo interno da salade evitarem interromper alguns momentosde trabalho para contarem o que aconteceu,e foram registando as ocorrências ao longo dodia, à medida que iam acontecendo, para sepoderem pronunciar sobre o acontecido no fi-nal do dia. Esta atitude estendeu-se às váriascolunas. Os momentos de balanço do dia ba-searam-se, essencialmente, na clarificação dosregistos das crianças e na escrita da colunaFizemos (Gráfico 2).

Os dados apurados neste estudo permitemconcluir que as crianças escreveram, sobre-tudo, na coluna designada por Não Gostamos,parecendo as ocorrências negativas serem asmais frequentes ou as que as crianças mais va-lorizam, tendo a sua discussão afectado a vidado grupo durante o tempo em que decorreuesta pesquisa.

Gráfico 1 – Tipologia de Registos por Criança

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No início de uma reunião de Conselho de6.ª feira, ao fazermos uma primeira análise so-bre o Diário de Turma, consegui registar os se-guintes comentários das crianças:

– O Não Gostamos voltou a ganhar e isso é umsinal mau. João T. (5 anos)

– Está grande. Margarida (4 anos)Como houve vários registos de que os autores não

se lembravam da ocorrência que os levou a escrever, oJoão T. comenta:

– Então é porque não era importante… se não es-crevessem o que não é importante, o Não Gostamosestava mais pequeno!

– O Não gostamos e o Gostamos estão muitograndes. Tatiana (5 anos)

– Eu acho que o Gostamos está muito grande por-que o Francisco ocupou muito espaço. Nicole (5 anos)

– O que nós fizemos está muito pequenino. Nicole(5 anos)

– Eu gostava que o Não Gostamos estivesse assim… (faz um gesto com as mãos, significando pequeno)João T.

Depois a Constança (5 anos) sugeriu que devía-mos ler o Não Gostamos e ver se havia “queixinhas”.Li e analisámos, em conjunto, o que era ou não “quei-xinhas”. Havia sete ocorrências que achamos serem“queixinhas”.

Concluímos que o desrespeito por regras já exis-tentes era grave e que devíamos esforçar-nos por re-solver os problemas a conversar e só escrever no Diá-rio quando não o conseguirmos.

Nota de campo, 29 de Janeiro de 2010

Apesar das conversas em Conselho, ogrupo parece não ter conseguido deixar trans-parecer, nos registos da coluna Não Gostamos, adiferença entre o que são ocorrências graves eas “queixinhas”, havendo preferência por re-correr às acusações em vez do diálogo e daresolução autónoma dos conflitos. Houve tam-bém dificuldade em debruçar mais o seu olharsobre as ocorrências positivas que, embora te-nham acontecido, não ficaram registadas noDiário de Turma, resultando em apenas 33 ins-crições, um número inferior à realidade dosacontecimentos, mas que traduz a forma comoas crianças entendem a funcionalidade desteinstrumento de regulação da vida do grupo.

Quanto às restantes colunas (Fizemos e Que-remos fazer), foi curioso como as crianças tam-bém se apropriaram delas, querendo participarna sua escrita, embora a maioria dos registostenha sido escrito pelos adultos devido a ques-tões de organização destes momentos de Con-selho. “Hoje fizemos o desenho do São Marti-nho. Tomás P.” e “Fizemos palavras que come-çam pela letra ‘C’. Mariana” são algunsexemplos de realizações que as crianças inseri-ram no Diário. “Quero fazer um trabalho so-bre crocodilos. Tiago”; “Queremos fazer umacoisa para saber quando fazemos anos. Ta-tiana”; “Queremos fazer um bolo. Nicole”;“Queremos fazer a experiência do vulcão. JoãoT.”; “Eu quero enfeitar a nossa sala de Natal.Sofia” e “Eu quero fazer um projecto Porque éque as pessoas respiram? Tomás P.” são exem-plos de sugestões de trabalho que as criançasinseriram na coluna Queremos fazer, desde pro-jectos de estudo, experiências, culinária, ex-pressão plástica, demonstrando a diversidadede ideias que parecem possuir.

Pela análise dos registos das crianças no 1.ºperíodo (gráfico 3), conclui-se que houve umagrande incidência sobre as ocorrências sócio-afectivas, sendo as categorias com maior nú-mero de registos a A1- Agressão física ou ver-bal, relativa a incidentes como “A Margaridabateu-me na cabeça. Tomás P.” e “Eu não gos-tei que um menino me puxasse o cabelo.Tiago”; assim como a categoria A6- Conduta

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desajustada, com situações como “Os meninosentraram na sala disparados. Tomás P.”, “OCarlos andou a correr nas escadas. Mariana” e“A Ana Rita mandou-me areia para a cara.Diogo” (ver Gráfico 3).

As ocorrências no âmbito da organização efuncionalidade da turma também foram muitofrequentes, com um grande número de regis-tos na categoria C1- Transgressão ou cumpri-mento de regras da sala, referentes a situaçõescomo “O Tiago passou-me à frente nas esca-das. Tatiana”, “A Sofia não arrumou connoscoo faz-de-conta. Nicole” e “Não gostei que o To-más P. gritasse na sala. Mariana”; na categoriaC2- Utilização de espaços e materiais referen-tes a episódios como “Falta uma peça do jogode memória. Carolina” ou “A Margarida partiuum brinquedo do faz-de-conta. Diana”; e nacategoria C3- Higiene e limpeza, com inciden-tes como “Não gostei que um menino deixasseuma bolacha no chão. Tomás P.” e “O Rodrigoentornou leite. Nicole”.

Estes dados dão a entender que, durante o1.º período, as crianças estiveram a descobrircomo conviver em grupo, a adquirir hábitos detrabalho e higiene, tentando ajustar o seu com-portamento a padrões sócio-morais e a regrasde convívio na sala, que foram elaboradasnesta altura a partir da discussão destas ocor-rências registadas no Diário de Turma.

Em relação ao 2.º período, o número de re-gistos relativos às ocorrências sócio-afectivas eà transgressão ou cumprimento de regras man-teve-se elevado até Março, tendo havido umretrocesso do grupo após a interrupção lectivado Natal. Gerou-se, então, uma fase em que ascrianças escreveram menos no Diário deTurma, em que recorreram à agressão para aresolução de conflitos, com o “esquecimento”das regras da sala. Passo a ilustrar:

Este Conselho de 6.ª feira foi importante porquetivemos que fazer um balanço da nossa vida dogrupo. Anteriormente já referi que o grupo, desde a

Gráfico 3 – Evolução dos Registos por Categorias

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interrupção lectiva do Natal, não tem sido tão activona redacção do Diário como antes, e, quando o faz, éessencialmente na coluna do Não Gostamos.

(…) ao ler o Diário, centramos a nossa atençãonos acontecimentos registados no Não Gostamos, re-lacionando-os com as regras de convívio social já exis-tentes na sala. As crianças puderam verificar que,para cada caso, já havia uma regra na sala, só quenão a estavam a cumprir. Para ajudar a relembrar,propus que cada um fizesse a ilustração das regras dasala.

Notas de campo, 21 de Janeiro de 2010

Por outro lado, pela recolha de escritos dascrianças nota-se que, a partir de Janeiro, ascrianças diversificam o tipo de registos relati-vos às ocorrências negativas e positivas, resul-tando num aumento de registos nas categoriasA2, A3, A5 e C4, escrevendo mais sobre asquestões dos afectos, da partilha, da responsa-bilidade e da organização do trabalho. Sãodisso exemplos:

Eu não gostei que a Vanea chorasse. (Marga-rida)

A Ana Rita e a Tatiana foram para outramesa e não ficaram ao pé de mim. (Nicole)

O Francisco não nos deixou jogar à bola.(Tiago)

O Tomás A. partilhou os marcadores co-migo. (Tomás P.)

Não gostei que a Margarida não arrumasse ofaz-de-conta comigo. (Tomás A.)

Eu não gostei que o João Tiago não tivesseesperado por mim para marcar as faltas. (Ma-riana)

Não gostei que a Carolina me deixasse sozi-nha a fazer o separador com a letra “Q”. (Ma-riana)

Já fiz as actividades todas. (Diogo)

Por outro lado, as crianças parecem maisconscientes da influência dos comportamentosindividuais na vida do grupo, explicitando, du-rante os Conselhos, as consequências destesactos. Passo a referir alguns exemplos:

A Carolina (4 anos) ao chegar à sala, vinda dacasa de banho após lavar as mãos para o lanche, veioter comigo:

– Aurora, sabes o que aconteceu?

Ouvi o que tinha para dizer e sugeri-lhe que es-crevesse no Diário para falarmos mais tarde. Então,ela foi buscar o cartão da Sofia, escreveu no Não Gos-tamos e a seguir assinou. No final do dia contou aoscolegas que “a Sofia foi lá abaixo (à casa de banho),apagou a luz e não lavou as mãos.” Perguntei porquetinha escrito no Diário e respondeu-me: “Porque é umproblema, porque eu não via nada a lavar as mãos”.

Notas de campo, 26 de Janeiro de 2010

Hoje o Tomás P. (4 anos) fez uns rabiscos na co-luna Não Gostamos. Quando lhe demos a palavra,explicou que, de manhã, havia pedido ao Tiago paramudar a data no calendário e que ele não o tinhafeito. Mudar a data é mais uma tarefa da sala e,nesse dia, o Tiago não tinha o seu par. O Tomásdisse aos colegas que tinha arrumado o seu trabalhosem pôr a data porque o colega não tinha feito a suatarefa.

Notas de campo, 10 de Fevereiro de 2010

Comparativamente ao 1.º período, con-forme os dados apresentados no gráfico 3, amudança nos comportamentos das criançastambém se reflectiu na diminuição de referên-cias às condutas desajustadas, à utilização deespaços e materiais e à higiene e limpeza.

Os momentos em Conselho de CooperaçãoEducativa, quer de balanço do dia quer à sexta-feira, foram fulcrais para esta evolução nos re-gistos do Diário de Turma.

O Francisco (4 anos) escreveu na coluna Fizemos:“O Rodrigo fez muitas bolinhas nos jogos de constru-ção no Mapa de Actividades.”

Imediatamente os colegas olharam para o Mapade Actividades e constataram que era verdade! O Ro-drigo estava a repetir a mesma actividade apesar daavaliação que tem vindo a ser feita no sentido de to-das as crianças circularem pelas várias áreas de tra-balho ao longo do mês.

Ao longo da conversa percebi que o Francisco sehavia enganado na coluna e queria escrever no NãoGostamos, o que faz desta a primeira ocorrência ne-gativa registada no Diário que implica uma avaliaçãodas aprendizagens.

Mas o João T. (5 anos) observa que o Franciscotambém tem repetido actividades! O Francisco tentajustificar dizendo que “foi só três vezes e o Rodrigo foimuitas”. Pedi aos dois que fossem ao Mapa de Acti-vidades contar quantas vezes já haviam escolhido os

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jogos de construção. O resultado foi três vezes, ouseja, todos os dias, uma vez que o mapa foi iniciadona segunda-feira, o primeiro dia do mês.

Notas de campo, 3 de Fevereiro de 2010

Desta forma, o Diário de Turma foi o meioque permitiu o desenvolvimento social e moraldas crianças, assim como a adequação dos seuscomportamentos no processo de aprendiza-gem. Ao escreverem, as crianças puderam le-vantar questões perante o grupo, para, emConselho, discutirem sobre o assunto, e defen-derem as suas opiniões, ajudando as criançasimplicadas a resolver a questão e a procurar so-luções alternativas, clarificando as ocorrênciasnegativas e positivas registadas.

Outro aspecto muito debatido em Conse-lho foi a funcionalidade do Diário de Turma, oque é e para que serve, como exemplifica a se-guinte transcrição:

Apesar das conclusões a que chegamos na reuniãode Conselho da anterior sexta-feira, e que foramsendo reforçadas ao longo da semana, a coluna doNão Gostamos continua extensa.

Reflecti e achei que poderia ser positiva uma re-flexão conjunta sobre o Diário. Preciso de um feed-back das ideias que eles têm em relação à funcionali-dade deste instrumento de pilotagem, pois pode sereste o cerne dos problemas que ocorrem diariamente.

Assim sendo, nesta sexta-feira o tema de debatedo Conselho foi o que é o Diário e para que serve. Deentre os vários comentários registei:

– Para escrever o que não gostamos– Para escrever as coisas que vamos fazer. – Não é para fazer “queixinhas”.– É para escrever coisas importantes.– Devemos vir ao Diário para resolver os proble-

mas.– Para escrever coisas graves.– Para escrever coisas de que gostamos… coisas

boas.– Para escrever o que fizemos.– Ir ao faz-de-conta é uma actividade… as acti-

vidades escrevem-se no Mapa de Actividades.– Para escrever os projectos.– Para escrever as coisas que nós mais queremos

fazer.– Para fazer trabalhos.

– O meu projecto “O que fazem os polícias?” jáestá no Diário!

Notas de campo, 5 de Fevereiro de 2010

Por estes comentários, percebe-se que, nogeral, o grupo conhecia as várias colunas quecompõem o Diário de Turma e o objectivo decada uma delas. Os problemas cingiram-semais à coluna do Não Gostamos. Enquanto al-gumas crianças procuraram escrever só asquestões mais relevantes, evitando as “queixi-nhas” e procurando resolver os seus problemasde forma autónoma, outras crianças preferiamescrever logo no Diário.

Durante o 2.º período de actividade lectiva,aconteceu outro aspecto curioso relativamenteà participação das crianças no Diário deTurma:

Hoje tenho a registar um aspecto da escrita livredas crianças no Diário que me despertou à atenção:as crianças também já escrevem aos pares!

Notas de campo, 2 de Março de 2010

A entreajuda e a cooperação parecem ter-seestendido a aspectos mais práticos do Diáriode Turma e as crianças começaram a escrever apares relativamente a situações sobre as quaistêm a mesma opinião: “Não gostamos que oRodrigo passasse à frente.” Daniel e Mariana;“O Tiago empurrou-nos para nós andarmos nocomboio.” Daniel e Tatiana; e “A Margaridanão foi fazer o trabalho connosco.” Constançae Tomás A.

Para terminar, gostaria de poder dizer queas crianças aprenderam a dialogar e a resolvermuitos dos seus problemas autonomamente e,por isso, os registos na coluna Não Gostamosdiminuíram gradualmente, enquanto os regis-tos das ocorrências positivas aumentaram,mas tal não é possível. Apesar de os resultadosnão corresponderem às minhas expectativas,através dos momentos colectivos em que ogrupo se debruçava sobre problemas ocorri-dos, sobre questões afectivas, de sucesso, en-

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tre outras, penso que cada criança aprendeu aver-se a si própria como elemento de um todo(grupo), cujas acções influenciam, directa ouindirectamente, todos os outros, ou seja, oDiário de Turma foi o instrumento promotordo desenvolvimento moral que permitiu aogrupo constituir-se como uma verdadeira co-munidade cooperativa.

Considerações Finais

Devo, ainda, frisar que a presente pesquisaé apenas uma pequena abordagem à com-plexa questão que é o Diário de Turma nomodelo pedagógico da Escola Moderna Por-tuguesa.

Faz sentido recordar que o estudo aquiapresentado é uma visão parcial da realidadedesta turma, uma vez que se refere exclusiva-mente aos registos escritos que as crianças fi-zeram nos Diários de Turma. Os seus resulta-dos não podem ser vistos como absolutos, res-tringindo-se apenas a este grupo de crianças, aeste contexto e à duração da pesquisa (de Se-tembro a Março). Esta limitação temporal nãopermitiu fazer um retrato longitudinal para veras possíveis mudanças que ocorreram até ao fi-nal do ano lectivo.

Ao longo do percurso aqui efectuado, em-bora tenha procurado adoptar uma atitudecientífica, a proximidade aos acontecimentos ea envolvência no próprio estudo podem ter in-fluenciado alguns resultados.

Em virtude das opções tomadas e das limi-tações acima descritas, posso enunciar as se-guintes conclusões:

• a gestão cooperada de conflitos facultou odesenvolvimento pessoal e social dascrianças, reflectindo-se na mudança deatitudes individuais;

• a reflexão conjunta que se estabeleceu no

seio do grupo permitiu a vivência de valo-res democráticos;

• a cooperação estabeleceu-se como valorinerente nas vivências do grupo;

• o papel mediador dos adultos possibilitouo desenvolvimento da autonomia, da li-berdade individual e da responsabilidade;

• a participação das crianças nas actividadesde planificação e avaliação foi uma cons-tante na prática pedagógica nesta sala dejardim de infância, uma vez que as crian-ças não deixaram de fazer registos no Diá-rio, apesar das barreiras da leitura e es-crita.

Em termos profissionais, esta modalidadede formação foi bastante proveitosa, uma vezque permitiu desenvolver uma metodologia depesquisa, ensaiar a utilização de técnicas e ins-trumentos de investigação que poderão serúteis para, no futuro, desenvolver outros pro-jectos de investigação.

As leituras realizadas que constituiram osuporte teórico ajudaram a reconstruir aspec-tos da minha prática: por vários momentos deicomigo, na sala de jardim de infância, a olhare ouvir as crianças ao mesmo tempo que re-flectia sobre frases que tinha lido, fazendo umasimbiose entre a prática e a teoria; por váriasvezes, durante as conversas em Conselho, edevido às leituras efectuadas, procurei fazer ascrianças reflectir sobre o Diário. Só por isso, jávaleram a pena!

Ao longo deste Programa de Investigação--Acção, Sérgio Niza sempre nos disse que oobjectivo era olhar apenas uma pequena coisa doque fazemos. No entanto, um trabalho de inves-tigação pressupõe uma postura de reflexão quenos transforma o olhar. Ao olharmos uma pe-quena coisa do que fazemos, modificamos anossa atitude educativa e ficamos a pensar emmuitas que podemos fazer para melhorar anossa prática.

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