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Imagem Rodrigo Esteves de Oliveira O contrato administrativo entre a estabilidade e a instabilidade Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico-Políticas na Faculdade de Direito de Coimbra Orientador: Senhor Professor Doutor Vital Martins Moreira Agosto de 2014

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Rodrigo Esteves de Oliveira

O contrato administrativo entre a estabilidade e a instabilidade

Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico-Po líticas na Faculdade de Direito de Coimbra

Orientador: Senhor Professor Doutor Vital Martins M oreira

Agosto de 2014

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ABREVIATURAS UTILIZADAS NA EXPOSIÇÃO

AD − Acórdãos Doutrinais

AFDI − Annuaire français de Droit Internacional

AJDA − L’actualité juridique. Droit Administratif

AP − Administration Publique

ApDGov − Apêndice ao Direito do Governo

ApDR − Apêndice ao Diário da República

BFDUC − Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

BMJ − Boletim do Ministério da Justiça

CCL − Legislação – Cadernos de Ciência de Legislação

CJ − Colectânea de Jurisprudência

CJA − Cadernos de Justiça Administrativa

Col. − Colecção de Acórdãos do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e do Tribunal de Primeira Instância

Col. Ac. STA − Colecção de Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo

CPC − Código do Processo Civil

CPTA − Código do Processo nos Tribunais Administrativos

DAmm − Diritto Amministrativo

C. Ch. − Recueil Dalloz. Chronique

D&J − Direito e Justiça

DJAP − Dicionário Jurídico da Administração Pública

DocA − Documentación Administrativa

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DAR − Diário da Assembleia da República

DR − Diário da República

EdD − Enciclopedia del Diritto

ELR − European Law Review

ETAF − Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais

FI − Il foro italiano

GC − Giurisprudenzia Costituzionale

GI − Giurisprudencia Italiana

JCP − Juris Classeur Periodique

NDI − Novissimo Digesto Italiano

NEJ − Nueva Enciclopedia Jurídica

OD − O Direito

RA − La Revue Administrative

RAAP − Revista Andaluza de Administración Pública

RAP − Revista de Administración Pública

RDES − Revista de Direito e Estudos Sociais

RDPb − Rivista di Diritto Pubblico

RDPSP − Revue du Droit Public et de la Science Politique

REALA − Revista Española de la Administración Local y Autonómica

REDA − Revista Española de Derecho Administrativo

RFDA − Revue française de Droit Administratif

RFDUL − Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

RJ − Revista Jurídica

RLJ − Revista de Legislação e de Jurisprudência

ROA − Revista da Ordem dos Advogados

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RTDP − Rivista Trismestralle di Diritto Pubblico

SI − Scientia Iuridica

STA − Supremo Tribunal Administrativo

TJUE − Tribunal de Justiça da União Europeia

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O contrato administrativo entre a estabilidade e a instabilidade

Capítulo I — Introdução

1. Apresentação: um tema clássico pleno de actualidade

2. O contrato como “acto de apropriação do futuro” e Contrato público, contrato

privado da Administração Pública e contrato administrativo

3. A autonomia do contrato administrativo

Capítulo II — Modificação do contrato e alteração das circunstâncias do contrato

4. O contrato administrativo e o princípio da pacta sunt servanda

5. A modificação do texto e do contexto do contrato administrativo

6. Os princípios e institutos administrativos associados à modificação do contrato e à

alteração das suas circunstâncias

7. Uma proposta de sistematização dos institutos relevantes

Capítulo III — […]

8. A modificação do contrato por acto administrativo do contraente público

9. A modificação do contrato administrativo por acordo das partes

10. A modificação do contrato administrativo por decisão do tribunal

11. A modificação do contrato pela lei

Capítulo IV — […]

12. A alteração das circunstâncias do contrato administrativo

13. A alteração das circunstâncias por decisão do contraente público fora do exercício

dos seus poderes de conformação contratual

14. A alteração das circunstâncias não imputável a decisão do contraente público

Reflexões finais

Bibliografia

Índice

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Breves considerações sobre os contratos da Administração Pública

O contrato público, o contrato privado da Administração Pública e o contrato

administrativo

A autonomia do contrato administrativo

O reconhecimento e a tutela legal do contrato administrativo, como figura jurídica própria ou

autónoma, é hoje um dado adquirido, resultante de uma opção declarada do legislador

português, que faz dele uma espécie com características e regimes próprios, dentro do género

contratos e a par dos contratos constitutivos de relações jurídicas civis, comerciais, laborais,

etc.

Aliás, pode dizer-se que nunca a figura do contrato administrativo conheceu entre nós uma

autonomia tão impressiva em aspectos fundamentais, podendo dizer-se, como veremos

adiante, que aquilo que, em sede procedimental e processual, perdeu na distinção com os

outros contratos (sejam os contratos privados da Administração Pública, sejam os contratos

particulares), ganhou em sede substantiva.

Facto que não deixa de ser curioso se se tomar em consideração que chegou a circular um

Relatório Preliminar de Revisão do Código do Procedimento Administrativo, em 2001,

imputado a um grupo de trabalho criado no âmbito do então Ministério da Reforma do Estado

e da Administração Pública, onde se desenhava uma tendência de sentido contrário, de

“prenúncio da morte” do contrato administrativo, dando-se aí conta, em espaço dedicado aos

artigos 178° e seguintes do CPA (relativos, como se sabe, ao contrato administrativo), que a

"Comissão entende dever ser ponderada a sobrevivência do conceito de contrato

administrativo como espécie dentro do género dos contratos da Administração”.

A ideia seria, portanto, ao que parece, subordinar toda a actividade contratual da

Administração Pública a um regime jurídico uniforme, sem lugar ao problemático dualismo

contratos administrativos / contratos privados das Administrações Públicas — como, de resto,

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sempre foi defendido entre nós, de iure condendo, por Maria João Estorninho1 ―, acabando-

se com a autonomia jurídica do contrato administrativo.

A opção, não é difícil reconhecê-lo, teria algumas vantagens.

Desde logo, afastaria a vexata quaestio da distinção entre actividade contratual de natureza

administrativa e de natureza privada. Embora essa questão só se coloque hoje residual ou

marginalmente, a verdade é que, quando se põe, a relativa incerteza sobre os critérios

adequados para aferir da administratividade de uma relação contratual (ou a relativa incerteza

sobre a sua aplicação) pode criar dificuldades de tomo — dificuldades, diga-se, que não

desapareceram com o CCP.

E essas dificuldades, ligadas intimamente à confusão que assim se estabelece entre o direito

privado e o direito público, representa certamente uma das maiores críticas que pode fazer-se

à figura do contrato administrativo.

Por outro lado, terminaria também um dos problemas mais graves da teoria dos contratos da

Administração Pública, o da dualidade da sua jurisdição, que constitui um dos pontos

nevrálgicos de toda a discórdia2/3. Mesmo muitas das dificuldades de qualificação do contrato,

se subsistisse essa dualidade (entre contratos administrativos ou privados da Administração

Pública), sairiam esvanecidas com a opção por uma jurisdição única.

A justificar, em parte, a unificação da actividade contratual da Administração pode estar

igualmente a ideia de que mesmo a sua actuação ao abrigo do direito privado não a exime da

observância de certas vinculações jurídico-públicas — e aqui a questão desloca-se do plano

1 Em especial, no seu Requiem pelo contrato administrativo, Almedina, 1990, p. 151 e ss. 2 Maria João Estorninho, por exemplo, apesar de sustentar a uniformização dos contratos da Administração

Pública a todos os níveis, centra, muitas vezes, a sua atenção apenas na dualidade jurisdicional hoje existente, porque é de facto aí que a questão cria mais e, às vezes, desesperantes problemas (cf. Maria João Estorninho, Critério da ambiência de direito público: esforço inglório para salvar o contrato administrativo, anotação ao Acórdão do Tribunal de Conflitos de 14 de Janeiro de 1997, proc. n° 307, em CJA, n° 2, p. 17, in fine).

3 A autonomia contenciosa constitui actualmente uma das autonomias que se assinalam ao contrato administrativo, traduzida no facto de se ter confiado a uma jurisdição especializada (a administrativa) a competência para solucionar os litígios ocorridos no seio de uma relação contratual de direito público — atribuindo-se aos tribunais cíveis a jurisdição em matéria de contratos de direito privado da Administração Pública (art. 5º/1-g e art. 4º/1-f do ETAF) — e de os meios processuais aí usados (principais, incluindo os processos executivos, e acessórios) serem distintos daqueles que os tribunais judiciais lançam não para resolver as questões contratuais privadas (cf. Mário Esteves de Oliveira/Pedro Gonçalves/Pacheco de Amorim, Código..., cit, pp. 807 e 808).

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judicial para os planos material e, sobretudo, procedimental (também ligado, este último, a

uma suposta autonomia do contrato administrativo)4.

4 Como se sabe, a figura do contrato administrativo interessa para efeitos procedimentais, pois a formação

jurídica da vontade de contratar pela Administração obedece, em regia, a um procedimento administrativo específico, pelo qual se visa garantir o respeito por princípios jurídicos fundamentais (imparcialidade, igualdade, transparência e racionalidade), potenciar a máxima e mais eficiente realização do interesse público e, ainda, proteger o mercado e potenciar a concorrência.

No entanto, esta autonomia procedimental — que assenta na obrigatoriedade da abertura de procedimentos adjudicatórios de natureza concursal em sede de formação dos contratos administrativos, e na sua inexistência quando esteja em causa o comprometimento jurídico-civil da Administração — encontra-se hoje muito relativizada.

Em primeiro lugar, porque existem muitos contratos administrativos cuja celebração não depende de prévio procedimento de tipo concorrencial.

Na verdade, a ideia do concurso nasceu tipicamente para os contratos que visam associar duradouramente um particular ao cumprimento de certas atribuições de um ente público — e é neles, ainda, que ela tem o seu principal campo de aplicação. Passar daí para uma suposta regra (ou princípio) do concurso, antecedente necessário dos contratos administrativos (qualquer que seja a sua espécie), parece excessivo e, em alguns casos, impossível. Basta pensar nos contratos de cooperação, de atribuição, de substituição de actos administrativos, todos avessos, por princípio, a essa ideia concursal (note-se que a "aversão" a um procedimento concursal não significa total desprocedimentalização. Mesmo que não haja lugar a um procedimento adjudicatório de natureza não concorrencial, procedimento administrativo há sempre, por singelo que seja, nem que se resuma à deliberação de contratar, no sentido que lhe dá a doutrina italiana).

De acordo com Sérvulo correio, Legalidade …, cit., pp. 690 e 691, “nos contratos administrativos, nem sempre se levanta um problema de escolha do co-contratante. Naqueles que funcionam como forma alternativa do acto administrativo, essa necessidade apenas surge quando a discricionariedade de escolha de efeitos de direito compreende a (ou consiste na) escolha do destinatário do acto. Normalmente, os contratos típicos de atribuição não nascem de uma necessidade sentida pela Administração independentemente da noção de quem deva vir a ser o outro contraente: pelo contrário, é a verificação de uma situação concreta que suscita a necessidade e a possibilidade do contrato e, desse modo, o co-contratante está naturalmente individualizado desde o princípio (…). Aliás, o acto propulsivo do procedimento que conduz a vários desses contratos não é sequer a decisão ou deliberação de contratar, mas antes dela, um pedido ou uma proposta apresentados pelo eventual co-contratante”.

No sentido de que nos contratos sobre actos administrativos não há lugar à "selecção concorrencial do contraente privado", v. também Huergo Lora, La nueva regulación de los contratos públicos en Alemania. Reflexiones desde el Derecho español, p. 1845, nota 9.

A doutrina considera igualmente que os contratos de atribuição em geral não estão sujeitos à regra da obrigatoriedade do concurso público — Freitas Do Amaral, Curso..., cit, p. 601, e, a propósito dos contratos de urbanização (que são contratos de atribuição), Fernandes Cadilha, Aspectos..., cit, p. 403.

Embora se adira, por princípio, à posição destes AA., é importante notar que — ao contrário do que sucederá em matéria de contratos de cooperação e substitutivos de acto administrativo (quanto a estes, com a ressalva posta por Sérvulo Correia) — alguns contratos de atribuição não se encontram, por sua natureza, afastados da obrigatoriedade de concurso. Aliás, às vezes é a própria lei que estabelece essa exigência (por exemplo, a cedência, pela Administração, do direito de superfície sobre terrenos destinados a edifícios cujos fogos fiquem sujeitos a fixação ou controle dos valores das rendas ou dos preços de venda está sujeita a concurso: cf. n° 2 do art. 29° do Decreto-Lei n° 794/76, de 5 de Novembro, a Lei dos Solos. V. também o n° 3 desse preceito).

O método deve ser, pois, o seguinte: os contratos de atribuição são, em regra, contratos típicos, previstos na lei, e é, portanto, em função do regime aí delineado que se há-de resolver a questão concursal. Quando o eventual ou futuro co-contratante, tendo em consideração o contrato em causa, está naturalmente determinado (por "o contrato só fazer sentido como meio de intervenção sobre uma situação administrativa de que ele é titular'": Sérvulo Correia, Legalidade...,cit., p. 694) ou quando o acto propulsivo do procedimento consista num requerimento (Sérvulo Correia), não há concurso (mas há, mesmo assim, um

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procedimento contratual composto por um acto de iniciativa, instrução, audiência, se necessária, e celebração do contrato. V. posição de Pedro Gonçalves, infra). Quando, porém, fora dessas circunstâncias, exista um leque de potenciais interessados no benefício administrativo — e a Administração tanto o pode atribuir a um deles como a outro, porque o que interessa é que um deles, qualquer que seja, efectue uma prestação, uma actividade, favorável ao interesse público —, então aí não se vislumbra razão alguma para não admitir (ou impor) a sua atribuição concursada.

Posição original é a de Pedro Gonçalves, O contrato..., cit., pp. 64 e 65. Segundo o A., a ideia de que o CPA não estabelece qualquer disciplina para os contratos de atribuição (parece ser a estes que se refere) é apenas aparente, pois o seu "art. 181° determina (em geral) a aplicação à formação dos contratos administrativos das disposições relativas ao procedimento administrativo "previsto para o acto administrativo".

Por isso que mesmo nesses contratos de atribuição há sempre um procedimento, cuja sequência, diz o A., é a seguinte: i) iniciativa (em princípio do particular); ii) instrução; iii) audiência dos interessados; iv) celebração do contrato.

Mas, como se referiu atrás, e acabou por se demonstrar, não é apenas a procedimentalização (concursal) dos contratos administrativos que deve ser entendida em termos mais restritos do que aqueles que a ideia de autonomia procedimental poderia sugerir. É também a suposta desprocedimentalização dos contratos privados que está em causa.

A ideia de que a actividade contratual da Administração no domínio do direito privado está isenta da abertura de um procedimento administrativo de tipo concorrencial (quando ele não seja despropositado atenta a espécie de acordo a celebrar) pode ter, aqui e ali, margem de aplicação — como acontece relativamente a alguns contratos dos entes públicos empresariais —, mas dificilmente abrangerá a maior parte dessa actividade. Pode, até, entender-se que a "liberdade" de selecção do co-contratante constitui ainda o princípio jurídico na matéria, mas, a merecer, de facto, esse valor ou estatuto, então, no mínimo, cabe dizer que há um "paradigma emergente", a ganhar progressivamente terreno e que aponta precisamente no sentido contrário — de que, em geral, mesmos os contratos privados dos entes públicos são (devem ser) precedidos de um procedimento público de tipo concursal.

Esse novo "paradigma" desdobra-se, como se vê, em duas proposições. A primeira (típica do sistema português) é a de que o procedimento que antecede a formação jurídica da vontade de contratar iure privatorum utendo, pelo menos quando previsto em lei, é de direito administrativo, iniciado, desenvolvido e decidido por actos jurídico-públicos da Administração. Cf. Rogério Soares, Direito Administrativo, 1978, pp. 20 e 21, Sérvulo Correia, Legalidade...,cit, p. 545 e ss., em especial, p. 549 e ss., Mário Esteves de Oliveira/Pedro Gonçalves/Pacheco de Amorim, Código...,Cit., p. 806, Mário Esteves de Oliveira/Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos..., cit., pp. 146 e ss., Santos Botelho/Pires Esteves/Cândido de Pinho, Código do Procedimento Administrativo, 1996, p. 803, Jorge Pereira da Silva, A invalidade dos contratos administrativos, DJ, 1996, p. 115, e Maria João Estorninho, Algumas questões de contencioso dos contratos administrativos, Cadernos de Ciência e Legislação, n° 15, 1996, p.38.

A segunda é a de que esse procedimento deve assumir natureza tendencialmente concursal, e foi resultado das chamadas directivas (comunitárias) de coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos, depois transpostas pelos Decretos-Lei n° 197/99 (relativo à locação e aquisição de bens móveis e serviços) e n° 223/2001 (respeitante à contratação de empreitadas, fornecimentos e prestação de serviços nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações, por parte de variadíssimas entidades adjudicantes, entre as quais as empresas públicas e outras entidades privadas não passíveis desta qualificação).

Ora, todos esses contratos (que podem ser de direito privado) dependem da prévia abertura de um procedimento administrativo concursal — e representando eles uma larga fatia da actividade contratual de direito privado da Administração Pública, já não se pode afirmar, pelo menos tão claramente como antes sucederia, a existência de uma verdadeira autonomia procedimental do contrato administrativo.

É verdade que nem todos os contratos de bens se subsumem naquelas categorias legais, e por isso pode haver lugar, ainda, na falta de lei especial, para uma margem de "liberdade" na seleção do co-contratante quando estejam em causa acordos privados da Administração. Mas também é certo que só será assim se não se entender que os princípios da igualdade e da imparcialidade administrativas — aplicáveis também à sua actividade de gestão privada — não exigem, mesmo, um qualquer concurso (de direito público). Neste sentido, Margarida Cabral, O concurso ..., cit., pp. 255 e ss.. É questão que se deixa em aberto, embora de iure condendo o referido "paradigma emergente" (que se falou atrás) pareça dever tornar-se no princípio geral na matéria, considerando-se como regra a ideia de que quando a Administração procura fora de sua

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Na verdade, há muito que se vem defendendo — seja através da "teoria dos dois níveis"

(Zweistufentheorie) ou do chamado "Direito Privado Administrativo" (Verwal-

tungsprivatrecht) — que mesmo quando actua em regime de direito privado, a Administração

não age (não pode agir) como se fosse um privado (um Privatmann)5 . Como diria Maurer, "a

Administração tem à sua disposição somente as formas de direito privado, mas não as

liberdades ou as possibilidades de agir que proporciona a autonomia das pessoas privadas"6,

pois existem adstrições jurídico-públicas omnipresentes (sobretudo em matéria de

competência e vinculação aos princípios jurídico-fundamentais e aos direitos fundamentais),

que, acompanhando a vida da Administração quando ela se met en civil 7, impedem que a

chamada "fuga para o direito privado" transforme numa fuga absoluta ao direito público ou

numa fuga absoluta para o direito privado8.

Esta ideia nem constitui, aliás, um dado novo no nosso sistema jurídico, que sempre admitiu e

determinou a plena aplicabilidade dos princípios jurídicos fundamentais do Direito

Administrativo à "gestão privada" da Administração Pública (art 266º/2 da CRP e art. 5º/2 do

CPA)9 e a obrigatoriedade desta respeitar, nessa sua actividade, os direitos fundamentais (art.

"casa" um qualquer bem (em sentido lato) de que necessite, deve fazê-lo, mesmo em sede de gestão privada, concursadamente.

Como afirma Rámon Parada, Derecho..., cit., p. 273, a propósito da fuga para o direito privado de algumas entidades empresariais (não sujeitas aos procedimentos concursais previstos na LCAP), é preciso "coger el toro por los cuernos" e acabar com a actual situação de descontrolo (e não só) que se vive no sector público.

5 Para aquela primeira teoria (formulada a pensar nos problemas colocados pela concessão de subvenções aos particulares, mas depois alargada a outros domínio'), a relação jurídica subvencional seria constituída por dois degraus ou planos: no primeiro, a Administração decide, por acto administrativo — ao abrigo do direito público, portanto, com tudo o que isso implica em matéria, por exemplo, de procedimentalização dessa medida —, se atribui ou não a subvenção; no segundo, há lugar à celebração do negócio jurídico civil de subvenção, no qual se estabelecem os termos (os direitos e obrigações que resultam para ambas as partes) do acordo.

O Direito Privado Administrativo, por sua vez, acentua a "publicização" dos instrumentos ou das formas jurídico-privadas utilizadas pela Administração na prossecução imediata de interesses públicos, fazendo notar que mesmo quando actua ao abrigo do direito privado, ela não deixa de estar sujeita a algumas vinculações jurídico-públicas.

Sobre a "teoria dos dois níveis" e o "Direito Privado Administrativo" ver, por todos, entre nós, Maria João Estorninho, A fuga para o direito privado. Contributo para o estudo da actividade de direito privado da Administração Pública, 1999, pp. 109 e ss. e 121 e ss., respectivamente, de cuja lição se retirou o essencial da presente nota.

6 Hartmut Maurer, Droit Administratif Allemand (trad), 1994, p, 42. 7 Sta1noff, apud Orlando De Carvalho, Contrato administrativo e acto jnrídico-público, BFDUC, suplemento

XI, p. 4. 8 A tal "fuga perversa" a que se refere Maria João Estorninho, Contratos ..., cit, p. 53. 9 A propósito do preceito constitucional citado, referem Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da

República Portuguesa Anotada, 3" Ed., p. 921, que "o recurso às fornias de direito privado por parte da

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18º/1 da CRP)10. O que bem se compreende. Na verdade, se se separar a prossecução do

interesse público, pela Administração, das normas que lhe são co-naturais e se se a remeter

para o domínio das relações da vontade, da autonomia e do arbítrio, em suma, para o direito

civil, são os particulares os primeiros prejudicados, que não encontrarão em muitos casos

(porque, pura e simplesmente, não é suposto se encontrar lá, no direito civil) uma tutela

adequada e efectiva perante essa Administração, livre, agora, dos espartilhos que

constrangiam a sua actividade e refreavam eventuais ânimos menos próprios a quem é

suposto cuidar da res publica.

Ora, se é assim, se também na sua actividade contratual de direito privado a Administração

deve observar limites típicos e inicialmente característicos (ou caracterizadores) da sua

actividade contratual de direito público, então é inegável que há aqui uma aproximação entre

duas realidades que se imaginavam antagónicas. E, portanto, podia dizer-se, a referida

unificação de todos os seus contratos sob um conceito e um regime uniformes não

representaria mais do que a última etapa deste movimento de relativa publicização dos

contratos privados da Administração: todos unidos privatisticamente, embora com

"ingredientes" de direito público (princípios jurídicos-fundamentais e direitos fundamentais).

Administração também não a isenta da observância dos princípios constitucionais aqui consagrados, justificando-se a inclusão no conceito de administração da actividade privada da Administração" Sobre o preceito legal do CPA, ver Mário Esteves de Oliveira/Pedro Gonçalves/Pacheco de Amorim, Código..., cit, pp. 74 e ss..

Note-se, por exemplo, que a Lei de procedimento Administrativo alemã só se aplica à "actividade administrativa de direito público" dos entes a ela sujeitos (§1°). Cf., a este propósito, Hans Meyer, El procedimiento administrativo en Ia Republica Federal de Alemania, em "El procedimiento administrativo en el Derecho Comparado", coord. de Javier Barnes Vasquez, Civitas, 1993, p. 295.

10 Para Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 1999, pp. 146 e 147, não se pode recusar a "eficácia dos direitos fundamentais, mesmo quando os poderes públicos utilizam meios de direito privado, seja no exercício de tarefas públicas (direito privado da administração), seja no exercício de tarefas meramente privadas. A solução contrária colidiria com a eficácia erga omnes dos direitos fundamentais, também reconhecida na Constituição, e abriria no seio da Constituição um inadmissível espaço livre dos direitos fundamentais", adiantando mesmo que a questão é irrelevante, "pois o Estado, actuando como sujeito de direito privado, sempre estaria, como tal, vinculado aos preceitos dos direitos fundamentais como qualquer outra entidade privada".

Vieira de Andrade considera que "entidades públicas" — para efeitos do art. 18º/1 do CRP — são apenas aquelas que dispõem, numa dada relação jurídica, de poderes públicos, privilégios ou prerrogativas de autoridade, enquadrando, por isso, o problema em análise (aplicabilidade dos direitos fundamentais à actividade administrativa de direito privado) no segmento constitucional que se refere à vinculação de entidades privadas (Vieira De Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, 1998, pp. 266 e ss. e 274)

Jorge Miranda, por sua vez, subsume na categoria das "entidades públicas" a Administração, actue ela munida de imperium ou ao abrigo do direito privado, mesmo se neste último caso se possam justificar' "graduações e especialidades" (Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, p. 281).

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Não nos parece, porém, que as aludidas vantagens da unificação jurídica dos contratos da

Administração Pública (com consequências sobretudo no plano procedimental e concursal)

sejam suficientes para nos fazer desviar — e, principalmente, ao legislador — das posições

assumidas sobre a autonomia jurídica do contrato administrativo face aos contratos de direito

privado da Administração Pública.

Por um lado, as dificuldades que subsistem sobre a delimitação dos contratos administrativos

face aos contratos de direito privado da Administração nem são hoje de monta, porque grande

parte daqueles têm previsão e regulamentação expressa no Direito Administrativo. E, por

outro lado, tais dúvidas são inerentes à própria existência e autonomia do Direito

Administrativo e à delimitação do seu âmbito de aplicação face ao Direito Privado, sem que

isso implique o seu fim.

Quanto às vantagens da jurisdição única — melhor, quanto às desvantagens da dupla

jurisdição —, diga-se que, nesse aspecto, o problema é de ordem processual e é, portanto,

nessa sede, não através de uma intervenção ao nível do Direito Administrativo material, que

ele deve ser resolvido11.

É certo que a dualidade de jurisdição é apontada, muitas vezes, como o fundamento histórico

da autonomia substantiva do contrato administrativo, que teria sido assim a consequência — e

11 Aliás, como se sabe, a dualidade de jurisdição pode estar perto do fim, a atender ao Estatuto dos Tribunais

Administrativos e Fiscais (P), em cujo art. 4°/l, e, se estabelece ser da competência dos tribunais administrativos a apreciação de litígios que tenham por objecto "questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos celebrados por pessoas colectivas de direito público". Não cabendo averiguar, neste trabalho, da sua bondade e justificação, sempre se dirá que soluções como esta (a par de outras em sentido idêntico, como sucede relativamente à responsabilidade civil da Administração Pública, que deixa de viver sob o "estigma" da gestão pública e gestão privada) têm manifestas implicações no status dos tribunais administrativos. Uma delas é seguramente a seguinte: de jurisdição especializada, eles passam a constituir uma jurisdição estatutária, ou seja, de tribunais competentes para resolver os litígios suscitados pela interpretação e aplicação de normas administrativas (daí serem especializados), passam a ser os tribunais competentes para resolver os litígios em que uma pessoa colectiva pública é "parte", sejam eles de direito comercial, civil ou, claro, administrativo. Um critério puramente orgânico ou estatutário, por isso, já não de fundo ou substantivo.

Independentemente do que possa entender no plano de iure condendo, é duvidoso se esta última solução não colocará problemas sérios de constitucionalidade. Na verdade, ou o factor constitucional que demarca o âmbito da justiça administrativa — acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas — se reporta, como parece lógico, a relações jurídicas disciplinadas pelo Direito Administrativo, e só a estas (opção minimalista), ou, pelo contrário se entende que aquela fórmula abrange quaisquer relações jurídicas em que é "parte" uma pessoa colectiva de direito público (opção maximalista), caso em que a escolha de uma ou outra opção integraria a "liberdade" de disposição político-legislativa.

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não a causa, como seria natural na lógica das coisas jurídicas — da especificidade de regime

dessa figura12/13. Será, então, que, eliminada a causa, cairia ou cairá inevitavelmente a

consequência? Com todo o respeito, pensamos que não. Na verdade, aquilo que interessa hoje

(mais do que a relação histórica causal) é saber se as regras e princípios específicos que se

assinalam ao contrato administrativo fazem ou não sentido, são ou não válidos e justificados

atenta a íntima conexão que aí se estabelece entre a prossecução do interesse público e o

objecto do contrato14.

Quer isto dizer que a irrelevância processual da distinção entre contratos privados e

administrativos da Administração Pública não significa nem implica a sua irrelevância

substantiva. Independentemente do que se venha a estabelecer ali, naquele plano, o contrato

de direito administrativo, na medida em que se lhe deva assinalar um regime jurídico próprio,

específico, mantém a sua utilidade dogmática.

Ora, para nós, é precisamente no plano da disciplina substantiva que a tentativa de unificação

do conceito e regime dos contratos da Administração Pública parece verosímil, como o

demonstra, aliás, o facto de, mesmo em países onde é maior a relutância quanto à

admissibilidade desta figura, a doutrina e a jurisprudência acabarem por reconhecer a

necessidade de distinguir, conceituai e materialmente, as diversíssimas espécies de

contratação pública em função da sua maior ou menor conformação jurídico-pública.

E é, portanto, perfeitamente legítimo questionar se é mais vantajoso abranger num só conceito

e regime espécies que se reconhece terem regulamentação diferente ou se mais vale, apesar

das dificuldades de qualificação que a sua dualidade implica, continuar a considerá-las

materialmente como espécies diferentes.

Por outro lado, a tese monista — e o apelo que faz à existência de vinculações jurídico-

públicas mesmo nos contratos privados da Administração — não pode fazer esquecer serem

coisas muito diferentes a limitação (externa) da autonomia privada da Administração pela sua

12 Neste sentido, entre outros, Maria João Estorninho, Requiem ..., cit., pp. 21 e ss. e 77 e ss. (referindo mesmo

que o contrato administrativo não terá passado de um "equívoco histórico") e Ramón Parada, Derecho..., cit., p. 326.

13 Essa afirmação é feita a pensar sobretudo nos contrats administratifs, é dizer, nos contratos administrativos de colaboração.

14 Neste preciso sentido, García de Enterría/Ramón Fernandez, Curso..., cit., p. 683.

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subordinação aos princípios jurídicos fundamentais, de um lado, e a sua actuação como

contraente administrativo dotado de poderes públicos e sujeito a deveres legais, por outro

lado. Ficar a Administração adstrita, nos seus contratos privados, a respeitar os princípios

gerais comuns a toda a actividade administrativa não é o mesmo do que considerá-la sujeita

ao regime de conformidade legal que a vincula enquanto parte de um contrato administrativo.

Mais decisivo é, ainda, o facto de a tese monista parecer colocar o acento tónico da questão da

(in)existência do contrato administrativo na tutela da posição do contraente particular, quando

a figura do contrato administrativo (nasceu e) existe precisamente para evitar que alguns

acordos que a Administração celebra com vista à prossecução de interesses da colectividade

não fiquem sujeitos a um regime (de direito privado) tendencialmente paritário e, de qualquer

forma, neutro e alheio, é dizer, indiferente à presença, aí, de necessidades públicas de

satisfação primacial ou prevalecente.

Analisar o contrato administrativo sem tomar em consideração esta sua vertente de

instrumento de tutela do interesse público — tal como sucede, por exemplo, com o acto

administrativo — é pôr de lado, afinal, a sua razão de ser, aquilo que de mais nuclear essa

figura tem, de servir como meio de garantir a permanente disponibilidade (lato sensu) do

interesse público contratualizado por quem é político-administrativamente responsável,

perante a colectividade, pela sua eficiente satisfação. E é olhar sistematicamente para o

Direito Administrativo como "armadura" dos particulares face à Administração, quando ele

consiste sobretudo num complexo jurídico que disciplina e regula os modos de prossecução e

realização do interesse público, de um interesse que (não sendo propriamente de ninguém) é

de todos, e que, como tal, deve prevalecer15.

Pode até dizer-se que, construído para casos específicos, em que o interesse público em jogo

reclamava uma subordinação especial do co-contratante, o contrato administrativo veio a

alargar-se a muitas outras hipóteses, distintas dessas, perdendo a sua pureza original. Mas o

que há, então, é que purificá-lo, definir-lhe os limites em função da sua ratio, em suma,

15 Em sentido, ao que parece, contrário cf. Vasco Pereira Da Silva, Para um contencioso administrativo dos

particulares, 1989, p. 9 e, depois, Em busca ..., cit., 1996, p. 126, sustentando que "o direito administrativo deixou de ser o direito de uma Administração toda-poderosa, para passar a ser o direito dos particulares nas suas relações com a Administração.

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regressar às origens16 . Na verdade, seja qual for a opção que se venha a tomar nesta matéria,

uma coisa parece certa: as situações contratuais em que a Administração se pode envolver têm

um grau de exigência muito diversos no que toca à realização harmoniosa dos interesses

públicos e particulares aí envolvidos — não se pode pretender que a Administração se

comprometa, durante anos, numa concessão de obra ou de serviço público do mesmo modo

que se compromete, por exemplo, quando adquire uma frota de automóveis para serviço das

suas chefias ou quando contrata a aquisição das resmas de papel de que um seu departamento,

em determinada altura, necessita.

Pretender que relações jurídicas dessas fiquem sujeitas ao mesmo regime substantivo parece-

nos pouco praticável, de consequências jurídicas e sociais indesejadas, esquecendo a própria

"natureza das coisas"17.

Se isso é verdade, como pensamos, ficam em xeque, logo à partida, as premissas em que se

funda a suposta uniformização de toda a actividade contratual da Administração Pública, de

que toda ela é susceptível de pautar-se pelo mesmo regime jurídico, de que é possível uma

teoria única e plenamente integrada, nos seus aspectos fundamentais, dos contratos da

Administração Pública18.

No máximo, parecendo inviável uma planificação total do regime jurídico dos contratos da

Administração Pública, poder-se-ia (unificando o seu regime processual e procedimental)

optar, no plano substantivo, por uma solução à italiana.

16 Aliás, a atribuição a uma única jurisdição da competência para solucionar todos os litígios emergentes das

relações contratuais em que seja parte a Administração Pública pode funcionar mesmo como plataforma para uma "depuração" do contrato administrativo.

É que a dualidade de jurisdição pode ter criado contratos administrativos artificiais, melhor dizendo, "obrigou" a que — na falta de outro instituto capaz de abranger certos casos — se qualificassem como administrativos determinados contratos que pouco têm de administratividade. Exemplo disso são alguns acordos de cooperação entre entidades públicas, cuja disciplina é praticamente (para não dizer na sua totalidade) idêntica à de qualquer contrato civil.

17 Sobre a "natureza das coisas" e as suas implicações na construção e aplicação do Direito, cf. Karl La-Renz, Metodologia da Ciência do Direito, FCG, pp. 506 e ss..

18 Sem prejuízo de se reconhecer que existem alguns espaços comuns para esse estudo (como propõe Maria João Estorninho em Contratos ..., cit., apesar de a A. ir muito mais longe do que iríamos), designadamente em matéria procedimental, aqui inquestionavelmente, e talvez em matéria de contencioso contratual, com dúvidas, e outros até, pois, afinal, é de contratos que se trata, num e noutro caso. Obstáculo a essa teoria integrada são também as enormes diferenças que se verificam dentro da própria categoria dos contratos administrativos, que, como veremos adiante, impedem excessivas generalizações.

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Como se verá, em Itália, grande parte dos contratos celebrados pela Administração encontra-

se subordinada a um regime substantivo de direito privado (é essa, ainda, a tese dominante),

mas isso não significa que haja uma absoluta equiparação normativa entre todos eles, é dizer,

que o direito civil que disciplina os contratos inter privus seja idêntico àquele direito que

regula os contratos da Administração, pois estes (pelo menos alguns deles) estão sujeitos a um

"direito privado especial", posto na lei ou fundado em princípios jurídicos gerais. E além do

direito privado comum, digamos assim, só se aplicar sob reserva de compatibilidade com a

natureza específica desses contratos, reconhece-se à parte pública contratual verdadeiras

prerrogativas de autoridade no seio da execução e extinção do contrato, exercitáveis através

de provvedimenti amministrativi.

Esta solução, que atenuaria os efeitos nefastos da referida uniformização, tem, no entanto,

para nós, algo de artificial e, além disso, suscita o problema da selecção cuidadosa de quais

seriam então aqueles contratos privados da Administração que merecem um tratamento

jurídico especial, sob pena de a referida uniformização resultar afinal numa "especialização" e

dispersão ainda maior do que a que existe na distinção entre contratos administrativos e

privados da Administração.

E dissemos ter algo de artificial, meramente "cosmético", essa solução, porque, afinal, foi a

intuição de que há certos contratos da Administração que não devem ter o mesmo regime de

fundo de outros, que ela também celebra, que deu origem à figura do contrato administrativo.

Além de que, entre nós, os preceitos de lei e os princípios jurídicos postos e nascidos com

base em considerações de interesse público administrativo sempre foram considerados de

direito administrativo, não de direito privado especial.

Adiante, porém. Embora o Direito Administrativo esteja em permanente evolução —

actualizando-se em função da realidade ou conformando, ele mesmo, essa realidade — e deva

ser, portanto, "ponderada" a necessidade dos institutos e das figuras jurídicas com que se lida

quotidianamente, a fim de averiguar da sua subsistência (em função do significado

normativamente útil ou inútil que se lhes empreste), a verdade é que não parece que se

possam uniformizar sob o mesmo regime substantivo contratos em que se jogam interesses de

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natureza e grau tão diverso quanto aqueles que estão presentes, por exemplo, numa concessão

de serviço público ou numa aquisição pontual de material de escritório para um departamento

administrativo.

Do que se disse, resulta assim que a autonomia jurídica do contrato administrativo não tem a

mesma importância em todos os domínios juridicamente relevantes da actividade

administrativa, havendo-os onde ela é essencial e outros em que ela tanto pode existir como

não, sem que isso influencie decisivamente a importância do contrato administrativo enquanto

instrumento específico à disposição da Administração Pública.

Sendo possível desdobrá-la, como se foi vendo ao longo destas páginas, nos planos

procedimental, substantivo e contencioso19, não é necessário que a figura esteja

autonomamente regulada em todos eles, bastando a sua autonomia material ou substantiva

para lhe conferir um lugar entre os institutos de direito administrativo. É ela, portanto, que

deve ser considerada um requisito necessário e ao mesmo tempo suficiente para a

sobrevivência da figura do contrato administrativo. É ela que constitui o factor

metodologicamente decisivo — embora talvez cronologicamente secundário — da disciplina

jurídica específica do contrato administrativo face aos seus congéneres de direito privado e

onde se reflecte directa e paradigmaticamente a distinção entre autoridade e consenso.

Os restantes aspectos (o contencioso e o procedimental) tanto podem existir como não,

dependendo de um mero juízo de oportunidade político-legislativa, que em nada contende

com a sobrevivência ou extinção do contrato administrativo.

3.2.2. A autonomia substantiva do contrato administrativo

19 Assim, Mário Esteves de Oliveira/Pedro Gonçalves/Pacheco de Amorim, Código..., cit, pp. 805 e ss..

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15

A autonomia substantiva do contrato administrativo revela-se no facto de ele investir as partes

numa relação diversa daquela "que resulta para os contraentes que se comprometem no

domínio do direito privado"20.

Independentemente, portanto, do eventual procedimento que haja de preceder a sua

celebração e da existência de uma jurisdição especializada competente para resolver os

litígios que aí se suscitem —que são, repete-se, aspectos contingentes da sua autonomia —, o

regime jurídico substantivo da execução e extinção do contrato administrativo constitui o

punctum saliens sobre a existência nele de dois espaços distintos, de autoridade e de

consenso.

Não quer isto dizer que o contrato administrativo, nesses domínios, nada deva ao seu

congénere de direito privado, porque lhe deve muito, quer em aspectos fundamentais (sentido

e consequências básicas da consensualidade, por exemplo) quer em aspectos ligados ao

próprio desenrolar (normal ou patológico) da relação constituída. Mas é aí, no regime jurídico

da relação contratual, que aparecem as originalidades21 , relacionadas, todas elas, com o facto

de — tal como sucede com os outros instrumentos jurídico-públicos da actuação

administrativa (acto e regulamento) —-também o contrato administrativo se traduzir, a par da

definição das condições da "colaboração" do particular na realização dos interesses da

Administração, num instrumento ou mecanismo para a prossecução (e tutela) desses

interesses públicos.

Ora, como tal factor não é tido em conta na disciplina contratual civil, a sua consideração no

direito contratual administrativo determina, seja por força da lei seja por força de princípios

gerais, a existência de uma regulação própria, específica, que tem em vista a tutela do

interesse público contratualizado.

Por outras palavras, no regime jurídico do contrato administrativo, a lógica da função

(administrativa) introduz variações ou perturbações (mais ou menos extensas) na lógica do

20 Mário Esteves de Oliveira/Pedro Gonçalves/Pacheco de Amorim, Código..., cit, p. 806. 21 Como referem Laubadére/Moderne/Devolvé, Traité..., cit, I, p. 699, "se a teoria do contrato administrativo se

aproxima ainda por esse primeiro traço (da consensualidade) da do contrato civil, é no domínio da execução contratual que ela comporta as suas regras mais originais e que se revela, em relação ao direito privado, o seu particularismo".

No mesmo sentido, Richer, Les contraís administratifs, 1991, pp. 59 e ss..

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pacto (da pura consensualidade)22 . Duas lógicas distintas, portanto, que fundam a sua razão

de ser em considerações (ou "pré-compreensões") bem diversas, sem que, no entanto, uma

delas exclua ou rejeite a outra, antes se combinando e interagindo de uma forma peculiar, para

dar vida a uma figura também ela peculiar: o contrato administrativo.

Para compreender a sua ratio e disciplina é necessário, portanto, partir da premissa de que o

contrato administrativo se caracteriza por dois traços fundamentais: é contrato e é

administrativo23.

De um lado, está o acordo de vontades, elemento constitutivo do contrato, que pressupõe — e

é modo de realização — da autonomia da vontade (pública e privada). Do outro, a relação

contratual administrativa assim constituída, assente na prevalência funcional do interesse

público. E é precisamente na dialéctica entre estas duas ideias, que acompanha toda a sua

vida, que se encontra o carácter sui generis da figura. Sendo que aquela funcionalização do

contrato administrativo apresenta como possíveis consequências imediatas, além da aplicação

primária de normas administrativas, o afastamento da aplicação pura e simples das regras

civis às relações contratuais administrativas, sujeitando-as a um teste prévio de não-

incompatibilidade — podendo resultar daí a sua inaplicação absoluta ou relativa (ou seja,

adaptada) —- e a atribuição de posições jurídicas supra-ordenadas à Administração

contraente, consubstanciem-se elas em direitos potestativos ou em actos administrativos.

Afirmar a autonomia do contrato administrativo não é dizer, porém, que este se encontra nos

antípodas do contrato civilista ou, iria dar no mesmo, que o regime jurídico da relação

contratual administrativa representa a negação, a antítese, ponto por ponto, do regime jurídico

da relação contratual civil. Não é nisso que se funda a afirmação da autonomia daquela face a

esta nem a isso conduzem as razões da sua génese como figura diversa do contrato de direito

privado.

Na verdade, por razões históricas bem conhecidas, as instituições básicas do Direito foram

elaboradas e conformadas dogmaticamente no direito civil 24 e é natural, por isso, que o Direito 22 Assim, Liberati, Consenso e funzione nei contratti di diritto pubblico tra amministrazioni e privati, 1996, pp.

71, 156 e 264. 23 Fomos buscar esta ideia a Freitas Do Amaral, Curso..., cit., I, p. 365, que a utiliza para explicar o que é uma

empresa pública (em sentido clássico), dela fazendo uso, também, Vital Moreira, Administração ..., cit., pp. 387 e ss., para explicar em que consistem as associações públicas.

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Administrativo se tenha aproveitado, na construção do seu sistema, de muitas dessas

instituições, por forma a dotar a Administração dos instrumentos jurídicos necessários ao

cumprimento da missão de que foi político-legislativamente incumbida25. Esse recurso ao

direito privado não se fez, no entanto, sem mais. Aproveitaram-se as suas instituições, é certo,

mas moldando-as e conformando-as com as exigências do interesse público, daí resultando

figuras autónomas, que combinam alguns dos traços da sua origem (civil) com outros

desenhados pelo Direito Administrativo, que as ia utilizar26.

O contrato administrativo, para o ser, não implica, portanto, a sujeição a um regime jurídico

absolutamente diverso do que se assinala ao contrato privado, não exige uma regulação tão

excepcional e aberrante que, de contrato, passasse a contreto27, mas apenas uma

particularidade relativa, fundada na própria autonomia do direito administrativo enquanto

complexo de normas que disciplina a gestão da res publica.

Rematamos, recordando as palavras serenas de Garcia de Enterria/Ramón Fernandéz a este

propósito, quando escrevem que "no Direito Administrativo, como direito próprio das

Administrações Públicas enquanto sujeitos, conformam-se as instituições jurídicas gerais em

conformidade com as exigências das actividades próprias de tais sujeitos. O caso do contrato

não é o único, que o problema não há-de colocar-se em termos de singularidade ou

exorbitância, mas sim, mais simplesmente, sem dramatismos, interrogando quais são essas

modulações ou variantes que a presença subjectiva da Administração introduz sobre a

abstracta instituição contratual"28.

24 García De Enterria/Ramón Fernández, Curso ..., cit, I, p. 680. 25 Daí, muitas vezes, a "tentação" de reconduzir muitas dessas figuras à sua suposta origem (civil) ou, pelo

menos, a uma outra, deste ramo, na qual se pudessem subsumir (veja-se, entre tantas outras, as controvérsias a propósito do direito de propriedade v. domínio público, negócio jurídico unilateral v. acto administrativo e, claro, contrato privado v. contrato administrativo).

26 Neste sentido, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 1980,1, p. 63. 27 García de Enterría, considerando de pura logomaquia a objecção de que o contrato administrativo repugna ao

conceito de contrato, fundado na mais rigorosa igualdade das partes, afirmava que, se fosse necessário para afastar esse jogo de palavras, mais valia designá-lo concreto em vez de contrato, tal como Don Miguel de Unamumo chamou "nivola" a uma novela que não cumpria os cânones clássicos, evitando assim eventuais críticas — cf. Ramón Parada, Derecho..., cit., p. 342.

28 García de Enterria/Ramón-Fernandéz, Curso..., cit., p. 680. Retirou-se da citação a referência que os autores fazem à "substancialidade" ("em termos de singularidade,

substancialidade ou exorbitância"), porque essa expressão é utilizada aí num contexto e com um significado completamente diferente — substancialidade no sentido de o contrato administrativo ser algo de diferente, na sua natureza ou substância, do contrato privado (e isso não se aceita, por isso se fala hoje, na Espanha, na

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Capítulo II — Modificação do contrato e alteração das circunstâncias do contrato

4. O contrato administrativo e o princípio da pacta sunt servanda: uma relação sui

generis

A pacta sunt servanda, com as consequências e remédios que lhe vão associados, é a garantia

de que o contrato servirá essa função de orientar vinculativamente o comportamento das

partes.

apesar de o contrato de concessão constituir a favor do concessionário certos e determinados

direitos (entre os quais avulta o direito de explorar o serviço público pelo prazo estipulado),

que gozam de protecção jurídica29, a verdade é que se trata de direitos que, no confronto com

a Administração, não beneficiam de uma tutela plena – trata-se de direitos enfraquecidos, que

“podem, por força da lei ou por força de acto administrativo com base na lei, ser sacrificados

através do exercício legítimo de poderes da autoridade administrativa”30, isto é, de “poderes

antitéticos”31, destinados a suprimir ou extinguir esses direitos – como é o

5. A modificação do texto e do contexto do contrato administrativo

"revisión de Ia doctrina substantivadora dei contrato administrativo"), não no sentido, que aqui utilizamos, de regime substantivo diverso do contrato civil (substancialidade essa que García de Enterría/Rámon Fernández não teriam, perdoe-se-nos o abuso, dificuldade em subscrever).

29 Assim, Pedro Gonçalves, A concessão de serviços públicos, 1999, pág. 344. 30 Vieira de Andrade, A justiça administrativa, 5.ª ed., 2004, pág. 76. 31 Mário Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, 1980, pág. 360.

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Há uma importante, mesmo se elementar, distinção a fazer entre modificação do texto do

contrato administrativo e modificação do seu contexto, digamos assim, ou, se se preferir,

entre modificação do contrato e alteração das circunstâncias do contrato.

As duas situações têm inúmeros pontos de contacto, e é justamente por essa razão que são por

vezes confundidas, tornado ainda mais complexa uma matéria que só por si já encerra uma

assinalável dificuldade.

Na verdade, tanto pode falar-se na modificação do contrato como algo que se incrusta no

texto ou no clausulado do negócio, alterando-o, como pode querer fazer-se antes referência a

um evento que altera o contexto em que se desenvolve ou executa o contrato. Ele, em si

mesmo, olhando às suas cláusulas, é o mesmo, mas os factores externos em que se processa a

sua execução ou cumprimento são diferentes.

São, não é preciso referi-lo, casos muito distintos.

É verdade que uma modificação do contrato pode ter na sua base uma alteração das

circunstâncias; não é forçoso que seja assim, mas pode de facto introduzir-se uma

modificação num contrato com fundamento em alteração das circunstâncias. Da mesma

forma, uma alteração das circunstâncias pode determinar uma modificação do contrato;

também não é forçoso que seja assim, mas uma das possíveis consequências da alteração das

circunstâncias é a modificação do contrato.

Apesar destas ligações e interconexões, é fundamental ter presente o que é a causa e o que são

os seus efeitos, sob pena de se cair em equívocos e de se perder o que é próprio de cada

figura. Até porque a sucessão de eventos não é rara nestes casos: uma modificação do

contrato decretada pelo contraente público com base em exigências supervenientes de

interesse público — que em si mesma configura para o cocontratante uma alteração das

circunstâncias — pode justificar uma nova modificação do contrato a pedido do

cocontratante.

Uma modificação de um contrato significa uma modificação do clausulado do contrato, dos

termos convencionados pelas partes, uma modificação do texto do contrato, do feixe de

direitos e/ou obrigações das partes. Por exemplo, o cocontratante devia prestar o serviço

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20

publico concedido em certos termos, de acordo com determinadas especificações técnicas,

contratualmente previstas, e passa agora, porque as partes assim o previram, a ter de o

executar de outra forma, com observância de diferentes especificações técnicas. O

cocontratante devia executar a obra pública em certo prazo, contratualmente acordado, e passa

entretanto a ter de a concluir noutro. É por essa razão que Pedro Costa Gonçalves, quando se

referia ao poder de modificação unilateral, distinguindo-o de outras figuras, afirmava que do

seu exercício resultava um acto que tinha o “contrato por objecto” (PGON, 260), introduzindo

uma alteração directa da posição jurídica contratual das partes.

Uma modificação do contrato só pode portanto resultar de um acto voluntário (unilateral ou

bilateral), de um “acto inteligente”, que tenha como efeito prototípico introduzir uma

modificação ao texto do acordo.

A alteração das circunstâncias subjacentes ao contrato, além de poder resultar tanto de um

acto voluntário como de um acto não voluntário (fortuito ou da natureza), não se traduz numa

alteração do texto do contrato, mas do contexto (económico, social, técnico, jurídico,

ambiental, fiscal, etc.) em que ele se desenvolve.

A modificação das circunstâncias subjacentes ao negócio administrativo, à base contratual

administrativa, configura assim uma alteração das condições em que as partes fundaram a sua

decisão de contratar e que, sem alterar directamente o feixe de direitos e obrigações que entre

elas intercede, que se mantém o mesmo, tem influência na economia do contrato. Estão aqui

em causa, portanto, alterações exteriores ou extrínsecas ao contrato, mas que se projetam,

favorável ou desfavoravelmente, no seu equilíbrio económico-financeiro.

A distinção, porém, nem sempre aparece devidamente reflectida na lei, seja porque, umas

vezes, se usa a mesma expressão ou conceito para exprimir realidades que são diferentes, seja

porque, outras, se confundem as duas realidades.

Por exemplo, o modo como no artigo 314º/1 do CCP o legislador se reporta aos casos que dão

direito a reposição do equilíbrio financeiro por parte do cocontratante — referindo que o

“cocontratante tem direito à reposição do equilíbrio financeiro (…) sempre que o fundamento

para a modificação do contrato seja” um caso de alteração das circunstâncias [alínea a)] e um

caso de modificação do contrato [alínea b)] — mostra haver aí uma certa confusão, pois,

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como já foi assinalado pela doutrina, num caso [o da alínea b)] é a modificação do contrato

que altera o seu equilíbrio financeiro, podendo dar lugar a uma outra modificação (vg, as suas

cláusulas financeiras), noutro [o da alínea a)], é a eventual modificação do contrato que

recupera o seu equilíbrio financeiro32.

5.2. A classificação das modificações do contrato administrativo

A classificação dos casos que podem estar na base de uma modificação do contrato

administrativo encerra uma complexidade assinalável, decorrente, é verdade, da enorme

heterogeneidade dos vários tipos que podem construir-se para o efeito, mas sobretudo porque

o conceito de modificação pode ser utilizado para hipóteses substancialmente diferentes.

Com efeito, como vimos atrás, tanto pode falar-se na modificação do contrato como algo que

se incrusta no texto ou no clausulado do negócio, alterando-o, como pode querer fazer-se

antes referência a um evento que altera o contexto em que se desenvolve o contrato. São

evidentemente casos muito distintos. É verdade que uma modificação do contrato pode ter na

sua base uma alteração das circunstâncias; não é forçoso que seja assim, mas pode de facto

introduzir-se uma modificação num contrato com fundamento em alteração das

circunstâncias. Da mesma forma, uma alteração das circunstâncias pode determinar uma

modificação do contrato; também não é forçoso que seja assim, mas uma das possíveis

consequências da alteração das circunstâncias é a modificação do contrato.

Apesar destas ligações e interconexões, é absolutamente fundamental ter bem presente o que é

a causa e o que são os seus efeitos, sob pena de se cair em equívocos e de se perder o que é

(deve ser) próprio de cada figura. Até porque a sucessão de eventos não é rara nestes casos:

uma modificação do contrato decretada pelo contraente público com base em exigências

supervenientes de interesse público pode justificar uma nova modificação do contrato a

pedido do co-contratante.

32 Costa Gonçalves [ (…): 40 e seguintes], depois acompanhado por Vieira de Andrade [A propósito: 31 e 32],

Aroso de Almeida [

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22

Uma modificação de um contrato só pode resultar de um acto que tenha como efeito

prototípico introduzir uma modificação ao texto do acordo, ou seja, só pode resultar de um

acto voluntário (que se quer) e intencional (que se quer com aqueles efeitos). Uma alteração

das circunstâncias subjacentes a um negócio pode resultar tanto de um acto voluntário

(intencional ou não, com o sentido atrás assinalado), como de um acto não voluntário (fortuito

ou da natureza).

Consideramos pois que, para tentar definir os vários tipos de modificações, é essencial ter

presente de que instituto se está a falar.

Assim, a primeira e mais importante distinção é a que separa a modificação do contrato

administrativo da modificação das circunstâncias subjacentes ao contrato administrativo.

No primeiro caso, do que se trata é de uma modificação do texto do contrato, feixe de direitos

e/ou obrigações das partes, de algo que, tendo o contrato por objecto (PGON, 260), introduz

uma alteração directa da posição jurídica das partes. Por exemplo, um dos contraentes prestar

o serviço publico concedido em certos termos, de acordo com determinadas especificações

técnicas, contratualmente previstas, e passa agora a ter de o executar de outra forma, com

observância de diferentes especificações técnicas. Um dos contraentes devia executar a obra

pública em certo prazo, contratualmente acordado, e passa entretanto a ter de a concluir

noutro.

A modificação do contrato, no sentido aqui proposto, configura portanto uma alteração directa

das condições de execução do contrato.

A modificação das circunstâncias subjacentes ao negócio administrativo, à base contratual

administrativa, por sua vez, não se traduz numa alteração do texto do contrato, mas do

contexto (económico, social, técnico, jurídico, ambiental, fiscal, etc.) em que ele se

desenvolve. Do que se trata agora é de uma alteração das condições em que as partes

fundaram a sua decisão de contratar e que, sem alterar directamente a sua posição jurídica

contratual, que se mantém a mesma, tem influência na economia do contrato. Estão aqui em

causa, portanto, alterações exteriores ou extrínsecas ao contrato, mas que se projetam,

favorável ou desfavoravelmente, no seu equilíbrio económico-financeiro.

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23

Dentro destas, podemos distinguir, consoante a incidência (mais ou menos abrangente) da

alteração, a modificação das circunstâncias gerais subjacentes ao acordo, que afectam a

generalidade dos cidadãos ou das empresas, e a modificação de aspectos específicos

subjacentes ao acordo, que afectam um determinado contratante (ou um conjunto determinado

e divisível de contratantes). Por exemplo, o aumento (ou diminuição) da taxa de IRC é uma

modificação das circunstâncias gerais que contextualizam a execução de um contrato com

uma pessoa colectiva, a construção de uma nova infraestrutura rodoviária concorrente de

outra já existente configurará, para esta, ou seja, para o operador encarregado da sua

exploração, uma modificação de caráter específico.

O critério, aqui, note-se, não se reconduz à matéria sobre que versa a alteração, mas à

incidência do evento em causa. Por exemplo, a criação de um imposto ou de uma taxa que

recaia apenas sobre certos contratantes (de infraestruturas rodoviárias, de gestão de

estabelecimentos públicos de saúde, etc.) é, apesar da sua natureza fiscal ou tributária, uma

modificação das circunstâncias específicas em que se executam ou desenvolvem esses

contratos.

Uma outra classificação possível distingue, consoante a natureza da modificação, entre

modificação de direito e modificação de facto. A primeira corresponde à modificação jurídica

e formal, que introduz uma efectiva alteração no texto do contrato administrativo ou no seu

regime, tal como clausulado. A segunda corresponde a uma omissão do contraente público, a

uma tolerância sua com o incumprimento do contrato por parte do cocontratante. Ou seja, em

certo sentido, pode dizer-se que a modificação do contrato, em algumas situações, “may be

achieved by simply disregarding the terms of the contract”33. Assim, se, apesar de o contrato

estipular que um produto devia ser entregue em certa data com certas especificações, o

contraente público condescende ou pactua com a entrega, por parte do cocontratante, desse

produto mais tarde e com outras especificações, não retirando daí qualquer consequência, há,

em certo sentido, uma modificação de facto do contrato. Da mesma forma, se, de acordo com

o contrato de empreitada de obra pública, a construção da estrada devia fazer-se com certos

33 Omner Dekel, Modification of a Government Contract Awarded Following a Competitive Procedure, PCLJ,

vol. 38, nº 2, 2009, p. 408.

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materiais e é feita com outros, menos nobres, e o contraente público tolera ou anui com tal

circunstância, não retirando daí qualquer desvantagem para o cocontratante, pode dizer-se

que, em certo sentido, o contrato foi de facto modificado.

A chamada modificação de facto depende, no entanto, de alguns requisitos. Com efeito, um

comportamento contrário ao contrato por parte do cocontratante e a falta de reacção a esse

comportamento faltoso por parte do contraente público configuram, em princípio — se não

houver justificação especial para qualquer deles —, um incumprimento do contrato por acção

e um incumprimento do contrato por omissão (ou, dependendo dos casos, uma falta ilícita de

exercício dos poderes públicos sancionatórios), respectivamente. E é assim que devem ser

tratados, para todos os efeitos.

No entanto, se houver um acordo tácito entre os dois contraentes para que as coisas se passem

dessa forma irregular, se dos seus comportamentos puder retirar-se de maneira concludente

uma intenção de, por via velada, modificar os termos do contrato, actuando como se o acordo

fosse outro que não o efectivamentre celebrado, pode concluir-se que eles quiseram

efectivamente modificar o contrato, ou seja, passa a haver também uma modificação de facto

do contrato.

Recusar a figura seria centrar a atenção na forma e não na substância e deixaria fora do

controlo da legalidade da modificação do contrato situações que juridicamente devem ser

tratadas como tal, designadamente, para efeitos de controlo por parte de terceiros interessados

ou de entidades fiscalizadoras.

Assim, quando não tenha de observar a forma escrita — porque o contrato também não carece

de ser celebrado por escrito [por aplicação conjugada do artigo 311º/1, alínea a), e do artigo

95º, ambos do CCP] —, a modificação do contrato (por acordo tácito entre as partes) deve,

pelo menos, ser avaliada em função dos limites (internos e comunitários) postos à

modificação do contrato. Quando tenha de observar a forma escrita — porque o contrato

também foi celebrado por essa ou mais solene forma [por aplicação conjugada do artigo

311º/1, alínea a), e do artigo 95º, ambos do CCP] —, a modificação de facto do contrato será

ilegal com esse fundamento, mas deve também, porque daí podem resultar diferentes

consequências jurídicas, em função dos limites (internos e comunitários) postos à modificação

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do contrato (pode, por exemplo, considerar-se que a modificação sem forma escrita pode ser

passível de regularização, o que já não sucederá se ela também for ilegal por violação de tais

limites).

Critério da autoria

Os contratos administrativos podem ser modificados pelas partes, por acordo entre si, pelo

contraente público, por decisão sua, e pelos tribunais (administrativos ou arbitrais, salvo

havendo lei especial que atribua aos tribunais ditos judiciais competência para conhecer dos

litígios emergentes de um ou outro contrato administrativo, caso em que eles podem

modificar esse contato nos mesmos termos em que os administrativos o podem fazer, ou seja,

de acordo com o CCP). São estas as hipóteses previstas no artigo 311º do CCP.

No entanto, os contratos administrativos também podem ser modificados, nas suas cláusulas,

que não apenas nas suas circunstâncias, pelo legislador (ou pela própria Administração

Pública, incluindo a que tenha formato de direito privado, através de regulamento). O CCP

não se refere especificamente a esta hipótese, mas há muito que ela é objecto da atenção da

doutrina, devendo portanto encontrar-se para ela uma solução adequada (ver ponto […]).

Critério da forma do acto de modificação

De acordo com o critério da forma do acto de modificação, pode distinguir-se entre as

modificações resultantes de acordo entre as partes, de acto administrativo praticado pelo

contraente público ou de decisão judicial ou decisão arbitral.

Nas primeiras, tanto pode tratar-se de acordo escrito (ou com forma mais solene) como de

acordo verbal: tudo depende da forma do contrato que se pretende modificar [ver artigo

311º/1, alínea a), e artigo 95º, ambos do CCP].

As modificações acordadas pelas partes são uma manifestação da liberdade contratual, da

autonomia da vontade que, embora com limites, vigora também no direito dos contratos

administrativos. Por outras palavras, embora não seja tão extensa quanto a autonomia da

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vontade em direito civil34, a autonomia pública em matéria contratual envolve seguramente a

possibilidade de o contraente público celebrar com o seu cocontratante adicionais,

aditamentos ou outros acordos modificativos das cláusulas inscritas no pacto inicial35.

Era isso aliás o que decorria do antigo artigo 178º/1 do CPA, que, ao qualificar como

administrativo o acordo de vontades pelo qual é modificada uma relação jurídica

administrativa, acabava por reconhecer, ainda que apenas implicitamente, a legitimidade dos

“contratos que alterem as cláusulas de contratos anteriores”36. Hoje, porém, essa possibilidade

está expressamente consagrada no artigo 311º/1, alínea a), do CCP, embora se trate, bem

vistas as coisas, esse poder de os outorgantes modificarem, por mútuo consentimento, o

acordo que inicialmente firmaram, de uma faculdade natural do direito dos contratos, que não

careceria de previsão legal administrativa expressa, sendo suficiente para o efeito chamar à

colação o disposto na parte final do artigo 406º/1 do Código Civil, onde se prevê que o

contrato “pode modificar-se (...) por mútuo consentimento dos contratantes”, consentimento

ou acordo que, em si mesmo, é de qualificar como administrativo.

De facto, tal como pode suceder com quaisquer sujeitos num qualquer acordo (civil,

comercial, laboral, etc.), também o contraente público e o seu cocontratante podem sentir,

pelos mais variados e diferentes motivos, a necessidade ou reconhecer a oportunidade de, aqui

ou ali, mais profundamente ou só em questões de pormenor, dar uma nova configuração às

cláusulas constantes do trato originário.

E se já é assim em geral, mais o há-de ser em relação a contratos administrativos de execução

continuada e duradoura, nos quais é perfeitamente normal que surja, por exemplo, uma

concepção diferente das partes sobre este ou aquele aspecto contratual ou, então, que ocorram

vicissitudes e circunstâncias imprevistas e não ponderadas, a justificar a introdução de

modificações ao contrato inicial.

34 V., sobre esta matéria, Sérvulo Correia, Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos,

Coimbra, 1987, pp. 705 e ss. e os artigos publicados na AJDA – L’actualité juridique. Droit Administratif, nº 9, 1998, a pp. 643 e ss., sobretudo, os de Christine Bréchon-Moulènes ("Liberté contractuelle des personnes publiques") e de Christine Maugüé ("Les variations de la liberté contractuelle dans les contrats administratifs").

35 Assim, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10ª Ed., vol. I, p. 618. 36 Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2001, vol. II, p. 559.

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A primeira é a modificação resultante do exercício do poder público de autoridade de que é

manifestação o acto administrativo.

Depois, pode ainda distinguir-se, de acordo com o critério da sua previsão no regime do

contrato, entre as modificações previstas e as modificações imprevistas. Não nos referimos,

note-se, à previsão da possibilidade de modificação do contrato, em geral, porque essa está

hoje regulada no artigo 311º do CCP, mas à previsão, nas cláusulas do contrato, de ser

introduzida uma certa modificação.

Critério do fundamento

De acordo com o artigo 312º do CPC, há dois fundamentos para a modificação do contrato

administrativo, a saber:

— Alteração anormal e imprevisível das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão

de contratar, desde que a exigência das obrigações por si assumidas afecte gravemente os

princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato;

— Razões de interesse público decorrentes de necessidades novas ou de uma nova

ponderação das circunstâncias existentes.

No entanto, como parece resultar do artigo 311º/2, o poder de modificação unilateral não pode

ter como fundamento autónomo a referida alteração anormal e imprevisível das

circunstâncias, mas apenas as tais razões de interesse público, proposição que parece sair

corroborada pelo disposto no artigo 307º/2, alínea b), onde, a propósito da natureza das

declarações do contraente público, se afirma revestirem natureza de acto administrativo as

declarações que se traduzam na “modificação unilateral das cláusulas respeitantes ao

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conteúdo e ao modo de execução das prestações previstas no contrato por razões de interesse

público”.

O regime é no entanto diferente em matéria de resolução do contrato. Na verdade, o artigo

334º atribui ao contraente público o poder de resolver o contrato por razões de interesse

público — como sucede em sede de modificação unilateral —, mas logo depois o artigo 335º

reconhece-lhe também o direito à resolução do contrato com fundamento na alteração anor-

mal e imprevisível das circunstâncias, remetendo expressamente para a alínea a) do artigo

312º a propósito dos requisitos em que tal opção pode ser exercida37.

Assim, se é verdade que a alteração anormal e imprevisível das circunstâncias é fundamento

da modificação do contrato, essa modificação ou é acertada por acordo entre as partes ou

depende de decisão judicial ou arbitral, não abrindo a porta à modificação unilateralmente

imposta por acto do contraente público.

A solução do CCP parece ser a mais equilibrada.

Por um lado, porque está em sintonia com a matriz originária do poder de modificação

unilateral, cujo fundamento sempre foi o interesse público implicado no objecto do contrato e

não a alteração das circunstâncias.

Por outro lado, enquanto em matéria de interesse público o contraente público tem um juízo

especializado, que resulta de uma especial posição sua de garante da contínua

37 Outra questão diferente é saber se a resolução do contrato com fundamento na alteração das circunstâncias

resulta do exercício de um poder público de autoridade (através portanto de acto administrativo) ou se se trata antes de um mera declaração negocial. Neste último sentido, já ao abrigo do CCP, cf. Rebelo de Sousa/Salgado de Matos, Contratos Públicos, pp. 154-155, e Mário Aroso de Almeida, “Contratos administrativos e poderes de conformação do contraente público no novo Código dos Contratos Públicos”, pp. 14-15, e […]. Antes do CCP, Pedro Gonçalves, O contrato administrativo, pp. 126 e 136, também separa o poder de resolução unilateral, por razões de interesse público, do direito à resolução do contrato por alteração anormal e imprevisível de circunstâncias, que, na ausência de acordo, qualquer das partes poderia fazer valer através dos tribunais.

No entanto, como bem observa Aroso de Almeida, […], “não pode deixar, no entanto, de notar-se que, tanto a alínea e) do artigo 302º, como a alínea d) do nº 2 do artigo 307º, se referem genericamente a um poder do contraente público de resolução unilateral do contrato, sem especificar que esse poder só se pode fundar em razões de interesse público; e, por outro lado, a alínea c) do artigo 330º, ao referir-se às hipóteses em que a resolução do contrato resulta de decisão do contraente público, não remete apenas para os artigos 333º e 334º, mas também para o artigo 335º”.

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instrumentalização do contrato às necessidades da colectividade, o mesmo já não sucede na

parte relativa à alteração anormal e imprevisível das circunstâncias, em que o seu juízo não se

suporta em qualquer competência técnica ou político-administrativa. Por outras palavras,

aqui, o juízo do contraente público está em paridade com o juízo do cocontraente, não

havendo motivos para fazer sobrepor juridicamente o primeiro sobre o segundo.

Em terceiro lugar, o CCP apenas exclui a alteração anormal e imprevisível das circunstâncias

enquanto fundamento autónomo de uma modificação unilateral do contrato, mas nada

impede, pelo contrário, que essa alteração seja invocada se e na medida em que haja

projecções suas em matérias de interesse público, ou seja, uma alteração tal que implique

“necessidades novas” ou das quais resulte “uma nova ponderação das circunstâncias

existentes”. Por outras palavras, a alteração anormal e imprevisível das circunstâncias não

pode ser fundamento autónomo de uma modificação unilateral, mas pode acontecer que, com

base nelas, possam invocar-se fundamentadamente “razões de interesse público”.

E consideramos boa esta solução mesmo quando a confrontamos com aquela outra que

confere o direito à resolução do contrato pelo contraente público em caso de alteração

anormal e imprevisível das circunstâncias (artigo 355º do CCP).

Em primeiro lugar, porque essa é uma hipótese típica do direito dos contratos, inscrita no

artigo 437º do Código Civil, que não há motivo para afastar do domínio dos contratos

administrativos. Em segundo lugar, porque, segundo a posição maioritária da doutrina

portuguesa, do que se trata aí é de uma resolução pedida pelo contraente público, mas

decretada pelo tribunal, e não de um poder público de autoridade do contraente público.

Depois, porque, mesmo que fosse de admitir a resolução unilateral com fundamento na

alteração anormal e imprevisível das circunstâncias, […].

Voltemos então ao fundamento legal da modificação unilateral, para procurar saber em que

consistem as tais “razões de interesse público decorrentes de necessidades novas ou de uma

nova ponderação das circunstâncias existentes”.

As razões de interesse público são motivos concretos relacionados com o interesse público

implicado em determinado contrato administrativo,

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30

Por seu lado, as “necessidades novas”, mas implicadas no contrato / previsíveis /

conhecimento superveniente.

Note-se, por outro lado, que essas necessidades novas não têm de assentar qualquer facto de

natureza técnica, social ou económica38,

E, por último, temos a “nova ponderação das circunstâncias existentes”.

A questão que podia colocar-se era saber se o contraente público poderia exercer o seu poder

de modificação unilateral, alterando os contratos administrativos, sem que tenha havido

qualquer modificação das circunstâncias que ele teve presente (ou ambas as partes tiveram

presentes) na altura do acordo, ou seja, se basta uma alteração dos juízos administrativos (ou

mesmo político-administrativos) subjacentes à vontade negocial do contraente público.

O legislador respondeu de forma clara ao problema, afirmando, como era já doutrina

maioritária, que o exercício do poder de modificação unilateral poderá também resultar de

uma circunstância de ordem política39 ― a exigir uma referência objectiva (e fundamentada)

ao melhor interesse da colectividade ― , é dizer, de uma ideia de inconveniência

administrativa da manutenção dos termos do contrato à luz das novas considerações que o

contraente público faça hoje sobre a óptima ou a mais eficiente forma de prossecução do

interesse público “contratualizado”.

6. Os princípios e institutos administrativos associados à modificação do contrato e à

alteração das suas circunstâncias

Considerações gerais

38 Apesar de, mesmo aqui, não ser exigível a verificação dos apertados pressupostos do artigo 437º do Código

Civil. 39 Assim, Marcello Caetano, Manual …, cit., p. 588.

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31

A modificação do contrato e a alteração das suas circunstâncias giram em torno de várias

figuras cujos contornos não se encontram bem definidos, podendo mesmo dizer-se que, até à

entrada em vigor do CCP — que trouxe uma nova regulação na matéria —, o problema se

vinha desde há muito complicando na doutrina (sobretudo estrangeira, mas também

portuguesa), sendo muito difícil encontrar uma posição dominante na matéria.

Além disso, podem combinar-se neste tema da estabilidade ou instabilidade do contrato

administrativo, de um lado, figuras de natureza ou base eminentemente contratual e outras de

fundamento geral, até mesmo primário, do nosso sistema jurídico, e, de outro lado, umas

associadas ao regime dos contratos administrativos, outras mais associadas ao regime dos

contratos regulados pelo Código Civil, acontecendo até parte delas partilharem um regime

jurídico comum ou muito similar.

O princípio da protecção da confiança

A tutela da confiança, enquanto princípio estruturante de qualquer sistema jurídico fundado

na ideia de Estado de Direito, ocupa certamente um lugar privilegiado no quadro dos

princípios por que se rege a actividade dos poderes públicos, seja qual for a forma por que ela

se manifeste40.

Há portanto, no direito administrativo, uma “responsabilidade pela declaração”, no sentido de

que os cidadãos devem poder confiar que aos seus actos ou às decisões dos órgãos públicos

40 Assim, quando esteja em causa a função legislativa, o princípio da proteção da confiança funda-se no art. 2º

da CRP; quando esteja em causa a função administrativa, esse princípio entronca mais directamente no art. 266º/2 da CRP e no art. 6º-A do CPA, sendo visto como uma derivação ou corolário do princípio da boa-fé.

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que se repercutam na sua esfera jurídica se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no

ordenamento jurídico41.

No entanto, para que o princípio da tutela da confiança seja concretamente operativo é

necessário que haja uma ligação especial, um vínculo específico entre o autor a quem é

imputada a situação de confiança e o confiante, ou seja, que haja uma verdadeira relação de

confiança. E, entre os vários pressupostos que devem verificar-se para que possa afirmar-se

essa relação de confiança, conta-se o do investimento da confiança, o “desenvolvimento

efectivo de actividades jurídicas assentes sobre a crença consubstanciada”42. Por outras

palavras, é necessário que o confiante, por ter depositado fé numa dada declaração de outrem,

tendo adoptado uma certa conduta que, não fosse aquela declaração, não teria adoptado (ou

pelo menos não teria adoptado nos termos em que o fez).

A confiança há-de ser legítima, ou seja, que, atendendo ao contexto jurídico da declaração, às

regras e princípios por que ela se pauta, possa afirmar-se ser juridicamente justificada a

confiança que se invoca.

Ora, sabe-se bem que as opções públicas em matéria de gratuitidade dos serviços públicos são

opções precárias, necessariamente subordinadas aos ditames de novas orientações político-

legislativas, e são também opções naturalmente feitas sob reserva do possível43, para manter

se e enquanto o estado das finanças públicas o permita, permanecendo por isso na plena

disponibilidade dos órgãos públicos o poder de decidir de modo diverso ao que até então

vigorou.

Sustentar coisa diferente seria sustentar haver aqui, em matérias tão delicadas e fundamentais,

uma espécie de proibição de retrocesso tributário: o carácter gratuito de que, em dada altura e

em determinado contexto, gozasse um serviço público como que se cristalizaria na esfera

jurídica dos respectivos utentes (enquanto direito a uma prestação gratuita), tornava-se

irreversível, impedindo o Estado de ― mesmo quando isso fosse resultado de uma nova

41 Neste sentido, Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 2000, p. 252. 42 Freitas do Amaral, Curso …, cit. p. 137. 43 Salvo, claro, quando haja heterodeterminação constitucional nesse sentido, como acontece, por exemplo, com

a tendencial gratuitidade dos graus de ensino [ver art. 74º/2, alínea e), da CRP].

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orientação política transversal ou, então, exigido pelo estado das contas públicas ― tributar

esses serviços.

Resultado que, além de não ter qualquer suporte constitucional (muito pelo contrário), se nos

afigura inadmissível, por entendermos que em todos esses casos há-de manter-se sempre a

plena liberdade de conformação do Estado em matéria de tributação de serviços públicos.

No caso em apreço, isto só não seria assim se houvesse algum vínculo contratual que ligasse

Concedente e/ou Concessionárias, de um lado, e utentes, do outro, do qual resultasse um

direito subjectivo destes à utilização gratuita das auto-estradas por todo o tempo por que

durasse a concessão e, portanto, um direito que representaria um limite jurídico aos poderes

públicos de autoridade que o Concedente dispõe em sede de alterabilidade ou

modificabilidade dos contratos administrativos.

Mas esse vínculo contratual, como bem se sabe, não existe. Em primeiro lugar, porque a

cláusula ou a base da concessão onde se estabelece a gratuitidade do uso comum rodoviário,

embora projecte também os seus efeitos sobre a esfera jurídica dos utentes, vai buscar essa

eficácia, não a um qualquer acto de consentimento (expresso ou tácito) destes últimos – tanto

que, como é evidente, ela (cláusula) vale mesmo contra declaração de vontade em sentido

contrário –, mas à sua natureza regulamentar, ou seja, ao facto de ela constituir, para os

utentes, uma medida relativa à organização e ao modo de prestação do serviço ou utilidade

pública em causa.

Em segundo lugar, porque, ao contrário do que pode acontecer nas concessões de serviço

público, nas concessões de obras públicas não se estabelece qualquer contrato entre o

concessionário e o utente a propósito da utilização do domínio público. O direito de utilização

ou de uso comum das auto-estradas não pressupõe nem resulta de qualquer negócio ou acordo

entre eles, decorre, sim, directamente do ordenamento jurídico geral.

É verdade, por outro lado, que se tem vindo a admitir na doutrina e na jurisprudência ― mas

muito longe de ser posição dominante ou pacífica ― que, para alguns efeitos,

designadamente, para efeitos de responsabilidade por acidentes de viação, o contrato

administrativo de concessão (rectius, algumas das suas cláusulas) valha ou funcione como um

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34

contrato com eficácia de protecção para terceiros44 ou até mesmo como um contrato a favor de

terceiros45/46. Apesar das enormes dúvidas que temos sobre a propriedade jurídica destas

figuras para explicar os efeitos relativamente a terceiros de algumas cláusulas concessórias ―

que até hoje têm sido encarados pela doutrina administrativa como resultado da eficácia

regulamentar dessas cláusulas47 ―, o certo é que nem mesmo a hipótese do contrato a favor de

terceiro seria suficiente para justificar o tal direito perene à utilização gratuita da auto-estrada

ou, se se preferir, para servir como limite jurídico ao ius variandi administrativo. Com efeito,

esse contrato constitui-se (constituir-se-ia) por sucessiva e renovada adesão do utente, de cada

utente, ao regime constante do contrato administrativo de concessão, por sucessiva e renovada

aceitação tácita do clausulado contratual, contrato portanto que nasceria e se extinguiria em

cada entrada e saída da auto-estrada, não funcionando (não conseguindo assim funcionar),

fora desse momento episódico, como um limite aos poderes públicos de autoridade do

Concedente.

Aliás, se não fosse assim, como sustentamos, teríamos de aceitar que os contratos

administrativos dotados de eficácia regulamentar (sobre terceiros) ― como é o caso dos

importantíssimos contratos de concessão de obras e serviços públicos, de típica colaboração

subordinada e onde mais se faz sentir a necessidade ou utilidade do poder de modificação

unilateral ―, logo esses, seriam imodificáveis e intangíveis por acto do Poder (ou até por

acordo das partes), pois que, uma vez celebrados, constituiriam direitos subjectivos ou

posições jurídicas a favor de terceiros e só a sua alteração em benefício destes seria conforme

a tutela da confiança que depositaram na manutenção perene das cláusulas de favor ou de

vantagem aí incluídas.

6.2. O princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos

44 Hipótese aventada por Sinde Monteiro, …, RLJ, ano 132º, nº 3899, p. 64. 45 É o caso de Cardona Ferreira, Acidentes de viação em autoestradas / Casos de responsabilidade Civil

Contratual?, 2004, p. 77 e ss.. 46 Recusando uma e outra hipótese, Menezes Cordeiro, Igualdade rodoviária e acidentes de viação nas auto-

estradas, 2004, p.48 e ss. 47 Ver, por exemplo, Pedro Gonçalves, A concessão de serviços públicos, 1999, p. 315.

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35

6.3. O poder de modificação unilateral

6.4. O chamado “fait du Prince”

A generalidade das figuras associadas à instabilidade do contrato administrativo, e que foram

durante algum tempo consideradas, ao menos em parte, uma marca da sua autonomia

substantiva, nasceram da actividade pretoriana do Conseil d´État e são ainda objecto de

estudo profundo pela doutrina francesa, que convocam para o efeito o “fait du prince”48, a

“imprévision”, a “force majeure” e as “sujéctions imprévus”.

A propósito da primeira, afirmava M. Hauriou49, em inícios do século XX, que “la catégorie

du fait du prince est peut-être bien une de ces catégories juridiques provisoires dans lesquelles

on range tout d’abord des cas qui surprennent parce qu’ils font exception à des idées reçues;

puis plus tard on s’aperçoit que ces cas sont disparates et qu’il vaudrait peut-être mieux les

étudier chacun dans leur particulier”.

É verdade que entretanto os seus pressupostos e regime ganharam alguma consistência, mas

ainda em 1984, naquela que é, em nossa opinião, a mais marcante obra de língua francesa

sobre contratos administrativos, se afirmava que “la théorie du fait du prince est l´une des plus

confuses du droit des contrats administratifs”50.

Desde logo, porque, dependendo do alcance que se dê à figura, podem avançar-se vários

sentidos possíveis para o fait du prince.

Um sentido lato, em que fait du prince representa qualquer intervenção dos poderes públicos

que têm como resultado ou consequências afectar ou prejudicar de uma qualquer maneira as

48 A expressão remonta, segundo A. Laubadère / F.Moderne / P. Delvolvé, Traité, cit., p. 389, nota 1, a F. P.

Bénoit (“De l’inexistance d’un pouvoir de modification unilatérale dans les contrats administratifs”). 49 Citado por A. Laubadère / F. Moderne / P. Delvolvé, Traité, cit., vol. II, p. 517, nota 4. 50 A. Laubadère / F. Moderne / P. Delvolvé, Traité, cit., vol. II, p. 516.

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condições jurídicas ou apenas as condições de facto dentro das quais um cocontratante da

Administração executa o seu contrato.

Com este alcance máximo, o fait du prince abrange praticamente todas as modalidades

possíveis de intervenção pública, seja do ponto de vista do seu objecto (medidas gerais, com

impacto em todos os tipos de contratos de índole económica, medidas particulares, incluindo

por grupos ou categorias de contratos, medidas jurídicas e actos materiais, medidas

normativas ou medidas individuais e concretas, medidas de modificação do contrato, das suas

prestações, ou medidas com impacto apenas nas condições de execução do contrato), seja do

ponto de vista da sua autoria (legislador, autoridade pública contratante ou outra autoridade

pública).

Num sentido restrito, fait du prince — agora aqui também designado por vezes fait de

l´administration — consiste numa medida tomada pela autoridade pública contratante que

afecta as condições de execução do contrato.

Mas há ainda que distinguir as medidas que têm por objecto directo e ao mesmo tempo por

efeito modificar as condições de execução do contrato (a que podia dar-se o nome de fait du

prince strictissimo sensu) daquelas que, não tendo por objecto a execução do contrato, têm um

efeito sobre essa execução51.

Neste sentido restrito, o fait du prince abrange, para alguns, as medidas tomadas pela

autoridade pública contratente, seja no exercício dos seus poderes contratuais, seja no

exercício dos seus poderes públicos gerais (legislativos ou regulamentares), excluindo-se dele,

portanto, as medidas (particulares ou gerais) que provenham de outras pessoas colectivas

públicas52.

Para outros, por exemplo, apenas se incluem na figura do fait du prince as medidas tomadas

pela autoridade contratante, mas na sua outra qualidade de “puissance publique dans son

attitude de commandement” (a expressão é de M. Hauriou), ou seja, no exercício de poderes

gerais extracontratuais (Vedel), excluindo assim tanto as modificações operadas no exercício

51 Laubadère / Moderne / Delvolvé, Traité, cit., vol. II, p. 516 e 517. 52 É o caso de Laubadère / Moderne / Delvolvé, Traité, cit., vol. II, p. 516 e 517, e de Laubadère / Venezia /

Gaudemet, Traité, cit., p. 697.

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dos seus poderes públicos contratuais53, como as de autoria de outras pessoas colectivas

públicas54.

No primeiro caso, portanto, há como que um sistema binário, é dizer, um regime

tendencialmente unitário para a modificação do contrato administrativo e para a alteração das

circunstâncias55, quando a medida seja imputável ao contraente público (seja nessa qualidade,

seja na qualidade de poder público geral), contrapondo-se a ele o regime da imprevisão.

No segundo caso, há um sistema de três segmentos, distinguindo-se o poder de modificação

unilateral do fait du prince, e os dois da imprevisão.

De qualquer forma, excluem-se sempre do fait du prince as medidas provenientes de outras

entidades que não a autoridade contratante, que ficando estas últimas sujeitas ao regime da

imprevisão, quando o cocontratante pretenda uma indemnização do contraente público, ou ao

regime geral da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas, quando o

cocontratante pretende obter uma indemnização do autor da medida.

No entanto, tudo depende também da própria noção de “autoridade contratante”, que uns

interpretam de forma mais restritiva e outros, de corrente maioritária, de forma mais

ampla56.

que são remetidas para os domínios da imprevisão Quanto aos requisitos do fait du prince, são

eles: (i) a imprevisibilidade do acto danoso, (ii) a imputabilidade do acto danoso à autoridade

contratante e (iii) a existência de um prejuízo sofrido de forma específica pelo cocontratante,

com perturbação do equilíbrio financeiro do contrato, que deve sofrer um agravamento

significativo.

53 Assim, Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, 2005, p. 630. 54 Afastando ambas, Jaqueline Morand-Deviller, Cours de Droit Administratif, 2003, p. 423, Flamme, Traité

des Marchés Publics, II, p. 632 e 633 e 638. 55 Sustentando que estas duas figuras devem estar separadas porque a modificação unilateral do contrato

configura uma questão de responsabilidade contratual e o fait du prince uma questão de responsabilidade extracontratual, Maria Di Pietro, Direito Administrativo, Atlas, 2001, p. 257 e 258.

56 Por exemplo, M.A. Flamme afirma que “Il va de soi cependant que la notion «d’autorité contractante» doit s’entendre à la lumière d’une notion globale de l’Etat, ce qui permet à la théorie du fait du Prince de s’étendre à un certain nombre de mesures générales qui ne sont pas directement prises par l’autorité contractante proprement dite. Ainsi, l’Etat législateur est susceptible de causer des dommages à ses cocontractants, ne serait-ce que parce que le Parlement refuse d’inscrire au budget les sommes nécessaires pour le règlement de certains contrats” (Traité des Marchés Publics, II, p. 634).

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Relativamente à imputabilidade do acto à autoridade contratante, não é necessário, desde

logo, que se trate, digamos assim, de um acto da autoria do próprio signatário do acordo.

Basta que se trate de uma intervenção provinda de um órgão da mesma pessoa colectiva que é

considerada juridicamente parte no contrato. O que significa que as intervenções do Estado-

legislador, mesmo que parlamentar, são tidas como provenientes da mesma autoridade

contratante relativamente aos contratos celebrados pelo Estado-administração, é dizer,

celebrados pelo poder executivo governamental57.

Em Portugal, o âmbito tradicionalmente reconhecido à teoria da alteração dos contratos por

acto do Poder é mais amplo até do que aquele que lhe é reconhecido em França, onde, como

se viu, a doutrina mais reputada já engloba na noção, tratando-se do Estado, quer os actos

(não contratuais) do órgão administrativo contratante, quer os de outros órgãos

administrativos governamentais, ou mesmo de órgãos do Poder Legislativo58 —

entendimento, aquele, que tinha a vantagem de permitir uma distinção mais nítida entre a

alteração das circunstâncias por acto do Poder e por imprevisão, confiando às alterações das

condições económicas gerais, enquanto a noção de fait du prince se cingiria àqueles casos em

que a alteração do contrato deriva, não de uma medida geral (vg, alteração dos preços da mão-

de-obra ou de materiais), mas de uma medida de efeitos directa ou indirectamente

circunscritos a certos contratos ou a certas actividades económicas59.

57 Laubadère / Moderne / Delvolvé, Traité, cit., vol. II, p. 525 e 526. No mesmo sentido, M.A. Flamme afirma

que “il va de soi cependant que la notion «d’autorité contractante» doit s’entendre à la lumière d’une notion globale de l’Etat, ce qui permet à la théorie du fait du Prince de s’étendre à un certain nombre de mesures générales qui ne sont pas directement prises par l’autorité contractante proprement dite. Ainsi, l’Etat législateur est susceptible de causer des dommages à ses cocontractants, ne serait-ce que parce que le Parlement refuse d’inscrire au budget les sommes nécessaires pour le règlement de certains contrats” (Traité des Marchés Publics, II, p. 634). Ver também R. Chapus, Droit, cit., p. 314, A. Laubadère, Venezia, Y. Gaudemet, Traité de Droit Administratif, tome I, p. 696, e P. Terneyre, La responsabilité contractuelle des personnes publiques en droit administratif, p. 151 e ss.

58 Marcello Caetano entendia que são actos de Poder mesmo aqueles que provêm de autoridades ou de pessoas colectivas públicas diversas da Administração contratante. No mesmo sentido, Mário Esteves de Oliveira sustentava que “«faits du prince», actos do Poder, são considerados, também, entre nós, aquelas medidas legislativas regulamentares ou administrativas provenientes de órgãos de outras pessoas colectivas públicas que não o contraente e que se repercutem indirectamente no contrato, agravando ou dificultando a realização das prestações nele previstas” (Direito Administrativo, 1980, I, p. 708).

59 E evitando também, mas é já aspecto de pormenor, que se inclua ou exclua um caso na teoria do fait du prince apenas pelo facto de a competência para a prática de determinado acto pertencer (ou não) em determinado momento à pessoa colectiva contratante, quando, num momento sucessivo, por razões e instrumentos diversos, essa competência já poderá ter-lhe sido retirada (ou conferida), como pode suceder seja entre o Governo e os institutos públicos, como entre o Governo e os municípios e as regiões autónomas.

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Além disso, se se admite, para efeitos da aplicação da teoria do “fait du prince”, que o

respectivo facto provenha (sobretudo no caso do Estado e das Regiões Autónomas) de um

poder diferente daquele que se envolveu no contrato, fica-se muito perto da ideia de que

também podem caber aí actos provenientes de pessoas colectivas diversas: na verdade, para

efeitos de alteração das condições da execução de um contrato por acto do Poder, não há

grande diferença entre a relação existente entre um acto legislativo da Assembleia da

República e um contrato celebrado por uma qualquer direcção-geral e relação existente entre

esse mesmo acto e um contrato celebrado por uma autarquia local ou uma região autónoma.

Relativamente aos tipos de medidas que cabem cabem objectivamente no conceito de acto de

Poder, são de natureza muito diversa e heterogénea. Cabem aí “soit de mesures à portée

générale (lois, décrets réglementaires, arrêtés réglementaires des autorités locales) soit de

mesures à portée particulière (décisions individuelles, opérations matérielles). D’autre part, on

peut se trouver en présence soit de mesures touchant aux dispositions contractuelles elles-

mêmes et aboutissant à les modifier ou les paralyser, soit de mesures ayant seulement une

incidence sur les conditions d’exécution du contrat (par exemple sur les prix auxquels

l’entreprise peut se procurer les matériaux nécessaires à l’entreprise, les salaires qu’elle verse

à son personnel, etc.)”.60

Ou seja, para alguns autores, cabem no fait du prince, em tese, actos jurídicos (concretos e

normativos, regulamentares e legislativos) e operações materiais, quer as medidas que tenham

por objecto modificar as próprias disposições do contrato, incidindo sobre uma cláusula sua, e

as medidas que alteram apenas as respectivas condições económicas de execução (as

chamadas “modificações indirectas”)61.

Quando se trata de uma medida geral legislativa ou regulamentar que tenha por efeito

modificar as próprias disposições do contrato, incidindo sobre uma cláusula sua (vg, alteração

legislativa da distribuição percentual do montante das contraordenações entre o cocontratante

e as autoridades públicas reguladoras), paralisar outras (vg, proibição de […]), ou ainda, de

pôr fim permanentemente à sua execução, a teoria do fait du prince funciona mais facilmente,

60 Traité, cit., tomo II, p. 527. 61 Flamme, Traté, cit., 632.

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dando direito a indemnização62, até pela aproximação que essas hipóteses têm com a

modificação do contrato por acto administrativo do contraente público.

Já quanto aos casos em que as medidas legislativas e regulamentares gerais não afectam o

contrato em si mesmo, uma disposição sua, mas apenas as respectivas condições

(económicas) de execução, a regra é a de que está aí afastada a aplicação da teoria do fait du

prince e a sua integralidade indemnizatória63. A “fórmula de estilo” repetidamente afirmada

pela jurisprudência francesa a este respeito é a seguinte: “les dispositions de la loi (ou du

règlement) du … avaient un caractère général et les dépenses supplémentaires qu’elles ont pu

occasionner ai requérant ont été supportées par lui dans les mêmes conditions que par tous les

autres commerçants ou industriels, que dans ces conditions elles n’auraient pour ouvrir au

requérant un droit à indemnité que si elles avaient eu pour effet de bouleverser l’économie du

contrat”.64

O que significa que só pela via da imprevisão o cocontratante conseguirá obter uma

indemnização ou compensação.

Nesta regra da inindemnizabilidade incluem-se, entre outras, as medidas fiscais gerais, as

medidas sociais ou de carácter laboral e as medidas económicas.

Há no entanto excepções admitidas a essa regra, que conferem ao cocontratante direito à plena

indemnização de prejuízos, a saber:

(i) Quando a lei ou o regulamento preveja a atribuição de uma indemnização

(ii) Quando o contrato preveja que essa categoria de casos dê direito a uma

indemnização ou à reposição do equilíbrio financeiro

(iii) Quando a medida tomada afecta “une donnée dont on peut considérer qu’elle a

été essentielle, déterminante, dans la conclusion du contrat” (seja porque atenta

contra o objecto essencial do contrato, seja porque altera o estado de coisas

fundamentais em consideração do qual o cocontratante celebrou o contrato) e,

que, por causa disso, o cocontratante tenha sofrido “un préjudice spécial”,

62 Flamme, Traité, cit., p. 635. 63 Assim, Flamme, Traité, cit., p. 635. 64 Laubadère / Moderne / Delvolvé, Traité, cit., vol. II, p. 531.

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distintos daqueles que, nas mesmas condições, foram suposrtados pelos outros

comerciantes ou operadores económicos65/66 — de que são exemplo as medidas

legislativas de natureza fiscal especial, as medidas de polícia (vg, regulação do

trânsito, com especial incidência sobre a economia de uma concessionária de

transportes públicos), etc.

Relativamente às medidas particulares, também há que distinguir as que têm por objecto as

próprias disposições do contrato ou que afectam apenas as condições da sua execução,

tornando-a mais onerosa (as chamadas “modifications indirectes”).

De entre as primeiras, temos — para quem as considere aqui incluídas — as medidas tomadas

pelo próprio contraente público, enquadráveis no contexto do poder de modificação unilateral,

que dão lugar a uma indemnização integral, e as medidas tomadas pelo legislador, que dão

igualmente direito a indemnização, salvo se a lei a excluir explícita ou implicitamente, caso

em que “le juge ne pourra que s’incliner devant la volonté exprimée ou évidente du

législateur ; il en sera notamment ainsi lorsque l’intervention de celui-ci dans le contrat a eu

précisément pour but de libérer l’État de certains charges financières ; en pareil cas,

l’indemnisation, si elle était prononcée, aboutirait à enlever tout effet à la décision du

législateur et, pour critiquable que puisse être celle-ci, le juge ne pourra qu’en respecter le

sens”67.

Relativamente àquelas que, não alterando as cláusulas contratuais, alteram as condições da

sua execução (como, por exemplo, a recusa sem fundamento aparente em aumentar o valor

das tarifas aplicáveis aos utentes da obra ou do serviço público), a doutrina distingue as que

resultam do exercício dos poderes de controlo e direcção do contraente público e que

65 Laubadère / Moderne / Delvolvé, Traité, cit., p. 536. 66 Para alguns autores (Flamme, Traté, cit., p. 635), a existência de um “prejuízo especial” é um outro caso em

que a medida geral dá lugar à aplicação do fait du prince. Para outros (Laubadère / Moderne / Delvolvé, Traité, cit., 536), a existência de um “prejuízo especial” é uma mera consequência do facto de a medida geral atentar contra o objecto essencial do contrato ou alterar o estado de coisas fundamentais em consideração do qual o cocontratante celebrou o contrato, não constituindo um requisito autónomo (como, por exemplo, sucede no contexto do princípio da igualdade perante os encargos públicos). Um outro requisito consistiria no facto de a medida em causa ter em vista “un enrichissement des patrimoines administratifs” e não, primacial e directamente, uma finalidade de interesse geral — mas também este, de acordo com Laubadère / Moderne / Delvolvé, Traité, cit., p. 536 e 537, não é reconhecido como critério de fixação das situações reparáveis em sede de fait du prince.

67 Laubadère, Moderne e Delvolvé, Traité, cit., p. 545.

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implicam despesas suplementares ou outros prejuízos para o cocontratante, as medidas de

polícia, as operações de obras públicas (que contendam com os direitos de uso e fruição dos

concessionários com títulos de ocupação do domínio público) — distinguindo-se as que são

realizadas no interesse do domínio sobre o qual o concessionário exerce a sua actividade (não

conferem direito a indemnização) e as que são realizadas em vista de outro interesse —, e as

operações materiais em geral68.

6.4.2. As consequências do fait du prince

Ao fait du prince são apontadas várias consequências, distinguindo-se as consequências

indemnizatórias e as outras consequências (possíveis ou eventuais). Nestas podem incluir-se a

existência de causa justificativa da inexecução do contrato, se o fait du prince implicar a

impossibilidade do seu cumprimento, a existência de fundamento para a exclusão ou redução

das sanções por cumprimento tardio ou defeituoso do contrato, ou mesmo o direito à

resolução do contrato, se o acréscimo de dificuldades ou de obrigações for tal que não seja

legítimo exigir ao cocontratante a sua execução69.

Quanto às consequências indemnizatórias, a regra é a da reparação integral dos danos sofridos

(dano emergente e pelo lucro cessante)70, invocando-se como fundamento a “comum intenção

das partes”71, o princípio do equilíbrio financeiro do contrato72 ou o instituto da

responsabilidade contratual do contraente público por acto lícito (“sans faute”)73/74, que, de

certa forma. se complementam, aproximando-se assim, nesta prespectiva indemnizatória, a

teoria do “fait de l´administration” da teoria da “faute de l´administration”75.

68 Laubadère, Moderne e Delvolvé, Traité, cit., p. 546 e seguintes. 69 Laubadère, Moderne e Delvolvé, Traité, cit., p. 552. 70 Assim, Marcello Caetano (Manual, cit., p. 621), Laubadère / Moderne / Delvolvé (Traité, cit., p. 555 e 556),

Flamme (Traité, cit., p. 637) e P. Terneyre (Responsabilité, cit., p. 163). 71 Por exemplo, Jèze, Principes de droit administratif, V, nº 587. 72 Flamme, Traté, cit., p. 637 e 638. 73 Em parte, Laubadère, Moderne e Delvolvé, Traité, cit., p. 555 e 556. 74 Havendo também quem invoque o princípio da igualdade perante os encargos públicos (Warlomont, apud

Flamme, Traté, cit., p. 637, nota 6). 75 Laubadère, Moderne e Delvolvé, Traité, cit., p. 555 e 556.

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6.5. A imprevisão

Falar da imprevisão ou do caso imprevisto é falar de um dos poucos institutos que, em tempos

modernos, recebeu a sua primeira consagração no direito dos contratos administrativos,

marcando depois de forma sensível o direito dos contratos civis.

Claro que o problema da (in)tangibilidade dos contratos à alteração das circunstâncias não é

de origem administrativa, nem sequer foi trabalhado aí mais do que já fora no direito civil76,

mas foi no direito dos contratos administrativos — não por acaso, naquele que pode

considerar-se o contrato administrativo por excelência, a concessão de serviço público,

verdadeiro “laboratório” das originalidades do contrato administrativo — que a imprevisão

foi chamada (num célebre acórdão da jurisprudência administrativa francesa) a dar solução a

um caso de superveniências extraordinárias, quando, à data, os contratos privados viviam sob

o dogma da pacta sunt servanda e os códigos civis desconsideravam o tema, que só mais tarde

veio a receber consagração legislativa geral (entre nós, aliás, apenas em 1966).

Esse arrêt é o famoso “Gaz de Bordeaux”, de 1916, causado pelo aumento anormal do preço

do carvão durante a 1ª grande guerra e que poderia levar à ruína as empresas concessionárias

da distribuição de gás. O contrato em causa tinha sido celebrado pela Ville de Bordeaux com

a Compagnie Générale d´Éclairage em 1904, pelo prazo de 30 anos, e nele as partes previram,

de acordo com os dados económicos conhecidos à data, o valor das tarifas aplicáveis ao

fornecimento do serviço. Com a guerra, o preço do carvão sobe para valores inesperados e a

empresa continua a fornecer o gás ao preço contratualmente tabelado, mas agora a um valor

muitíssimo abaixo do preço de custo, o que implicaria a falência da concessionária e, com

isso, a suspensão do fornecimento do gás a toda a população de Bordéus, sem que fosse

esperável que os serviços municipais, atendendo às circunstâncias, pudessem substituir-se à

Compagnie.

76 Como bem observa Paiva Brandão, “o direito administrativo não fez mais do que adaptar à sua índole própria

uma noção que já fôra longamente discutida e trabalhada dentro do direito privado” (Considerações, cit., p. 237).

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Perante isto, e na sequência do pedido que esta fez no sentido de receber uma indemnização

que lhe permitisse fazer face às circunstâncias excepcionais existentes, o Conseil d´État,

começando primeiro por afirmar o princípio da estabilidade dos contratos (…) e a ideia de que

o risco da variação do preço das matérias-primas corre por conta do concessionário, acabou

por reconhecer que, no caso, a realidade superou as previsões possíveis (…) e que, portanto,

se justificava adoptar uma solução que permitisse à concessionária continuar a fornecer o

serviço durante aquele período extraordinário (…), sem deixar no entanto de precisar que a

indemnização não deveria eliminar o risco da concessionária.

O Conseil d´État terminou convidando as partes a chegar a um acordo sobre a matéria, sob

pena de, na falta desse acordo, ser ele mesmo a determinar o montante da indemnização ou da

compensação que seria devida.

É discutido o verdadeiro fundamento do arrêt “Gaz de Bordeaux” e da teoria da imprevisão

nele consagrada — se a equidade (que é chamada a desempenhar o seu papel nas chamadas

situações extracontratuais, para as quais o contrato não tem qualquer solução)77, se a

necessidade de uma “política contratual realista” por parte da Administração (que, por ser

contrário ao seu interesse, não deve deixar o seu cocontratante à ruína e sem aparo quando

sobrevenham circunstâncias com que ninguém podia ter contado e que o coloquem numa

situação de inevitável fragilidade financeira, porque isso levará normalmente o mercado a não

pretender colaborar com ela em grandes empreendimentos), se a natureza especial dos

contratos administrativos (que faz nascer entre as partes um “pacto de colaboração”, mais do

que uma mera relação entre devedor e credor), se a regra da continuidade dos serviços

públicos (que, em circunstâncias extraordinárias e em nome e no interesse da colectividade,

pedem que a Administração venha em socorro do seu colaborador, sob pena da interrupção

dos serviços públicos, em prejuízo de todos) —, mas é um facto seguro que a decisão está

impregnada da ideia de interesse público78, apelando expressamente ao “intérêt général, lequel

exige la continuation du servise par la compagnie” e que, nessa medida, se apoia em

especificidades próprias dos contratos administrativos, sujeitando-os a um regime que, à data,

era recusado aos contratos entre privados. Nessa altura, e, curiosamente, até mesmo para

77 Por exemplo, Melo Machado, Teoria jurídica do contrato administrativo, p. 183. 78 Flamme, Traité, cit., 652.

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evitar especulações à volta das consequências da guerra, os contratos privados eram sinónimo

de estabilidade e segurança, as pessoas iguais perante a lei, devendo cada uma delas suportar

os riscos da sua empresa, dos seus cálculos, não havendo razão para dar um tratamento

jurídico mais benéfico a uma do que a outra.

A história do cas imprevu não terminou evidentemente em 1916 — houve entretanto a

extensão da sua jurisprudência à generalidade dos contratos administrativos e, além disso,

houve lugar a algumas precisões e complementos à teoria da imprevisão, como no arrêt

Compagnie des tramways de Cherbourg, de Dezembro de 1932, a propósito da passagem do

estado da imprevisão para o caso de força maior —, mas a doutrina francesa tende a

considerar que o essencial do seu regime ficou aí estabelecido. ficou marcado nesse célebre

acórdão, é verdade, mas muitos outros importantes se seguiram79.

Não deixa de ser curioso que a primeira decisão judicial que reconheceu de forma clara a

teoria da imprevisão (acórdão de 28 de maio de 1930 do Supremo Conselho de Administração

Pública) tenha reproduzido, quase textualmente, como nota Melo Machado (184 e 185), as

principais considerações do arrêt Gaz de Bordeaux.

Quanto ao seu âmbito de aplicação, a imprevisão foi afirmada para a generalidade dos

contratos administrativos, mesmo aqueles que se caracterizam por um “bref délai

d´exécution” ou por uma só prestação80, mas os requisitos da sua aplicação são ainda um

pouco confusos (é um ponto muito visível na doutrina francesa), sobretudo, na delimitação da

categoria de eventos aí subsumíveis, seja porque a questão depende em parte da extensão que

se dê à figura do fait du prince, à chamada álea administrativa (designadamente, se cabem aí

as intervenções de autoridades públicas distintas do contraente público), seja porque em

França a doutrina continua a autonomizar a figura das “sujétions imprévues”, ligada

79 80 Não será aí que a imprevisão terá naturalmente o seu campo natural de aplicação, mas não é por razões

jurídicas que ela deve em tais casos ser afastada, apenas sendo pouco provável ou “difícil que, no intervalo entre a celebração do contrato e o momento de ser efectuada a prestação, [os contratos que têm por objecto uma só prestação] sofram as condições económicas uma alteração tal que justifique a indemnização pedida. Mas, nem tal hipótese é em absoluto inadmissível, nem as pequenas probabilidades de que se dê êste último caso, obstam a que a solução, em direito, deva ser idêntica” (Melo Machado, Teoria, cit., p. 186). No mesmo sentido, Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traté, cit., p. 571, nota 2.

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sobretudo aos contratos de obra e ao aparecimento superveniente de dificuldades de ordem

material, técnica ou geológica, que agravam substancialmente o custo dos trabalhos81.

Por outras palavras, a imprevisão está intimamente associada à chamada “álea económica”,

distinguindo-se assim da “álea administrativa”, que caracteriza o fait du prince, e da “álea

natural”, que caracteriza as “sujétions imprévues” (ou, quando impossibilitam o cumprimento,

o caso de força maior).

No entanto, relativamente à álea natural, distinguem-se depois os eventos naturais que têm

apenas uma incidência indirecta sobre a execução do contrato, tornando-a mais onerosa por

causa dos impactos económicos que um evento desses pode ter (caso que se subsume na

imprevisão)82, dos eventos naturais que têm um impacto directo e imediato na execução do

contrato83/84

Relativamente à sua linha de fronteira com a teoria do fait du prince, o problema está em

saber se se subsumem naquela todos os eventos associados à álea administrativa, é dizer,

todos os eventos resultantes de actos de autoridades públicas (mantendo-se assim, na medida

do possível, a pureza da imprevisão como figura ligada à álea económica)85, se, diversamente,

se qualificam como fait du prince apenas as intervenções da autoria do próprio contraente

público, na qualidade de autoridade administrativa, deixando para a imprevisão as

intervenções de autoridades públicas distintas da Administração contratante (incluindo-se

assim nesta figura parte da álea administrativa, embora olhada por uma perspectiva

económica)86, ou se, por último, se admite que os impactos contratuais resultantes da

intervenção de outros poderes distintos do contraente público possam simultaneamente

integrar o fait du prince e a imprévision, cabendo ao cocontratante invocar a que mais lhe

81 Sendo também discutível se a figura abrange apenas as situações já existentes, mas desconhecidas das partes,

ou também as situações objectivamente supervenientes. No primeiro sentido, Flamme, Traité, cit., p. 624; no segundo sentido, Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traité, cit., 579 e 580.

82 Por exemplo, uma inundação numa certa localidade pode não ter um impacto directo na execução de um contrato, mas conduzir à desorganização ou suspensão dos transportes públicos e privados, com consequência sobre a clientela de um certo serviço.

83 Assim, Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traté, cit., p. 579 e 580. 84 Da mesma forma, Flamme refere também que 85 Como propunha Jèze, em Contrats administratifs, vol. II, p. 491 e 497 e seguintes. 86 Como era a opinião inicial de Laubádére, Traité, cit., 453. E é o que resulta também do arrêt Compagnie des

chemins de fer de Bayonne et Biarritz, de 1971, apud J. Morand-Deviller, Cours, cit., p. 426.

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aproveite (em princípio, a primeira, por determinar uma “indemnização integral dos danos”),

convocando a segunda apenas no caso de não se verificaram os pressupostos daquela.87

Em suma, quando se associa a imprevisão à álea económica não se pretende dizer que nela só

se incluem factos ou eventos de ordem económica geral (crise económica, greves, variação

extraordinária do preço do combustível resultante da introdução, em países terceiros, de

quotas mais baixas de produção de petróleo, conflito armado local mas com repercussões

globais graves, aplicação de sanções internacionais, embargos, etc.), mas que nela se olha

mais para a consequência ou impacto económico dos eventos do que propriamente para a

natureza destes. A aléa económica não pressupõe portanto uma causa ou um evento de

natureza económica88.

Relativamente aos restantes requisitos da imprevisão, são eles: (i) a imprevisibilidade do

evento, (ii) a não imputabilidade do evento ao cocontratante e (iii) o evento implicar, para lá

do que seriam os riscos próprios do cocontratante, uma “adulteração da economia do

contrato” (“bouleversement de l´économie du contrat”).

Como se vê, não nos referimos à “exterioridade” ou “externalidade” do evento, à sua

“transitoriedade” e à “ininterrupção do serviço”, por não nos parecer que sejam, em rigor,

requisitos da imprevisão.

O primeiro porque depende de uma posição de princípio quanto ao fait du prince ou, o que é o

mesmo, quanto à abrangência da imprevisão, a saber, se nesta se devem também incluir os

factos do próprio contraente público. Se sim, não há qualquer requisito de “exterioridade” do

evento relativamente às partes (há quem diga que isso seria até “paradoxal, senão absurdo”89),

ou seja, não teria de ser alheio às suas vontades, mas, sim, necessariamente, de ser estranho à

vontade ou ao comportamento do cocontratante (“exteriorité à l´égard du contratactant”): daí

87 É a opinião de Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traté, cit., p. 580 e seguintes (“il n´y a pas, dans le domaine des

mesures prises par les pouvouirs publiques, de distinction entre un domaine de l´imprévision et un domaine du fait du prince”; il y a seulement des cas dans lequeles, la théorie du fait du prince trouvant application, de cocontractant l´invoquera de préférence : si elle joue, la question de la théorie de l´imprévision ne se pose pas ; si elle ne joue pas, la théorie de l´imprévision peut trouver à s´appliquer) e 591 e seguintes.

88 Como afirma Flamme, quando, na imprevisão, nos reportamos ao carácter económico da álea aí em causa, é preciso ter presente “qu´il importe peu que le trouble économique ait une cause proprement économique ou trouve son origine dans des phénomènes naturels, voire dans des interventions des pouvoirs publics, telles des mesures fiscales, sociales, monétaires ou de police, ou encore de blocage des prix (Traité, cit., p. 659).

89 Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traté, cit., p. 592.

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o requisito da inimputabilidade, atrás referido. Mas, como se disse, é um ponto controvertido,

havendo quem considere que na imprevisão só se incluem os eventos estranhos à vontade das

partes90.

O segundo, sobre a transitoriedade do evento, está relacionado com a jurisprudência do arrêt

Compagnie des tramways de Cherbourg, de 1932, no qual, apesar de estar à primeira vista em

jogo uma situação de imprevisão, e em que portanto se justificaria a atribuição de uma

“indemnização de imprevisão” para evitar o colapso do serviço, a sua interrupção, o Conseil

d´État, tendo constatado que a concessionária já tinha beneficiado de uma majoração do valor

das tarifas em três anos consecutivos e ainda assim continuava financeiramente inviável,

considerou que estavam reunidas as condições para o município resolver o contrato com

fundamento em caso de força maior, negando assim à concessionária o direito de receber uma

indemnização que, além de tender a repetir-se no futuro, não dava quaisquer garantias de

viabilizar a prestação regular e contínua do serviço contratado.

Desta jurisprudência, fundada em razões de tutela ou de preservação do erário público, retira-

se a ideia de que o “bouleversement de l´économie du contrat doit présenter un caractére

temporaire”91/92 ou que a indemnização por imprevisão configura “uma medida cautelar

tendente a evitar a impossibilidade absoluta de cumprimento por razões de onerosidade

extrema para o devedor da prestação”93.

90 Por exemplo, J. Morand-Deviller, Cours, cit., p. 423, R. Chapus, (Droit Administratif Général, tome I, p.

750, que fala em evento “étranger à la volonté des parties”), Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. I, p. 625, referindo-se à imprevisão como “facto estranho à vontade dos contraentes que, determinando a modificação das circunstâncias económicas gerais, torne a execução do contrato muito mais onerosa para uma das partes do que caberia no risco normalmente considerado”).

91 Flamme, Traité, cit., p. 662 e 663. 92 O Conseil d´Ètat considerou expressamente que a indemnização por imprevisão só deve ser concedida

quando o factor de desequilíbrio se revele temporário ou recuperável, pois, “au contraire, dans les cas où les conditions économiques nouvelles ont créé une situation définitive qui ne permet plus au concessionaire d’équilibrer ses dépenses avec les ressources dont il dispose, le concédant ne saurait être tenu d’assurer aux frais des contribuables, et contrairement aux conditions essentielles du contrat, le fonctionnement d’un service qui a cessé d’être viable” (Marceau Long, Prosper Weil, Guy Braibant, Pierre Delvolvé, Bruno Genevois, Les grands arrêts de la jurisprudence administrative, 1996, p. 278).

93 Carla Amado Gomes, Risco, cit., 464.

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Dessa forma, o arrêt Compagnie des tramways de Cherbourg acabou por consagrar a chamada

“imprevisão assimilada a um caso de força maior” ou a chamada “force majeure

administrative”94.

Relativamente à ininterrupção do serviço por parte do cocontratante, não se trata também, em

rigor, de um requisito autónomo da imprevisão. Ou seja, é verdade que a teoria da imprevisão

vai buscar parte do seu fundamento à exigência ou grande conveniência da continuidade do

serviço, além de que o evento não dispensa em princípio o cocontratante de garantir essa

continuidade (por isso é que não estamos perante um caso de força maior) e que ele deve fazer

o que estiver ao seu alcance, dentro do que lhe for razoável pedir, para, apesar da

circunstância extraordinária, manter a regularidade da sua prestação (mesmo, se necessário,

com alguma diminuição da respectiva qualidade). O que significa que a interrupção do

serviço pode servir de base à aplicação de sanções contratuais —, mas a ininterrupção do

serviço, enquanto facto em si mesmo, não é um requisito da imprevisão, é dizer, dela não

depende a atribuição da indemnização a esse título, se e na medida em que não seja imputável

a negligência ou descuido do cocontratante95. Com efeito, não apenas a interrupção temporária

do serviço (ou a sua adaptação) pode decorrer do facto imprevisto, como pode a sua

manutenção representar um sacrifício desproporcionado das forças e possibilidades do

cocontratante.

Consideramos por isso que, sendo a regularidade da prestação do serviço a primeira obrigação

do cocontratante, a sua eventual interrupção ou suspensão deve ser sobretudo avaliada

enquanto factor a atender no cômputo da indemnização da imprevisão, no quadro da culpa do

devedor para o agravamento dos danos.

94 Assim, J. Morand-Deviller, Cours, cit., p. 425. Como afirma Carla Amado Gomes, “o que se retira desta

jurisprudência (…) é uma suavização do instituto da força maior em função da necessidade de preservar o erário público em face das solicitações das concessionárias depauperadas pela crise do pós-guerra, agravada pela depreciação da moeda que se lhe seguiu. Em bom rigor, não havia irresistibilidade em sentido fáctico; mas estava-se perante uma impossibilidade de manutenção do serviço em termos economicamente viáveis, facto que sustentou a invocação de força maior em sentido juridicamente construído pelo Conselho de Estado” (Risco, cit., p. 464).

95 Como observa J. Morand-Deviller, Cours, cit., p. 425, só a interrupção resultante de um “comportment

fautif” seu privará o cocontratante de receber uma indemnização a título de imprevisão.

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Assim, o primeiro requisito da imprevisão é a própria imprevisibilidade do evento. Durante a

execução de um contrato é normal que ocorram factos e eventos que as partes não previram.

Essa é a álea ordinária do contrato, que, digamos assim, é natural a qualquer acordo ou

negócio de longa duração. Pequenas dificuldades, pequenos obstáculos, algo que se pensava

resolver de certa maneira e afinal tem de se resolver de outra, enfim, é disso que também vive

um contrato e confia-se que um cocontratante diligente e tecnicamente capaz saberá dar-lhes

solução. Mas depois há aqueles eventos que escapam à lógica do decurso normal da execução

de um contrato, que vão para lá dos cálculos que as partes podiam e deviam fazer no

momento de celebração do contrato, factos anómalos, de verificação extraordinária, com que

elas não podiam contar (ou ao menos o cocontratante). Essa é a álea extraordinária, o

verdadeiro requisito da imprevisão. Deve no entanto dizer-se que a imprevisibilidade tanto

pode estar ligada ao evento propriamente dito, como às suas consequências, impactos ou

efeitos, quando estes excedam consideravelmente, pela sua amplitude ou gravidade, aquilo

que seria previsível ou estimável96. É a chamada “imprevisão relativa”.97

A data relevante para a apreciação do carácter imprevisto do evento é a da celebração do

contrato: um evento pode, no decurso da execução do contrato, tornar-se mais ou menos

previsível, mais ou menos provável, mas o que releva é a sua (im)previsão à data do contrato.

Aliás, como se sabe, os factos imprevistos, salvo alguns fenómenos da natureza, não surgem

do nada. O mais comum é que tais factos se vão formando ao longo de um período mais ou

menos breve de tempo, desde um momento inicial em que as partes se apercebem de que algo

pode estar para acontecer até, pouco depois, constatarem que se confirmaram as “piores

previsões”. No caso de as partes terem celebrado um acordo modificativo do contrato, em

princípio passa a ser a data desse acordo o momento relevante para determinar a

imprevisibilidade ou não dos eventos futuros98.

Por outro lado, a regra da apreciação da imprevisibilidade por referência à data da celebração

do contrato pode sofrer desvios acentuados no caso dos contratos sujeitos a public

procurement99. Nestes casos, considerando que o procedimento de contratação pública pode

96 Flamme, Traité, cit., p. 659. 97 Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traité, cit., p. 587. 98 Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traité, cit., p. 587. 99 Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traité, cit., p. 586.

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demorar alguns meses, pode acontecer que um facto imprevisto ocorrido no seu decurso seja

já previsível (ou até certo e seguro) à data da adjudicação. Em tais situações, o momento

relevante para determinar a imprevisibilidade pode ser a data da apresentação da proposta do

concorrente (ou a sua última proposta, no caso de haver duas ou mais)100.

Em segundo lugar, o evento não pode ser imputável ao cocontratante, há-de ser alheio a este.

Como a doutrina refere em termos impressivos, é de afastar a figura da imprevisão “chaque

fois que le cocontratanctant est pour quelque chose dans le bouleversement du contrat”101, seja

porque foi ele que provocou o evento, seja porque não empregou os seus melhores esforços

para evitar o aparecimento do evento ou para eliminar as suas consequências, seja porque, de

uma maneira geral, há motivo de censura do seu comportamento a esse respeito, a título de

negligência (subestimação dos cálculos ou previsões), erro técnico, incumprimento contratual,

etc.

Se a adulteração da economia do contrato ficar a dever-se apenas em parte ao cocontratante,

devem então determinar-se que consequências é que não seriam elimináveis mesmo se ele

tivesse adoptado o comportamento exigível a um contraente diligente e capaz e medir a

indemnização em função daquilo que possa ser considerado alheio ao cocontratante102.

O último requisito da imprevisão é o de que o evento provoque, para lá do que seriam os

riscos próprios do cocontratante, uma “adulteração da economia do contrato”

(“bouleversement de l´économie du contrat”)103, sem no entanto tornar impossível a execução

do contrato (assim se distinguindo da force majeure). Significa isto que o impacto do evento

deve criar uma situação verdadeiramente extracontratual, uma alteração profunda ou anormal,

que não possa ser imputada à gestão corrente do contrato e às suas normais flutuações.

Para que possa falar-se numa situação extracontratual a doutrina francesa exige, por um lado,

que haja um “défice de exploração”, e não apenas uma diminuição das receitas ou sequer uma

diminuição ou desaparecimento da margem de lucro estimada104 e, por outro lado, que se haja

ultrapassado o que aí se define por “prix-limite”, ou seja, a margem eventual de aumento do 100 Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traité, cit., p. 586. 101 Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traté, cit., p. 591. 102 Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traité, cit., p. 591. 103 R. Chapus, (Droit Administratif Général, tome I, p. 750 104 Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traité, cit., p. 595.

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preço que era estimável (ou que devia ter sido estimada) pelas partes à data da celebração do

contrato, que deve ser analisado caso a caso. Só a partir daí há imprevisão (é o “seuil de

l´imprévision”)105. Aquém disso há risco do cocontratante.

Por sua vez, a principal consequência jurídica imputada à imprevisão é a “obligation de

l´administration d´aider son cocontractant”106, um dever de “assistência financeira”107, em

resultado do pacto que colaboração que associa as partes no contrato.

A imprevisão, ao contrário do fait du prince e do próprio poder de modificação unilateral

(para quem distinga as duas figuras), não se guia pelo princípio da indemnização integral dos

danos sofridos, mas apenas por uma ideia de compensação pelos danos extraordinários que

tiveram lugar108. Não só não há portanto um dever de reposição do equilíbrio financeiro do

contrato, ou dos lucros cessantes109, mas apenas dos danos que se situem para lá do “limiar da

imprevisão”, como, de entre estes danos indemnizáveis, há lugar a uma espécie de repartição

ou “partilha”110 entre o cocontratante e o contraente público (a chamada “repártition de la

charge extracontractuelle”), embora a maior parte corra por conta deste111. Do que se trata

assim é de um auxílio financeiro, não correspondente a uma indemnização em sentido

próprio112. Compreende-se a solução, pois se o evento é estranho ao cocontratante, também é

alheio ao contraente público.

Além disso, há quem considere que a indemnização por imprevisão tem natureza subsidiária

ou supletiva, no sentido de que as partes devem primeiro, na sequência até de convite do

tribunal, proceder às alterações contratuais que se justifiquem para acomodar a situação

extracontratual.113

Note-se porém que, como se viu atrás, há também quem admita que o cocontratante possa

demandar directamente a entidade que praticou o acto imprevisto, já não no contexto da teoria

105 Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traité, cit., p. 596 e 597. 106 R. Chapus, (Droit Administratif Général, tome I, p. 750, e Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traité, cit., p. 606. 107 É a expressão de Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. I, p. 626 108 Como afirma J. Morand-Deviller, Cours, cit., p. 425, “l´indemnité d´imprévision n´est jamais intégrale”. 109 Assim, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. I, p. 626. 110 Para utilizar a expressão de Marcello Caetano, manual, cit., p. 630. 111 Normalmente, entre 90% e 95% dos danos que ultrapassem o limiar da imprevisão (J. Morand-Deviller,

Cours, cit., p. 425, 112 Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traité, cit., p. 606 e seguintes. 113 Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traité, cit., p. 607.

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da imprevisão, mas no quadro da teoria geral da responsabilidade do Estado e demais pessoas

colectivas públicas114.

[…]

A teoria da imprevisão deve ser considerada como de ordem pública, sendo nula e de nenhum

efeito uma cláusula do contrato que a afaste em termos absolutos115.

6.6. O risco do negócio

O risco contratual recorta negativamente a cláusula rebus sic stantibus, o que se justifica, visto

que, em princípio, decorre do pacta sunt servanda que cada parte suporta os agravamentos

resultantes de ocorrências supervenientes que afectem a sua esfera jurídica.

O risco pode definir-se como um evento incerto, mas previsível (senão subsumir-se-ia na

figura da alteração das circunstâncias) e que pode ser positivo ou negativo.

Trata-se de uma figura que, existindo em todos os contratos, é mais relevante também nos

contratos de longa duração, exactamente porque, sendo a relação contratual mais duradoura,

há mais hipóteses de alguma coisa incerta acontecer e afectar as condições contratuais

inicialmente acordadas.

Há alterações que não ultrapassam o risco contratual normal que as partes assumem, a álea do

negócio jurídico. Nestes casos, não se verifica a cláusula rebus sic stantibus, pela simples

razão que as superveniências estão cobertas pelos riscos contratuais, não tendo a outra parte

de arcar com os prejuízos que essa situação acarrete para a outra parte.

114 Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traité, cit., p. 524. 115 Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traité, cit., p. 600.

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Refira-se que nas concessões esta figura assume particular importância, atendendo ao disposto

no artigo 413.º do CCP, que exige que o contrato implique “uma significativa e efectiva

transferência do risco para o concedente”. A esta luz, a

A modelação de qualquer contrato distribuição dos riscos da atividade concedida representa o

aspeto crucial na modelagem do contrato de concessão, visto que, em linhas gerais, a

atividade econômica fica sujeita a riscos provocados por eventos de distintas naturezas que

podem influenciar a lucratividade ou o fluxo de caixa da concessão.

Os riscos são normalmente separados pela doutrina em duas categorias, consoante possam ou

não ser controlados ou mitigados por uma das partes no contrato, a saber, os riscos endógenos

e os riscos exógenos. Os primeiros correspondem aos ricos que podem ser reduzidos pela sua

prévia identificação e atribuição a uma das partes, normalmente, àquela que, de acordo com o

programa contratual em causa, estará em melhores condições para o controlar. Os riscos

exógenos são aqueles que não podem ser controlados pelas partes envolvidas no contrato, não

dependem da sua acção ou diligência, porque a sua origem as transcende.

Os riscos exógenos são o risco económico, o risco de força maior, o risco financeiro e o risco

político.

O risco económico é geralmente associado à “frequentação do estabelecimento” ou à

demanda ou procura do serviço ou do bem. Numa infraestrutura rodoviária, por exemplo, será

o chamado “risco de tráfego”, como a alteração do volume de tráfego ou da sua composição

ou configuração (menos veículos pesados, por exemplo, que normalmente pagam taxas mais

altas), umas vezes ligado ao contexto macroeconómico (crescimento da economia, crise

económica), outras a factores microeconómicos (por exemplo, a entrada em serviço de uma

via concorrente)116.

116 De acordo com Pires e Giambiagi (2000: […]), a dificuldade em estimar o comportamento futuro de variáveis relevantes para o cálculo da rentabilidade económica de um projeto será tanto maior quanto (i) menor o âmbito geográfico afetado e (ii) maior o grau de novidade do empreendimento e/ou as possibilidades de mudança do ambiente no qual o empreendimento está inserido. Em relação a (i), por exemplo, geralmente é mais difícil estimar qual será a taxa de crescimento futuro do tráfego rodoviário numa determinada região do que no país como um todo. Da mesma forma, em relação a (ii), é mais fácil estimar o fluxo de tráfego rodoviário numa estrada entre dois pólos urbanos já saturados do que o fluxo entre dois pólos que poderão sofrer grandes transformações durante o período de vigência de uma determinada concessão. O mais difícil de tudo é projetar a

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Os riscos financeiros são aqueles que decorrem da variação da taxa de juros (quando o

projecto seja financiado a taxas de juros flutuantes ou os prazos das dívidas contratadas sejam

inferiores ao prazo de concessão) ou da variação cambial (quando o fluxo de receitas e o fluxo

de despesas são definidos em moedas distintas).

O risco de força maior corresponde ao risco da ocorrência de um evento que impeça o

cumprimento do contrato, com a especificidade de serem, alguns deles, seguráveis.

Os riscos políticos são os que resultam da acção dos órgãos políticos de um Estado,

designadamente, dos seus órgãos legislativos, e abrangem tanto as medidas ordinárias de

desenvolvimento da legislação (alterações à lei fiscal, à lei laboral, à lei ambiental, etc.), como

medidas extraordinárias de natureza essencialmente política, como a expropriação ou

estatização da concessão117.

Os riscos endógenos, por sua vez, compreendem os riscos de construção, os riscos de

financiamento e o risco regulatório.

Os primeiros correspondem ao incumprimento das cláusulas e especificações técnicas da obra

e ao incumprimento do prazo contratual de execução da obra e tanto podem resultar de

factores económicos (aumento inesperado do custo de construção ou divergência imprevista

entre o custo de construção e o fluxo de caixa projetado no orçamento inicial, decorrentes do

aumento da taxa de inflação, de atraso nas obras, etc), como de factores técnicos

(levantamentos geológicos ou uso de tecnologia inovadora).

O risco de financiamento corresponde à obtenção e estruturação dos financiamentos

necessários à execução do projecto e à gestão dos fluxos de caixa ao longo do período do

contrato de forma a garantir os compromissos assumidos com o “serviço da dívida”.

O risco regulatório corresponde ao risco jurídico resultante dos poderes de intervenção do

contraente público sobre a execução e gestão do contrato (atrasos na aprovação de projectos

do cocontratante, modificação das taxas ou tarifas aplicadas aos utentes da obra ou do serviço, procura por um serviço numa área totalmente nova ou sobre a qual não se dispõe de um histórico estatístico que permita estimar com alguma precisão a evolução futura da variável. 117 Estes últimos riscos são muitas vezes cobertos por seguros ou contratos de garantias do Banco Mundial (através da Agência Multilateral de Garantia de Investimentos).

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alargamento da categoria das pessoas beneficiárias de isenção tarifária, determinações de

introdução de melhorias técnicas ou operacionais do serviço, etc.). Além das medidas

sancionatórias do incumprimento do contrato por parte do contraente público, a doutrina tem

considerado que uma forma de mitigar o risco regulatória passa pela separação entre o poder

do contraente público (ou do poder concedente) e o poder regulador, através da criação de

agências reguladoras das concessões.

6.8. O caso de força maior

Considerações gerais: força maior e caso fortuito

Em primeiro lugar, ao contrário da imprevisão e do fait du prince, que, mesmo indo buscar

muito à alteração das circunstâncias de raiz civil, constituem figuras de natureza e formação

jurídico-administrativa, o caso de força maior é uma figura que, como essa mesma

designação, é estudada no direito civil e regulada em inúmeros contratos privados, com

idênticas consequências às que lhe são assinaladas em direito administrativo118.

O caso de força maior distingue-se da imprevisão e do fait du prince porque, ao contrário

destes, determina a impossibilidade absoluta de cumprimento do contrato. E como, por

definição, não é imputável ao cocontratante, o caso de força maior configura uma causa de

exclusão da responsabilidade do devedor pelo incumprimento (provisório ou definitivo).

O caso de força maior, num contrato com várias prestações a cargo do cocontratante, pode

implicar a impossibilidade da execução de todas elas (impossibilidade de cumprimento do

118 Richer, Droit, cit., 280.

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contrato) ou de apenas uma ou várias (impossibilidade de cumprimento de obrigação do

contrato)119.

Sendo uma figura que, em certa medida, tem natureza residual — por abarcar as situações de

impossibilidade de cumprimento que não sejam imputáveis ao contraente público ou ao

cocontratante —, discute-se se deve ou não distinguir-se o caso de força maior do chamado

caso fortuito.

Para alguns autores, o caso fortuito corresponde aos eventos da natureza, nos quais não há

intervenção humana (inundações, tremores de terra, furacões, raios, ciclones, etc.). Por sua

vez, o caso de força maior representa um facto de terceiro, pelo qual o contraente público ou o

cocontratante não são responsáveis (a guerra, o roubo, uma ordem de autoridade, a greve,

etc.).

(..) o conceito de força maior tem subjacente a ideia de inevitabilidade: será todo o

acontecimento natural ou acção humana que, embora previsível ou até prevenido, não se pôde

evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências. (..)” Almeida Costa, Direito das

obrigações, Coimbra Editora/1984, pp. 752/753.

Os requisitos do caso de força maior

Os elementos constitutivos da força maior, idênticos aos do direito privado e que no direito

dos contratos administrativos ao arrêt Compagnie des messageries maritimes, de 1909, são os

seguintes: exterioridade, imprevisibilidade e irresistibilidade.

A exterioridade significa que o caso de força maior deve ser estranho às partes, alheio a elas,

no sentido de que não deve proceder de facto de qualquer dos contratantes, ou para o qual

119 Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traité, cit., I, p. 727.

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tenham contribuído. Há alguns autores que fazem apenas referência ao facto de o evento não

ser imputável ao devedor, outros que deve ser um facto ou evento estranho às partes120

credor, no sentido de ser ao próprio contraente público por falta contratual sua, se for por ele

na qualidade de poder geral pode haver força maiori

Além disso, é importante ter em consideração que o caso de força maior pode qualquer das

partes, seja pelo cocontratante, seja pelo contraente público121. ser invocado a quem

aproveitePor outras palavras, o que interessa é que

A imprevisibilidade significa que o evento deve ser imprevisto e imprevisível, ou seja, que

não podia ser razoavelmente antecipável pelo contraente à data da celebração do contrato e

atendendo às circunstâncias (jurídicas e de facto) existentes. A imprevisibilidade, nestas

situações, não tem de configurar, portanto, uma imprevisibilidade absoluta, mas apenas

relativa: o que interessa saber é se um determinado evento podia ser antecipável pelas partes,

120 Assim, acórdão do TCA Sul de 7.4.2011, p. 1493/06, (“na exacta medida em que a situação de

incumprimento não seja susceptível de imputação a nenhuma das partes”). 121 Por exemplo, no acórdão do STA de 20.04.1999, proc. 044573, um município invocava uma situação de

força maior (relacionada com litígios sobre a posse de certos terrenos necessários para a consignação da obra), que o teria levado a suspender a execução da empreitada, para negar o direito, requerido pelo empreiteiro ao tribunal, de ressarcimento de danos na forma de lucros cessantes (decorrentes da tal suspensão da obra). O STA, depois de considerar que o “caso de força maior por facto de terceiro há-de constituir como situação imprevisível ou inevitável cujos efeitos se produzem independentemente da vontade, ou das circunstâncias pessoais (no caso) do dono da obra. Tem de se tratar de uma situação ou facto que se apresente com as características de insuperabilidade e imprevisibilidade, de tal modo que o dono da obra não podia evitar tal situação ou facto e subtrair-se às suas consequências”, referiu que, “mesmo existindo esses conflitos sobre a posse dos terrenos e imóveis neles implantados, era ao Município que no exercício dos poderes de que estava legalmente investido cabia superar tais situações, no exercício das suas atribuições e o Município não alegou, nem demonstrou, que não estivesse em condições de superar essas dificuldades, que, a partir do momento em que entrou na posse dos terrenos sempre seriam previsíveis. Ainda no campo das "perturbações derivadas de terceiros", o que ficou provado foi que houve atrasos por paragens e abrandamentos do ritmo causados pela interferência directa de outras empreitadas a cargo de terceiros, mas por obras contratadas pelo Dono da Obra, sem que se possa concluir se tais obras pudessem constituir situações inultrapassáveis ou insuperáveis, quanto ao prosseguimento dos trabalhos da empreitada da Autora, designadamente, através de um adequado planeamento, intersecção e ligação entre as diversas obras executadas pelo Município. Há, assim, que concluir, que o [dono da obra] não logrou demonstrar, em face da matéria provada, que, na hipótese dos autos se estivesse perante uma situação fáctica enquadrável como caso de força maior”.

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pelo devedor, à luz de um critério de diligência considerando as circunstâncias que existiam à

data do contrato122.

A irresistibilidade consiste em o evento se impor à vontade e comportamento das partes

(inevitabilidade do seu aparecimento) e de dele resultar o impedimento da execução do

contrato (inevitabilidade do seu efeito ou consequência).

É esta a marca distintiva da força maior relativamente à imprevisão e ao fait du prince.

Também estes consistem em eventos ou actos imprevisíveis e exteriores às partes (ao menos,

ao cocontratante), mas não são “insurmountables”, é dizer, não determinam a impossibilidade

da execução do contrato, tornando-a apenas “economicamente adulterada” (imprevisão) ou

mais “onerosa”; e é por isso que, ao contrário do caso de força maior, eles não representam

uma causa justificativa da inexecução do contrato, atribuindo apenas ao cocontratante um

direito à modificação do contrato ou a uma indemnização123.

A irresistibilidade, como a imprevisibilidade, é um conceito relativo124, que pressupõe uma

régua ou uma medida jurídica. Por um lado, porque ela só existe para lá daquilo que seria

evitável através dos melhores esforços do cocontratante. A invocação do caso de força maior 122 A propósito da imprevisibilidade, é interessante o acórdão do STA de 2 de Fevereiro de 1995, proc. 031556,

em que estava em causa um contrato celebrado entre uma empresa e o Estado Português nos termos do qual aquela se comprometera a importar uma determinada tonelagem de banana de determinado tipo sem especificação de origem. Não tendo importado a quantidade de bananas a que estava contratualmente obrigada, a empresa requereu a devolução da caução relativa a essas importações e invocava como motivo do não cumprimento do contrato um caso de força maior, respeitante à suspensão de exportações de bananas imposta pelo Governo das Canárias, em virtude de dificuldades de abastecimento do mercado espanhol.

O STA, depois de recordar que “a noção de "força maior" deve ser compreendida na acepção de circunstâncias estranhas ao adjudicador, anormais e imprevisíveis, cujas consequências não poderiam ter sido evitadas, a despeito de todas as diligências postas em prática” e apesar de reconhecer que está nessas condições, além dos fenómenos naturais, “o tradicionalmente chamado "facto do príncipe", ou seja "um acto de autoridade pública, como a proibição de importação de determinados produtos comprados a fabricantes estrangeiros" (cf. o Prof. Galvão Teles, Manual de Direito das Obrigações, t. I, 1957, p. 200)”, fez questão de salientar que é “preciso, porém, que se verifiquem sempre todos os requisitos de que depende a existência do caso de força maior e a sua eficácia liberatória, e assim, e designadamente, que o evento seja imprevisível no momento em que se contraiu a obrigação e insuperável” . E decidiu da seguinte forma: “ora, no caso presente é de concluir que o acontecimento invocado não aproveita, atento que, como empresa importadora de bananas, não podia nem devia ignorar a regulamentação legal espanhola sobre a proibição de exportação de bananas em caso de escassez no mercado espanhol, situação de que também podia conhecer, e isto para além de, aqui, a importação a que a recorrente estava obrigada não estar limitada a bananas desse mercado”, pelo que também não haveria, apesar de não o ter afirmado, irresistibilidade.

123 Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traité, cit., I, p. 729. 124 Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traité, cit., I, p. 730.

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só é justificada por parte de quem tenha feito tudo o que estava ao seu alcance para evitar a

interrupção ou suspensão das prestações contratadas125. Por outro lado, porque a medida dos

“melhores esforços” depende de uma análise caso a caso, em função dos meios que estavam à

disposição do cocontratante, da sua própria capacidade técnica e financeira e também da

própria “força” do evento126.

Da mesma forma, o leque dos eventos que pode subsumir-se no caso de força maior não passa

de categorias elaboradas a partir da jurisprudência ou da experiência da vida, mas que não

dispensa a verificação concreta dos respectivos requisitos: a guerra ou o terrorismo são

situações típicas de força maior, mas para que, numa certa hipótese, representem uma causa

justificativa do incumprimento, é absolutamente necessário que possa afirma-se que, em tal

caso, esse evento determinou de forma irresistível a impossibilidade de execução das

prestações contratuais, proposição que tanto pode ser evidente como falsa127.

É com essa reserva que, de seguida, com o apoio da doutrina, se avançam as categorias de

casos normalmente considerados ou não como de força maior.

Assim, são geralmente classificados como tal os fenómenos naturais que excedam, em si

mesmos ou pela sua gravidade e consequências, aquilo que podia ser antecipável ou previsível

pelas partes. Cabem aqui as intempéries, os desmoronamentos, as epidemias, as explosões, os

incêndios, fenómeno químicos inéditos, etc.

125 Assim, acórdão do STA de 20 de Abril de 1999, proc. 044573. 126 Um pouco diversamente do referido acórdão do STA de 2.02.1995, proc. 031556, no acórdão de 23.02.1995,

proc. 031555, que tratava do mesmo problema (contrato celebrado entre uma empresa e o Estado Português nos termos do qual aquela se comprometera a importar uma determinada tonelagem de banana de determinado tipo sem especificação de origem), o STA salientou mais o aspecto da irresistibilidade (e o da própria exterioridade) do que o da imprevisibilidade, afirmando que não só a empresa, “como importadora de bananas, devia saber que a lei espanhola permitia a proibição que veio a ocorrer, o que impunha que estivesse de prevenção em relação às importações a fazer daquele país, como soube antes de terminar o prazo em que devia proceder à importação que não o podia fazer, não se tendo provado - e o ónus pertencia-lhe - que não o podia fazer, nesse espaço de tempo (20 dias) de outro país, uma vez que nada obrigava a que a importação se fizesse das Canárias. Não se pode dizer por isso que a recorrente é alheia ao facto de não poder ter cumprido em tempo, pelo que excluído está o caso de força maior”.

127 Em certa medida, foi justamente isto que aconteceu no já referido acórdão do STA de 2 de Fevereiro de 1995, proc. 031556, em que, apesar de ter reconhecido que a proibição de importação de determinados produtos comprados a fabricantes estrangeiros era um exemplo dado pela doutrina como caso de força maior, considerou que a hipótese concreta sobre que se pronunciava não preenchia os requisitos da figura. Nas suas palavras, “é preciso, porém, que se verifiquem sempre todos os requisitos de que depende a existência do caso de força maior e a sua eficácia liberatória, e assim, e designadamente, que o evento seja imprevisível no momento em que se contraiu a obrigação e insuperável”.

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As dificuldades com que os contratantes se vão deparando ao longo do contrato não

constituem, claro, casos de força maior, salvo se, excepcionalmente, aparecerem como

impeditivas da regular execução das prestações (por exemplo, uma desmobilização completa

do pessoal afecto à obra, sem motivo aparente, pode obrigar o contraente público a prorrogar

o prazo de execução do contrato). As falhas ou incumprimento de fornecedores ou

subcontratados não são normalmente consideradas como caso de força maior oponível pelo

cocontratante ao contraente público, salvo se tiverem sido impostos ou aprovados por este. A

alteração das leis sociais (redução da duração do horário semanal de trabalho, o aumento do

salário mínimo social, a restrição à contratação de menores, etc.) também não é geralmente

tida como caso de força maior (por falta do requisito da imprevisibilidade ou do da

irresistibilidade). A guerra, como a rebelião armada, geralmente consideradas como factos de

força maior, devem no entanto preencher os respectivos requisitos: só por si, a guerra ou a

rebelião armada não configura um evento que torne irresistível a impossibilidade de

cumprimento do contrato128.

A greve é possivelmente a mais controvertida e também a mais recorrentemente invocada

causa de força maior. Foi de resto a propósito de uma situação dessas que o problema da força

maior se colocou pela primeira vez na jurisprudência francesa, no já referido arrêt Compagnie

des messageries maritimes, de 1909, relativamente a um contrato celebrado entre o estado e a

128 Já houve pelo menos um caso de rebelião armada decidida pelos tribunais portugueses (acórdão de STA 3 de

Outubro de 1995, proc. 035428). Estava em causa um contrato de empreitada de terraplanagem, obras de arte e pavimentação de aeródromos e estradas na Província de Timor, celebrado em 1973 entre o Estado Português e um empreiteiro, que invocava o direito de rescindir o contrato com base numa situação de força maior originada pela eclosão de rebelião armada de efeitos imprevisíveis, que originou a suspensão da obra desde Agosto de 1975. O STA conclui que o empreiteiro tinha direito à rescisão do contrato em virtude da ocorrência de um caso de força maior, argumentando que, em “virtude ainda da subversão iniciada em 11 de Agosto de 1975, as repartições públicas deixaram de funcionar. A rebelião provocou a paralisação das obras, que em 27/9/76 se mantinham nessa situação, sem que fossem removidas as causas que a determinaram (…). Como bem se acentua na sentença, em 11 de Agosto de 1975 eram imprevisíveis as verdadeiras dimensões da rebelião e o tempo durante o qual se manteria, tanto mais que o Governo Português poderia, na linha do procedimento adoptado com outros movimentos rebeldes, celebrar acordo que lhe pusesse termo. A paralisação ocorrida nessa data não revela assim, por parte da autora, o propósito de não cumprir, antes o de suspender temporariamente as obras, na expectativa do que se seguiria, isto por motivo que lhe não é imputável. Estamos deste modo perante suspensão por facto não imputável ao empreiteiro e devida a caso de força maior, que assim a qualifica o nº 3 do artigo 170º do Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas - DL 48871, de 19/2/69, então vigente”.

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dita empresa para a prestação de serviços marítimos postais, no qual se previa a aplicação de

multas pelos atrasos dos “paquebots », salvo « cas de force majeure dûment constaté ».

O Conseil d´État começou por observar que « les grèves partielles ou générales, qui peuvent

se produire au cours d'une entreprise, n'ont pas nécessairement, au point de vue de l'exécution

du contrat qui lie l'entrepreneur au maître de l'ouvrage, le caractère d'événements de force

majeure », e que há sempre que proceder ao « examen des faits de la cause, de rechercher si la

grève a eu pour origine une faute grave de la part de l'entrepreneur, si elle pouvait être évitée

ou arrêtée par lui, et si elle a constitué pour lui un obstacle insurmontable à l'accomplissement

de ses obligations ».

Posto isto, verificou o Conseil d´État que « à la suite de réclamations formulées par les

inscrits maritimes contre plusieurs officiers de la marine marchande employés par diverses

compagnies de navigation et de mises à l'index ayant eu pour effet d'obtenir le débarquement

de ces officiers, tous les états-majors des navires de commerce du port de Marseille ont décidé

de se solidariser et de cesser le travail tant que les compagnies, qui avaient cédé aux menaces

des inscrits maritimes, n'auraient pas réintégré dans leur emploi les officiers débarqués », o

que significava, por um lado, « que la grève générale des états-majors de la marine marchande

survenue dans ces circonstances, n'avait pas pour origine une faute de la Compagnie des

messageries maritimes; que cette Compagnie, qui était étrangère au conflit existant entre les

inscrits maritimes et les états-majors, n'avait pas le pouvoir de la prévenir ni de l'arrêter, qu'il

n'est nullement établi qu'elle ait cherché à la favoriser, et qu'il n'est relevé à sa charge aucun

fait de nature à engager de ce chef sa responsabilité; qu'ainsi la grève générale des états-

majors a eu à l'égard de la Compagnie des messageries maritimes le caractère d'un événement

indépendant de sa volonté, qu'elle était impuissante à empêcher » e considerando, por outro

lado, « que la grève générale des états-majors avait pour conséquence de rendre impossible le

départ des paquebots de la Compagnie et l'exécution du service postal qui lui était confié; que

l'Etat n'a, à aucun moment, offert à la Compagnie des messageries maritimes, ainsi qu'il l'a

fait pour d'autres compagnies, le concours des officiers de la marine nationale; qu'il s'agissait

pour elle, non d'une simple gêne, mais d'un obstacle insurmontable », tendo assim dado como

verificado o caso de força maior e condenado o Estado no pagamento de uma indemnização.

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Em termos gerais, o problema da greve não é tanto o da sua imprevisibilidade129, como o da

sua irresistibilidade130, ou seja, saber se o cocontratante, por um lado, não provocou a situação

e se fez os esforços de conciliação que lhe eram razoavelmente exigíveis (o que depende

também muito do próprio fundamento da greve e das reivindicações dos trabalhadores, se as

houver) e, por outro lado, se ela constitui um obstáculo “insurmountable” ao cumprimento das

suas obrigações, designadamente, se era ou não possível ao cocontratante, do ponto de vista

jurídico ou do ponto de vista de uma exigência razoável, procurar outros trabalhadores que

substituíssem os grevistas131/132.

O caso de força maior administrativa

[…]

Considera-se como caso de força maior o facto de terceiro pelo qual a segunda contratante

não seja responsável e para a qual não haja contribuído e, bem assim, qualquer outro facto

natural ou situação imprevisível, ou inevitável, cujos efeitos se produzam independentemente

da vontade ou das circunstâncias pessoais da segunda contratante e quaisquer outros eventos

que afectem a execução das prestações de saúde, tais como actos de guerra ou subversão,

epidemias, ciclones, tremores de terra, fogo, raio, inundações, greves gerais ou sectoriais».

129 Embora ela também possa estar em causa (Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traité, cit., I, p. 734). 130 Flamme, Traité, cit., p. 582, nota 4. 131 Laubádére/Moderne/Dèvolvé, Traité, cit., I, p. 734. 132 No acórdão do TCA Sul de 7.4.2011, p. 1493/06, depois de se confirmar que, “em sede de responsabilidade

contratual, o caso de força maior tem consequências exoneratórias do não cumprimento em benefício do devedor, na exacta medida em que a situação de incumprimento não seja susceptível de imputação a nenhuma das partes”, entendeu-se que “a ausência de todos os médicos tarefeiros, com contrato de prestação de serviços, escalados para o Serviço de Urgência de Obstetrícia/Ginecologia a ponto de fechar o serviço, não se insere no conceito de caso de força maior porque se trata de factos praticados por terceiros vinculados perante o gestor do hospital por uma relação obrigacional de trabalho, vínculo que, por sua vez, responsabiliza o gestor perante a Administração, nos termos do contrato de gestão hospitalar firmado”.

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O CCP veio regular os casos de impossibilidade (temporária ou definitiva) de cumprimento

do contrato, em termos aparentados aos do Código Civil.

Assim, no artigo 297º, a propósito da “suspensão da execução”, estabelece que “a execução

das prestações que constituem o objecto do contrato pode ser, total ou parcialmente, suspensa

[quando haja uma situação de] impossibilidade temporária de cumprimento do contrato,

designadamente em virtude de mora do contraente público na entrega ou na disponibilização

de meios ou bens necessários à respectiva execução”. Depois, no elenco das causas de

extinção, referiu-se, entre outras, à “impossibilidade definitiva” [alínea a) do artigo 330º]133.

A questão também tem vindo a ser tratada no direito da União Europeia. O primeiro acórdão

do TJUE sobre a matéria data de 1970 (Internationale Handelsgesellschaft/Einfuhr-und

Vorratsstelle Getreide) e trata do conceito de “caso de força maior” a propósito da exclusão

da perda de uma caução, tendo-se afirmado aí que “o conceito de força maior não se limita

apenas à impossibilidade absoluta mas deve ser entendido no sentido de circunstâncias

anormais […] e cujas consequências não pudessem ser evitadas senão à custa de sacrifícios

excessivos, apesar de toda a diligência utilizada”.

O acórdão de 13 de Outubro de 1993, processo C-124/92 fornece uma boa delimitação

negativa do conceito: “A modificação da legislação de um Estado terceiro relativa à qualidade

dos produtos que importa, em virtude da qual uma exportação prevista para este Estado

terceiro não pode ser realizada, deve ser considerada como uma circunstância alheia ao

operador interessado. Todavia, numa hipótese como a do litígio principal, não se podem

considerar preenchidas as outras condições resultantes da jurisprudência do Tribunal de

Justiça. Com efeito, tal evento constitui um risco comercial habitual no âmbito das

transacções comerciais com um organismo de um país de comércio de Estado, dependendo

directamente do poder público deste Estado. Tal como a Comissão justamente observou, os

operadores que intervêm em tais transacções correm o risco de o Estado de que depende o

133 No artigo 337º, a propósito dos contratos sobre o exercício de poderes públicos, o legislador também previu,

no respectivo número 2, que “os contratos pelos quais o contraente público se vincula a praticar, ou não praticar, um acto administrativo com certo conteúdo extinguem-se por força da alteração ou da impossibilidade superveniente de concretização dos pressupostos que ditariam o exercício da discricionariedade administrativa no sentido convencionado”.

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organismo de comércio em questão modificar ulteriormente, através de um acto de soberania,

a legislação regulamentadora da importação dos produtos vendidos a este organismo”.

As demandantes invocam ainda que a modificação da legislação soviética deve ser

considerada um evento anormal e imprevisível, dado que esta legislação permanecera em

vigor 30 anos e que a sua modificação se verificou sem publicação e sem notificação prévia.

Tal argumento nunca poderia ser aceite. Quando participa numa transacção comercial relativa

a produtos destinados a serem vendidos, num Estado terceiro, a um organismo como o

descrito anteriormente, um operador prudente deve prever a hipótese de as regras do Estado

de importação, que fixam as condições relativas à qualidade dos produtos importados e de que

depende a realização da transacção, serem modificadas, ainda que essas regras tenham

permanecido inalteradas por um longo período”.

Outro acórdão relevante é o acórdão Huygen, de 7 de Dezembro de 1993, onde se reconhece

que, “segundo jurisprudência constante, a noção de força maior não tem o mesmo conteúdo

nos diversos domínios de aplicação do direito comunitário, devendo o seu significado ser

determinado em função do quadro legal no qual está destinado a produzir os seus efeitos”

No acórdão de 10 de Abril de 2003, processo C-167/99, é referido que, de um “modo geral,

tais factos não são considerados de força maior, na medida em que não podem, em princípio,

ser considerados imprevisíveis. Com efeito, os incumprimentos de empresas são

relativamente correntes no decurso da realização de uma obra e são encarados pela

jurisprudência como contingências normais das obras”.

Mais recentemente no acórdão de 18.12.2007, C-314/06, afirma o TJUE que “o conceito de

força maior não está limitado ao de impossibilidade absoluta, devendo ser entendido no

sentido de circunstâncias alheias ao operador, anormais e imprevisíveis, cujas consequências

não poderiam ser evitadas apesar de todos os esforços desenvolvidos”.

Por último, nas conclusões do Advogado-Geral Niilo Jääskinen, apresentadas em 14 de março

de 2013, processo C-509/11, reconhece-se que o conceito de “força maior” é um princípio

geral de direito, afirmando-se o seguinte: “o conceito, para a União Europeia, de força maior

implica «circunstâncias [...] anormais e imprevisíveis». Contudo, no contexto dos contratos de

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transporte ferroviário de passageiros, os casos mais frequentes de força maior, nomeadamente

condições meteorológicas difíceis, danos na infraestrutura ferroviária e conflitos no mercado

de trabalho, na realidade têm uma frequência estatística previsível, ainda que os casos

concretos não possam ser previstos com certeza. Isto significa que a probabilidade de os

mesmos virem a ocorrer é conhecida antecipadamente pelas empresas ferroviárias. Isto

também significa, portanto, que eles podem ser tidos em conta no cálculo do preço dos

bilhetes”.

6.9. A resolução por motivos de interesse público

A par da modificação do contrato administrativo, a lei reconhece também ao contraente

público o poder de decretar a resolução dos contratos administrativos com fundamento em

razões de interesse público. Era o que já se previa no artigo 180º, alínea c), do CPA, e é o que

hoje se prevê no artigo 334º do CCP134.

Esta resolução do contrato, como o seu próprio nome indica, funda-se na alteração dos juízos

político-administrativos que estiveram na base da decisão de contratar (artigos 36º e 37º do

CCP) , não se confundindo, por isso, nem com a resolução sancionatória (artigo 333º do

CCP), em que a extinção do contrato é decretada a título de sanção administrativa por

incumprimento das obrigações assumidas pelo cocontratante135, nem com a resolução com

fundamento na alteração anormal e imprevisível das circunstâncias (artigo 335º do CCP).

Do ponto de vista do seu fundamento material, a existência do poder de rescisão por

conveniência administrativa justifica-se pela necessidade de o cocontratante “garder la

maîtrise” da organização dos serviços públicos ou, mais abrangentemente, de manter na sua

disponibilidade o juízo sobre a utilidade ou necessidade do contrato administrativo, e de isso

134 Este poder é concedido pela lei, independentemente da respectiva inclusão no instrumento contratual,

designadamente para os contratos administrativos típicos previstos no n.º 2 do artigo 178º do CPA – nesse sentido, v. o recente Acórdão do Pleno do STA de 19/02/2004.

135 Sobre esta distinção, v. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. I, pág. 637.

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implicar que, quando haja interesse (público) sério nisso, ela possa, por acto de autoridade,

extinguir o contrato136.

A lei não se refere, como se fazia na alínea c) do artigo 180º do CPA, à necessidade de existir

um motivo imperioso, mas apenas à existência de razões de interesse público, e que se

fundamente devidamente a decisão tomada.

Apesar de falta de referência ao “motivo imperioso” de interesse público, deve entender-se,

dada a vinculatividade do contrato administrativo e ao dever de respeito pela palavra dada,

que não é suficiente para o efeito uma situação de mera conveniência, mais venial, digamos

assim, para o interesse público.

Como também não será fundamento legítimo da resolução um motivo puramente financeiro,

suportado na diferente avaliação económico-financeira que o contraente público fizesse hoje

da rentabilidade ou da relação qualidade-preço do contrato em apreço. Não se admite, por

exemplo, que o contraente público possa resolver um contrato administrativo só para acordar

com outro as mesmas prestações (ou similares) que lhe ofereça melhores condições

financeiras137.

É necessário, portanto, que haja um interesse público ponderoso, ligado a uma ideia de séria

ou grave inconveniência administrativa na manutenção do contrato à luz das novas

considerações ou juízos que o cocontratante faça hoje sobre a melhor prossecução do interesse

público que lhe está legalmente confiado e pela qual ele é o único responsável. Se, por

exemplo, houver necessidade ou séria conveniência em proceder à reorganização do serviço

público de operação portuária em determinado porto e se a manutenção das concessões

existentes nesse espaço dominial for incompatível com esse desiderato mais vasto, será

legítima a resolução do contrato, tanto do ponto de vista da lei como dos princípios jurídicos

que regulam a matéria das concessões administrativas, designadamente o princípio da

prevalência do serviço público sobre o contrato de concessão138 ou o princípio da reserva de

136 Assim, Laubadére/Moderne/Delvolvé, Traité des contrats administratifs, 1983, vol. II, pág. 694. 137 Nestes precisos termos, Laurent Richer, Droit des contrats administrafs, 1995, p. 188. No mesmo sentido,

Mário Esteves de Oliveira/Pedro Gonçalves/Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 1997, p. 826.

138 Fazendo referência a este princípio, v. Pedro Gonçalves, A concessão …, cit., p. 344.

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interesse público, nos termos do qual, “quando contrata administrativamente, a Administração

contrata sempre sob reserva de compatibilidade do contrato com o interesse público”139.

Uma questão que pode colocar-se é saber se e em que termos esse poder de resolução por

motivos de interesse público pode ser exercido quando haja regulação contratual no sentido

de a concessão ser resgatável por motivos de interesse público apenas após o decurso de um

certo prazo (o chamado “délai d’inviolabilité”).140.

Julgamos que há que distinguir. O “délai d’inviolabilité” só deve valer para as situações em

que a extinção da relação contratual tem como fundamento o (ou um) interesse público

directamente implicado no contrato, ou seja, quando o interesse público que se apresenta

como justificação para o resgate (ou para a resolução) seja o concreto “interesse público

concessionado”, que constitui o objecto específico do contrato, sobre o qual se verificou o

acordo entre as partes.

Esse regime contratual já não se aplica, porém, quando o interesse público que pede ou exige

a resolução não se encontra “situado” no contrato a resolver, mas é de dimensão e de alcance

mais geral (por exemplo, numa infraestrutura portuária, uma coisa é pretender reorganizar um

dos terminais, outra seria a reorganização do serviço público da operação portuária em todo o

porto, atribuindo a sua gestão global a uma só entidade ou separando essa gestão por vários

terminais especializados, cada um com o “seu” concessionário).

139 Mário Esteves de Oliveira/Pedro Gonçalves/Pacheco de Amorim, Código …, cit., p. 826. 140 Note-se que não valeria a pena cuidar aqui de saber se cláusulas contratuais destas ― que definem ou

limitam as circunstâncias em que é legítimo o exercício de poderes públicos contratuais por parte da Administração ― são sempre cláusulas válidas, ou seja, em saber se o facto de o poder de rescisão por motivo imperioso de interesse público ter natureza e fundamento legal [cf. alínea a) do artigo 180º do CPA], e de o regime ou estatuto legal dos contratos administrativos ser, salvo indicação expressa em contrário, de ordem pública, e, como tal, imperativo e inderrogável, se tudo isso implicará, ou não, a nulidade das cláusulas contratuais ad hoc que limitem temporalmente esse poder de autoridade, que é ali, na lei, temporalmente incondicionado. E não vale a pena porque, além de o poder de resgate estar sujeito, em regra, a um “délai d´inviolabilité”, o próprio nº 29.1 (aliás, todo o nº 29) do Contrato não é resultado da autonomia negocial das partes, da faculdade que têm, em geral, de conformar ou fixar o conteúdo dos contratos que celebram. Ele é, antes, mera transcrição do nº 1 da Base XVII das Bases anexas ao (e aprovadas pelo) Decreto-Lei nº 324/94. Ora, se é verdade que as bases de uma concessão mantêm, mesmo quando legalmente aprovadas, a sua natureza contratual, o facto da sua aprovação legal retira-lhes, para o efeito aqui em causa, fundamento ou base contratual, para lhes emprestar um fundamento legal, conferindo-lhes, por isso mesmo, uma especial força e valia, nomeadamente para “derrogar” ou “condicionar” o regime da alínea c) do artigo 180º do CPA.

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Por outras palavras, o “délai d’inviolabilité” não é oponível pelo cocontratante ao contraente

público quando o interesse público por este invocado seja “extracontratual” ou

“supracontratual”. Nestes casos, não é propriamente de um resgate que se trata ― enquanto

“modalidade contratualmente prevista do poder de rescisão”, por motivos de interesse público

ligados à concessão em causa ―, mas de uma verdadeira resolução fundada na lei (no artigo

334º do CCP) e em razões de interesse público mais vasto, exorbitante ao contrato que se

pretende extinguir141.

Havendo resolução do contrato, o contraente público fica constituído no dever de indemnizar

o cocontratante ou, como diz a lei (artigo 334º do CCP), no dever de lhe pagar a “justa

indemnização” [também era esta a fórmula a alínea c) do artigo 180º do CPA].

A indemnização por acto lícito respeita ao dano positivo – isto é, aos prejuízos sofridos pela

celebração do contrato – e abrange em princípio, segundo a doutrina, dois componentes: de

um lado, a indemnização de amortização (indemnização pelo valor não amortizado das

instalações afectas à concessão, que hajam sido custeadas pela concessionária) e, por outro

lado, a indemnização industrial, devida pelos benefícios que ela deixou de auferir durante as

anuidades que restavam até ao termo do prazo da concessão142.

7. Uma proposta de sistematização dos casos de alteração das circunstâncias

7.1. As categorias relevantes da instabilidade contratual

A (falta de) autonomia do fait du prince e da imprevisão

141 A previsão legal do poder de rescisão unilateral, tal como não necessita de estar prevista no contrato, não

pode ser limitada pelo contrato senão na medida dos interesses que estão em jogo nesse contrato. 142 Assim, Pedro Gonçalves, A concessão …, cit., p. 357.

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A grande diferença é que, no quadro dos contratos administrativos, a alteração das

circunstâncias dá em princípio lugar à modificação do contrato [é o que resulta do artigo 312º,

alínea a), e do artigo 314º, nºs 1 e 2, do CCP], ao contrário do que acontece no direito dos

contratos privados, em que ela tem normalmente por efeito habilitar uma das partes a pedir a

resolução do contrato (artigo 437º/1 do CC)143.

Sendo que essa diferença só pode explicar-se porque os contratos administrativos estão

normalmente adstritos à realização de uma tarefa de serviço público, nos quais a resolução

tem de ser configurada como uma medida de ultima ratio.144

Contudo, da alteração das circunstâncias pode também resultar a impossibilidade definitiva de

cumprimento do contrato – situação em que se pode falar de “caso de força maior” - e, aí sim,

haver lugar à resolução do contrato.

A (falta de) autonomia administrativa do caso de força maior

Capítulo III — […]

8. A modificação do contrato administrativo por acto administrativo do contraente

público

8.1. O interesse público implicado no contrato administrativo

143 Assim, Sérvulo Correia, Lino Torgal e Pedro Fernández Sánchez, Alteração das Circunstâncias e

Modificação de Propostas em Procedimentos de Contratação Pública, Estudos de Contratação Pública - III, Coimbra, 2010, p. 169.

144 Também neste sentido, mas reportando-se, sem razão aparente, aos “contratos da Administração” e não aos contratos administrativos, Alexandra Leitão, O Tempo e a Alteração das Circunstâncias Contratuais, p. […].

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71

A modificação do contrato “is a change in one or more respects which introduces new

elements into the details of the contract or cancels some of them, but leaves the general

purpose undisturbed”.

Trata-se de, como explicita PEDRO GONÇALVES[97], «um poder fundado em razões de

interesse público, em cujos termos a entidade pública contratada fica autorizada a impor uma

alteração ao contrato que celebrou quando do seu ponto de vista, o interesse público a

reclama».

MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA[98] defende que «[o] fundamento do poder de

modificação reside no facto de, nos contratos de colaboração subordinada, o co-contratante

ficar directamente associado à satisfação dum interesse público e se este pode variar na sua

intensidade a Administração há-de poder também adaptar o contrato às novas exigências, sem

o que a necessidade colectiva sairia irremediavelmente comprometida».

Ob. Cit., pág. 107.

[98] Direito Administrativo, vol.1, Almedina, Coimbra, 1980, pág. 698

8.2. A caracterização do poder de modificação do contrato administrativo

A modificação unilateral do contrato traduz-se num poder público de autoridade exercido

através de acto administrativo pelo qual o contraente público altera uma cláusula do contrato

respeitante ao conteúdo ou ao modo de execução das prestações contratuais.

Como se sabe, o poder público de modificação unilateral dos contratos administrativos

exerce-se, por via de regra, através de acto administrativo, é dizer, através de uma decisão da

Administração contratante destinada a produzir certos efeitos de direito numa situação

individual e concreta. E, no silêncio da lei, através de um acto desses praticado por escrito

(nos termos do artigo 122º/1 do CPA), sem sujeição a qualquer forma solene, não sendo

necessário observar, para a exteriorização da vontade administrativa, qualquer fórmula ou

modelo especial, salvo disposição da lei em sentido diverso.

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72

E trata-se, por outro lado, de um faculdade formal e substancialmente muito distinta da

cláusula rebus sic stantibus consagrada no artigo 437º do Código Civil145.

Por várias razões.

Formalmente, porque a modificação unilateral do contrato é um poder público de autoridade

no contrato administrativo, ou seja, é um poder (que pertence apenas a uma das partes no

contrato, ao contraente público) cujo exercício de processa através da prática de um acto

administrativo, a uma decisão de autoridade cujos efeitos de impõem ao cocontratante.

Diversamente, o regime do artigo 437º do Código Civil não atribui a qualquer das partes esse

poder (nem sequer sob a forma de direito potestativo), mas apenas o direito de requerer a um

tribunal que, com base na alteração das circunstâncias, decrete a (resolução ou) sua

modificação do contrato. O que significa que, enquanto a modificação administrativa das

prestações acordadas é decreta por uma das partes, a modificação prevista no artigo 437º do

Código Civil opera apenas por via (e sentença) judicial.

Em segundo lugar, quanto ao seu fundamento, a modificação do artigo 437º do Código Civil

processa-se com base numa alteração anormal e imprevisível das circunstâncias (de facto ou

de direito) em que as partes fundaram a decisão de contratar, enquanto o poder de

modificação unilateral não pode ser exercido com esse fundamento, mas apenas invocando-se

razões de interesse público.

Além disso, essas razões de interesse público não pressupõem qualquer alteração das

circunstâncias existentes à data da celebração do contrato, podendo resultar apenas de uma

nova ponderação que o contraente público faça de circunstâncias já existentes em tal146, de

uma diferente valoração das exigências actuais do interesse público implicado no contrato.

Mas mesmo quando as razões de interesse público se suportem numa alteração das

circunstâncias, esta não tem de ser anormal e imprevisível, bastando que se trate de

“necessidades novas”.

145 Em sentido diferente, Maria João Estorninho refere (no seu Requiem pelo contrato administrativo, 1990,

pp.130 e 138) que o poder de modificação unilateral não permite distinguir o regime do contrato administrativo do regime do contrato de direito privado, porque também neste vale, por força do artigo 437º do CC, a cláusula rebus sic stantibus.

146 Pedro Gonçalves, A concessão de serviços públicos, 1999, cit., p. 261.

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Em terceiro lugar, se o poder de modificação unilateral cabe apenas ao contraente público, os

efeitos da modificação objectiva da base negocial, contemplados no artigo 437º do Código

Civil, valem para ambos os contraentes, mesmo se por via do artigo […] do CCP.

Em quarto lugar, se o disposto no preceito civil aponta, como solução principal, para a

resolução do contrato, salvo se a outra parte “declarar aceitar a modificação do contrato”, o

ius variandi administrativo parte do princípio inverso: o cocontratante (dentro de certos

limites) mantém-se obrigatoriamente vinculado ao contrato, não lhe sendo dado pedir a

rescisão.

Por último, a modificação no domínio da cláusula rebus sic stantibus opera segundo “juízos

de equidade”, enquanto a modificação dos contratos administrativos, ao abrigo do ius

variandi, opera de acordo com o princípio do equilíbrio financeiro, atribuindo ao

cocontratante o direito a uma compensação económica147.

Como se vê, são muitas as diferenças entre a cláusula rebus sic stantibus civil e o ius variandi

administrativo.

8.3. Os fundamentos do poder de modificação do contrato administrativo

8.3.1. A recusa do poder de modificação em caso de alteração das circunstâncias

Como se viu atrás, há, de acordo com o artigo 312º do CPC, dois fundamentos gerais para a

modificação do contrato administrativo, a saber:

(i) Alteração anormal e imprevisível das circunstâncias em que as partes fundaram

a decisão de contratar, desde que a exigência das obrigações por si assumidas

afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos

próprios do contrato

147 Freitas do Amaral, Curso ..., cit., p. 625 e 626.

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(ii) Razões de interesse público decorrentes de necessidades novas ou de uma nova

ponderação das circunstâncias existentes.

No entanto, como resulta do artigo 311º/2, o poder de modificação unilateral não pode ter

como fundamento a referida alteração anormal e imprevisível das circunstâncias, mas apenas

as tais razões de interesse público, proposição que é corroborada pelo disposto no artigo

307º/2, alínea b), onde, a propósito da natureza das declarações do contraente público, se

afirma revestirem natureza de acto administrativo as declarações que se traduzam na

“modificação unilateral das cláusulas respeitantes ao conteúdo e ao modo de execução das

prestações previstas no contrato por razões de interesse público”.

O regime, como se sabe, é diferente em matéria de resolução do contrato. Na verdade, o artigo

334º atribui ao contraente público o poder de resolver o contrato por razões de interesse

público — como sucede em sede de modificação unilateral —, mas logo depois o artigo 335º

reconhece-lhe também o direito à resolução do contrato com fundamento na alteração anor-

mal e imprevisível das circunstâncias, remetendo expressamente para a alínea a) do artigo

312º a propósito dos requisitos em que tal poder/faculdade pode ser exercida148.

Assim, se é verdade que a alteração anormal e imprevisível das circunstâncias é fundamento

da modificação do contrato, terá de ser nesse caso uma modificação acertada por acordo entre

as partes ou dependente de decisão judicial ou arbitral, não abrindo a porta à modificação

unilateralmente imposta por acto do contraente público. Ocorrendo uma alteração das

circunstâncias, pode acontecer o seguinte:

148 Outra questão diferente é saber se a resolução do contrato com fundamento na alteração das circunstâncias

resulta do exercício de um poder público de autoridade (através portanto de acto administrativo) ou se se trata antes de um mera declaração negocial. Neste último sentido, já ao abrigo do CCP, cf. Rebelo de Sousa/Salgado de Matos, Contratos Públicos, pp. 154-155, e Mário Aroso de Almeida, “Contratos administrativos e poderes de conformação do contraente público no novo Código dos Contratos Públicos”, pp. 14-15, e […]. Antes do CCP, Pedro Gonçalves, O contrato administrativo, pp. 126 e 136, também separa o poder de resolução unilateral, por razões de interesse público, do direito à resolução do contrato por alteração anormal e imprevisível de circunstâncias, que, na ausência de acordo, qualquer das partes poderia fazer valer através dos tribunais.

No entanto, como bem observa Aroso de Almeida, […], “não pode deixar, no entanto, de notar-se que, tanto a alínea e) do artigo 302º, como a alínea d) do nº 2 do artigo 307º, se referem genericamente a um poder do contraente público de resolução unilateral do contrato, sem especificar que esse poder só se pode fundar em razões de interesse público; e, por outro lado, a alínea c) do artigo 330º, ao referir-se às hipóteses em que a resolução do contrato resulta de decisão do contraente público, não remete apenas para os artigos 333º e 334º, mas também para o artigo 335º”.

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(i) O contrato, apesar disso, é para manter, e ou o contraente público consegue

“negociar” com o cocontratante os termos e condições do seu reflexo ou

impacto contratual ou só lhe resta instaurar uma acção (em tribunal judicial ou

arbitral), não podendo ele mesmo tirar unilateralmente as consequências

contratuais dessa alteração (é um caso portanto em que não pode haver um acto

administrativo substitutivo de um contrato administrativo).

(ii) Ou o contrato, por causa disso, deve terminar, e então o contraente público

pode resolver o acordo, pondo-lhe fim.

A solução do CCP parece ser a mais equilibrada.

Por um lado, porque está em sintonia com a matriz originária e tradicional do poder de

modificação unilateral, cujo fundamento sempre foi o interesse público e não propriamente a

alteração das circunstâncias.

Por outro lado, enquanto em matéria de interesse público o juízo do contraente público é um

juízo especializado, que resulta de uma especial posição sua de garante da contínua

instrumentalização do contrato às necessidades da colectividade, o mesmo já não sucede na

parte estritamente relativa à alteração das circunstâncias, em que o seu juízo não se suporta

em qualquer competência técnica ou político-administrativa. Por outras palavras, aqui, o juízo

do contraente público está em paridade com o juízo do cocontraente, não havendo motivos

para fazer sobrepor juridicamente o primeiro ao segundo.

Em terceiro lugar, e este é um ponto importante, o CCP apenas exclui a alteração anormal e

imprevisível das circunstâncias enquanto fundamento autónomo de uma modificação

unilateral do contrato, mas nada impede, pelo contrário, que essa alteração seja invocada pelo

contraente público se e na medida em que haja projecções ou implicações suas em matérias de

interesse público, ou seja, uma alteração tal que implique “necessidades novas” ou das quais

resulte “uma nova ponderação das circunstâncias existentes”. Por outras palavras, a alteração

das circunstâncias não pode ser fundamento autónomo de uma modificação unilateral, mas

pode acontecer que, com base nelas, possam invocar-se fundamentadamente “razões de

interesse público”.

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E consideramos boa esta solução mesmo quando a confrontamos com aquela outra que

confere o direito à resolução do contrato pelo contraente público em caso de alteração das

circunstâncias (artigo 355º do CCP).

Em primeiro lugar, porque essa é uma hipótese típica do direito dos contratos, inscrita no

artigo 437º do Código Civil, que não há motivo para afastar do domínio dos contratos

administrativos (independentemente de saber se ela ocorre aqui, no direito dos contratos

administrativos, nos mesmos termos em que tem lugar nos contratos sujeitos ao Código Civil

ou se essa resolução consubstancia um poder público de autoridade)149. Depois, porque uma

alteração das circunstâncias que, pela sua gravidade ou impacto, ponha em xeque a

manutenção do contrato é muito mais crítica para o interesse público do que uma outra cujo

impacto no contrato fosse acomodável através da sua modificação, compreendendo-se assim

que em tais hipóteses o legislador tenha previsto a possibilidade de o contraente público pôr

fim ao contrato.

8.2.1. As razões de interesse público: contratual e extracontratual

Voltemos então ao fundamento legal da modificação unilateral, para procurar saber em que

consistem as tais “razões de interesse público decorrentes de necessidades novas ou de uma

nova ponderação das circunstâncias existentes”.

Em primeiro lugar, razões de interesse público são motivos concretos relacionados com o

interesse público implicado em determinado contrato administrativo. Não significa isto que

tais razões tenham de ancorar-se em considerações estritamente associadas ao contrato em

causa, podendo fundar-se em considerações de ordem mais vasta ou abrangente, em

considerações extracontratuais ou supracontratuais, com impacto num certo contrato ou numa

categoria deles.

Por exemplo, o juízo que se faça sobre a maior conveniência de adoptar um novo modelo de

financiamento das infraestruturas rodoviárias concessionadas (ou subconcessionadas) é algo

149 Embora não seja essa a nossa opinião, já vimos que, segundo a posição maioritária da doutrina portuguesa, do que se trata aí é de uma resolução pedida pelo contraente público, mas decretada pelo tribunal, e não de um poder público de autoridade do contraente público.

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que transcende um certo contrato e que pode, ainda assim, justificar a sua modificação (veja-

se o que aconteceu entre nós com a modificação de alguns contratos de concessão de

infraestruturas rodoviárias, que passaram do regime de “portagens virtuais” para o regime de

“portagem real”).

Além disso, é importante ter em consideração que a prevalência do interesse público sobre a

estabilidade do conteúdo contratual também se manifesta através da preponderância da

soberania estadual revelada no poder de opção político-legislativa. Com efeito, além dos

interesses públicos específicos que estão na base da celebração dos contratos, o contraente

público tem de cumprir e o cocontratante tem de suportar as alterações que resultem de

imposições genéricas do legislador, no contexto de opções políticas gerais que repercutam os

seus efeitos nas áreas da vida social ou nas relações jurídicas em que opere o contrato. Entre a

opção político-administrativa em matéria contratual e a opção político-legislativa há muitas

vezes fronteiras pouco nítidas, ora aparecendo esta com uma formulação que a aproxima da

primeira, ora aparecendo esta como uma espécie de medida de implementação de um juízo já

formulado noutro contexto. Por outras palavras, há casos em que a intenção determinante das

medidas tomadas (ou propostas) pelo contraente público está intimamente associada ou

relacionada com uma mudança ao nível político-legislativo, com uma nova opção política

genérica (“indirizzo politico”), sobre novos modelos ou paradigmas tidos como mais

adequados e convenientes do ponto de vista da colectividade, que até pode ser dirigida à

colectividade em geral, mas que pede modificações mais ou menos profunda aos contratos

implicados no sector ou actividade em causa. Em tais casos, a modificação do contrato releva

sempre, e em qualquer caso, de uma determinação administrativa contratual, mas que se

encontra vinculada a uma opção estrutural mais vasta e decidida a um outro nível. Facto que

pode relevar também no próprio domínio da legitimidade do interesse público da adaptação

sobre a estabilidade contratual, pois uma opção política estrutural deve ser susceptível de

realização. E torna igualmente mais clara a assunção pública da responsabilidade.

Em segundo lugar, é necessário que se trate de uma razão efectiva de interesse público, de

algo reclamado para a melhor instrumentalidade do contrato ao interesse público que o

justifica. Interesse público, aqui, não é sobretudo tomado por antinomia com interesse

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privado, mas como interesse associado a uma tarefa pública ou interesse (necessidade) que

justificou a decisão de contratar.

Em terceiro lugar, não é necessário que haja uma alteração anormal ou imprevisível das

circunstâncias de interesse público ou sequer que estejam em causa razões imperiosas ou

ponderosas, sendo suficiente para legitimar a modificação de um contrato razões mais veniais,

mais vulgares, desde que se suportem em motivos efectivos e concretos de interesse público.

Da mesma forma, e em parte como consequência disso, as modificações tanto podem assentar

em juízos de necessidade como em juízos administrativos de (maior) conveniência.

Recorrendo a umas expressões de um método usado na gestão (o MoSCoW analysis), mas não

ao sentido que têm aí, diríamos que legitimam a modificação unilateral do contrato não

apenas os requisitos must have, que são absolutamente críticos para o sucesso de um

determinado projecto ou contrato (“any requirement that absolutely has to be delivered for the

project to be considered successful”), sem os quais portanto o contrato não serviria a sua

função (“the project delivery should be considered a failure”)150, como os requisitos should

have, que, embora não sejam críticos ou necessários, se fundam em considerações de séria ou

ponderosa conveniência, muito relevantes para o maior sucesso do projecto, mas também os

requisitos could have, muitas vezes vistos como requisitos nice to have, desde que se fundem

justificadamente em considerações ligadas ao maior proveito público da modificação. Se se

preferisse recorrer a outra imagem (a das benfeitorias), diríamos que apenas as modificações

voluptuárias não poderiam perturbar a estabilidade do contrato, admitindo-se tanto as

necessárias como as úteis, que aumentem o valor público, a utilidade pública, do contrato ou

da prestação do cocontratante.

8.2.2. As necessidades novas

O primeiro factor que, nos termos da lei, pode justificar uma razão de interesse público é uma

necessidade nova151. O conceito deve ser devidamente interpretado: necessidades novas não

são, para este feito, novas especificações que sejam necessárias introduzir no contrato sob

150 Que, em rigor, devem ser considerados erros e omissões do caderno de encargos. 151 É a mesma expressão que se encontra no artigo 101º da Ley de Contratos de las Administraciones Públicas.

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pena da inutilidade ou grave prejuízo deste. Por outras palavras, o juízo que há-de estar

subjacente à introdução da modificação não tem de ser um juízo de necessidade, sendo

suficiente um juízo de conveniência administrativa. Tem portanto de haver uma necessidade,

algo que carece de uma satisfação, mas suportada em considerações de conveniência.

Mas tem de ser uma necessidade nova, o que significa que ela surge após a celebração do

contrato, seja por circunstâncias imprevisíveis, seja por circunstâncias imprevistas. Seja

porque já existiam as circunstâncias já existiam à data do contrato, mas apenas foram do

conhecimento superveniente do contraente público.

8.2.1.2. A nova ponderação de circunstâncias existentes

O segundo factor que pode justificar a existência de uma razão de interesse público é a “nova

ponderação das circunstâncias existentes”. É uma novidade em termos legislativos, mas que

corresponde àquela que era já a posição maioritária da doutrina portuguesa.

Com efeito, uma questão que podia colocar-se era saber se o contraente público poderia

exercer o seu poder de modificação unilateral sem que tivesse havido qualquer alteração das

circunstâncias que ele teve presente (ou ambas as partes tiveram presentes) na altura do

acordo, ou seja, se bastava uma alteração dos juízos administrativos (ou mesmo político-

administrativos) subjacentes à vontade negocial do contraente público, aos seus termos e

condições, ou se — como tenderia a defender quem equiparasse este poder administrativo

com o regime civilista da alteração das circunstâncias — seria necessário fundar o exercício

desse poder em circunstâncias novas.

O legislador respondeu de forma clara ao problema, afirmando que o exercício do poder de

modificação unilateral poderá também resultar de uma ideia de inconveniência administrativa

da manutenção dos termos do contrato à luz das novas considerações que o contraente público

faça hoje sobre a óptima ou a mais eficiente forma de prossecução do interesse público

“contratualizado”, mesmo que os factos e o Direito que presidiram à celebração do contrato se

mantenham os mesmos.

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8.3. O interesse público e a resolução do contrato

8.4. Âmbito do poder de modificação do contrato administrativo

O contraente público pode, por decisão sua, modificar as “cláusulas respeitantes ao conteúdo

e ao modo de execução das prestações previstas no contrato” [artigo 307º/2, alínea b), do

CCP].

Significa isto, em primeiro lugar, que o contraente público, ao abrigo do poder de

modificação unilateral, apenas pode modificar cláusulas, ou seja, o que esteja previsto no

contrato e resulte do acordo de vontade das partes. Se parte do regime do contrato constar de

lei ou de regulamento, o contraente público, nessa sua qualidade, não pode proceder à sua

modificação. Poderá, sim, com limites, alterar-se a lei, mas não será nesse caso o poder de

modificação que estará em jogo, ao menos como ele foi consagrado no CCP — que delimita

tal poder a uma actuação do contraente público nessa qualidade e através de acto

administrativo —, mas de uma modificação do regime legal ou regulamentar do contrato (ver

ponto …).

Em segundo lugar, o contraente público, com os limites gerais enunciados no artigo 313º do

CCP e outros que resultem do direito comunitário, pode modificar o conteúdo das prestações

contratuais e o modo da sua execução.

Por outro lado, no conceito de modificação vão incluídas todas as espécies de alterações

possíveis: pode modificar-se o contrato aditando à prestação contratual um outro segmento,

alterando o conteúdo de uma prestação ou suprimindo um segmento de uma prestação

contratualmente prevista.

Além disso, tanto podem modificar-se as prestações ou obrigações do cocontratante, como as

prestações ou obrigações do contraente público.

8.5. A modificação do contrato e a rescisão parcial

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Embora não se deva afastar a possibilidade de existirem rescisões parciais dos contratos

administrativos, fundadas em razões de interesse público, nesses casos há-de tratar-se, pelo

menos, de uma rescisão que, designadamente em negócios mistos, que envolvam prestações

de diferente natureza, tenha por objecto prestações essenciais, determinantes e caracterizantes

do contrato, correspondentes ao núcleo do serviço ou da actividade contratada e que, por essa

via, contendam com a configuração inicial do acordo celebrado.

Quando, atendendo à natureza divisível do contrato, possam diferenciar-se prestações

principais ou essenciais, de um ado, e prestações acessórias ou acidentais, do outro, o

contraente público altere o contrato numa parte acessória sua, haverá uma modificação

limitativa, uma redução do contrato, ou, para utilizar a terminologia própria das empreitadas

de obras públicas, a imposição de um “trabalho a menos”.

8.5. A forma da modificação do contrato aprovado por bases legais

Há, como se sabe, muitos contratos cuja minuta é aprovada por lei, através das bases legais

ou, por referência à denominação do contrato normalmente em causa, através das chamadas

bases da concessão152.

A razão de ser da existência dessas bases aprovada por diploma legal encontra-se no facto de

algumas concessões (designadamente, de obras ou de serviços públicos), envolvendo a

transferência de tarefas públicas e a atribuição de poderes públicos a particulares para

satisfação de necessidades colectivas, ou seja, envolvendo a fixação do modo como

determinado interesse público deve ser satisfeito, a organização que implica e as prerrogativas

que pressupõe, tais concessões, dizia-se, deverem, em princípio, ser autorizadas por lei. Por

outras palavras, em tais casos, as estipulações postas e acordadas entre adjudicante e

152 Referimo-nos à hipótese mais comum, que é a de as ditas bases serem aprovadas por lei, mas o problema

pode igualmente colocar-se, e resolver-se nos mesmos termos, se porventura houver (é muito mais raro) umas bases de uma concessão municipal aprovadas por regulamento.

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adjudicatário, concedente e concessionário, como contraentes, são objecto de menção ou

incorporação numa lei, num anexo a uma lei, a qual, juridicamente, corresponde a uma

autorização ou reconhecimento pelo legislador de que o contraente público pode realizar

nesses termos uma necessidade assumida na lei como sendo primariamente da colectividade,

o reconhecimento de que a obra ou o serviço público respectivos podem ser construídos,

montados e explorados por privados em regime de concessão, em vez de o serem (directa ou

indirectamente) pelas próprias entidades públicas, noutro regime jurídico.

Por outras palavras, necessitando o ministro ou os ministros outorgantes de uma habilitação

para celebrar o acordo em nome do Estado, ela deve ser dada em lei especial quando, através

do contrato, se pretenda atribuir ao concessionário privilégios e poderes públicos, que afectam

ou podem afectar a esfera jurídica de terceiros, ficando assim a constar dessa (ou dum anexo a

essa) lei, a chamada lei de bases da councessão, o regime jurídico essencial e fundamental dos

contratos a celebrar153.

Note-se que a aprovação por diploma legislativo das bases da concessão não transforma em

matéria legal ou normativa aquilo que tem carácter manifestamente contratual. Nem é, aliás,

para um tal crisma ou mudança de carácter que os termos e condições das concessões, de

algumas delas, são objecto de aprovação legal.

De facto, como bem observa Freitas do Amaral, “a lei autoriza o Governo a contratar com

determinado particular, nos termos e condições que constam do texto preliminar a que

conduziram as negociações antes efectuadas. E, para o efeito de se ficar sabendo dentro de

que limites é dada autorização ao Ministro competente para contratar, publica-se em anexo o

texto preliminar”. Mas, apesar disso, ou precisamente por isso, “é claro que se continua

sempre a poder distinguir o que é matéria de lei e o que representa matéria contratual ou, por

outras palavras, a lei de autorização e o contrato autorizado”.

Não é, portanto, essa lei de bases que compromete recíproca ou contratualmente as partes, não

é ela que as obriga a realizarem as prestações contratuais que assumiram. Tal compromisso ou

vínculo nasce, sim, do contrato, do mútuo acordo, ao qual se imputa o próprio conteúdo da

153 Assim, Freitas do Amaral, O caso do Tamariz. Estudo de jurisprudência crítica, Revista “O Direito”, ano

XCVI, 1964, p. 280, e Mário Esteves de Oliveira, Direito …, cit., p. 687.

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relação contratual, a definição das prestações a que as partes se obrigam ― mesmo se tais

prestações já estão desenhadas previamente nas bases da concessão, aprovadas por lei.

Significa isto que o incumprimento de uma dessas prestações contratuais da concessão, seja

qual for o contraente responsável, não corresponde a uma violação de lei (da lei de bases) ou a

uma responsabilidade extracontratual, mas a uma violação do contrato e a um ilícito e

responsabilidade contratuais, exprimindo-se assim, de maneira clara, o fundamento da sua

vinculatividade.

Em hipóteses destas, como é que se processa, melhor, que forma pode assumir uma

modificação do contrato?

Considerando que uma modificação implica uma alteração dos termos ou especificações dos

contratos de concessão, e que só nesses termos (ou com essas especificações) é que os

ministros estavam legalmente habilitados ou autorizados a contratar, dir-se-ia que terá de

haver aprovação legislativa da modificação pretendida, aprovação de novas bases. Ao menos,

como condição formal da eficácia ou da oponibilidade da modificação.

Materialmente, note-se, quem estipula o contrato, quem define o seu conteúdo e as respectivas

alterações são os contraentes, o concedente e o concessionário, mesmo se por adesão a um

texto pré-definido. É a sua vontade mútua que faz nascer e cria o contrato, não a vontade do

legislador ― que não pode passar sem a vontade do seu contraente administrativo no que

respeita ao conteúdo, assinatura e modificação do respectivo contrato.

No entanto, formalmente, como a alteração do contrato bole eventualmente com a

“autorização legislativa” da sua celebração, como vai alterar uma das suas bases, há que pedir

ao respectivo legislador, quando isso suceda, que suprima a determinação da lei de

autorização, para que o novo acordo existente entre concedente e concessionário no sentido da

modificação do contrato, possa entrar (validamente) em vigor.

Trata-se, talvez, de um requisito de eficácia (ou de oponibilidade) da alteração do contrato

entre as partes ou face a terceiros, essa exigência de autorização legislativa. Mas o título

constitutivo (e validante) da alteração da estipulação contratual, esse, foi criado e construído

pelas partes ou, se se preferir, vale porque elas o querem consensualmente, não porque o

legislador tenha imposto tal alteração.

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Ou seja, a existência de umas bases a dispor num dado sentido não impede que as partes, por

acordo, ou o concedente, por decisão sua, modifique o contrato, estipulando coisa distinta.

Não quer isso dizer, como se viu, que à efectivação jurídica da modificação pretendida baste

unicamente a vontade das partes, o acordo do concedente e concessionário; nos casos em que

a cláusula contratual a alterar está coberta por uma disposição com força de lei; é preciso

também que sobrevenha uma alteração da referida base (legal), que dê cobertura à

modificação querida e feita nascer pelas partes.

Para se constatar, porém, do diferente valor da lei e do acordo das partes na modificação em

causa pode dizer-se, esquecendo agora o elemento validade, que, faltando a alteração da lei de

bases, mas existindo acordo das partes, a alteração contratual existe, embora possa não ser

juridicamente eficaz, enquanto, faltando o acordo das partes, a alteração feita exclusivamente

na lei nem sequer existe contratualmente.

A questão pode ser diferente quando a modificação que se pretenda introduzir obrigue ao

estabelecimento de regras específicas ou se projecte, não apenas no seio das relações entre

concedente e concessionário, mas também (ou sobretudo) sobre a esfera jurídica de terceiros,

dos utentes.

Pensamos por isso, em homenagem ao princípio da identidade ou do paralelismo das formas,

que em tais casos a modificação tem de ser de ser feita por decreto-lei.

8.7. Os limites do poder de modificação do contrato administrativo

8.7.1. A inalterabilidade das prestações principais do contrato

8.7.1.1. Considerações gerais

8.7.1.2. O critério do tipo de contrato

O primeiro critério em função do qual o intérprete pode concluir pela existência de uma

alteração das prestações principais do contrato é o do tipo contratual. Se, por via de regra, a

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cada tipo corresponde uma certa prestação característica, principal, que dá substância ao

negócio, havendo mudança de tipo, haverá uma modificação dessa prestação principal.

A lei, que tipifica certos contratos, o direito comunitário, que distingue vários tipos de

contratos para efeitos da aplicação do regime das directivas, e a doutrina e a jurisprudência,

que os trabalham, concretizam e densificam, têm aqui um papel relevante, proporcionando

construções analíticas com alguma utilidade para o efeito — por exemplo, não haverá dúvida

sobre a diferença das prestações principais subjacentes a vários contratos típicos definidos no

CCP, como a empreitada de obras públicas, a concessão de obras públicas, a concessão de

serviços públicos, a locação e a aquisição de bens móveis e a aquisição de serviços.

Apesar de oferecer, em geral, alguma segurança, a grande dificuldade de utilização deste

critério reside na inexistência de uma diferenciação absolutamente rigorosa entre certos tipos

contratuais. De facto, a doutrina vem dando conta da extrema variedade dos contratos

administrativos, à medida que a figura se transforma numa “categoria jurídica voraz”, que

entra na moda e se desenvolve em termos exponenciais, nas mais diversas áreas e para a

realização das mais distintas funções.

Daí resulta uma diversidade classificatória que a doutrina (e às vezes também a lei) procura

agrupar em espécies segundo múltiplos factores que consideram relevantes, dando origem a

vários conjuntos que vão sendo apresentados como tipos contratuais, como, por exemplo, as

distinções entre contratos de subordinação, de colaboração e de cooperação, contratos de

concessão translativa e de concessão constitutiva, contratos com objecto passível de acto

administrativo e com objecto passível de contrato de direito privado, contratos de solicitação

ou encomenda pública e contratos de delegação de funções ou serviços públicos, contratos

com efeitos principais restritos às partes e contratos com eficácia normativa externa154. Estes

“agrupamentos” podem fornecer tópicos de solução para o problema da identidade das

prestações principais, mas dificilmente poderão fundar um critério totalmente adequado à

finalidade em vista.

154

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Por exemplo, as concessões SCUT, pelo facto de ter havido uma intervenção legislativa ad

hoc destinada a servir de enquadramento e de base habilitante à sua existência no direito

contratual administrativo português, foram assumidas formalmente como uma específica ou

peculiar modalidade de concessão rodoviária, mas é muito duvidoso que possa, com base

nisso, concluir-se pela sua autonomia como tipo com objecto próprio para efeitos da aplicação

da norma do artigo 313º do CCP, que delimita o poder de modificação unilateral. Na verdade,

a principal diferença entre as figuras da concessão de uma infraestrutura rodoviária SCUT e

não SCUT respeita à entidade remuneradora das concessionárias, pois a “fonte subjectiva” das

suas receitas é, na concessão SCUT, o Estado concedente, e, na concessão de portagem real, o

utente do domínio público rodoviário ― com as especificidades que isso traz à disciplina

contratual, designadamente no âmbito da exploração da concessão, quanto ao serviço de

cobrança das portagens.

É certo que a concepção tradicional, de origem francesa, considerava como elemento

essencial da figura da concessão de obras públicas a remuneração do concessionário através

de taxas cobradas aos utentes — para assim a distinguir da figura da empreitada de obras

públicas155 —, concepção que, aliás, era aceite na jurisprudência portuguesa156.

No entanto, esta noção entrou em crise: primeiro, pela necessidade de aceitar que, em certos

casos, a insuficiência das tarifas fosse suprida por subvenções, subsídios ou garantias de

rendimento por parte do concedente157; depois, pelo desenvolvimento de novas técnicas de

financiamento das obras públicas, designadamente no âmbito das parecerias público-privadas.

Passou, por isso, a aceitar-se que a remuneração do concessionário pudesse, em grande

medida, consistir numa retribuição fixa a cargo do concedente, excluindo a assunção de um

risco económico-financeiro pelo concessionário158 – a remuneração por taxas dos utentes, a

par da assunção do risco económico pelo concessionário, continuam a ser indícios normais da

existência de uma concessão, mas deixaram de ser, sobretudo a remuneração por taxas,

critérios definitórios da figura. 155 Ver, por exemplo, Laubadère/ Venezia/ Gaudemet, Droit Administratif, 12º ed., L.G.D.J., Paris, 1992, Tome I, pp. 742 ss, 156 Ver acórdão do STA de 1.07.1999, p. 44249. 157 Nesse sentido, já Marcello Caetano, Manual…, cit., p. 1126 e s. 158 Salientando este aspecto, a propósito das concessões de serviço público, v. Pedro Gonçalves, A concessão…

cit., p. 139 e ss.

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Essa evolução é nítida no direito comunitário, afirmando hoje a generalidade da doutrina e da

jurisprudência que o critério fundamental para caracterizar uma concessão, em contraposição

aos “marchés publics” ou aos contratos públicos, é a transferência da responsabilidade da

exploração para o concessionário159.

Entre as novas utilizações da técnica concessória interessa destacar precisamente a das

“portagens virtuais”, para construção de infraestruturas de transportes, surgida no Reino

Unido nos anos 90 (“shadow tolls”) e rapidamente aplicada em vários países europeus e

também nos Estados Unidos160.

A tendência da doutrina é para incluir esta figura no conceito de “concessão”, na medida em

que, em correspondência com o conceito comunitário, há uma transferência da

responsabilidade pela exploração, que engloba os aspectos técnicos, financeiros e de gestão da

obra.

De facto, apesar de a remuneração do contraente privado ser feita por prestações públicas — o

que aproximaria a figura dos contratos de solicitação de bens e serviços no mercado

(“marchés publics”) e, portanto, da empreitada de obra pública —, o decisivo é que o contrato

transfere a responsabilidade pela exploração para o concessionário, que, quando é pago em

função da quantidade dos utilizadores, assume um risco financeiro161.

Seja como for, podemos concluir que, face ao direito comunitário e à lei portuguesa, tanto a

concessão em regime de portagem efectiva como a concessão em regime de portagem SCUT

159 Sobretudo a partir da Comunicação Interpretativa da Comissão Europeia, publicada no JOCE, n.º C-121, de

29 de Abril de 2000. Cf. Joel Arnould, “Le texte définitif de la communication interprétative de la Commission européenne sur les concessions en droit communautaire ”, Revue Française de Droit Administratif, 16 (5), 2000, pp.1016 ss.

160 V., por exemplo, sobre os «péages virtuels», Didier Linotte/ Bruno Cantier, «Shadow Tolls’: le droit public français à l’épreuve des concessions à péages virtuels», L‘Actualité Juridique Droit Administratif, nº 11, 20 novembre, 2000, p. 863). Michael Elland-Goldsmith, “Public Finance Iniciative: Les Infraestructures Routières”, Revue internationale de droit comparé, Ano 54º, nº 1, 2002, p. 19 e ss; em Espanha, sobre as «peajes en sombra», v. Fernando Azofra Vegas, «La financiación privada de infraestruturas públicas», Civitas, 96º, 1997, pp. 543 ss; José Luís Villar Ezcurra, «Las infraestructuras públicas: viejos e nuevos planteamentos», in Ariño & Almoguera (edits.), Nuevo Derecho de las Infraestructuras, p. 69 e ss.

161 Curioso é que, na Alemanha — em que, ao contrário de Portugal e outros países europeus, não havia tradição de portagens reais nas autoestradas —, a lei federal que regula o financiamento privado da construção de itinerários rodoviários principais, de 1994, inclui o modelo de portagens virtuais no “modelo de concessão”, justamente porque há uma transferência para o contraente privado, durante o prazo do contrato, da exploração da infraestrutura (ainda que não necessariamente da propriedade) – ao passo que o financiamento por portagens reais integraria o modelo de “exploração”, ambos distintos do modelo de “leasing”.

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se subsumem no conjunto doutrinal dos contratos de concessão translativa162 e, dentro destes,

na categoria legal típica dos contratos de concessão de obras públicas.

Embora a diferença de modo de financiamento seja significativa dos pontos de vista técnico e

prático, não parece tratar-se de uma diferença que faça esquecer a identidade jurídica que

existe em todos os restantes elementos caracterizadores dos negócios em causa (concepção,

construção, financiamento, conservação e exploração de lanços de autoestradas), sobretudo

tendo em conta a tarefa pública que é “delegada” no concessionário, ou as “actividades

através das quais o particular colabora na satisfação de certa necessidade pública”163.

Em suma, as concessões SCUT configuram, tal como a concessão com portagem real, um

subtipo de concessão de obra pública rodoviária, comungando ambas, por isso, em aspectos

essenciais e estruturantes, incluindo a portagem.

O que significa que, quando o Estado resolveu alterar as concessões SCUT, introduzindo o

regime das portagens reais, não pudesse fundar-se na diferença de remuneração do

concessionário a ilegitimidade de tal modificação, isto é, não pudesse afirmar-se que se estaria

perante um outro tipo contratual, que implicasse, ao menos só por aí, uma alteração das

prestações principais das concessões em causa.

No entanto, apesar de a introdução de “portagens reais” nas concessões SCUT não implicar,

automaticamente, uma alteração do objecto contratual, não significa que seja indiferente, para

esse efeito, o modo como se concretize ou execute tal modificação. Pode acontecer que, a

final, se tenha de concluir de maneira diversa, se o modo de execução ou implementação do

sistema de portagens reais contendesse com alguns dos elementos essenciais do regime da

concessão de obras públicas

162 Estes contratos de delegação de tarefas, funções ou serviços distinguem-se, pelo seu objecto típico, dos

contratos de solicitação de bens e serviços no mercado (“marchés publics”), bem como dos contratos de concessão constitutiva ou de atribuição de direitos.

163 Foi, aliás, com base num entendimento identitário semelhante que o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República concluiu que “as concessões SCUT (…) não deixam de ser da expressão da figura da concessão de obra pública, uma vez que se mantém o sistema de exploração da obra pelo concessionário, elemento que constitui, no momento actual da sua evolução, o traço distintivo desta figura contratual” (Parecer de 16.01.2003, p. 58/2002). E esta conclusão foi especialmente significativa pois, por força dessa identidade categorial, considerou-se que as concessões SCUT integravam o conceito legal de concessão “em regime de portagem”, constante da Lei de Bases do Sistema de Transportes Terrestres (artigo 15º/6 da Lei n.º Lei n.º 10/90, de 17 de Março), daí resultando a legitimidade de as Regiões Autónomas lançarem concessões rodoviárias em regime SCUT.

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Imagine-se que, além da alteração do regime das portagens, se estabelecia como destinatário

directo das taxas cobradas aos utentes o próprio Estado (ou uma empresa directamente

contratada por ele para o efeito), que passaria assim a figurar no novo modelo contratual

como entidade cobradora ou colectora, em substituição das concessionárias. Num caso destes,

poderia já existir uma alteração da essência das concessões administrativas translativas (como

é o caso da concessão de obras públicas), que têm por efeito jurídico principal a transferência

de certos poderes ou faculdades jurídico-públicas para a pessoa do concessionário, que fica

assim investido no estatuto especial de colaborador da Administração na realização de uma

determinada atribuição ou interesse público (no caso, a concepção, construção, financiamento,

conservação e exploração de uma obra pública, de lanços de autoestrada).

É que, entre outros aspectos, essa “dimensão translativa da concessão é essencial para se

perceber a autonomia do concessionário”164, que não deve ser visto como uma célula ou

organismo da Administração, com funções predominantemente técnicas ou operacionais, mas

como uma entidade a quem é confiada ― mesmo se sob o controlo e fiscalização da

Administração ― a responsabilidade (o poder e o dever) de gerir e explorar autonomamente

uma obra pública dominial. Como bem observa Marcello Caetano, o concessionário “é um

empresário, e essa é a principal razão pela qual tem de gozar de ampla autonomia no exercício

dos poderes concedidos para a gestão”165.

E essa autonomia de gestão, tendo implicações muito relevantes em diversos aspectos

contratuais (técnicos, administrativos, financeiros, de risco, etc.), manifesta-se igualmente na

autonomia da exploração económico-financeira da concessão, de tudo quanto esteja

relacionado com os seus custos e proveitos, com os seus “deves e haveres”, por parte do

concessionário, é dizer, numa “transferência [para si] da responsabilidade de exploração, que

engloba os aspectos técnicos, financeiros e de gestão da obra”166.

164 Assim, Pedro Gonçalves, A concessão …, cit., p. 319. 165 Marcello Caetano, Manual …, cit., p. 1100. 166 V. a já referida Comunicação Interpretativa da Comissão Europeia sobre as concessões em direito

comunitário. V. sobre o alcance dessa Comunicação no que respeita ao risco da exploração, Pedro Gonçalves/Rodrigo Esteves de Oliveira, As Concessões Municipais de Distribuição de Electricidade, Coimbra, 2001, p. 48.

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Esta responsabilidade e autonomia económico-financeira justificam-se, pois, sempre que o

concessionário assuma a gestão e exploração da obra pública por sua conta e risco (correndo o

risco de lucrar ou perder), constituindo um dos “reversos da medalha” dessa álea contratual.

O que significa que, no âmbito de uma concessão em regime de portagens reais, a autonomia

da exploração que caracteriza o contrato pressupõe a disponibilidade e o controlo directo, por

parte do concessionário, da mais importante das suas receitas (as taxas pagas pelos utentes).

Tendo em conta isto, seria duvidoso que um contrato delineado em termos tais que o

concessionário fosse privado da gestão e operação do serviço de cobrança da portagem ainda

pudesse ser considerado uma concessão no que respeita à exploração da obra pública. A

“amputação” do serviço de cobrança das portagens configuraria assim uma redução

significativa, que adulteraria a própria natureza do contrato, que deixaria de incluir a

exploração da autoestrada.

Ou seja, o Estado tem um leque relativamente alargado de escolha entre vários modelos para a

construção de infraestruturas167, mas, contratando uma, fica limitado nos seus poderes de

imposição unilateral da modificação dos contratos celebrados.

A separação entre a exploração e a cobrança das portagens seria ainda juridicamente mais

duvidosa se o serviço de cobrança, por sobre ser subtraído ao concessionário, fosse

concessionado a uma outra empresa. Nessas circunstâncias, acresceria o facto de essa empresa

ter necessariamente acesso a informação confidencial e comercialmente crítica (relativa a

receitas, cash-flows, volume de tráfego, etc.) e, se fosse o caso — como normalmente

acontece, pois a concessão (é dizer, as tarefas relacionadas com “a concepção, projecto,

construção, financiamento, exploração e conservação das autoestradas) é dada em regime de

exclusivo —, capaz de implicar uma violação do regime de exclusividade previsto nos

contratos de concessão.

167 Um modelo intermédio entre o contrato público (“marché public”) e a concessão seria o de um contrato misto

de empreitada e de prestação de serviços, utilizado em França (“marché d’entreprise de travaux publics”), em que o operador só recebe a remuneração acordada entre ele e a administração como contrapartida das prestações (cfr. Xavier Bezançon / Olivier Ruymbeke, “Les marchés d’entreprise de travaux publics, une forme particulière de concession?”, AJDA, nº 11, 1990, pp. 813 ss.).

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Note-se porém que, sendo de algum modo necessária ou consequencial ― porque decorre

silogisticamente da resposta à questão anterior ―, uma tal conclusão não deixa de ter, em

parte, um fundamento próprio e, assim, de reforçar a proposição feita sobre este assunto.

O concedente, como vimos, poderá modificar os contratos que o ligam às concessionárias e

impor-lhes mesmo um diferente modo de exploração da obra pública; mas já não pode

modificar aqueles contratos para, simultaneamente, retirar às concessionárias uma parcela da

sua actividade ou prestação concessória e entregar essa mesma actividade a um terceiro por

ele escolhido. Ainda mais se isso implicar o acesso, por esse terceiro, a informação

confidencial, sigilosa e comercialmente sensível ― como sucede com a informação relativa a

receitas, cash-flows, volume de tráfego, etc.

Aliás, se se tratasse de tarefa que não pudesse ser prestada in house, pelo pessoal e serviços

das concessionárias, e que portanto devesse ser efectuada em regime de outsourcing, a

escolha da empresa a quem seria confiada a gestão e operação do sistema de portagem real

sempre caberia às concessionárias, e não ao Estado concedente, sob pena de ilegalidade por

violação do princípio da autonomia do concessionário na exploração da obra concedida.

O máximo que deveria ser reconhecido ao Estado é um poder de controlo (preventivo) ou

fiscalização sobre a capacidade e a idoneidade dessas empresas (selecionadas pelas

concessionárias) para a função que iriam ser chamadas a desempenhar ― por exemplo,

mandando aplicar à adjudicação desse contrato as regras pertinentes relativas a impedimentos,

habilitações profissionais e capacidade financeira e técnica do candidato ou candidatos ou

determinando que essa adjudicação se fizesse por via de concurso.

O mesmo se diga quanto à contratação do equipamento de gestão e operação do sistema de

portagem real. A adjudicação desse contrato deverá caber igualmente às concessionárias,

embora o Estado, aqui, além dos instrumentos de controlo preventivo atrás assinalados,

disponha ainda do poder de determinar as especificações técnicas adequadas ao tipo de

portagem e ao tipo de tecnologia a adoptar. Tudo isso pode ser considerado matéria de serviço

público, relativa ao modo como a necessidade pública deve ser satisfeita e ao modo como um

serviço administrativo (mesmo que concessionado) deve ser prestado à colectividade –

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integrando, por essa razão, o âmbito normal do poder de regulação administrativa e, por isso,

o poder de modificação unilateral do contrato.

8.7.1.3. O objecto do contrato

Um outro limite legal do poder de modificação unilateral dos contratos administrativos é o da

obrigação de respeito pelo objecto do contrato, que se encontra consagrado no artigo 313º/1

do CCP quando se estabelece aí que a “modificação não pode conduzir à alteração das

prestações principais abrangidas pelo objecto do contrato”.

Na verdade, sempre se defendeu a existência de espaços contratuais imunes à intervenção

administrativa unilateral, em consideração de uma estabilidade mínima ou nuclear das

relações contratuais e da confiança e segurança que se hão-de poder fundar na celebração de

um contrato. Um desses limites é justamente o do objecto do contrato e, em certo sentido,

pode dizer-se que é o principal, na medida em que, constituindo um obstáculo insuperável a

uma das mais impressivas manifestações da autoridade pública contratual, permite conter em

limites razoáveis o poder de modificação unilateral e fazer renascer assim, mesmo se em

termos limitados, o princípio da estabilidade contratual (pacta irrevocabilia fiunt) no quadro

dos contratos administrativos. Ou seja, o chamado princípio da intangibilidade do objecto do

contrato168 corresponde a um núcleo contratual irredutível, inalcançável pela Administração

sem o consentimento do seu cocontratante169.

Diga-se, em primeiro lugar, que o conceito de objecto, para efeitos de determinação dos

limites do poder de modificação unilateral dos contratos administrativos, não se identifica

totalmente com o conceito de objecto do negócio jurídico, tal como ele é entendido na teoria

geral do direito civil.

Aí, objecto do negócio equivale ao conjunto das prestações a que as partes se vincularam, ou

seja, aos efeitos jurídicos a que o negócio tende (conteúdo ou objecto imediato), e ainda 168 V. Augusto de Ataíde, Para a teoria do contrato administrativo. Limites e efeitos do exercício do poder de

modificação unilateral pela Administração, em “Estudos de Direito Público em Honra do Professor Marcello Caetano, 1973, p. 76 e ss., e Pedro Gonçalves, A concessão …, cit., p. 258.

169 Augusto de Ataíde, Para a teoria do contrato …, cit., p. 76, e Mário Esteves de Oliveira/Pedro Gonçalves/Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 1997, p. 825.

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àquilo sobre que recaem esses efeitos (objecto mediato)170. Ora, se o legislador do CCP

reporta expressamente o poder de modificação unilateral às “cláusulas respeitantes ao

conteúdo e ao modo de execução das prestações previstas no contrato” [artigo 302º, alínea c)]

é porque aquilo que se quis manter imune à intervenção administrativa não podem ser essas

mesmas prestações, mas algo diferente, correspondente ao núcleo caracterizador do contrato,

de actividade essencial implicada no contrato administrativo ou de “actividades através das

quais o particular colabora na satisfação de certa necessidade pública”171.

Em segundo lugar, et pour cause, tem de reconhecer-se que a intangibilidade das prestações

principais abrangidas pelo objecto do contrato, decretada no artigo 312º do CCP, tem uma

razão de ser específica e que deve ser em função dela que hão-de definir-se os limites do ius

variandi administrativo.

E essa razão ― bem conhecida, aliás ― é a de impedir que a Administração possa ordenar ao

seu cocontratante que passe a prestar uma “actividade qualitativamente diferente daquela a

que se comprometera”, ou seja, impedir medidas que, pela sua importância e repercussão,

atentem contra a essência ou substância do acordo ou impliquem um “bouleversement du

contrat et de son économie générale”172.

Assim, por exemplo, quando estejam em causa empreitadas de obras públicas, os limites do

poder de modificação unilateral, nesta matéria, aferem-se em função do conceito de “obra

nova”173, não sendo admitidas medidas que determinem uma alteração da “economia geral do

projecto” ou que exorbitem da definição essencial da obra contratada, como sucederia com

aquela que ordenasse ao empreiteiro que, em substituição do restauro de um palácio nacional,

o fizesse demolir para construir aí um edifício destinado à instalação de um serviço público174.

170 V., por todos, Manuel de Andrade, A teoria geral da relação jurídica, 1987, vol. II, p. 327, e Castro Mendes,

Teoria geral do direito civil, 1995, vol. I, p. 70 e ss. e p. 315 e ss. 171 Freitas do Amaral, Curso …, cit. p. 621.No mesmo sentido Augusto Ataíde, Para a teoria …, cit., p. 74 e

Mário Esteves de Oliveira, Direito …, cit., pp. 699 e 700. 172 Laubadère/Moderne/Delvolvé, Traité … cit., II, p. 407. 173 Neste sentido, Augusto de Ataíde, Para uma teoria …, cit., p. 82, e António Cianflone, L’appalto di opere

pubbliche, 1993, p. 542 e ss. 174 Exemplo retirado de Mário Esteves de Oliveira, Direito …, cit., p. 700.

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Por outro lado, quando se trata de concessões de serviços públicos ou similares175, a definição

dos limites do ius variandi é feita por recurso a fórmulas como as da proibição de

“desfiguração da concessão”176 ou de atribuição gestão de “um serviço público diferente”177,

impedindo-se assim, por exemplo, que se impusesse unilateralmente “ao concessionário do

serviço público dos transportes rodoviários de passageiros do Norte que passe também a

desempenhar o serviço público ferroviário Porto-Braga”178.

Num breve apanhado das ideias correntes no Direito Administrativo, a esse propósito, começa

por lembrar-se que os administrativistas têm, do objecto contratual, uma concepção idêntica à

que sobre ele tem sido manifestado pelos civilistas179.

Augusto de Ataíde, por exemplo, refere-se ao objecto do contrato como “as prestações a que o

particular se obriga, a actividade através da qual colaborará na satisfação de certa necessidade

pública”180. Sérvulo Correia, por sua vez, muito próximo desta definição, reporta-o às

“prestações relativas ao cumprimento das atribuições da pessoa colectiva de direito público” 181.

“A ideia pouco trabalhada de «desvirtuamento da concessão», se assim lhe podemos chamar,

e essa outra um pouco mais evoluída de «obra nova» são tudo o que temos neste domínio. Há

que reconhecer que é pouco e que não nos dá uma base muito grande para a tentativa de

formulação do critério geral que estamos a buscar. Na verdade, mais seguro será não construir

175 Como será o caso, em certa medida, da concessão de obras públicas. 176 «Dénaturation» - cf. Laubarède/Moderne/Delvolvé, Traité …, cit., p. 407. 177 Pedro Gonçalves, A concessão …, cit., p. 258. 178 Freitas do Amaral, Curso …, cit., p. 622.. 179 Como se sabe, em teoria geral do direito civil, costuma distinguir-se entre o conteúdo da relação jurídica, o

conteúdo do direito subjectivo e o objecto da relação jurídica (ou do direito subjectivo). Aquele primeiro é formado por um direito subjectivo e pelo correlativo dever jurídico; o conteúdo do direito,

por sua vez, é constituído pelos correspectivos poderes ou faculdades que o integram; o objecto da relação jurídica, por último, traduz-se no “quid” sobre que recaem os poderes do titular do direito subjectivo, o bem sobre que se exerce a sua “soberania”. E, neste caso, como estamos a tratar de um contrato, o seu objecto, o objecto da relação jurídica contratual, é a prestação (debitória).

Devendo, ainda, distinguir-se, nas obrigações de prestação de coisa certa e determinada, entre objecto imediato e objecto mediato do direito do credor: o primeiro, já se viu, é a conduta do devedor, a prestação; o objecto mediato, por sua vez, traduz-se na própria coisa sobre que incide ou recai essa prestação (Cf. Carlos Mota Pinto, Teoria ... cit., p. 331 e ss.). Sobre esta matéria, ver, para a escola de Coimbra, Carlos A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª Edição, p. 181 ss. e p. 329 e ss., e, para a escola de Lisboa, J. Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, ed. AAFDL, p. 70 e ss., p. 315 e ss. e p. 381 e ss.).

180 Para a teoria do contrato ... cit., p. 79. 181 Contrato administrativo, DJAP, vol. III, 1990, p. 77.

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um que, embora logicamente perfeito, não conduza na prática senão a resultados pouco

seguros, a um subterfúgio que apenas nos leve a abordar a dificuldade por um ângulo

diferente”182/183.

Conscientes da relativa debilidade dos critérios gerais, compreendem-as considerações de

Menezes Cordeiro sobre a alteração ou manutenção da identidade duma obrigação. : “A

manutenção da identidade duma obrigação depende, fundamentalmente, da conservação da

prestação. (...) Isto é: podemos entender que uma obrigação é a mesma quando a conduta

devida nela em causa seja, também, a mesma. O problema desloca-se, desta forma, para a

prestação: ocorrida uma modificação objectiva em determinada obrigação, só se poderá falar

em modificação proprio sensu quando a prestação devia seja a mesma. Não quer isso dizer

que a própria prestação não possa sofrer alterações. Simplesmente, essas alterações não

podem ser tais que conduzam a que da mesma prestação se não possa falar. O único critério

possível para determinar, no caso concreto, se se está perante a mesma prestação, modificada,

ou se, pelo contrário, a prestação já é outra, é extra-jurídico. O senso comum terá de indicar a

solução no caso concreto. Salvo qualquer disposição normativa que comine solução diferente,

o regime acomodar-se-á, depois, à solução extrajuridicamente indiciada”184

O ponto está em saber se a medida equacionada implica ou não uma alteração qualitativa da

actividade ou das prestações contratadas ou se elas continuam a poder definir-se em função de

todos os elementos que importam à determinação do seu objecto jurídico-administrativo

actual185.

182 Para a Teoria do Contrato Administrativo: Limites e Efeitos do Exercício do Poder de Modificação Unilateral pela Administração, em "Estudos de Direito Público em Honra do Professor Marcello Caetano", Separata, Ática 1973, p. 14. 183 A “gestão de um serviço diferente do concedido, de um verdadeiro serviço novo”, na expressão de Laubadére/Moderne/Delvolvé, Traité …, cit., II, p. 436. 184 Tratado de Direito Civil, IX, Direito das Obrigações, 2014, p. 260.

185 Assim, no Parecer do CC da PGR de 25.10.2001 (publicado em DR de 05.01.2002), considerou-se que extravasava os limites do poder de modificação unilateral uma proposta de “renegociação do contrato de gestão hospitalar” celebrado entre a administração regional de saúde e um privado, na qual se abrangia a concepção, planeamento, financiamento, construção e gestão de uma nova unidade hospitalar em Sintra (no valor estimado de 8.600.000.000$00), a amortizar durante 20 anos, bem como a extensão da gestão, por parte da respectiva sociedade gestora, de novos estabelecimentos públicos (centros de saúde) na área da Amadora e Sintra.

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96

8.7.2. A inalterabilidade das cláusulas financeiras

Um outro limite que tem sido apontado ao poder de modificação unilateral assenta numa

controversa distinção entre uma certa categoria de cláusulas contratuais e que não tem —

nunca teve, de resto — consagração legal entre nós.

A ideia pode resumir-se nos seguintes termos: ao contrato administrativo assiste uma dupla

função, servindo simultaneamente os propósitos de realização do interesse público, se se

preferir, da satisfação da necessidade sentida pelo contraente público, e de fixação das

condições de participação do cocontratante nisso envolvido. Ali, na parte em que no contrato

se estabelecem as regras da satisfação do interesse público (as chamadas “cláusulas

regulamentares”), o poder de modificação unilateral encontra o seu espaço legal de actuação.

Ali, na parte em que no contrato se estabelecem as condições de participação do particular (as

chamadas cláusulas contratuais), o poder de modificação unilateral encontra um espaço

jurídico de inibição.

Assim, de um lado, temos um segmento intrinsecamente contratual, imune às considerações e

exigências do serviço público, constituído pelas chamadas cláusulas contratuais, por oposição

àquelas que estão aí postas subordinadamente ou em função do interesse público, as chamadas

cláusulas regulamentares ou de serviço.

A distinção entre o que é contrato e o que é regulamentar nem sempre é fácil de fazer, por

existirem casos duvidosos, que não se subsumem com facilidade numa dessas categorias ou

não excluem decididamente a outra, mas os critérios que a doutrina fornece a esse respeito

encontram-se já relativamente estabilizados, permitindo distinguir com alguma segurança as

duas diferentes espécies de cláusulas.

Assim, para a larga maioria da doutrina francesa “têm natureza regulamentar todas as

cláusulas relativas à organização ou funcionamento do serviço público” e "têm natureza

contratual as cláusulas exclusivamente respeitantes às condições financeiras ou outras

atribuídas pelo concedente ao concessionário"186.

186 Laubadère/Moderne/Delvolve, Traité...,cit., I, p No mesmo sentido, Rene Chapus, Droit …,Richer, Droit...,cit., p. 177 e ss., e 391 e ss..

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Esse critério servirá, na maior parte dos casos, para proceder a uma correcta qualificação das

cláusulas. Embora os resultados sejam em grande parte idênticos, para facilitar a sua aplicação

prática, pode dizer-se, em alternativa (segundo a proposta de Duguit), que as cláusulas

regulamentares se encontrariam sempre na organização ou no funcionamento do serviço

público, nos seus regulamentos, ainda que ele fosse executado em régie directe, pelo próprio

contraente público, enquanto as cláusulas contratuais só têm razão de ser quando o "serviço" é

entregue a outrem, quando, em suma, se contrata e se tem, portanto, que estipular, entre outras

coisas, quais as contrapartidas que são devidas ao cocontratante por isso187.

Note-se que, embora a questão das cláusulas regulamentares (e contratuais) apareça

tradicionalmente no domínio das concessões administrativas, sobretudo das de serviço

público, trata-se de uma distinção útil para a generalidade dos contratos administrativos. Em

todos eles existem cláusulas que dispõem sobre as características (qualidade, modo,

quantidade, etc.) das prestações que o cocontratante está obrigado a realizar com vista à

realização do interesse público, e outras que regulam os direitos que lhe cabem por causa

disso, ou seja, os “éléments financiers de l´engagment”188. As primeiras existiriam sempre,

mesmo que a Administração se encarregasse, ela própria, da execução daquelas prestações

(são, por isso, regulamentares); as segundas só fazem sentido quando há contrato (são, por

isso, contratuais) — como acontece tipicamente com as cláusulas de preço (e sua revisão) ou

com os privilégios de exclusivo189 contratualmente conferidos.

187 Apud Laubadère/Moderne/Delvolve, Traité…, cit., p. 107. 188 Para utilizar a expressão de H. Hoepffner, La modification, cit., p. 182. 189 A garantia do exclusivo é uma cláusula cuja existência só se compreende quando a sua exploração seja

objecto de um contrato de concessão (ou similar): se é o ente público a explorar o serviço (directa ou indirectamente), é juridicamente indiferente que explore o mesmo serviço (ou equiparável) em concorrência com aquele primeiro.

Mas a "contratualidade" do exclusivo é indiscutível mesmo de acordo com a tese da doutrina francesa. Na verdade, como assinala impressivamente Marcello Caetano, Manual...,cit., II, p. 1124, o "exclusivo é

sempre um motivo determinante da aceitação pelo concessionário dos encargos da concessão". Ou seja, o exclusivo (tanto quanto as tarifas cobradas aos utentes) interessa à projecção ou representação económico-fínanceira que o concessionário faz da rentabilidade da concessão, pois é em função do número de utentes potenciado pelo exclusivo, multiplicado pelo valor da tarifa, que ele sabe (por aproximação, claro) qual o prazo mínimo de amortização dos elevados investimentos que foi e é obrigado a fazer e quais os ganhos que pode esperar obter com a concessão durante o respectivo prazo de vigência.

No sentido da natureza contratual da garantia do exclusivo, Richer, Droit...,cit., p. 178, 179 e 391, e Laubadère/Moderne/Delvolvé, Traité...,cit., p. 435, considerando estes AA. que a natureza do "privilège d 'excluisivité'' questão que ficou definitivamente resolvida nos finais do séc. XIX, na sequência das decisões do Conseil d 'Etat tiradas no famoso caso da "querelle du gaz et de l 'electricité'".

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Não se trata, note-se, de uma distinção absolutamente estanque, pois há cláusulas que têm

uma natureza dúplice, ora contratual ora regulamentar. Por exemplo, a cláusula de preço,

quando estão em causa contratos de concessão, pode configurar uma cláusula regulamentar se

o que estiver em causa for, por exemplo, alterar o valor das taxas a pagar directamente pelos

utentes do respectivo serviço ou obra, pondo parte ou a totalidade desse valor directamente a

cargo do contraente público (ou de outros "patrimónios" públicos) — como sucede com o

regime de cobrança virtual nas autoestradas.

Como afirmava Mário Esteves de Oliveira, se o cocontratante, o concessionário, "se remunera

através das taxas cobradas aos utentes, então a cláusula económica é regulamentar porque

respeita ao modo de execução ou prestação do serviço", ao contrário do que sucede se "a

contrapartida económica se efectivar através do pagamento directo de certas quantias pela

Administração", porque, então, nesse caso, "a cláusula é contratual"190.

Por outro lado, há igualmente algumas cláusulas contratuais que têm uma parte ou um

segmento regulamentar191.

E é desta diferença estrutural e funcional que subjaz às duas espécies de cláusulas que se

retira uma importante consequência jurídica em sede de modificação unilateral do contrato. E

que enquanto as cláusulas regulamentares são alteráveis por acto do contraente público, as

cláusulas contratuais são intangíveis e inalteráveis, salvo novo mútuo acordo192.

190 Mário Esteves de Oliveira, Direito....cit., p. 702. No mesmo sentido pode ver-se, por exemplo, Richer,

Droit...,cit., p. 198, sustentando que "quando o contrato é daqueles cuja remuneração é efectuada pela própria colectividade pública, é difícil conceber uma modificação de preço acompanhada de uma indemnização pelo prejuízo assim causado. Em contrapartida, quando a remuneração não provém da colectividade pública, uma modificação tarifária seguida de uma indemnização pelo prejuízo causado não é inconcebível e, desde que o prejuízo causado seja reparado, não há razão alguma para excluir o poder de modificação unilateral".

191 Se, por exemplo, o Estado dá de concessão um serviço público (com cláusula de exclusivo), o direito à sua exploração ou gestão constitui matéria contratual. E enquanto o Estado entender que há interesse público nessa exploração deve respeitar o exclusivo outorgado. Mas se, porventura, entender que algumas das prestações integrantes desse serviço já não são mais necessárias, do ponto de vista do interesse público, ele pode rescindir (parcialmente) o contrato, sem que o concessionário se possa opor a isso.

192 Como assinala a doutrina francesa, quaisquer alterações ao contrato "não podem nunca incidir sobre cláusulas financeiras" (Richer, Droit...,cit., p. 198), devendo antes circunscrever-se àquelas "que interessam ao funcionamento do serviço público e colocam em jogo as suas necessidades" (Laubadere/Moderne/Delvolvé, Traitè...,cit., II, p. 406).

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As primeiras, embora inseridas num contrato, como que assumiriam natureza "regulamentar"

e, por isso, diz-se, como todos os regulamentos, são revogáveis ou modificáveis193. Dito de

outro modo: reportando-se a aspectos ou elementos da organização ou da execução de um

"serviço" público, as cláusulas regulamentares só subsistem "contratualmente" na medida em

que o queira o contraente público194.

Já as cláusulas contratuais, constituindo o fundamento da aceitação ou da adesão do particular

ao contrato, devem considerar-se inderrogáveis e intangíveis, insusceptíveis de alteração ou

de desaplicação por vontade única do contraente público, subsistindo e aplicando-se ao longo

de todo o contrato, enquanto as partes não as revogarem ou modificarem consensualmente.

A questão que agora se coloca é saber se deve ou não aceitar-se esse limite jurídico ao poder

de modificação unilateral do contrato.

Em primeiro lugar, não pode retirar-se do facto de a modificação do contrato implicar (ou

poder implicar) uma reposição do equilíbrio financeiro (ver artigo 314º do CCP) ou, se se

quiser, uma subsequente alteração financeira do contrato, a admissibilidade, “par ricochet”, da

própria modificação das cláusulas contratuais ou financeiras195.

[…]

193 Esta comparação que se fez entre cláusulas regulamentares e regulamentos serve apenas para explicar, de

alguma forma, a modificabilidade daquelas, sem envolver qualquer equiparação quanto à respectiva natureza jurídica, que, como se sabe, é controvertida.

Pedro Gonçalves, A concessão...,cit., p. 202, a propósito das cláusulas das concessões de serviço público cujos efeitos contendem com a posição jurídica de terceiros (em regra, dos utentes), logo aquelas que mais se aproximam dos regulamentos administrativos, recusa-lhes natureza regulamentar, preferindo falar em "cláusulas de eficácia regulamentar". Richer, Droit...,cit., p. 54 e 55, 177 e 178, pelo contrário, reconhece às cláusulas regulamentares natureza formalmente contratual mas materialmente regulamentar ou normativa. O nosso STA, em Acórdão de 24 de Agosto de 1994 (Apêndice ao DR de 7 de Fevereiro de 1997) num processo de intimação para um comportamento no sentido da natureza normativa das cláusulas regulamentares do contrato de concessão de serviço público de televisão, celebrado entre a RTP e o Estado.

Por nós, as cláusulas regulamentares são materialmente e formalmente contratuais, caracterizando-se tão só pelo facto de se encontrarem à disposição do poder de modificação unilateral da Administração.

Por outro lado, àquelas que afectam a posição jurídica de terceiros (v.g, utentes de uma obra ou serviço públicos) deverá reconhecer-se mera eficácia regulamentar, embora se admita que para efeitos contenciosos se possam considerar normativas, designadamente enquanto se mantiver a restrição legal da legitimidade da acção sobre contratos às respectivas partes contratantes (cf. Pedro Gonçalves A concessão....cit., p. 203).

194 No entanto, como se encontram ligadas ao modo de execução de uma prestação anteriormente contratada, essa "liberdade" de alteração fica duplamente condicionada: i) por um lado, à capacidade do cocontratante para prestar o "serviço" nas novas condições; ii) por outro lado, à constituição da Administração no dever de repor o equilíbrio ou a equação económico-fínanceira subjacente ao contrato alterado (art. 180°, a, do CPA).

195 Como de alguma forma parecer ser o raciocínio exposto em H. Hoepffner, La modification, cit., p. 191.

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Em segundo lugar, há doutrina que sustenta não ser de aceitar a distinção entre cláusulas

modificáveis e imodificáveis, na medida em que “todas as cláusulas do contrato, embora

focando aspectos diversos, formam um conjunto, um todo, que corresponde ao regime

escolhido pelas partes para a disciplina das relações entre elas estabelecidas para a

prossecução do interesse público. Tudo o que foi estabelecido no contrato administrativo foi-o

com um fim de interesse público. E por isso o fundamento do poder de modificação vale

quanto a tudo o que foi estipulado”196.

Em nossa opinião, e apesar da falta de lei expressa no assunto, o contraente público não pode

modificar, nem mesmo em casos excepcionais, os elementos financeiros do contrato ou as

chamadas cláusulas contratuais do contrato administrativo.

Em primeiro lugar, porque, se a existência de um regime público ou administrativo em

matéria de realização do interesse público contratualizado não contraria a base pactícia dos

contratos — já que a vontade do cocontratante foi indispensável à celebração do contrato e

envolve o reconhecimento e a sua aceitação de um dever de colaboração no que respeita às

matérias ou questões de serviço —,não se pode também, em coerência, deixar de se

reconhecer que aquilo que confere natureza pactícia ao contrato administrativo, aquilo que

levou o cocontraente a contratar, não pode jamais ser modificado senão através da vontade de

ambos os contraentes, por (novo) mútuo acordo.

Reside aí outro núcleo ou bastião irredutível de consenso, e consequentemente, o fundamento

da inderrogabilidade e intangibilidade das estipulações que o integram através de acto

unilateral e vinculativo da autoria do contraente administrativo197.

E, como é evidente, da diferente lógica que subjaz a estes dois tipos de cláusulas retiram-se

importantes consequências jurídicas, assinalando a doutrina que quaisquer alterações ao

contrato “ne peut jamais porter sur les clauses financières”198, devendo, antes, cincunscrever-

se àquelas cláusulas dos contratos administrativos “qui intéressent le fonctionnement du

196 Augusto de Ataíde, «Para a Teoria do Contrato Administrativo: Limites e Efeitos do Exercício do Poder de

Modificação Unilateral pela Administração», Estudos de Direito Público em Honra do Professor Marcello Caetano, Ática, Lisboa, 1973, p. 89/90 e ss.

197 Neste sentido, Mário Esteves de Oliveira, Direito....cit., p. 701 e 702. 198 Laurent Richer, Droit des contrats administratifs, p. 198.

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service public et mettent en jeu ses besoins”199 as únicas com carácter normativo e que são,

portanto, como todos os regulamentos jurídicos, “livremente” revogáveis pelos do mesmo

grau que lhes sucedam.

A distinção entre cláusulas regulamentares (cláusulas alteráveis) e cláusulas contratuais

(cláusulas inalteráveis) recebeu aliás, desde cedo, acolhimento na nossa jurisprudência200.

Por exemplo, no acórdão do STA de 2.07.1946 em que estava em causa um contrato de

fornecimento de carvão, cujo preço poderia ser alterado se variassem as tarifas do caminho de

ferro , depois de se ter considerado, por um lado, que “tanto as prestações que a

Administração se obriga a fazer aos concessionários como as que estes têm de fazer à

Administração são de natureza puramente contratual, entrando por isso na parte contratual e

não regulamentar do contrato” e, por outro lado, “que conforme ensinam os tratadistas, as

disposições de natureza contratual só podem ser modificadas por um novo acordo entre o

particular e a Administração”, decidiu-se, perante a intervenção unilateral desta última, que “a

modificação do preço do carvão, embora prevista no contrato, só podia resultar de um novo

acordo de vontades e produzir efeitos a partir da data desse acordo, pois só então ficaria

constituído voluntariamente o novo vínculo obrigacional”.

Por sua vez, no Acórdão do STA de 7.11.1941, em que se questionava a legitimidade jurídica

da actuação de uma câmara municipal que alterou o regulamento de uma piscina municipal

“dada” em concessão, o tribunal considerou irrelevantes (ou como não-escritas) as

disposições do novo regulamento que alteravam as tabelas de preços e as cláusulas relativas

aos salários do pessoal e alargavam o número de pessoas autorizadas a entrar sem pagar, por

considerar que “a concessão se caracterizava pela susceptibilidade de modificação das

condições relativas ao funcionamento do serviço, e inalterabilidade das condições que

constituem a situação particular criada ao concessionário”.

Em conclusão: as cláusulas regulamentares — reportando-se a aspectos ou elementos da

organização e funcionamento da obra ou do serviço público — só subsistem

199 Laubadère/Moderne/Delvolvé, Traité ... cit., vol. II, p. 406. 200 Os dois acórdãos subsequentes são citados por Augusto de Ataíde, Para a teoria do contrato administrativo:

limites e efeitos do exercício do poder de modificação unilateral pela Administração, Estudos de Direito Público em Honra do Professor Marcello Caetano, p. 88.

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“contratualmente” na medida em que o queira o Estado, o concedente, enquanto as cláusulas

contratuais — porque assentam no mútuo acordo dos contraentes —, são intangíveis,

insusceptíveis de alteração por vontade única do Estado (do concedente) subsistindo ao longo

de todo o contrato enquanto não a revogarem ambas as partes.

8.7.3. A “eficácia póstuma” da contratação pública

8.7.3.1. Considerações gerais

É hoje seguro que o facto de um contrato administrativo e um contrato público terem sido

precedidos por um procedimento de contratação pública impõe um limite jurídico à

modificação dos respectivos contratos.

A referência às duas categorias de contratos justifica-se porque os limites jurídicos não são

iguais, não se aplicam indistintamente aos contratos da Administração Pública (aliás, não se

aplicam sequer apenas aos contratos da Administração Pública), havendo várias distinções a

fazer consoante se trate de contratos administrativos ou não e consoante se trate de contratos

públicos ou concessões (na acepção comunitária dos dois conceitos) ou não.

Os termos da diferenciação são os seguintes:

(i) A modificação dos contratos administrativos que não sejam contratos públicos

ou concessões (na acepção comunitária dos dois conceitos) encontra os seus

limites apenas no artigo 313º do CCP, não lhes sendo aplicável o regime das

directivas de 2014.

(ii) A modificação dos contratos administrativos que sejam também contratos

públicos ou concessões (na acepção comunitária dos dois conceitos) encontra

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os seus limites no artigo 313º do CCP e também no regime das directivas de

2014.

(iii) A modificação dos contratos que não devam ser qualificados como

administrativos mas sejam contratos públicos ou concessões (na acepção

comunitária dos dois conceitos) encontra os seus limites apenas no regime das

directivas de 2014, não lhes sendo aplicável o regime do artigo 313º do CCP.

Há portanto, para este efeito, três categorias relevantes, podendo ainda dizer-se que acresce

uma quarta, a dos chamados “contratos com interesse transfronteiriço certo”, que, não sendo

contratos (públicos ou concessões, na acepção comunitária dos dois conceitos) formalmente

sujeitos ao regime das directivas de 2014, ficarão — tomando em consideração aquela que

tem sido a jurisprudência do TJUE nesta matéria —, subordinados a um regime próximo

daquele que se encontra nas directivas.

Para o estudo desta matéria, vamos começar por enunciar os termos do problema para depois

analisar o regime do artigo 313º do CPC e subsequentemente o regime das directivas de 2014.

8.7.3.2. Os termos do problema: a lógica da função e a

“scope of competition”

A circunstância de o contraente público dispor de um poder de modificação unilateral do

conteúdo do contrato (e de as partes, de igual forma, gozarem da faculdade de, por acordo

posterior, introduzir modificações ao pacto inicial) não significa que esse poder seja livre e

incondicionado perante eventuais interesses de terceiros. Por outras palavras, a questão da

permissão jurídica de modificar o contrato administrativo por acto unilateral não se resolve

apenas em função da intangibilidade das tais prestações principais do contrato (ver ponto

8.7.1.), como, de resto, não bastará para legitimar essa alteração o consentimento recíproco,

quando essa alteração é produto do acordo dos contratantes.

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104

De facto, há casos em que as obrigações estipuladas num contrato não foram livremente

negociadas e acordadas pelas partes contratantes, mas resultaram antes dos termos (ou seja, do

caderno de encargos) e das propostas de um procedimento que precedeu a sua adjudicação.

Nessas hipóteses, é necessário saber se e em que condições é legalmente permitido, na fase de

execução do contrato, proceder à modificação daquelas obrigações contratuais, apurando se as

vinculações e compromissos assumidos com o lançamento do procedimento se projectam para

além dele e em que termos.

De um ponto de vista puramente teórico, poderia afirmar-se que, em situações normais, o

“vínculo procedimental”, digamos assim, aquele que resulta dos termos do concurso e da

proposta apresentada pelo adjudicatário, se extingue com o nascimento do “vínculo

contratual”, e que a partir daqui ou é o contraente público, no exercício do seu poder de

modificação unilateral, ou são as partes, no seu recíproco jogo de interesses, que determinam

o desenvolvimento da nova relação jurídica surgida na sequência do procedimento.

Não é assim, como se sabe: o procedimento de formação dos contratos representa (ou pode

representar, dependendo dos casos) um limite à modificação posterior do conteúdo das

prestações acordadas201.

O problema é que, sobretudo em relação aos contratos administrativos de execução

continuada e duradoura, é perfeitamente normal e natural a ocorrência de vicissitudes e

circunstâncias imprevistas e não ponderadas, que podem justificar a introdução de alterações

ao contrato inicial. E mais fortemente ainda quando ao carácter duradouro do acordo vai

ligado o facto de ele associar ou comprometer o particular no desempenho regular de

atribuições administrativas, em cuja realização fica a colaborar.

201 Como, de resto, é assinalado por alguma doutrina. Assim, Pedro Gonçalves refere que um "ilimitado poder de

modificação poderia traduzir-se numa completa desfiguração do contrato celebrado e, desse modo, pôr em crise o sentido do procedimento contratual enquanto momento de determinação transparente e aberta do objecto do contrato" (A concessão ...., cit., p. 259, opinião que foi depois acolhida por Freitas do Amaral, Curso ..., cit., p. 620 e 621). Sobre o direito espanhol anterior à actual Ley de Contratos de las Administraciones Públicas, de 1995, v. Boquera Oliver, Poder administrativo y contrato, 1970, p. 70 e ss., afirmando, bem sugestivamente, que a admissão da livre alterabilidade do contrato administrativo, em todos os casos e por qualquer motivo, constituiria uma “burla para los licitadores” (p. 76).

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É que nestes contratos administrativos ditos de colaboração subordinada — mais do que em

quaisquer outros —, o contraente público está constituída (não só no poder, mas sobretudo)

no dever de actualizar as prestações contratuais às novas exigências do interesse público, que

é por definição mutável, inconstante e variável (hoje, até, mais do que outrora).

Aliás, este dever de permanente adaptação do contrato administrativo ao interesse público, às

novas circunstâncias que sobrevenham na fase de sua execução, é tão premente — afastando

ideias tão gratas ao direito contratual comum como as de estabilidade e de pacta sunt servanda

— que uma das primeiras teses doutrinais acerca da figura dos contratos no domínio do

Direito Administrativo, sustentada na lição de Zwahlen, era no sentido da sua

inadmissibilidade precisamente por causa disso. Entendia-se, na verdade, que a rigidez e a

imutabilidade dos contratos, o seu inafastável dogma do pacta sunt servanda, era incompatível

com a necessidade e a obrigatoriedade que a Administração tem de adaptar a sua actividade às

exigências do interesse público.

A ideia civilista que o contrato, tal qual foi celebrado, amarra as partes por todo o tempo da

sua duração, mesmo quando circunstâncias supervenientes o tornam inoportuno ou

desvantajoso para uma delas, não seria, portanto, conciliável com a ideia administrativa de

que a Administração deve, a todo o tempo e na maioria dos casos, actualizar a sua acção com

vista à permanente satisfação dos interesses que lhe estão legalmente confiados202.

Ultrapassados esses sobressaltos iniciais, a figura do contrato singrou no Direito

Administrativo, mas tendo sempre em atenção que a vinculação da Administração “à palavra

dada” mediante acordo não pode ser encarada aí nos termos rígidos em que vigora no direito

privado203, precisamente pela necessidade de actualizar as prestações (concursal e)

contratualmente estipuladas às exigências alteradas ou supervenientes do interesse público.

Por isso é que se reconhece à Administração, no direito contratual administrativo, entre

outros, o poder (hetero-vinculativo para o cocontratante) de modificar unilateralmente o

conteúdo das prestações acordadas.

202 Assim, Casalta Nabais, Contratos fiscais. Reflexões acerca da sua admissibilidade, STVDIA IURIDICA , nº 5, p.

44 e ss., em cuja obra se trata deste e de outros argumentos a favor da negação do contrato administrativo. 203 Onde a única excepção, de âmbito geral, é a alteração anormal das circunstâncias.

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Mas o facto de ser assim em geral não significa que o seja sempre, em todos os casos, livre e

incondicionalmente. Por outro lado, há que diferenciar e distinguir, porque a variedade e

heterogeneidade de situações hipotizáveis de modificação do pacto inicial é de tal ordem que

não podem merecer a mesma sanção jurídica. Por outro, a questão da permissão jurídica de

modificar o contrato administrativo unilateralmente ou por acordo dos contratantes não pode

resolver-se, no primeiro caso, apenas em função da intangibilidade das prestações principais

e, no segundo caso, apenas em função do seu consentimento recíproco, sendo seguro que a

procedimentalização dos contratos administrativos representa um limite à introdução de

alterações ao clausulado contratual204.

Compreende-se que seja assim, sobretudo se se tiver em consideração a confiança que os

concorrentes preteridos depositaram no procedimento de contratação pública, de um lado, e a

própria ratio e função concursal, por outro.

Na verdade, quando resolvem apresentar-se a um concurso, os operadores elaboram as suas

propostas, oferecem as suas condições, por referência ao “programa contratual” constante do

caderno de encargos (e em função do modelo de avaliação adoptado). Além disso, a decisão

de adjudicação, de escolha da proposta mais vantajosa para o interesse publico para efeitos de

celebração do contrato, é feita com base na valia relativa dessas propostas apresentadas em

função dos termos do caderno de encargos e da aplicação dos vários factores de adjudicação.

Ora, soubessem esses operadores (preteridos a favor de outra) que o contrato não era para ser

executado nos termos em que foi “concursado” (e celebrado), mas nos termos resultantes da

204 Como, de resto, é assinalado por alguma doutrina. Assim, Pedro Gonçalves refere que um "ilimitado poder de modificação poderia traduzir-se numa completa

desfiguração do contrato celebrado e, desse modo, pôr em crise o sentido do procedimento contratual enquanto momento de determinação transparente e aberta do objecto do contrato" (A concessão ...., cit., p. 259, opinião que foi depois acolhida por Freitas do Amaral, Curso ..., cit., p. 620 e 621).

É certo que quando se referem a tal questão, os AA. não se reportam aos limites das alterações pactuadas, mas aos limites do poder de modificação unilateral do contrato pela Administração Pública. É, porém, nuance a que não atribuímos relevo decisivo. Na verdade, se se procura saber quais são os limites que a tutela jurídica de terceiros (ex-concorrentes) pode impor à modificação do contrato administrativo (concursado), pouco importa que essa modificação seja ditada unilateralmente pela Administração ou acordada com o seu co-contratante.

Sobre o direito espanhol ainda anterior à Ley de Contratos de las Administraciones Públicas de 1995, v. Boquera Oliver, Poder administrativo y contrato, 1970, p. 70 e ss..

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modificação efectuada, e poderiam ter oferecido proposta diferente daquela que apresentaram,

com potenciais ou hipotéticas consequências ao nível da grelha adjudicatória205.

Por outro, os limites à alterabilidade incondicionada dos contratos (sujeitos a um

procedimento prévio de natureza concorrencial) servem igualmente de garantia da

transparência, evitando fraudes à “lei da contratação pública”. Na verdade, enquanto

mecanismo pré-ordenado à selecção do cocontratante e à fixação dos termos do respectivo

contrato, o procedimento (os termos que serviram de base ao seu lançamento) constitui um

parâmetro normativo de referência directa na determinação das cláusulas a introduzir no

acordo206. E se o contrato adjudicado é, por via de regra207, para ser celebrado nos termos que

resultam das peças do procedimento e da proposta vencedora, por decorrência directa do

compromisso derivado do lançamento do concurso, é porque esse compromisso há-de relevar

também, em alguma medida, e mesmo se agora apenas indirectamente, sobre a “fase” de

execução do contrato.

Aliás, não se justificaria pôr tanto cuidado naquela primeira proposição — de o conteúdo do

contrato dever (por via de regra) resultar da “fusão” entre as cláusulas do caderno de encargos

e a proposta do concorrente adjudicatário — se os contraentes pudessem logo depois, livre e

incondicionalmente, acordar na execução de um contrato completamente distinto.

Em suma, deve reconhecer-se a existência de limites ao princípio da autonomia das partes, da

livre recomposição das prestações contratuais, que haverá aqui, em algumas situações, uma

espécie de eficácia póstuma ou ulterior (“Nachwirkung”) do procedimento de contratação

pública sobre os termos do contrato em execução.

Não é tarefa fácil definir ou traduzir juridicamente quais devem ser, num plano teórico, tais

limites.

205 É isto que leva Boquera Oliver a afirmar que a admissão da livre alterabilidade do contrato administrativo,

em todos os casos e por qualquer motivo constituiria uma “burla para los licitadores” (Poder, cit., p. 76). 206 Por isso que a doutrina assinala a ilegalidade-regra das negociações posteriores à adjudicação (cf. Fausto de

Quadros, O concurso público na formação do contrato administrativo, p. 715 e ss., e Marcelo Rebelo de Sousa, O concurso público na formação do contrato administrativo, 1994, p. 75 e ss).

207 Existem desvios, casos em que se deve admitir uma “dissonância” entre os termos do concurso (e da adjudicação) e os termos do contrato ___ cf. Mário Esteves de Oliveira/Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos ...., cit., p. 555 e ss.

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Uma primeira ideia, que nos parece ser de recusar, seria considerar que o princípio da

estabilidade (das peças do procedimento e das propostas), que caracteriza o procedimento de

contratação pública, deveria corresponder a uma vinculação prima facie das partes, por todo o

tempo por que durem as suas relações contratuais, aos termos do caderno de encargos e da

proposta vencedora, prolongamento que corresponderia a uma necessidade de “não deixar

entrar pela janela aquilo a que se fechou a porta”, é dizer, à necessidade de não se permitir aos

contraentes (ou ao contraente público), que, em fraude à lei, fujam à proibição (ou restrição)

legal da alteração dos termos do caderno de encargos e da proposta até ao momento da

celebração do contrato, celebrando-o em conformidade com esses termos, para, depois disso,

o alterarem livremente.

Trata-se, evidentemente, de um aspecto a ter em conta na solução a dar a este tipo de

problemas, mas a extensão dos vínculos jurídicos do procedimento ao contrato é, como se

sabe, de recusar.

Desde logo, porque se pode ser verdade, por um lado, que a admissão incondicional ou

irrestrita de modificações contratuais por acordo entre as partes potenciaria as fraudes à lei do

procedimento, que proíbe ou limita a possibilidade de modificação dos termos do

procedimento e da proposta antes da adjudicação (e antes da celebração do contrato), já não o

é, por outro lado, a conclusão de que a necessidade de prevenir essa fraude só seja alcançável

através de uma proibição de modificação do próprio contrato (contra ou praeter legem

concursal) similar àquela que vigora para a fase pré-contratual.

Acresce que a tese contrária redundaria no congelamento de todas as cláusulas contratuais até

à data da extinção do contrato concursado, pois só elas são conformes ao respectivo caderno

de encargos e à proposta apresentada em função dele.

Ora, vimos logo no início que o Direito é completamente avesso a esse congelamento, à

“petrificação” dos interesses envolvidos nos contratos administrativos, prevendo e

permitindo-se expressamente, não só que o contraente público modifique por decisão

unilateral o conteúdo das prestações contratadas (desde que deixe intocado o respectivo

objecto), como possa acordar com o seu cocontratante modificações ao clausulado inicial.

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O que só mostra que a questão da (permissão da) da alteração do contrato se põe em termos

diversos daqueles por que se pauta a (proibição da) alteração da proposta ou da adjudicação

em sede procedimental.

Diríamos, então, que o problema em apreciação não tem uma resposta automática e carece de

uma adequada e sensata ponderação dos vários interesses em jogo, em função dos tipos de

contratos.

Aliás, bem sintomático de tudo isto, de a ordem jurídica equacionar de forma muito diversa a questão das

alterações pré-contratuais e das alterações contratuais, é o facto de o CPTA, tendo ido muito mais longe do que a

lei processual anterior208, mesmo assim restringir o acesso de terceiros à acção sobre contratos aos casos em que

esse terceiro, “tendo participado no concurso que precedeu a celebração do contrato, alegue que o clausulado não

corresponde aos termos da adjudicação” ou então “alegue que o clausulado do contrato não corresponde aos

termos inicialmente estabelecidos e que justificadamente o tinham levado a participar no concurso” [art. 40º/1,

alíneas d) e e), do CPTA]. Ou seja, para o legislador processual, o vínculo decorrente dos termos do concurso

projecta-se directamente sobre o momento da celebração do contrato, e é precisamente por isso que se admite a

reacção judicial de terceiros quando o contrato celebrado não corresponda ao contrato concursado. Mas já não se

prevê aí, pelo menos expressamente, qualquer tutela judicial desses terceiros em face de contratos modificativos

das cláusulas contratuais iniciais, o que pode querer revelar que, para o legislador, não há também, em regra,

qualquer tutela jurídica substantiva.

Por último, é preciso ter presente que os interesses públicos (e privados) que se pretendem

acautelar com a instituição (e abertura) do procedimento de concurso se realizam e são

devidamente tutelados ainda que se admita (com os limites adequados) a alteração posterior

do contrato celebrado na sua sequência.

É que as decisões cruciais de escolha do melhor concorrente e de preterição dos piores, que se

tomam na (e configuram a) fase de adjudicação, devem ser sempre, sob pena de ilegalidade,

exclusivamente determinadas em função dos factores de adjudicação estabelecidos (de todos

eles e só deles) e do mérito das propostas apresentadas, tal qual foram formuladas209.

Até aí, não há concessão. Porém, a partir do momento em que se procede à escolha do melhor

concorrente e à preterição dos piores, o interesse destes em que o contrato seja executado em

208 Que reservava a acção sobre contratos administrativos às partes contratantes. 209 Salvo quando se admita a livre negociação das propostas.

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rigorosa conformidade com os termos do concurso e da proposta escolhida só em casos

específicos é que é merecedor de tutela jurídica.

O que lhes interessa e isso gozará da protecção legal inerente à exigência do procedimento

de contratação pública é que tais decisões sejam tomadas de acordo com a lei, por um lado,

e, por outro, que não se vá, depois da celebração, executar, por acordo das partes, um contrato

em condições substancialmente diversas, que atentem contra a confiança que legitimamente

depositaram no (resultado do) concurso.

Mas se essa confiança não for violada não assiste aos ex-concorrentes qualquer expectativa

quanto à pretensão jurídica derivada da apresentação da sua proposta, porque essa pretensão

(ou seja, o interesse legalmente protegido com a abertura e o acesso ao concurso) esgota-se no

facto de a escolha da melhor de entre todas elas e, portanto, a determinação do

adjudicatário (e futuro cocontratante) dever ser feita de acordo com os critérios

inicialmente anunciados e em função do maior ou menor mérito das propostas apresentadas.

Quando acontece assim, quando os concorrentes disputam a adjudicação do contrato tal como

este foi posto a concurso, e tudo se passa de acordo com os critérios fixados e com as

propostas oferecidas (sem qualquer “fraude ao concurso”), as alterações posteriores do

contrato só em casos excepcionais farão reviver as pretensões adjudicatórias ou ressarcitórias

(já sepultadas) de quem saiu legitimamente vencido no concurso nos moldes em que ele foi

posto e decidido.

Não se trata aqui, portanto, quando se discute em teoria sobre a admissibilidade de alterações

contratuais, de proteger um suposto interesse dos concorrentes preteridos em que o contrato

emergente de uma adjudicação concorrencial seja executado até ao fim dos seus dias nos

precisos termos do respectivo caderno de encargos e da proposta apresentada. Nem é por abrir

um procedimento concorrencial que a entidade adjudicante se compromete a isso.

Conclui-se então que, a partir do momento da adjudicação (supondo que esta é legal), o

primeiro interesse directamente protegido no procedimento respectivo é o do vencedor do

concurso que tem direito a celebrar (e executar) o contrato nos precisos termos da sua

proposta e das condições do concurso (salvo em caso de exercício legítimo do poder de

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modificação unilateral ou em caso de alteração das circunstâncias , enquanto os outros

concorrentes deixam de ter um interesse adjudicatório directamente assente na estabilidade

das regras do procedimento e da proposta vencedora, e só são protegidos em relação a certas

alterações do contrato, que modifiquem substancialmente a natureza das prestação contratuais

ou que sejam feitas em violação dos princípios da protecção da confiança.

Por outras palavras, não obstante a extinção do vínculo concursal, a lei ainda tutela os

interesses dos que acorreram ao concurso e foram preteridos em favor do adjudicatário,

através, sobretudo, do funcionamento dos princípios gerais da proibição dos negócios em

fraude à lei e da protecção da confiança.

Em conclusão, para fechar esta parte, diríamos que o problema em apreço, não tendo uma

resposta de tipo silogístico e carecendo de uma adequada e sensata ponderação dos vários

interesses em jogo, não pode ser decidido com base na lógica do “tudo ou nada”.

De facto, é tão absurdo pensar que, em contratos administrativos de execução duradoura e

continuada, as partes se mantém permanentemente e incindivelmente amarradas aos vínculos

de um procedimento já extinto e finalizado — sejam quais forem as vicissitudes e

circunstâncias que ocorram entretanto —, como o é pensar que, só porque o concurso já

terminou, elas ficam livres de acordar as alterações que bem entenderem.

Nem uma, nem outra solução, portanto.

Mas a verdade é que, além de os dados jurídicos do nosso ordenamento apontarem nesse

sentido, é a própria natureza das relações contratuais administrativas duradouras que justifica

a faculdade de as partes, quando o considerem necessário ou oportuno, adaptarem o conteúdo

das prestações contratuais originárias às circunstâncias supervenientes (da mais variada

espécie) entretanto surgidas.

Os concorrentes preteridos, por sua vez, não têm um direito à “petrificação” das prestações

contratuais.

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O procedimento concorrencial, que outrora se lançou, foi decidido em função dos vários

factores de adjudicação e do mérito relativo das propostas apresentadas — e era isso que

importa essencialmente assegurar.

Se factos entretanto surgidos durante a execução do contrato pedem ou justificam um

reapreciação ou alteração das prestações contratuais, o mínimo que se pode dizer é que, a

tratar-se de factos não imputáveis ao cocontratante, o mesmo teria acontecido com esses ex-

concorrentes se tivessem sido eles os adjudicatários.

Não se vê, por isso, porque é que nessas hipóteses se há-de falar numa pretensa lesão da

posição jurídica dos concorrentes preteridos, de uma expectativa legítima sua na manutenção

rígida do quadro contratual.

Diferentemente sucederá, claro, se houver, no pacto de alteração, alguma fraude à lei

concursal ou violação da protecção da confiança dos interessados no concurso público.

De facto, todo e qualquer concorrente há-de fundar nos procedimentos de contratação pública

uma expectativa legítima, a saber, que, não sendo ele o vencedor, mas outro, a entidade

adjudicante (agora contraente público) saberá honrar a transparência e finalidade do

procedimento, é dizer, que, salvo situações justificadas, não adoptará, em conluio com o seu

co-contratante, nenhuma medida que frustre os interesses públicos a que vai votada a abertura

de um procedimento, nenhuma medida que torne sem (ou adultere o) sentido ou resultado do

concurso.

Havendo uma situação dessas, estará em xeque a legitimidade jurídica do contrato

modificativo.

Não só por violar a protecção da confiança dos ex-concorrentes, como também por poder

representar (depende do caso) uma fraude à lei da contratação pública.

Como se sabe, a proibição dos negócios fraudulentos é um princípio geral de direito aplicável

em qualquer ramo da ordem jurídica210 e visa impedir a produção de efeitos jurídicos por parte

210 Cf. o art. 294º do Código Civil e o bem mais explícito art. 1343º do Codice Civile italiano, segundo o qual

“ [s]i ripute illecite le causa quando il contratto costituisce il mezzo per eludere l’applicazione di una norma imperativa”.

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daqueles actos ou contratos que, embora abstractamente lícitos, constituam o meio ou

expediente para iludir a aplicação de um comando jurídico imperativo, produzindo o resultado

nele vedado211.

Um exemplo permitirá compreender melhor o que vai aqui dito: a lei proíbe, em sede de

ajustamentos ao contrato, que se inclua, por acordo entre a entidade adjudicante e o

adjudicatário, soluções inovadoras contidas em propostas apresentadas por outros

concorrentes. Imagine-se agora que adjudicante e adjudicatário celebram o contrato nos

termos que resultavam da proposta deste último, mas que logo depois acordam numa

alteração a esse contrato que tem precisamente por efeito a apropriação de uma solução

inovatória contida na proposta de outro concorrente. Aqui haveria uma modificação ilegítima

do pacto inicial, porque feita em fraude à lei.

Outra coisa, porém, é sustentar a ilegitimidade jurídica dos contratos modificativos fora dos

domínios da tutela jurídica devida à protecção da confiança e à fraude à lei, ou seja, sustentar

essa legitimidade quando a modificação das prestações contratuais seja justificada, quando

haja um fundamento juridicamente razoável para o fazer não ponderável (ou não ponderado,

tudo depende) à data do concurso.

Em conformidade com tudo isso, dir-se-ia que as modificações dos contratos administrativos

seriam em geral válidas:

i) Quando se trate de alterações inócuas

ii) Quando se trate de alterações juridicamente devidas

iii) Quando haja justa causa, é dizer, quando o interesse público (a existência de

necessidades novas ou as novas ponderações político-administrativas) assim o

determine

iv) Quando não se pervertam com isso as razões determinantes da decisão de

adjudicação, aquilo que pode designar-se por “manutenção da equação

adjudicatória” 211 Como observa Castro Mendes, a fraude à lei constitui uma forma ou espécie de ilicitude condenada pela

ordem jurídica e, embora seja estruturalmente distinta tanto do abuso do direito como da ilicitude propriamente dita, deve ter o mesmo efeito, a mesma sanção, do que esta ou seja, a nulidade (Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, pp. 501 a 505).

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v) Quando a alteração resulte de circunstâncias supervenientes ou imprevisíveis,

que não podiam ser tomadas em conta no procedimento de contratação pública.

São estas as hipóteses típicas em que, em teoria, podia admitir-se a modificação do contrato

inicialmente firmado, cuja legitimidade se funda, positivamente, na autonomia das partes (ou

no poder do contraente público de modificar o contrato) e, negativamente, na inexistência de

qualquer ofensa à tutela da confiança que ainda seja devida aos concorrentes preteridos e na

inexistência de fraude à lei da contratação pública. E, como pano de fundo, no interesse

público, constituirá, mais próxima ou mais longinquamente, o fundamento das alterações

pactuadas aos contratos administrativos.

O regime do CCP

Regime geral: “o congelamento da equação

adjudicatória”?

Relativamente aos contratos administrativos, a questão encontra-se hoje regulada no artigo

313º do CCP, onde — depois de se estabelecer no número 1 que “a modificação não pode

conduzir à alteração das prestações principais abrangidas pelo objecto do contrato nem

configurar uma forma de impedir, restringir ou falsear a concorrência garantida pelo disposto

no presente Código relativamente à formação do contrato” — se dispõe no número 2 que

“para efeitos do disposto no número anterior, salvo quando a natureza duradoura do vínculo

contratual e o decurso do tempo o justifiquem, a modificação só é permitida quando seja

objectivamente demonstrável que a ordenação das propostas avaliadas no procedimento de

formação do contrato não seria alterada se o caderno de encargos tivesse contemplado essa

modificação”.

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Nos termos da lei, há assim dois factos que, conjugadamente, podem constituir uma excepção

à regra, a saber, “a natureza duradoura do vínculo contratual e o decurso do tempo” (que

verdadeiramente é só um facto, como veremos adiante), mas a regra, afirmada de forma muito

clara, é a de que “a modificação só é permitida quando seja objectivamente demonstrável que

a ordenação das propostas avaliadas no procedimento de formação do contrato não seria

alterada se o caderno de encargos tivesse contemplado essa modificação”. Bem lida, a regra

constrói-se à volta do critério da manutenção da equação adjudicatória (das razões

determinantes da adjudicação), que representa uma protecção máxima dos interesses da

concorrência ou, se se preferir, uma regra de intensidade máxima da eficácia póstuma do

vínculo pré-contratual.

A limitação legal funciona tanto no caso de especificações previstas no procedimento como

no caso de especificações não previstas no procedimento.

Assim, quando tenha havido procedimento pré-contratual com várias propostas, há situações

em que a modificação pode ser equacionada, em juízo póstumo, em termos de pontuação das

propostas (imagine-se, por exemplo, que se pretende suprimir, em sede contratual, uma parte

do objecto do contrato, onde a proposta classificada em 2º lugar era especialmente penalizada

ou que se pretende optar, em sede contratual, por um trajecto rodoviário, previsto em proposta

do concorrente classificado em 2º lugar, que, em sede de avaliação, tinha sido fortemente

penalizado).

Da mesma forma, a limitação legal aplica-se quando tenha havido procedimento pré-

contratual com várias propostas e a modificação não possa ser equacionada, em juízo

póstumo, em termos de pontuação das propostas (imagine-se que se pretende introduzir uma

nova especificação no equipamento técnico fornecido, na obra a fazer ou na concessão a

explorar)

Diversamente, e a atender à letra da lei, à forma como é desenhado o respectivo limite legal

ou o critério da legitimidade da modificação, parece que o artigo 312º/2 do CCP não se aplica

(ou só se aplica em certas hipóteses):

(i) Quando não tenha havido procedimento de contratação pública

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(ii) Quando tenha havido um procedimento de contratação pública, mas com

apenas um concorrente

(iii) Quando tenha havido um procedimento de contratação pública com vários

concorrentes, mas só uma proposta foi admitida

Distinção entre reponderação do interesse público contratualizado (nova valoração político-

administrativa) e alteração superveniente das circunstâncias (novos dados exógenos ou

endógenos), objectivamente comprovável.

8.7.3.4. O regime do direito comunitário

8.7.3.5. A jurisprudência do critério das alterações substanciais

O critério das “alterações substanciais” é de origem comunitária.

O primeiro acórdão a lançar o debate sobre a possibilidade de uma alteração substancial do

contrato poder consubstanciar a celebração de um novo contrato foi o acórdão

Comissão/Franca, de 05.10.2000 (C-337/98), proferida na sequência de uma acção proposta

pela Comissão, em que o TJUE considerou que aquela não tinha fornecido provas de que uma

determinada negociação de um contrato público demonstrava a vontade das partes em

renegociar os termos essenciais do contrato, referindo que, tivesse tal prova sido feita, teria

considerado não ter havido modificação dos respetivos termos, mas adjudicação de um novo

contrato.

O primeiro a tratar do tema foi o acórdão Comissão vs. CAS Succhi di Frutta SpA, de

29.04.2004 (C-496/99), em que estava em causa um contrato celebrado na sequência de

concurso lançado pela Comissão Europeia, cujo objeto era o fornecimento de sumos e doces

de fruta em troca da entrega de maçãs e de laranjas.

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Tendo-se verificado, já na execução do contrato, a falta de maçãs suficientes, a Comissão

Europeia concordou em substituir a entrega das maçãs por pêssegos, quando no anúncio do

concurso que precedeu a celebração do contrato vinha expressamente previsto como

contrapartida o fornecimento de sumos e doces de fruta, a entrega de maçãs ou laranjas, não

se prevendo a entrega de quaisquer outras frutas, designadamente pêssegos. Por outro lado,

não se previa a possibilidade de, em determinadas circunstancias, serem alteradas as

condições contratuais.

O TJUE entendeu que, tendo ficado unicamente previsto, no anúncio do concurso, o

pagamento do fornecimento em laranjas ou maçãs e não se tendo previsto a hipótese de

alteração das condições de “pagamento”, a Comissão Europeia não podia ter, depois da

adjudicação, procedido a uma modificação de uma condição importante do concurso, como a

relativa aos modos de pagamento.

Mais concretamente, o TJUE considerou que “o princípio da igualdade de tratamento entre os

proponentes, que tem por objectivo favorecer o desenvolvimento de uma concorrência sã e

efectiva entre as empresas que participam num concurso público, impõe que todos os

proponentes tenham as mesmas oportunidades na formulação dos termos das suas propostas e

implica portanto que estejas estejam sujeitas às mesmas condições para todos os

concorrentes”.

“Quanto ao princípio da transparência, que é corolário daquele, o mesmo destina-se

essencialmente a garantir a ausência de risco de favoritismo e de arbitrariedade por parte da

entidade adjudicante. Implica que todas as condições e modalidades do processo de

adjudicação sejam formuladas de forma clara, precisa e unívoca, no anúncio de concurso ou

no caderno de encargos, de forma, por um lado, a permitir a todos os proponentes

razoavelmente informados e normalmente diligentes compreenderem o seu alcance exacto e

interpretá-las da mesma maneira e, por outro, a possibilitar à entidade adjudicante verificar

efectivamente se as propostas dos proponentes correspondem aos critérios por que se rege o

concurso em causa”.

E esclareceu também que “incumbe à Comissão, na sua qualidade de entidade adjudicante,

observar rigorosamente os critérios por ela fixados não só quando do processo de concurso

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enquanto tal que tem por objecto a avaliação das propostas e a escolha do adjudicatário, mas,

mais geralmente, até ao termo da fase de execução do contrato em causa”.

“Se, assim, uma proposta que não seja conforme às condições estipuladas deve, com toda a

evidência, ser afastada, a entidade adjudicante também não está autorizada a alterar a

sistemática geral do concurso modificando em seguida unilateralmente um das suas condições

essenciais e, em especial, uma estipulação que se tivesse figurado no anúncio de concurso,

teria permitido aos proponentes apresentarem uma proposta substancialmente diferente”.

Daqui resulta que, numa situação como a do caso vertente, a entidade adjudicante não podia,

depois da adjudicação do contrato, (…) proceder a uma modificação de uma condição

importante do concurso como a relativa aos modos de pagamento dos produtos a fornecer”.

Mais tarde, surgiu o acórdão Comissão vs. República Italiana, de 13.09.2007 (C-260/04), em

que a Comissão Europeia pedia ao TJUE que declarasse que, tendo procedido à renovação de

329 licenças para a gestão das apostas sobre competições hípicas sem qualquer processo de

abertura à concorrência, Itália não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do

TFUE e violou, em especial, o princípio geral da transparência assim como a obrigação de

publicidade decorrentes dos artigos 43.º e 49.º do TFUE.

Na origem deste processo estava portanto a prorrogação, pelo Governo Italiano, por três

vezes, do prazo de vigência das concessões acima referidas, que justificou com a necessidade

de assegurar aos titulares de uma concessão a continuidade, a estabilidade financeira e a

adequada remuneração dos investimentos realizados no passado, bem como com a

necessidade de desencorajar o recurso a atividades clandestinas até que as concessões em

vigor pudessem voltar a ser adjudicadas, com base em procedimentos de contratação pública.

E considerava ainda o Governo italiano que tais justificações constituem motivos imperiosos

de interesse geral, capazes de permitir derrogações aos princípios comunitários que

comportam a obrigação de abrir à concorrência o mercado dos contratos de serviços.

O TJUE acolheu a posição da Comissão Europeia, tendo considerado que as prorrogações em

causa violam as normas comunitárias aplicáveis, em especial o princípio da transparência e da

publicidade.

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O TJUE começou por referir que era relevante “examinar se a renovação de concessões à

margem de qualquer processo de abertura à concorrência é adequada para garantir a

realização do objectivo prosseguido pela República Italiana e se não ultrapassa o que é

necessário para atingir esse objectivo. Em todo o caso, a referida renovação deve ser aplicada

de maneira não discriminatória”.

Tendo depois concluído que “o facto de proceder à renovação das antigas concessões da

UNIRE sem abertura à concorrência não é adequado para garantir a realização do objectivo

prosseguido pela República Italiana e ultrapassa o que é necessário para evitar que os

operadores activos no sector das apostas sobre competições hípicas sejam envolvidos em

actividades criminosas ou fraudulentas. Além disso, e no tocante aos motivos de natureza

económica avançados pelo Governo Italiano, tais como o facto de assegurar aos titulares de

uma concessão a continuidade, a estabilidade financeira e a adequada remuneração dos

investimentos realizados no passado, basta recordar que não podem ser admitidos como

razões imperiosas de interesse geral susceptíveis de justificar uma restrição a uma liberdade

fundamental garantida pelo Tratado”.

E conclui que, “tendo procedido à renovação de 329 concessões para a gestão das apostas

sobre competições hípicas sem qualquer processo de abertura à concorrência, a República

Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 43.º CE e 49.º CE

e violou, em especial, o princípio geral da transparência assim como a obrigação de garantir

um grau de publicidade adequado”.

De seguida, o importante acórdão Pressetext, de 18.06.2008 (C-454/06), no qual estava em

causa um contrato de prestação de serviços celebrado entre a APA, uma agência de imprensa

Austríaca, e Estado Austríaco, no qual se previa o fornecimento de certos serviços contra o

pagamento de determinada remuneração. O contrato em causa foi celebrado por tempo

indeterminado, contendo uma cláusula de renúncia à faculdade de rescisão do mesmo até 31

de Dezembro de 1999.

Este contrato foi objeto de várias alterações, nos seguintes termos: i) a posição contratual da

AP, contratante inicial, passou a ser ocupada por uma filial sua; ii) foram feitos ajustamentos

ao preço contratualizado, com vista à conversa da remuneração de xelim para euro; iii) a

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cláusula de indexação também foi adaptada, para efeitos de fixação do preço, tendo daí

resultado uma ligeira redução do preço final; iv) a vigência da cláusula de renúncia à

faculdade de rescisão foi prorrogada por 9 anos; v) aumentou-se o desconto nos serviços

prestados.

O TJUE considerou que nenhuma das referidas alterações ao contrato consubstancia uma

alteração substancial do mesmo.

Assim, começou por dizer que, “com vista a assegurar a transparência dos processos e a

igualdade de tratamento dos proponentes, as alterações introduzidas nas disposições de um

contrato público durante a sua vigência constituem uma nova adjudicação do contrato, na

acepção da Directiva 92/50, quando apresentem características substancialmente diferentes

das do contrato inicial e sejam, consequentemente, susceptíveis de demonstrar a vontade das

partes de renegociar os termos essenciais do contrato (v., neste sentido, acórdão de 5 de

Outubro de 2000, Comissão/França,C-337/98, Colect., p. I-8377, n. s 44 e 46)”.

“A alteração de um contrato público vigente pode ser considerada substancial quando

introduz condições que, se tivessem figurado no procedimento de adjudicação inicial, teriam

permitido admitir proponentes diferentes dos inicialmente admitidos ou teriam permitido

aceitar uma proposta diferente da inicialmente aceite”.

“Uma alteração pode igualmente ser considerada substancial quando modifica o equilíbrio

económico do contrato a favor do adjudicatário do contrato de uma forma que não estava

prevista nos termos do contrato inicial”.

“Quando o arredondamento dos preços convertidos em euros ultrapassa o montante

autorizado pelas disposições pertinentes, está em causa uma alteração do montante intrínseco

dos preços previsto pelo contrato inicial. Coloca-se então a questão de saber se tal alteração

dos preços constitui uma nova adjudicação do contrato.

“É evidente que o preço constitui uma condição importante de um contrato público (v., neste

sentido, acórdão Comissão/CAS Succhi di Frutta, já referido, n.°117)”.

“Alterar uma tal condição durante o período de vigência do contrato, na falta de uma

habilitação expressa nesse sentido no contrato inicial, poderia dar origem a uma violação dos

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121

princípios da transparência e da igualdade de tratamento dos proponentes (v., neste sentido,

acórdão Comissão/CAS Succhi di Frutta, já referido, n.°121)”.

“Todavia, a conversão em euros dos preços de um contrato vigente pode ser acompanhada de

um ajustamento do seu montante intrínseco, sem que daí resulte uma nova adjudicação do

contrato, na condição de tal ajustamento ser mínimo e se explicar de forma objectiva, sendo

esse o caso se tiver por finalidade facilitar a execução do contrato, por exemplo simplificando

as operações de facturação”.

“Em condições como as do processo principal, o facto de prever uma cláusula de renúncia à

rescisão durante um período de três anos no decurso da vigência de um contrato de serviços

celebrado por tempo indeterminado não constitui uma nova adjudicação do contrato na

acepção da Directiva 92/50”.

“O aumento da taxa de desconto de 15% para 25%, prevista pelo segundo aditamento,

equivale à aplicação de um preço menos elevado. Ainda que a sua apresentação formal seja

diferente, a redução de um preço e o aumento de uma taxa de desconto têm um efeito

económico comparável.

Nestas condições, pode interpretar-se o aumento do desconto no sentido de que faz parte das

cláusulas fixadas no contrato de base.

Por outro lado, o aumento do desconto, uma vez que tem por efeito a redução da remuneração

recebida pelo adjudicatário em relação à inicialmente prevista, não modifica o equilíbrio

económico do contrato a favor do adjudicatário.

Além disso, o simples facto de a entidade adjudicante obter um desconto superior em relação

a uma parte das prestações que são objecto do contrato não é susceptível de provocar uma

distorção da concorrência em detrimento de potenciais proponentes.

Do que precede resulta que, numa situação como a do processo principal, o facto de se

fixarem, num aditamento, descontos superiores aos inicialmente previstos sobre certos preços

condicionados à quantidade num domínio específico não deve ser considerado uma alteração

substancial do contrato e, portanto, não é susceptível de implicar uma nova adjudicação do

contrato na acepção da Directiva 92/5”.

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122

De seguida, surgiu o acórdão Wall AG, de 13.04.2010 (C-91/08), no qual estava em causa um

contrato de concessão de serviços de exploração, manutenção, assistência e limpeza de vários

sanitários públicos urbanos, celebrado entre a Cidade de Frankfurt e a empresa FES. A Wall

AG, uma empresa dedicada à produção, montagem, manutenção e limpeza de sanitários

públicos era, nos termos do próprio contrato, subcontratada da FES, sem que no entanto

tivesse ficado refletido no contrato o âmbito e extensão dessa subcontratação. Por outro,

previa ainda o contrato que a alteração do subcontratado depende do consentimento da

entidade adjudicante.

A FES requereu à entidade adjudicante a alteração da subcontratada apenas relativamente a

parte dos serviços objeto do contrato, tendo a entidade adjudicante consentido nessa alteração.

O TJUE começou por considerar que, “tendo em vista assegurar a transparência dos processos

e a igualdade de tratamento dos proponentes, as alterações substanciais introduzidas nas

disposições essenciais de um contrato de concessão de serviços podem exigir, em certas

hipóteses, a adjudicação de um novo contrato de concessão quando apresentem características

significativamente diferentes das do contrato inicial e sejam, consequentemente, susceptíveis

de demonstrar a vontade das partes de renegociar os termos essenciais desse contrato (v., por

analogia com os contratos públicos, acórdãos de 5 de Outubro de 2000, Comissão/França,

C-337/98, Colect., p.I-8377, n. s 44 e 46, e de 19 de Junho de 2008, Pressetext

Nachrichtenagentur, C-454/06, Colect., p. I-4401, nº 34).

A alteração de um contrato de concessão de serviços em vigor pode ser considerada

substancial quando introduz condições que, se tivessem figurado no processo de adjudicação

inicial, teriam permitido admitir proponentes diferentes dos inicialmente admitidos ou teriam

permitido seleccionar uma proposta diferente da inicialmente seleccionada (v., por analogia,

acórdão pressetext Nachrichtenagentur, já referido, n.° 35).

A substituição de subcontratante, mesmo quando a faculdade de o fazer está prevista no

contrato, pode, em casos excepcionais, constituir uma alteração desse tipo de um dos

elementos essenciais do contrato de concessão quando o recurso a determinado subcontratante

e não a outro tenha sido, atendendo às características próprias da prestação em causa, um

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elemento determinante da celebração do contrato, o que, em qualquer dos casos, compete ao

órgão jurisdicional de reenvio verificar”.

“Se, no quadro desta apreciação, o órgão jurisdicional de reenvio concluir pela existência de

uma alteração de um dos elementos essenciais do contrato de concessão, há que adoptar, em

conformidade com a ordem jurídica interna do Estado-Membro em causa, todas as medidas

necessárias para restabelecer a transparência no processo, incluindo um novo processo de

adjudicação. Sendo esse o caso, o novo processo de adjudicação deve ser organizado segundo

modalidades adaptadas às especificidades da concessão de serviços em causa e permitir que

uma empresa situada no território de outro Estado-Membro possa ter acesso às informações

adequadas relativas à referida concessão antes de esta ser adjudicada”.

“Quando as alterações introduzidas nas disposições de um contrato de concessão de serviços

apresentem características significativamente diferentes das que justificaram a adjudicação do

contrato de concessão inicial e sejam, consequentemente, susceptíveis de demonstrar a

vontade das partes de renegociar os termos essenciais desse contrato, há que adoptar, em

conformidade com a ordem jurídica interna do Estado-Membro em causa, todas as medidas

necessárias para restabelecer a transparência no processo, incluindo um novo processo de

adjudicação. Sendo esse o caso, o novo processo de adjudicação deve ser organizado segundo

modalidades adaptadas às especificidades da concessão de serviços em causa e permitir que

uma empresa situada no território de outro Estado-Membro possa ter acesso às informações

adequadas relativas à referida concessão antes de esta ser adjudicada.”

Poucos dias depois do acórdão Wall AG surgia o acórdão Comissão vs. República Federal

Alemã, de 29.04.2010 (C-160/08), no qual estava em causa uma ação de incumprimento

proposta pela Comissão contra a República Federal Alemã, ao abrigo do artigo 226º do TCE

(atual artigo 258º do TFUE), das obrigações daquele Estado Membro no que diz respeito a

vários procedimentos pré-contratuais para a adjudicação de contratos de serviços públicos de

transporte médico de emergência e de transporte especial de doentes, tendo a propósito de um

desses procedimentos sido suscitada a questão da modificação de um contrato já existente.

Neste caso, a secção local da Cruz Vermelha Alemã (DRK, Deutsche Rote Kreuz) prestava já

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serviços públicos de transporte de doentes no território do Lankreis de Uelzen por via de um

contrato celebrado com essa entidade administrativa em 1984.

Em 2004, o objecto do contrato celebrado entre o Landkreis de Uelzen e a DRK foi alargado

para incluir a exploração do posto de socorro de Bad Bevensen, localidade ainda dentro dos

limites do Landkreis, sem publicação do anúncio do concurso.

O TJUE considerou a referida alteração ao contrato como uma alteração substancial do

mesmo que teria exigido uma nova adjudicação.

Começou por observar que, “no caso do contrato celebrado pelo Landkreis de Uelzen, a

acusação formulada pela Comissão assenta (…) no alargamento, em 2004, do objecto do

contrato celebrado em 1984, entre o referido Landkreis e a respectiva secção da DRK, à

exploração do posto de socorro de Bad Bevensen, em desrespeito do direito da União relativo

aos contratos públicos”.

Quanto a este aspecto, importa lembrar que uma alteração do contrato inicial pode ser

considerada substancial e, assim, constituir uma nova adjudicação do contrato, na acepção da

Directiva 92/50 ou da Directiva 2004/18, designadamente quando alarga o contrato, numa

medida importante, a serviços inicialmente não previstos (v., neste sentido, acórdão de 19 de

Junho de 2008, pressetext Nachrichtenagentur, C-454/06, Colect., p. I-4401, n.º 36).

No caso presente, (…) o valor do contrato relativo à exploração do posto de socorro de Bad

Bevensen é de 673 719,92 euros, ou seja, um montante claramente superior aos limiares de

aplicação fixados no artigo 7.° das Directivas 92/50 e 2004/18.

Nestas condições, o alargamento contratual visado no n.º 98 do presente acórdão deve, como

defende a Comissão, ser considerado uma alteração substancial do contrato inicial, que teria

exigido o cumprimento das disposições pertinentes do direito da União relativo aos contratos

públicos”.

O Tribunal de Contas acolheu de imediato a jurisprudência comunitária sobre as “alterações

substanciais”.

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125

Assim, no acórdão n.º 10/2014, de 27.03.2014, estava em causa o contrato de concessão dos

transportes coletivos urbanos da Covilhã, tendo as partes remetido ao Tribunal de Contas um

acordo escrito, no âmbito do qual o concedente se obriga a atribuir uma compensação à

concessionária, baseando-se a formalização de tal acordo no facto de a não compensação da

concessionária a levar a interromper o serviço que vem prestando. A reivindicação de tal

compensação fundou-se, por um lado, no transporte de alunos em regime de “extra-

concessão” e, por outro, no incumprimento, por parte do concedente, da cláusula de

exclusividade que lhe era atribuída no âmbito do contrato de concessão e que, alegadamente,

não se verificou.

O Tribunal de Contas começou por observar que a “modificação/alteração dos contratos

públicos, para além de assentar em razões de interesse público, não poderá afetar a

preservação das prestações principais abrangidas pelo objeto do contrato e o correspondente

equilíbrio financeiro”.

Ou seja, mostra-se vedada a efetivação de alterações substanciais, entendendo-se estas como

as que infundem essencialidade diversa [no plano das prestações] ao conteúdo do contrato

inicial e revelam a existência de vontade em renegociar os respetivos termos essenciais”.

A “modificação/alteração do contrato não será viável, caso configure uma situação que

prejudique a concorrência garantida no âmbito do procedimento pré-contratual”.

“O legislador não define, com suficiente clareza, o que entende por prestações essenciais [ou

principais] ou secundárias, deixando, assim, ao intérprete [e, também, ao julgador] a

densificação de tal conceito perante a factualidade disponível, ou seja, face ao caso concreto.

Entendemos, no entanto, que as prestações principais, porque imodificáveis e determinadoras

da intangibilidade parcial do contrato, serão as munidas de aptidão bastante para decidir ou

não da estabilidade contratual e que, uma vez alteradas, conduzem à subversão dos princípios

da concorrência, igualdade e transparência, reais esteios do procedimento que conduziu ao

contrato inicial. Para além disso, serão ainda prestações principais e integradoras do núcleo

essencial do objeto contratual aquelas cuja descaraterização viole o interesse público

concreto, que é causa e função do contrato.”

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126

Por sua vez, no acórdão n.º 20/2010, de 01.06.2010, estava em causa um contrato de prestação

de serviços de recolha e transporte de resíduos sólidos urbanos.

As partes remeteram ao Tribunal de Contas uma alteração ao referido contrato, nos termos da

qual foi prorrogado o prazo de vigência do contrato por um período de 8 anos, identificado

pelo contraente público como correspondendo ao tempo mínimo necessário para a

amortização dos investimentos requeridos em novos equipamentos, garantindo-se assim o

princípio do equilíbrio financeiro do contrato.

O TC considerou que “o prazo de duração é uma das condições essenciais de um contrato de

aquisição de serviços. Fixa o período durante o qual os contraentes estão vinculados ao

contrato e têm direito às respectivas prestações. Para além do mais, representa para o

contraente privado uma garantia de negócio para o período em causa. Para o contraente

público, representa também o período findo o qual ele deve promover uma nova consulta ao

mercado.

Esta nova consulta destina-se a realizar o princípio da concorrência no acesso aos mercados

públicos, mas também a rever os pressupostos e condições do fornecimento e a permitir à

entidade pública usufruir de eventuais benefícios de um novo funcionamento da concorrência.

O eventual alargamento de um prazo de vigência de um contrato público vai, assim, implicar:

(i) Uma maior e mais estável garantia de negócio para o contraente privado, modificando o

equilíbrio económico do contrato a seu favor; (ii) O protelamento da adjudicação de um novo

contrato por concurso, o que constitui uma diferença de tratamento em detrimento de

empresas que possam estar interessadas nesse contrato; (iii) A impossibilidade para o

contraente público de fazer cessar o contrato por motivos que lhe sejam convenientes e de

beneficiar de uma nova consulta ao mercado.

Desse modo, deve considerar-se que a modificação, por alargamento, do prazo de vigência de

um contrato público, quando suficientemente relevante, constitui uma alteração substancial a

uma condição essencial desse contrato”.

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127

“Essa modificação não é neutra relativamente aos interesses envolvidos no contrato, pois,

como já referimos, dá uma maior garantia de negócio ao contraente privado e diminui as

possibilidades de denúncia e reequacionamento do contraente público”.

“A modificabilidade dos contratos públicos durante a sua vigência não depende apenas da

existência de razões de interesse público e do respeito pelo objecto do contrato e pelo

equilíbrio financeiro do mesmo. Depende também, em obediência aos princípios

constitucionais e legais da concorrência, igualdade e transparência, da não alteração de outras

condições importantes desses contratos e da não alteração dos pressupostos que estiveram na

base do procedimento competitivo através do qual foi feita a escolha da proposta adjudicada”.

“As eventuais razões de interesse público que determinem a necessidade de alterar

substancialmente o modo de execução dos contratos devem conduzir a uma nova consulta ao

mercado, baseada nos novos pressupostos, e não a uma modificação contratual”.

“Se os princípios da concorrência e igualdade impedem que se proceda à alteração pretendida,

como fazer então face às razões de interesse público que aconselham a alteração do sistema de

recolha de resíduos, e, portanto, dos equipamentos nele utilizados?

Tanto mais que o equilíbrio económico do contrato não permite exigir ao cocontratante, sem

contrapartida adequada, investimentos não equacionados na proposta inicial.

Não duvidamos que razões de interesse público determinem a necessidade de alterar o modo

de execução do contrato a esse ponto.

Só que, no caso, estamos perante pressupostos técnicos completamente diferentes dos do

procedimento inicial, sendo de todo impossível demonstrar que a ordenação das propostas

avaliadas no concurso não seria alterada se o caderno de encargos se baseasse nos novos

pressupostos.

Essas razões de interesse público devem, pois, conduzir a uma nova consulta ao mercado,

baseada nos novos pressupostos, e não a uma modificação contratual”.

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No acórdão n.º 28/2010, de 03.11.2010 — em que foi apreciado o recurso interposto do

Acórdão n.º 20/2010, de 01.06.2010, acima referido —, o TC considerou que o que “importa

verificar se o instrumento contratual, ora em apreço, respeitou o objecto do contrato anterior,

e apenas constituiu uma mera alteração do prazo do contrato – como defende a recorrente –

ou se, ao invés, constitui um contrato diferente, por resultar de um acordo das partes – e não

de uma atitude unilateral da Administração – e ter conteúdo e âmbito diversos”.

“É, assim, óbvio que o instrumento contratual, através do qual se efectivou e tornou possível,

para além da alteração do prazo contratual, a substituição do sistema de recolha de resíduos,

bem como dos equipamentos a estes adstritos, não se traduz numa mera alteração do prazo

contratual, - como vem defendido - mas antes numa substancial alteração do objecto do

anterior contrato, o que conforma o presente instrumento como um novo contrato”.

No acórdão n.º 5/2012, de 17.02.2012, as partes de um contrato de prestação de serviços

remeteram ao Tribunal de Contas um acordo para a prorrogação do prazo de vigência do

contrato, que o contraente público justificou por razões de interesse público, consubstanciadas

na circunstância de, em tempo útil, não ter sido possível concluir qualquer procedimento que

legitimasse, à luz das regras em matéria de contratação pública, a aquisição de serviços de

recolha de cadáveres animais.

O TC considerou que, como a “admissão, sem critério ou fundamento, do instituto da

“prorrogação da vigência contratual” subverteria “o princípio da licitação” e descuraria a

vinculação de toda a atividade administrativa aos princípios da prossecução do interesse

público, da juridicidade, da proibição do arbítrio, da imparcialidade e da boa-fé, que se

contêm no art.º 266.º, n.º 2, da CRP, é forçoso que a citada “prorrogação da vigência

contratual” figure nas peças procedimentais elaboradas para escolha do cocontratante, e,

posteriormente, em contrato, dando-se, assim, cumprimento aos princípios da concorrência,

da igualdade e da transparência, melhor consignados no art.º 1.º, n.º 4, do CCP.

Adjuvantemente, e em coerência com o afirmado, diremos que a previsão da prorrogação da

vigência contratual, para além de dever constar nas peças do procedimento e subsequente

clausulado contratual, só poderá ocorrer em ambiência fáctica excecional e indutora de

indiscutíveis vantagens económicas, financeiras e sociais para a Administração Pública.

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129

Em suma, a “renúncia ao mercado” no prazo inicialmente previsto, porque balizado por lei e

princípios que exigem aplicação não vacilante, reclama, também, justificação exaustiva e

inequívoca.”;

“Com efeito, é espectável que o processo de formação do contrato assuma contornos bem

diversos face à inclusão da possibilidade de prorrogação do contrato em peças procedimentais

ou não, pois os interessados situariam aí um novo elemento de ponderação quanto à sua

participação no procedimento.

E, adiante-se, tal circunstância não é indiferente ao princípio da concorrência, consabidamente

estruturante de toda a contratação pública.”

No acórdão 6/2013, de 09.07.2013, estava em causa o contrato de concessão da exploração e

manutenção da rede de transportes coletivos urbanos de passageiros de Vila Real.

As partes remeteram ao Tribunal de Contas uma alteração ao referido contrato, nos termos da

qual se prorrogou o prazo de vigência do contrato por 20 anos, se alterou o perímetro da

concessão e o plano de investimentos e, finalmente, se alterou o modelo de partilha de riscos e

receitas. O contraente público justificou que os fins tido em vista com as referidas alterações

revestem um caráter eminentemente público (p.ex.: rentabilização da frota, permitindo, por

um lado, a diminuição da subvenção à exploração devida pela Câmara Municipal e

garantindo por outro, a sustentabilidade deste serviço público entendeu) e que uma

prorrogação de 20 anos era estritamente necessária para os fins pretendidos.

O TC considerou que “o alargamento do prazo contratual por 20 anos permite, também, o

alinhamento das considerações, a saber: (i) confere-se à concessionária uma maior

estabilidade e garantia de negócio; (ii) impossibilita a concedente de, com maior frequência,

consultar o mercado, e, assim, satisfazer a necessidade pública de modo mais vantajoso, e, por

último, (iii) gera o afastamento alongado de empresas com expectativas de entrada no

negócio, propiciando uma solução de continuidade que tende a incompatibilizar-se com a

dinâmica do mercado e uma gestão viva e atuante.

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As considerações enunciadas permitem asseverar que, afinal, a alteração do prazo contratual

em causa não se perfila como “neutra” face aos interesses económicos da entidade ora

concessionária e dos potenciais interessados”.

“Afigura-se-nos claro que o prazo contratual substancia uma condição essencial [prestação

principal] do contrato de concessão e, nessa condição, incorpora, até, o correspondente objeto

contratual.

Coerentemente, a prorrogação contratual por 20 anos constitui, ela própria uma

modificação/alteração substancial do contrato de concessão, e, nomeadamente, do seu

objeto”.

“Ao tempo da formação do contrato de concessão inicial, elaborou-se um sistema de

equilíbrio e partilha de riscos, o qual, em situação desfavorável para a concessionária, previa a

intervenção da concedente no sentido de garantir o equilíbrio do resultado operacional, sendo

que, em situação de procura favorável, a concessionária, por sua vez, garantiria o necessário

equilíbrio mediante uma renda variável a calcular nos termos aí previstos.

De todo o modo, e segundo o acordo aí estabelecido, em caso de rutura do equilíbrio

económico-financeiro, a concedente indemnizaria a concessionária até ao seu

restabelecimento.

A concedente obrigou-se, ainda, ao pagamento de uma subvenção anual [€ 458.814,13],

atualizada anualmente de acordo com um índice de revisão aí caracterizado.

Nos termos do instrumento contratual em apreço, a subvenção anual foi fixada em €

295.000,00, a atualizar a partir de 2014.

Por fim, o modelo de partilha de receitas e riscos assenta, agora, na bilhética, ao passo que o

equilíbrio económico-financeiro da concessão radicava no pagamento de uma subvenção, cujo

montante resultava da diferença entre os passageiros teóricos e comprometidos multiplicados

por uma tarifa média de referência e a atualizar segundo fórmula própria.

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131

O exposto evidencia uma alteração do modelo de fixação do equilíbrio, a que não é alheia a

alteração da subvenção anual e da fórmula de fixação do índice de revisão, da receita anual de

referência e das tarifas. Elementos que se revelam centrais na concessão.”

“Ao longo das alegações de recurso enfatiza-se que o acordo conseguido e vertido na

denominada “renovação do contrato” sob apreciação enforma uma solução que, económica e

financeiramente, beneficia o município de Vila Real, e, inerentemente, protege o interesse

público. Daí que, prossegue a entidade recorrente, o princípio da concorrência, cuja violação

se contesta, não deva prevalecer sobre o interesse público, sob pena de se trilhar a

excessividade e ilegitimidade [via que, segundo o recorrente, o acórdão abre].

Ora, tal entendimento, produto de evidente e desmesurado pragmatismo, esquece que a

proteção da concorrência tem vindo a consolidar-se como um novo e autónomo critério de

limitação à modificação dos contratos público-administrativos, o que, vastamente, se

demonstrou em III. B., deste acórdão, e decorre de legislação e jurisprudência comunitárias

[consigna-se que tal orientação se inscreve também no Código dos Contratos Públicos em

vigor – vd. artigo 313.º] já vigentes ao tempo da celebração do contrato de concessão inicial.

O entendimento propugnado subentende, ainda que, apesar das modificações operadas

[incidente, de resto, sobre aspetos essenciais do contrato de concessão], consignarem,

inequivocamente, uma forma de impedir, restringir ou falsear a concorrência, a entidade

recorrente reitera a preferência pela negociação bilateral [município e concessionária],

preterindo, assim, a consulta ao mercado [não acolhendo, até, uma solução alternativa

sugerida pelo Departamento Administrativo e Financeiro e que passava pela abertura de

concurso público para uma nova concessão – vd. fls. 80, deste processo]”.

No acórdão n.º 29/2013, de 18.11.2013, em que estava em causa o contrato de gestão do

Centro de Medicina Física e de Reabilitação do Sul, as partes remeteram ao Tribunal de

Contas uma adenda ao referido contrato, nos termos da qual foi prorrogado o prazo de

vigência do contrato por pouco mais de 1 ano e definidas regras em matéria de produção, de

manutenção de equipamentos, de preços para cálculo de remunerações, de pagamentos de

reconciliação, de manutenção das restantes obrigações e de encargos máximos previstos.

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A justificação dada para a referida alteração foi a de que o procedimento de estudo e

preparação do lançamento de uma nova PPP para o Centro, tendente à atribuição a um

parceiro privado da gestão do Centro por um novo período, em curso, não seria possível, pelas

exigências legais e procedimentais a que deve obedecer, nos termos e para os efeitos do DL

111/2012, a sua conclusão em tempo útil.

O TC considerou que “os artigos 20º a 23º do Decreto-Lei nº 111/2012 invocados versam, nos

seus aspetos essenciais, questões relacionadas com o acréscimo ou redução de encargos

envolvidos em operações de reposição do equilíbrio financeiro das parcerias, ora favorecendo

o parceiro público, ora o privado. Trata-se de uma eventualidade que pode ocorrer no decorrer

da execução de um concreto contrato de PPP, dentro do quadro legal e contratual estabelecido

e como este foi desenhado no procedimento da sua formação.

Ora, com a presente adenda não é isso que ocorre: no essencial o que ocorre é a prorrogação

do contrato anterior prevendo-se, pelo seu alargamento temporal, e ipso facto, novas

prestações com remunerações consideradas compatíveis. Não se está a executar o contrato

inicial, como aquelas disposições visam disciplinar. Não está em causa a execução do

contrato inicial, em cujo âmbito se poderiam suscitar questões de reequilíbrio financeiro.”;

“Deve, pois, concluir-se que a modificabilidade dos contratos públicos durante a sua vigência

não depende apenas da existência de razões “de natureza funcional, operacional, económica e

financeira e por invocação da prossecução do superior interesse público”;

Depende também, em obediência aos princípios constitucionais e legais da concorrência,

igualdade e transparência, da não alteração de outras condições importantes desses contratos e

da não alteração dos pressupostos que estiveram na base do procedimento competitivo através

do qual foi feita a escolha da proposta adjudicada.”

No acórdão n.º 5/2012, de 13.03.2012, em que estava em causa um contrato de concessão da

exploração da Escola de Hotelaria e Turismo da Madeira, as partes remeteram ao Tribunal de

Contas um contrato-programa de cooperação financeira, nos termos do qual o Governo

Regional da Madeira concederia uma comparticipação financeira à concessionária, a fim de

garantir, transitoriamente, a viabilidade financeira e operacional da Escola Profissional de

Hotelaria e Turismo da Madeira e os estabelecimentos de aplicação associados,

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nomeadamente o Hotel, restaurante e Bar. No contrato de concessão previa-se, no entanto,

que “O concessionário assume expressa, integral e exclusivamente a responsabilidade pelos

riscos inerentes à concessão durante o prazo da sua duração ou eventual prorrogação”.

O TC começou por referir que, “nos documentos de tal concurso – em particular no caderno

de encargos – e com reflexo no texto contratual celebrado, estabeleceu-se que o

concessionário assume expressa, integral e exclusivamente a responsabilidade pelos riscos

inerentes à concessão durante o prazo da sua duração ou eventual prorrogação e é responsável

pela obtenção dos financiamentos necessários de forma a garantir o exato e pontual

cumprimento das suas obrigações.

Foi nesse quadro normativo que decorreu o concurso e se estabeleceram as relações entre

concedente e concessionário. Foi face àquele quadro normativo que se configurou o universo

de interessados e de concorrentes candidatos à obtenção da concessão. Foi com base nesse

quadro normativo que se tomou a decisão de adjudicação. E, finalmente, foi esse quadro

normativo que se transpôs e bem para o texto contratual.

Note-se: o quadro normativo fixado vinculou e vincula o concessionário, mas também o

concedente: a Região Autónoma da Madeira.

Não pode agora, depois de estabelecido o universo concorrencial em que se formou o

contrato, e depois de este ter sido celebrado, subverter-se aquele quadro, exceto se para tal

houver um claro suporte legal”.

“ O que o presente contrato configura é simplesmente um subsídio, com aquelas finalidades,

dado pela Região Autónoma que não se pode enquadrar no que se previu no caderno de

encargos do concurso e no contrato. Conclua-se pois: não pode considerar-se que este tipo de

apoio financeiro estava previsto ser concedido ao concessionário. Nem este, nem qualquer

outro interessado/concorrente à concessão o deveria prever e, celebrado o contrato, não o

poderia solicitar, nem o concedente o poderia atribuir, face ao quadro normativo e contratual

por eles próprios estabelecidos” .

Page 138: O contrato administrativo entre a estabilidade e a ... · ... da distinção entre actividade contratual de ... entre o direito privado e o direito público, ... e ss. 2 Maria João

134

8.7.3.6. O pacote das directivas de 2014

8.7.3.6.1. Considerações gerais: uma presumption of

impermissibility”?

Foi justamente na sequência da jurisprudência do TJUE referida no ponto anterior que veio

agora o novo pacote de directivas de 2014 sobre a matéria da contratação pública regular

expressamente a questão da modificação do contrato público e das concessões. É um

momento que pode dizer-se histórico na matéria porque é a primeira vez que as directivas

ditas da contratação pública se ocupam do contrato, de quando é que este pode ser modificado

e resolvido. E com uma diferença substancial: é que, enquanto as normas das directivas sobre

a resolução dos contratos são “normas de mínimos”, que impõem que as legislações nacionais

prevejam que em certas circunstâncias as entidades contratantes possam resolver ou dar por

terminados os contratos (não necessariamente por decisão sua, podendo estabelecer-se a

necessidade de via judicial), sem prejuízo de outras que cada legislador considere dever

estabelecer, as normas sobre a modificação dos contratos são “normas de máximos”, que

dispõem (pretendem dispor) sobre as condições taxativas da legitimidade das modificações,

com prejuízo, portanto, de outras que cada legislador nacional entendesse razoáveis ou

pertinentes.

É portanto o tal efeito tentacular do direito da contratação pública — “efeito de polvo”212 ou

ultra-actividade das diretivas de contratação pública213 —, revelador da tendência, de certa

forma compreensível, de o direito comunitário que se ocupa dos “processos de adjudicação”

regular também aqueles aspectos da execução dos contratos públicos que estejam ligados ou 212 Como lhe chama Vera Eiró, “Contratos públicos e insolvência. Uma primeira aproximação”, p. 178, em A

Crise e o Direito Público, VI Encontro de Professores portugueses de Direito Público (coord. de Pedro Gonçalves, Carla Amado Gomes, Helena Melo e Filipa Calvão).

213 M. Comba "Retendering or sale of contract in case of bankruptcy of the contractor? Different solutions in an EU comparative perspective" in Piga and Treumer (eds), The Applied Law and Economics of Public Procurement, p. 202.

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135

associados de maneira mais ou menos sensível à tutela dos princípios fundamentais da

contratação pública.

Com efeito, e como vimos atrás, não é possível, senão num plano puramente teórico, sem

adesão à realidade jurídica, separar o procedimento de ajudicação do contrato e da sua

celebração do momento da sua execução e cumprimento, como se fossem dois “vasos

incomunicantes”, quando a verdade é que, por um lado, o procedimento de adjudicação lança-

se para a celebração de um certo contrato e, por outro lado, o contrato deve-se ao

procedimento, aos termos da interpelação ao mercado, definidos no caderno de encargos, e

aos termos da proposta, que foi considerada vencedora.

De resto, se não fosse assim, se os termos do concurso não estabelecessem limites aos termos

da celebração do contrato e aos subsequentes termos de eventuais modificações do contrato

não se justificaria pôr tanto cuidado em momentos e assuntos pacificamente considerados

nucleares ou decisivos da adjudicação — como a estabilidade das peças do procedimento

(sobretudo, do caderno de encargos) e a estabilidade das propostas, durante a pendência do

procedimento —, pois, uma vez celebrado o contrato, estariam as partes livres para negociar

entre si aquilo que, em procedimento transparente e aberto, não podiam fazer.

A questão portanto não é saber se é justificada ou não a intervenção das directivas nas

matérias da modificação e da extinção do contrato, é, sim, em nossa opinião, se a medida da

sua intervenção é adequada. Trata-se, porém, de assunto em que os juristas portugueses não

devem ser especialmente críticos, pois a lei portuguesa, atendendo ao critério geral (da

manutenção da equação adjudicatória) posto no artigo 313º/3 do CCP, é uma das mais

cerceadoras e restritivas que há no capítulo da modificação (objectiva) do contrato

administrativo, mais do que as directivas de 2014.

8.7.3.6.2. Os casos previstos nas directivas

Contratos públicos

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136

Assim, olhando apenas para as normas que respeitam a casos de modificação objectiva do

contrato, o que se estabelece no artigo 72.º (sob a epígrafe “modificação de contratos durante

o seu período de vigência”) é que, em primeiro lugar, os contratos e os acordos-quadro podem

ser modificados sem novo procedimento de contratação, nos termos da presente diretiva, em

qualquer dos seguintes casos:

Se as modificações, independentemente do seu valor monetário, estiverem previstas nos

documentos iniciais do concurso em cláusulas de revisão (podendo incluir cláusulas de

revisão dos preços) ou opção claras, precisas e inequívocas. Essas cláusulas devem indicar o

âmbito e a natureza das eventuais modificações ou opções, bem como as condições em que

podem ser aplicadas. Não podem prever modificações ou opções que alterem a natureza

global do contrato ou do acordo-quadro;

Se houver necessidade de obras, serviços ou fornecimentos complementares por parte do

contratante original que não tenham sido incluídos no contrato inicial, caso a mudança de

contratante

não possa ser efetuada por razões económicas ou técnicas, como requisitos de

permutabilidade ou interoperabilidade com equipamento, serviços ou instalações existentes,

adquiridos ao abrigo do contrato inicial, e

seja altamente inconveniente ou provoque uma duplicação substancial dos custos para a

autoridade adjudicante214.

Se se verificarem todas as seguintes condições:

a necessidade de modificação decorre de circunstâncias que uma autoridade adjudicante

diligente não possa prever,

a modificação não altera a natureza global do contrato,

214 No entanto, “o aumento de preço não pode exceder 50 % do valor do contrato original. Em caso de várias

modificações sucessivas, esse limite aplica-se ao valor de cada modificação. Tais modificações sucessivas não podem ter por objetivo a não aplicação das disposições da presente diretiva”.

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137

o aumento de preço não ultrapassa 50 % do valor do contrato ou acordo-quadro original. Em

caso de várias modificações sucessivas, esse limite aplica-se ao valor de cada modificação.

Tais modificações sucessivas não podem ter por objetivo a não aplicação das disposições da

presente diretiva;

[…]Se o adjudicatário ao qual a autoridade adjudicante atribuiu inicialmente o contrato for

substituído por um novo adjudicatário

uma cláusula de revisão ou opção inequívoca, em conformidade com a alínea a),

transmissão universal ou parcial da posição do contratante inicial, na sequência de operações

de reestruturação, incluindo OPA, fusão e aquisição, ou de uma insolvência, para outro

operador económico que satisfaça os critérios em matéria de seleção qualitativa inicialmente

estabelecidos, desde que daí não advenham outras modificações substanciais ao contrato e

que a operação não se destine a contornar a aplicação da presente diretiva, ou

assunção pela própria autoridade adjudicante das obrigações do contratante principal para

com os seus subcontratantes, se tal possibilidade estiver prevista na legislação nacional em

conformidade com o artigo 71.º;

Se as modificações, independentemente do seu valor, não forem substanciais na aceção do n.º

4.

Depois de modificarem um contrato nos casos previstos nas alíneas b) e c) do presente

número, as autoridades adjudicantes publicam um anúncio da modificação ou modificações

no Jornal Oficial da União Europeia. Os anúncios incluem as menções previstas no Anexo V,

parte G, e são publicados em conformidade com o artigo 51.º.

Além disso, e sem que seja necessário verificar se se encontram preenchidas as condições

previstas no n.º 4, alíneas a) a d), os contratos podem igualmente ser modificados sem

necessidade de novo procedimento de contratação, nos termos da presente diretiva, caso o

valor da modificação seja inferior a ambos os seguintes valores:

os limiares estabelecidos no artigo 4.º, e

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138

10 % do valor do contrato inicial, no caso dos contratos de serviços e fornecimentos, e 15 %

do valor do contrato inicial, no caso dos contratos de empreitada de obras.

Contudo, a modificação não pode alterar a natureza global do contrato ou do acordo-quadro.

Em caso de várias modificações sucessivas, esse valor é avaliado com base no valor líquido

acumulado das modificações sucessivas.

Para efeitos do cálculo do preço mencionado no n.º 2 e no n.º 1, alíneas b) e c), o preço

atualizado é o valor de referência sempre que o contrato contenha uma cláusula de indexação.

A modificação de um contrato ou de um acordo-quadro durante o seu período de vigência é

considerada substancial, na aceção do n.º 1, alínea e), quando tornar o contrato ou o acordo-

quadro materialmente diferente do contrato ou acordo- -quadro celebrado inicialmente. Em

qualquer caso, sem prejuízo dos n.ºs 1 e 2, uma modificação é considerada substancial se se

verificar uma ou mais das seguintes condições:

A modificação introduz condições que, se fizessem parte do procedimento de contratação

inicial, teriam permitido a admissão de outros candidatos ou a aceitação de outra proposta, ou

teriam atraído mais participações no concurso;

A modificação altera o equilíbrio económico do contrato ou do acordo-quadro a favor do

adjudicatário de uma forma que não estava prevista no contrato ou acordo-quadro inicial;

A modificação alarga consideravelmente o âmbito do contrato ou do acordo-quadro;

O adjudicatário ao qual a autoridade adjudicante atribuiu inicialmente o contrato é substituído

por um novo adjudicatário, em casos não previstos no n.º 1, alínea d).

As modificações das disposições de um contrato público ou de um acordo-quadro durante a

sua vigência que sejam diferentes das modificações previstas nos n.ºs 1 e 2 obrigam a novo

procedimento de contratação nos termos da presente diretiva.

Artigo 73.º

Rescisão de contratos

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139

Os Estados-Membros asseguram que as autoridades adjudicantes tenham a possibilidade de

rescindir um contrato público durante a sua vigência, pelo menos nas circunstâncias a seguir

enumeradas e nas condições determinadas pelas normas de direito nacional aplicáveis, caso:

O contrato tenha sido objeto de uma modificação substancial que exigiria um novo concurso

nos termos do artigo 72.º;

O adjudicatário, à data da adjudicação do contrato, se encontre numa das situações referidas

no artigo 57.º, n.º 1, pelo que deveria ter sido excluído do concurso;

O contrato não poderia ter sido adjudicado ao adjudicatário em virtude de uma infração grave

das obrigações que lhe incumbem por força dos Tratados e da presente diretiva, tendo sido a

infração constatada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia num procedimento conduzido

em conformidade com o artigo 258.º do TFUE.

Diretiva 2014.25.UE

Sectores especiais

Artigo 89.º

Modificação de contratos durante o seu período de vigência

Os contratos e os acordos-quadro podem ser modificados sem novo procedimento de

contratação, nos termos da presente diretiva, em qualquer dos seguintes casos:

Se as modificações, independentemente do seu valor monetário, estiverem previstas nos

documentos iniciais do concurso em cláusulas de revisão (podendo incluir cláusulas de

revisão dos preços) ou opção claras, precisas e inequívocas. Essas cláusulas devem indicar o

âmbito e a natureza das eventuais modificações ou opções, bem como as condições em que

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140

podem ser aplicadas. Não podem prever modificações ou opções que alterem a natureza

global do contrato ou do acordo-quadro;

Se houver necessidade de obras, serviços ou fornecimentos complementares por parte do

adjudicatário original, independentemente do seu valor, que não tenham sido incluídos no

contrato inicial, caso a mudança de adjudicatário:

não possa ser efetuada por razões económicas ou técnicas, como requisitos de

permutabilidade ou interoperabilidade com equipamento, software, serviços ou instalações

existentes, adquiridos ao abrigo do contrato inicial, e

seja altamente inconveniente ou provoque uma duplicação substancial dos custos para a

entidade adjudicante;

Se se verificarem todas as seguintes condições:

a necessidade de modificação decorre de circunstâncias que uma entidade adjudicante

diligente não poderia prever,

ia modificação não altera a natureza global do contrato;

Se o adjudicatário ao qual a entidade adjudicante atribuiu inicialmente o contrato for

substituído por um novo adjudicatário, por um dos seguintes motivos:

uma cláusula de revisão ou opção inequívoca, em conformidade com a alínea a),

transmissão universal ou parcial da posição do adjudicatário inicial, na sequência de

operações de reestruturação, incluindo OPA, fusão e aquisição, ou de uma insolvência, para

outro operador económico que satisfaça os critérios em matéria de seleção qualitativa

inicialmente estabelecidos, desde que daí não advenham outras modificações substanciais ao

contrato e que a operação não se destine a contornar a aplicação da presente diretiva, ou

assunção pela própria entidade adjudicante das obrigações do adjudicatário principal para com

os seus subcontratantes, se tal possibilidade estiver prevista na legislação nacional em

conformidade com o artigo 88.º;

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141

Se as modificações, independentemente do seu valor, não forem substanciais na aceção do n.º

4.

Após modificarem um contrato nos casos previstos nas alíneas b) e c), as entidades

adjudicantes publicam um anúncio para o efeito no Jornal Oficial da União Europeia. Estes

anúncios incluem as menções previstas no Anexo XVI e são publicados em conformidade

com o artigo 71.º.

Além disso, e sem que seja necessário verificar se se encontram preenchidas as condições

previstas no n.º 4, alíneas a) a d), os contratos podem igualmente ser modificados sem

necessidade de novo procedimento de contratação, nos termos da presente diretiva, caso o

valor da modificação seja inferior a ambos os seguintes valores:

os limiares estabelecidos no artigo 15.º, e

10 % do valor do contrato inicial, no caso dos contratos de serviços e fornecimentos, e 15 %

do valor do contrato inicial, no caso dos contratos de empreitada de obras.

Contudo, a modificação não pode alterar a natureza global do contrato ou do acordo-quadro.

Em caso de várias modificações sucessivas, esse valor é avaliado com base no valor líquido

acumulado das modificações sucessivas.

Para efeitos do cálculo do preço mencionado no n.º 2, o preço atualizado será o valor de

referência sempre que o contrato contenha uma cláusula de indexação.

A modificação de um contrato ou de um acordo-quadro durante o seu período de vigência é

considerada substancial, na aceção do n.º 1, alínea e), quando tornar o contrato ou o acordo-

quadro materialmente diferente do contrato ou acordo- -quadro celebrado inicialmente. Em

qualquer caso, sem prejuízo dos n.ºs 1 e 2, uma modificação é considerada substancial se se

verificar uma ou mais das seguintes condições:

A modificação introduz condições que, se fizessem parte do procedimento de contratação

inicial, teriam permitido a admissão de outros candidatos ou a aceitação de outra proposta, ou

teriam atraído mais participações no concurso;

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142

A modificação altera o equilíbrio económico do contrato ou do acordo-quadro a favor do

adjudicatário de uma forma que não estava prevista no contrato ou acordo-quadro inicial;

A modificação alarga consideravelmente o âmbito do contrato ou do acordo-quadro;

O adjudicatário ao qual a entidade adjudicante atribuiu inicialmente o contrato é substituído

por um novo adjudicatário, em casos não previstos no n.º 1, alínea d).

As modificações das disposições de um contrato de empreitada de obras, de fornecimento de

bens ou de prestação de serviços, ou de um acordo-quadro, durante a sua vigência que sejam

diferentes das modificações previstas nos n.ºs 1 e 2 obrigam a novo procedimento de

contratação nos termos da presente diretiva.

Artigo 90.º

Rescisão de contratos

Os Estados-Membros asseguram que as entidades adjudicantes tenham a possibilidade de

rescindir um contrato de empreitada de obras, de fornecimento de bens ou de prestação de

serviços durante a sua vigência, pelo menos nas circunstâncias a seguir enumeradas e nas

condições determinadas pelas normas de direito nacional aplicáveis, caso se verifique que:

O contrato foi objeto de uma modificação substancial que teria exigido um novo concurso nos

termos do artigo 89.º;

O adjudicatário, no momento da adjudicação do contrato, encontrava-se numa das situações

referidas no artigo 57.º, n.º 1 da Diretiva 2014/24/UE, pelo que deveria ter sido excluído do

concurso nos termos do artigo 80.o, n.º 1, segundo parágrafo da presente diretiva;

O contrato não poderia ter sido adjudicado ao adjudicatário em virtude de uma infração grave

das obrigações que lhe incumbem por força dos Tratados e da presente diretiva, tendo sido a

infração constatada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia num procedimento conduzido

ao abrigo do artigo 258.º do TFUE.

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143

Diretiva Concessões

Artigo 42.º

Modificação de concessões durante o seu período de vigência

Uma modificação substancial das disposições de uma concessão durante o seu período de

vigência é considerada uma nova adjudicação para efeitos da presente diretiva e obriga a um

novo procedimento de adjudicação nos termos da mesma.

Uma modificação de uma concessão durante o seu período de vigência é considerada

substancial na aceção do n.º 1 quando tornar a concessão substancialmente diferente do

contrato inicialmente celebrado. Em qualquer caso, sem prejuízo dos n.ºs 3 e 4, uma

modificação é considerada substancial se se verificar uma das seguintes condições:

A modificação introduz condições que, se fizessem parte do procedimento de adjudicação

original, teriam permitido a seleção de outros candidatos ou a adjudicação da concessão a

outro requerente ou proponente;

A modificação altera o equilíbrio económico da concessão a favor do concessionário; ou

A modificação alarga consideravelmente o âmbito da concessão, que passa a abranger

fornecimentos, serviços ou obras que não estavam inicialmente abrangidos.

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144

A substituição do concessionário é considerada uma modificação substancial na aceção do n.º

1. No entanto, o primeiro parágrafo não se aplica em caso de transmissão universal ou parcial

da posição do contratante inicial, na sequência de operações de reestruturação empresarial, de

uma insolvência ou com base em cláusulas contratuais para outro operador económico que

satisfaça os critérios de seleção qualitativa inicialmente estabelecidos, desde que daí não

advenham outras modificações substanciais da concessão e que a operação não se destine a

contornar a aplicação da presente diretiva.

Caso seja possível quantificar monetariamente o valor de uma modificação, esta não é

considerado substancial na aceção do n.º 1 quando o seu valor não ultrapassar os limites

estabelecidos no artigo 5.º e for inferior a 5% do preço do contrato inicial, desde que não

altere a natureza global do contrato. No caso de várias modificações sucessivas, esse valor é

avaliado com base no valor acumulado das modificações sucessivas.

As modificações das concessões não são consideradas substanciais na aceção do n.º 1 se

estiverem previstas na documentação relativa à concessão em opções ou cláusulas de revisão

claras, precisas e inequívocas. Essas cláusulas devem indicar o âmbito e a natureza das

eventuais modificações ou opções, bem como as condições em que podem ser aplicadas. Não

podem prever modificações ou opções que alterem a natureza global da concessão.

Em derrogação do n.º 1, uma modificação substancial não obriga a um novo procedimento de

adjudicação de concessão se estiverem preenchidas todas as seguintes condições:

A necessidade de modificação decorre de circunstâncias que uma autoridade ou entidade

adjudicante diligente não poderia prever;

A modificação não altera a natureza global da concessão;

No caso das concessões adjudicadas por autoridades contratantes, se o aumento de preço não

ultrapassar 50% do valor da concessão original. As autoridades ou entidades adjudicantes

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145

publicam no Jornal Oficial da União Europeia um anúncio sobre estas modificações. Estes

anúncios incluem as menções previstas no anexo VII e são publicados em conformidade com

o artigo 28.º.

As autoridades e entidades adjudicantes não devem recorrer a modificações das concessões

nos seguintes casos:

Quando a modificação se destinar a corrigir deficiências no desempenho do concessionário ou

as respetivas consequências, podendo o mesmo resultado ser alcançado através da aplicação

das obrigações contratuais;

Quando a modificação tiver por objetivo compensar os riscos de aumento dos preços

resultantes de uma flutuação que possa afetar significativamente a execução do contrato e que

tenham sido objeto de cobertura por parte do concessionário.

Artigo 43.º

Rescisão de concessões

Os Estados-Membros devem assegurar que as autoridades e entidades adjudicantes tenham a

possibilidade, nas condições determinadas pelas normas nacionais de direito contratual

aplicáveis, de rescindir uma concessão durante a sua vigência, caso se verifique uma das

seguintes condições:

As exceções previstas no artigo 15.º deixam de ser aplicáveis em virtude de uma participação

privada na pessoa coletiva à qual foi adjudicado o contrato nos termos do artigo 15.º, n.º 4;

Uma modificação da concessão exige uma nova adjudicação na aceção do artigo 42.º.

O Tribunal de Justiça da União Europeia considera, no quadro de um procedimento nos

termos do artigo 258.º do Tratado, que um Estado-Membro não cumpriu as suas obrigações

decorrentes dos Tratados devido ao fato de a autoridade ou entidade adjudicante pertencente a

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146

esse Estado-Membro ter adjudicado o contrato em causa sem cumprir as obrigações que lhe

incumbem ao abrigo dos Tratados e da presente diretiva.

8.9. As consequências do exercício do poder de modificação do contrato administrativo

8.9.1. Considerações gerais: encargos a mais e encargos a menos

8.9.2. A reposição do equilíbrio do contrato administrativo a favor do cocontratante

9. A modificação do contrato por acordo das partes

9.1. A autonomia das partes

A autonomia pública em matéria contratual, embora não seja tão extensa quanto a autonomia

da vontade dos privados em direito civil215, envolve seguramente a possibilidade de as partes

contratantes celebrarem adicionais, aditamentos ou outros acordos modificativos das cláusulas

inscritas no pacto inicial216.

É o que decorre hoje expressamente do artigo 311º/1, alínea a), do CCP, e era também o que

já decorria do artigo 178º/1 do CPA, que, ao qualificar como administrativo o acordo de

vontades pelo qual é modificada uma relação jurídica administrativa, acabava por reconhecer,

mesmo se apenas implicitamente, a legitimidade dos “contratos que alterem as cláusulas de

contratos anteriores”217.

A faculdade de os outorgantes modificarem, por mútuo consentimento, o acordo que

inicialmente firmaram deve ser considerada uma faculdade normal e natural do direito geral

dos contratos.

215 V., sobre esta matéria, Sérvulo Correia, Legalidade ..., cit., pp. 705 e ss. e os artigos publicados na AJDA –

L’actualité juridique. Droit Administratif, nº 9, 1998, a pp. 643 e ss., sobretudo, os de Christine Bréchon-Moulènes ("Liberté contractuelle des personnes publiques") e de Christine Maugüé ("Les variations de la liberté contractuelle dans les contrats administratifs").

216 Neste sentido, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10ª Ed., vol. I, p. 618. 217 Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2001, vol. II, p. 559.

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147

Na verdade, tal como pode suceder com quaisquer sujeitos num qualquer acordo (seja ele

civil, comercial, laboral, etc.), também o contraente público e o seu cocontratante podem

sentir a necessidade ou reconhecer a oportunidade de, aqui ou ali, mais profundamente ou só

em questões de pormenor, dar uma nova configuração às cláusulas constantes do trato

originário.

Pelos mais variados e diferentes motivos, como se sabe. E se já é assim em geral, mais o é, de

resto, em relação aos contratos administrativos de execução continuada e duradoura, nos quais

é perfeitamente normal e natural a ocorrência de vicissitudes e circunstâncias imprevistas e

não ponderadas, que podem justificar a introdução de alterações ao contrato inicial. E mais

fortemente ainda, é importante frisar, quando ao carácter duradouro do acordo vai ligado o

facto de ele associar ou comprometer o cocontratante no desempenho regular de atribuições

administrativas (legalmente cometidas ao contraente público), em cuja realização fica a

colaborar. É que nesses contratos administrativos ditos de colaboração subordinada — mais

do que em quaisquer outros —, a Administração está constituída (não só no poder, mas

sobretudo) no dever de actualizar as prestações contratuais às novas exigências do interesse

público, que é por definição mutável, inconstante e variável.

Embora o possa fazer unilateralmente, a modificação dos contratos administrativos não

depende do exercício desse poder público. Pelo contrário, além de aquilo que a contraente

público pode fazer autoritariamente também o pode bilateral e concertadamente, com o seu

cocontratante, através de um contrato substitutivo de acto administrativo218, a regra é a de que

essas modificações às cláusulas contratuais sejam efectuadas por mútuo consentimento das

partes. Sempre que elas entendam necessário ou conveniente, em face de circunstâncias não

ponderadas à data da celebração do negócio, retocar, aqui ou ali, as prestações contratuais de

uma ou outra, podem fazê-lo, respeitados os limites legais, que são hoje bem extensos.

Parece não ser preciso mais para afirmar que em geral é de aplicar no domínio da contratação

pública o disposto na parte final do artigo 406º/1 do Código Civil, onde se prevê que o

contrato “pode modificar-se por mútuo consentimento dos contratantes” consentimento

que, em si mesmo, como vimos, é de qualificar como administrativo. 218 Sobre estes, Huergo Lora, Los contratos sobre los actos y las potestades administrativas, 1998, pp. 33 e ss.,

107 e ss., e 249 e ss..

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148

9.2. Fundamentos do acordo das partes

De acordo com a lei, o contrato administrativo pode ser modificado por acordo das partes com

fundamento em razões de interesse público e com fundamento em alteração das

circunstâncias, nos termos conjugados do artigo 311º/1 e 312º.

9.3. Forma e formalidades do acordo das partes

Sobre a forma do acordo das partes, estabelece a lei que ele “não pode revestir forma menos

solene do que a do contrato” [artigo 311º/1, alínea a), do CCP]. Embora distinta da solução do

Código Civil — em cujo artigo 221º/2 se dispõe que “as estipulações posteriores ao

documento só estão sujeitas à forma legal prescrita para a declaração se as razões da exigência

especial da lei lhes forem aplicáveis” —, compreende-se bem a opção do legislador

administrativo.

Em primeiro lugar, por razões de transparência, imperiosas na contratação pública. Depois,

por razões de segurança. Em terceiro lugar, para permitir o controlo da legalidade da

modificação, por parte de terceiros interessados e por parte de entidades.

Quando portanto se trate de contrato escrito, sem mais solenidade, as partes podem optar por

meros adicionais, aditamentos ou outros acordos modificativos das cláusulas inscritas no

pacto inicial219.

Há no entanto alguns contratos cuja modificação (por acordo das partes) depende de

formalidades especiais.

219 Neste sentido, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10ª Ed., vol. I, p. 618.

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Assim, nas PPP, a “modificação do contrato (…) depende de decisão conjunta dos ministros

ou dos membros do Governo Regional responsáveis pelas áreas das finanças e da tutela

sectorial” (artigo 340º/2 do CCP) e no “âmbito da administração indirecta do Estado ou das

Regiões Autónomas, a decisão de modificação depende de parecer favorável do ministro ou

do membro do Governo Regional da tutela sectorial” (artigo 340º/3).

Uma vez celebrado o acordo, a interpretação do contrato inicial deve ser feita nos termos do

sentido das cláusulas resultantes da apostilha ou suplemento220.

9.4. Os limites à modificação por acordo das partes

Modificável por acordo das partes, como qualquer contrato, não pode porém dizer-se que, nos

contratos administrativos, “the parties to a contract are as free to change it after making it as

they were to make it in the first instance”.221

Há limites a essa modificação, uns gerais (que valem também para as modificações

unilateralmente decretadas), outros mais específicos.

A doutrina, de resto, mesmo antes do CCP, já enunciava alguns limites aos desvios ao

princípio da estabilidade contratual resultantes de mútuo consentimento dos contraentes,

afirmando que “todos os desvios têm de se nortear (…) pela prossecução do interesse público,

enquanto princípio constitucional vinculativo do agir da Administração (artigo 266.º, n.º 1, da

Constituição), “não podem colocar em causa a identidade entre o objecto material do contrato

de empreitada e o objecto material do concurso público que esteve subjacente ao

procedimento prévio de celebração do respectivo contrato” e “o próprio consentimento mútuo

na introdução de desvios ao princípio da estabilidade contratual pressupõe uma formação

perfeita da vontade de ambos os contraentes”222.

220 Paulo Otero, Estabilidade Contratual , p.931. 221 Brian Crowe / Suzanne Sias, Modification of Contracts (capítulo 7 da publicação Contract Law, 2006, Illinois

Institute for Continuing Legal Education, p. 222 Paulo Otero, «Estabilidade Contratual, Modificação Unilateral e Equilíbrio Financeiro em Contrato de Empreitada de Obras Públicas», ROA, Ano 56, Lisboa, Dezembro de 1996, pp. 921 e 922.

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Por outro lado, não é juridicamente necessário que as referidas alterações sejam estabelecidas

em benefício do contraente público, no sentido de que delas deve resultar uma posição

patrimonialmente mais vantajosa para a Administração. Nem tudo nos contratos

administrativos tem de ser feito em favor do contraente público e em desfavor do seu

cocontratante.

Por nós, de facto, o interesse ou benefício da entidade adjudicante (contratante) exigido como

pressuposto da alteração contratual não é exclusivo o que, aliás, resulta da lei , como

também pode ser apenas indirecto, abrangendo, pelo menos, a manutenção do contrato

celebrado em caso de dificuldades no seu cumprimento223, se estiverem em causa obras, bens

ou serviços cuja prestação sem interrupção importa preservar.

Mais importante do que isso, é que tal benefício tanto pode avaliar-se pelo lado activo, das

vantagens a adquirir, como pelo lado passivo, das desvantagens a extinguir ou das despesas a

prevenir.

Em segundo lugar, o tradicionalmente chamado limite do objecto do contrato administrativo

não se aplica tal qual às modificações por acordo, mas apenas por via dos problemas

concorrenciais que tal modificação poderia suscitar224.

223 Objectivas e alheias à negligência do seu cocontratante. 224 É essa, julgamos, a posição de Freitas do Amaral, quando afirma que, “naturalmente, quando a modificação de um contrato administrativo tenha lugar pela via bilateral, o limite mais importante que se ergue aí à autonomia das partes é o respeito pelo objecto do contrato - presume-se que o particular será capaz de livremente ajuizar se a alteração em causa serve ou não financeiramente os seus interesses. E, por outro lado, está claro que, neste cenário, não é também a protecção do particular - que até poderia estar de acordo com uma modificação do objecto do contrato -, mas sim a salvaguarda dos princípios da publicidade e da concorrência, que justificam a existência daquele limite. É que, se tal limite não existisse, as partes, a pretexto da modificação do contrato, poderiam, no fundo, proceder ao mútuo dissenso da relação original e, seguidamente, à celebração, por ajuste directo, de um novo acordo - desrespeitando a exigência legal do concurso público (ou de qualquer outro procedimento concorrencial) para a formação de contratos desse tipo. A manutenção de uma identidade fundamental entre os objectos dos contratos inicial e alterado é, assim, crucial para assegurar o respeito das regras da concorrência, posto que, repete-se, estas de nada valeriam se fosse concedida às partes uma liberdade ilimitada para a conclusão de contratos «modificativos» do contrato inicial (...). Neste mesmo sentido, justamente a propósito do contrato de concessão de serviços públicos, diz de modo sugestivo, do Brasil, Celso Bandeira de Mello que: «mesmo que o concessionário concordasse na modificação do objecto da concessão, o concedente não poderia pretendê-la, sob pena de burlar o princípio da licitação, sem abrir a terceiros a possibilidade de concorrerem a ela e demonstrarem, eventualmente, que prestariam o serviço em condições mais favoráveis para o Poder Público». Em suma, quando a vontade do particular concorre co-constitutivamente com a da Administração para a alteração de um contrato administrativo em curso tem de entender-se estar subtraída à liberdade de estipulação

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10. A modificação do contrato administrativo por decisão de um tribunal

10.1. Considerações gerais

O contrato administrativo pode ser modificado por decisão do contraente público, por acordo

entre as partes e também, veio agora o CCP prever em termos inovatórios, por decisão de um

tribunal (administrativo ou arbitral). É verdade que a modificação de contratos por decisão de

um tribunal já resulta há muito do artigo 437º do Código Civil, mas não deixa de ser uma

solução profundamente inovadora no plano da lei e, que saibamos, sem histórico no que

respeita a experiências jurisprudenciais.

Antes, porém, um esclarecimento: quando o legislador se reporta a uma modificação do

contrato por decisão judicial interpretamos isso em sentido técnico, como uma modificação

introduzida no clausulado do contrato por força de uma sentença de um tribunal. Temos por

isso alguma dificuldade em descobrir o sentido e alcance de algumas hipóteses avançadas pela

doutrina, que parecem assentar em pressuposto diverso225.

Assim, por nós, a decisão judicial de modificação do contrato administrativo pode ser

proferida na sequência das seguintes hipóteses:

(i) A pedido da parte interessada (que tanto pode ser o contraente público, como o

cocontratante), quando se verifique uma alteração das circunstâncias e não

tenha sido possível alcançar um acordo por via negocial.

(ii) A pedido do cocontratante, quando se verifique uma modificação do contrato

por decisão do contraente público e as partes não tenham chegado a acordo

sobre os termos da reposição do equilíbrio financeiro.

das partes a possibilidade de substituição do objecto do contrato original” (parecer jurídico junto ao processo que deu origem ao parecer do CC da PGR de 25.10.2001, publicado no DR de 5.01.2002). 225 Por exemplo, Carla Amado Gomes, A conformação, cit., p. 530, refere que a “decisão judicial poderá resultar (…) do desfecho de um processo de impugnação de um acto administrativo que determine a modificação unilateral por razões de interesse público (desfavorável ao co-contratante)”. Nesse caso, porém, a modificação do contrato resulta do acto administrativo, não da sentença. Jorge Andrade da Silva, Código, cit., p 716, também afirma, um pouco enigmaticamente, em anotação ao artigo 311º, que, “relativamente às decisões judiciais, estas podem decorrer de impugnação judicial de acto administrativo (…)”.

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(iii) A pedido de terceiros interessados (em função dos quais as cláusulas

contratuais tenham sido estabelecidas), quando se verifique uma alteração das

circunstâncias com impacto na sua posição de beneficiários ou utentes das

prestações contratuais.

10.2. Fundamentos da modificação por decisão do tribunal

10.2.1. Alteração das circunstâncias

De acordo com a lei, os contratos administrativos podem ser modificados por um tribunal

com dois fundamentos, a saber, “quando as circunstâncias em que as partes fundaram a

decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal e imprevisível, desde que a

exigência das obrigações por si assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não

esteja coberta pelos riscos próprios do contrato” e “por razões de interesse público decorrentes

de necessidades novas ou de uma nova ponderação das circunstâncias existentes”. É o que

resulta conjugadamente do artigo 311º/1, alínea b), e do artigo 312º, do CCP. São afinal os

mesmos fundamentos que podem justificar uma modificação do contrato por acordo entre as

partes.

À primeira vista, dir-se-ia que o primeiro fundamento se reconduz apenas aos casos regulados

no artigo 314º/2 do CCP, ou seja, à alteração das circunstâncias que se não deva a uma

decisão do contraente público adoptada fora do exercício dos seus poderes de conformação

contratual, abrangendo por isso a alteração das circunstâncias por acto de uma outra

autoridade pública (pou, mais genericamente, por acto de terceiro) e a alteração das

circunstâncias por evento natural. É o que parece resultar do facto de a alteração das

circunstâncias que fique a dever-se a uma decisão do contraente público adoptada no

exercício ou fora do exercício dos seus poderes de conformação contratual ter como

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consequência a reposição do equilíbrio financeiro (artigo 314º/1), não a modificação do

contrato226.

Consideramos, no entanto, que, como a reposição do equilíbrio financeiro pode passar pela

“prorrogação do prazo de execução das prestações ou de vigência do contrato” e pela “revisão

de preços” (ver artigo 282º/3 do CCP), há também espaço, em teoria, para a modificação do

contrato por decisão judicial no caso das situações do artigo 314º/1 do CCP e, logo, para a

modificação.

São, em suma, dois casos paralelos aos regulados no artigo 437º do Código Civil, passando

assim a haver harmonia de regimes legais na parte que respeita à previsão da intervenção

modificativa do tribunal, sem prejuízo das especificidades que se suscitam nos contratos

administrativos.

10.2.2. Razões de interesse público?

O segundo fundamento já não é tão pacífico quanto o primeiro. Na verdade, o facto de se

incluir entre os poderes de jurisdição dos tribunais administrativos a modificação de um

contrato administrativo “por razões de interesse público decorrentes de necessidades novas ou

de uma nova ponderação das circunstâncias existentes” constitui, em si mesmo, uma novidade

relevante, seja na perspectiva da teoria geral da justiça administrativa, seja na perspectiva da

teoria geral dos contratos administrativos.

Na perspectiva da teoria da justiça administrativa, porque os tribunais administrativos são

tribunais de jurisdição contenciosa, ou seja, conhecem de questões de direito, estando

impedidos, nos termos do artigo 3º/1 do CPTA, de formular juízos administrativos de

oportunidade ou conveniência.

Na perspectiva da teoria dos contratos administrativos, porque a modificação dos contratos

administrativo por motivos de interesse público — tanto quanto a sua resolução com o mesmo

fundamento (artigo 334º do CCP) — aparece historicamente associada a uma situação de

226 Sobre este ponto, ver […].

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poder do contraente público, na qualidade de responsável por garantir que o contrato se

mantém um instrumento de satisfação do fim que o justifica.

Aliás, parecem ser razões tão ponderosas, estas, que nos levam a admitir que possivelmente o

legislador não terá querido realmente dizer o que disse.

Com efeito, o poder de modificação unilateral do contrato administrativo é de exercício quase

intrinsecamente discricionário, apoiado num juízo típico da função administrativa, seja na

avaliação da necessidade nova ou na reponderação das circunstâncias já existentes, seja na

melhor forma de fazer repercutir essa situação no contrato — juízos e tarefas que são pouco

próprias de quem tem por função julgar litígios.

Por outro lado, a admitir-se a intervenção modificativa do tribunal com este fundamento,

haveria um caso raro de opção, por parte do contraente público, entre o exercício de uma

poder / competência que lhe é legalmente conferida e a instauração de uma acção em tribunal,

ao que parece, por sua livre escolha. Além disso, a opção pela via judicial para obter a

modificação do contrato com fundamento em razões de interesse público configura, pelo

menos é assim em tese geral, uma renúncia ao exercício de um poder de autoridade, proibida

(e sancionada com a nulidade) pelo artigo 29º/2 do CPA227/228.

227 Como se sabe, o princípio na matéria, afirmado entre nós por Sérvulo Correia (ver, por exemplo, Noções de Direito Administrativo, 1982, p. 174, e depois no Prefácio à obra “Intimação para um comportamento”, de Ricardo Leite Pinto, p. XXIII), é o de que as autoridades administrativas não podem requerer aos tribunais, por via de acção ou reconvenção, que decretem (judicialmente) as providências que elas mesmas têm o poder (administrativo) de tomar — solução que decorre não apenas da separação de poderes e responsabilidades, como também da natureza irrenunciável das competências administrativas, do ofício que elas pressupõem, encontrando-se por isso a Administração constituída no dever (no poder-funcional) de exercer os poderes públicos de autoridade com que foi legalmente investida (assim, MEO / REO, CPTA Anotado, p. 112). Esta proposição sobre a ilegitimidade de princípio do exercício do direito de acção pública (em geral, declarativa, cautelar ou executiva) quando se trata da tutela de posições jurídicas self-executing, declaráveis (e executáveis) por acto administrativo, foi corroborada em 1995 com a redacção dada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95 (sob proposta de Antunes Varela) ao artigo 413º do Código de Processo Civil, afirmando-se aí que o procedimento cautelar de embargo de obras feitas em violação da lei ou dos regulamentos administrativos só pode ser requerido pelo Estado e demais pessoas colectivas públicas “quando careçam de competência para decretar o embargo administrativo”, contrariando a jurisprudência até então dominante, segundo a qual as autoridades administrativas eram livres para optar entre o embargo judicial e o administrativo ou até decretar este e depois pedir aquele (cf. Abílio Neto, Código do Processo Civil Anotado, 2003, p. 582 e a jurisprudência aí citada). O regime manteve-se o mesmo no CPC de 2013, agora no artigo 398.º. 228 Em sentido contrário, embora não no domínio do CCP, admitindo que o contraente público pudesse optar pela instauração de uma acção judicial em alternativa ao exercício dos poderes públicos de modificação e resolução do contrato, ver […].

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Em terceiro lugar, esta solução, aparentemente consagrada na lei, estaria em clara contradição

com uma outra, posta no artigo 313º/3 do CCP, onde se estabelece uma limitação aos poderes

dos tribunais em matéria de modificação dos contratos administrativos quando essa

modificação “interfira com o resultado do exercício da margem de livre decisão

administrativa (…) ou implique a formulação de valorações próprias do exercício da função

administrativa”. Ora, se aí ainda está em causa uma mera alteração de circunstâncias com

impacto no contrato, do que se trataria aqui seria do exercício, em si mesmo, de um poder de

modificar um contrato por motivos de interesse público, caso em que aquela limitação legal

deveria funcionar por maioria de razão.

Por último, resta dizer que a referida solução coloca em xeque o princípio constitucional da

separação de poderes — pondo o juiz a fazer-se de administrador, pedindo-lhe que administre

em vez de julgar —, devendo portanto entender-se que um tribunal não pode modificar um

contrato por razões de interesse público. Esse é um campo onde a Administração Pública é

“senhora e rainha”.

A questão que se coloca é saber se isso é assim também em relação aos tribunais arbitrais.

Só nos referimos especificamente ao assunto, não porque os tribunais arbitrais tenham ou

devam ter poderes de jurisdição ali onde eles falham aos tribunais do Estado, mas porque a

jurisdição dos tribunais arbitrais parece ser legalmente mais extensa do que a dos tribunais

administrativos nesta matéria.

Com efeito, estabelece-se no artigo 1º/4 da Lei da Arbitragem Voluntária que as “partes

podem acordar em submeter a arbitragem, para além das questões de natureza contenciosa em

sentido estrito, quaisquer outras que requeiram a intervenção de um decisor imparcial,

designadamente as relacionadas com a necessidade de precisar, completar e adaptar contratos

de prestações duradouras a novas circunstâncias”.

Dir-se-ia que é justamente o caso em apreço: adaptar contratos (administrativos) de prestações

duradouras a novas circunstâncias, ou seja, às tais necessidades novas ou à nova ponderação

de circunstâncias existentes.

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10.3. Os limites à modificação do contrato administrativo por decisão do tribunal

10.3.1. Limites gerais

Em primeiro lugar, os limites gerais que se apontam à modificação dos contratos

administrativos valem também, por identidade de razão, para a modificação através de

decisão judicial ou arbitral. Salvo inconstitucionalidade, os tribunais devem aplicar e fazer

observar a lei, estando assim sujeitos aos limites constantes do artigo 313º do CCP (e outras

disposições especiais) e, se for o caso, aos limites impostos pelo direito comunitário. Além de

também eles (como as partes e como o contraente público, nessa qualidade) só poderem

alterar cláusulas do contrato, estando impedidos de modificar o regime legal ou regulamentar

de um contrato.

Além disso, é controverso se a falta de acordo das partes é ou não um outro limite que deva

ser apontado à intervenção dos tribunais nesta matéria. A questão pode colocar-se num plano

eminentemente processual, mas também num plano mais substantivo.

Aqui, o que estará em causa é saber se, em caso de alteração das circunstâncias (ou de

exercício do poder de modificação unilateral), há ou não um dever de negociação das partes,

de cujo insucesso (mas também de cuja existência) depende o recurso aos tribunais. Ali, do

que se trata é dos requisitos de que depende a existência de um interesse (processual) em agir.

10.3.2. Limites em razão da autonomia das partes

Trata-se de uma judicial restraint afirmada no direito civil da alteração das circunstâncias

também em homenagem ao princípio da autonomia da vontade. Também aí alguma doutrina

defende que o regime do artigo 437º do Código Civil apenas permite ao tribunal uma

intervenção mínima sobre o contrato e centrada, sobretudo, nos mecanismos da chamada

“revisão indirecta”, chegando-se mesmo ao ponto de, no caso de o tribunal não considerar que

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as “propostas” de revisão avançadas pelas partes (se as houver) são equitativas, não lhe restará

outra hipótese senão decretar a resolução do contrato229.

10.3.3. Limites em razão da função: a formulação de valorações próprias do exercício da

função administrativa

Há no entanto limite jurídico específico posto à modificação do contrato administrativo por

decisão judicial ou arbitral, tendo o legislador estabelecido, no artigo 313º/3 do CCP, que,

tratando-se de “contratos com objecto passível de acto administrativo e demais contratos

sobre o exercício de poderes públicos”, não poderá haver lugar a essa modificação judicial

quando “interfira com o resultado do exercício da margem de livre decisão administrativa

subjacente ao mesmo ou implique a formulação de valorações próprias do exercício da função

administrativa”.

A nossa dúvida é se não deve proceder-se a uma extensão do regime do preceito a todos os

casos em que a modificação do contrato “interfira com o resultado do exercício da margem de

livre decisão administrativa (…) ou implique a formulação de valorações próprias do

exercício da função administrativa”, mesmo que esteja em jogo um contrato de categoria

diversa.

Na verdade, tal como está redigida, a norma parece pressupor que apenas na modificação

judicial de “contratos com objecto passível de acto administrativo e demais contratos sobre o

exercício de poderes públicos” pode haver situações de contacto com o tema da separação de

funções ou com os limites constitucionais da tarefa de julgar230.

229 Ver Carvalho Fernandes, A teoria da imprevisão no direito civil português, 2001, p. 139. 230 No mesmo sentido, Ana Gouveia Martins [Modificação: 86] entende que a “impossibilidade de o tribunal proceder a uma modificação contratual radica no princípio da autonomia contratual da administração, reforçado e qualificado pelo princípio da separação de poderes”, para afirmar, pouco depois, que “a modificação judicial de um contrato administrativo implicaria que o juiz definisse o conteúdo e o modo de realizar esse interesse público, o que se traduziria no exercício do cerne da função administrativa e, como tal, numa clara usurpação do poder administrativo pelo poder judicial”.

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Ora, tais situações de contacto são normais na generalidade dos contratos administrativos231.

Diríamos que quase por definição ou por natureza. É verdade que o facto de estar em causa

“contratos com objecto passível de acto administrativo e demais contratos sobre o exercício

de poderes públicos” pode impressionar mais, por aí eventualmente se revelar com maior

evidência o problema da discricionariedade associada a uma situação de poder público de

autoridade (substituído pela celebração de um contrato administrativo), mas, como tivemos

oportunidade de dizer noutro lugar232, “a judicial restraint decretada pelo legislador no artigo

3º/1 do CPTA, impondo ao tribunal que circunscreva os seus juízos à interpretação e

aplicação das normas e princípios jurídicos, vale para todas as formas por que se revela a

actividade administrativa, desde o acto administrativo até à mera operação material (ou acto

jurídico), passando pelo contrato e também pela actividade de produção normativa da

Administração Pública, em especial, pela chamada actividade de planeamento (e a sua célebre

«cláusula de ponderação de interesses»). Em todos estas formas ou manifestação da

actividade administrativa há ou pode haver momentos de discricionariedade (tudo depende do

caso), para os quais valem, então, as determinações deste art. 3º/1 do CPTA”.

Compreende-se. Sendo o contrato um instrumento da acção administrativa e um meio de

providenciar pela satisfação activa do interesse público — não se trata de um dogma, mas de

uma realidade juridicamente palpável —, o que nele se contém são justamente as cláusulas

pré-ordenadas a tal finalidade, que, na generalidade dos casos, foram objecto de ponderação e

elaboração antes do lançamento do procedimento de contratação pública. É aí que, em função

da necessidade subjacente à decisão de contratar, a entidade adjudicante (em alguns casos,

socorrendo-se de assessoria técnica especializada) elabora e descreve, com cuidado, as

cláusulas do caderno de encargos, com as especificações adequadas à satisfação do interesse

público.

Havendo uma alteração das circunstâncias, que desequilibre o contrato, a modificação das

suas cláusulas implicará, salvo casos excepcionais, uma revisão do juízo que levou à sua

inclusão. Sendo que esse juízo, plasmado na redacção do caderno de encargos, foi formulado

231 Ana Gouveia Martins também considera que a “salvaguarda legal [do artigo 313º/3 do CCP] não deve ser circunscrita a estes contratos administrativos por natureza” [os relativos ao exercício de poderes públicos], e tem, igualmente, plena razão de ser relativamente aos contratos com objecto de direito privado” [A modificação: 86]. 232 Com Mário Esteves de Oliveira, em CPTA Anotado, p. 124.

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com base em opções e considerações eminentemente administrativas, próprias de quem tem a

tarefa de velar pelo interesse público concessionado. O que significa que a revisão de tal juízo

pressupõe o mesmo tipo de valorações, substancialmente administrativas.

As concessões de serviço público, se fosse necessário dar um exemplo impressivo, seriam

suficientes para justificar a proposição sobre a inadequação de uma “ingerência judicial”

alargada no quadro da modificação dos contratos administrativos.

Deverá admitir-se, por exemplo, que um tribunal modifique as cláusulas sobre os níveis de

serviço (ou SLA, de service level agreement) constantes dos contratos de concessão? No caso

do serviço público postal, por exemplo, o tribunal decide que a concessionária fica com

menos obrigações em matéria de colocação de marcos e caixas de correio na via pública

destinados à aceitação de envios postais? Ou atenua as exigências de serviço em matéria de

entrega do correio postal? No caso da concessão de serviço público de rádio e televisão, o

tribunal aligeira as exigências ou limitações na prestação de serviços de televisão, de rádio ou

de multimédia? Ou suprime um ou os dois serviços de programas especialmente destinados às

regiões autónomas? Ou, em vez disso, atenua as exigências em matéria de arquivos

audiovisuais da RTP, limitando-os aos programas de inequívoco interesse cultural?

Numa concessão de infraestrutura rodoviária, em caso de decréscimo abrupto e anormal da

procura de tráfego, o tribunal atenua as exigências em matéria de áreas de serviço ou das áreas

de descanso? Ou suprime-as (se sim, quais, havendo várias)? Ou atenua as exigências em

matéria de qualidade dos materiais? Ou da iluminação das vias? Ou aumenta as taxas de

portagem?

Os exemplos podiam continuar a propósito da generalidade dos vários tipos ou categorias de

contratos administrativos.

Sendo assim, a melhor solução passa por considerar extensível aos contratos administrativos

(regulados ou não pelo Código) a regra especial constante do artigo 313º/3 do CCP, de que os

tribunais não podem decretar a sua modificação com base em alteração das circunstâncias

quando isso “interfira com o resultado do exercício da margem de livre decisão administrativa

(…) ou implique a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa”.

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De resto, a doutrina, como também já foi assinalado, tem sido desfavorável à possibilidade da

intervenção dos tribunais em matéria de modificação do contrato administrativo justamente

com fundamento em considerações ligadas à discricionariedade, se se preferir, com

fundamento em se tratar aí de juízos típicos da função administrativa233.

Não se pretende com isto afirmar, note-se, que deva ser legalmente proibida a intervenção

judicial modificativa de contratos administrativos ou que sejam inconstitucionais, por

violação do princípio da separação de poderes, as normas do CCP que habilitam os tribunais a

proceder a tais modificações.

A questão é que essas normas são descritas com aparente largueza, sem referência a quaisquer

limites ou, pior do que isso, com limites (funcionais) bem definidos mas apenas relativamente

a uma categoria de contratos, o que revela que o legislador se terá apercebido do problema,

mas que o julgou existente só nesse caso, quando na verdade ele é geral e atravessa todos os

instrumentos de actuação administrativa, nos quais se incluem os contratos administrativos,

sem excepção de categorias ou tipos.

Assim, para resolver o problema, bastará proceder à extensão analógica do regime do artigo

313º/3 do CCP a todos os contratos administrativos e à correspondente redução teleológica

das normas que habilitam os tribunais a determinar modificações aos tribunais

administrativos, sendo que, em nossa opinião, o resultado a que se chega é quase o contrário

daquele de que partiu (aparentemente) o legislador: ali onde este afirma um (aparente)

233 Marcello Caetano, por exemplo, a propósito da imprevisão, dizia que “é característico também desta teoria

jurisprudencial o princípio de que a assistência prestada pela Administração ao outro contraente reveste a forma de indemnização, porque os juízes não podem modificar o contrato, alterar tarifas, elevar preços” (Manual, cit., p. […]).

No mesmo sentido, Laubadére/Moderne/Devolvé, afirmando que haveria outras alternativas à “indemnização por previsão”, que até teriam preferência sobre ela — como “une révision, une réadaptation du contrat pour tenir compte des difficultés économiques auxquelles se heurte son exécution” —, esclareciam logo de seguida que “telles solutions ne peuvent résulter que de l’accord des parties, non de la volonté du juge. Celui-ci ne peut jamais modifier lui-même les clauses d’un contrat administratif ; il ne peut pas, comme l’on dit, «refaire le contrat»”, citando a propósito um acórdão do C.E. de 1944 onde se afirmava que «il n’appartient pas au juge administratif de modifier les clauses d’un contrat librement acceptées par les parties»”. E esclareciam também que “spécialement le juge du contrat de concession ne peut jamais (…) modifier lui-même le tarif de la concession, fixer de nouvelles redevances”, para terminar dizendo que “c´est le concédant seul qui est qualifié pour décider s’il doit résoudre la situation extracontractuelle en acceptant un relèvement des tarifs” (Traité..., cit, I, p. 699).

Ana Gouveia Martins também considera que “não é admissível que o juiz reajuste as posições contratuais dos contraentes, determine a redução das prestações devidas pela parte lesada ou o agravamento das prestações da administração com base em critérios de equidade”.

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princípio de modificabilidade dos contratos administrativos por decisão judicial, o que haverá,

bem vistas as coisas, é um princípio de imodificabilidade, ou seja, por via de regra os

tribunais não podem modificar tais contratos.

O princípio da imodificabilidade dos contratos administrativos por decisão judicial conhece

no entanto excepções, essencialmente fundadas em razões de ultima ratio, que julgamos

serem compreensíveis: é que, enquanto no caso do exercício de poderes públicos de

autoridade (normativa ou não), o sistema jurídico oferece uma solução clara quando um

tribunal se depara com uma medida com “ingredientes” de discricionariedade (o tribunal

respeita, nessa parte, salvo casos excepcionais, a responsabilidade administrativa inerente à

decisão, mantendo-se a medida em vigor no ordenamento), nas hipóteses com que lidamos

aqui não há uma solução pré-determinada pela lei e ela tem de ser encontrada: se há uma

alteração das circunstâncias e as partes não chegam a acordo, embora se saiba que uma delas

tem direito à modificação do contrato, não há (não antevemos) alternativa possível a essa

modificação caber em última instância a um tribunal. O que significa que a intervenção

judicial, sendo necessária, não pode ser excluída. No entanto, devendo ser admitida, tem os

seus limites.

Assim, admite-se que o tribunal proceda a essa modificação, com fundamentos na alteração

das circunstâncias, quando “a apreciação do caso concreto (…) permita identificar apenas

uma solução como legalmente possível” (para recorrer à formula processual constante, por

exemplo, do artigo 71º/2 do CPTA).

O que pode acontecer em vários cenários:

(i) Na falta de acordo entre as partes, quando se trate de inscrever ou fazer

repercutir no contrato uma modificação que é imposta por lei ou regulamento e

não haja alternativas possíveis aí previstas. Imagine-se que é alterada uma lei

que manda que no cômputo de uma tarifa de serviço público passe a

considerar-se um certo custo, até ali desconsiderado: se as partes não chegarem

a acordo, o tribunal poderá nesse caso modificar o valor (ou a fórmula de

cálculo do valor) da tarifa, fazendo as modificações necessárias ao acordo.

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162

(ii) Na falta de acordo das partes, quando a alteração das circunstâncias tiver um

impacto específico no contrato, em termos tais que possa dizer-se que o

elemento contratual a modificar é só um e só pode ser em certo sentido e com

certo conteúdo (ou ao menos segundo certos critérios).

Além dessas hipóteses, o tribunal poderá também modificar o contrato administrativo em

última instância, quando haja uma alteração das circunstâncias, as partes não cheguem a

acordo quanto ao modo e termos dos seus reflexos no contrato e o contraente público não

possa decretar a modificação em causa, seja porque, excepcionalmente, essa alteração não se

repercute em quaisquer razões de interesse público, seja porque, repercutindo-se, se trata de

uma modificação que não pode ser imposta por acto administrativo.

Ver explicitações judiciais. Ver alternativas legais.

Ainda assim, o tribunal, nestes últimos casos, deve preferir as soluções modificativas que não

impliquem uma revisão dos juízos da função administrativa mais fundamentalmente

subjacentes ao clausulado contratual, ou seja, as soluções mais tradicionais, como a

prorrogação do prazo do contrato ou a atribuição de uma indemnização. Só em casos

excepcionais, que não pudessem, com razoabilidade mínima, passar por uma solução destas, é

que, na falta de acordo das partes, deve admitir-se por exemplo, a revisão dos preços, tarifas

ou taxas, ou a modificação de outras cláusulas contratuais234.

São estas, em nossa opinião, as limitadas situações em que deve aceitar-se a modificação do

contrato administrativo por decisão judicial.

11. A modificação do contrato administrativo por lei

234 Para Ana Gouveia Martin, “o artigo 314º, nº 2, quando prevê que a verificação dos pressupostos da teoria da imprevisão «conferem direito à modificação do contrato ou a uma compensação financeira, segundo critérios de equidade» deve (…) ser objecto de uma interpretação restritiva no sentido de a modificação do contrato com este fundamento se restringir à alteração das cláusulas financeiras, por exemplo, alteração dos preços ou das tarifas a cobrar em alternativa à fixação de uma compensação extra-contratual” [Modificação: 87].

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163

Capítulo IV

A alteração do contexto do contrato

12. A alteração das circunstâncias no contrato administrativo

12.1. Considerações introdutórias e regime comum

O recurso aos “princípios do direito administrativo” — entre os quais se conta certamente o

princípio de equidade e justiça contratual segundo o qual “contractus que habent tractum

successivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur” (em tradução livre:

os contratos de trato sucessivo e que dependem de circunstâncias futuras entendem-se como

estando assim as coisas.

Uma crítica que a doutrina tem feito ao regime do CCP reside no facto de ele não tratar

autónoma e concentradamente da figura da alteração das circunstâncias, regulando-o

dispersamente no Capítulo V do Código e, em certo sentido, subordinadamente, ora a

propósito da modificação do contrato, ora a propósito da resolução.

Vistos os casos de modificação do texto do contrato administrativo, seja por via de decisão do

contraente público, por acordo entre as partes, por decisão de um tribunal ou directamente,

pela lei, vamos agora ver como devem ser tratados os casos de alteração das circunstâncias,

que, de acordo com as figuras tradicionais do direito administrativo, corresponderiam ao fait

du prince e à imprevisão.

[…]

O CCP regulou a matéria de alteração das circunstâncias de forma algo dispersa, ora

enquadrando-a na temática da modificação objectiva do contrato, ora no quadro da resolução

do contrato.

[…]

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164

Além disso, o legislador não foi muito claro na descrição normativa da figura da alteração das

circunstâncias, ou seja, daqueles que devam ser considerados os requisitos de que depende a

sua relevância no direito dos contratos administrativos.

Com efeito, no artigo 312º, alínea a), do CCP, estabeleceu-se, ao estilo de preceito geral na

matéria, que poderá haver modificação do contrato “quando as circunstâncias em que as

partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal e imprevisível,

desde que a exigência das obrigações por si assumidas afecte gravemente os princípios da boa

fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato” — preceito que corresponde, com

excepção da referência à anormalidade, ao teor do artigo 437º do Código Civil. Depois, na

parte relativa à reposição do equilíbrio financeiro, dispôs-se no artigo 314º/1, alínea a), que

haverá direito a essa reposição quando se verifique uma “alteração anormal e imprevisível das

circunstâncias imputável a decisão do contraente público, adoptada fora do exercício dos seus

poderes de conformação da relação contratual, que se repercuta de modo específico na

situação contratual do co-contratante”. Já não há referência, portanto, ao facto de a “exigência

das obrigações por si assumidas [afectar] gravemente os princípios da boa fé e não esteja

coberta pelos riscos próprios do contrato”, embora se tenha aditado (ao menos, formalmente)

o requisito da “repercussão específica na situação contratual do cocontratante”. Logo abaixo,

no artigo 314º/2, o legislador optou por se referir apenas aos “demais casos de alteração

anormal e imprevisível das circunstâncias”.

No entanto, no artigo 282º, que regula os termos da reposição do equilíbrio financeiro do

contrato, o legislador, no respectivo número 2, veio dispor que o “cocontratante só tem direito

à reposição do equilíbrio financeiro quando, tendo em conta a repartição do risco entre as

partes, o facto invocado como fundamento desse direito altere os pressupostos nos quais o

cocontratante determinou o valor das prestações a que se obrigou, desde que o contraente

público conhecesse ou não devesse ignorar esses pressupostos”235.

235 A situação não melhora muito quando se enquadra o problema na temática da resolução do contrato. Aí, refere-se apenas no artigo 312º/1, alínea a), que o cocontratante tem o direito de resolver o contrato quando se verifique uma “alteração anormal e imprevisível das circunstâncias”, embora no artigo 335º/1 já tenha estabelecido que o “contraente público tem o direito de resolver o contrato com fundamento na alteração anormal e imprevisível das circunstâncias, nos termos do disposto na alínea a) do artigo 312º”, ou seja, de acordo com os requisitos nela previstos, embora no número seguinte, no artigo 335º/2, volte apenas a referir-se à

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165

12.2. Os requisitos gerais de relevância da alteração das circunstâncias

12.2.1. Alteração anormal e imprevisível

[…]

Um pouco paradoxalmente, a imprevisibilidade deve, por um lado, ser entendida em termos

rigorosos, sob pena de nela se subsumirem muitos mais factos do que ela em tese devia

comportar, com prejuízo para a contraente público e, logo, para a colectividade, mas, ao

mesmo tempo, deve ser entendida cum grano salis, sob pena de não abranger quase situação

alguma. Não há eventos absolutamente imprevisíveis, que escapassem totalmente à

capacidade de previsão de uma pessoa versada em todas as ciências a quem fosse pedido que

elencasse todos os fenómenos que pudessem ocorrer num determinado período de tempo. Não

é disso que se trata quando se fala na imprevisibilidade do evento.

Artigo 437º do Código Civil

Quer isto dizer que, embora a ordem jurídica, em matéria negocial, assente no (e respeite o)

princípio da estabilidade dos contratos (pacta sunt servanda), admite-se em determinados

casos, verificados certos pressupostos, desvios a esse princípio, conferindo a uma das partes

(ou às duas, depende) a faculdade de requerer em juízo a modificação do contrato, das

estipulações que o integram.

Esses pressupostos ou condições de que depende a modificação judicial dos contratos em

geral, e da concessão em apreço, em especial, são dois, como assinala unanimemente a

doutrina: i) que tenha havido alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram

“resolução do contrato por alteração anormal e imprevisível das circunstâncias (…) imputável a decisão do contraente público adoptada fora do exercício dos seus poderes de conformação da relação contratual”.

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a decisão de contratar; ii) e que a manutenção do conteúdo contratual afecte gravemente os

princípios da boa fé e não esteja abrangida pela álea própria do contrato236.

O primeiro pressuposto está ligado à alteração superveniente daquilo que se costuma designar

de “base do negócio jurídico” ou “base negocial”, que é, como se sabe, um conceito jurídico

complexo.

Assim, quando se celebra um determinado negócio jurídico há sempre várias circunstâncias,

de facto e/ou de direito, que acabam por influenciar a vontade das partes, levando-as

(justamente por causa da representação que fazem da realidade) a adoptar este negócio, e não

outro, e a fazê-lo com certo conteúdo, em certos termos, e não noutros. A base negocial é isto

mesmo, são aquelas circunstâncias que, pressupostas por um ou por ambos os contraentes,

foram determinantes da celebração do negócio e dos seus termos ou conteúdo, em condições

tais que, de outro modo, se não teria celebrado o dito negócio ou só se o teria feito noutros

termos, com diferente conteúdo237.

Ora, todas essas circunstâncias, que estiveram na base da decisão de contratar, podem não se

manter qua tale durante toda a vida do contrato, sobretudo nos de longa duração, sofrendo,

aqui ou ali, alterações ou mutações, de intensidade e graus diversos.

Sucede que, em alguns casos, essas alterações são mais profundas, alteram substancialmente a

representação que se fazia do contrato ou tocam em aspectos absolutamente decisivos da

vontade de contratar (ou de contratar em certos termos) de uma das partes. Em situações

destas – tendo em conta a natural e necessária adaptação da actividade administrativa às

exigências actualizadas do interesse público –, seria pensável convencer o tribunal a dar como

preenchido o primeiro pressuposto atrás referido.

236 Cf., Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1983., p. 600. Há quem proceda a mais desdobramentos.

Almeida Costa, por exemplo, considera serem requisitos necessários para o efeito: i) que a alteração diga respeito a circunstâncias em que se alicerçou a decisão de contratar; ii ) que essas circunstâncias fundamentais hajam sofrido uma alteração anormal; iii ) que a estabilidade do contrato envolva lesão para uma das partes; iv) que a manutenção do contrato ou dos seus termos afecte gravemente os princípios da boa fé; v) e que a situação não se encontre abrangida pelos riscos próprios do contrato (Direito das Obrigações, 7ª Ed., pp. 284 e ss.). Trata-se porém, de uma diferença sem quaisquer consequências jurídico-práticas.

237 Assim, Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 2001, p. 163, e Heinrich Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, 2000, p. 577.

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167

Mas, para fazer funcionar a estatuição do artigo 437º do Código Civil, exige-se ainda que a

manutenção do acordo “afecte gravemente os princípios da boa fé” e que a alteração ocorrida

“não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato”.

A doutrina, seguindo a proposta de Lehmann, considera que a primeira exigência estará

preenchida quando a circunstância ou pressuposição negocial fosse conhecida ou cognoscível

para a outra parte no momento da celebração do negócio e se possa dizer que, se se lhe tivesse

sido proposto o condicionamento do negócio à verificação da circunstância pressuposta, ela

teria aceitado tal pretensão ou a deveria ter aceitado segundo a boa fé. Ou até mesmo,

segundo Manuel de Andrade, quando se possa afirmar que, embora não impusesse a aceitação

da cláusula de condicionamento na data do negócio, a boa fé justifique agora esse resultado238.

No caso em apreço, teria que se demonstrar, portanto, que, por um lado, a circunstância

pressuposta pela APA não era estranha à Concessionária ― que ela, se não conhecia, pelo

menos devia saber que os termos concretos em que foi ajustado o contrato de concessão

assentavam em certos pressupostos ―, e que, por outro lado, se a APA lhe tivesse proposto a

modificação do negócio (vg., o aumento do valor das rendas e/ou taxas), ela teria anuído, ou,

pelo menos, segundo as normas da boa fé, deveria tê-la aceitado.

Na verdade, do ponto de vista da boa fé, o juízo de prognose que se faça sobre o dever de

anuência de uma parte à alteração económico-financeira do negócio proposta pela outra parte

com base na (não) verificação de certas circunstâncias há-de depender também da margem de

lucro implicada nesse negócio. Se ela for mínima, poderá haver mais razões para dizer que a

contraparte não tinha, nem mesmo segundo as normas da boa fé, que aceitar essa cláusula; se

ela for máxima (como sucederá na hipótese em apreço), então as exigências da boa fé também

o são, porque nesse caso a aceitação da modificação proposta ― justa e equitativa ― não

sacrificaria nem eliminaria os interesses económicos do contraente particular, não tornaria

desinteressante, para ele, a concessão, que continuaria a retirar dela vantagens e benefícios

económicos, só que agora equilibrados ou “normalizados”.

238 Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pp. 406 e ss., e Mota Pinto, Teoria …, cit., pp.

601 e 602.

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168

Como seria igualmente relevante para o efeito em causa o facto de lidarmos aqui com um

contrato administrativo (de concessão de serviços públicos), em cuja disciplina o factor

interesse público joga, como se sabe, um papel decisivo. É que se a boa fé pode não

determinar a aceitação da cláusula de modificação ali onde estão presentes, de um e outro

lado da relação, meros interesses privados, já a pode impor quando o negócio é, por definição,

celebrado sob reserva (implícita) da sua conformidade com as exigências (e contingências) do

interesse público, quando uma das partes se encontra legalmente incumbida da sua

prossecução em termos óptimos. Não queremos dizer com isto, claro, que o pacto de

colaboração, ínsito neste tipo de contratos, transforme o interesse do contraente particular

numa espécie de interesse “desinteressado” ou altruísta ― a sua colaboração é evidentemente,

e legitimamente, interessada (na obtenção de ganhos). Mas o facto de ele saber que está

também ao serviço do interesse público pode levar a que, à luz das normas da boa fé, se lhe

possa exigir uma coisa que, não fosse essa circunstância, talvez se não lhe devesse exigir.

12.2.2. Os riscos próprios do contrato

Por último, diz a lei que a alteração das circunstâncias só justificará o direito à (resolução ou

à) modificação se as suas consequências não estiverem cobertas ou abrangidas pelos “riscos

próprios do contrato” [artigo 312º, alínea a), do CCP]. Como esclarece H. Hörster, “risco

próprio ou normal do contrato é aquele que pertence à sua peculiaridade, é o risco ao qual

cada parte se sujeita ao concluir o contrato. O risco constitui a álea norma do contrato e é-lhe

intrínseco. O risco não coberto pelo contrato é-lhe extrínseco, alheio”239.

Há, portanto, que saber, primeiro, quais as consequências que a alteração das circunstâncias

projectou sobre a relação contratual e, depois, se elas ainda se podem imputar à álea inerente

ao tipo de contrato e à forma como as partes nele distribuíram o risco ou se, pelo contrário,

exorbitam dela.

Por exemplo, quando as circunstâncias invocadas não circunscrevam a sua “zona de impacto”

apenas à situação do contrato em causa, à sua maior ou menor aptidão administrativa ou

239 A Parte Geral …, cit., pp. 579 e 580.

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económica, mas se projectem mais latamente, não parece que se possa afirmar que se trata

ainda de um “risco próprio do contrato”, de algo relativo ainda e só à “álea normal” do

contrato. Pelo contrário, nessas hipóteses, o risco é extracontratual, e, como tal, não se pode

imputar às eventualidades ou “flutuações normais” do contrato.

Há uma importante distinção a fazer entre esfera do risco e eventos com impacto na esfera do

risco. Por exemplo, o risco da procura (de tráfego, por exemplo) não significa que corram por

conta do cocontratante os eventos com implicações sobre a procura, ou seja, as variáveis

políticas, económicas e sociais com repercussão na procura.

Ou seja, há eventos que têm impacto directo sobre a procura, reduzindo a utilização da

infraestrutura objecto da concessão, e que configuram situações enquadráveis no risco de

tráfego, que corre por conta do cocontratante, mas, por outro lado, também é seguro que nem

todos os eventos que produzam efeitos sobre o tráfego, reduzindo-o, configuram situações

enquadráveis no risco de tráfego.

Para se saber então em que categoria é que deve subsumir-se cada situação da vida há que

recorrer ao critério que define a matriz de risco de cada contrato, que serão, em princípio, as

clausulas que definem o risco de tráfego e as que estabelecem os eventos geradores do dever

de reposição do equilíbrio financeiro do contrato.

Ambas concorrem para o sentido e alcance da matriz de risco e, note-se, concorrem em igual

medida, não havendo em princípio prevalência de umas sobre as outras.

O risco de tráfego ou o risco de procura é, em termos técnicos, um risco próprio do contrato,

ou seja, uma álea que corre por conta do cocontratante, querendo com isso dizer-se que as

oscilações sentidas na utilização da infraestrutura que sejam imputáveis às circunstâncias da

vida, a eventos exteriores à vontade das partes ou a eventos imputáveis à vontade do

contraente público mas com alcance geral (no sentido em que não têm um impacto específico

nas actividades concessionadas) são eventos cujos impactos devem ser acomodados, digamos

assim, pelo cocontratante, justamente porque é seu o risco.

Mas depois existem também clausulas que estabelecem os casos em que há dever de REF. O

que significa, necessariamente, que qualquer evento desses, expressamente qualificado como

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gerador do dever de reposição do equilíbrio financeiro da Concessão por parte do contraente

público — tenha ou não impacto sobre a procura —, não se subsume, por natureza, no risco

assumido pelo cocontratante, mas no risco, digamos assim, assumido pelo contraente público.

Mas já não é assim com os casos de força maior (mesmo que subsumíveis no conceito de act

of God) e, muito menos, com os eventos imputáveis à vontade do contraente público com

alcance específico.

Se não fosse assim, ninguém se arriscaria a contratar com o Estado.

Basta um exemplo. Imagine-se que havia um terramoto, que impossibilitava a utilização,

durante meses, de uma certa infraestrutura, com impactos graves sobre o tráfego. Faria então

sentido o Estado dizer que, como o cocontratante assume integralmente o risco de tráfego

inerente à exploração, é ele que deve arcar com as consequências desse facto? Pensamos que

não. O que haveria aí seria um caso de força maior, que normalmente é gerador de uma

modificação do contrato ou de uma compensação financeira (ou, se for o caso

contratualmente previsto, da reposição do equilíbrio financeiro).

Risco de tráfego e eventos com impacto sobre o tráfego são assim duas realidades diferentes.

Ou imagine-se que o Estado, por um qualquer motivo, decide encerrar uma via de cada uma

das faixas de rodagem da concessão, com inevitável diminuição do respectivo tráfego.

Também aí não se trata de um risco que corra por conta do cocontratante, mas de um acto

imputável ao contraente público que modifica unilateralmente as condições de

desenvolvimento das actividades integradas na concessão, geradora da reposição do equilíbrio

financeiro. Ou imagine-se que o Estado, por qualquer motivo, resolvia criar um tributo

extraordinário e especial (vg, “tributo por maior comodidade de circulação”) — cumulável

com as taxas de portagens —, aplicável a cada veículo que frequentasse as concessões

rodoviárias, com demonstradas e graves consequências sobre a afluência de tráfego na

concessão. A resposta seria a mesma.

Em suma, o risco de procura que porventura corra por conta do cocontratante não pode

aplicar-se a todas as causas ou eventos que possam dar origem à redução de tráfego.

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O que aí se pretende dizer, de acordo com as boas práticas jurídicas em matéria de partilha de

riscos nas parcerias público-privadas, é que toda e qualquer redução de tráfego que resultar de

circunstâncias fortuitas que não configurem um caso de força maior ou que resultam de um

acto do contraente público, mas com alcance geral (vg, alterações da lei fiscal), correm por

conta da cocontratante.

É esse, e não outro, o alcance da previsão do risco da procura. Se se preferir, pode dizer-se

que a cláusula que consagra o risco de tráfego é uma cláusula geral, que só não se aplica, mas

nesse caso não se aplica mesmo, quando ocorra qualquer evento que constitua um desvio ou

regime especial a esse regime geral, como acontece com as hipóteses previstas na lei ou no

contrato que se reportem ao REF.

O cocontratante, portanto, assume o risco de tráfego e correm por sua conta as consequências

decorrentes dos eventos com impactos negativos sobre o tráfego se e na medida em que esses

eventos e suas responsabilidades não hajam sido contratualmente imputados ou assumidos

pelo Estado.

É essa, desde logo, a interpretação mais conforme ao espírito que preside às regras de

distribuição do risco nos contratos de concessão e nas PPP, que pressupõe uma alocação justa

e racional do risco que corre por conta do concessionário ou do parceiro.

Por outro lado, é essa também a interpretação mais conforme ao artigo 237º do Código Civil

— aplicável, como se sabe, aos contratos administrativos (ver, por exemplo, Marcello

Caetano, Manual, cit., p. 612) —, nos termos do qual, “em caso de dúvida sobre o sentido da

declaração, prevalece, nos negócios onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das

prestações”.

Em terceiro lugar, sustentar que todos os eventos com impacto na procura são eventos

subsumíveis no risco da procura seria fazer das concessões administrativas uma espécie de

“roleta” para os cocontratantes e constituiria um sacrifício grosseiramente injusto de quem,

por sua conta e com o seu património, se dispôs a colaborar com o Estado na prossecução de

tarefas públicas.

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Ora, como já dizia Marcello Caetano (Manual, cit. p. 611 e 612), na interpretação de qualquer

contrato administrativo “há que considerar a posição do interesse privado do contraente

particular. Se a Administração associou outra pessoa à sua actividade foi porque entendeu ser

útil o aproveitamento do interesse dessa pessoa como instrumento da realização dos fins

públicos. Deste modo, muito embora o contraente particular seja sempre um colaborador na

realização do interesse público, o seu interesse privado deve ser respeitado na medida em que

os termos do contrato o imponham e que a realização integral dos fins administrativos o exija,

segundo a lógica da livre vinculação contratual”.

E adiantava: “a destruição do interesse privado do contraente particular não só não pode estar

estabelecida no contrato, como seria contrária ao espírito da estipulação contratual: o interesse

do particular é um incentivo da eficácia da actuação que, por via do contrato, a Administração

quis aproveitar em seu benefício e que é preciso manter por se ter reconhecido advirem daí

vantagens recíprocas”.

Esta distinção entre risco de tráfego e eventos com impacto no tráfego, por um lado, e entre a

cláusula geral do risco de tráfego e as cláusulas especiais de assunção da “responsabilidade

pelo equilíbrio” por parte do Concedente — conduzindo à preferência pela aplicação das

cláusulas especiais sempre que haja um evento nelas subsumível — é a única que viabiliza

um entendimento equilibrado da distribuição de risco inerente aos contratos.

12.2.3. Com impacto específico na situação contratual do cocontratante

Quanto às alterações ao regime fiscal, o STA já entendeu que as mesmas não consubstanciam

uma alteração das circunstâncias, nos acórdãos de 17.05.1995 (p. 18848) e de 21.12.1995

(018575).

Uma outra questão que pode colocar-se é saber se, quando há uma imposição (legal ou

regulamentar) de taxas, deve ou não atender-se ao valor da prestação pública como causa

eventualmente excludente do dever de REF.

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Com efeito, a taxa, se o for realmente, tem subjacente uma prestação de um serviço público

(lato senso) concreto e individualmente utilizado pelo sujeito passivo, ou seja, não um serviço

— por muito importante que ela seja do ponto de vista dos interesses da colectividade —

prestado de forma indistinta a um conjunto (mais ou menos determinado) de pessoas, mas,

como se refere no artigo 4º/2 da Lei Geral Tributária, a “prestação concreta de um serviço

público”.

As taxas devidas especificamente pela prestação de serviços públicos pressupõem, portanto,

como costuma assinalar a doutrina e o Tribunal Constitucional, a “utilização de serviços

públicos individualizados”, de que o sujeito passivo seja concretamente destinatário, como

sucede, por exemplo, com as propinas pagas pela prestação do serviço de educação pública,

com as taxas moderadoras, pela prestação de serviços públicos de saúde, com a taxa de

justiça, pela prestação de serviços de justiça, com as taxas emolumentares, pela prestação de

serviços registais, com as taxas de certificação pública, devidas pela certificação de produtos

para efeitos da sua comercialização, etc.

Em suma, a lógica das taxas assenta num esquema de reciprocidade jurídica, do tipo du ut des

(“dou para que me dês” ou “dou se me deres”), por força da qual um dos sujeitos da relação

tributária (o sujeito passivo) está obrigado a efectuar uma prestação pecuniária e o outro (o

sujeito activo) obrigado a efectuar uma concreta e específica prestação de serviço público.

Em nossa opinião, pode dizer-se que, em geral, o facto de ir associada uma prestação de

serviço público não afasta o direito à reposição do equilíbrio financeiro.

Na verdade, o que releva para efeitos de aferição do direito à reposição do equilíbrio

financeiro é o facto de as taxas resultarem de um acto do Poder, com impacto específico no

contrato, alterando a equação financeira original.

E isto independentemente de os novos encargos a suportar terem ou não como contrapartida

uma prestação de serviços, pois a verdade é que esses novos encargos financeiros foram

juridicamente impostos ao co-contratante, sem o concurso da sua vontade.

Ora, não pode um contraente público impor um serviço ao seu co-contratante — sem ou

contra a sua vontade — e pô-lo a pagar por isso, por preço autoritária e unilateralmente

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fixado, sem prova mínima da sua correspectividade, alegando depois que não há qualquer

dever de reposição do equilíbrio financeiro da concessão porque há um serviço prestado...

Como qualquer pessoa compreenderá, admitir isso seria colocar os concessionários numa

posição de gravíssima fragilidade e permitiria perigosos abusos aos concedentes.

Aliás, é por esse motivo que o critério da reposição do equilíbrio financeiro das concessões

em geral não é esse (o de haver ou não um concreto ou difuso serviço prestado), mas o da

existência de um “acto do poder” que altera as condições da exploração da concessão.

Só se admitiria a ponderação de tese contrária no caso de o serviço público subjacente às

taxas fosse prestado em benefício directo do cocontratante, é dizer, de se tratar de um serviço

que o avantajasse patrimonialmente no exercício da actividade, permitindo-lhe, por exemplo,

reduzir os custos estimados em termos proporcionais ao custo das tarifas.

12.3. A regulação contratual da alteração das circunstâncias

Em muitos contratos, sobretudo de concessão, faz-se referência específica, entre os eventos

potencialmente geradores do dever de reposição do equilíbrio financeiro, às alterações

legislativas, e não, digamos assim, a qualquer acto do poder público, como os regulamentos

ou os actos administrativos.

A questão que se coloca é então a de saber se porventura se quis, com isso, limitar

contratualmente os casos de eventos que podem implicar a REF dos contratos, sobretudo

porque em muitos casos desses se trata de bases de concessões aprovadas pelo legislador, com

força suficiente, portanto, para derrogar o regime constante do CCP.

É matéria que pode depender da interpretação do contrato em causa, naturalmente, mas, em

geral, julgamos que se trata de uma expressão imperfeita da realidade que se pretende

abranger.

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Com efeito, apesar do teor verbal dessas cláusulas ou bases, deve entender-se que irá incluída

aí qualquer alteração por acto do Poder, venha ele nas vestes de lei ou nas vestes de

regulamento (ou, claro, sob a forma de acto administrativo).

O que interessa é que haja uma alteração que assenta num acto exterior ou estranho aos

poderes públicos contratuais do contraente público, sendo irrelevante saber qual a concreta

forma por que se revela a medida lesiva, se o seu invólucro formal se apresenta sob a forma

de um acto legislativo ou de um acto regulamentar, porque, bem vistas as coisas, a ambos

deve obediência a contraente privado, produzindo ambos (ou sendo ambos capazes de

produzir) o mesmo efeito ou impacto negativo e, portanto, devendo aplicar-se-lhes o mesmo

regime.

Aliás, num sistema político-constitucional como o nosso, que reconhece ao Governo poderes

legislativos normais (decreto-lei) e regulamentares (resoluções, portarias, despachos

normativos, etc.), fazer assentar o critério da existência do dever contratual de reposição do

equilíbrio financeiro na forma (legal ou regulamentar) por que determinado acto vem

“trajado” conduziria a resultados intoleráveis, para não dizer absurdos.

Bastaria que o Governo passasse a dispor sob a forma de regulamento — acolitado ou não

numa lei prévia — para que, em fraude ao regime do contrato, as medidas por ele aprovadas

com impacto específico sobre as actividades contratadas não tivessem qualquer consequência

em sede de reposição do equilíbrio perdido.

Deve portanto entender-se que o que releva, para efeitos de REF, não é a forma do acto, mas a

sua natureza, enquanto acto do poder público geral ou extracontratual.

13. A alteração das circunstâncias por decisão do contraente público fora do exercício

dos seus poderes de conformação contratual

13.1. Considerações gerais: casos incluídos e excluídos

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A primeira hipótese equacionada pelo legislador respeita à “alteração anormal e imprevisível

das circunstâncias imputável a decisão do contraente público, adoptada fora do exercício dos

seus poderes de conformação da relação contratual, que se repercuta de modo específico na

situação contratual do cocontratante” [artigo 314º/1, alínea)].

Excluem-se portanto, em primeiro lugar, as modificações do contrato, porque não são, no

sistema do CCP, casos de alteração de circunstâncias, a saber, a modificação por acordo das

partes, a modificação unilateral por decisão do contraente público adoptada no exercício dos

seus poderes de conformação da relação contratual, a modificação do contrato (ou do regime

do contrato) por lei ou por regulamento e a modificação por decisão judicial. É verdade que

alguns destes casos podem ter subjacente uma alteração das circunstâncias e até configurar,

para o seu destinatário, uma alteração das circunstâncias (como pode acontecer com a

modificação unilateral por decisão do contraente público adoptada no exercício dos seus

poderes de conformação da relação contratual e a modificação do contrato ou do seu regime

por lei ou por regulamento), mas há para eles uma regulação específica, fora dos quadros da

alínea a) do artigo 314º do CCP.

Em segundo lugar, excluem-se do referido preceito as hipóteses de alteração das

circunstâncias não imputável a decisão do contraente público (artigo 314º/2).

Por outro lado, já ficaram vistos no ponto […] o sentido e alcance dos outros requisitos gerais

de relevância da alteração das circunstâncias, como a anormalidade e imprevisibilidade da

alteração, o seu impacto fora dos riscos próprios do contrato, a repercussão específica na

situação contratual do cocontratante e a afectação dos princípios da boa fé.

O facto de admitir que uma decisão imputável ao contraente público fora do exercício dos

seus poderes de conformação contratual possa provocar uma alteração das circunstâncias

subjacentes ao contrato significa, primeiro que tudo, que se entende que a existência de um

contrato, em que ele é parte, não representa um esvaziamento dos poderes de que o contraente

público seja titular no plano do direito extracontratual.

É verdade que, numa certa perspectiva, podia entender-se que, com o contrato administrativo,

o contraente público ficaria investido numa situação de supremacia jurídica em ordem à tutela

do interesse público, o que lhe permitira modificar o contrato por decisão sua ou até decretar a

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sua resolução, e que, justamente em contrapartida disso, ele ficaria, na parte em que tivesse

contratado, impedido de exercer os seus poderes públicos gerais, adulterando as

circunstâncias do negócio.

Não é assim, como se sabe: por um lado, a Administração Pública não fica

desresponsabilizada, político-administrativamente, perante a colectividade, quanto à eficiente

realização dos interesses públicos — seja em geral, seja em especial, relativamente àqueles

cuja realização passa em parte por um contrato já celebrado —, nos tão variados domínios em

que se faz sentir a sua intervenção, e, por outro lado, o interesse público é por definição uma

“grandeza” variável, permanentemente mutável, hoje mais do que outrora, não podendo por

isso admitir-se que fique ela amarrada a um contrato e às suas circunstâncias, que a

impedissem de actuar de acordo com as exigências da função, nem tão pouco se

compreenderia que, em homenagem aos interesses do ou dos cocontratantes, ficasse a ordem

administrativa impedida de evoluir em todos os planos socialmente relevantes postas à guarda

da Administração Pública. E se não fica portanto a Administração Pública impedida de levar a

cabo as suas tarefas, menos ainda fica o legislador, cujo poder se caracteriza pela

revisibilidade e, logo, a quem se pede que vá actualizando e renovando a ordem jurídica de

acordo com os melhores critérios de justiça, segurança e bem estar-social.

Como disse sugestivamente o juiz Rowlatt em 1921, num caso que marcou o direito dos

“government contracts” britânicos, “the Crown cannot by contract hamper its freedom of

action in matters which concern welfare of the state”240.

Há portanto, momentos em que o contraente público se descobre “Príncipe” ou em que

precisa de o ser: é a tais hipóteses que se reporta a hipótese da alínea a) do artigo 314º/2241.

240 Citado por J. Mitcheel, The contracts of public authorities – A comparative study, London, 1954, p. 27. 241 A expressão é de Maurice Hauriou, citado por P. Terneyre (1989: 150 e 151), que afirmava o seguinte a

propósito da susbsistência dos poderes extracontratuais do contraente público: “Il y a fait du prince lorsqu’une administration publique, étant liée avec un particulier par un de ces contrats qu’entraîne l’exécution des services publics, un marché de fournitures ou un marché de travaux publics, apporte un changement au contrat par un de ces actes où se révèle la puissance publique qui, après avoir condescendu à traiter, à marchander, à se lier, tout à coup se retrouve «Prince», c’est-à-dire «absolue» au sens originaire du mot, affranchie de tout lien, et cela, dans des circonstances telles que cette manifestation du pouvoir absolu est de nature à modifier les éléments de la situation contractuelle qu’elle avait auparavant laisse s’établir”.

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13.2. A decisão imputável ao contraente público

13.2.1. O contraente público

O primeiro requisito específico da hipótese da alínea a) do artigo 314º/1 do CCP é que a

decisão geradora da alteração das circunstâncias seja imputável ao contraente público. O

legislador considerou portanto que o critério adequado para separar as situações da alínea a)

do artigo 314º/1 do CCP das previstas no artigo 314º/2 era o critério da personalidade

jurídica242. Contraente público, para este feito, é assim, não o órgão em que se integra (como

seu titular ou membro) a pessoa singular que assina o contrato, mas a pessoa colectiva

(pública ou privada) parte no contrato (a “entidade”, para utilizar a expressão do artigo 3º do

CCP). Assim, se quem outorga o contrato, se quem o assina, é o presidente da câmara, parte

no contrato (contraente público) é o município, pelo que qualquer acto do outorgante, da

própria câmara ou da assembleia municipal é acto do contraente público para este efeito. Um

acto que seja imputável ao Governo ou a um ministro seu, ou à Assembleia da República, não

será, relativamente a esse contrato, um acto imputável ao contraente público. Da mesma

forma, se quem outorga o contrato é um ministro, parte no contrato é o Estado, pelo que

qualquer acto imputável a um órgão do Estado, pessoa colectiva, seja um outro ministro, seja

o conselho de ministros, seja um director-geral, etc., será um acto imputável ao contraente

público.

A maior dúvida poderia saber se, para estes efeitos, os actos, as leis, da Assembleia da

República devem ou não ser consideradas como imputadas ao contraente público, quando

quem o outorgue seja, por exemplo, um ministro243.

A resposta, olhando à letra da lei, é positiva, na medida em que, nos termos do artigo 3º/1 do

CCP, entende-se por contraentes públicos, “para efeitos do presente Código”, as “entidades

referidas no número 1 do artigo anterior”, aparecendo aí, na respectiva alínea a), o “Estado”,

conceito em que a doutrina subsume a Assembleia da República”244.

242 Cláudia Saavedra Pinto [2012: 77 e 149 e seguintes]. 243 Em sentido negativo, Cláudia Saavedra Pinto [2012: 79]. 244

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13.2.1.1. Os contratos administrativos da administração indirecta

A questão está em saber se, no caso dos contratos administrativos celebrados pela

administração indirecta das pessoas colectivas territoriais, uma decisão imputável a estas deve

ser considerada, para estes efeitos, uma decisão do contraente público.

Por decisão do contraente público adoptada fora do exercício dos seus poderes de

conformação contratual

A questão está em saber se devem incluir-se neste regime todas as medidas tomadas pelo

contraente público na sua qualidade de poder público geral ou se há que estabelecer aqui uma

distinção entre as medidas gerais tomadas por referência a um específico sector (saúde,

infraestruturas rodoviárias, infraestruturas portuárias, energia, etc.), ou até mesmo por

referência a uma categoria de contratos, e as medidas gerais em sentido estrito, adoptadas sem

referência a um sector245.

A questão, como se sabe, não é meramente teórica, pois o legislador do CCP estabeleceu

diferentes consequências jurídicas para os casos em que a medida

13.6. As consequências da actuação extracontratual do contraente público

13.6.1. O dever de reposição do equilíbrio financeiro

245 Carla Amado Gomes, por exemplo, considera que seria mais adequado manter as “medidas gerais adoptadas

pela Administração contratante, relativas a uma categoria de contratos” no quadro do regime do “fait du Prince/poder de modificação unilateral” e enquadrar no regime da imprevisão “as medidas gerais adoptadas pelo legislador, que se reflectem sobre os contratos administrativos” — adiantando ainda que “o desdobramento funcional do Governo pode perturbar a clareza deste entendimento, o que poderá levar o juiz a conceder ao co-contratante a alternativa entre a “indemnização de imprevisão” e a indemnização por modificação unilateral” (Risco, cit., 458, em nota).

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A reposição do equilíbrio financeiro do contrato por motivo de alteração das circunstâncias

imputável a decisão extracontratual do contraente público é mais complexa do que aquela que

tem lugar no quadro da modificação unilateral do contrato. Enquanto aí bastará, como se viu,

a prova dos “encargos adicionais”, aqui ela não será em princípio de funcionamento tão

automático, recaindo sobre o cocontratante o ónus da prova dos prejuízos efectivamente

sofridos e do respectivo nexo de causalidade, que pode ser especialmente complexo

considerando que não há uma modificação do contrato directamente reportada ao conteúdo

das prestações económicas das partes, mas a uma condição normativa externa que implicou

uma adulteração do contrato.

Além disso, a reposição do equilíbrio financeiro não há-de referir-se ao equilíbrio matemático

inicial das prestações acordadas, pois que está associado ao princípio da protecção da

confiança legítima dos particulares que contratam com a Administração Pública. O direito à

reposição pressupõe, assim, que a margem normal de lucro, avaliada em termos actualizados,

seja perturbada pela medida ínsita no acto de Poder, que aquilo que ele poderia legitimamente

ou razoavelmente obter ou continuar a contar receber pela colaboração que presta à

Administração na prossecução do interesse público lhe seja agora negado por um acto

unilateral de poder.

Destacamos especialmente este aspecto, associado à ideia de boa fé contratual, porque parece

haver dados objectivos que permitem concluir que a concessão do Terminal Sul foi atribuída

em condições excepcionalmente vantajosas, desequilibradas, mesmo, a favor da

Concessionária, permitindo-lhe obter um lucro elevadíssimo, anormal por referência ao sector

de actividade económica, em comparação com outros terminais do país.

A comprovar-se essa afirmação – e não interessando para agora as razões que terão justificado

esse “pacto leonino” – , a verdade é que, em casos como esse, em que, manifestamente,

alguém retira benefícios anómalos de um contrato administrativo, em que há um

aproveitamento económico excepcional de uma concessão administrativa, não tem sequer de

se reconhecer o direito a uma indemnização. É a única solução possível à luz dos princípios

da justiça e da boa fé (artigos 6º e 6ºA do CPA), que impõe dar a cada um apenas aquilo que

lhe é devido segundo um critério justo.

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A obrigação de reposição do equilíbrio financeiro integra a garantia dos particulares contra o

potencial perigo de arbítrio que decorre do exercício dos poderes (exorbitantes do direito

privado) que se reconhecem à Administração, mesmo quando utiliza instrumentos contratuais.

Pressupõe a defesa da parte mais fraca, mais vulnerável e visa proteger os particulares contra

um eventual arbítrio que os desfavoreça – não deve poder ser utilizada para recuperar

benefícios comprovadamente excessivos, sobretudo quando esse desequilíbrio contratual, para

além de ser, em si, injustificado, tem efeitos colaterais que prejudicam fortemente o interesse

público na boa gestão do domínio portuário.

Erro sobre a base do negócio

Como se sabe, segundo o disposto no art. 185º/2 do Código de Procedimento Administrativo,

são “aplicáveis a todos os contratos administrativos as disposições do Código Civil relativas à

falta e vícios da vontade”.

E na hipótese de que cuidamos há, de facto, um contrato administrativo celebrado por erro na

formação da vontade, resultante de ambas as partes terem representado uma determinada

circunstância (que as levou a contratar ou a contratar em certos termos) como sendo certa e

existente, mas que, afinal, não era verdadeira. Há então um negócio em que a vontade

declarada pelas partes corresponde à sua vontade real ― à vontade que realmente tinham do

negócio, dados os pressupostos de que partiram ― mas formada com base em pressupostos

erróneos ou falsos.

E é de um erro juridicamente relevante que se trata246, por ser de presumir que a vontade

hipotética das partes, caso conhecessem as circunstâncias realmente existentes, seria, pelo

246 Sobre os requisitos comuns de relevância do erro, ver, entre outros, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito

Civil, 2005, p. 157.

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menos, a de não celebrar o negócio nos termos em que concretamente o fizeram, mas em

termos diferentes, com prestações remuneratórias diversas.

Havendo aí, portanto, uma ignorância ou deficiente representação da realidade contemporânea

da data da celebração do negócio ― e sendo ela juridicamente relevante, porque teve

influência no conteúdo do clausulado contratual ―, importa agora saber que espécie ou

modalidade de erro foi esse em que incorreram as partes contratantes.

Numa leitura mais apressada do nosso caso, poderia pensar-se que o erro sobre a realidade

tributária ou tarifária aplicável ao estacionamento seria subsumível no regime do artigo 251º

do Código Civil, segundo o qual “o erro que atinja os motivos determinantes da vontade,

quando se refira […] ao objecto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247º” ―

é dizer, torna o negócio anulável “desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar

a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”.

Tratar-se-ia, em suma, de um erro sobre as qualidades de um certo bem, que é objecto do

contrato ― sabendo-se, como se sabe, que a modalidade do erro sobre o objecto abrange tanto

o objecto jurídico (conteúdo) como o objecto material do negócio247 e, dentro deste, tanto a

sua identidade (error in corpore) como as suas qualidades (error qualitatis)248.

Mas não é assim.

Efectivamente, quando se pensa num erro sobre as qualidades de um certo objecto, pensa-se

claro nas suas qualidades intrínsecas, na “respectiva constituição material” e naquelas

“condições factuais que, pela sua natureza e duração, influem no valor ou no préstimo desse

objecto”249 ― é dizer, naquelas características ou condições que são “consideradas essenciais

para a função económico-social da coisa”250, designadamente, das utilidades que o declarante

equacionava ela poder prestar (v.g., alguém compra um terreno julgando erradamente que ele

tem água). 247 Neste sentido, na sequência do que já resultava do artigo 661º do Código Civil de Seabra, v. Carvalho

Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 2001, p. 161. 248 Assim, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 1987, p. 235. 249 Manuel de Andrade, Teoria …, cit., p. 251. 250 Luis Cabral de Moncada, Lições de Direito Civil, 1995, p. 632.

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São qualidades destas, inerentes ao bem, “objectivas”251, que fundam o erro sobre o objecto.

Ora, não foi isso que aconteceu no caso em apreço: o erro em que incorreram os contratantes

não tem que ver com as qualidades intrínsecas do bem dominial (das zonas de

estacionamento), como sucederia se houvesse engano quanto ao número de lugares

disponíveis em cada zona posta a concurso, ou coisa similar.

O que sucedeu, muito diversamente, foi que ambas as partes pressupuseram a ocorrência de

determinadas circunstâncias (que as tarifas a cobrar aos utentes pelo uso do domínio

municipal eram X e Y) sobre as quais construíram a sua mútua vontade negocial ―

oferecendo a concessionária, com base nisso, uma certa renda percentual a pagar

mensalmente ao concedente e um certo valor forfait a entregar-lhe nos dois primeiros anos de

contrato, o que o concedente aceitou ―, tendo-se vinco mais tarde a descobrir que, afinal, tais

circunstâncias não eram verdadeiras (pois as tarifas a cobrar eram realmente de X-1 e Y-1).

Vale isto por dizer que terá havido um “erro bilateral sobre condições patentemente

fundamentais do negócio jurídico”252, ou seja, que eram erróneas as circunstâncias em que as

partes fundaram a decisão de contratar: soubessem elas quais eram as circunstâncias (leia-se,

tarifas) reais e não teriam celebrado o negócio (se o erro era essencial) ou não teriam

celebrado o contrato nos precisos termos em que o fizeram (se o erro foi incidental)253.

É, portanto, com um erro sobre a base negocial (previsto no ar-tigo 252º, n.º 2, do Código

Civil) que se lida aqui.

Ou seja, com um caso em que supostamente o concessionário254 “aceitaria (ou, segundo a boa

fé, deveria aceitar) um condicionamento do negócio à verificação da circunstância sobre que

incidiu o erro, se esse con-dicionamento lhe tivesse sido proposto pelo errante — e isto

porque houve representação comum de ambas as partes da existência de certa circunstância,

sobre a qual ambas edificaram a sua vontade negocial” 255.

251 Como lhes chama Carvalho Fernandes, Teoria ..., cit., p. 161. 252 Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, II Vol., edição de 1995, p. 515 e 516. 253 Sobre a distinção entre erro essencial e incidental, v. Mota Pinto, Teoria …, cit., p. 507 e 508. 254 Ou o concedente, é indiferente, porque aqui são ambos (em diversos momentos do processo negocial)

declarantes e declaratários. 255 Mota Pinto, Teoria ..., cit., p. 516.

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E quais são, então, as consequências que a lei liga à existência de um erro destes, sobre a base

do negócio ?

Estabelece o art. 252º do Código Civil que, se o erro “recair sobre as circunstâncias que

constituem a base do negócio, é aplicável […] o disposto sobre a resolução ou modificação do

contrato por alteração das circunstâncias vigentes no momento em que o negócio foi

concluído”, remetendo-se assim a disciplina desse erro para o disposto no art. 437º do mesmo

Código.

Preceitua este, por sua vez, que (se o negócio tiver sido celebrado nessas circunstâncias

erróneas) “tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo

juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ele assumidas afecte gravemente

os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato”.

Ora, como as taxas efectivamente cobráveis pela concessionária, ao abrigo do presente

contrato, serão inferiores às que lhe haviam sido “oferecidas” nos documentos do concurso (e

às do contrato que se celebrou), ninguém questionará que exigir-lhe o cumprimento das

obrigações ou contrapartidas económicas por si assumidas (em correspondência com aquelas

suas expectativas) quanto à renda percentual a pagar mensalmente ao concedente e à verba

forfait a entregar-lhe nos dois primeiros anos de contrato, que exigir-lhe isso, dizia-se,

constituiria uma violência jurídica, contrária ao princípio da boa fé, e envolveria um risco que

nenhum contrato comporta.

Pode assim concluir-se que a concessionária tem efectivamente, como se dispõe nesse art.

437º do Código Civil, direito ou à resolução do contrato ou à sua modificação, segundo juízos

de equidade.

Sob esta perspectiva, a solução do caso da Consulta está dependente de saber qual seria

verdadeiramente a vontade hipotética da concessionária, ou seja, a vontade que ela teria tido,

se não fosse o erro em que incorreu: se se demonstrar que, se não fosse a representação

inexacta da realidade, ela não teria celebrado qualquer contrato de concessão (erro essencial),

então há lugar à resolução do negócio; se se demonstrar que, se não fosse o erro, a

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concessionária teria, mesmo assim, celebrado o negócio, embora em termos diferentes (erro

incidental), então há lugar à modificação do negócio segundo juízos de justiça e equidade.

A classificação do contrato em análise como contrato administrativo típico tem ainda uma

outra consequência: no direito público, ao contrário do que sucede no direito privado (onde

predomina o princípio da autonomia da vontade), prevalece o princípio da legalidade, pelo

que são muito curtas as margens de que as partes dispõem para alterarem o regime legalmente

consagrado256.

Quando o acto do Poder provenha de sujeito diferente do contraente público, a primeira

questão que se coloca é saber quem responde por isso, é dizer, as consequências jurídicas,

sejam elas quais forem (reposição do equilíbrio do contrato, indemnização, compensação,

modificação do contrato, etc.) são imputáveis a quem? Ao autor do acto ou ao contraente

público?

Teoricamente, há razões para afirmar a “responsabilidade” de qualquer um deles.

O autor do acto justamente por essa razão, ou seja, por dele a causa da alteração das

circunstâncias e de, portanto, segundo um princípio da imputação das consequências ao

respetivo autor, se compreender que seja ele chamado a responder por elas.

No entanto, pode também dizer-se que o que lhe cabe, no quadro das suas tarefas, é velar pela

melhor realização possível do interesse posto a seu cargo, sem os constrangimentos

resultantes de contratos que outros (pertencentes à esfera do sector público) hajam

eventualmente celebrado com terceiros. Por outras palavras, se não foi ele que se

comprometeu contratualmente com quem quer que seja e se não teve qualquer controlo sobre

os termos e condições com que outros, no quadro das respectivas atribuições, contrataram

256 cfr. neste sentido, Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos,

Almedina, 2003, pp. 705 e ss.

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com terceiros, pode, em certo sentido, designadamente, no contexto do princípio da protecção

da confiança, faltar justificação jurídica suficiente para que se imputem a si, autor de um acto

lícito, as consequências jurídicas financeiras resultantes do eventual desequilíbrio de um

contrato ao qual ele é estranho.

O contraente público por ser ele quem se comprometeu com a sua parte no contrato rebus sic

standibus e de portanto, deixando as coisas de ser como pressuposto, se compreender que seja

esse contraente público, e não o autor do acto, a responder pelo desequilíbrio contratual. Além

disso, é também muito provável que a alteração das circunstâncias se tenha projectado em

matérias relacionadas com as suas atribuições legais, no leque das tarefas por que esse

contraente público é legalmente responsável. Com efeito, se a nenhuma entidade do sector

público é dado celebrar contratos senão para a prossecução das suas atribuições legais, o que é

de esperar é que a alteração das circunstâncias se tenha projectado justamente nesses

domínios, pelos quais ele é responsável perante a colectividade. E se é assim, é também ele

que deve responder perante o seu cocontraente por tudo quanto, em prejuízo deste, se haja

alterado, em benefício daquele (ou da colectividade), em tais domínios ou matérias.

Em suma, há razões que podiam justificar a imputação das consequências relacionadas com a

alteração das circunstâncias ora ao autor do acto, ora ao contraente público.

Marcello Caetano, porém, respondia a esta questão (quem é que responde “se a alteração de

ordem contratual é devida a acto de autoridade proveniente de pessoa colectiva diferente do

contraente público”) de forma a não deixar dúvidas: “a responsabilidade é sempre do

contraente”257/258. E justificava esta sua posição do seguinte modo: “o interesse público nunca é

alienado e, por isso, a entidade administrativa contraente é que deve suportar as

consequências resultantes da sua realização em tudo quanto, pelo contrato, não haja sido

posto a cargo do particular. (…) Esta responsabilidade do contraente público por acto alheio

compreende-se melhor se considerarmos, por exemplo, a concessão de serviço público

municipal. O serviço, pelo facto de ser concedido, não deixa de pertencer ao município que

conserva o poder de o reorganizar, regulamentar e actualizar. O concedente institui um

serviço e entregou em certos termos a sua exploração. Se amanhã uma lei, fruto da soberania

257 Manual, cit., 621. 258 No mesmo sentido, lau…, p. 524.

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do Estado, alterar a organização e as condições de desempenho do serviço municipal

concedido, de tal modo que o concessionário sofra por isso prejuízo, quem tem de suportar

essas repercussões financeiras é o dono do serviço, o Município, gestor do interesse público

em cujo benefício a lei o modificou. O contraente público não responde por ter culpa: mas

sim por ser ele quem representa os beneficiários dos encargos impostos ao património de um

só ou de alguns. Não seria justo, nem legal, lançar sobre a economia de uma única empresa o

peso correspondente a benefícios em proveito de todos, apenas pelo facto dela se ter prestado

a colaborar com a Administração. Esta que dissemine depois pelos contribuintes, mediante o

imposto, aquilo que pagar259”.

Para Marcello Caetano seria portanto o contraente público, e não o autor do acto, a responder

pelas consequências contratuais resultantes da alteração das circunstâncias consubstanciada

no acto de um sujeito público estranho ao contrato.

É essa também a solução constante do CCP.

Com efeito, depois de se estabelecer no artigo 314º/1, alínea a), que o cocontratante tem

direito à reposição do equilíbrio financeiro quando haja uma “alteração anormal e

imprevisível das circunstâncias imputável a decisão do contraente público, adoptada fora do

exercício dos seus poderes de conformação da relação contratual, que se repercuta de modo

específico na situação contratual do co-contratante”, dispõe-se no subsequente número 2 que

“os demais casos de alteração anormal e imprevisível das circunstâncias conferem direito à

modificação do contrato ou a uma compensação financeira, segundo critérios de equidade”.

É verdade que não se refere aí, pelo menos em termos expressos, que esse direito (do

cocontratante) é para ser feito valer contra o contraente público, mas é a interpretação mais

conforme com a lei.

Em primeiro lugar, porque é a solução que mais se adequa ao contexto do preceito, que se

reporta às consequências contratuais de certos eventos, mais concretamente, às pretensões

(reposição do equilíbrio financeiro, modificação do contrato ou compensação financeira) que

259 Manual, cit., 621 e 622.

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188

o co-contratante pode fazer valer contra o seu parceiro público (não contra outros sujeitos)

quanto ocorram certos eventos.

Em segundo lugar, porque, de entre as duas consequências postas no artigo 314º/2 do CCP,

uma (a modificação do contrato) só pode valer perante a outra parte no contrato. É verdade

que a outra (a compensação financeira), em termos teóricos, tanto podia valer contra o

contraente público como perante o autor do acto, mas é pouco verosímil que, num mesmo

preceito, o legislador pretendesse, sem dar nota mínima disso, regular dois direitos do co-

contratante com distinto sujeito passivo ou, menos verosímil ainda, pretendesse estabelecer

que o direito a uma compensação financeira pudesse ser exercido ou contra o contraente

público ou contra o autor do acto.

Em terceiro lugar, sendo claro que o artigo 314º/1 se reporta a direitos contratuais do co-

contratante perante o contraente público, devemos presumir que se o legislador quisesse, no

artigo 314º/2, que os direitos, rectius, um dos direitos a que aí faz referência (a compensação

financeira, não a modificação do contrato) fosse extracontratual, com um regime bem diverso

daqueles primeiros, sem que, repete-se, disso não tivesse dado mínima nota ao intérprete.

Em suma, o direito à modificação do contrato ou a uma compensação financeira por força de

uma alteração das circunstâncias fundada em acto de autoridade pública é para ser feito valer

contra o contraente público.

Uma questão que pode colocar-se é saber se a solução se mantém mesmo quando o acto da

autoridade pública tenha em vista a tutela de interesses próprios seus e não do contraente

público. Com efeito, a tese de Marcello Caetano assentava na ideia de que o contraente

público devia suportar os encargos contratuais da alteração das circunstâncias porque essa

alteração se projectava sobre matéria do seu interesse e da qual ele seria o beneficiário.

Recordando as suas palavras: “o concedente institui um serviço e entregou em certos termos a

sua exploração. Se amanhã uma lei, fruto da soberania do Estado, alterar a organização e as

condições de desempenho do serviço municipal concedido, de tal modo que o concessionário

sofra por isso prejuízo, quem tem de suportar essas repercussões financeiras é o dono do

serviço, o Município, gestor do interesse público em cujo benefício a lei o modificou. O

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189

contraente público não responde por ter culpa: mas sim por ser ele quem representa os

beneficiários dos encargos impostos ao património de um só ou de alguns”.

Ora, pode acontecer que a alteração introduzida tenha em vista a tutela de interesses que

cabem legalmente ao autor do acto, ou seja, tenha em vista a regulação de assuntos do qual é

ele (ou a comunidade por ele representava) o beneficiário. Por exemplo, há matérias que têm

segmentos nacionais e locais ou autárquicos, como é o caso do ordenamento do território e do

urbanismo. Assim, havendo um contrato celebrado entre um particular e um município que

tenha incidência urbanística, pode uma nova lei na matéria, com repercussões nesse contrato,

ser ditada por razões de interesse nacional. Um outro exemplo é o Estado aprovar uma lei que

imponha uma nova taxa sobre as concessões de um determinado sector que reverta para um

organismo regulador. Também aqui há uma alteração das circunstâncias determinada por acto

do Estado, mas não necessariamente por razões de interesse público local.

A questão que se coloca é saber se, em casos como estes, se mantém a “responsabilidade” do

contraente público ou se, falhando aquela que será em princípio a ratio do artigo 314º/2 do

CCP, deve proceder-se a uma interpretação restritiva (ou a uma redução anaógica) desse

preceito e optar excepcionalmente pela “responsabilidade” do autor do acto.

Por nós, deve manter-se a regra da lei: seja porque as consequências contratuais devem ser

feitas valer perante o contraente público — há aliás uma delas (a modificação do contrato)

que só contra ele pode ser exercida —, seja porque também é assim que acontece quando se

trata de casos fortuitos, seja porque o facto de o contraente público responder perante o seu

cocontratante não significa que não possa depois haver, da sua parte, um acção com vista a

obter, do autor do acto, um ressarcimento pelos prejuízos que haja suportado.

Não se trata de um “direito de regresso”, em sentido técnico, mas de fazer responder pelos

encargos aquele que beneficia da nova regulação.

Ponto é que haja justificação ou habilitação jurídica para o efeito, que não é ponto de todo

evidente.

Em casos como este, não podendo chamar-se á colacção figuras de base contratual (como a

própria alteração das circunstâncias ou a imprevisão ou o acto do Poder) — justamente

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190

porque não há um laço contratual entre o contraente público e o autor do acto —, mas figuras

de âmbito geral, como a responsabilidade por acto lícito, a responsabilidade pelo sacrifício, o

próprio princípio da protecção da confiança.

A questão colocada (quando o acto causador da alteração das circunstâncias provenha de

sujeito diferente do contraente público, quem responde pelas consequências jurídicas daí

resultantes, o autor do acto ou o contraente público?) tem também interesse para determinar a

natureza do direito do cocontratante e o respectivo regime.

Na verdade, se tal direito fosse para ser legalmente exercido contra o autor do acto ele teria

natureza extracontratual, por não haver entre esses dois sujeitos qualquer contrato.

Se, diversamente, tal direito é para fazer valer contra o contraente público, esse direito

poderia, em tese, ter natureza extracontratual, se devesse prevalecer aqui a ideia de que se

trata de um direito atribuído por lei (e não pelo contrato) ao co-contratante ou a ideia de que o

acto em que se funda o direito do co-contratante tem essa natureza (extracontratual) e é em

função disso que deve determinar-se também a natureza de tal direito.

Aliás, este poder de rescisão ― como, de resto, todos os demais previstos no artigo 180º do

CPA ― encontra o seu domínio natural ou nuclear de aplicação justamente nos chamados

contratos de colaboração subordinada, como sucede com as concessões translativas.

Caracterizados por associarem duradouramente uma pessoa ou empresa ao cumprimento de

atribuições ou de interesses públicos, por comprometerem essa pessoa ou empresa no

desempenho regular, satisfatório e contínuo de atribuições que são cometidas pela lei, em

primeiro plano, a uma Administração Pública, em cuja realização aquela fica a colaborar,

esses contratos envolvem, de forma particularmente intensa e íntima, o interesse da

colectividade.

O contrato administrativo entre a estabilidade e a instabilidade

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191

Capítulo I — Introdução

15. Apresentação: um tema clássico pleno de actualidade

16. O contrato: entre a “apropriação do futuro” e a “certeza da mudança”

17. Breves considerações sobre os contratos da Administração Pública

17.1. Os contratos públicos, os contratos privados da Administração Pública e os

contratos administrativos

17.1.1. Três diferentes categorias de contratos e três diferentes regimes jurídicos

17.2. A autonomia do contrato administrativo

17.2.1. Considerações gerais

17.2.2. A autonomia substantiva do contrato administrativo

17.2.2.1. A “lógica da função” e a “lógica do pacto”

Capítulo II — Modificação do contrato e alteração das circunstâncias do contrato

18. O contrato administrativo e o princípio da pacta sunt servanda

18.1. A força obrigatória do contrato administrativo

18.2. Os desvios à força obrigatória do contrato administrativo

19. A modificação do texto e do contexto do contrato administrativo

19.1. A modificação do contrato e a alteração (das circunstâncias) do contrato

19.2. A classificação das modificações do contrato administrativo

19.3. A classificação das alterações das circunstâncias do contrato administrativo

20. Os princípios e institutos associados à modificação do contrato e à alteração das suas

circunstâncias

20.1. O princípio da protecção da confiança

20.2. O princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos

20.3. O poder de modificação unilateral: sentido

20.4. O “facto do Príncipe”

20.4.1. Descrição genérica

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192

20.4.2. Os requisitos do “fait du Prince”

20.4.3. As consequências do “fait du Prince”

20.5. A imprevisão

20.5.1. Descrição genérica

20.5.2. Os requisitos da imprevisão

20.5.3. As consequências da imprevisão

20.6. O risco do negócio

20.7. O erro sobre a base do negócio

20.8. O caso de força maior

20.8.1. Descrição genérica

20.8.2. Os requisitos do caso de força maior

20.8.3. As consequências do caso de força maior

20.9. A resolução por motivos de interesse público

21. Uma proposta de sistematização dos casos de alteração das circunstâncias

21.1. As categorias relevantes da “instabilidade contratual”

21.2. A (falta de) autonomia do “facto do Príncipe” e da imprevisão

21.3. A (falta de) autonomia do caso de força maior

Capítulo III — […]

22. A modificação do contrato por acto administrativo do contraente público

22.1. O interesse público implicado no contrato administrativo

22.2. Caracterização do poder de modificação do contrato administrativo

22.2.1. Acto administrativo que altera o conteúdo ou termos das cláusulas do contrato

22.2.2. A modificação do contrato e figuras afins

22.2.2.1. A resolução parcial, a novação, a conversão, a redução e a dação em

cumprimento

22.3. Fundamentos do poder de modificação do contrato administrativo

22.3.1. A recusa do poder de modificação em caso de alteração das circunstâncias

22.3.2. As razões de interesse público

22.3.2.1. As necessidades novas

22.3.2.2. A nova ponderação de circunstâncias existentes

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193

22.4. Âmbito do poder de modificação do contrato administrativo

22.5. O interesse público e a resolução do contrato

22.6. A modificação dos contratos com “bases legais”

22.7. O regime especial das PPP

22.8. Os limites do poder de modificação do contrato administrativo

22.8.1. A inalterabilidade das “prestações principais” do contrato

22.8.1.1. Sentido:

22.8.1.2. Critério do tipo de contrato

22.8.1.3. Critério do “[…]” do contrato

22.8.2. A inalterabilidade das cláusulas financeiras

22.8.3. A “eficácia póstuma” da contratação pública

22.8.3.1. Considerações gerais

22.8.3.2. Os termos do problema: a “lógica da função” e a “scope of competition”

22.8.3.3. O regime do CCP

22.8.3.3.1. Regime geral: o “congelamento da equação adjudicatória”?

22.8.3.3.2. A excepção fundada no decurso do tempo

22.8.3.4. O regime do direito comunitário

22.8.3.5. A jurisprudência do critério das “alterações substanciais”

22.8.3.6. O pacote das directivas de 2014

22.8.3.6.1. Considerações gerais

22.8.3.6.2. Os casos previstos nas directivas

22.8.3.7. Conclusão: uma “presumption of impermissibility” nos contratos

administrativos?

22.9. O regime especial dos trabalhos a mais e dos erros e omissões

22.10. As consequências do exercício do poder de modificação do contrato

administrativo

22.10.1. Considerações gerais: mais encargos e menos encargos

22.10.2. A reposição do equilíbrio financeiro do contrato a favor do

cocontratante

22.10.3. A modificação do contrato a favor do contraente público

22.11. A ilegalidade do exercício do poder de modificação do contrato administrativo

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194

23. A modificação do contrato administrativo por acordo das partes

23.1. A autonomia das partes

23.2. Fundamentos do acordo das partes

23.3. Forma e formalidades do acordo das partes

23.4. Limites à modificação por acordo das partes

24. A modificação do contrato administrativo por decisão do tribunal

24.1. Considerações gerais

24.2. Fundamentos da modificação por decisão judicial

24.2.1. Alteração das circunstâncias

24.2.2. Razões de interesse público?

24.3. Limites à modificação do contrato por decisão do tribunal

24.3.1. Limites gerais

24.3.2. Limites em razão da autonomia das partes

24.3.3. Limites em razão da função: a formulação de valorações próprias do exercício

da função administrativa

25. A modificação do contrato administrativo pela lei

25.1. Considerações gerais: um caso não previsto

25.2. A modificação do regime legal do contrato

25.3. A modificação do contrato

Capítulo IV — […]

26. A alteração das circunstâncias do contrato administrativo

26.1. Considerações introdutórias e regime comum

26.2. Os requisitos gerais da relevância da alteração das circunstâncias

26.2.1. Alteração anormal e imprevisível das circunstâncias

26.2.2. Fora dos riscos assumidos pela parte

26.2.2.1. Esfera do risco e eventos com impacto na esfera do risco

26.2.3. Repercussão específica na situação contratual do cocontratante

26.3. A regulação contratual da alteração das circunstâncias

26.3.1. Admissibilidade (secundum, praeter e contra legem)?

26.3.2. Em especial, as cláusulas de hardship

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26.3.3. Limites à regulação contratual

26.4. O dever de negociação em caso de alteração das circunstâncias

26.5. O regime especial das PPP em matéria de alteração das circunstâncias

26.6. A alteração das circunstâncias e a resolução do contrato administrativo

26.7. A alteração das circunstâncias no procedimento de contratação pública

26.7.1. As causas de não adjudicação

26.7.2. Os casos não subsumíveis nas hipóteses de não adjudicação

27. A alteração das circunstâncias por decisão do contraente público fora do exercício

dos seus poderes de conformação contratual

27.1. Considerações gerais

27.2. A decisão imputável ao contraente público

27.2.1. O contraente público

27.2.1.1. Os contratos administrativos da administração indirecta

27.2.2. A decisão

27.2.3. A imputabilidade

27.3. Os limites à actuação extracontratual do contraente público

27.4. A questão da ilegalidade da decisão extracontratual

27.5. A responsabilidade no caso da actuação extracontratual do contraente público

27.6. As consequências da actuação extracontratual do contraente público

27.6.1. O dever de reposição do equilíbrio financeiro

27.6.2. Outras consequências

28. A alteração das circunstâncias não imputável a decisão do contraente público

28.1. Considerações gerais

28.2. Os eventos naturais e os actos de terceiro

28.3. O caso especial de decisão imputável a pessoa diferente do contraente público

28.3.1. gA admissibilidade da demanda do autor do acto

28.4. As consequências da alteração das circunstâncias

28.4.1. A modificação do contrato

28.4.2. A atribuição de uma compensação financeira

28.4.3. A resolução do contrato

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196

Reflexões finais

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