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0 UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ MESTRADO EM DIREITO CÉLIA MÜLLER O PRINCÍPIO DA SOCIALIDADE E A INTERPENETRAÇÃO DO DIREITO PÚBLICO E DO DIREITO PRIVADO Rio de Janeiro 2008

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ MESTRADO EM DIREITO

CÉLIA MÜLLER

O PRINCÍPIO DA SOCIALIDADE E A INTERPENETRAÇÃO DO DIREITO PÚBLICO E DO DIREITO PRIVADO

Rio de Janeiro 2008

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CÉLIA MÜLLER

O PRINCÍPIO DA SOCIALIDADE E A INTERPENETRAÇÃO DO DIREITO PÚBLICO E DO DIREITO PRIVADO

Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito, pela Universidade Estácio de Sá.

Orientadora: Profa. Dra. Renata Braga Klevenhusen

Rio de Janeiro 2008

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VICE-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

A dissertação

O PRINCÍPIO DA SOCIALIDADE E A INTERPENETRAÇÃO DO DIREITO PÚBLICO E DO DIREITO PRIVATO

elaborada por

CÉLIA MÜLLER

e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora foi aceita pelo Curso de Mestrado

em Direito como requisito parcial à obtenção do título de

MESTRE EM DIREITO

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2008.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________ Profa. Dra. Renata Braga Klevenhusen

Presidente Universidade Estácio de Sá

_________________________________________________ Prof. Dra. Carla Marshal

Universidade

___________________________________________________ Prof. Dr. Rogério Bento Nascimento

Universidade Estácio de Sá

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Ao meu saudoso pai, Almiro Theobaldo Mül-

ler, ferrenho defensor da democracia, em tem-

pos de ditadura militar, por me ter incentivado

ao questionamento e ao debate e, principal-

mente, por ter me ensinado que democracia se

pratica e exercita em casa, com a família, na

escola, na vida e no dia-a-dia.

Como pai e mestre, corrigia meus deveres e

redações e, depois de pronto um trabalho, sua

nota máxima sempre era regular. Isto é, ensi-

nou-me a humildade, a consciência do quanto

resta a aprender, a melhorar e a pensar.

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AGRADECIMENTOS

Á coordenação do curso de Mestrado da UNESA – Universidade Es-

tácio de Sá, no Rio de Janeiro e da UNOESC – Universidade do Oeste de Santa Catarina,

campus de Xanxerê, por todos os esforços em comum, para que mais esse sonho se tornasse

possível.

Aos professores do curso de Mestrado em Direito Público, que trans-

cenderam em suas vocações, com grandes desgastes e desafios para vir lecionar tão distante

de suas casas e praças, particulares e públicas e, para tanto, não mediram esforços e cumpri-

ram com todos os méritos e louvores possíveis de cada um deles inerente, tanto em relação

aos seus desígnios quanto aos nossos desejos.

À professora Doutora Renata Braga Klevenhusen, orientadora deste

desafio e caminhar teórico, orientação essa que se desenvolveu mais virtual que pessoalmente,

mas transformou-se em uma relação pessoal e carinhosa de amizade e trocas de e-mails, de

idéias, de livros e amadureceu, na autora, o interesse pela pesquisa e estudo infindáveis, como

forma de auxiliar nos desafios pós-modernos, os quais inquietam todos aqueles que exercitam

a utopia, ora sonho, ora realidade, acreditando na possibilidade da parte não-utópica.

Aos colegas do curso de Mestrado, cujas saudades já se desenharam

depois de concluídas as aulas e se vêem ampliadas com a proximidade do término deste cami-

nhar. Uma turma de amigos, com muitas afinidades, dificuldades, acertos e erros em comum.

Uma parte de cada história particular: amigos para sempre.

Fechando esse círculo tão restrito quanto especial e particular, agrade-

ço à minha família, nas pessoas de minhas duas filhas: Nathana Thuane Mülller Loebens e

Nathalie Thainá Müller Loebens, causas e conseqüências, amizade, afinidade e amor, por sua

compreensão, apoio, incentivo e, especialmente, amor.

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“Não se deve nunca esgotar de tal modo um assunto, que não se deixe ao leitor nada a fa-zer. Não se trata de fazer ler, mas de fazer pen-sar”. Montesquieu.

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RESUMO

O presente trabalho de pesquisa intitulado: “O princípio da socialidade e a interpenetração do

Direito público e do Direito privado”, desenvolvido no Curso de Mestrado em Direito, na

Linha de Pesquisa “Direitos Fundamentais e Novos Direitos”, estuda o princípio civil da

socialidade, tendo como problema a investigar, no processo de interpenetração do Direito

público e do Direito privado, deflagrado pela Constituição Federal de 1988 e pela conseqüen-

te constitucionalização do Direito Civil, de que forma tal princípio expressou esse processo,

no Estado democrático, social e constitucional de Direito. O ambiente jurídico e político ou o

espaço teórico no qual todo esse processo deve se desenvolver é o Estado democrático, social

e constitucional de Direito. Após, apresenta-se uma postura filosófica e sociológica crítica,

com a teoria da justiça como eixo temático da reflexão e fundamento ético desse Estado, e o

papel dos direitos fundamentais como núcleo do ordenamento jurídico. Depois, a pesquisa

traz um estudo sobre as normas constitucionais e infraconstitucionais: regras e princípios, com

ênfase nos princípios constitucionais. Apresenta, ainda, posturas respeitantes à relação entre

os princípios gerais de Direito e os princípios constitucionalizados e ao papel hermenêutico

dos princípios e sua constitucionalização. Também, o papel dos princípios civis – de Direito

privado e das cláusulas gerais. Em ato contínuo debate-se o processo de constitucionalização

do Direito Civil e a interpenetração do público e do privado, bem como paradigmas que preci-

sam ser revistos, a partir do paradigma da leitura civil-constitucional, fundado na unidade do

ordenamento jurídico. Finalizado a pesquisa, estuda-se o princípio da socialidade, num pri-

meiro momento analisando-se o princípio constitucional da solidariedade (ou fraternidade),

que a recepciona. E, por derradeiro, a aplicabilidade e as inovações do conjunto de toda a pes-

quisa em determinados institutos civis.

Palavras chaves: Estado constitucional, social e democrático de Direito; Direito Civil-

Constitucional; princípio da socialidade.

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ABSTRACT

This research work entitled: “The sociality principle and the public Law and the private Law

interpenetration”, developed in the Master Law Course, in Research Line: “Fundamental Ri-

ghts and New Rights”, studies the sociality civil principle and it has as the problem to investi-

gate, in the interpenetration process from the public and the private Laws, outbreak with the

1988 Federal Constitution and with the consequent Civil Law constitutionalization, how the

sociality principle expressed this process, in the democratic, social and constitutional State.

The legal and political space or the theory space in which all this process should be developed

it’s the democratic, social and constitutional State. Later, presents a philosophical and soci-

ologist review position, with the justice theory at the thematic axis of the reflection, and as the

ethical foundation from this State, and the fundamental rights role as the legal system core.

Then, the research brings a study about the constitutional and infraconstitutional rules of law:

rules and principles, with enphasis on the constitutional principles. Still, presents positions

regarding the relation between the law general principles and the constitutionalized principles

and the hermeneutic principles and its constitutionalized role. Finally, the civil principles role

are examined – of private Law and the general clauses. In continuous act, it discuss the consti-

tutionalization process from the Civil Law and the public and private interpenetration, also,

that there are paradigms that need to be reviewed, from the civil and constitutional paradigm

reading on, based on the legal system unity. Ending, studies the sociality principle, at first

analyzing whether the solidarity (or brotherhood) constitutional principle, which give it recep-

tion. And, at last, the applicability and the innovations of all the research in particular civil

institutes will be studied.

Key words: Constitutional, social and democratic State, Civil-Constitution Law; sociality

principle.

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SUMÁRIO

Introdução ....................................................................................................................... 10

1 Do Estado liberal ao Estado social e democrático de Direito .... 15

1.1 O Estado Moderno e o absolutismo ........................................................................ 16

1.2 A evolução histórica do Estado de Direito ........................................................... 17 1.2.1 O Estado liberal de Direito.............................................................................................. 18

1.2.2 O Estado social de Direito ............................................................................................. 22

1.2.3 O Estado democrático (e constitucional de Direito) ...................................................... 25

1.3 Fundamentação ética do Estado democrático de Direito .................................. 27

2 O papel hermenêutico das normas constitucionais e infraconsti-

tucionais: regras e princípios .............................................................................. 35

2.1 Normas Constitucionais: princípios ........................................................................ 35

2.1.1 Texto versus norma ........................................................................................................ 39

2.1.2 Regras versus princípios ................................................................................................. 41

2.1.3 Princípios gerais de Direito e princípios constitucionalizados ....................................... 45

2.2 O papel hermenêutico dos princípios e sua constitucionalização ................... 48

2.3 Os princípios de Direito Civil e as cláusulas gerais ........................................... 51

3 O processo de constitucionalização do Direito Civil: interpene-

tração do público e do privado ........................................................................... 60

3.1 O processo de constitucionalização do Direito Civil: uma leitura civil-

constitucional ....................................................................................................................... 61

3.1.1 Breve esboço histórico ................................................................................................... 61

3.1.2 Um novo paradigma: a leitura civil-constitucional ........................................................ 65

3.1.2.1 A Importância do Direito Civil: a (in) segurança jurídica e um sistema aberto de nor-

mas e princípios ...................................................................................................................... 68

3.1.2.2 As instituições: autonomia da vontade, propriedade privada; e a pessoa humana ...... 70

3.1.2.3 A eficácia horizontal dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais ...... 73

3.2 Interesses públicos versus interesses privados no Estado democrático de Di-

reito ........................................................................................................................................ 80

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3.3 A distinção entre o público e o privado ................................................................. 82

3.3.1 O público e o privado no tempo ..................................................................................... 82

3.3.2 Os critérios diferenciadores ........................................................................................... 84

3.4 A fase atual: a confluência e a e a interpenetração do público e do privado

............................................................................................................................. 86

3.4.1 As restrições; os interesses privados que não constituem direitos fundamentais; e o equi-

líbrio ........................................................................................................................................ 91

4 O princípio da socialidade ................................................................................ 95

4.1 O princípio constitucional da solidariedade (ou fraternidade) ......................... 96

4.2 A função social no Direito Civil ............................................................................ 102

4.3 O princípio civil da socialidade ............................................................................. 107

4.3.1 O princípio da socialidade nos contratos ..................................................................... 109

4.3.2 O princípio da socialidade em família e sucessões ...................................................... 114

4.3.3 O princípio da socialidade no Direito da Empresa ....................................................... 124

4.3.4 O princípio da socialidade na propriedade e na posse ................................................. 128

Considerações Finais ............................................................................................... 133

Referências Bibliográficas ................................................................................... 148

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Introdução

A presente dissertação, desenvolvida no âmbito do Curso de Mestrado

em Direito da Universidade Estácio de Sá, na linha de pesquisa “Direitos Fundamentais e No-

vos Direitos”, objetiva contribuir para as exigências contemporâneas da sociedade brasileira,

na efetividade dos direitos fundamentais e princípios constitucionais. Isso com uma leitura

atual da relação entre o público e o privado, bem como, com o Estado constitucional, social e

democrático e o Direito privado, este representado pelo princípio da socialidade.

Cabe à pós-modernidade compreender e entrelaçar a ordem jurídica

com a realidade circundante, num contexto maior, para atender às demandas sociais, buscando

soluções para tanto, a partir de problemas verificados e levantados. Além do já exposto, vale

lembrar as inquietudes, o vazio em que se encontram os indivíduos isoladamente, bem como

nas suas relações sociais, características da pós-modernidade, em conseqüência dos paradig-

mas e pretensões modernas e do positivismo jurídico, latentes no meio social brasileiro.

O objeto da pesquisa é: “O princípio da socialidade e a interpenetra-

ção/imbricação do Direito público e do Direito privado”.

O objeto de discussão da pesquisa é o de descobrir, no processo de in-

terpenetração do Direito público e do Direito privado, deflagrado pela Constituição Federal de

1988 e pela constitucionalização do Direito Civil, de que forma o princípio civil da socialida-

de expressou esse processo, no Estado constitucional e democrático de Direito.

O ambiente proposto para a pesquisa científica no Projeto de Mestrado

é o Estado constitucional, social e democrático de Direito, cuja delimitação e ligação com o

princípio da socialidade e o Direito privado se dão pela interpenetração do público e do priva-

do, nesse ambiente.

A Constituição Federal é a espinha dorsal da categoria moral represen-

tada pelos direitos humanos e, nesse contexto, é que se fala em eficácia de direitos fundamen-

tais e princípios constitucionais. Tem-se, assim, o objetivo de contribuir para com a superação

do positivismo jurídico, gerador da crise de ineficácia jurídica atual e das mazelas sociais dele

decorrentes, em especial, da exclusão social, a qual se verifica tanto na sociedade quanto no

Direito, a partir dos paradigmas modernos, não capazes de equilibrar as relações sociais.

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Quanto à natureza, a pesquisa constituir-se-á em um trabalho científi-

co original. Como um todo, o estudo será desenvolvido, preferencialmente, com coleta de

dados bibliográficos. E então, sob o ponto de vista dos objetivos da pesquisa, considerando

tratar-se de estudo essencialmente bibliográfico, o trabalho terá caráter exploratório, no qual

toda a bibliografia utilizada, após ser analisada e sopesada, contribuirá para a obtenção de

mais e novas informações sobre o assunto escolhido e delimitado.

As fontes da pesquisa já foram explicitadas e, por isso, quanto aos

procedimentos, ela não terá cunho empírico, mas, tão somente de fontes de papel, ou seja,

será realizada em fontes secundárias, representadas por livros e outros documentos.

Para a sua realização será utilizado o método científico de abordagem

assentado no Método Indutivo, utilizando-se, na Fase de Tratamento de Dados, o Método

Cartesiano e o Relatório dos Resultados, que é formado pela base lógica indutiva.

É importante ressaltar que o trabalho científico ora introduzido terá in-

tenção e objetivos transformadores, como instrumento que contribua para a construção de

uma Teoria Geral do Direito, voltada, no meio social, à justiça social e à dignidade da pessoa

humana. E, para obter os resultados pretendidos, é necessário desfragmentar o conhecimento,

através da interdisciplinaridade. Assim, é forçoso traçar-se um caminho a ser percorrido, que

possibilite, ao fim, respostas ao problema proposto.

No primeiro capítulo, far-se-á um esboço histórico do Estado de Direi-

to. Antes disso, localizar-se-á historicamente o Estado absolutista e o Estado moderno, numa

análise histórica do Estado moderno e do absolutismo, com os seus principais teorizadores,

expondo os motivos determinantes dessa evolução. Depois, o caminhar das formas anteriores

de Estado de Direito, ou seja, do Estado liberal ao Estado social e democrático de Direito, a

construírem essa trajetória, analisando-se, ao fim, o estágio atual do Estado constitucional e

democrático de Direito, ainda em construção teórica e prática, como instrumento de transfor-

mação da realidade e comprometido com a realidade social e econômica.

O objetivo desta primeira parte do primeiro capítulo é delimitar o es-

paço teórico no qual a temática como um todo está inserida ou o ambiente no qual é possível

o cumprimento do objetivo geral. Conforme já dito, o caminho referido tem como ponto cen-

tral a definitiva superação do positivismo, introduzindo-se valores axiológicos na concretiza-

ção do Direito, que podem perfeitamente ser identificados com os direitos fundamentais e os

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princípios constitucionais, como forma de buscar, na prática, os fundamentos e objetivos vi-

sados pela Constituição Federal de 1988.

Depois dessa delimitação teórica, encerrando o primeiro capítulo, será

apresentada uma postura filosófica e sociológica crítica, tendo a teoria da justiça como eixo

temático da reflexão, numa fundamentação ética do Estado democrático de Direito.

Consignar-se-á, também, uma fundamentação ética, a fim de auxiliar

nessa adequação dos direitos fundamentais e princípios constitucionais pretendida, no sentido

de que os direitos fundamentais da Constituição Federal constituem uma parte dos direitos

humanos e constituem a base, o núcleo de todo e qualquer ordenamento jurídico. E, nessa

linha de raciocínio, a Constituição Federal é a espinha dorsal da categoria moral, representada

pelos direitos humanos, incluindo os princípios que traz em seu bojo.

No segundo capítulo serão enfocados os princípios constitucionais.

Em seu primeiro tópico, far-se-á uma breve distinção entre texto e norma, procurando dar um

conjunto, com certa seqüência, ao capítulo em epígrafe e ao próprio conjunto da dissertação,

para que forme um todo coerente e com continuidade. Em seguida, efetuar-se-á uma necessá-

ria distinção entre regras e princípios, para demonstrar o atual papel dos princípios e as prin-

cipais linhas divisórias entre as duas espécies de normas.

Dando continuidade, apresentar-se-á uma postura respeitante à relação

entre os princípios gerais de Direito e os princípios constitucionalizados, considerando o

grande papel hermenêutico que os princípios normativos (incluídos os gerais de Direito) pos-

suem na resolução prática dos conflitos, em posição de supremacia frente às regras jurídicas.

Enfocar-se-á, também, o papel hermenêutico dos princípios e sua

constitucionalização, como forma de verificar o papel que esta representou na evolução do

pensamento jurídico no fim do século passado e neste, conduzindo (ou não) a melhor persecu-

ção de valores máximos, como o de ‘justiça’, ‘dignidade da pessoa humana’, ‘isonomia’, entre

tantos outros.

Por derradeiro, neste segundo capítulo, será analisado, de forma geral,

o papel dos princípios civis – socialidade, eticidade e concretude – e das cláusulas gerais, na

persecução da eficácia da Constituição Federal, na forma pretendida e diversas vezes reiterada

neste trabalho de pesquisa. Todo esse processo de auxiliar na eficácia dos direitos fundamen-

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tais e princípios constitucionais passa pela concretização do Direito, na aplicação prática da

ordem jurídica, na vida e problemas reais, latentes na sociedade.

Já no terceiro capítulo será debatido o processo de constitucionaliza-

ção do Direito Civil e a interpenetração do público e do privado. Iniciar-se-á com um esboço

histórico desse processo, para, em seguida, apresentar o paradigma da leitura civil-

constitucional. Nessa leitura, serão levantados três outros paradigmas que precisam ser revis-

tos – com os olhos sempre voltados ao Estado delimitado no capítulo primeiro – quais sejam:

a importância do Direito Civil, a (in) segurança jurídica e um sistema aberto de normas e

princípios; as instituições da autonomia da vontade, da propriedade privada, e a pessoa huma-

na; e a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais.

Antes disso, será apresentada e problematizada a nova Teoria do Di-

reito Civil, que vem sendo construída a partir da edição da Lei Maior e da vigência do novo

Código Civil, efetuando-se uma análise civil-constitucional. A finalidade ou objetivo é ligar o

Direito privado ao Direito público, através da Constituição Federal, que fixa os limites do

Estado de Direito.

Da leitura civil-constitucional, o estudo da relação entre o Direito pú-

blico e o Direito privado se torna uma conseqüência. Então, em ato contínuo, finalizando o

segundo capítulo, será formulada uma leitura contemporânea da relação do Direito/interesse

público com o Direito/interesse privado, assentada na teoria atual do Direito Constitucional,

centrada nos direitos fundamentais e nos princípios constitucionais.

Para buscar e aprimorar o melhor e mais exato entendimento sobre o

assunto, o mesmo será desenvolvido, conforme já visto, tanto no direito público quanto no

direito privado, perseguindo um ponto comum ou uma relação de interdependência e imbrica-

ção entre um e outro. Iniciar-se-á com a análise do público e do privado no tempo, seguida

dos seus critérios diferenciadores, para, prosseguindo, entrar na fase atual, da confluência e

interpenetração desses dois espaços: público e privado. E, encerrando o capítulo, será de-

monstrado que há interesses privados que não se constituem em direitos fundamentais e que é

possível um equilíbrio entre eles.

O quarto e último capítulo estará centrado no princípio civil – privado

– da socialidade. Antes disso, analisar-se-á o seu princípio correspondente no Direito Consti-

tucional: o princípio constitucional da solidariedade (ou fraternidade), pois é ele que recep-

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ciona a socialidade civil e fundamenta a função social do Direito Civil como um todo, o que

será objeto de estudo logo na seqüência.

Depois, encerrando a pesquisa, serão levantadas as principais inova-

ções do novo Código Civil – nos institutos dos Contratos, do Direito de Família e Sucessões,

do Direito da Empresa e do Direito da Propriedade –, em especial aquelas respeitantes ao

princípio da socialidade, em perfeita conexão com o Estado constitucional e democrático (e

social) de Direito, do capítulo primeiro, e com a leitura civil-constitucional e a interpenetração

do público e do privado, do capítulo segundo.

Neste último capítulo serão incluídas algumas questões fáticas e suas

decisões, em especial do Supremo Tribunal Federal – Tribunal Constitucional por excelência

– para, ao lado das reflexões feitas anteriormente, no contexto do Estado constitucional e de-

mocrático de Direito, demonstrar a possibilidade prática (ou não) de aplicabilidade dos direi-

tos fundamentais e dos princípios constitucionais e, via de conseqüência, do princípio civil da

socialidade.

Assim, com a fundamentação teórica, a discussão para equacionar o

tema e o cumprimento dos objetivos, estará realizado o propósito da autora, firmado quando

da realização do projeto de pesquisa, ou seja, estará cumprido o seu objetivo geral, para auxi-

liar na construção teórica do assunto, alcançando profissionais da área jurídica.

Por último, serão efetuadas as considerações finais acerca do desen-

volvimento, como um todo e, em especial, de respostas no cumprimento dos objetivos propos-

tos, que motivaram a presente pesquisa científica. Encerrando-se, destarte, com as considera-

ções a que se chegar, tanto no plano teórico quanto prático, sobre o tema e problema propos-

tos para pesquisa, todavia, sem jamais esgotar ou afastar o assunto, a discussão e a crítica.

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1 Do Estado liberal ao Estado social e democrático de Direito

Na Antigüidade o Estado é a Cidade, nela agregando-se todos os po-

deres e, dela difundindo-se as dominações, as formas expansivas de poder e força. De um

lado, a força bruta das tiranias imperiais típicas do Oriente e, de outro, a onipotência consue-

tudinária do Direito, ao fazer suprema a vontade do corpo social, “qualitativamente cifrado na

ética teológica da polis grega ou no zelo sagrado da coisa pública, a res publica da civitas

romana”1.

Com o colapso do Império Romano, a Idade Média e sua organização

feudal, além de desconhecer o nome “Estado”, hoje familiar, tinha dele uma idéia fraca e pá-

lida. Os novos ideários, que justificaram o nascimento dessa nova era histórica, a Idade Mé-

dia, não tinham a pretensão de restabelecer a unidade do sistema, mas, sim, pretendiam, como

ocorre na atualidade, inaugurar uma nova era e transformar o sistema então vigente. Com e-

feito, tinha-se, de um lado, a autoridade temporal ressuscitada na imagem do Santo Império

Romano-Germânico e, do outro, a autoridade espiritual dos Papas.

O Estado Moderno surge com a primeira revolução iluminista – Re-

nascença –, seguida da segunda revolução, a revolução da razão, no século XVIII, com o seu

traço mais característico, o de soberania. Fundava-se na doutrina de um poder inabalável e

inexpugnável, teorizado e concretizado numa autoridade central, unitária e monopolizadora da

coerção – o governante, o monarca, o príncipe –, como espécie de divindade temporal e terre-

na.

A expressão: “Estado” (do latim status = estar firme) surge com Ma-

quiavel2, em 1513, quando, nas primeiras linhas da sua obra clássica, O Príncipe, no Capítulo

1, cujo título é “Os vários tipos de Estado, e como são instituídos”, a traz como sistema de

organização permanente e duradoura. Faltava-lhe, entretanto, o elemento estabilizador e legi-

timante, a ser dado pela face jurídica. Vivia-se a idade do Absolutismo, no qual sobreviviam

as camadas sociais da antiga nobreza, ao lado de uma nova classe emergente, a burguesia.

1 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 20. 2 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Pietro Nassetti (trad.); Maria de Fátima C. A. Moreira (rev.). São Paulo: Martin Claret, 2003.

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Do absolutismo, avançou-se, gradativamente, para o constitucionalis-

mo contemporâneo, do Estado social e democrático de Direito, cuja trajetória histórica e evo-

lutiva passa por fases práticas e teóricas distintas, que adiante serão analisadas.

1.1 O Estado Moderno e o absolutismo

No Estado Moderno passou-se por duas fases consecutivas de teoriza-

ção da soberania. Na primeira delas, a soberania era vista como um poder absoluto, de apa-

rência ilimitada, como instrumento e substância do poder, e não como qualidade. Os teóricos

que a sustentaram foram Maquiavel – cientista político – e Bodin – jurisconsulto3. Na segunda

fase, a teoria do Absolutismo desata-se dos laços teológicos e metafísicos, que representavam

um freio ao monarca, por dever este respeito e fidelidade às hierarquias eclesiásticas.

Nesse contexto, Hobbes4 traz uma nova fundamentação do poder:

Estado instituído é quando uma multidão de pessoas concordam e pactuam que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o di-reito de representar a pessoa de todos (....). Deste Estado instituído derivam todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido (grifou-se).

E, mais adiante, quando analisa o cargo do soberano representante, a-

presenta um dos pontos centrais de sua teoria5:

Porque, se os direitos essenciais da soberania forem retirados, o Estado fica por isso dissolvido. Todo homem – volta à condição e calamidade de uma guerra com os ou-tros homens – que é o mal maior que pode acontecer na vida –, compete ao cargo do soberano manter esses direitos em sua integridade.

Rompe com os laços teológicos e metafísicos, alicerçado, assim, numa

fundamentação de poder que promana da razão prática do homem e não mais da divindade.

Alienando todas as suas liberdades ao Estado, por instinto, o homem livre do estado de natu-

reza, passa a ser o súdito do estado de sociedade, teorizando um absolutismo com uma singu-

lar legitimidade contratualista que, em troca, assegura a vida do súdito.

Nas ruínas do Estado feudal, a burguesia está a um passo de ocupar os

espaços de poder e autoridade que a nobreza e o clero estavam prestes a evacuar, começando

3 BONAVIDES, 2003, op.cit., p. 22. 4 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Alex Marins (trad.). Ruy Cintra Paiva; Saulo Krieger (rev.). São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 132. 5 Ibid, p. 244.

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um novo capítulo da história, em especial, da limitação do poder, ou, conforme Bonavides6:

“(...) do Homem-povo, do Homem-cidadão, do Homem-político, do Homem que faz a lei, que

governa, ou se deixa governar, que cria a representação, que toma consciência da legitimida-

de, que é poder constituinte e poder constituído”.

Nesse contexto, vê-se a transição do Estado absoluto para o Estado

constitucional, com o surgimento de um novo tipo de Estado, portador de um poder soberano

e evidenciado pela unidade territorial.

1.2 A evolução histórica do Estado de Direito

O Estado de Direito passa por longa trajetória histórica, cuja evolução

passa por constante construção e transformação. Pensando o Estado contemporâneo, é interes-

sante lembrar que o Estado de Direito nasce sem Constituição e com grandes problemas a

serem ainda teorizados e arquitetados.

Um dos fundamentos desse novo Estado é o conceito de soberania,

mas, num primeiro momento, com a centralização de todos os poderes na pessoa do Monarca,

originando as monarquias absolutistas, com o quê, para Streck e Morais7, elas apropriaram-se

dos Estados da mesma forma que o proprietário faz com o objeto de sua propriedade, ou seja,

personificando o Estado na figura do rei.

Hobbes8, conforme já dito, teoriza a justificação do absolutismo, no

contexto histórico a ele contemporâneo e, via de conseqüência, a concentração dos poderes

nas mãos do soberano, em que os indivíduos abrem mão da sua liberdade em prol do Estado,

ganhando, em troca, a certeza da conservação. A base de sustentação desse poder, inobstante

isso, estava ainda apoiada na idéia da origem divina do poder dos reis.

Consoante Streck e Morais9, na virada do século XVIII, a burguesia

não mais se contentava em ter tão-somente o poder econômico: queria também o poder políti-

co, privilégio, até então, da aristocracia. A monarquia, no exercício da política que a mantinha

no poder, não foi capaz de impedir a expansão do capitalismo e viabilizar os interesses da

burguesia, na primeira idade do Estado moderno.

6 BONAVIDES, 2003, op. cit., p. 26. 7 STRECK, Lenio Luiz. MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 44. 8 HOBBES, op. cit.

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Inicia-se, então, com grandes influências do contratualista Rousseau10,

o segundo momento do Estado Moderno que, em 1789, com sua clássica assertiva “comando

logo obedeço, comando logo sou livre”, procura equacionar, no Contrato Social, o problema

de se conquistar um novo tipo de liberdade. Rosseau o faz a partir da premissa de que o ho-

mem nasce livre, mas encontra-se “a ferros” – constatação fática –, procurando reconstruir

essa realidade intelegivelmente com o Contrato Social11.

Em 1789, a Revolução Francesa, com revolucionários motivados por

esse ideário, põe termo ao cunho absolutista vigente até então, com a bandeira de liberdade,

igualdade e fraternidade, antecipando “de forma lapidar todas as dimensões dos direitos hu-

manos em suas sucessivas ondas nos textos constitucionais que os positivam”12.

Nesse momento e contexto histórico, nasce o Estado de Direito, ou ele

representa a transição do Estado absoluto ao Estado constitucional. A queda da Bastilha signi-

fica uma nova era, na qual o poder já não é de pessoas, mas de leis13, sinalizando a emancipa-

ção política e civil das classes sociais, fazendo nascer o poder do povo e da nação em sua legi-

timidade incontestável.

Desse momento histórico em diante, o Estado constitucional ostenta

três modalidades distintas e essenciais: o Estado constitucional da separação de Poderes –

Estado Liberal; o Estado constitucional dos direitos fundamentais – Estado social; e o Estado

constitucional e democrático, dos quais se tratará de ora em diante.

1.2.1 O Estado liberal de Direito

Com o surgimento de novas teorias, como, em especial, a do contrato

social, definindo o Estado como conseqüência de um pacto celebrado entre pessoas livres e

iguais, que outorgam a ele o desígnio de garantir a liberdade e os direitos aos cidadãos, nasce

uma nova concepção de Estado. O pacto social dos contratualistas dá poder político ao Esta-

do, ao mesmo tempo em que limita a sua atuação.

9 STRECK; MORAIS, op. cit., p. 46. 10 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2000. 11 QUINTANA, Fernando. Jean-Jacques Rousseau. in Dicionário de Filosofia do Direito. Vicente de Paulo Barreto (coord.). São Leopoldo, RS: Unisinos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.744. 12 BONAVIDES, 2003, op. cit., p. 37. 13 BONAVIDES, 2003. op. cit., p. 29.

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O perfil do liberalismo político vem desenhado por Locke14, contem-

porâneo de Hobbes15, que rejeitava o absolutismo já nos seus tratados sobre o governo e tra-

çou linhas acerca da necessidade de limitação do poder estatal. Considera-se, ainda, a crença

na eficácia da “mão-invisível” do mercado, de Adam Smith, pela qual o egoísmo de todos,

arranjado por ela, produziria o bem-comum.

Com a Revolução Francesa e a queda do absolutismo e do poder feu-

dal na Europa, desenvolve-se, ao mesmo tempo, o Estado liberal, junto com a concepção de

transformar-se a sociedade. O Estado aparece com uma nova estrutura: de pacto social. A

realidade da burguesia emergente generalizou o princípio político, com as declarações de di-

reitos.

A contradição mais profunda na dialética do Estado Moderno consiste

em que, após apoderar-se do controle político da sociedade, não interessando mais à burguesia

manter na prática a universalidade dos princípios, sustenta-os apenas de modo formal. No

plano de aplicação política, eles se conservam como “princípios constitutivos de uma ideolo-

gia de classe”16.

Definir o liberalismo não é tarefa fácil. Bobbio17 aduz que “o libera-

lismo é, como teoria econômica, defensor da economia de mercado; como teoria política, é

defensor do Estado que governa o menos possível ou, como se diz hoje, do Estado mínimo

(isto é, reduzido ao mínimo necessário)”.

Embora difícil, entre inúmeras definições, ora como doutrina da mo-

narquia limitada, ora de um governo popular limitado, com significados diversos nos diferen-

tes continentes, é possível concentrar-se na idéia de identificação do liberalismo com a idéia

de limites/liberdades, tendo como ator principal o indivíduo18.

A consagração dos direitos humanos, com a primazia que se deve à tu-

tela desses direitos, acima de qualquer outra razão do Estado, constitui o conteúdo próprio do

liberalismo. A submissão do Estado à lei – princípio de legalidade –, a divisão das funções 14 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Julio Fischer (trad.); Renato Jaime Ribeiro (rev. técnica); Eunice Ostrenskyl (rev. da tradução). 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 15 HOBBES, op. .cit. 16 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed. 1. tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p.42. 17 BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política. Marco Aurélio Nogueira (trad.) Ruth Kluska Rosa; Benigna Rodrigues (rev.). 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 128.

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estatais e a garantia dos direitos individuais19 – de primeira geração – passam a ser a base do

Estado.

A doutrina política do liberalismo fundamentou a construção da teoria

do Estado de Direito, em especial, a doutrina do Estado com poderes divididos, como meca-

nismo importante de garantia das liberdades individuais20.

A tripartição das funções (ou Poderes) estatais, idealizada por Mon-

tesquieu21, embora antes dele, ou, desde a antiguidade clássica nela se falasse, acompanha o

Estado em toda a sua evolução, sempre com nova roupagem. Montesquieu22 traça suas linhas

referindo-se à Constituição da Inglaterra, quando afirma que em cada Estado há três espécies

de poderes: o Poder Legislativo, o Poder Executivo das coisas que dependem do direito das

gentes, e o Poder Executivo daquelas que dependem do Direito Civil. E os delimita:

Pelo primeiro poder, o príncipe ou magistrado cria as leis para um tempo determina-do ou para sempre, e corrige ou ab-roga aquelas que já estão feitas. Pelo segundo, determina a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as questões dos indiví-duos. Chamaremos este último “o poder de julgar”, e o outro chamaremos, simples-mente, “o poder executivo do Estado”.

Já os direitos individuais representam a separação entre a sociedade e

o Estado, cabendo a sua titularidade aos indivíduos, como faculdade ou atributo abstrato, para

opor em face do Estado.

O Estado de Direito emerge, assim, na segunda metade do século

XIX, na Alemanha, como Rechtstaat. Depois é incorporado à doutrina francesa, para enqua-

drar e limitar o poder estatal pelo Direito, como pura legalidade, aliado ao conteúdo próprio

do liberalismo e, ainda, à divisão de poderes e à garantia dos direitos individuais. O conceito,

entretanto, é recuperado pelo que há por vir historicamente, assumindo o Direito como um

ponto de referência estável e aprofundando o modelo através de seu conteúdo, fazendo su-

18 STRECK; MORAIS, op. cit, p. 51. 19 A declaração desses direitos: de liberdade, civis e políticos, equivale ao estabelecimento do Estado Liberal e ao estágio inicial do constitucionalismo do ocidente. 20 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo no Estado Contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. 21 MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. Jean Melville (trad.). Rosana Citino; Saulo Krieger (rev.). São Pau-lo: Martin Claret, 2003. 22 MONTESQUIEU, ibidem, p. 165.

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plantar a idéia de Estado de Direito como uma pura legalidade23, com a incorporação de as-

pectos de justiça social, conforme adiante se verá.

Nesse contexto, o Estado tem obrigações para com a realidade políti-

ca, social e econômica tão-somente da classe dominante, a burguesia, e não para com a inte-

gralidade do corpo social. Representa uma limitação jurídico-negativa do Estado. Em outras

palavras, os interesses da burguesia constituem o centro gravitacional do Estado naquele mo-

mento.

Fundava-se nos princípios da distribuição e da organização. No pri-

meiro, a liberdade individual, anterior à formação do Estado, é ilimitada, e o poder do Estado

de restringi-la, limitado. Já o segundo dá origem ao princípio da separação dos poderes, como

modelo ideal de dividir-se o poder num sistema de freios e contrapesos, colaborando para com

a limitação da atuação estatal. A lei, além de assegurar os direitos individuais, delimita as

competências e atribuições estatais.

A doutrina do contrato social trouxe consigo a reivindicação de uma

Constituição, local no qual o contrato social é explicitado, representando o consentimento do

indivíduo com o pacto social, ao mesmo tempo em que limita e divide o poder, formulando-

se, a partir de então, as idéias de governo popular, de sufrágio – apenas como direitos dos

mais prósperos – e da representação.

Destarte, a Constituição nasce como instrumento de garantia dos direi-

tos de cada cidadão frente aos poderes arbitrários do Estado, sob a ótica do Estado Liberal,

numa reação contra o absolutismo e a arbitrariedade estatal.

Tal constitucionalismo caracteriza-se mais pela manutenção de uma

nova ordem estabelecida – manter as conquistas da revolução – do que como meio de trans-

formação social. Um Estado neutro em favor da burguesia. O contrato social ocupa o espaço

da tradição e, a lei e a soberania nacional ganham espaço frente ao exercício absolutista do

poder, cuja função passa a ser exercida por representantes da coletividade.

Essa postura imposta ao Estado implicou uma grande desigualdade

social, como paralelo da igualdade formal, trazendo à luz a oposição entre a burguesia e o

proletariado, em razão de um Estado inerte e inativo. A crise do liberalismo gera novas for-

23 STRECK; MORAIS, op. cit, p. 51.

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mas de exercício do poder e de políticas públicas, transformando o Estado em intervencionista

no século XX, para fazer frente às questões sociais24.

No começo do século XX, movimentos sociais e lutas operárias resul-

tam na emergência de um novo modelo estatal: o Estado Social de Direito. Constitui o tema

tratado por Lassale25 “saber se a Carta Constitucional determinada e concreta que estamos

examinando se acomoda ou não às exigências substantivas”. Quando problematiza acerca da

essência da Constituição, afirma que são “os fatores reais de poder que atuam no seio de cada

sociedade, (e) são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas

vigentes, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são”.

Para o autor, a soma dos fatores reais de poder que regem uma nação

é, em síntese, a essência da Constituição. A Constituição jurídica é a expressão escrita que os

fatores reais de poder adquirem, quando escritos em uma folha de papel.

Necessária, então, é a exigência de substancialização da igualdade por

intermédio da lei – material –, pois a igualdade liberal – formal – de igualdade perante a lei

não mais satisfaz as necessidades sociais.

1.2.2 O Estado social de Direito

A inércia estatal relegava aos cidadãos a liberdade de ação, para a sa-

tisfação de suas necessidades materiais. Considerando as profundas transformações sociais,

econômicas e industriais do século XIX e início do século XX, verifica-se a insuficiência das

liberdades burguesas e surge a necessidade de uma justiça social. As transformações sociais

(da realidade) impõem ao Estado maior intervenção no meio social, para garantia mínima de

condições de vida e de dignidade humana.

Em outras palavras, o sistema liberal-burguês foi incapaz de lidar com

o sistema capitalista e com a auto-regulação do mercado, conduzindo o Estado, gradativamen-

te, a um Estado Social, também denominado de Estado do Bem-Estar, Estado Social de Direi-

to, Estado-Providência ou Welfare State.

24 STRECK; MORAIS, ibidem, p. 62. 25 LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. Prefácio de Aurélio Wander Bastos. 6. ed. Rio de Ja-neiro: Lumen Juris, 2001, p. 6.

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Inobstante isso, as medidas corretivas não representaram uma ruptura

com o modelo liberal, mas, tão-somente, uma adaptação do curso econômico-social, passando

o Estado de espectador – ente passivo – a interventor nas questões sociais – agente ativo –,

devedor de uma prestação positiva, especialmente para a parcela menos favorecida da socie-

dade, buscando compatibilizar o capitalismo com a persecução do bem estar social.

A ordem econômica e social não é mais capaz de produzir justiça,

funcionando livremente. Estado e sociedade aproximam-se. Os direitos constitucionalizados

passam de direitos como poderes de agir para direitos com poderes de exigir.

O Estado social traz à discussão os direitos de segunda geração: soci-

ais, culturais e econômicos, vinculados ao princípio da igualdade. O mero reconhecimento

deles demonstrou uma normatividade baixa, com eficácia duvidosa, a exigir um papel inter-

ventivo do Estado. Entretanto, a sociedade hipercomplexa atual exige que se ultrapasse a vi-

são individualista, para alcançar a eficácia constitucional pretendida. Então, o Estado demo-

crático, que será adiante estudado, reforça os direitos de terceira geração, coletivos e difusos,

decorrentes do princípio da solidariedade ou fraternidade, todos presentes nas Constituições

contemporâneas. Essa evolução guarda relação com a quebra da dicotomia público x privado,

também objeto de estudo no capítulo segundo.

O Estado social contrapõe-se ao Estado liberal, exigindo a intervenção

do Poder Público na organização econômica em lugar de a não admitir. O papel do Estado

passa do absenteísmo ao intervencionismo, cujo processo intervencionista não se dá unifor-

memente, mas, em três fases distintas, em razão de sua extensão e profundidade: a) interven-

cionismo, na fase inicial da decadência do regime liberal, caracterizando-se por medidas espo-

rádicas, em ocasiões específicas, como forma de solucionar problemas concretos que colocas-

sem em risco a manutenção do regime; b) dirigismo, com uma atuação estatal mais firme e

coerente, com atos sistemáticos de ajuda e reforço à iniciativa privada, com objetivos político-

econômicos predeterminados; e c) planificação, o último e mais acabado estágio, com previ-

sões de largo período temporal e com análise econômica global26.

Os postulados da liberdade contratual e da propriedade privada dos

meios de produção têm suas características mitigadas, estabelecendo a necessidade de impor

26 STRECK; MORAIS, op. cit, p. 69.

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uma função social a esses institutos e transformar tantos outros. A liberdade contratual foi

substituída pelo dirigismo contratual, com a idéia de função social do contrato.

Grandes contribuições ao moderno Estado social foram dadas por

Rousseau27 e Marx28, por buscarem, ambos, a sociedade igualitária, embora por vias distintas.

Contudo, a doutrina social pode valer-se de ambas. O merecimento de Marx está na análise

das deformações do sistema capitalista, condenando implacavelmente os seus vícios e apon-

tando a imperiosa necessidade de sua reforma. Rousseau também detesta os privilégios de

classe e quer a libertação política do Homem29.

O Estado social, entretanto, nem sempre constituiu um Estado demo-

crático de Direito, que se funda na soberania popular. É preciso compreender-se o Estado so-

cial como forma de não o confundir com o Estado socialista, que compadeceu no capitalismo

com os mais variados sistemas de organização política, os quais não defendem modificações

fundamentais de certos postulados econômicos e sociais, como a Alemanha nazista, a Itália

fascista, o Portugal salazarista, bem como a Inglaterra de Churchil e Attlee, os Estados Uni-

dos, em parte, desde Roosevelt, a França, com a Quarta República, principalmente, e o Brasil,

desde a Revolução de 1930. Inobstante isso, o Estado social (da democracia) seria30:

por conseguinte, meio caminho andado, importando, pelo menos da parte da burgue-sia, o reconhecimento de direitos ao proletariado. Desses direitos, os mais cobiçados seriam, no interesse da classe operária e do ponto de vista democrático, os direitos políticos, visto que permitiriam alcançar o poder e utilizar o Estado em seu proveito, operando tranqüilamente a almejada transformação social, que a burguesia tanto te-me.

O Estado social representou a superação ideológica do antigo libera-

lismo. Este entrou em crise por não resolver o problema essencial da ordem econômica e das

camadas proletárias da sociedade que se achavam à margem da vida e não equacionou, via de

conseqüência, as contradições sociais.

O Estado passa a ter um novo papel, cuja intervenção na economia

dar-se-á de diferentes maneiras: regulando o mercado, diminuindo a extensão da autonomia

da vontade, participando do processo econômico, e, ainda, implementando políticas. Dos três

Poderes, o executivo vê a sua atuação enormemente ampliada. Para manter o sentido de sepa-

ração de poderes no Estado social, deve referir-se a este como Estado de Direito de orientação 27 ROUSSEAU, op. cit. 28 MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Alex Marins (trad.). São Paulo: Martin Claret, 2003. 29 BONAVIDES, 2004, op. cit, p. 177.

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social, ou Estado de prestações constitucionalmente regulado. Constitui uma tarefa difícil a

conciliação dessas duas dimensões: Estado de Direito e Estado social, cuja tarefa compete ao

Direito Constitucional, qual seja, encontrar artérias que a possibilitem31.

Destarte, para passar de Estado social a Estado democrático de Direi-

to, ele deve ser o Estado de todas as classes, abrandar a desigualdade social e mitigar os con-

flitos entre o trabalho e o capital, conforme se verá a seguir.

1.2.3 O Estado democrático (e constitucional) de Direito

Para a necessária transformação social, gerada pelo aparecimento de

novas classes trabalhadoras, a partir da Revolução Industrial – dos meios de produção – e pelo

crescimento urbano, é preciso adicionar ao Estado de Direito e ao Estado democrático as

transformações sociais e as conquistas democráticas.

O Estado democrático de Direito, além de ultrapassar as formulações

do Estado liberal de Direito e do Estado social de Direito – welfare state neo-capitalista – tem

o papel de impor à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo utópico de transformação

da realidade, ou seja, constitui um plus normativo (acréscimo, adendo) em relação às formu-

lações anteriores32.

O Direito como norma pura pode servir a interesses ditatoriais e, por

isso, precisa estar comprometido com a realidade social, política, econômica e ideológica.

Difere, destarte, o Estado social da democracia de outros Estados sociais, de sistemas totalitá-

rios, na sua qualidade jurídico-constitucional, com a garantia da tutela dos direitos da persona-

lidade. O adendo dado pelos valores da “democracia” (fraternidade, igualdade, liberdade e

dignidade da pessoa humana), estende-se sobre toda a ordem jurídica e sobre os elementos

constitutivos do Estado, com a intenção de transformar a realidade.

Ampliam-se as funções do Estado, do voluntarismo passa-se ao diri-

gismo contratual, impondo, como já se disse, a reformulação da teoria ortodoxa dos funda-

mentos do contrato, considerando que a conformação das relações contratuais importa a con-

formação do exercício da própria atividade econômica, opondo sobre eles preceitos que ins-

30 BONAVIDES, 2004, ibidem, p. 185. 31 CLÈVE, op. cit. 32 STRECK; MORAIS, op. cit, p.93.

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trumentam a intervenção do Estado sobre o domínio econômico, na busca de soluções de de-

senvolvimento e justiça social33.

A separação de poderes de Montesquieu34 representou, à época, um

sistema de equilíbrio do poder, oferecendo as bases para um governo misto, moderado pela

ação das forças sociais. A tarefa contemporânea consiste em adaptar suas idéias à realidade

constitucional do tempo presente, tanto aparelhando o Executivo, para que ele possa respon-

der às crescentes e exigentes demandas sociais, quanto em aprimorar os mecanismos de con-

trole de sua ação, para torná-lo mais seguro e eficaz35.

O artigo 1º, da Constituição Federal traz os fundamentos desse Estado

democrático de Direito que se persegue, representados pela soberania, a cidadania, a dignida-

de da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo políti-

co.

A República Federativa do Brasil tem como objetivos, no Contrato

Social (artigo 3º), a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desen-

volvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização; a redução das desigual-

dades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,

sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Bonavides36 pondera, como direitos da quarta geração, o direito à de-

mocracia, à informação e ao pluralismo e “deles depende a concretização da sociedade aberta

do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-

se no plano de todas as relações de convivência”.

Introduz, portanto, um propósito solidário, conforme já dito ao estudar

o Estado social, a fim de solucionar os problemas da vida individual e coletiva, superando as

desigualdades sociais e regionais, com um regime democrático que realize a justiça social,

modelada e determinada pela Constituição Federal.

33 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 7. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 132. 34 MONTESQUIEU, op. cit. 35 CLÈVE, op. cit. 36 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. P. 571.

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1.3 Fundamentação ética do Estado democrático de Direito

Os direitos humanos37 representam a ponte que liga o Direito – Moral

à Filosofia, vistos para além da lei escrita – positiva. Passa-se a justificar.

Existe um direito que é construído na sociedade, de onde nasce e se

realiza o Direito. Via de regra, as questões jurídicas e, também, as morais, igualmente, nas-

cem e se realizam na sociedade. Questões há que assumem proporções nacionais, como a eu-

tanásia nos EUA e a atual discussão sobre as pesquisas com células tronco embrionárias, no

Brasil. Esses temas acabam por envolver toda a sociedade, exercendo argumento. Isso remete

à discussão, a uma busca de conteúdo, de valores, de critérios, o que se chama de direito ra-

cional.

As conquistas de direitos humanos deram-se ao longo da modernida-

de, inobstante alguns remontem tal pesquisa à Antigüidade. Tiveram especial destaque a partir

do século XVIII38. Dois séculos depois de sua formulação, o conceito abstrato de direitos hu-

manos, atualmente começa a “fazer verdadeiro sentido na medida em que por todo o sistema

mundial grupos sociais estão a organizar lutas de emancipação guiadas por ele”39.

Os direitos fundamentais da Constituição Federal constituem uma par-

te dos direitos humanos (a vida está como direito fundamental; já o genoma, embora o seja,

não está explícito na Constituição Federal). Os direitos humanos constituem o núcleo de todo

e qualquer ordenamento jurídico, uma categoria de direitos morais, reconhecidos na consciên-

cia, fora do ordenamento jurídico, mas essenciais e universais em todo e qualquer Estado de-

mocrático e social. Destarte, a Constituição Federal é a espinha dorsal da categoria moral re-

presentada pelos direitos humanos.

O que até o tempo presente não se tem, ou o que ainda falta conquis-

tar, é a eficácia do ordenamento jurídico e, via de conseqüência, dos direitos humanos. Não se

verifica a adesão da Constituição brasileira à realidade sócio-político-econômica do país, ou

37 Assim chamados os direitos fundamentais da pessoa humana, aqueles sem os quais é impossível pensar a con-dição humana; que são de imprescindível presença no âmbito dos debates pós-modernos. In: BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O Direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 284. 38 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O Direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 285. 39 SANTOS, Bonaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 11ª ed. São Paulo:Cortez, 2006. P. 334.

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seja, não está o texto adaptado à realidade brasileira. Grande distância separa o que está dito –

realidade discursiva – do que é praticado – realidade social40.

Santos41 identifica três grandes áreas de conflitualidade paradigmática

no paradigma da modernidade, ainda dominante, porém, decadente: conhecimento e subjeti-

vidade, padrões de transformação social, poder e política, identificando traços do paradigma

emergente, ao explicar que:

Não há um paradigma emergente. Há antes um conjunto de ‘vibrações ascendentes’, de fragmentos pré-paradigmáticos que têm em comum a idéia de que o paradigma da modernidade exauriu a sua capacidade de regeneração e desenvolvimento e que, ao contrário do que ele proclama – é possível (e urgente) imaginar alternativas progres-sivas.

No problema do conhecimento e subjetividade, para a modernidade, a

ciência é uma prática social que produz a única forma de conhecimento válido. E esse conhe-

cimento, além de ser cumulativo, o seu progresso científico assegura (ria), pelo desenvolvi-

mento tecnológico, o progresso da sociedade.

O novo paradigma oferece como alternativa que, em seus termos, não

existe uma forma única de conhecimento válido, mas várias formas de conhecimento, tantas

quantas as práticas sociais que as geram e as sustentam. Aceitando-as, não se deslegitima as

práticas sociais que as sustentam – e geram conhecimento alternativo – e não se promove a

exclusão social delas.

O autor42 apresenta dois princípios na validação da garantia e expan-

são da democraticidade interna das comunidades, na igualdade do acesso ao discurso argu-

mentativo. O primeiro deles é o princípio da democraticidade interna da comunidade-

interpretativa e o outro é um valor ético intercultural, o valor da dignidade humana.

Esse valor da dignidade humana, embora assuma formas diferentes em

tipos de conhecimento diversos, permite a comunicabilidade e a permeabilidade, pois todas as

culturas aceitam um princípio da dignidade da pessoa humana, eis que ela promove e permite

a inteligibilidade intercultural. E, na cultura ocidental, a dignidade da pessoa humana é ex-

pressa através do princípio de direitos humanos.

40 BITTAR, op cit, p. 294. 41 Op. cit., p. 322. 42 SANTOS, op. cit, p. 328.

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Um dos únicos consensos possíveis na pós-modernidade, o tema da

dignidade da pessoa humana talvez seja o melhor legado da modernidade a ser temperado

para a realidade contextual. Vê-se, na prática, a indignidade no fosso, a mais ampla destruição

da dignidade. Na pós-modernidade, um dos objetivos que já desenha resultados é o de que a

dignidade da pessoa humana passe a recuperar o seu valor e o seu sentido43.

A reconstrução do sentido da dignidade humana é fundamental no

conjunto deste trabalho de pesquisa, como núcleo de sentido hermenêutico para a interpreta-

ção de todo o ordenamento jurídico, constitucional e infraconstitucional, como guia para a

legislação infraconstitucional e, para a sua fixação, como princípio de todos os princípios

constitucionais.

No paradigma dos padrões de transformação social, uma nota é que o

conflito paradigmático não é apenas terçado intelectualmente, mas um conflito social e políti-

co sustentado por grupos e interesses organizados, cujas práticas sociais têm lugar no campo

político44. O desafio central do paradigma emergente é uma hermenêutica transvalorativa e

multicultural, dado pela dignidade humana, considerando que todas as culturas têm um valor

de dignidade da pessoa humana (reiterando).

Essa mudança paradigmática que Bittar45, acompanhando diversos au-

tores, inclusive Santos, Bauman e Habermas, denomina de pós-modernidade, expressão que,

mesmo sendo objeto de críticas, deve ser aceita para

designar um contexto sócio-histórico particular, marcado pela transição. (...) para designar um estado atual de coisas, um processo de modificações que se projeta so-bre as diversas dimensões da experiência contemporânea (valores, hábitos, ações grupais, necessidades coletivas, concepções, regras sociais, modos de organização institucional..), não há sequer unanimidade na determinação da data que seria um marco para o início deste processo.

Na fundamentação ética do Estado democrático de Direito, Barreto46

levanta a imperatividade de distinguir dois níveis epistemológicos correlatos, na análise dos

direitos humanos. Um deles, que examina os mecanismos da garantia e prática dos direitos

humanos, é questão sobre a qual se encontra debruçado o pensamento jurídico e social con-

temporâneo. O outro nível é o da questão de fundamentação dos direitos humanos, que foi 43 BITTAR, op. cit., p. 297. 44 SANTOS, idem, p.329. 45 Op. cit., p. 97..

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relevada a um segundo plano, e este justamente é que constitui o aspecto filosófico da ques-

tão, pois, segundo o autor,

(...) a aplicação do direito positivo ressente-se, muitas vezes, de uma subordinação racional a um conjunto de princípios, expressão de valores relacionados com a dig-nidade humana, que se explicitariam através da intermediação dos direitos humanos.

A solução atual dos direitos humanos foi dada na Declaração Univer-

sal dos direitos dos homens, de 1948. O reducionismo e a influência positivista da moderni-

dade conseguiram aprisionar a temática dos direitos humanos nos seus parâmetros conceituais

e metodológicos, afastando a análise de sua fundamentação. A interpretação positivista cau-

sou a baixa eficácia do sistema jurídico em garantir direitos fundamentais, tornando premente

a defesa racional dos fundamentos dos direitos humanos.

Bobbio parte do pressuposto de que os direitos humanos são coisas

desejáveis, ou fins que merecem ser perseguidos e que, apesar de sua desejabilidade, ainda

não foram todos – “por toda a parte e por igual medida” – reconhecidos. Isso justifica a busca

de um seu fundamento. Adiante, afirma que toda busca de fundamento absoluto é infundada,

por ser a expressão ‘direitos do homem’ muito vaga, os direitos humanos serem uma classe

heterogênea, constituírem uma classe variável e por não ser possível atribuir um fundamento

absoluto a direitos historicamente relativos. Para ele, o problema fundamental consiste mais

em protegê-los do que em justificá-los, tratando-se de um problema político e não filosófico,

afirmando em seguida que47:

Não se trata de encontrar o fundamento absoluto – empreendimento sublime, porém desesperado –, mas de buscar, em cada caso concreto, os vários fundamentos possí-veis. Mas também esta busca dos fundamentos possíveis (...) não terá nenhuma im-portância histórica se não for acompanhada pelo estudo das condições, dos meios e das situações nas quais este ou aquele direito pode ser realizado.

É uma afirmação bastante verdadeira, pois direitos sem garantias tor-

nam-se vazios de conteúdo e de sentido social, mas não esgota o problema. Para Barreto48,

isso ocorre porque,

O que se questiona na violação dos direitos humanos é a própria necessidade da e-xistência de uma categoria de direitos universais, que perpassem a ordem jurídica nacional e coloquem limites ao exercício do poder. (....) e exige uma investigação que se destine, sobretudo, a recuperar a dimensão fundacional dessa categoria de di-reitos.

46 BARRETO, Vicente de Paulo. Ética e Direitos Humanos. In Legitimação dos Direitos Humanos, org. Ricar-do Lobo Tôrres. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 9. 47 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 24. 48 BARRETO, 2002, op. cit., p. 9.

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Trata-se de estabelecer fundamentos éticos para os direitos humanos.

Para Fernandez49, aproximando-se de Bobbio, resulta impossível encontrar uma única funda-

mentação ética válida para todos os direitos humanos, com exceção da idéia de dignidade hu-

mana. Defende a possibilidade de elaborar uma justificação racional da fundamentação ética

dos direitos humanos, a partir do fato de que os direitos humanos são desejáveis, bons e im-

portantes para o desenvolvimento da vida humana. E, admitido esse primeiro requisito, tratar-

se-ia de buscar o fundamento de cada um dos direitos humanos, com a convicção de que se

têm boas razões para tanto.

No terceiro passo, traz a possibilidade de argumentação como forma

de expressar as boas razões, para que estas obtenham o reconhecimento. Assim, analisar o

fundamento ético dos direitos humanos fundamentais:

(...) es plantear también la possibilidad de la racionalidad y universalidad de ese fundamento, y hablar de racionalidad y universalidad del fundamento ético de los derechos humanos no es hablar de derechos absolutos, atemporales e invariables, si-no de derechos morales que puedan ser justificados racionalmente y cuenten con la pretensión de ser universalizados en um momento histórico concreto.

Merece destaque, da transcrição de Fernandez, a impossibilidade de

falar-se de direitos absolutos, ao referir-se aos direitos humanos, mas possíveis de justificação

racional e pretensão de universalização, em um dado momento e espaço histórico concreto.

Para Habermas50, o direito de uma comunidade jurídica concreta,

normatizado politicamente, para ser legítimo, tem que estar, ao menos, em sintonia com prin-

cípios morais que pretendem validade geral e que ultrapassam a própria comunidade jurídica.

O conceito de política deliberativa consegue estabelecer um nexo com a realidade empírica

pela multiplicidade das formas de comunicação, dos argumentos e institucionalizações do

direito através de processos. E a jurisdição, a partir dos argumentos introduzidos no processo

de normatização, fornece uma base racional para as pretensões de legitimidade do direito vi-

gente.

Dessa forma, o problema da fundamentação ética dos direitos huma-

nos tem a ver com a busca de argumentos racionais e morais, que justifiquem a sua pretensão

a uma validade universal51.

49 FERNANDEZ, Eusebio. Teoria de la Justicia y Derechos Humanos. Madrid: Editorial Debate, 1991, p.4. 50 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Volume I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 351. 51 BARRETO, op. cit. p. 9.

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Fixando e concordando com a fundamentação dos direitos humanos

na teoria do discurso em Habermas52, cabe destacar de sua doutrina, ainda, o fato de que apóia

o sistema de direitos na teoria do discurso – racional – e estabelece uma relação de comple-

mentaridade entre moral racional e direito positivo. No nível de fundamentação pós-

metafísico, coloca as regras morais e a regras jurídicas lado a lado, completando-se e diferen-

ciando-se da eticidade tradicional, ou seja, numa “relação de complementação recíproca”,

considerando que “(...) uma ordem jurídica só pode ser legítima, quando não contrariar prin-

cípios morais. Através dos componentes de legitimidade da validade jurídica, o direito adqui-

re uma relação com a moral”.

O princípio do discurso é operacionalizado pelas regras de argumenta-

ção, cuja fundamentação é reservada a uma teoria da argumentação (concretização do Direi-

to). Nessa medida, o princípio moral preenche o papel de uma regra de argumentação para a

decisão racional de questões morais, assumindo a forma de um princípio de universalização.

Já o princípio da democracia pressupõe preliminarmente a possibilidade da decisão racional

de questões práticas, destinando-se a amarrar um procedimento de normatização legítimo do

Direito.

Por fim, para o autor, as normas de ação “ramificam-se em regras mo-

rais e em regras jurídicas”, estendendo-se o princípio moral a todas as normas de ação justifi-

cáveis com o auxílio de argumentos morais, ao passo que o princípio da democracia é talhado

na medida das normas do direito.

Entretanto, as regras dos direitos humanos fundamentados na teoria do

discurso, que se dá entre seres livres, são conseqüências de um processo de argumentação

racional. Reconhece-se, assim, sua natureza moral racional em relação de complementaridade

com as regras jurídicas, como fundamentação ética da ordem jurídica do Estado democrático

de Direito.

As regras morais são representadas pelos direitos fundamentais conti-

dos nas constituições contemporâneas, implícita ou explicitamente, e os argumentos morais

pelos princípios constitucionais. Ambos são passíveis de utilização prática e transformação da

realidade, em relação de complementaridade com as regras jurídicas, em sua eficácia na con-

cretização do Direito, adiante analisados.

52 HABERMAS, 1997, op. cit. p 12 e 139-147.

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O próprio Habermas53, ao considerar sobre o diálogo que outras cultu-

ras travam com o Ocidente, considera que em tal fundamentação, o conteúdo moral, na quali-

dade de norma jurídica, apenas protege os indivíduos à medida que eles pertencem a determi-

nada comunidade jurídica de um Estado nacional e que, dessa forma, “subsiste uma tensão

peculiar entre o sentido universal dos direitos humanos e as condições locais de sua concreti-

zação”. Para a expansão global dos direitos humanos é necessário transformar os Estados – de

nominais, a efetivamente democráticos de Direito54.

“O futuro prometido pela modernidade não tem, de facto, futuro”. No

momento, não é suficiente criticar o paradigma ainda dominante, embora decadente, com um

“excesso de credibilidade em soluções técnicas”: a modernidade; é preciso definir o paradig-

ma futuro55.

Santos – sociólogo português – aponta o papel da utopia na superação

dos conflitos paradigmáticos gerados pela modernidade. Embora ela seja um período rico em

utopias, como A Utopia de Thomas More, no século XVI, e as utopias socialistas do século

XIX, a sua expansão gerou um ambiente cada vez mais hostil ao pensamento utópico. A hosti-

lidade pode ser considerada um “efeito normal do progresso da ciência e do processo de ra-

cionalização global da vida social” que a modernidade tornou possível. A utopia antecipou a

anti-utopia. Vale lembrar que a natureza da utopia é não ser realizada, mas, paradoxalmente, a

sua importância está no que nela não é utópico56:

As duas condições de possibilidade de utopia são uma nova epistemologia e uma nova psicologia. Enquanto nova epistemologia, a utopia recusa o fechamento do ho-rizonte de expectativas e de possibilidades e cria alternativas; enquanto nova psico-logia, a utopia recusa subjetividade do conformismo e cria a vontade de lutar por al-ternativas.

Todavia, a utopia pode ser apontada como solução para a exploração

de novas possibilidades e vontades humanas. A imaginação do novo, com uma compreensão

profunda da realidade, é a exigência da utopia, para que “a radicalidade da imaginação não

colida com o seu realismo”.

53 HABERMAS, Jürgen. Sobre a legitimação pelos direitos humanos. In Direito e Legitimidade: EScritos em homenagem ao Prof. Joaquim Carlos Salgado. MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz. Landy: São Paulo, 2003. 54 Por isso, ao falar-se da eficácia constitucional e concretização do Direito, no capítulo terceiro, centrada na realidade social, cultural e econômica brasileira, aceita-se o substancialismo, fundado no neo-constitucionalismo. 55 SANTOS, Op.cit. p. 322. 56 Idem, p. 324.

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Traz-se para o estudo, em rápidas pinceladas, encerrando o capítulo, a

questão apresentada por Barreto57, acerca da linha de investigação e argumentação que levan-

ta a questão da dependência entre os direitos humanos e sociais, por sua relação com o todo

da presente dissertação. Defende-se como ambiente do tema central desta dissertação – a so-

cialidade – o Estado constitucional social e democrático de Direito. Para tanto, insistentemen-

te acrescenta-se o princípio da democracia ao Estado social, porém sem afastar, sempre ao

lado do princípio da função social, ou seja, aquele dá um plus a este, para evitar-se a justifica-

ção de arbitrariedades e excessos do regime socialista de governo. Dessa forma, direitos hu-

manos e sociais andam juntos, lado a lado, numa relação de dependência e complementarida-

de.

Nessa problemática específica, concorda-se com o autor quando con-

sidera a hipótese que levará a uma análise mais circunstanciada do pensamento de Höffe58, de

“que os direitos sociais seriam condição para a eficácia dos direitos humanos”, na mesma li-

nha de fundamentação proposta para os direitos humanos, ou seja, conceituando os direitos

sociais no quadro de uma fundamentação ética, com estrutura racional. Ausentes os direitos

sociais, não é possível falar em eficácia de direitos humanos.

A fundamentação ética do Estado democrático de Direito, superando-

se o positivismo jurídico em todas as suas formas, tendo a teoria de justiça como eixo temáti-

co, exige o rompimento de paradigmas que geraram grandes problemas no meio social. Para

tanto, fundamental é o processo de constitucionalização do Direito Civil e a conseqüente in-

terpenetração do público e do privado.

57 BARRETO, op. cit., p. 9. 58 Apud BARRETO, ibidem, p. 9.

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2 O papel hermenêutico das normas constitucionais e infraconsti-

tucionais: regras e princípios

Neste terceiro capítulo, estudar-se-á o papel hermenêutico das normas

constitucionais, tanto dos princípios quanto das regras. Para tanto, levantar-se-á, inicialmente,

um estudo do que se entende por princípios, como normas constitucionais, fazendo-se, na

seqüência, uma indispensável distinção, num primeiro momento, entre texto e norma e, de-

pois, entre regras e princípios, para melhor compreensão e delimitação do conteúdo.

Em seguida, far-se-á um comparativo entre princípios gerais do Direi-

to e princípios constitucionalizados. Ato contínuo, ponderar-se-á o papel hermenêutico dos

princípios e sua constitucionalização, para, após, analisar os princípios do Direito Civil e as

cláusulas gerais. No capítulo derradeiro, serão feitas considerações sobre o papel do princípio

da socialidade, nos pilares básicos do Direito Civil.

2.1 Normas constitucionais: princípios

Na Grécia antiga, Euclides (485 a 410 a.C.) foi o primeiro diretor de

uma instituição, denominada de Museu, em Alexandria. Tal instituição congregava a maioria

dos sábios da época. Na organização levada a efeito por Euclides, encontram-se, em sua obra

imortal, “Os Elementos”, treze livros dedicados ao fundamento e ao desenvolvimento lógico e

sistemático da geometria. No primeiro livro, o autor trata das questões fundamentais para a

geometria, quais sejam: “os princípios para edificar a geometria, as definições, os postulados

e os entes primitivos”59.

Assim, o termo princípios nasce da linguagem da geometria, “onde

designa verdades primeiras”, explicando o porquê de chamarem-se princípios, qual seja, esta-

rem ao princípio, representando as “premissas de todo um sistema que se desenvolve more

geométrico”60.

Após considerar várias reflexões acerca dos princípios, bem como va-

riantes de seu conceito, Bonavides61 pondera que o traço comum ou o vínculo unificador de

59 História da Matemática. Biblioteca da Matemática Moderna. Disponível em http://educar.sc.usp.br/licenciatura/2003/hm/page01.htm. 60 LUÍS-DIEZ PICAZO apud BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19ª ed. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. P. 255. 61 BONAVIDES, 2006, op. cit., p. 256.

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todas elas é a normatividade dos princípios. Esclarece, ainda, que a caminhada teórica dos

princípios gerais, convertendo-os em princípios constitucionais, faz com que, constitucionali-

zados, “se fazem a chave de todo o sistema normativo”.

Da geometria, o termo princípio passa a ser utilizado no Direito, tam-

bém com o sentido de verdade primeira, mas, com mais outro sentido, que vem sendo discuti-

do e aperfeiçoado na caminhada teórica supra-referida.

A palavra princípios, da expressão princípios fundamentais da Consti-

tuição, manifesta a idéia de “mandamento nuclear de um sistema”. Não de forma equívoca,

como norma de princípio, entre um dos sentidos diversos que a eles se dão, como “norma que

contém o início ou o esquema de um órgão, entidade ou de programa, como são as normas de

princípio institutivo e as de princípio programático”62.

Para Silva, “os princípios são ordenações que se irradiam e imantam

os sistemas de normas: são ‘núcleos de condensações’ nos quais confluem valores e bens

constitucionais”.

Ávila63 formula um conceito de princípios, após estudos mais apro-

fundados desenvolvidos em sua obra:

Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se de-manda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os e-feitos decorrentes da conduta havida como necessária a sua promoção.

Já para Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho64, os “princí-

pios são as idéias fundamentais que constituem o arcabouço do ordenamento jurídico; são os

valores básicos da sociedade que podem, ou não, se constituírem em normas jurídicas”.

Após analisar a fase do jusnaturalismo, metafísica e abstrata dos prin-

cípios e a fase do positivismo e do ingresso dos princípios nos Códigos como fonte normativa

subsidiária, Bonavides65 alcança a fase atual, do pós-positivismo. Os princípios passam a ser

tratados como Direito, nas duas últimas décadas do século XX, ultrapassando, com a inserção

62 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª ed., rev. e atual. até a Emenda Cons-titucional nº 53, de 19.12.2006 São Paulo: Malheiros Editores, 2007. P.91. 63 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. P. 78. 64 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo Pena e Constituição: princípios constitucio-nais do processo penal. 4ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. P. 5. 65 BONAVIDES, 2006. Op. cit, p. 264.

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constitucional, a fase hermenêutica das chamadas normas programáticas (ou tão-somente pro-

gramáticas).

Opera-se, assim, uma revolução de juridicidade, transformando-se e-

les, ou parte deles, de princípios gerais em princípios constitucionais. Afirma que, assim, “as

novas Constituições promulgadas acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, converti-

dos em pedestal normativo sobre o qual se assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas

constitucionais”66.

A crítica ao positivismo kelseniano busca superar a visão formalista,

face aos problemas decorrentes de se ver o Direito como um sistema de regras, tão-somente.

Denuncia, também, a mediocridade da utilização da subsunção e do silogismo jurídico como

métodos de concreção do Direito, nos quais os princípios eram relegados a um plano secundá-

rio, servindo apenas para orientar a interpretação e para preencher vazios e lacunas legais.

Ao criticar o positivismo, trazendo-o como um modelo de e para um

sistema de regras, ignorando os papéis importantes desempenhados pelos padrões que não são

regras, Dworkin6768 advoga que: “’princípio’ é um padrão que deve ser observado, não porque

vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável,

mas porque é uma exigência de justiça ou eqüidade ou alguma outra dimensão da moralida-

de”.

A reação universal frente aos crimes do nazismo faz soçobrar a con-

cepção do positivismo jurídico como teoria inconciliável com os fatos. Os horríveis crimes

hitleristas escapavam a um sistema de Direito positivo. Para remediar esse fracasso “cada vez

mais, juristas vindos de todos os cantos do horizonte recorrem aos princípios gerais do direi-

to, que poderíamos aproximar do antigo juis gentium e que encontrariam no consenso da hu-

manidade civilizada seu fundamento efetivo e suficiente”69.

O reconhecimento dos princípios pelos Tribunais de diversos países,

mesmo que não proclamados pelo poder legislativo, demonstra, para o autor, a insuficiência 66 Idem, p. 264. 67 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Nelson Boeira (trad. e notas). São Paulo: Martins Fontes, 2002. P. 36. 68 Mesmo sabendo-se das diferenças e divergências entre Alexy e Dworkin, o presente estudo não se propôs a analisá-las a fundo, mas sim, em reconhecer que ambos são autores que contribuíram para a reflexão acadêmica e para a prática do Direito pós-moderno em todo o mundo.

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da construção kelseniana, “que faz a validade de toda regra de direito depender de sua inte-

gração num sistema hierarquizado e dinâmico”, tirando sua validade de uma norma superior

pressuposta.

Para Larenz70, os princípios ético-jurídicos, conforme os nomina, de

forma geral – consoante se verá adiante, na contraposição entre os princípios constitucionali-

zados e os princípios gerais do Direito – são “pautas directivas de normação jurídica que, em

virtude da sua própria força de convicção, podem justificar resoluções jurídicas”. São mani-

festações especiais da idéia de Direito, como esta se apresenta no seu grau de evolução histó-

rica, como ‘idéias jurídicas materiais’.

Canotilho71 afirma que à riqueza de formas da Constituição corres-

ponde a multifuncionabilidade das normas constitucionais, trazendo como ponto de partida,

ou o acesso a ele, o de que “o sistema jurídico do Estado de direito democrático Português é

um sistema normativo aberto de regras e princípios”72, decodificando tal ponto de partida em

quatro pontos:

(1) é um sistema jurídico porque é um sistema dinâmico de normas; (2) é um sistema aberto porque tem uma estrutura dialógica (Caliess), traduzida na disponibilidade e ‘capacidade de aprendizagem’ das normas constitucionais para captarem a mudança da realidade e estarem abertas às concepções cambiantes da ‘verdade’ e da ‘justiça’; (3) é um sistema normativo, porque a estruturação das expectativas referentes a va-lores, programas, funções e pessoas, é feita através de normas; (4) é um sistema aberto de normas de regras e princípios, pois as normas do sistema tanto podem revelar-se sob a forma de princípios como sob a forma de regras. Conforme já dito, com o pós-positivismo, após a função renovadora

avocada pelas Cortes Internacionais de Justiça (Perelmann), respeitante aos princípios gerais

de Direito, quando “o velho positivismo ortodoxo ou legalista ainda dominava incólume nas

regiões da doutrina, as novas Constituições acentuam a hegemonia axiológica dos princí-

pios”73.

Caminhando para o passo final de sua incursão teórica, Bonavides74,

referido, juntamente com Alexy e outros autores citados por Canotilho (supra), resume que:

69 PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão (trad. Eduardo Brandão (rev. da trad.). 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. P. 395. 70 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. José Lamego (trad.). Ana Freitas (rev.). 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. P. 674. 71 Op. cit., p. 1.159. 72 Conforme já referido no capítulo segundo, na ruptura de paradigmas. 73 BONAVIDES, 2006, op. cit., p. 265. 74 Idem, p. 288.

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A demonstração do reconhecimento da superioridade e hegemonia dos princípios na pirâmide normativa; supremacia que não é unicamente formal, mas sobretudo mate-rial, e apenas possível na medida em que os princípios são compreendidos e equipa-rados e até mesmo confundidos com os valores, sendo, na ordem constitucional dos ordenamentos jurídicos, a expressão mais alta da normatividade que fundamenta a organização do poder.

O retorno à idéia de valores que não fundamentam somente a organi-

zação do poder, mas também governam a Constituição, o regime democrático e a ordem jurí-

dica, consoante já visto, a partir dos autores referenciados, guardam relação, também, com o

ápice da superação do positivismo jurídico, relacionando-os com o Direito, como valores pré-

vios, como ideais de justiça e de humanidade. Assim, “sob a forma de normas-princípios, os

valores passaram a ser as idéias centrais das Cartas constitucionais (não apenas filosoficamen-

te – como se esperava sempre tivessem sido – mas também juridicamente)”75.

Destarte, está fixada uma noção geral acerca dos princípios, sua con-

ceituação e da forma como, se não representaram, contribuíram sobremaneira para a supera-

ção do positivismo, após os efeitos injustificáveis dele decorrentes. Antes de se estudar o pa-

pel hermenêutico dos princípios, far-se-ão três distinções necessárias, evitando-se confusões

terminológicas. Uma, entre texto e norma; a segunda, entre regras e princípios; e, a última,

entre os princípios gerais do Direito e os princípios constitucionalizados.

2.1.1 Texto versus norma

A primeira das distinções, entendida como necessária na presente pes-

quisa, é entre texto e norma, para assentar especialmente o que se entende por norma, quando

a ela referir-se.

Texto e norma não significam a mesma coisa, portanto, não se con-

fundem. A interpretação se dá a partir de textos normativos e o resultado dela são as normas,

ou a interpretação consiste na atividade que transforma textos – disposições, preceitos, enun-

ciados – em normas.

O Direito é alográfico, ou seja, a obra só se completa “com o concurso

de dois personagens: o autor e o intérprete, pois, o sentido expressado pelo texto” já é algo

75 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. P. 24.

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novo, distinto do texto: é a norma. O intérprete desvencilha a norma do seu invólucro (o tex-

to), e produz a norma76.

As normas resultam da interpretação, daí que o ordenamento, no seu

valor histórico-concreto, é um conjunto de interpretações ou de normas. De Zagrebelsky é a

afirmação de que “o conjunto de textos é apenas ordenamento em potência, um conjunto de

possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais” e, de Ruiz e Cárcova, a de

“que as disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; eles dizem o que os intérpretes

dizem que eles dizem”77.

O autor78 distingue as normas jurídicas, que são produzidas para se-

rem aplicadas a um caso concreto e a norma de decisão, expressada através de uma sentença,

uma decisão judicial, que somente é produzida por quem Kelsen denomina de intérprete au-

têntico, ou o juiz, que define a segunda a partir das primeiras. A norma jurídica é produzida

pelo intérprete no processo de concretização do Direito e a norma de decisão confere solução

ao caso.

Streck79 muito bem elucida a distinção (sem separação) entre texto e

norma:

O texto não existe em si mesmo. O texto – que só é na sua norma – só se comple-menta no ato interpretativo. O texto como texto é inacessível, e isto é incontornável! (...) Na verdade, o texto não subsiste como texto; não há texto isolado da norma! O texto já aparece na “sua” norma, porque não interpretamos por partes; interpretar é aplicar (applicatio). (...) Em síntese, texto e norma são coisas distintas, mas não se-paradas, no sentido de que possam subsistir um sem o outro. Também por isto um não contém o outro, assim como o ser não contém o ente (e nem o ser é um ente). Entre texto e norma há, sim, uma diferença, que é ontológica.

Para o cumprimento dos objetivos propostos para esta pesquisa, escla-

rece-se ser esse o entendimento acerca da distinção (sem separação) entre texto e norma.

Sempre que se falar em interpretação (concretização) da lei, ou do Di-

reito, está se falando na interpretação de textos normativos, no contexto do constitucionalismo

dirigente no Estado democrático de Direito e da Hermenêutica filosófica. Ou seja, numa visão

76 GRAU, Eros. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 3ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. P. 27. 77 Apud GRAU, 2005. Op. cit., p. III. 78 GRAU, 2005. Op. cit., p. 28. 79 STRECK, Lenio Luiz. Diferença (ontológica) entre texto e norma: afastando o fantasma do relativismo. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Vol. XLVI – nº 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. P. 62.

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de superação do positivismo, de forma mais ampla e, da subsunção e silogismo jurídicos, no

tocante à interpretação/aplicação do Direito.

2.1.2 Regras versus princípios

Ao tratar-se de normas constitucionais, necessária é, também, uma

distinção entre as duas espécies de normas: regras e princípios. No momento em que se falava

dos princípios, como normas fundamentais, apresentou-se o conceito de Ávila80 que, no mes-

mo contexto, traz um conceito de regras:

As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avali-ação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.

Seguindo o mesmo autor, a partir do conceito, verifica-se que, para a

sua aplicação, as regras exigem “a avaliação da correspondência entre a construção conceitual

da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos”.

Apenas para fazer referência, existem vários critérios de classificação

das regras, os quais não serão aqui analisados, uma vez que o objetivo é, tão-somente, apre-

sentar distinção entre regras e princípios. Nesse contexto, será apresentada, apenas, a divisão

em dois grandes grupos: o das regras comportamentais, que descrevem comportamentos co-

mo obrigatórios, permitidos ou proibidos e o das regras constitutivas, que atribuem efeitos

jurídicos a determinados atos, fatos ou situações81.

Já os princípios são normas imediatamente finalísticas, ou seja, esta-

belecem um fim a ser alcançado. Esse fim estabelece um estado ideal de coisas a ser atingido.

Instituído o fim, como ponto de partida, há que se perseguirem os meios, os objetos, situa-

ções, que causam a promoção gradual do conteúdo do fim. Um exemplo apresentado por Ávi-

la82 é o de que “para efetivação de um estado de lealdade e boa-fé é preciso cumprir aquilo

que foi prometido”.

Vários critérios distintivos são apresentados pela doutrina entre regras

e princípios. Alguns deles serão apontados, conforme os resume Barcellos83. O primeiro deles

80 Op. cit., p. 78. 81 Ibidem, p. 78. 82 Ibidem, p. 79. 83 Op. cit., p. 47.

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é respeitante ao conteúdo, no qual os princípios estão mais próximos da idéia de valor e de

Direito, formando uma exigência de justiça, de eqüidade ou da moralidade; já as regras têm

conteúdo diferenciado e não necessariamente com conteúdo moral.

Na origem e validade, a validade dos princípios deriva de seu próprio

conteúdo, enquanto o das regras decorre de outras regras ou dos princípios. No compromisso

histórico, os princípios, em maior ou menor medida, são, para a maioria dos juristas atuais,

universais, absolutos, objetivos e permanentes, enquanto as regras distinguem-se pela contin-

gência e relatividade dos seus conteúdos, tendo conexão com o tempo e o lugar.

Bonavides84 aduz que não há distinção entre princípios e normas, pos-

suindo aqueles a mais alta normatividade de todo o sistema. Contudo, as normas compreen-

dem regras e princípios, sendo as normas o gênero, e as regras e os princípios as espécies. Os

princípios “são compreendidos e equiparados e até mesmo confundidos com os valores, sen-

do, na ordem constitucional dos ordenamentos jurídicos, a expressão mais alta da normativi-

dade que fundamenta a organização do poder”. E prossegue:

As regras vigem, os princípios valem; o valor que neles se insere se exprime em graus distintos. Os princípios, enquanto valores fundamentais, governam a Constitu-ição, o regime, a ordem jurídica. Não são apenas lei, mas o Direito em toda a sua ex-tensão, substancialidade, plenitude e abrangência.

Vê-se que, da doutrina positivista, na qual os princípios possuíam a-

penas função supletiva ou subsidiária – tendo o Direito como simples sistema de leis (regras),

excluindo-se valores, ou a sua dimensão axiológica – eles passam a ter importância vital nos

ordenamentos jurídicos, para fundamentar a hermenêutica dos intérpretes e aplicadores na

concretização do Direito.

Consoante Larenz85, “os princípios jurídicos não têm o caráter de re-

gras concebidas de forma muito geral, às quais se pudessem subsumir situações de fato, i-

gualmente de índole muito geral”. Eles carecem de concretização, que se dá em vários graus.

No grau mais elevado, o princípio não aponta previsão e conseqüência jurídica, apenas uma

‘idéia jurídica geral’, que orienta a concretização ulterior, sendo exemplos do grau mais ele-

vado o princípio do Estado social e o princípio da dignidade da pessoa humana, entre outros.

84 BONAVIDES, 2006, op. cit., p. 288. 85 Op. cit., p. 674.

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Por outro lado, mostram indícios de previsão e conseqüência jurídica

– quando começa a formação da regra – princípios como o de igual tratamento jurídico de

situações de fato idênticas e o da confiança, assim como, no Direito privado, a salvaguarda da

boa-fé (cláusulas gerais, princípios setoriais, que serão vistas adiante).

Destarte, para Larenz86, os princípios são dotados de um grau de gene-

ralidade e abstração superior ao das regras, e possuem menor grau de determinabilidade de

sua aplicação. Neles, também, verifica-se de modo mais proeminente do que nas regras, por

ser possível verificar os valores jurídicos e políticos que condensam.

O processo de concretização, para ele, dá-se através de um processo

dialético, não sendo mais possível a utilização de um processo dedutivo. O processo de con-

cretização é sucessivo, no qual os princípios passam por princípios mais específicos e sub-

princípios, até adquirirem grau e densidade de regras.

Alexy87 também afirma que regras e princípios são normas, não se

contrapõem e que o princípio é a norma máxima. Defende, ainda, que numerosos critérios são

apresentados para sua distinção, sendo o mais freqüente o da generalidade, possuindo as re-

gras um nível relativamente baixo e os princípios um nível relativamente alto de generalidade.

Aponta outros critérios: a determinabilidade dos casos de aplicação; o caráter explícito de

conteúdo valorativo; a referência à idéia de Direito ou a uma lei jurídica suprema; e a impor-

tância para o ordenamento jurídico.

O referido autor diferencia os princípios segundo sejam fundamentos

de regras ou regras em si mesmas e segundo se tratem de normas de argumentação ou de

comportamento. Apresenta três teses sobre a base de serem esse tipo de critérios diferenciado-

res verdadeiros, apontando como verdadeira aquela que as normas podem dividir-se em regras

e princípios e que entre as regras e os princípios não existe somente uma diferença de grau,

mas também uma diferença qualitativa.

Dworkin88, outro crítico do positivismo e defensor da normatividade

dos princípios, afirma que a diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de nature-

za lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obriga-

86 Ibidem. 87 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Ernesto Garzón Valdés (versión castellana).Ruth Zimmerling (revisión). Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997. P. 83. 88 Op. cit., p. 39.

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ção jurídica em circunstâncias específicas, mas se distinguem quanto à natureza da orientação

que oferecem. As regras são aplicadas à maneira do “tudo-ou-nada”. Dados os fatos que uma

regra estipula, então, ou a regra é válida, e, nesse caso, a resposta que ela oferece deve ser

aceita, ou não é válida, e, nesse caso, em nada contribui para a decisão.

Admite exceções à regra, as quais devem ser enumeradas. O exemplo

que aponta é a regra que exige três testemunhas no testamento. Se essa regra jurídica é válida,

nenhum testamento será válido quando assinado por apenas duas, uma ou nenhuma testemu-

nha.

Já com os princípios não é assim. Inclusive, com aqueles que se apro-

ximam de regras, os princípios não apresentam conseqüências jurídicas que se seguem auto-

maticamente quando as condições são dadas. Da mesma forma, não pretendem estabelecer

condições que tornem sua aplicação necessária, sempre precisando de uma decisão particular,

pois pode haver outros princípios ou políticas que apontem para outra direção.

Ainda, para Dworkin, os princípios possuem uma dimensão de peso

ou importância que as regras não têm. Quando eles se intercruzam, para resolver o conflito,

deve-se levar em conta a força relativa de cada um. Sempre que a regra contiver palavras co-

mo ‘razoável’, ‘negligente’, ‘injusto’, entre outras, a sua aplicação depende, até certo ponto,

de princípios e políticas que extrapolem a [própria] regra.

Silva89 concorda com Canotilho90 sobre o fato de que os princípios

fundamentais que começam por ser a base das normas jurídicas, transformam-se em normas-

princípio quando positivamente incorporados. Para este91, a distinção entre regras e princípios

é particularmente complexa. Trata os princípios jurídicos (princípios hermenêuticos adiante,

3.2), como normas qualitativamente distintas das outras categorias de normas, ou seja, das

regras jurídicas.

Os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização,

conciliáveis com vários graus de concretização, de acordo com os condicionamentos fáticos e

jurídicos; já as regras são normas jurídicas que prescrevem imperativamente uma exigência

(impõem, permitem ou proíbem) que pode ser ou não cumprida. Em virtude da referência a

valores ou da relevância ou proximidade axiológica (da ‘justiça’, ‘da idéia de direito’, dos 89 Op. cit.. 90 Op. cit., p. 2261.

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‘fins de uma comunidade’), “os princípios são o fundamento de regras jurídicas e têm uma

idoneidade irradiante que lhes permite ‘ligar’ ou cimentar objetivamente todo o sistema cons-

titucional”. Ainda com Canotilho92 “a convivência dos princípios é conflitual, a convivência

das regras é antinômica; os princípios coexistem, as regras antinômicas excluem-se”.

Assim, por representarem exigências de optimização, os princípios au-

torizam o balanceamento de valores e interesses (não obedecem à regra do “tudo-ou-nada”,

como as regras), conforme o peso e a ponderação de outros princípios eventualmente confli-

tantes. Se a regra vale, não deixa espaço para qualquer outra solução, “deve cumprir-se na

exacta medida de suas prescrições, nem mais nem menos”.

Diante disso, a partir das doutrinas estudadas, tanto nacionais quanto

estrangeiras, é possível afirmar que, embora existam diferenças de entendimentos entre os

autores, há um consenso no sentido de que regras e princípios são normas jurídicas distintas,

por um ou vários aspectos e, especialmente, que o efeito pretendido com os princípios é o de

eficácia e efetividade constitucional, sem esquecer-se do papel que os princípios representam

na superação do positivismo.

Dando seqüência, após uma breve análise da relação entre os princí-

pios gerais do Direito e os princípios constitucionalizados, será investigado o papel hermenêu-

tico dos princípios e sua constitucionalização.

2.1.3 Princípios gerais de Direito e princípios constitucionalizados

Ao trabalhar a importância dos princípios jurídicos para a for-

mação do sistema, Larenz93 denomina-os de ‘princípios ético-jurídicos’, afirmando que alguns

deles estão expressamente declarados nas Constituições ou em outras leis, ao passo que outros

“podem ser deduzidos da regulação legal, da sua cadeia de sentido, por via de uma ‘analogia

geral’ ou do retorno a ratio legis”. O autor trabalha com a idéia dos princípios éticos jurídicos,

englobando tanto aqueles constitucionalizados quanto os princípios legais e os gerais de Di-

reito.

91 CANOTILHO, op. cit. P. 2261. 92 Ibidem, p. 1161. 93 Op. cit., p. 674.

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Afirma Larenz94 que alguns se impuseram na ‘consciência jurídica ge-

ral’ pela força de convicção que lhes é inerente e foram descobertos e declarados primeira-

mente pela doutrina e pela jurisprudência, como forma de auxiliar em casos determinados,

não solucionáveis de outro modo.

Na distinção entre regras e princípios, viu-se que Canotilho95 trata os

princípios como princípios jurídicos e princípios hermenêuticos. Conforme já dito, eles come-

çam por ser a base das normas jurídicas, transformando-se em normas-princípio quando posi-

tivamente incorporados.

Os princípios hermenêuticos desempenham uma função argumentati-

va, permitindo, por exemplo, denotar a ratio legis de uma disposição ou revelar normas que

não são expressas por qualquer enunciado legislativo, possibilitando aos juristas, sobretudo

aos juízes, o desenvolvimento, a integração e a complementação do Direito.

Vale repetir que, para o autor, o Direito Constitucional é um sistema

aberto de normas e princípios, acrescentando que, nos processos judiciais, procedimentos le-

gislativos e administrativos, esse sistema passa de uma law in the books para uma law in acti-

on, para uma living Constitution.

Bonavides96, conforme já referido, pondera que a caminhada teórica

dos princípios gerais, convertendo-os em princípios constitucionais, fez com que, constitucio-

nalizados, “se fazem a chave de todo o sistema normativo”.

Os princípios, postos no ponto mais alto da escala normativa, tornam-

se normas supremas do ordenamento, convertendo-se em normas das normas, critérios por

excelência para a avaliação do todos os conteúdos normativos. A constitucionalização dos

princípios significa que, assim, eles passem a ocupar o papel dos antigos princípios gerais do

Direito, havendo uma ‘unificação dos princípios gerais de Direito em torno dos princípios

constitucionais’, na peregrinação normativa que, inaugurada nos Códigos, agora acaba nas

Constituições. E, ainda, os princípios gerais, elevados à categoria de princípios constitucio-

nais, desatam o nó problemático dos conhecidos princípios supralegais.

94 Ibidem. 95 Op. cit., p. 1163. 96 BONAVIDES, 2006, op. cit., p. 256.

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Já se falou sobre isso. Mas, as raízes da idéia de princípios gerais de

direito são profundas. Sob a concepção jusnaturalista, eles eram emanações de um direito

ideal, abstrato e metafísico. No positivismo, eram fontes subsidiárias, como no artigo 4º da

Lei de Introdução ao Código Civil97, ainda vigente, utilizáveis tão-somente em casos de lacu-

nas na lei. Na fase contemporânea, ganharam hegemonia, assentados no ápice de um pedestal

normativo, sob o qual se assenta todo o ordenamento jurídico, como forma, inclusive, de su-

peração da subsunção e garantia da coerência valorativa do sistema98.

Dessa forma, os princípios encabeçam o sistema, guiam e fundamen-

tam todas as demais normas, com função axiológica vazada em novos conceitos de sua rele-

vância. Essa concepção de supremacia concretizou-se com a jurisprudência dos princípios,

assemelhada à jurisprudência dos valores, em voga nos tribunais constitucionais da época

atual.

O Direito é definido, enquanto sistema, como uma ordem axiológica

ou teleológica de princípios gerais99. Indagando sobre quais os princípios que compõem essa

ordem, Grau100 defende que a compõem os princípios explícitos, recolhidos no texto da Cons-

tituição ou da lei; os princípios implícitos, inferidos como resultado da análise de um ou mais

preceitos constitucionais ou de um conjunto da lei infraconstitucional em sentido amplo; e,

ainda, os princípios gerais de Direito (e não do Direito), também implícitos, coletados no di-

reito presssuposto, tudo de uma determinada sociedade.

Explica melhor que “os princípios gerais de direito – princípios im-

plícitos, existentes no direito pressuposto – não são resgatados fora do ordenamento jurídico,

porém descobertos no seu interior”. Os princípios existentes em estado de latência sob cada

ordenamento – sob cada direito posto – repousam no direito pressuposto que a ele correspon-

de. E o direito pressuposto é a sede dos princípios, enfatizando o autor a não-transcendência

dos princípios implícitos, princípios gerais de um determinado Direito.

No Direto privado, no qual há muito tempo não mais se encontravam

princípios jurídicos, houve, doutrinariamente, a defesa de uma cláusula geral de tutela da pes-

97 “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. 98 MORAES, Maria Celina Bodin de (coord). Princípios do Direito Civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. P.3. MORAES, Maria Celina Bodin de (coord). Princípios do Direito Civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 99 CANARIS, apud GRAU, 2005, p. 139. 100 GRAU, 2005, op. cit.

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soa humana, com fundamento do artigo 1º, III, da Constituição. Como princípio guia, contri-

buiu para reunificar o Direito Civil, que sofria um processo de fragmentação, com um emara-

nhado de microssistemas, ignorando a unidade do sistema, além dos princípios jurídicos. Um

descompasso entre a dogmática e o contexto101.

A constatação da transposição dos princípios básicos do Código Civil

para a Constituição é insuficiente. Há que se defender e lutar por uma mudança do ponto de

vista sistemático, a fim de que os princípios constitucionais se tornem as normas diretivas,

normas-guias, para a reconstrução do Direito Civil.

2.2 O papel hermenêutico dos princípios e sua constitucionalização

Larenz102 atesta que o pensamento não procede linearmente, em um só

sentido, mas sempre em sentido duplo:

o princípio esclarece-se pelas suas concretizações e estas pela sua união perfeita com o princípio. A formação do ‘sistema interno’ ocorre através de um processo de ‘es-clarecimento recíproco’ que identificamos como estrutura hermenêutica fundamental do ‘processo de compreender’, em sentido estrito.

Destaca o processo da compreensão na concretização dos princípios,

considerando a convivência entre diferentes princípios, exercendo grande influxo nas decisões

judiciais.

Canotilho103 defende a pretensão de eficácia da Constituição para im-

primir ordem e conformação à realidade política e social. Referindo-se à normatividade da

Constituição, entende que as expressões normatividade da Constituição e força normativa da

Constituição pretendem significar “que a Constituição é uma lei vinculativa dotada de efecti-

vidade e aplicabilidade”. Visa a exprimir “muito simplesmente, que a Constituição sendo

uma lei como lei deve ser aplicada”, afastando as teses generalizantes que lhe concediam uma

natureza de simples direção política, caráter programático, valor declaratório, despida da força

jurídica caracterizadora das verdadeiras leis.

A teoria dos princípios, emprenhando-se contra o arbítrio, procura fa-

zer com que eles se compadeçam com a normatividade e o exercício do poder, conforme as

101 MORAES, Maria Celina Bodin de (coord), 2006. P.2. 102 Op. cit., p. 676. 103 Op. cit., p. 1150.

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exigências da natureza humana, dando uma nova versão de legitimidade à ordem jurídica,

com fundamento na Constituição104.

Além da revolução que faz emergir o paradigma hermenêutico filosó-

fico, outra revolução copernicana foi provocada no Direito público, passando de uma fase em

que as normas constitucionais dependiam da interpositio legislatoris a uma fase na qual as

normas constitucionais devem ser aplicadas diretamente nas situações de vida, o que permite

dar tradução prática ao princípio da constitucionalidade, através do aparecimento de uma jus-

tiça constitucional105. Esse aspecto foi fixado no capítulo segundo, quando se discorria sobre

a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais.

Na segunda metade do século XIX, estudando os fenômenos sociais e

políticos de uma Constituição, considerando sua realidade contemporânea, Lassale106 concei-

tua a Constituição como a lei fundamental, distinguindo-a das outras leis, por ser insuficiente

tal conceituação. Destarte, a idéia de um fundamento carrega implícita a noção de uma “ne-

cessidade ativa, de uma força eficaz que faz, pela lei da necessidade, que o que sobre elas se

funda seja assim e não de outro modo”.

A essa força ativa denomina de fatores reais de poder, com poder

também informativo, “que influencia de tal modo todas as leis promulgadas nesse (Prússia)

país que as obrigue a ser necessariamente, até certo ponto, o que são e como são, sem lhes

permitir ser de outro modo “(interrogação no original).

A soma dos fatores reais do poder que regem uma determinada socie-

dade é essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições. Juntando-se esses fa-

tores reais de poder e escrevendo-os, eles adquirem expressão escrita, transformando-se em

verdadeiro Direito – instituições jurídicas. Resta transformar os fatores reais de poder em fa-

tores jurídicos. Sem essa transformação, uma Constituição real e verdadeira – efetiva, somen-

te escrita, é apenas uma folha de papel, dissociada dos fatores reais de poder que a justifi-

cam107.

104 BONAVIDES, 2006. P. 260. 105 MIRANDA, apud STRECK, 2004. 106 LASSALE, 2002, op. cit., p. 10. 107 LASSALE, 2001, op. cit., p. 17

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Hesse108 já defendia a força normativa da Constituição como forma de

imprimir ordem e conformação à realidade política e social. Contrapondo-se às reflexões de

Lassale, Hesse entende que, no embate entre os fatores reais de poder e a Constituição, esta

não deve ser considerada a parte mais fraca. À vontade de poder, contrapõe a vontade de

Constituição. Assevera que, graças ao elemento normativo, ela ordena e conforma a realidade

política e social, logrando conferir forma e modificação à realidade. Ou, então, está condicio-

nada à realidade histórica.

Na atualidade, a jurisdição constitucional passa a ser a condição de

possibilidade do Estado democrático de Direito, consoante Streck109, que qualifica a Constitu-

ção Federal de 1988 como uma “Constituição social, dirigente e compromissária”, denuncian-

do que o modelo frágil de Constituição que se pratica no Brasil é aferível a partir de uma aná-

lise do grau de (in) efetividade do texto constitucional em vigor. Essa prática está a exigir um

redimensionamento do papel do jurista e do Poder Judiciário, trazendo o autor um paradoxo:

“uma Constituição rica em direitos (individuais, coletivos e sociais) e uma prática jurídico-

judiciária que, reiteradamente, (só) nega a aplicação de tais direitos”.

Naquilo que se entende por Estado democrático de Direito, não houve

ainda a devida filtragem do velho Direito, produto de um modelo liberal-individualista-

normativista do Direito, para vê-lo como um instrumento de transformação social. Nessa linha

de raciocínio, a jurisdição constitucional passa a ser a condição de possibilidade do Estado

democrático de Direito.

Para Grau110, peculiariza a interpretação das normas constitucionais o

fato de a Constituição ser o estatuto jurídico do político, que conduz à valoração de “valores

políticos”, que penetram o nível do jurídico na Constituição, contemplados em princípios,

conformadores da interpretação constitucional, os quais permitem um clima que, além de sua

concretização, promovem a atualização da própria Constituição.

A linha da hermenêutica filosófica, aliada ao neo-constitucionalismo,

como forma de superação do positivismo, com a introdução no ordenamento jurídico dos

princípios – como normas vinculativas – constitui um dos pontos centrais para o cumprimento

dos objetivos propostos para esta dissertação de Mestrado.

108 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição (Die normative kraft der Vervassung). Gilmar Ferreira Mendes (trad.). Porto Alegre: Fabris Editor, 1991. Passim. 109 STRECK, 2004. P. 15.

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Prosseguindo, far-se-á uma análise introdutória dos princípios e cláu-

sulas gerais do Novo Direito Civil, uma vez estabelecidos: o ambiente do Estado constitucio-

nal e democrático de Direito; uma visão atual do Direito Civil – constitucional; da relação

entre o público e o privado; e o papel hermenêutico dos princípios constitucionais (e infra-

constitucionais), para o rompimento de paradigmas e a eficácia da Constituição Federal.

Então, no capítulo derradeiro, será possível levantar e estudar qual o

papel que o princípio da socialidade expressa e sobre como ele pode auxiliar os profissionais

do Direito em todo esse processo de concretização e de interpenetração do público e do priva-

do, no ambiente estabelecido.

2.3 Os princípios de Direito Civil e as cláusulas gerais

Prosseguindo nessa tarefa de pesquisa, é de se acrescentarem ao estu-

do “as (suas) características mais marcantes” (do novo Código Civil)111 ou as diretrizes, os

princípios que o norteiam e que visaram a adequar a legislação civil e comercial (empresarial)

à realidade contemporânea.

Os direitos e deveres devem estar situados no contexto da nova socie-

dade, gerada a partir de duas guerras universais, da revolução industrial e tecnológica, da e-

mancipação da mulher, entre outros fatos, conforme já referido em outros momentos, além da

passagem de uma sociedade predominantemente rural e agrícola, para o sentido dinâmico da

vida urbana, aberta aos imperativos da socialização do progresso.

Lembrando-se que, para tanto, e, em memória do saudoso Professor

Miguel Reale, em meados de 1970, a sistematização do Anteprojeto do Código Civil já inclu-

ía como nota dominante tais diretrizes. São elas os princípios de Direito Civil, no Código de

2002, quais sejam, a socialidade, a eticidade e a operabilidade112.

Muitas críticas poderiam ser feitas ao novo Código Civil, mas este

trabalho está centrado na grande inovação representada pelos princípios e cláusulas gerais,

que permitem a atualização do ordenamento jurídico, ao lado da Constituição do Estado de-

110 GRAU, 2002, op. cit., p. 186. 111 REALE, 1999, op. cit. P. 9. 112 A doutrina – a exemplo de PASSOS, Fernando. O Direito Empresarial no Novo Código Civil Brasileiro. In MENCONÇA, Jacy de Souza et. al. Inovações do Novo Código Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2004. P. 70 – desdobra o princípio da operalidade em outro, o princípio judicialista, que confere ao juiz maior liberdade de operar o Direito conforme o princípio ético que o direito indique para o caso concreto.

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mocrático (e social) de Direito. Conforme Mendonça, não houve alteração geral do Código de

1916, somente uma grande quantidade de alterações e nem se substituiu um código pelo ou-

tro. Mas isso é pouco importante113.

Embora o espaço próprio dos princípios jurídicos, depois da migração

deles, do Direito privado para as Constituições, por excelência, seja o texto constitucional,

cada vez mais se têm princípios setoriais, o que configura o Direito como um conjunto de

valores para orientar a vida em sociedade.

Nos ordenamentos jurídicos atuais, cada disciplina jurídica possui vá-

rios princípios e, embora todos os seus valores devam ser realizados, quando concretizado o

Direito, na prática, o ambiente jurídico ainda se encontra refratário. Mas esses valores a serem

realizados devem ter sempre, como base axiológica, aqueles assegurados na Constituição, que

consolida a unidade do sistema. Trata-se da estudada constitucionalização do Direito Civil114.

Assegurada a hierarquia das normas, os princípios constitucionais de-

vem estar presentes em toda concretização do Direito – regras e princípios setoriais, ou seja,

devem guiar a interpretação destes.

O princípio da socialidade, em rápidos traços, pois será retomado

mais adiante, representa o sentido social, contrastando com o sentido individualista (superan-

do-o) que condicionava o Código de 1916 e faz prevalecerem os valores coletivos sobre os

individuais, sempre centrado no valor fundante da pessoa humana.

Tal princípio não pode ser confundido, entretanto, com a geração da

massificação, que traria o sacrifício da individualidade como componente essencial de um

Código Civil. Isso representaria, para Reale115, uma tolice tão evidente que sequer mereceria

ou comportaria discussão.

Já o princípio da eticidade, flagrante em diversos pontos do NCC, tira

da norma jurídica positiva (regra) o caráter de plenitude. Aquela norma deixa de ser pura,

permitindo que sejam utilizados recursos ético-jurídicos para encontrar a solução mais justa e

eqüitativa, para cada caso concreto.

113 MENDONÇA, Jacy de Souza. Princípios e Diretrizes do Novo Código Civil. In MENCONÇA, Jacy de Souza et. al. Inovações do Novo Código Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2004. P. 17. 114 MORAES, Maria Celina Bodin de (coord), 2006. P. 4. 115 Ibidem. P. 10.

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Via de conseqüência, os princípios e cláusulas gerais insertos no NCC

conferem um grande poder ao juiz e, por efeito, em muito ampliam a responsabilidade de to-

dos os profissionais do direito que postularem em juízo direitos alheios.

Ihering116 afirmava ser da essência do Direito a sua realizabilidade,

ou, nas palavras do autor referido:

Sem luta não há direito, da mesma forma que sem trabalho não há propriedade. À frase “no suor do teu rosto hás de comer o teu pão” contrapomos outra, não menos válida: “Na luta hás de encontrar o teu direito”. No momento em que o direito re-nuncia à luta, ele renuncia a si mesmo.

O princípio da eticidade representa “a indeclinável participação dos

valores éticos no ordenamento jurídico, sem abandono, é claro, das conquistas da técnica ju-

rídica, que com aqueles deve se compatibilizar”, o que foi feito, optando-se, muitas vezes, por

normas genéricas ou cláusulas gerais117, como a boa-fé118, os costumes e os fins econômicos

e sociais, como no artigo 113119 do Código Civil.

Para o autor, o artigo 113 é um artigo-chave do Código Civil, rico em

conseqüências, ao fixar, desde logo, a eticidade de sua hermenêutica – consagrando a eleição

dos negócios jurídicos como disciplina preferida para regulação genérica dos fatos jurídicos –

em razão da boa-fé120, bem como a sua socialidade, ao fazer alusão aos usos do lugar de sua

celebração121. Assim, o normativismo legal do Código de 1916 dá lugar ao normativismo

plural do novo Código Civil.

A ética é uma ciência que racionalmente analisa as regras que condu-

zem o comportamento do homem à realização do bem e a moralidade é o comportamento a-

ceitável, costumes aceitos ou aceitáveis, num determinado momento e num determinado lu-

gar. O Direito se interessa pelo elemento subjetivo do homem só quando exteriorizado e a 116 IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. São Paulo: Martin Claret, 2000. Trad. Pietro Nassetti. P. 94. 117 REALE in REALE; MARTINS-COSTA, op. cit., p. 37. 118 A cláusula da boa-fé encontra suporte constitucional, como decorrência do princípio da solidariedade, objeti-vo fundamental adiante analisado. Quando violada a cláusula da boa-fé, surge o abuso do direito. Sobre a ques-tão ver: CARDOSO, Vladimir Mucury. O abuso do Direito na Perspectiva Civil-Constitucional. In MORA-ES, Maria Celina Bodin de (coord.), 2006, op. cit., p. 61. Na mesma obra: NEGREIROS, Teresa. O Princípio da Boa-Fé Contratual. P. 221. 119 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebra-ção. 120 A matriz da eticidade, “a qual não existe sem a intentio, sem o elemento psicológico da intencionalidade ou do propósito de guardar fidelidade ou lealdade ao passado. Dessa intencionalidade, no amplo sentido dessa pala-vra, resulta a boa-fé objetiva, como norma de conduta que deve salvaguardar a veracidade do que foi estipulado. REALE, in REALE; MARTINS-COSTA, op. cit., p. 241.

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moral ou ética, com a exterioridade que resulta da interioridade (se alguém deseja matar o

outro, mas nada faz nessa direção, tem-se um problema moral, sem interesse para o Direi-

to)122.

Após distinguir mais aprofundadamente entre moral e ética, procuran-

do recortar a idéia que está por baixo do termo eticidade, conforme utilizado pelos autores do

projeto, Mendonça123 conclui que, quando eles se referem à eticidade, à boa-fé ou aos bons

costumes, não estão falando em ética ou moral, mas sim empregando uma qualificação do

elemento subjetivo, relativo, variável, mutável todos os dias e em todos os lugares, que deve

presidir a conduta humana.

Entretanto, há algo em comum entre ética e Direito: ambos buscam o

bem, que é a finalidade do homem, buscam a realização dos fins humanos, do bem do homem

e, então124:

a referência à boa-fé, à má-fé, aos bons costumes, enfatiza que não basta a vontade livre para que o ato seja acolhido ou rejeitado pelo Direito – é preciso que essa von-tade seja bem ou mal intencionada. Esse é o tema da eticidade. Quando há uma dis-posição de vontade (dolosa ou culposa) carimbada pela intenção boa ou má, entra-mos no campo da eticidade anunciada pela comissão revisora do código.

Por fim, o autor sustenta que o Código de 1916 previa 32 hipóteses da

mesma natureza, enumerando-os e, por isso, não aceita o princípio da eticidade como diretriz

que justificou a alteração do código. Para ele, o que melhorou foi a explicitação de novas hi-

póteses, algumas das quais já eram acolhidas pela jurisprudência. “O que se fez foi melhorar,

ampliar a aplicação do princípio, isto sim!”125.

Nesse interregno temporal, entre o Código de 1916 e o atual, confor-

me se defende insistentemente neste trabalho de pesquisa, a Lei Maior, em 1988, foi quem

impôs uma grande viragem sobre as concepções jurídicas no Brasil. A Constituição, ao lado

do trabalho da jurisprudência e dos estudiosos do Direito, promoveu essa revolução: conferir

121 Significa voltar a dar importância ao Direito consuetudinário, banido do sistema anterior, que atuava como um sistema de normas legais, rigorosas e auto-suficientes. 122 MENDONÇA, op. cit., p. 18. 123 Op. cit., p. 19. 124 Ibidem, p.21. O autor aponta uma série de artigos novos, que tratam da presença da moralidade, da boa ou má-fé, dos bons ou maus costumes, no Código Civil: artigos 13, 50, 110, 113, 119, 167 e § 2º, 187, 422, 589, 891, 896, 1.011, 1.222, 1.243, 1.255 parágrafo único, 1.258, 1.259, 1.260, 1.268, 1.561 § 2º, 1.817, 1.827 pará-grafo úncio, 1.818 parágrafo único, 1.828. 125 Op. cit., p. 22.

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ao texto constitucional, às normas constitucionais – regras e princípios – eficácia e aplicação

imediata.

Ora, o Direito é feito para ser executado, para ser operado. Daí o prin-

cípio da operabilidade, trazendo normas, cláusulas gerais ou abertas, para que a atividade

social, na sua evolução, venha e possa alterar-lhe o conteúdo, através da hermenêutica. Com

ele, o Código estabelece soluções normativas de modo a facilitar a sua interpretação e aplica-

ção pelos profissionais do Direito.

Exemplo disso é a distinção entre prescrição e decadência (esta, quan-

do for o caso, prevista expressamente após o artigo sobre a matéria), com esforços para evitar

conseqüências danosas de ordem prática, bem como a distinção entre associação e sociedade

(artigo 53)126, indicando, aquelas, entidades de fins não econômicos e estas, as de objetivos

econômicos.

O objetivo de concretude, igualmente, permite e autoriza soluções que

deixem margem ao juiz, aos postulantes em juízo e à doutrina, para apelar a conceitos inte-

gradores da compreensão ética, tais como os da boa-fé, da eqüidade, da probidade, da finali-

dade social do direito, da equivalência de prestações, entre outros, ou, em outras palavras, da

contingência insuperável de permanente adequação dos modelos jurídicos aos fatos sociais127.

Viu-se que a operalidade amplia o campo da discricionariedade do ju-

iz. Para Mendonça128, aumenta também a possibilidade de decisões arbitrárias dos juízes, em

diversos artigos que lhes atribuem o poder de decidir independente ou ao arrepio da lei. Reco-

nhece que o conflito entre o condicionamento da decisão judicial à prévia lei ou a livre edição

do direito pelo juiz sempre existiu, questionando qual deles seria o melhor processo.

Admite que, como em tudo na vida, há vantagens e desvantagens e

que, em ambos os casos, se o juiz pode mais facilmente realizar a justiça, pode também mais

facilmente realizar a injustiça. Da mesma forma que com o princípio da eticidade, afirma que

o Código de 1916 já tinha, também, vários dispositivos que atribuíam uma faixa discricionária

aos juízes, enumerando-os.

126 Art. 53. Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos. 127 REALE, 1999, op. cit. p. 35. 128 Op. cit., p. 35.

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O Código Civil permite que o juiz, em vários casos, atue como árbitro.

Esses princípios foram estabelecidos para tanto. Então, para Reale129:

Não foi mais considerada (não mais considerando) sem limites a fruição do próprio direito, reconhecendo-se que este deve ser exercido em benefício da pessoa, mas sempre respeitados os fins ético-sociais da comunidade a que o seu titular pertence. Não há, em suma, direitos individuais absolutos, uma vez que o direito de um acaba onde o de outrem começa.

E, segundo Gustavo Kloh Muller Neves130, o papel dos princípios no

Direito Civil Constitucional é servir de mecanismo para a implementação de uma ordem jurí-

dica renovada, pois:

qualquer bandeira levantada por uma ordem justa em uma sociedade cujos patama-res jurídicos contemplem o pluralismo não pode prescindir dos princípios, os quais, metodologicamente, são de todo adequados para a flexibilidade e as quebras neces-sárias em um sistema que contemple a discordância.

Neste momento, é interessante destacar que, para Perlingieri, a ativi-

dade interpretativa criadora se dá no sentido131

de que manifesta historicamente os valores do ordenamento, individua a normativa idônea, constitui um precedente doutrinal e jurisprudencial com uma sua autoridade e um seu peso nas elaborações sucessivas da jurisprudência e da ciência; julga a compatibilidade da norma ao caso concreto.

E, ainda, para combater a possível arbitrariedade dos juízes, uma das

mais acirradas críticas aos princípios setoriais e à normatividade da Constituição, vale desta-

car que a decisão judicial, no Estado constitucional, social e democrático de Direito, está for-

temente ligada a uma atividade interpretativa, que é vinculada e controlada. Vinculada às es-

colhas e aos valores do ordenamento, pela própria Constituição Federal e, controlada, porque

deve ter uma motivação idônea, adequada. A possibilidade de revisão das decisões, em geral,

por colegiados, também justifica a vinculatividade e a adequação.

As cláusulas gerais são fontes de direito e de obrigações, e o Código

Civil está impregnado delas. Entre as cláusulas gerais e os princípios (para o autor princípios

gerais de Direito, conceitos legais indeterminados e conceitos determinados pela função) há

129 REALE in REALE; MARTINS-COSTA, op. cit., p. 207. 130 RAMOS, Carmem Lucia Silveira (org.) et AL, op. cit., p. 14. 131 Op. cit., p. 81.

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verdadeira interação. A solução dos problemas reclama a atuação conjunta desse arsenal.

Nery Júnior132 define as cláusulas gerais como sendo

normas orientadoras sob forma de diretrizes, dirigidas precipuamente ao juiz, vincu-lando-o ao mesmo tempo em que lhe dão liberdade para decidir. As cláusulas gerais são formulações contidas na lei, de caráter significativamente genérico e abstrato, cujos valores devem ser preenchidos pelo juiz autorizado para assim agir em decor-rência da formulação legal de própria cláusula geral, que tem natureza de diretriz.

Para o autor, a natureza jurídica da cláusula geral é de norma jurídica,

fonte criadora de direitos e de obrigações, norma de ordem pública, que deve ser aplicada ex

officio pelo juiz, não se colocando o problema de decisão incongruente com o pedido (extra,

ultra ou infra petita), apenas dando à situação concreta o preenchimento do conteúdo (concre-

to) da cláusula geral. Para tanto (gerar direitos e obrigações), as cláusulas gerais têm função

instrumentalizadora, que significa dizer, que “o juiz deve servir-se de sua enunciação abstrata

para dizer, na situação concreta que se lhe apresenta, o que seria dar função social àquele de-

terminado contrato que está sob sua análise”133.

Com relação à técnica das cláusulas gerais, que deixam ao juiz ou ao

intérprete uma maior possibilidade de adaptar a norma às situações de fato, Perlingieri, falan-

do do Código Civil da Itália, que é de 1942, inspirado em uma ideologia produtivista e eco-

nomicamente autosuficiente, afirma que elas assumem um significado diverso se forem lidas e

aplicadas na lógica da solidariedade constitucional134.

As cláusulas gerais deverão ser utilizadas sempre em conformação

dogmática, articuladas e integradas aos demais princípios setoriais e, em especial, aos princí-

pios constitucionais.

Ao lado dos princípios, a inclusão de inúmeras cláusulas gerais, ou

abertas, a exemplo do artigo 422135, permite a ampliação da atenção dispensada a outros prin-

cípios. São seus exemplos a eqüidade, a probidade, a boa-fé, a correção por parte do titular do

direito ou quando for impossível determinar com precisão o alcance da regra jurídica (aluguel

arbitrado pelo locador ser manifestamente excessivo, parágrafo único do artigo 575), entre

132 NERY JUNIOR, Nelson. Contratos no Código Civil – apontamentos gerais. In FRANCIULLI NETTO, op. cit., p. 408. 133 Ibidem, op. cit., p.425. 134 PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil. Tradução: Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 3ª ed. rev. e ampl. P. 27. 135 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

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outros. Antes, tais cláusulas eram lembradas apenas excepcionalmente ou em casos de lacunas

da lei136.

Na dupla acepção dada por Aristóteles à eqüidade, como instrumento

de interpretação das normas jurídicas, segundo a sua adequada e prudente medida e, também,

para suprir lacunas inevitáveis no corpo da legislação, a sua salvaguarda amplia, em muito, a

exemplo de todo o contexto ora analisado, o poder do juiz, na aplicação da lei ao caso concre-

to. E sobre o juiz, assim Aristóteles se expressa137:

Eis por que, quando ocorrem disputas, as pessoas recorrem ao juiz. Recorrer ao juiz é recorrer à justiça, pois a natureza do juiz é ser uma espécie de justiça animada, e as pessoas procuram o juiz como um intermediário, e em algumas cidades-Estado os juízes são chamados mediadores, na convicção de que, se os litigantes conseguirem o meio-termo, obterão o que é justo. Portanto justo é um meio-termo já que o juiz o é. O juiz, então, restabelece a igualdade.

Além da inovação respeitante aos Direitos da Personalidade, que não

serão aprofundados, Reale138 lembra três artigos do Anteprojeto, dois no novo Código Civil,

para ilustrar o “abandono da pretensão de resolver os problemas jurídicos apenas graças a

estritas categorias da Ciência do Direito, com abstração dos valores éticos e sociais”, quais

sejam, os artigos 113 e 186139, que contemplam a boa-fé e os usos (costumes), mais os fins

econômicos ou sociais.

Referindo-se a críticas sobre a não-inclusão de temas no Código Civil,

como a concepção in vitro e às uniões homossexuais, Reale140 entende que eles extrapolam a

Lei Civil e exigem lei especial, por exigir a primeira medidas de ordem administrativa, para a

proteção do sêmen e legitimidade da paternidade, envolvendo questões de medicina e enge-

nharia genética; e, o segundo, por tais relações comportarem uma série de medidas diversifi-

cadas de ordem patrimonial, no plano sucessório e com referência à possibilidade ou não de

adoção. Essas questões não serão aprofundadas, por não terem relação direta com o tema pro-

posto para o presente trabalho.

A ampliação do poder do magistrado o obriga a analisar axiológica e

casuisticamente o caso concreto apresentado, o que obriga, também, os profissionais do Direi-

to, postulantes em juízo, a utilizarem-se da hermenêutica jurídica, para perseguirem os ideais 136 Conforme já dito, na exegese da LICC. 137 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Pietro Nassetti (trad.). São Paulo: Martins Claret 2003. P.111. 138 REALE in REALE; MARTINS COSTA, op. cit., p. 27. 139 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

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de justiça e a aplicação das cláusulas gerais e princípios que norteiam o NCC. A opção por

normas genéricas ou cláusulas gerais (princípio da eticidade) possibilitou aos juízes e aos ad-

vogados a criação de modelos jurídicos hermenêuticos, para a contínua atualização dos pre-

ceitos legais141.

O objetivo dessas mudanças é alcançar o Direito em sua concreção,

em razão dos elementos de fato e de valor que devem ser sempre levados em conta. Em outras

palavras, realizar o Direito em sua concretude, lembrando a teoria do Direito concreto, e não

puramente abstrato142.

Os princípios e a abertura do Código Civil estão intimamente ligados

à análise civil-constitucional, ponderada no capítulo segundo. Afinal, reiterando, o Direito

constitucional foi quem inaugurou essa nova era, na qual ordem pública e ordem privada se

interpenetram e confluem, quebrando a dicotomia até bem pouco tempo existente.

Entretanto, em havendo a possibilidade de uma postulação/decisão o-

fender ou transgredir direitos fundamentais ou princípios constitucionais, a Constituição pre-

valecerá. Em outras palavras, reiterando, as normas – regras e princípios, tanto constitucio-

nais, quanto infraconstitucionais, formam uma unidade sistemática, com aquelas em seu ápi-

ce.

Agora, resta o quarto e último capítulo, no qual será apreciado o prin-

cípio civil da socialidade e alguns dos seus possíveis desmembramentos nos principais institu-

tos civis, não sem antes tratar-se dos princípios constitucionais que a ele servem de fundamen-

to.

140 REALE in REALE; MARTINS COSTA, p. 213. 141 Ibidem, p. 37. 142 REALE in REALE; MARTINS-COSTA, op. cit., p. 41.

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3 O processo de constitucionalização do Direito Civil: interpene-

tração do público e do privado

No segundo capítulo, estudar-se-á, num primeiro momento, o proces-

so de constitucionalização143 do Direito Civil, ou de dizer o óbvio: é preciso constitucionalizar

o direito infraconstitucional, compreendendo a Constituição Federal:144

não somente como o/um documentos para organizar o Estado, mas, sim, a própria explicitação do contrato social e o espaço de mediação ético-política da sociedade. (...) É necessário ter claro (para tanto) que o cumprimento do texto constitucional é condição de possibilidade para a implantação das promessas da modernidade, em um país em que a modernidade é (ainda) tardia e arcaica. Para que se cumpra a Constituição e viabilize-se a dignidade da pessoa humana – e só para isso tem senti-do um Estado organizado e uma Constituição – necessitamos, primeiro, superar esse paradigma normativista, próprio de um modelo de Direito liberal-individualista, he-gemônico no plano das práticas judiciárias, no qual os próprios mecanismos para vi-abilizar os direitos sociais e fundamentais, passados treze (quase vinte) anos da pro-mulgação da Constituição, têm permanecido ineficazes.

Tal processo foi deflagrado, senão somente, em grande parte145, em

um momento único da história constitucional brasileira, qual seja, com a promulgação da

Constituição Federal de 1988, seguida de pesquisas de estudiosos do Direito e do trabalho

jurisprudencial. E, por conseqüência, deve desenvolver-se dentro de um Estado constitucio-

nal, democrático e social de Direito, nos moldes do propugnado no capítulo primeiro146.

Em seguida, serão analisados os principais paradigmas147 que preci-

sam ser alterados no imaginário dos juristas, dos profissionais do direito e, especialmente, nos

cursos de graduação, como forma de realizar a necessária transformação da realidade, dentro

de um quadro que aparenta irreversibilidade, mas, ainda, aberto a muita discussão e realiza-

ção.

A mudança paradigmática do Direito Civil será retomada, ao estudar-

se sobre o princípio da socialidade, no último capítulo, respeitante aos principais pilares do

Direito Privado.

143 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil: à luz do novo Código Civil Brasileiro. 2 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 77 diz que se entende por constitucionalização “o processo pelo qual a Constituição vai gerar mudança que irá repercutir no Direito Civil” 144 STRECK. Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do Direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. P. 846. 145 Não se pode esquecer das transformações ocorridas no meio social e, em especial, das promessas da moderni-dade, sequer cumpridas na realidade social do país. 146 Conforme Streck, op. cit., p. 849, no novo paradigma do Estado democrático de Direito fundado em dois pilares: o da democracia e o da realização dos direitos fundamentais.

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Tratar-se-á, também, da dicotomia dos interesses/Direito público

versus interesses/Direito privado, numa visão mais atualizada, não em forma de dicotomia,

mas de interpenetração ou imbricação deles, dependente de cada situação concreta, da neces-

sidade de aventar-se sobre o público, sobre o privado, ou da relação entre ambos. Ou seja,

afastar e rejeitar a ainda existente dicotomia público x privado. Considera-se, assim, a queda

da clássica dicotomia, defendendo a interpenetração do público e do privado, com a primazia

dos direitos fundamentais e princípios constitucionais (tema do capítulo terceiro).

3.1 O processo de constitucionalização do Direito Civil: uma leitura civil-

constitucional

3.1.1 Breve esboço histórico

As fontes do Direito Civil brasileiro, na época colonial, foram as Or-

denações dos reis de Portugal, além do Direito Comum (Canônico e Romano). Primeiro, as

Ordenações Afonsinas, por um curto período, substituídas pelas Ordenações Manuelinas, em

1514 e, em 1603, entram em vigor as Ordenações Filipinas, obras dos reis espanhóis, que se

estenderam até a República. No início da República continuaram em vigência as leis de Por-

tugal – Filipinas e as leis régias, além do Direito Comum já referido e os costumes148.

Concomitantemente, inicia uma atividade legislativa brasileira que,

aos poucos, vai substituindo a legislação portuguesa. Em 1850, entra em vigor o Código Co-

mercial, válido, em parte, até os dias atuais. O Código Civil, cujas tentativas tiveram início

em 1845, demorou bem mais a sair – 1916.

Afirma Fiuza149 que o Código Civil de 1916 já nasceu com os olhos

voltados para o passado: “Fruto de um esforço liberal em seus últimos suspiros”, pois o para-

digma do Estado social já vinha se impondo na política e na economia das nações.

O Código Civil de 1916 foi fruto da inspiração dos legisladores nas

doutrinas individualistas e voluntaristas, consagradas pelo Código de Napoleão e incorporadas

pelas codificações do século XIX. Os ideários da Revolução Francesa, como marcos divisó-

rios de uma nova era, visavam a atender a demandas contingentes e conjunturais, a fim de

reequilibrar o quadro social da época. O movimento iluminista, fruto do Renascimento, do 147 Por Fachin, op. cit., p. 222, o termo “paradigma” é usado para simbolizar ruptura e transformação. 148 FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 8ª ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 71.

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capitalismo mercantil e da criação do Estado Nacional central, entretanto, foi o grande res-

ponsável, no Direito, por uma grande reviravolta.

O Código de 1916 ainda se mantinha extremamente vinculado

ao princípio da autonomia da vontade – em termos individualistas –, na assertiva de que o

contrato faz lei entre as partes. Tal dispositivo causou grandes danos, obrigando, muitas ve-

zes, os contratantes a executarem um contrato, ainda que ruinoso. A passagem para o novo

Código Civil (NCC) preserva o direito de contratar – o contrato é uma das grandes conquistas

da civilização humana – mas previne o abuso, por exemplo, quando consagra o princípio da

onerosidade excessiva150.

Na tentativa de adaptá-lo aos ditames do Estado social, em 1919 já

começaram as correções e emendas. A partir daí, aconteceu uma proliferação legislativa, que

se estende até os dias atuais. Tal proliferação é conseqüência, em parte, da evolução da socie-

dade urbana, com a revolução industrial – mesmo que um pouco tardia no Brasil –, dos novos

hábitos do pós-guerra, que provocaram o reconhecimento dos direitos do trabalhador e do

consumidor, da mesma forma que a chamada revolução sexual – que ampliou os direitos das

mulheres e alterou os direitos e deveres da e para com a criança e o adolescente, por exemplo.

Foram editados, entre outros, a Consolidação das Leis do Trabalho, o

Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei do Divórcio,

a Lei das Locações Urbanas e o Estatuto da Terra, com princípios ordenadores diferenciados,

formando verdadeiros microssistemas. Essas novas leis passaram a ser mais aplicadas do que

o Código Civil que, de centro do direito privado, passa a ser comparável a uma delas, a uma

lei supletiva e periférica.

O Código Civil já perdera, desde há muito, a cômoda unidade sistemá-

tica de direito civil, com a grande edição de legislação, de cunho especial e, já capenga e en-

fraquecido, continuou perdendo, cada vez mais, o seu monopólio.

Era um Código anterior à Primeira Grande Guerra, trinta anos distante

da Segunda. Lembrando a Primeira Guerra, lembra-se, também, da Revolução Bolchevista,

ou, “do impacto do movimento socialista no mundo”. Além disso, outra metamorfose igual-

mente abalou o mundo: a da tecnologia. Ela provoca vertiginosas conseqüências no tempo 149 Idem, p. 72.

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atual com a automação: a cibernética. Destarte, Beviláqua legislou para um Brasil agrícola e

patriarcal151. Contribui para essas mudanças, o Welfare State, já estudado, em nível infracons-

titucional, denotando o início da intervenção estatal num sistema de Direito privado já ultra-

passado e insuficiente.

Em 1988, a partir de um intenso e excepcional momento histórico,

com grandes conquistas de movimentos populares e fragmentos da sociedade, a promulgação

da Constituição Federal inaugura uma nova era no Direito brasileiro. Lembra-se, aqui, a con-

sagração do Estado social, ao lado do Estado constitucional e democrático de Direito, con-

forme defendido no capítulo primeiro deste estudo.

A humanidade teve que passar por duas guerras mundiais, para que

acontecesse a revolução copernicana do constitucionalismo, com vontade firme de instaurar

uma nova era, com um texto fundador, confiante em organizar um futuro libertador. Nessa

função instituidora do Estado democrático de Direito, a Constituição representa o legado mais

importante do século XX e ainda o será do século XXI152. Esse novo período nasce a partir de

um momento histórico do país, que exigiu a releitura constitucional do Direito Civil, o que se

convencionou chamar de constitucionalização do Direito Civil, publicização do privado, leitu-

ra civil-constitucional, entre outros. O dirigismo contratual e as instâncias de controle social

alteram o comportamento do Estado, que passa, cada vez mais, a intervir no domínio privado,

em socorro dos bons costumes e da ordem pública. Utilizando-se do poder legislativo, redefi-

ne os espaços do público e do privado.

A intervenção direta do Estado nas relações de direito privado abre a

perspectiva de interpretação de um Direito Civil constitucionalizado – apenas e tão-somente

se for necessário adjetivá-lo – a fim de compatibilizar as demandas sociais e econômicas da

sociedade atual, e não como forma de agigantar o direito público em detrimento do privado. É

o próprio Direito Civil que se altera e evolui, exigindo-se dos profissionais do direito, apenas

a coragem de enfrentar o novo e alterar a dogmática.

Fiuza153 apresenta a crise como superação de paradigmas por que pas-

sava e continua a passar o Direito Civil. Coloca-a em três momentos distintos. Em primeiro,

150 REALE, Miguel. O projeto do Novo Código Civil: situação após a aprovação pelo Senado Federal. 2ª ed. reform. e atual. São Paulo: Saraiva, 1999. P. 149. 151 REALE, 1999, op. cit. p. 148. 152 Op. cit., p. 96. 153 Op. cit. p. 88.

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de suas instituições: a autonomia da vontade, a propriedade privada e a família. Em segundo,

a crise da sistematização e, em terceiro, a crise da interpretação.

Da influência da revolução industrial – decorrência do capitalismo –

resultaram o individualismo e o liberalismo. Ela impôs a massificação das cidades e das rela-

ções contratuais. Paralelamente, como subproduto, trouxe também o Estado social. Impunha-

se, após a promulgação da Constituição Federal, a adequação legislativa do Direito Civil, a-

companhada dos estudos da doutrina e da jurisprudência.

Longa tramitação legislativa foi necessária para a conclusão do novo

Código Civil. Já em 1941, apresentou-se um projeto de Código das Obrigações, que logrou

infrutífero. Em 1962, dois Anteprojetos são apresentados – Código Civil e Código das Obri-

gações. Também não prosperaram. Em 1972, nova comissão conclui um Anteprojeto, enviado

ao congresso em 1975. Após 17 anos, foi aprovado pelo Congresso Nacional e publicado em

11 de janeiro de 2001, para entrar em vigor em 11 de janeiro de 2003, após um ano de vacatio

legis.

Esse novo Código Civil não discrepa do antigo: encontra-se também

assentado num contexto não atual, de valores do passado e do começo deste século. É um

Código coerente com o sentido do individualismo jurídico, dando conta do indivíduo, enquan-

to aquele sujeito de direito que contrata, que se obriga, que vai adimplir ou não as obrigações,

entre outras ações, do sujeito de direito concreto154. Inobstante isso, possui alguns avanços,

como a abertura do sistema e os princípios, dentre os quais o princípio da socialidade, que

será objeto de estudo no capítulo derradeiro. Esses avanços são capazes de permitir a unidade

do ordenamento jurídico brasileiro155.

Sob a influência das codificações do século XIX e da sistematização,

que separava as leis civis das leis públicas, a aceitação do conceito tradicional de Direito Civil

como aquele que se formulou no Código de Napoleão, tornou-se insuficiente e não mais pos-

154 FACHIN, 2003, op. cit. p. 29. 155 Para – COELHO, Inocêncio Mártires. O novo Código Civil e a interpretação conforme a Constituição. In FRANCIULLI NETTO, Domingos; MENDES, Gilmar Ferreira; MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva (co-ords.). O novo Código Civil: estudos em homenagem ao Prof. Miguel Reale. São Paulo: LTr, 2003 –a regra de interpretação do princípio da unidade da Constituição (e, para nós do ordenamento jurídico) significa que “as normas constitucionais devem ser vistas não como normas isoladas, mas como preceitos integrados num sistema unitário de regras e princípios, que é instituído na e pela própria Constituição. Em conseqüência, a Constituição só pode ser compreendida e interpretada corretamente se nós a entendermos como unidade, do que resulta, por outro lado, que em nenhuma hipótese devemos separar uma norma do conjunto em que ela se integra, até porque o sentido da parte e o sentido do todo são interdependentes”.

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sível, ou foi superado pelo tempo. O Direito Civil era identificado pelo Código Civil. Além de

os Códigos civis perderem a posição central que fruíam no sistema, a figura do indivíduo iso-

lado deu lugar à integração do homem na sociedade156.

A grande abertura, entretanto, para a necessária transposição da crise e

mudança de paradigmas no Direito Civil, entre os quais a reconstrução deste sujeito de direi-

tos, foi dada pelo nascimento do Estado democrático (e social) de Direito, com a Constituição

Federal de 1988.

3.1.2 Um novo paradigma: a leitura civil-constitucional

Em meio à longa tramitação do NCC, a Constituição Federal de 1988,

conforme já dito, inaugurou/instituiu uma opção em favor de um Estado social (e democráti-

co) de Direito, destinado a incidir sobre as relações jurídicas privadas. Exigiu dos legisladores

uma enorme penca de emendas a adequar o NCC, então Projeto, à nova era que vinha se fir-

mando.

Ao explicar a manutenção no NCC dos dispositivos referentes às pes-

soas e aos bens públicos, àqueles que a entendiam incabível no âmbito da Lei Civil, Reale157,

na exposição de motivos, já afirmava que tal posição reflete:

antes de mais nada, a compreensão da Filosofia e Teoria Geral do Direito contempo-râneo, as quais mantêm a distinção entre direito Público e Privado como duas pers-pectivas ordenadoras da experiência jurídica, considerando-os distintos, mas subs-tancialmente complementares e até mesmo dinamicamente reversíveis, e não duas categorias absolutas e estanques.

E continua justificando a permanência dos dispositivos legais, com

outras razões relevantes. Expõe que inúmeros princípios e normas fixados na Parte Geral têm

larga aplicação nos domínios do Direito público, em geral, e administrativo, em particular.

Entre outros, ainda, por serem aplicáveis as normas do Código Civil às entidades constituídas

pelo Poder Público, em razão ou para os fins de seus serviços, sempre que a lei que as instituir

não lhes der ordenação especial158.

156 MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho de um Direito Civil Constitucional. P. 1. Disponível em http://www.idcivil.com.br/pdf/biblioteca4.pdf. Acesso em 07/12/2007. 157 REALE, 1999, op. cit., p. 41. 158 Lembrando sempre das transformações e mudanças conceituais havidas no seio da sociedade, à exemplo do próprio conceito de Direito Civil, determinando uma transfiguração nas suas próprias estruturas, ou seja, inter-namente.

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A partir disso, pode-se afirmar, com convicção, que o contrário é mui-

to mais verdadeiro, ou seja, a Constituição Federal, como integrante do Direito público, tam-

bém é largamente aplicável nos casos concretos, entre particulares. Ou seja, ela integra o sis-

tema legal, na qualidade de Lei Maior, prevalecendo sobre todo o Direito infraconstitucional,

público ou privado, como fonte das fontes do ordenamento jurídico.

Isso representa (em tese) a normatividade da Constituição Federal,

prevista no parágrafo primeiro, do artigo 5º, ao afirmar que as normas definidoras dos direitos

e garantias fundamentais têm aplicação imediata e não mais na Lei de Introdução ao Código

Civil. Porquanto a perspectiva da LICC é tradicional e importa em aplicar princípios tão-

somente em casos nos quais não houver regra legal prevista para decidir o caso concreto.

No paradigma liberal-burguês, a Constituição não se interessava pelas

relações sociais (e também jurídicas). Todavia, os valores da sociedade atual, diferentes da-

quela época, hoje estão afirmados e com aplicação garantida na Constituição de 1988. Nela

encontram-se os direitos respeitantes à fraternidade, à justiça, à liberdade, à igualdade, à pro-

priedade, à segurança, entre outros. Valores que, embora diferentes, antes estavam positiva-

dos no Direito Civil e, hoje, são constitucionais.

Afirma-se, assim, a supremacia da Constituição, para uma sociedade

pluralista, como centro geométrico-sistemático do ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se

do primeiro e mais importante paradigma do Estado democrático de Direito, apto a produzir e

aplicar as normas jurídicas, sempre próximo da realidade: mutável e contraditória.

A supremacia da Constituição não significa apenas o controle de cons-

titucionalidade e a tutela mais eficaz da esfera individual de liberdade. Sua carga axiológica

lhe confere o poder de norma diretiva fundamental, que dirige os poderes públicos e condi-

ciona os particulares, de forma a assegurar a realização desses valores constitucionais. Ou

seja, em seu aspecto material, o sistema jurídico recebeu exigências da moral crítica na forma

de direitos fundamentais159. Destarte, no campo das fontes do Direito, a primazia é da Consti-

tuição Federal, respeitando-se, com isso, a unidade do ordenamento jurídico e o próprio sis-

tema jurídico.

São discutidos os mecanismos utilizáveis na interpretação constitucio-

nal, para o que a subsunção não mais se apresenta capaz. Há que se ponderar entre bens, utili-

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zando-se de critérios de razoabilidade ou proporcionalidade, necessidade, adequação e ponde-

ração, a fim de obter a melhor aplicação possível. Além disso, devem-se estabelecer novos

parâmetros para a definição de ordem pública, privilegiando os valores não-patrimoniais e,

especialmente, a dignidade e a promoção da pessoa humana160. Para tanto, é necessário ter no

consciente a superioridade da Constituição Federal, não por se tratar de Direito público, mas,

de Lei Maior, que comanda todo o ordenamento jurídico.

Ao falar da responsabilidade dos intérpretes, cabe reafirmar a

importância da hermenêutica, com critérios interpretativos, em estabelecer o Direito prevalen-

te, quando dois ou mais, da mesma hierarquia, estiverem em conflito. Ressalta-se também, o

papel da interpretação sempre conforme a Constituição.

A luta pelo Direito, de ora em diante, é mantê-lo em consonância com

a realidade sócio-econômica do momento, em permanente construção, como vivo que é. Ao

mesmo tempo, lutar pela sua efetividade e concretude, ou seja, transplantar para o plano subs-

tancial e prático o que se constrói no plano teórico, para que os seus destinatários sejam os

beneficiados com a construção do Direito. É outro problema: o da realização do Direito.

O Código Civil de 1916 – ou a sua compreensão – não cuidava da

problemática social, o que foi alterado pela Constituição de 1988, com participação eminente

no domínio das relações civis, situando a dignidade humana como pressuposto básico de todo

o ordenamento jurídico. Atualmente, os conceitos gerais do Direito Civil estão estabelecidos,

prioritariamente, no texto da Constituição161. E, com a vigência do novo Código, ambos estão

mais próximos e em relação de complementaridade.

Com fundamento nesses argumentos, Reale162 afirma que se equivo-

cam redondamente os intérpretes no novo Código Civil que defendem que este não teria a-

bandonado as diretrizes da lei revogada, com referência aos pressupostos fundamentais.

Antes de adentrar nos paradigmas que devem ser revistos e repensa-

dos, vale lembrar, para fixar, que a Constituição Federal, de forma geral, é quem inaugura

essa nova era, que introduz um conjunto de alterações a ser operado e construído. O público 159 STRECK, op. cit., p. 101. 160 Sobre a interpretação conforme a Constituição ver: COELHO, op. cit. 161 REALE, in REALE, Miguel; MARTINS-COSTA, Judith. (coord.). História no Novo Código Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. (Biblioteca de Direito Civil: Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale: v.1). P. 262. 162 Idem, p. 263.

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impõe uma mudança no privado, com a funcionalização de certos institutos civis (por exem-

plo, a propriedade), a modificação da família e com o papel normativo dos princípios.

3.1.2.1 A Importância do Direito Civil: a (in) segurança jurídica e um sistema aberto de nor-

mas e princípios

A segurança jurídica, caracterizadora da era das codificações e das

constituições liberais, representava o primado do privado sobre o público. Entretanto, o ad-

vento do constitucionalismo social e da conseqüente ampliação do intervencionismo estatal,

resultado do segundo pós-guerra, endereça o Estado no sentido da promoção da igualdade

substancial. Abandona-se a ética do individualismo, optando-se pela ética da solidariedade,

pelo desenvolvimento dos direitos de terceira geração. Relativiza-se a tutela da autonomia da

vontade e se acentua a proteção da dignidade da pessoa humana, como centro gravitacional da

Carta Federal163.

Desmoronados os alicerces desse mundo de ordem e segurança, surge

a necessidade de efetivação dos direitos fundamentais. Anuncia-se o fim da modernidade e,

então, para ser Direito, ele deve ser humano. Não se trata mais de proteger a coletividade do

totalitarismo, mas de garantir valores, como os princípios da democracia, da liberdade e da

solidariedade, para combater toda e qualquer forma de opressão e injustiça no meio social.

Daí surge o mal-estar da pós-modernidade, cujo sentimento dominan-

te, para Bauman164, agora é:

a sensação de um novo tipo de incerteza, não limitada à própria sorte e aos dons de uma pessoa, mas igualmente a respeito da futura configuração do mundo, a maneira correta de viver nele e os critérios pelos quais julgar os acertos e erros da maneira de viver. O que também é novo em torno da interpretação pós-moderna da incerteza (em si mesma, não exatamente uma recém-chegada num mundo do passado moder-no) é que ela já não é vista como um mero inconveniente temporário, que com o es-forço devido possa ser ou abrandado ou inteiramente transposto. O mundo pós-moderno está se preparando para a vida sob uma condição de incerteza que é perma-nente e irredutível.

Atualmente, falar em Códigos significa pensar em alguma coisa desti-

nada a durar milênios, sujeito a mutações, que fixam os grandes parâmetros ou as grandes

diretrizes da vida social. Assim, o Código Civil dá as estruturas da sociedade civil e a Carta

163 FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito pri-vado. Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, p. 12. 164 BAUMANN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1999. P. 32.

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Magna as da sociedade política. A opção pelo modelo aberto aponta para uma sociedade em

transformação165.

Canotilho166 traz como ponto de partida, que “o sistema jurídico do

Estado de Direito democrático português é um sistema normativo aberto de regras e princí-

pios”. Hodiernamente, o sistema jurídico é encabeçado pela Constituição Federal, como um

sistema aberto, no que foi seguido pelo NCC, que “admite a formulação de outros princípios

ou subprincípios167”, temas que serão objeto de estudo mais aprofundado nos próximos capí-

tulos.

Na questão da abertura do sistema, o maior argumento em contrário é

o de que o sistema aberto põe a descoberto a incerteza jurídica, por dar azo à analise tópica,

por apenas levar em conta o caso concreto, pela ponderação dos princípios. Para rebater tal

argumento, pode-se afirmar que o julgador está limitado à Constituição e que a tópica é, por

natureza, inseparável à hierarquização axiológica, processo indeclinável na interpretação sis-

temática.

No tocante às normas de cláusulas gerais no Direito Civil, que dão a-

bertura ao sistema como o da boa-fé objetiva, por exemplo, não se pode esquecer que elas,

assim como os princípios do Direito Civil, podem sofrer o efeito de irradiação168 (sic)169 dos

princípios constitucionais e direitos fundamentais, sempre que sua aplicação corromper os

valores constitucionais, pois a Constituição é o repositório dos valores que devem ser usados,

a fim de alcançar a justiça e, ao mesmo tempo, uma justiça que seja comprometida com o seu

tempo e espaço170.

Isso significa dizer que as regras e princípios do Direito Civil partici-

pam na concretização do direito. Do mesmo modo, os princípios constitucionais e os direitos

fundamentais, exigindo-se a aplicação direta ou indiretamente, de todo o sistema jurídico,

165 REALE, 1999, op. cit., p. 147. 166 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003. 167 FINGER, Julio Cesar. Constituição e direito privado: algumas notas sobre a chamada constitucionaliza-ção do direito civil. In: A Constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Ingo Wolf-gang Sarlet (org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 97. 168 Expressão cunhada pelo Tribunal Constitucional da Alemanha no caso Lüth, apud CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. In: Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Ingo Wolfgang Sarlet (org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. 169 Trata-se da eficácia imediata e ilimitada dos direitos fundamentais e princípios constitucionais e não de um efeito por irradiação. 170 Idem, 2000, p. 103.

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incluída e priorizada a fonte primordial, a Constituição Federal. Ela atua sobre todo o direito

infraconstitucional na concretização do Direito.

A “constitucionalização”, “publicização”, ou até a “decadência” do

Direito privado são temas relevantes nessa fase atual de crise do Direito Civil, de superação e

mudança de paradigmas. A “decadência” tenderia a provocar uma tendência de desapareci-

mento do Direito Civil, sempre visto como o Direito privado por excelência.

Não é possível concordar com teses que, nostalgicamente, pregam o

desaparecimento do Direito Civil. Desapareceu, sim, e precisa ser definitivamente sepultado,

o Direito Civil liberal-individualista, individual e patrimonial. E precisa ser definitivamente

construído o Direito Civil-Constitucional (a unidade do Direito), com fundamento nos princí-

pios civis e constitucionais, limitado pelos direitos fundamentais, centrados na dignidade da

pessoa humana.

Reconhecer-se o outro Direito Civil está a exigir críticas e rupturas,

aceitando raízes que tornem explícito o presente e abram portas para o futuro. Esse novo Di-

reito Civil deve ser construído a partir de pilares fundamentais, como o contrato, o projeto

parental e as titularidades, como “síntese do passado que restou e do futuro ainda por estabe-

lecer”, ou, uma releitura dos estatutos fundamentais do Direito privado171.

3.1.2.2 As instituições: autonomia da vontade, propriedade privada e a pessoa humana

Da igualdade formal, a autonomia da vontade – como liberdade – era

consectário, e o contrato, regulamentado pelo Direito Civil (ou Direito privado) permitia o

acesso à propriedade a todos, cada qual com sua autonomia.

A realização prática do direito amparava-se no dogma da completude,

consistindo a atividade hermenêutica e interpretativa numa operação lógico-formal e formal-

dedutiva, bastando, num movimento silogístico, separar o fato de qualquer comunicação com

a realidade ou outras áreas de conhecimento e determinar a norma legal (do Código Civil) a

ele aplicável172.

A propriedade privada, no liberalismo econômico, era considerada sa-

grada e materializava a riqueza. Ela, em especial a imobiliária, representava o fundamento da

171 FACHIN, 2003, op. cit., p. 6. 172 FINGER, op. cit., p. 88.

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liberdade dos indivíduos diante do Estado – relação vertical. Os direitos fundamentais eram

direitos tão-somente de defesa, entre o proprietário – individual – e o Estado. Assim, o Direito

Civil tinha o papel de garantir formalmente essa propriedade, no plano concreto, entre os in-

divíduos.

O valor fundamental era o indivíduo, e o Direito privado regulava a

sua atuação como sujeito de direito, sob o ponto de vista formal. O Código Civil constituía o

centro do direito privado. Em nome da segurança jurídica e da autonomia da vontade preten-

dia garantir ao sujeito de direitos a estabilidade nas relações jurídicas. Esse era um sujeito em

abstrato. É preciso construir o sujeito em concreto, em cada caso concreto, em sua singulari-

dade.

No NCC, os pilares obrigacionais, da propriedade – bens, da família e

sucessões encontram-se retratados em torno de um sujeito, e dele para o conceito de relação

jurídica. Esse conceito é “um conceito superado por sua própria insuficiência, denunciada

pela tentativa de captar, atemporalmente, pessoas, nexos e liames”173. O rigor técnico ou con-

ceitual não é argumento forte o suficiente para prolongar a idéia da pessoa como idéia inte-

grante da relação jurídica.

O novo Código Civil deu novo entendimento do que seja sujeito de di-

reito “não mais concebido como um indivíduo in abstracto, em uma igualdade formal, mas

sim em razão do indivíduo situado concretamente no complexo de suas circunstâncias éticas e

socioeconômicas”. O reflexo dessa perspectiva se dá pela designação como pessoa, em vez de

todo homem no Código revogado. Essa aparente pequena diferença174:

representa profunda mudança na colocação inicial da vida jurídica, uma vez que a palavra homem tem o sentido genérico e abstrato de indivíduo, ao passo que a pala-vra pessoa já indica o ser humano enquanto situado perante os demais componentes da coletividade. Efetivamente, o conceito de pessoa resulta da relação do eu com ou-tros eus, o que distingue o ser humano de todos os outros animais.

Vendedor, comprador, credor ou devedor não são tão apenas concei-

tos, mas pessoas humanas que fazem parte de um sistema social e de uma organização política

e econômica, da mesma forma que a família não mais se resume ao parentesco e aos deveres e

direitos pessoais. Essas estruturas conceituais, gerais e abstratas, estão ultrapassadas e preci-

sam ser lidas juntamente com as normas constitucionais e nelas incluídas as regras e os prin-

173 FACHIN, 2003, op. cit., p. 30. 174 174 REALE, in REALE, Miguel; MARTINS-COSTA, Judith, op. cit., p. 263.

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cípios constitucionais (capítulo terceiro), vinculantes e de caráter normativo, que se aplicam

direta e imediatamente nas relações interprivadas.

Outros conceitos se transformam no tempo, em determinado contexto

social, como a procriação – que deixa de ser a finalidade primeira de um casamento – e as

funções dos contratos. E exigem compreensão conforme a realidade. O mundo real vai se alte-

rando e, por isso, os conceitos não podem ser pré-compreendidos, como categorias estanques,

distantes da realidade e com pretensões de neutralidade e de cientificidade.

Com as mudanças sociais, as demandas da realidade e a Carta Política

de 1988, considerada também a sua normatividade, a propriedade privada e a autonomia da

vontade deixam de ser o epicentro das relações jurídicas privadas. Tomaram o seu lugar a

dignidade da pessoa humana e a promoção do ser humano. Inaugurou-se o paradigma do Es-

tado democrático e social de Direito, fundado nos valores e princípios constitucionais.

Essas mutações, na compreensão da autonomia da vontade e da pro-

priedade, passam pelo sujeito. Fachin175 advoga a volta do antropocentrismo, “uma volta do

sistema colocado em relação à pessoa”. Mas não retornar ao antropocentrismo da Idade Mo-

derna, no primado da autonomia da vontade, do voluntarismo, do homem sozinho, “centrado

em uma hipotética auto-regulamentação de seus interesses privados”, guiado pela igualdade

formal, que sustentou o projeto ideológico do Direito Civil nos dois últimos séculos.

Esse sistema deixava fora do Direito o que não o interessava. Para o

autor, a reelaboração de uma teoria do Direito Civil deve ter como ponto de partida mais que

a sua utilidade “e, como perspectiva, a reordenação dos fundamentos do sistema jurídico à luz

de outro projeto socioeconômico e político”.

Passando por cima do sistema tradicional do individualismo, é domi-

nante o princípio da justiça distributiva, a fim de ser considerado na percepção concreta da

solidariedade social (capítulo quarto) embrenhando-se no campo do Direito privado.

A nova postura intervencionista do Estado, depois da Segunda Guerra

Mundial, trouxe, também, a persecução da igualdade material. O Direito Civil não mais apre-

sentava soluções para regular satisfatoriamente as novas exigências sociais, por estar impreg-

nado da ideologia liberal e com pretensões centralizadoras e totalizantes da codificação –

175 Idem, p. 210.

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completude. Nesse contexto, a terceira geração de direitos é introduzida nas Cartas Constitu-

cionais176, que assinalam o desprendimento e redimensionamento da titularidade dos direitos

fundamentais, transferindo-os dos indivíduos e oferecendo uma órbita de proteção a determi-

nados grupos sociais177.

Trata-se, em outras palavras, da reconstrução do indivíduo, fazer a

“travessia, do indivíduo ao sujeito, e do sujeito à cidadania”, ele que é nuclear na teoria do

Direito Civil, repersonalizando e recolocando o indivíduo como ser coletivo, na perspectiva

de igualdade substancial, no centro dos interesses178.

Santos179 lembra a importância de Montaigne que, falando de si, soube

buscar a intelegibilidade do mais amplo e profundo da vida coletiva. E, por isso, rompeu radi-

calmente com a distinção sujeito/objeto em que se assenta a ciência moderna, antecipando em

muitos séculos, o que pretendem hoje os novos paradigmas, pois o problema da distinção su-

jeito/objeto induz não somente à abstração do objeto, como também do próprio sujeito.

A reconstrução do indivíduo para sujeito concreto, com cidadania, se

realiza quando a Constituição Federal tutela a vida, outorgando proteção em primeira instân-

cia ao direito à personalidade e erige a dignidade da pessoa humana a fundamento do Estado

democrático de Direito. Está enterrado aquele sujeito abstrato clássico do Direito Civil. Essa

construção conclui a passagem desse paradigma das codificações.

3.1.2.3 A eficácia horizontal dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais

A intervenção imperativa estatal provocou pontos de confluência entre

o Direito público e o Direito privado, nas áreas que antes eram privativas da vontade indivi-

dual.

A regulamentação teve tal importância que parte dela foi elevada ao

status constitucional, levando à constitucionalização de princípios e institutos fundamentais.

Assim, a Constituição traça um novo caminho, em prol da criação de uma sociedade mais

justa, livre e solidária, respeitadas todas as diferenças de um mundo pluralista ou de um Esta-

do democrático de Direito. 176 Os direitos de terceira geração são também conhecidos como os direitos de solidariedade ou de fraternidade. São seus exemplos os direitos à qualidade de vida, à paz, a autodeterminação dos povos, à comunicação, ao meio ambiente, entre outros. 177 FINGER, op. cit., p. 90. 178 FACHIN, 2003, op. cit., p. 15. 179 Op. Cit., p. 334.

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Alinhados com o tema inicial, os princípios que norteiam o NCC, a

abertura do sistema e a inclusão do novo capítulo – Dos Direitos da Personalidade –, fazem

uma ponte entre o público e o privado. O modelo de relacionamento entre Constituição e Có-

digo Civil reflete, diretamente, na problemática da eficácia dos direitos fundamentais. E, “en-

tra em cena um relevante aspecto da dogmática dos direitos fundamentais, qual seja, o seu

elemento material” que, nas lições de Judith Martins-Costa180.

(..) se pode perceber que o novo Código Civil brasileiro está a requerer, de seus in-térpretes, a compreensão da nova metodologia que enseja, embasada em uma diversa pré-compreensão do fenômeno jurídico. Essa pré-compreensão não é dada só por dados fáticos, mas por critérios de valor que direcionam o exame do fato segundo a “ética da situação”. Muito claramente sinalizados no novo Código, penso que tais critérios indicam uma nova ideologia, abeberada, diretamente, nos Direitos Funda-mentais.

A nova metodologia que a autora181 aponta deve, portanto, ser com-

preendida por seus intérpretes e difundida pela doutrina. Os direitos fundamentais na Consti-

tuição e a tutela dos direitos da personalidade pelo Direito Civil, em conexão, passam a esta-

belecer a norma incidente nas situações jurídicas concretas, cuja aplicação deve dar-se a partir

da análise da situação de fato e do valor incidente.

Sobre o tema da eficácia dos direitos fundamentais, três teorias se a-

presentam no Direito pátrio e comparado. A primeira delas, a teoria do state action, da eficá-

cia vertical tão-somente, é fundamentada na herança de superação do absolutismo, ou seja, de

se limitar a atuação do estado-opressor com referência aos direitos de liberdade do indivíduo.

O Estado seria sempre o lado passivo da relação jurídica, com referência a direitos fundamen-

tais. No Estado constitucional e democrático de Direito, entende-se superada essa visão, iso-

ladamente. Nas relações do Estado com a sociedade e os cidadãos, os direitos fundamentais

mantêm a necessidade de eficácia, mas isso não é mais suficiente, em especial, em uma socie-

dade desigual, na qual, ao lado do Estado, vários atores privados oprimem seus pares.

A segunda teoria é da eficácia indireta e mediata dos direitos funda-

mentais nas relações privadas. Segundo essa teoria, a Constituição orienta o legislador infra-

180 MARTINS-COSTA, Judith. Os direitos fundamentais e a opção culturalista do novo Código Civil. Cons-tituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, p. 68. 181 A autora discorre no artigo acerca da opção culturalista do novo Código Civil, a partir da visão do jurista Miguel Reale, do Direito como experiência. Esta análise não será ampliada, uma vez que as opiniões do autor se encontram refletidas no decorrer de todo o trabalho e, em particular, não faz parte do tema central proposto, inobstante a sua qualidade.

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constitucional na elaboração das leis de Direito privado, mas não confere aos particulares o

direito direto e imediato aos direitos fundamentais em suas relações intersubjetivas182.

Aceita-se e defende-se (e a Constituição determina) a terceira teoria, a

da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais, na seara privada, na qual os direitos

fundamentais possuem aplicabilidade plena nas relações interpessoais. Destarte, ao lado da

atuação legislativa, há uma atuação jurisdicional, como via de efetivação e eficácia dos direi-

tos fundamentais nas relações privadas, considerando-os no momento da aplicação do Direito

privado.

Ademais, além de a própria Constituição garantir a eficácia imediata e

não excluir outros direitos, garantias e princípios (artigo, 5°, parágrafos 1° e 2°), no inciso

XXXV, do referido artigo 5°, garante que toda a violação ou ameaça de direito poderá ser

submetida à apreciação do Judiciário.

Então, acertado está o papel do Poder Judiciário na afirmação dos di-

reitos humanos e na sua eficácia, sempre que algum direito for lesado, decidindo e concreti-

zando as normas constitucionais, sempre que os problemas sociais e os direitos humanos e

princípios constitucionais não forem tratados e implementados politicamente. Aí entra o papel

social do Poder Judiciário na proteção e tutela dos direitos fundamentais. Mas, sempre consi-

derando que183:

Apesar de essas incumbências repousarem em importantes e relevantes mandamen-tos constitucionais e em princípios do Estado de Direito, está-se diante de uma reali-dade corrosiva, que tem gerado profundas dificuldades na aplicação da justiça. É a-tordoante a crise que se projeta para o Poder Judiciário, considerando-se, sobretudo, sua incapacidade de atender às demandas sociojurídicas, e sua inabilidade para do-brar-se às modificações socioculturais ocorridas à revelia de toda a idéia de Direito.

Canaris184, antes de analisar o caso Lüth, denomina o tema de “A in-

fluência dos direitos fundamentais no Direito privado” e reconhece que a particularidade des-

sa questão não pode ser dada pelo legislador. Reconhece, também, que a ninguém ocorreria

que a União Européia pudesse regulamentar de qualquer modo a questão de como os direitos

182 Interessante lembrar que: o “Brasil é o campeão de leis inconstitucionais”; que “desde a Constituição Federal de 1988 até o ano passado, 3.994 leis foram questionadas no Supremo Tribunal Federal”; que “de 1988 a 2002, 200 leis federais foram invalidadas pela Corte, por meio de liminares ou exames de mérito”; e, que “em 2007, das 128 normas estaduais e federais analisadas pelo Supremo, 103 foram consideradas inconstitucionais”. Fonte: http://tigredefogo.wordpress.com/2008/06/15/brasil-e-o-campeao-de-leis-inconstitucionais/. 183 BITTAR, op. cit., p. 310. 184 Op. cit., p. 226.

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fundamentais dos Estados-Membros se relacionam com os ordenamentos jusprivatistas dos

Estados-Membros.

Considerando que os juristas compreendem-se melhor quando discu-

tem sobre a solução de problemas concretos e a decisão de casos práticos, o autor apresenta o

caso Lüth, no tratamento entre os direitos fundamentais e o Direito privado, que entrou para a

história do Direito alemão.

Lüth, um cidadão alemão, apelou, em 1950, porque os proprietários e

freqüentadores de salas de cinema boicotaram um filme anti-semita, durante o período nacio-

nal-socialista (Jud Suss, produzido por Veit Harlan, diretor nazista de maior destaque), depois

da convocação e incitação de Lüth para tanto, tendo como argumento o direito de liberdade de

expressão. O Tribunal Distrital de Hamburgo considerou o boicote um ato ilícito, por ofensivo

aos bons costumes e contrário à política pública, afirmando que, ao incitar o boicote a filmes

como esse, viola-se o artigo 826 do Código Civil Alemão185.

Na queixa constitucional contra essa decisão, em 1958, a Corte Cons-

titucional Federal alemã cassou a sentença do tribunal cível, pois este teria violado o direito

fundamental de Lüth à liberdade de opinião, entendendo que a “Lei Fundamental erigiu na

seção referente aos direitos fundamentais uma ordem objetiva de valores (...), que deve valer

enquanto decisão fundamental de âmbito constitucional para todas as áreas do Direito”.

Além de cunhar a célebre expressão do “efeito de irradiação dos direi-

tos fundamentais sobre o Direito privado”, explicou que “oferecem-se para a efetivação desse

efeito, pela via da interpretação, sobretudo as cláusulas gerais do Direito privado, às quais

pertence o § 856 do BGB, em virtude de sua referência aos “bons costumes”186.

Posto isso, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e dos prin-

cípios constitucionais é conquistada no espaço histórico da trajetória dos direitos humanos, já

bastante referida no tocante às inspirações filosóficas dos movimentos sociais a exigir a ob-

servância das condições reais, da passagem do individualismo para os direitos sociais e o re-

conhecimento da dignidade da pessoa humana.

185 Outros casos práticos serão analisados no capítulo derradeiro. 186 CANARIS, Claus-Wilhelm, Op. cit., p. 230.

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Na teoria liberal, os direitos públicos subjetivos justificam a existência

do Estado187:

Precisamente por su capacidad para garantizar, mediante la coacción si fuese necesa-rio, la vigência efectiva de esos derechos em el seno de la sociedad, frente a los ata-ques de los demás. Pero lo cierto es que cuando trás lãs correspondientes revolucio-nes se instauran los primeros Estados liberales, sus Constituciones garantizan los di-rechos fundamentales únicamente em el marco de las relaciones Estado-ciudadano, como limites frente al poder público.

Representa, nessa época (ainda não totalmente superada), a separação

entre o Estado e a sociedade. Nas relações intersubjetivas não haveria necessidade da eficácia

dos direitos fundamentais por tais relações estabelecerem-se entre iguais e, entre iguais, as

relações podem ser livres. Para a reconsideração dessa doutrina tradicional, Ubillos188 apre-

senta quatro aspectos como argumentos.

No primeiro, do fenômeno do poder privado, o Estado social de Direi-

to abre-se para um novo entendimento das relações entre o Estado e a sociedade. Põe a desco-

berto a ficção que defendia o desfrutar da liberdade com a afirmação do princípio da igualda-

de jurídica, posto que a realidade desmente a existência de uma igualdade, em grande parte,

das relações entre sujeitos privados. Portanto, o fenômeno do poder como uma situação de

desigualdade é indissociável das relações humanas, por ser inerente a toda organização social,

cuja falta de simetria permite que a parte que se encontra em situação dominante condicione a

decisão da parte mais débil, por razões sociais e econômicas.

Trata-se do que vem sendo defendido, da vida real das pessoas na so-

ciedade. “Es mucho más problemática la garantia de la libertat frente a los poderes socia-

les”189, que gozaram de relativa impunidade durante determinadas épocas e, portanto:

Los derechos fundamentales deben protegerse, frente al poder, sin adjetivos, y el sis-tema de garantias, para ser coherente y eficaz, debe ser polivalente, debe operar em todas las direcciones. No hay ninguna razón para pensar que el problema de fondo cambia em función de cuál sea el origen de la agresión que sufre una determinada li-bertad. El tratamento há de ser, em lo essencial, el mismo.

O segundo critério apresentado pelo autor é o da Constituição como

norma sobre a qual se assenta a unidade do ordenamento: sua influência no Direito privado.

Tal paradigma já foi fixado quando se falava da constitucionalização do Direito Civil (priva- 187 UBILLOS, Juan María Bilbao. Eficacia horizontal de los derechos fundamentales: las teorias y la practi-ca. Palestra proferida no Rio de Janeiro, em 22 de setembro de 2006, na Universidade Estácio de Sá – UNESA. P. 1. 188 Ibidem, passim.

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do), por ser fundamental para a necessária quebra e ruptura de paradigmas e o apontar de ca-

minhos para a sua superação. Inobstante isso, é referido neste espaço, por imprescindível para

a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais.

Também já reiteradamente referido, um dos outros dois critérios é o

da força expansiva dos direitos fundamentais, que se aproxima do efeito de irradiação deles

em todas as relações, tanto entre Estado e sociedade quanto nas relações intersubjetivas. E, via

de conseqüência, busca apoio diretamente em um direito fundamental, ao qual acrescentam-se

os princípios constitucionais, como regras de decisão.

O quarto e último dos critérios é o da difusa fronteira entre o público

e o privado, que será levantado neste capítulo, no segundo tópico.

Dessa forma, representa grande conquista, para enfrentar as posturas

ideológicas até então dominantes, a formulação do Estado democrático de Direito, ao lado do

Estado social, nos primeiros artigos da Constituição de 1988. Ela permite que a aplicação dos

direitos fundamentais, antes apenas verticais, de relações entre Estado e indivíduo, possam ser

transpostas para a horizontalidade, ou seja, para as relações interprivadas, entre indivíduos.

Fixada a horizontalidade dos direitos fundamentais (e dos princípios

constitucionais), bem como o papel social do Poder Judiciário na proteção e tutela dos direitos

fundamentais, mister é ressaltar o papel do controle difuso de constitucionalidade, concordan-

do com Streck190, quando afirma que “qualquer tentativa de esvaziá-lo e/ou expungi-lo do

sistema jurídico brasileiro, ferirá, de morte, o núcleo político essencial à Constituição”.

Robustece-se, dia-a-dia, a tendência de transformar as normas consti-

tucionais, compreendendo-as como fundamento, base sobre a qual se funda todo o conjunto

da disciplina normativa infraconstitucional, não se aceitando mais a sua utilização tão-

somente em sentido negativo, como limites endereçados ao legislador ordinário. O esforço

atual é o de aplicarem-se direta e efetivamente os valores e princípios constitucionais também

nas relações interindividuais, nos moldes do direito privado, e não apenas nas relações dos

indivíduos com o Estado191.

189 Ibidem, p. 4. 190 Op. cit., p. 840. 191 MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p. 8.

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Ubillos192 conclui pela eficácia horizontal imediata dos direitos fun-

damentais, porém, atenuada. Traz a ponderação como técnica para medir o alcance em cada

caso concreto. Como já se disse, cabe à interpretação e à hermenêutica jurídica promoverem a

eficácia defendida. Na linha defendida no presente trabalho de pesquisa, tanto frente a tercei-

ros quanto frente ao Estado, a eficácia imediata encontra limites, ou seja, nenhum direito fun-

damental se apresenta de forma absoluta automaticamente e em qualquer circunstância.

O paradigma da obrigação horizontal, no espaço-tempo da cidadania,

na eficácia interna do Estado193:

Confere ao Estado o monopólio da violência legítima, mas não o monopólio da pro-dução do Direito. Pelo contrário, existe na sociedade uma pluralidade de ordens ju-rídicas, com diferentes centros de poder a sustentá-los, e diferentes lógicas normati-vas. Na constituição da cidadania, é tão importante a obrigação vertical, como a o-brigação horizontal e por essa razão a cidadania não tem de ser nem individual, nem nacional; pode ser individual ou coletiva, nacional, local ou transnacional.

Num país marcado por desigualdades, opressões e injustiças, há que se

garantir a proteção dada pelos direitos fundamentais na esfera das relações entre particulares.

Apesar das teorias e correntes que surgiram (além das citadas neste espaço, ainda existem

outras) “existem fatores universais” que exigem a extensão dessa proteção às relações inter-

subjetivas, deve-se rejeitar (enfaticamente) uma simples equiparação do ator privado aos po-

deres públicos, o que implicaria restrições à autonomia individual, em patamares inaceitáveis

para os Estados constitucionais e democráticos de Direito194.

A incidência no tráfico privado será mais intensa quando a dignidade

da pessoa humana for diretamente afetada, valor no qual todo o ordenamento jurídico se fun-

damenta, o público e o privado, como núcleo intangível e indisponível a ser preservado frente

a toda e qualquer agressão.

Quiçá, e esse é um dos objetivos fundamentais do presente trabalho,

que a dignidade da pessoa humana e a sua promoção se aproximem cada vez mais da eficácia

que se pretende para a realidade.

192 Op. cit., p. 19. 193 SANTOS, op. cit., p. 339. 194 SARMENTO, Daniel (b). Direitos Fundamentais e relações privadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2006.

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3.2 Interesses públicos versus interesses privados no Estado democrático de Di-

reito

Não é mais adequado, sequer possível, no Direito atual, que deve

manter-se em diálogo eterno e permanente com a sociedade, estudar o conceito de Direito

Civil, inserindo-o no ramo do Direito privado e separando os espaços deste com o público,

sem faltar para com a realidade e para com os ideais de transformação195.

Na linha de pensamento de Sarmento196, é possível, também, dar nova

leitura ao princípio administrativo da supremacia do interesse público sobre o interesse parti-

cular: mais adequada à ordem constitucional, aos princípios humanistas a ela subjacentes e à

teoria dos direitos fundamentais. O autor o faz na perspectiva da Teoria e da Filosofia Consti-

tucional.

A visão tradicional do aludido princípio não mais se justifica, na for-

ma tradicionalmente defendida, por não ser mais compatível com os direitos fundamentais do

administrado e o estatuto axiológico do Estado democrático de Direito. Representa “uma

compreensão equivocada da relação entre a pessoa humana e o Estado”, pois aquelas não e-

xistem para servir ao ente público ou à sociedade política. No entanto, os Poderes Públicos

somente se justificam como meios para a promoção e proteção dos direitos humanos197.

A questão público198 versus privado é necessariamente histórica. A

história das relações entre cultura e espaço – de como os homens ocupam e dividem o espaço

no decurso histórico, varia conforme cada época. Trata-se das relações entre a vida pública,

que Saldanha199, metaforicamente, simboliza pela praça, e a vida privada, simbolizada pelo

jardim200.

195 FACHIN, op. cit. p. 26. 196 SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos vs. Interesses Privados na Perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional. In Interesses Públicos versus Interesses Privados: desconstruindo o Princípio de Su-premacia do Interesse Público. Daniel Sarmento (org.) Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 26. 197 Ibidem, 2005, p 27. 198 Público do latim populicus, populus, povo. Privado do latim privatu, particípio passado do latim privare, isentar, livrar, privar. In Dicionário Aurélio Século XXI – eletrônico. 199 SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça: o público e o privado na vida social e histórica.. Rio de Janeiro: Atlântica Editora, 2005. 2ª ed. rev. e atual. 200 Embora utilizado como critério distintivo entre área pública e privado, lembrar que a criação de jardins, espa-ços privados, deve ter sido mais um símbolo das diferenças sociais e, em sua expressão mais requintada, uma criação das classes altas.

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O advento da vida urbana provoca profunda alteração dentro dessa

evolução, que varia conforme os contextos e, via de conseqüência, traz essas profundas alte-

rações, em momentos distintos. Trata-se de rupturas frente aos modos anteriores de vida. De

crise em crise, provocadas por saturações, ora com o advento da vida urbana – passando-se

do nomadismo para a revolução agrícola e ora, como atualmente, com a saturação das estrutu-

ras e dos resultados da própria vida urbana. E, nessa caminhada histórica, mudam os modelos

das casas (ora castelos, ora casas senhoriais, chalés, bangalôs...), dos jardins, das praças....201

A summa divisio entre o público e o privado sofre oscilações no de-

curso histórico, ora priorizando-se um, ora o outro. Bobbio202 problematiza a questão como a

clássica distinção entre Direito público e Direito privado, em uma grande dicotomia. Primeiro,

no sentido de uma sociedade de iguais e sociedade de desiguais, tendo o Direito como um

ordenamento jurídico de relações sociais. Por segundo, na distinção entre a lei – público – e o

contrato – privado. Por fim, na distinção entre justiça comutativa e justiça distributiva. De-

monstra a oscilação histórica dos dois processos, de publicização do privado e de privatização

do público, entendendo que “não são de fato incompatíveis, e realmente compenetram-se um

no outro”.

Retornando às lições de Sarmento203, deve-se considerar, atualmente,

o fato de que o Direito Constitucional, sempre qualificado como Direito público, hoje disci-

plina também as relações privadas. Esse fato é identificado como o fenômeno de uma verda-

deira “revolução copernicana” no Direito privado, consistente na sua progressiva constitucio-

nalização.

Da mesma forma, consolida-se o reconhecimento da incidência dos di-

reitos fundamentais no campo das relações privadas, servindo estes para equacionar, através

dos métodos interpretativos, cada caso concreto com critérios de promoção da dignidade da

pessoa humana. Definem, assim, quando uma relação ocorre entre iguais ou desiguais, e qual

a solução mais justa para cada situação concreta.

O Código de 2002 atendeu a esse fato essencial, consistindo em uma

das suas distinções com o Código revogado, não mais o situando, todo ele, na área do Direito

201 Idem, p. 26. 202 BOBBIO, 2004, p. 15. 203 SARMENTO, 2005, op. cit. p. 44.

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privado. Reale204 denomina de invariantes axiológicas os valores eminentes que caracterizam

cada civilização. O principal deles é a dignidade humana, que o autor define como o valor

fonte de todos os valores. Por isso, não é extraordinário que ele seja o valor básico de todo o

ordenamento jurídico, sobretudo do Civil.

Para o autor, o que explica a crescente convergência do Direito públi-

co e do Direito privado é o sentido de complementaridade, “não tendo razão de ser o primado

de um ou o de outro, pois ambos compõem o processo dialético da positividade jurídica atra-

vés da história, obedecendo às diretrizes emergentes das invariantes axiológicas”.

Tal sentido de complementaridade explica o duplo processo que atua

na experiência jurídica, ora como privatização do Direito público (quando a Constituição su-

jeita certas empresas públicas ao regime jurídico das empresas privadas), ora como constitu-

cionalização do Direito Civil (no artigo 226, da Lei Maior, sobre a organização da família)205.

Em outras palavras, a aplicabilidade do Direito privado, em todos os

casos concretos, quando exigido, importará em resolver a situação litigiosa com uma leitura

da relação entre o público e o privado conforme está a exigir a nova teoria constitucional do

Estado democrático e social de Direito.

3.3 A distinção entre o público e o privado

3.3.1 O público e o privado no tempo

A clássica summa divisio, já referida, desdobra o direito em público e

privado no decurso histórico. A constitucionalização do Direito privado tem relação com a

visão dicotômica que dividia o mundo jurídico em público e privado. Tal distinção ingressou

no pensamento ocidental com duas passagens do Corpus Juris Civilis [Institutiones, I, I, 4;

Digesto, I, 1, 1, 2]206:

São dois os temas desse estudo: o público e o privado. Direito público é o que se volta ao estado da res Romana, privado o que se volta à utilidade de cada um dos in-divíduos, enquanto tais. Pois alguns são úteis publicamente, outros particularmente, pois, selecionados ou de preceitos naturais, ou civis, ou das gentes.

204 204 REALE, in REALE, Miguel; MARTINS-COSTA, op. cit., p. 264. 205 Idem, p. 264. 206 FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito pri-vado. Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, p. 16.

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O Digesto continha a distinção em termos semelhantes. O Direito pú-

blico era o Direito do Estado romano e o Direito privado, a disciplina dos indivíduos. Esse era

o elemento diferenciador207.

Enquanto em Roma ocorre uma separação mais clara, na Grécia anti-

ga, a vida pública do cidadão era destaque na sua participação política nas decisões de interes-

ses da comunidade, havendo uma interpenetração do público e do privado, sem poder falar-se

em prevalência, primado ou priorização de um sobre o outro.

Na Idade Média, o público praticamente é absorvido pelo privado,

pois, nesse período histórico, as relações de dominação feudal desenvolviam-se tendo como

fundamento a propriedade territorial, de cunho eminentemente privado208. Mas, enquanto pre-

valeceu o feudalismo, a dicotomia praticamente inexistiu, havendo certo predomínio das es-

truturas privadas, ou um misto ou meio-termo, no qual o poder feudal, com sua família, era,

ao mesmo tempo, um poder genérico e institucional209.

A chegada do Estado moderno impôs maior complexidade à distinção

entre o público e o privado, ocorrendo uma nova interpenetração. Isso no sentido de que inte-

ressava à burguesia fortalecer uma monarquia nacional, um governo centralizado e, a este

interessava fortalecer a burguesia, que pagava tributos e financiava as campanhas militares e

outros interesses monárquicos210.

Por volta do século XVIII, com o advento do Estado liberal, volta a

ocorrer uma maior separação, distinção mais nítida entre o público e o privado, com a rígida

separação entre Estado – interesses públicos – e sociedade na qual este se baseava, defenden-

do a propriedade privada, sem intervir nas relações travadas na sociedade. No meio social, os

indivíduos deviam defender livremente os seus interesses privados, sob uma plena liberdade

contratual, eis que formalmente igualizados – interesses privados. Além da separação entre o

Estado e a sociedade, nessa época havia também a separação entre a política e a economia e

entre o Direito e a moral.

Ainda nesse contexto, o individualismo é um valor enormemente pres-

tigiado e a economia era um campo adverso e contrário à intervenção estatal, cabendo à mão

207 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 208 SARMENTO, 2005, op. cit., p. 34. 209 SALDANHA, op. cit., p. 49. 210 FACCHINI NETO, op. cit., p. 18.

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invisível o equacionamento de todos os problemas sociais. Destarte, transparente o primado

do privado sobre o público nesse período.

Ocorre uma inversão no primado do privado sobre o público com o

Welfare State, conforme visto no primeiro capítulo, na evolução do Estado, cujas concepções

geram o advento do constitucionalismo social e maior intervencionismo estatal. De especta-

dor, o Poder Público passa a protagonista das relações econômicas, limitando o poder da von-

tade individual, com a edição e a aplicação de normas imperativas e cogentes.

Adiante, ver-se-á que novas condicionantes adicionam-se à relação en-

tre o público e o privado, com o advento do Estado democrático de Direito.

3.3.2 Os critérios diferenciadores

Ao problematizar a dicotomia clássica, na introdução do tema, viu-se

que Bobbio211 faz distinção entre Direito público e Direito privado, com base na forma da

relação jurídica. O Direito está como um ordenamento jurídico de relações sociais, considera-

do como uma relação de coordenação, entre iguais, no sentido de uma sociedade de iguais,

constituindo o Direito privado, caracterizado pela igualdade e está como uma relação de su-

bordinação, em uma sociedade de desiguais, ou entre desiguais, a caracterizar o Direito pú-

blico212.

Como visto anteriormente, o autor faz também distinção entre a lei –

interesse público – e o contrato – interesse privado, bem como entre justiça comutativa e jus-

tiça distributiva. A distinção sempre esteve presente, foi discutida, levantada e critérios dife-

renciadores foram sendo criados, com pontos controvertidos.

No geral, costuma-se ligar o público ao campo que trata dos interesses

gerais da coletividade, no qual a pessoa humana é vista não particularmente, no seu micro-

cosmo de relações, mas como inserto, membro e participante de uma comunidade política. Já

o campo privado representa as vivências que o indivíduo experimenta fora do espaço da co-

munidade política, que dizem respeito não à sociedade como um todo, mas a cada um, como

indivíduo. 211 BOBBIO, 2004. 212 Ressalte-se que, tanto as relações entre cidadãos, quanto as entre o Estado e o cidadão, podem ser, ora de subordinação e, ora, de coordenação, dependendo das circunstâncias de cada caso particular (na passagem do estado de natureza ao estado civil, com o surgimento do Estado, passam a existir os que comandam e os que obedecem, ou, subordinação).

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Sennett213 defende uma idéia sugestiva, de que a “natureza” corres-

ponderia ao privado, por ser a vida privada vista e sentida como um refúgio, um retorno ao

orgânico, tendo a família como fenômeno natural e a “cultura” corresponderia ao público.

O advento da cultura corresponde a uma eliminação da natureza, ou

antes, “a um corte, a uma abertura nos espaços naturais feita, na verdade, pelo próprio fenô-

meno da cidade, que se instaura como um outro tipo de espaço dentro dos espaços físicos dis-

poníveis no vale ou na montanha”214. Lembrando-se que a evolução de ambas as esferas, a

pública e a privada, depende de padrões culturais e de condições econômicas.

Além dos apontados, no decorrer do tempo, três critérios principais

são propostos para demarcar o campo pertinente a cada uma dessas esferas do Direito – públi-

co e privado: o subjetivo; o da prevalência do interesse; e o da natureza das relações jurídicas.

Todos são passíveis de novas interpretações, por serem contraditórios e insuficientes. Vale

lembrar que sempre dependerá do contexto histórico no qual se encontrem 215.

No critério subjetivo, o elemento diferenciador é o sujeito ou o titular

da relação jurídica. O Direito público rege as relações dos Estados entre si ou do Estado como

tal e os seus membros, e o Direito privado regula as relações entre os indivíduos enquanto

tais.

Já o critério da prevalência do interesse ou finalístico funda a diferen-

ça na maior ou menor extensão do interesse protegido. O Direito público tem por fim a tutela

de interesses gerais, enquanto que o Direito privado protege e tutela os interesses dos cida-

dãos. O referido critério é amenizado com a predominância, verificando qual o interesse que,

prodominantemente, é protegido: o interesse geral ou o interesse individual.

Acrescenta-se ao critério finalístico, por sua inadequação, a imutabili-

dade216, também tema de diversas objeções. Aqui, é necessário atentar-se para a não-confusão

entre Direito público e normas e princípios de Direito Público, como o Código de Defesa do

Consumidor e seus princípios que, por expressa disposição legal, são inderrogáveis pela von-

tade das partes e insuscetíveis de renúncia.

213 Apud SALDANHA, op. cit., p. 42. 214 SALDANHA, op. cit., p. 81. 215 SARMENTO, 2005, op.cit., p. 31. 216 Ius publicum privatorum pactis mutari non potest (o direito público não pode ser modificado pelos pactos particulares).

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O critério da natureza das relações jurídicas, o mais satisfatório deles,

acrescenta ao elemento subjetivo um fator objetivo. Direito público é aquele que tem por fim

regular as relações dos Estados entre si e com os seus súditos, quando procede em razão do

poder soberano, e atua na tutela do bem coletivo. O Direito privado regula as relações entre

pessoas singulares, nas quais predomina imediatamente o interesse de ordem particular217.

Atualmente, não há mais como cogitar sobre duas esferas estanques,

incomunicáveis e dicotômicas, separando absolutamente as normas públicas das normas pri-

vadas. Ao contrário, elas se comunicam, se interpenetram e confluem, não sendo mais possí-

vel traçar-se uma linha divisória.

Entretanto, isso não significa dizer que não existam normas públicas

puras e outras normas privadas puras, mas, entre elas, uma zona de interferência recíproca se

delineia, sendo difícil, senão impossível, delimitar com clareza a natureza pública ou privada.

3.4 A fase atual: a confluência e a interpenetração do público e do privado

A manutenção da Parte Geral no novo Código Civil se deu, conforme

Reale218, de acordo com a grande lição que vem de Teixeira de Freitas, idealizador de uma

tese de Parte Geral como elemento básico da sistemática do Direito privado.

Segundo o autor, essa tradição brasileira, embora mantida, foi tendo

em vista, também, os novos valores jurídico-econômicos emergentes da experiência histórica

do século XX. Tal experiência é fruto da necessidade de uma transformação reclamada, tanto

pelas mutações sociais quanto pelo estado em que se debatia a doutrina e a jurisprudência do

país.

Num primeiro momento, fazer filosofia e sociologia é ser privatista,

mas o novo Código Civil dá possibilidades de abertura, com a função social dos contratos, as

cláusulas gerais abertas, entre outros. O Direito Civil (e seu conceito) está se renovando e, via

de conseqüência, a relação do público com o privado também.

Quando se falava da leitura civil-constitucional, constatou-se que o

Código Civil não mais constitui o centro gravitacional das relações de Direito privado. Rejei-

217 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 18. 218 REALE, 1999, op. cit., p.4.

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tou-se a invasão da esfera privada pela esfera pública e se reconheceu a transformação concei-

tual de Direito Civil219,

ampla o suficiente para abrigar, na tutela das atividades e dos interesses da pessoa humana, técnicas e instrumentos tradicionalmente próprios do direito público, como, por exemplo, a aplicação direta das normas constitucionais nas relações jurídicas de caráter privado.

O Direito está defasado em relação a questões relevantes da sociedade,

a “problemas políticos decisivos” e, em especial, no tocante aos novos Direitos. Isso denota a

necessidade de pensar-se o Direito, juntamente com a política e a sociedade, sendo a noção de

norma jurídica do positivismo puro (normativismo analítico) insuficiente, incompleta e limi-

tada, “devendo ser complementada pela interpretação social”220.

Na crise do Estado social, a exigir o plus dado pelo Estado democráti-

co de Direito, as fronteiras entre o público e o privado estão bastante nebulosas. Trata-se, des-

tarte, de constatar o deslocamento do Código Civil do centro das relações de direito privado.

Esse desapego parte da “consciência da unidade do sistema221 e do respeito à hierarquia das

fontes normativas, com a Constituição em seu topo, enquanto base única dos princípios fun-

damentais do ordenamento”222 jurídico e do próprio Estado constitucional e democrático de

Direito.

Conforme já prenunciava Tepedino223, antes da vigência do NCC, o

último preconceito a ser abandonado na tentativa de reunificação do Direito Civil à luz da

Constituição Federal relaciona-se à summa divisio do Direito público e do Direito privado.

Segundo o autor, “a interpenetração do Direito público e do Direito privado caracteriza a so-

ciedade contemporânea, significando uma alteração profunda nas relações entre o cidadão e o

Estado”.

A distinção, para o mesmo autor, entre o Direito público e o Direito

privado passa a ser apenas quantitativa e não mais qualitativa. Não é mais possível definir

exatamente qual é o território de um ou do outro. Os campos serão delimitados pela prevalên-

219 MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p. 4. 220 ROCHA, Leonel Severo. Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico. In Introdu-ção à Teoria do Sistema Autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 15. 221 A unidade do sistema decorre da existência da norma fundamental, que determina a validade de toda a ordem jurídica, constituindo-se em um sistema, por não tolerar antinomias entre as múltiplas proposições normativas. MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p. 6. 222 MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p. 4. 223 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 3.

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cia do interesse público ou do particular. Tal alteração aumenta significativamente o sentido

da hermenêutica, a ser absorvida por operadores e aplicadores do Direito224.

Neves225 enfrenta a questão do sistema de Direito Civil Constitucional

perguntando até que ponto poder-se-ia dar a alcunha de disciplina privada (ou tão-só privada)

à disciplina da pessoa humana, amparada em sua dignidade e em seus direitos fundamentais.

E mais: poder-se-ia apontar um critério confiável para que se determinassem quais normas são

“de Direito Público” e quais só se aplicam a relações privadas.

Após apresentar duas opiniões distintas, aponta um traço comum, qual

seja, que não mais se definem as relações pela natureza das normas que se lhes aplicam. Que

não há norma jurídica “pública” ou “privada”. E conclui que “o Direito Civil está penetrado

por toda a ordem constitucional, e não por um só tipo de norma, já que toda e qualquer norma

poderá, possivelmente, incidir sobre e regular uma relação civil”.

Para Eugênio Facchini Neto226, as questões ligadas aos fenômenos da

publicização do direito privado e da privatização do direito público relacionam-se com o es-

forço para tornar não só juridicamente eficazes, mas, em especial, socialmente efetivos os

direitos fundamentais. E afirma, com propriedade, que desse esforço deve participar também

o Poder Judiciário.

Aponta, numa análise histórico-evolutiva, a alternância entre o prima-

do do privado – economia globalizada – sobre o público – parcial incapacidade regulatória do

Estado – e, em outros momentos, do público sobre o privado, conforme cada momento histó-

rico. Além disso, afirma, quanto à constitucionalização do Direito privado, que ela representa,

de certa forma, “a superação da perspectiva que via o universo jurídico dividido em dois

mundos radicalmente diversos: o Direito público de um lado, e o Direito privado de outro”.

O Direito privado tem soluções mais diferenciadas e pormenorizadas

para os conflitos entre os particulares, o que a Constituição não poderia fazer. “A Constitui-

ção, em princípio, não é o lugar correto nem habitual para regulamentar as relações entre ci- 224 É a mesma a opinião de MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p. 6. É meramente “quantitativa”, pois “há institutos onde é prevalente a interesse dos indivíduos, estando presente contudo, o interesse da coletividade; e institutos em que prevalece, em termos quantitativos, o interesse da sociedade, embora sempre funcionalizan-do, em sua essência, à realização dos interesses individuais e existenciais dos cidadãos”. 225 NEVES, Gustavo Kloh Muller Neves. Os princípios entre a teoria geral do direito e o direito civil consti-tucional. In: RAMOS, Carmem Lucia Silveira(org.). Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. P. 18.

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dadãos individuais e entre pessoas jurídicas”. Isso consiste numa tarefa do Direito privado.

Contudo, os direitos fundamentais na Constituição têm um grau mais elevado na hierarquia

das normas do que o Direito privado e podem, por isso, influenciá-lo227.

Assim, na Alemanha, na tese prevalente, os direitos fundamentais ser-

vem, em primeiro lugar, à defesa de intervenções por parte do Estado nos bens jurídicos dos

seus cidadãos, o que chamam de proibições de intervenção e direitos de defesa em relação ao

Estado. A jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal, endossada pela doutrina, enten-

de que os direitos fundamentais possuem adicionalmente a função de obrigar o Estado à pro-

teção dos seus cidadãos, tendo-os como mandamentos de tutela ou deveres de proteção.

Canaris228 chama essa função de eficácia externa mediata, conside-

rando que os direitos fundamentais produzem efeitos nas relações interprivadas, por via oblí-

qua, “porque o Estado ou o ordenamento jurídico estão, em princípio, obrigados a proteger

um cidadão contra o outro também nas relações entre si”. Entende, assim, que o destinatário

dos direitos fundamentais é apenas o Estado.

O autor defende ainda que o legislador está vinculado, sem mediações,

aos direitos fundamentais no campo do Direito privado e, em havendo violações deles na área

do Direito privado, haverá a possibilidade de remediá-las por meio da jurisprudência.

Entretanto, fica em um meio termo entre a primeira e a segunda teoria

de eficácia dos direitos fundamentais. Não é possível concordar com tais teses, de eficácia

vertical tão-somente ou de eficácia limitada e mediata. O próprio autor reconhece que os di-

reitos fundamentais constituem limites para a jurisprudência na aplicação e interpretação de

leis jusprivatistas. E, ao analisar a natureza dessa vinculação, conclui que se trata de eficácia

normal, e não de um efeito por irradiação, concordando-se com o autor alemão nesse aspecto.

A violação dos direitos fundamentais ou de princípios constitucionais

ocorre quando há o conflito - o litígio –, ou seja, a eficácia que se persegue e defende ocorre

no caso concreto, na vida das pessoas, no plano horizontal.

Tal eficácia não afasta o Direito infraconstitucional – privado; apenas

o afasta sempre que estiver em confronto com os direitos fundamentais e princípios constitu-

226 Op. cit. p. 29. P. 14. 227 CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit. p. 227. 228 Idem, p. 240.

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cionais, no caso específico. Na relação entre particulares, eles violam tais direitos, no se rela-

cionar, e não quanto à norma. Quando o legislador viola o Direito Constitucional, também se

está diante de uma inconstitucionalidade, diga-se de passagem, da mesma forma alegável no

plano concentrado e no plano difuso.

Em seus argumentos, para uma reconsideração da doutrina tradicional,

Ubillos229 defende uma revisão da difusa fronteira entre o público e o privado, fundado na

crise da dicotomia e tendo em conta a hora de questionar a sustentabilidade da concepção

clássica.

O autor espanhol entende que, na atualidade, não há mais como apre-

sentá-los tão-somente como “público’ ou “privado”, pois ninguém mais pode, em são juízo,

pretender o desaparecimento de fronteira entre as duas esferas. O Poder Público tende a priva-

tizar-se e o privado assume cada vez mais conotações públicas, mas a abolição da esfera pri-

vada implica um regime totalitário. Por outro lado, não há como negar: a fronteira é cada vez

menos nítida, pois há uma continuidade, uma progressiva confluência e interpenetração.

O panorama é confuso e tende a aprofundar-se no futuro. Por isso, de-

ve estar presente em toda a discussão jurídica, sendo sempre objeto de discussão e debate, a

fim de se obter, gradativamente, maior eficácia dos direitos fundamentais na vida real de to-

dos os cidadãos.

Maria Celina Bodin de Moraes230 defende que “defronte de tantas alte-

rações, Direito privado e Direito público tiveram modificados seus significados originários: o

direito privado deixou de ser o âmbito da vontade individual e o direito público não mais ins-

pira na subordinação do cidadão”.

Também para a autora aumentam-se os pontos de confluência entre o

público e o privado, devendo-se rejeitar a idéia de invasão da esfera privada pela pública, a-

ceitando a transformação do conceito de Direito Civil (e privado como um todo), enquanto

capaz de abrigar a aplicação direta das normas constitucionais nas relações privadas. Tudo

tendo sempre presentes as noções de unidade do sistema e de respeito à hierarquia das fontes,

com a Constituição em seu ápice, como base única dos princípios fundamentais do ordena-

mento.

229 Op. cit., p. 2. 230 MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p. 6.

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Com o advento da Constituição Federal de 1988, as matérias afetas ao

Código Civil ou ao Direito privado passam a dever ser filtradas a partir da axiologia constitu-

cional, incorporando os valores da solidariedade social, da igualdade substantiva e da justiça

distributiva.

Ao mesmo tempo, solidifica-se o reconhecimento da incidência dos

direitos fundamentais no campo das relações privadas, ou a questão da eficácia horizontal dos

direitos fundamentais, não tidos mais, tão-somente, como limites oponíveis em face do Estado

ou do legislador.

3.4.1 As restrições; os interesses privados que não constituem direitos fundamentais e o equi-

líbrio

Estabeleceu-se o papel de primazia dos direitos fundamentais para a

eficácia na concretização do Direito, em um Estado constitucional e democrático de Direito,

com uma Constituição, que também é social. Fixou-se, também, nos fundamentos éticos desse

Estado, que eles não são absolutos.

Salientou-se, da mesma forma, o papel da interpretação e da herme-

nêutica nessa concretização, com a ponderação de interesses. Em uma ordem jurídica, bens

outros e diversos também necessitam de proteção e possuem a mesma hierarquia constitucio-

nal. E essa proteção pode justificar a restrição de direitos fundamentais pelo legislador, os

quais serão ponderados com o caráter principiológico das normas constitucionais. Além disso,

a restrição pode surgir no caso concreto, com a colisão de princípios não solucionada pelo

legislador, momento em que a ponderação será levada a termo pelo Judiciário231.

Todavia, o verdadeiro conflito entre o interesse público e o privado é

verificável no caso concreto, podendo haver colisão ou não, sendo provável a convergência

entre o interesse público e o interesse legítimo das partes, especialmente no tocante a direitos

fundamentais.

Ressalte-se a perspectiva não-individualista dos direitos fundamentais,

com a titularidade deles deferida transindividualmente, como no direito ao meio-ambiente

ecologicamente equilibrado. Nesse caso, o interesse da coletividade é protegido como direito

fundamental, havendo convergência com o direito fundamental individual. Da mesma forma,

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ocorre, na maioria das vezes, entre os interesses públicos e os privados, uma vez que cabe ao

Estado não só protegê-los, mas também garanti-los. Consoante Sarmento232:

Na imensa maioria dos casos, a coletividade, em geral, se beneficia com a efetiva proteção dos interesses dos seus membros. Até porque, o interesse público, na ver-dade, é composto pelos interesses particulares dos componentes da sociedade, razão pela qual se torna em regra impossível dissociar os interesses públicos dos privados.

Os limites ou restrições aos direitos fundamentais podem apresentar-

se de três formas diversas: autorizado diretamente na própria Constituição Federal – quando a

liberdade de reunião exclui o direito de reunir-se com armas (artigo 5º, inciso XVI, CF) ou

quanto traz a função social da propriedade como limite ao direito de propriedade (inciso

XXIV), entre outros; restrições abonadas pela Constituição, quando ela autoriza a edição de

lei restritiva – por exemplo, o inciso LVII: o civilmente identificado não será submetido à

identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em Lei; e decorrer de restrições não ex-

pressamente referidas no texto constitucional – quando houver colisão de direitos e/ou princí-

pios no caso concreto, em nome da unidade da Constituição e de sua convivência com bens,

direitos e princípios diversos.

Além dessas restrições aos direitos fundamentais, outros limites exis-

tem, tanto para o legislador quanto para a concretização do Direito pelo Judiciário, que res-

tringem os limites apresentados. Os mesmos não serão levantados e aprofundados, pela neces-

sidade de delimitação do tema. Interessa, apenas, fixar a existência de limites e restrições aos

direitos fundamentais, mas, sem jamais se esquecer de sua primazia e centralidade.

Aceita a idéia da existência de restrições aos direitos fundamentais,

cabe inserir a existência, igualmente, de interesses privados que não constituem direitos fun-

damentais e não recebem da ordem jurídica tanta proteção quanto estes.

Para tanto, utilizar-se-á dos ensinamentos de Sarmento233, citando o

clássico exemplo da colocação de quebra molas pelo Poder Público. No interesse público de

evitar atropelamentos e restringir a velocidade dos condutores, a vontade do motorista de diri-

gir em velocidade maior é um mero interesse privado, sem estatura constitucional.

231 SARMENTO, Daniel (a). Livres e Iguais: estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 69. 232 Idem, p. 72. 233 Idem, p. 91.

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Sem aprofundar a questão do princípio geral da primazia (ou não) do

interesse público sobre o interesse particular, inadequado neste espaço, ressalta-se que, ao

Estado, cabe perseguir os interesses da sociedade e não os privados dos particulares, mas

sempre com respeito aos direitos fundamentais. E, via de conseqüência, no caso de interesses

privados, o controle judicial deve ser menos incisivo do que quando se restringirem direitos

fundamentais.

Entre oscilações e épocas de predomínios, numa constante histórica, o

que se depreende é a permanência da distinção234

entre duas dimensões do viver: a que circunda o indivíduo como algo concreto e i-mediato, e a que se estende ao seu redor como projeção de planos mais amplos e mais complexos. Em uma visão equilibradora, os dois modos deveriam ser comple-mentares, sendo ambos necessários ao existir dos grupos humanos e ao desenvolvi-mento da condição humana, mesmo porque as formas de vida são sempre formas de equilíbrio.

O sentido geral de equilíbrio pode ser atribuído ao mundo clássico.

Embora a visão dicotômica que dividia o mundo jurídico em público e privado tenha ingres-

sado no pensamento ocidental, pelo Direito romano, tanto na Grécia quanto na Roma antiga,

estava presente a dualidade de cultos: o culto público e o culto privado. Mas não havia con-

tradição entre os dois planos, pois “o indivíduo integrava a família (e não era imaginável sem

isso), e simultaneamente fazia parte da cidade, cuja razão de ser eram os cidadãos”235.

A complementaridade entre vida pública e vida privada clarifica-se e é

paralela para com a oposição entre vida social e vida solitária. Pois esta, “que também tem

uma estrutura, desenrola-se em espaços específicos, onde o humano se concentra em sua co-

nexão mais direta com o eu individual e ou o eu se cultiva por meio de conexões culturais

concretas e pessoais”. A vida histórica não poderia ocorrer sem a esfera pública, nela incluído

o viver privado. Inobstante isso, o século XX introduz nas imagens (casa – edifício) a dissi-

metria e o desequilíbrio, naquele ser humano que reconhecia a si mesmo dentro de certos pa-

râmetros, na maioria dos contextos passados. Também não se pode negar que toda forma de

vida é um processo de equilíbrio236.

Destaca-se aqui o papel e a conexão dessa dissimetria e desequilíbrio

com o excessivo crescimento urbano, a massificação, os regimes autoritários, a sociedade

234 SALDANHA, op. cit., p. 113. 235 Idem, p. 25. 236 Idem, p. 114.

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industrial pós-industrial, ou mesmo a destruição do ser humano – já trabalhados em outro

ponto deste estudo –, a perda da substância da parte da dimensão privada do existir.

O privatismo brasileiro deve ser entendido em seu nexo com fenôme-

nos como o latifúndio, famílias dinásticas e a ausência do povo – na vida política e de luta – e

do sentido da coisa pública – desdém, tanto dos governantes, quanto do povo, para com a coi-

sa pública. Não se teve ainda uma vida pública com plenitude nem esse domínio privado que

se quer alterar, recusar, rejeitar: “Um privatismo sem jardins”237.

Destarte, acredita-se em um equilíbrio possível, mas não o pretenso

equilíbrio da modernidade e do liberalismo, em suas diversas roupagens, e sim um equilíbrio

sem dualidades, sem dicotomias, de aproximação, de encontro e de complementaridade entre

os interesses/Direito público e interesses/Direito privado, ou seja, respeitando-se o espaço de

cada qual – público e privado, sem separá-los e sem que um predomine ou prevaleça sobre o

outro e, nesse contexto do homem histórico – e do humano – concreto, situado, contextualiza-

do.

Fixada a leitura civil-constitucional, a partir do nascimento do Estado

constitucional e democrático de Direito e, levada a termo a ruptura de paradigmas necessária

para a construção da eficácia constitucional que se pretende, no próximo capítulo, tratar-se-á

do papel dos princípios constitucionais e do novo Direito Civil nesta busca de legitimidade

para a aplicação do Direito Civil.

237 Idem, p. 136.

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4 O princípio da socialidade

Verificou-se, no primeiro capítulo, que o Estado democrático de Di-

reito (princípio democrático) introduz um propósito solidário, ao lado do Estado social, para

solucionar os problemas da vida individual e coletiva. Isso porquanto constitui um dos objeti-

vos fundamentais da República brasileira superar as desigualdades sociais e regionais, com

um regime democrático, que realize a justiça social, conforme modelada e determinada pela

Constituição Federal238.

Para tanto, aproximou-se a Constituição Federal do Direito privado,

em especial, neste trabalho, o Direito Civil. Firmou-se a interpenetração do público e do pri-

vado. Da mesma forma, assentou-se o papel dos direitos fundamentais e dos princípios consti-

tucionais e infraconstitucionais para a sonhada eficácia deles e, via de conseqüência, da Cons-

tituição Federal, naquele ambiente de Estado que se delimitou no capítulo primeiro.

Sobre a eficácia dos princípios constitucionais na aplicação, interpre-

tação e integração de textos normativos, o Supremo Tribunal Federal (STF)239 entende que

princípios são normas jurídicas de um determinado Direito, no caso, do Direito brasileiro em

todas as suas esferas e entes federativos. E mais: que eles estão disseminados pelo texto cons-

titucional, posto que não é tópica a sua localização e configuram acervo expressivo de limita-

ções da autonomia local, cuja identificação — até mesmo pelos efeitos restritivos que deles

decorrem — impõe-se realizar.240

238 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 239 Inexistente atribuição de competência exclusiva à União, não ofende a Constituição do Brasil norma constitu-cional estadual que dispõe sobre aplicação, interpretação e integração de textos normativos estaduais, em con-formidade com a Lei de Introdução ao Código Civil. Não há falar-se em quebra do pacto federativo e do princí-pio da interdependência e harmonia entre os poderes em razão da aplicação de princípios jurídicos ditos 'federais' na interpretação de textos normativos estaduais. Princípios são normas jurídicas de um determinado direito, no caso, do direito brasileiro. Não há princípios jurídicos aplicáveis no território de um, mas não de outro ente fede-rativo, sendo descabida a classificação dos princípios em 'federais' e 'estaduais'." (ADI 246, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 16-12-04, DJ de 29-4-05). 240 "Se é certo que a Nova Carta Política contempla um elenco menos abrangente de princípios constitucionais sensíveis, a denotar, com isso, a expansão de poderes jurídicos na esfera das coletividades autônomas locais, o mesmo não se pode afirmar quanto aos princípios federais extensíveis e aos princípios constitucionais estabele-cidos, os quais, embora disseminados pelo texto constitucional, posto que não é tópica a sua localização, confi-guram acervo expressivo de limitações dessa autonomia local, cuja identificação — até mesmo pelos efeitos restritivos que deles decorrem — impõe-se realizar. A questão da necessária observância, ou não, pelos Estados-

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Para essa pretendida eficácia, firmou-se uma leitura civil-

constitucional, com a quebra de alguns paradigmas, respeitantes aos conceitos de autonomia

da vontade, propriedade e da pessoa humana. Também, sobre a segurança jurídica e sobre ser

o sistema jurídico um sistema aberto de normas e princípios. Por fim, defendeu-se a eficácia

horizontal dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais. Sobre essa eficácia o

Supremo Tribunal Federal (STF), além da compreensão do conceito de autonomia da vontade

conforme a Constituição e limitada pelos direitos fundamentais, entende que 241

as violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físi-cas e jurídicas de Direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcio-nados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.

De ora em diante, encerrando os estudos, pesquisar-se-á sobre o prin-

cípio civil da socialidade, especificamente, não (mais) somente privado e algumas das possi-

bilidades de sua aplicação prática. Não se permitindo deixar de lado ou esquecer a Lei Maior,

antes dessa formulação, far-se-ão considerações acerca dos princípios constitucionais da soli-

dariedade e da fraternidade, dos quais decorre e com os quais se liga o princípio da socialida-

de à Constituição Federal e ao Estado de Direito.

4.1 O princípio constitucional da solidariedade (ou fraternidade)

O reconhecimento da solidariedade é conseqüência, entre outras, da

segunda grande guerra mundial, que faz surgir um novo tipo de relacionamento entre as pes- membros, das normas e princípios inerentes ao processo legislativo, provoca a discussão sobre o alcance do poder jurídico da União Federal de impor, ou não, às demais pessoas estatais que integram a estrutura da federa-ção, o respeito incondicional a padrões heterônomos por ela própria instituídos como fatores de compulsória aplicação. (...) Da resolução dessa questão central, emergirá a definição do modelo de federação a ser efetiva-mente observado nas práticas institucionais." (ADI 216-MC, Rel. p/ o ac. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-5-90, DJ de 7-5-93). 241 "Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. Os princípios constitucionais como limites à autonomia privada das associações. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de igno-rar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem,

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soas, nela baseado (derivada dos direitos de terceira geração – a fraternidade), até então des-

conhecido, ou então, adormecido no imaginário dos juristas. A Lei Maior, ao esculpir os obje-

tivos da República Federativa do Brasil – desse ambiente que se denomina neste trabalho de

Estado constitucional e democrático (e social) de Direito – entre outros fins, estabelece a

construção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, I, supra).

O movimento socialista contribuiu para o princípio da solidariedade

atuar como dever jurídico, a fim de corrigir e superar o individualismo da civilização burgue-

sa, mas, diante de sua queda e problemas, sequer essa parte interessante do regime foi recep-

cionada.

Tal reconhecimento da solidariedade, bem como a possibilidade de

sua eficácia, estão presentes nos julgados do STF, conforme se verifica no voto do Ministro

Celso de Melo, em Mandado de Segurança que demontra, da mesma forma, a presença da

solidariedade, socialidade ou função social no Direito da Empresa, quando afirma que242

os direitos de terceira geração, (que) materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da so-lidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, nota de uma essencial inexauribilidade.

Para Resta – que, consoante Grau, prefaciador da obra, estuda o Direi-

to fraterno com uma astúcia dos deuses gregos e faz uma releitura que necessariamente hou-

vesse de ser feita, para apostar na fraternidade – trata-se de um necessário retorno ao binômio

Direito e fraternidade que243:

parente pobre da modernidade, recoloca em jogo o modelo de regra da comunidade política; modelo não vencedor, mas possível. É um pedaço do direito vivo que não é necessário deva ser sempre direito vencedor (...). As estruturas fundamentais do di-reito fraterno são, em conclusão, as condições mínimas daquele direito vivo que a-tende a sua forma.

aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais." (RE 201.819, Rel. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 11-10-05, DJ de 27-10-06). 242 “Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) — que compreendem as liberdades clás-sicas, negativas ou formais — realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos eco-nômicos, sociais e culturais) — que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas — acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuí-dos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um mo-mento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracteri-zados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, nota de uma essencial inexauribilidade.” (MS 22.164, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 30-10-95, DJ de 17-11-95). 243 RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Sandra Regina Martini Vial (trad. e coord.) Alba Olmi (rev.). Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004. P. 133.

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É um projeto solidarista, a ser realizado, de se alcançar o objetivo da

igual dignidade social244. Trata-se de admitir, reconhecer e buscar concretizar o terceiro ele-

mento da tríade democrática da Revolução Francesa: a fraternidade ou solidariedade. Exem-

plificando: em questão de credenciamento de profissionais do volante, além de ressaltar o

saneamento social, que deve ser viabilizado, o Supremo Tribunal Federal (STF)245 afirma que

o Diploma Maior não permite a exploração do homem pelo homem, por ser fundamento da

República a dignidade da pessoa humana, reconhecendo o objetivo da igual dignidade social.

Deve-se ter presente que o solidarismo é suscetível de diversas inter-

pretações. Solidariedade pode significar solidariedade para fins do Estado, ou para um bem

individual escolhido pelos cidadãos, de modo democrático ou imposto de forma autoritária.

Necessário, nesse caso, fixar, reiterando que neste trabalho de pesquisa, solidariedade signifi-

ca a sua alocação e estudo no âmbito do Direito Constitucional, do Estado democrático (e

social) de Direito.

O princípio da solidariedade encontra fundamento ético na idéia de

justiça distributiva, com a necessária compensação de bens e vantagens entre as classes soci-

ais, com a socialização dos riscos normais da existência humana. Prende-se à idéia de respon-

sabilidade de todos pelas carências ou necessidades de qualquer indivíduo ou grupo social246.

Destarte, criou-se e assimilou-se o conceito de humanidade, como

uma coletividade que exige proteção jurídica. Consectário da idéia de reciprocidade, da regra

de ouro, de Jesus de Nazaré: “faz aos outros o que desejas que lhe façam”, ou a de prata, ne-

gativa: “não fazer aos outros o que não se deseja que lhe seja feito”, como um “conceito dialé-

tico de ‘reconhecimento do outro’”.

244 Moraes, Maria Celina Bodin de (coord.), 2006. P. 48. 245 “Sendo fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana, o exame da constitu-cionalidade de ato normativo faz-se considerada a impossibilidade de o Diploma Maior permitir a exploração do homem pelo homem. O credenciamento de profissionais do volante para atuar na praça implica ato do adminis-trador que atende às exigências próprias à permissão e que objetiva, em verdadeiro saneamento social, o endosso de lei viabilizadora da transformação, balizada no tempo, de taxistas auxiliares em permissionários.” (RE 359.444, Rel. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, julgamento em 24-3-04, DJ de 28-5-04). No mesmo sentido, com referência ao direito ao nome: “O direito ao nome insere-se no conceito de dignidade da pessoa humana, princí-pio alçado a fundamento da República Federativa do Brasil (CF, artigo 1º, inciso III)." (RE 248.869, voto do Min. Maurício Corrêa, julgamento em 7-8-03, DJ de 12-3-04). 246 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2005. 4ª ed. rev. e atual. P. 64.

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Falar da fraternidade implica tocar em feridas abertas no seio da hu-

manidade. Humanidade e Direito fraterno. Importa em repensar o Direito e reconhecer o Di-

reito fraterno, pois ele coloca247

em evidência toda a determinação histórica do direito fechado na angústia dos con-fins estatais e coincide com o espaço de reflexão ligado ao tema dos Direitos Huma-nos, com uma consciência a mais: a de que a humanidade é simplesmente o lugar comum”, somente em cujo interior pode-se pensar o reconhecimento e a tutela. Em outras palavras: os Direitos Humanos são aqueles direitos que somente podem ser ameaçados pela própria humanidade, mas que não podem encontrar vigor, também aqui, senão graças a própria humanidade.

Portanto, importa em repensar a humanidade, no sentido de ser ho-

mem que “possui aquele sentimento singular de humanidade” e reconhecer um modelo de

Direito, vendo a cidadania em direção à nova forma de cosmopolitismo: “pela necessidade

universalista de respeito aos direitos humanos que vai se impondo ao egoísmo dos ‘lobos arti-

ficiais’ ou dos poderes informais que à sua sombra governam e decidem” e não na forma fe-

chada de cosmopolitismo representada pelos mercados.

Destarte, a solidariedade fática decorre das necessidades de coexistên-

cia e convivência humana em sociedade e a solidariedade, como valor da consciência racional

dos interesses em comum, que implicam, para todos (cada um), essa obrigação moral de soli-

dariedade248.

Tais necessidades se encontravam presentes na antigüidade clássica.

Aristóteles, em sua “Política”249, já dizia:

que a cidade participa das coisas da natureza, que o homem é um animal político, por natureza, que deve viver em sociedade, e que aquele que, por instinto e não por inibição de qualquer circunstância, deixa de participar de uma cidade é um ser vil ou superior ao homem. Esse indivíduo é merecedor, segundo Homero, da cruel censura de um sem-família, sem leis, sem lar. Pois ele tem sede de combates e, como as aves rapinantes, não é capaz de se submeter a nenhuma obediência.

Dessa forma, a exigência de buscar-se uma outra dimensão dos direi-

tos fundamentais, aquela que se assenta sobre a fraternidade, veio da consciência de um mun-

do partido entre nações desenvolvidas, subdesenvolvidas ou em fase de precário desenvolvi-

mento, com um sentido que não parece compreender unicamente a proteção específica de

247 Resta, op. cit., p. 13. 248 Ibidem, 2006. P. 46. 249 ARISTÓTELES. Política. Torrieri Guimarães (trad.). São Paulo: Martin Claret, 2001. P. 14.

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direitos individuais e coletivos. Assim, “um novo pólo jurídico de alforria do homem se a-

crescenta historicamente aos da liberdade e da igualdade250”251.

Os direitos de terceira geração, fundados na fraternidade, como o di-

reito ao desenvolvimento, à paz, ao meio-ambiente, de propriedade sobre o patrimônio co-

mum da humanidade, de comunicação, além de outros, em fase de gestação, com o processo

universalista, têm como primeiro destinatário o gênero humano, “num momento expressivo de

sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”. Assinala uma

evolução de trezentos anos na esteira da concretização dos direitos fundamentais252.

Ao lembrar Montaigne, que insistiu em não perder de vista o indiví-

duo concreto, Santos253 lembra também Kropotkin, reivindicando a evidência que as pessoas

são capazes de solidariedade, insistindo na “solidariedade concreta, nos laços de ajuda mútua

que ligam os indivíduos uns aos outros e sem os quais a vida individual, e não apenas a cole-

tiva, não seria possível”.

Para resumir a aplicação e os riscos inerentes aos princípios que nor-

teiam o NCC, na Exposição de Motivos do Código Civil254, na visão de Reale:

o grande risco de tão reclamada socialização do Direito consiste na perda dos valo-res particulares dos indivíduos e dos grupos; e o risco não menor da concretude jurí-dica reside na abstração e olvido de características transpessoais ou comuns aos atos humanos, sendo indispensável, ao contrário, que o individual ou o concreto se ba-lance e se dinamize com o serial ou o coletivo, numa unidade superior de sentido é-tico.

Em torno da solidariedade (fraternidade), constrói-se toda a teoria

contratual (a função social do Direito Civil), ou seja, da conexão da solidariedade com a fun-

ção social de todo o Direito255.

250 Sobre a isonomia, decisão do STF: “O princípio da isonomia, que se reveste de auto-aplicabilidade, não é — enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica — suscetível de regulamentação ou de com-plementação normativa. Esse princípio — cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público — deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privi-légios (RDA 55/114), sob duplo aspecto: (a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei — que opera numa fase de generalidade puramente abstrata — constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva de inconstitucionalidade.” (MI 58, Rel. p/ o ac. Min. Celso de Mello, julgamento em 14-12-90, DJ de 19-4-91). 251 BONAVIDES, 2006. Op. cit., p. 569. 252 Ibidem. 253 Op. cit., p. 335. 254 REALE, 1999, op. cit., p. 12.

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Comparato, ao estudar a afirmação histórica dos direitos humanos, a-

presenta como formulação central de toda a filosofia, a indagação: “Que é o homem?”. Afir-

mação que, para o autor, “já postula a singularidade eminente deste ser, capaz de tomar a si

mesmo como objeto de reflexão”256.

O movimento constante e inelutável de unificação da humanidade, que

atravessa toda a História, é impulsionado, na história atual, por um lado, pelas invenções téc-

nico-científicas e, por outro, pela afirmação dos direitos humanos, que são257:

os dois grandes fatores de solidariedade humana: um de ordem técnica, transforma-dor dos meios ou instrumentos de convivência, mas indiferente aos fins; e outro de natureza ética, procurando submeter a vida social ao valor supremo da justiça. A so-lidariedade técnica traduz-se pela padronização de costumes e modos de vida, pela homogeneização universal das formas de trabalho, de produção e troca de bens, pela globalização dos meios de transporte e de comunicação. Paralelamente, a solidarie-dade ética, fundada sobre o respeito aos direitos humanos, estabelece as bases para a construção de uma cidadania mundial, onde já não há relações de dominação, individual ou coletiva. (Grifou-se).

A solidariedade humana exerce atividade em três espaços: dentro de

cada grupo social, no relacionamento externo entre grupos, povos e nações e entre as sucessi-

vas gerações na história. Para Comparato, “é o princípio da solidariedade que constitui o fe-

cho de abóbada de todo o sistema de direito humanos”.

Desta forma, a solidariedade – dos indivíduos e dos grupos organiza-

dos – passa a ser um princípio geral da Constituição Federal, de força normativa e com impor-

tância e aplicabilidade prática, tanto no âmbito do Legislativo quanto do Judiciário, ao lado de

outros instrumentos, para garantir a todos uma existência digna, numa sociedade livre, igual

(substancialmente) e justa.

Resta258 indica alguns pontos, como as condições mínimas das estrutu-

ras fundamentais daquele direito vivo que atende a sua forma. Afirma que o Direito fraterno é

convencional, com o olhar voltado para o futuro, um pacto no qual se “decide compartilhar”

regras mínimas de convivência ou um direito jurado em conjunto por irmãos, homens e mu-

lheres, em oposição ao direito paterno, que é o Direito imposto, sobre o qual se “deve” so-

mente jurar.

255 RENTERÍA, Pablo. Considerações acerca do Atual Debate sobre o Princípio da Função Social do Con-trato. In Moraes, Maria Celina Bodin de (coord.), 2006. P. 281. 256 COMPARATO, op. cit. P. 3. 257 COMPARATO, op. cit., p. 38. 258 Op. cit., p. 133-135.

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Graças a esse pacto, é um Direito livre de obsessão da identidade que

deveria legitimá-lo e não pede outras justificações senão a comunitas ou a tarefa compartilha-

da. Importa na revogação decisiva daquele “direito de cidadania”, já referido, na forma dos

direito humanos, esvaziados da metafísica. Olhar para “a humanidade como um ‘lugar co-

mum’ e não como a abstração que confunde tudo e mascara as diferenças”. Também integra

essas condições a sabedoria da distância entre sermos homens e termos humanidade, que os

direitos humanos são o lugar da responsabilidade e não da delegação e, por isso, o Direito

fraterno é cosmopolita. O Direito fraterno é não violento, não incorpora a idéia do inimigo sob

outra forma e, por isso, é diferença em relação à guerra, pois não é possível defender os direi-

tos humanos ao mesmo tempo em que se os está violando259.

Ainda, o Direito fraterno é contra os poderes de todos os tipos, de

uma maioria, de um Estado, de um governo ou daqueles que exercem domínio sobre a “vida

nua”. É inclusivo, no sentido de que “escolhe direitos fundamentais e define o acesso univer-

salmente compartilhado a bens ‘inclusivos’”, como o ar, a vida, o patrimônio genético, en-

quanto outros são menos inclusivos, como as propriedades, quando não igualmente distribuí-

das. E, por fim, é a aposta de uma diferença em relação aos outros códigos que olham a dife-

rença entre amigo e inimigo, sendo instrutivos para tanto os modelos que debetem sobre a

guerra260.

E, para firmar, tudo isso dentro de um determinado Estado de Direito.

Dessa solidariedade social (fraternidade) esculpida constitucionalmente resulta a função social

do Direito Civil, representada especialmente pelo princípio do socialidade, no Direito privado.

4.2 A função social no Direito Civil

Hannah Arendt, ao pensar sobre a condição humana, pondera que “to-

das as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos; mas a

ação é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens”. Analisa as

condições humanas a partir de escritos, desde a antigüidade clássica. De origem romana, a

palavra social teve acepção política com a grega socialis – erro de interpretação de político

259 RESTA, idem. 260 Ibidem, p. 135.

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por social. Mas é com o conceito de uma “sociedade da espécie humana” que o termo social

começa a adquirir o sentido geral da condição humana fundamental261.

Para a autora, o que torna tão difícil suportar a sociedade de massas é

o fato de que o mundo entre as pessoas perdeu a força de mantê-las juntas, de relacioná-las

umas as outras e de separá-las, e não o número de pessoas que ela abrange ou esse não é o

fator fundamental. No tocante à convivência humana e ao papel da esfera pública - público

significa o próprio mundo – assim se expressa:

Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto en-tre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se as-sentam ao seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo sepa-ra e estabelece uma relação entre os homens. A esfera pública, enquanto mundo co-mum, reúne-nos na companhia uns dos outros e contudo evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer.

Prosseguindo, não será feita uma incursão histórica profunda da fun-

ção social, apenas algumas considerações para situá-la no contexto do trabalho. A igreja cató-

lica reconhecia uma índole social à propriedade privada, por exemplo, na doutrina tomista262.

O jusnaturalismo também contribuiu nesse sentido, com fundamento na eqüidade e na justiça

supralegislativa. O conceito ou a visão da função social, em geral, centrada na propriedade,

foi tendo seus contornos alterados, conforme o decorrer histórico: viés absolutista, Revolução

Francesa, marxismo, guerras mundiais.263

Entretanto, a noção de função social no Direito tem como marco teóri-

co Duguit264, em sua célere frase, de que “o homem social não pode ter direitos subjetivos,

devendo a noção metafísica de direito subjetivo ser substituída pela noção realista de função

social”. Desenvolve a idéia de dever do homem, porque cada um exerce uma função social, e

não de direito, e a propriedade não teria função social, porque seria a própria função social –

propriedade-função265.

261 ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. P. 31. 262 Expressão consagrada de São Tomás de Aquino, seguindo os gregos: “o homem é, por natureza, político, isto é, social”. 263 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; ANDRIOTTI, Caroline Dias; Breves notas históricas da função social no Direito Civil. In GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord). Função social no Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2007. P. 5. 264 Apud GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord). Função social no Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2007. P. XI. 265 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; ANDRIOTTI, Caroline Dias, op. cit., p. 9.

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A idéia da socialidade evoluiu a partir da necessidade de uma socieda-

de de massa que vivesse em harmonia266 que, além do valor da segurança jurídica, os de justi-

ça social deveriam ser respeitados. Aliado a isso, a máxima eficácia dos direitos fundamen-

tais, otimizando a proteção da dignidade humana revolucionou a disciplina dos institutos pri-

vados.

Os excessos de Duguit foram severamente criticados, por entendimen-

tos no sentido de que a propriedade não é uma função social, mas contém uma função social.

E isso não significa que o direito de propriedade (todo o Direito privado) tenha saído do âmbi-

to das relações privadas para o Direito público, mas que deve ocorrer um giro epistemológico,

para considerar a questão a partir do bem e de suas efetivas utilidades267.

Para Perlingieri, a transformação da realidade social em qualquer de

seus aspectos, significa a transformação da realidade normativa e vice-versa. O direito positi-

vo pode se propor simplesmente conservar as situações presentes na sociedade, adaptando-se

às regras preexistentes ou a modificar a realidade criando novas regras. Existem velhas estru-

turas, ideais e práticas a serem mudadas, frutos de demandas, necessidades, impulsos já exis-

tentes na sociedade. “O Direito, de tal modo, torna possível, com os seus instrumentos, a

transformação social”268.

Em abstrato, entende que não existe um ordenamento jurídico, mas os

ordenamentos jurídicos, cada um dos quais caracterizado por uma filosofia de vida, por valo-

res e princípios fundamentais que constituem a sua estrutura qualificadora. A Constituição

une o ordenamento e resolve-se o problema somente tendo consciência de que o ordenamento

jurídico é unitário e a solução para cada controvérsia, de seus princípios fundamentais, são

considerados como opções de base que o caracterizam269.

No tocante à instrumentalidade da função social – princípio, diretriz,

cláusula geral, doutrina ou idéia-princípio – entende-se que função representa um poder de

dar ao objeto da propriedade destino determinado e de a vincular a um certo objetivo, e o ad-

266 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; CIDAD, Felipe Germano Cacicedo. Função social no Direito Privado e Constituição. In GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord). Função social no Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2007. P. 21. 267Ibidem, op. cit., p. 10. 268 PERLINGIERI, op. cit., p.2. 269 Ibidem, p.4.

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jetivo social delimita que o objetivo deve ser adequado ao interesse coletivo para a sua har-

monização com o interesse individual270.

Positivada nos textos constitucionais e infraconstitucionais, a função

social pode ser representada pelo princípio da socialidade e instrumentaliza o princípio consti-

tucional da solidariedade social, um dos principais fundamentos do Estado brasileiro. Então,

no novo Código Civil, têm-se referências da função social ou da socialidade, no contrato, na

posse e na propriedade, na empresa, na família e sucessões.

Opera-se não tão-somente a interpenetração do público e do privado e

constitucionalização do Direito privado, conforme estudado no capítulo segundo, mas uma

verdadeira revolução, com transformações e mudanças internas na própria estrutura, no âmbi-

to do Direito privado. Outrossim, reconhecem-se as relações intersubjetivas e passam-se a ler

as normas infraconstitucionais à luz dos direitos fundamentais e princípios constitucionais. O

objetivo é concretizar a solidariedade social.

Destarte, com fundamento no princípio da solidariedade, os conheci-

dos direitos sociais passaram a ser reconhecidos como direitos humanos, que se realizam com

políticas públicas, para garantir amparo e proteção social aos mais fracos e pobres, ou seja,

para aqueles que não têm condições de viver dignamente271. E, a partir de seu reconhecimen-

to, também, é possível afirmar que o sistema jurídico brasileiro consagra o dever fundamental

de dar ao Direito privado como um todo, uma função social, a exemplo do Direito Civil.

Passos272 introduz seu trabalho bibliográfico dizendo que, inicialmen-

te, era um crítico no novo Código Civil à exaustão. O autor estudou e reestudou, a fim de bus-

car saídas para suas críticas, em especial, no tocante ao Direito de Empresa. Lembra que se

vive em um país democrático, cujo acréscimo foi enfaticamente acrescentado ao Estado social

no primeiro capítulo, e reconhece que:

O que está por trás do novo Código Civil é uma história linda de alteração legislati-va, de alteração de princípios, agora efetivados, positivados na lei, se positivar é possível. Os princípios passam a estar positivados pelo novo Código e fica até um pouco difícil combatê-lo.

E, para salientar a função social do Direito Civil, neste espaço, desta-

ca-se a continuidade de seus escritos, aos quais unicamente acresceu-se, para em nenhum 270 GAMA; CIDAD, p. 4. 271 COMPARATO, op. cit., p. 64.

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momento esquecer, a dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado democrático

(e social) de Direito:

O Código Civil de 1916, individualista, dá espaço a um novo Código, em que a res-ponsabilidade social, a função social da empresa, a função social da propriedade, a função social do ser humano, vivente em sociedade, foi levada às últimas conse-qüências. É, então, difícil se posicionar contra a adoção de princípios de natureza é-tica.

Reale salienta, por diversas vezes, a função social do Direito Civil273,

ou do Direito, exigindo ela que a exegese das leis e dos contratos não seja feita in abstracto,

mas sim in concreto. Impõe-se captar a realidade factual por inteiro, compreendendo o com-

plexo normativo em vigor, tanto o estabelecido pelo legislador quanto o emergente do encon-

tro da vontade das partes envolvidas.

Para Saldanha274, o que se denomina indivíduo – em sentido mais psi-

cológico do que ético, neste trabalho seria mais apropriado usar o termo pessoa – e o que se

denomina de coletividade, são coisas que possuem diferentes estruturas:

Na estrutura daquilo que se conceitua como indivíduo, ou como individualidade, a-cha-se um conjunto de elementos do viver, que se desenvolvem, quer corporal quer animicamente, a partir de experiências que se ligam ao “mundo circundante”, ou se-ja, a um contexto caracterizado. Tal contexto corresponde, por sua vez, e isso expli-ca e complica, à noção corrente de “sociedade”, ou por outra, à provida de conteúdos peculiares. A coletividade terá, então, de ser entendida como oposto aos indivíduos, mas também, composto por eles, sendo o “social” evidentemente uma condição e um resultado em relação ao núcleo pessoal do viver – este, de resto, não totalmente isolável.

Conforme se disse acima, em torno da solidariedade (fraternidade) ou

da conexão da solidariedade com a função social constrói-se, atualmente, toda a teoria contra-

tual (a função social do Direito Civil)275.

Além da solidariedade, os princípios constitucionais da democracia

(do Estado democrático de Direito) e da liberdade são opções mais seguras para abandonar a

legalidade em sentido estrito, permissiva de arbitrariedades e ditaduras, pois consubstanciam

valores e276

272 Op. cit., p. 70. 273 REALE, in REALE; MARTINS-COSTA, op cit., passim. 274 SALDANHA, op. cit., p. 91. 275 RENTERÍA, Pablo, op. cit., p. 281. 276 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: uma leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. P. 68.

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tomam o lugar das normas jurídicas quando estas se mostram arbitrárias ou injustas, modificando-as para que reflitam o valor sobre o qual se funda, na atualidade, gran-de parte dos ordenamentos jurídicos, isto é, o valor da dignidade da pessoa humana. O Direito Civil, hoje, encontra-se tomado por tal valor, nele se encerrando o foco da renovação de seus principais institutos e conceitos.

Com efeito, a Constituição Federal, no todo pesquisado sobre ela, nes-

te trabalho científico, é o limite para qualquer interpretação na aplicação do Direito, tanto dos

juízes, em todas as instâncias, quanto dos advogados postulantes em juízo. Na seqüência, a-

presentam-se as considerações sobre o princípio da socialidade, positivada no plano privado,

com fundamento nos objetivos, fundamentos e princípios constitucionais.

4.3 O princípio civil da socialidade

O propósito de incluir o sentido de socialidade no Código Civil, como

imperativo de justiça, foi superar formalidades inúteis, tendo em vista a solução dos proble-

mas em razão de seu conteúdo social.277.

No tocante ao princípio da socialidade, o Código guiou-se pela mu-

dança de eixo da cultura existente, da cultura que vingava, eminentemente agrária, com a pri-

mazia do individual sobre o coletivo e278:

a diretriz abraçada buscou, assim, atingir um denominador comum entre o valor do indivíduo e o valor da sociedade, patenteando, assim, a função social como razão de-terminante, preocupando-se, no entanto, em não sacrificar o valor fundante da pes-soa humana.

Sobre a socialidade, tratada mais superficialmente no fim do capítulo

anterior, Mendonça279 também tece severas críticas. Para ele, os membros da comissão reviso-

ra destacam a prevalência dos valores coletivos sobre os individuais, o que seria uma afirma-

ção muito séria, denotando que os autores não puderam chegar ao socialismo pleno e ficaram

nostálgicos a meio caminho, parando na socialidade.

E mais: vai adiante, afirmando que, se o novo Código objetivou garan-

tir o predomínio do social contra o individual, correm-se riscos, porque os próximos passos

seriam as tendências, primeira, a de identificar o social com o Estado e a segunda, de identifi-

car o Estado com detentor do poder, sem pretender, entretanto, negar ou ignorar a dimensão

social do indivíduo.

277 Ibidem, p. 193. 278 FONSECA DE MORAES, Michelle Patrick. Inventário e Partilha no novo Código Civil Brasileiro. In FRANCIULLI NETTO, op. cit., p. 1411.

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Por fim, discorda da afirmação segundo a qual o Código de 1916 era

individualista, aceitando apenas que ele não era explícito quanto à presença do social. E ex-

plicitar o que estava implícito não deixa de ser um ganho que o novo Código fez, mas, em

uma contradição insuportável, confundindo, por vezes, o interesse social com o interesse esta-

tal, esmagando o cidadão.

Já Passos280, ao analisar os princípios do Direito Civil, afirma que a

história da santidade dos contratos está sepultada de vez, seguindo as linhas do Código de

Defesa do Consumidor e que essa história de que assinou tem que cumprir; ou então, de que

lei (norma – regra) é lei, mesmo que seja injusta, que se pode acrescer àquela, muito ouvidas

em épocas mais fecundas de positivismo, não existem mais no Direito brasileiro.

Dessa forma, o princípio da socialidade confere uma “visão social aos

principais personagens do Direito privado: proprietário, contratante ou empresário, pai de

família e testador”281.

Não se trata do predomínio do social sobre o individual, nos termos

expostos por Mendonça, ou de interpretação literal de algumas afirmações isoladas, pois, para

Reale282

Não é sem motivos que reitero esses dois princípios, essencialmente complementa-res, pois o grande risco da tão reclamada socialização do Direito consiste na perda dos valores particulares dos indivíduos e dos grupos; e o risco não menor da concre-tude jurídica reside na abstração e olvido de características transpessoais ou comuns aos atos humanos, sendo indispensável, ao contrário, que o individual ou o concreto se balance e se dinamize com o serial ou o coletivo, numa unidade superior de senti-do ético.

E mais283:

Nós estamos agora numa situação em que podemos já reconhecer que quaisquer que possam ser as mutações futuras elas serão dadas no sentido de uma conciliação da-quilo que cabe ao indivíduo e daquilo que cabe à sociedade. Eu não creio que o civi-lista se deixe levar pela idéia de uma sociedade de massa, porque o Código Civil tem exatamente a função pedagógica de preservar o indivíduo dentro do coletivo.

E, no tocante à questão central deste trabalho, não se pode esquecer,

em momento algum, de que a análise do novo Código Civil que se faz é numa visão sistemá-

tica, que tem como ambiente o Estado constitucional, social e democrático de Direito, ou seja, 279 Op. cit., p. 26-35. 280 Op. cit., p. 71. 281 Ibidem. 282 REALE, 1999, op. cit., p. 59.

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integrada e interagindo com a Constituição Federal. Não se pode analisar o Código Civil iso-

ladamente. Sobre isso, Reale 284, quando falava do princípio constitucional do contraditório no

Direito de Empresa, na eliminação de um sócio prejudicial, assim se manifestou:

Nós asseguramos, por outro lado, o direito de sua defesa, de maneira que o contradi-tório se estabeleça no seio da sociedade e depois possa continuar por vias judiciais. Está se vendo, portanto, a ligação íntima que se procurou estabelecer entre as estru-turas constitucionais de um lado e aquilo que chamamos de legislação infraconstitu-cional, na qual o Código Civil se situa como núcleo fundamental.

Conforme se disse ao mencionar os princípios e cláusulas gerais do

Direito Civil, o princípio da socialidade não pode ser confundido com a geração da massifica-

ção, que geraria o sacrifício da individualidade, como componente essencial de um Código

Civil. Isso representaria, para Reale285, uma tolice tão evidente que sequer mereceria ou com-

portaria discussão. A interpretação do STF286, ao analisar questão de racismo, defende que a

segregação e o extermínio não se justificam e são inconciliáveis com os padrões éticos e mo-

rais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e

se harmoniza o Estado democrático.

Adiante, expor-se-á alguns dos aspectos mais relevantes do papel do

princípio da socialidade sobre os principais institutos clássicos do Direito Civil: os contratos;

família e sucessões; Direito da Empresa; e propriedade e posse.

4.3.1 O princípio da socialidade nos contratos

No século XIX, o contrato era pensado pelos civilistas, debruçados

sobre fontes romanas, em sintonia com o tempo então presente, em forma de expressão perfei-

ta das vontades individuais, como conteúdo. A noção de evolução seria para justificar o suce-

dâneo ou o prosseguimento da lei do progresso, envolvendo o aspecto jurídico e as implica-

ções sociais287.

283 Ibidem, p. 148. 284 Ibidem, p. 178. 285 REALE, in REALE; MARTINS-COSTA, op cit., p. 10. 286 “Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segrega-ção e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evi-denciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolera-bilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País.” (HC 82.424-QO, Rel. p/ o ac. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 17-9-03, DJ de 19-3-04). 287 SALDANHA, op. cit., p. 100.

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A crise do contrato, ou da “soberania” do contrato é denunciada há

quase um século como crise do individualismo e do voluntarismo. Ou mais: crise do paradig-

ma dogmático (do próprio modelo privatístico do pensamento jurídico) ou do crescimento do

Estado e da “publicização” do próprio conceito de Direito288.

A função social do contrato é um instrumento limitador da autonomia

privada, mas não a elimina. Tão-somente, segundo a Jornada STJ 23, “atenua ou reduz o al-

cance desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual

relativo à dignidade da pessoa humana”. Nery Junior289 afirma que a jornada referida disse

pouco, menos do que deveria e que a função social do contrato é muito mais do que isso.

Além de ser útil, o contrato tem que ser também justo. Uma das con-

seqüências da socialidade do contrato é que ele deve ser entendido como verdadeiro instru-

mento “de convívio social e de preservações de interesses da coletividade, onde encontra sua

razão de ser e de onde extrai a sua força”. Não é mais um negócio de interesses apenas para as

partes: passa a interessar a toda a sociedade, onde ele forçosamente repercutirá290.

Atenua ou reduz os efeitos, tão-somente, da autonomia da vontade,

uma vez que a vontade deixa de estar voltada apenas para os fins individuais do titular, com o

advento do Estado social de Direito291, ao qual acresce-se o Estado democrático e constitucio-

nal de Direito, no capítulo primeiro.

Para estarem conformadas com a sua função social, as partes devem

pautar-se pelos valores da solidariedade, da justiça social, da livre-iniciativa, respeitar a dig-

nidade da pessoa humana, entre tantos outros direitos fundamentais e princípios constitucio-

nais. Importa em concretizar o objetivo constitucional da solidariedade social.

Assim, passa a ser consectário da autonomia da vontade, no novo Di-

reito Civil, o princípio da relatividade dos contratos, numa visão aliada à boa-fé, ao equilíbrio

contratual e à função social do contrato, ou seja, não absoluta. Pode, entretanto, ser minorado,

pela oponibilidade do contrato (dos efeitos) a terceiros, pela idéia de cooperação, uma vez que

288 Idem, p. 102. 289 Op. cit, p. 421. 290 Ibidem, p. 427. 291 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; QUEIROZ PEREIRA, Daniel. Função social do contrato. In GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord). Função social no Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2007. P. 72.

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a função social significa trocas justas e úteis, devendo os terceiros colaborarem para manter a

justiça e a utilidade292.

Um exemplo de que o dever de solidariedade e a função social ameni-

zam a relatividade é o da vítima com a seguradora, o terceiro que não tinha contrato com a

seguradora, mas, em acidente com quem tenha, consiga acionar diretamente a seguradora.

Inobstante isso, com uma releitura à luz da função social do contrato,

ele passa a ter a função de “limitar o efeito obrigatório do contrato às partes contratantes, ou

seja, àqueles que através de um acordo de vontades, manifestam-se no sentido de concluir o

contrato”. As partes se obrigam pelo vínculo contratual, que não afeta terceiros alheios a ele,

ou seja, não é possível tomar parte do contrato por efeito da vontade de outra (ou outras) pes-

soa293.

Na ordem de idéias apostas no terceiro e no quarto capítulos é que o

Código Civil disciplina de outra forma o direito de propriedade, com vistas a atender, estar

disciplinado e ser lido conforme o inciso XXIII, do artigo 5º, da Constituição Federal, que

assegura a função social do contrato – a essência qualitativa do direito de propriedade – conti-

da, ainda, no artigo 421294 do Código Civil. O artigo 422295 adota a boa-fé como princípio das

relações contratuais.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) 296, ao interpretar o ar-

tigo 422, com referência a clausulas abusivas em contrato de adesão, defendeu que a liberdade

292 FERREIRA DA SILVA, Luis Renato. A função social do contrato no novo Código Civil e sua conexão com a solidariedade social. In SARLET, Ingo Wolfgang. O novo Código Civil e a Constituição.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. 2ª ed. rev. e atual. P.158. 293 MULHOLLAND, Caitlin. O Princípio da Relatividade dos Efeitos Contratuais. In MORAES, Maria Celi-na Bodin de (coord.), 2006, p. 255. 294 Art. 421: A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. 295 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 296 Dos contratos em geral. Interpretação do art. 424 do CC/2002. Em seus comentários a respeito do trans-crito dispositivo, averba MARIA HELENA DINIZ: "As cláusulas contidas em contrato por adesão, que venham a estipular renúncia antecipada do aderente a direito que advenha da própria natureza do negócio, serão conside-radas nulas, pois a liberdade de contratar deverá ser exercida dentro do princípio da função social do contrato, da probidade e da boa-fé; tais cláusulas, além de serem abusivas ou leoninas (JB, 70:247), geram insegurança con-tratual." (Código Civil Anotado, 9a ed., 2003, São Paulo: Saraiva, p. 324). Não divergindo, salienta JONES FIGUEIREDO ALVES: "O dispositivo resulta do preceito fundamental segundo o qual a liberdade de contratar só pode ser exercida em razão e nos limites da função social do contrato, implicando os princípios definidos pelo art. 422. O ofertante não pode privar o aderente de direito resultante da natureza do negócio ao qual este aderiu. A justiça contratual impõe a efetividade dos negócios jurídicos segundo os princípios da probidade e da boa-fé. Ditas cláusulas opressivas são presentes, notadamente, em contratos de trato sucessivo, complexo e de longa duração, não podendo o aderente resultar desprovido da segurança contratual. O caráter abusivo da cláusula situa-se em face de tratar-se de uma cláusula de exclusão ou de exoneração, frustrante aos interesses do aderente

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de contratar deve ser exercida dentro da função social do contrato, da probidade e da boa-fé,

para obter-se justiça contratual e, assim, reconheceu o caráter público da disposição legal.

Já o artigo 2.035 e parágrafo único297 do Código Civil, além de subor-

dinar os efeitos posteriores dos atos e negócios jurídicos em geral à lei nova, considera que a

função social da propriedade e dos contratos é de ordem pública, a exemplo do Código do

Consumidor. Via de conseqüência, o juiz deve observar a função social do contrato de ofício,

podendo considerá-la retroativamente, claro que motivadamente e com amparo, sempre, tam-

bém, na Lei Maior, como limite maior.

Das sugestões feitas por Reale298, no tocante ao Direito das Obriga-

ções, o autor destaca o tratamento dado ao contrato preliminar (com pessoa a declarar, por

exemplo, artigos 462/466), ao contrato de agência e distribuição (representação comercial na

lei especial), às disposições sobre inadimplemento das obrigações, à modificação do contrato

para evitar sua resolução por onerosidade excessiva e aos contratos de empreitada e de trans-

porte (de pessoas e coisas, antes inominadas).

Para não mais privilegiar o desfazimento do contrato, questão que en-

volve o efeito vinculativo do contrato, o novo Código traz dispositivo para assegurar a manu-

tenção do contrato, com mecanismos que permitem a revisão contratual, quando a comutati-

vidade que a relação estabelecida pelo contrato não se mantiver justa299.

O Código de 2002 trouxe, como fonte de obrigações, o enriquecimen-

to ilícito. Uma vez verificado, ele gera um dever de reparar a parte lesada, para quem obteve a

vantagem ilícita. Tal inclusão, do enriquecimento ilícito (sem causa), traz implícito o cum-

colocado diante da própria motivação ou necessidade da adesão." (NovoCódigo Civil Comentado, coordenação de Ricardo Fiúza, 2002, São Paulo: Saraiva, p. 377). Acórdão: Agravo de Instrumento n. 2004.024131-3, de Itajaí. Relator: Des. Trindade dos Santos. Data da decisão: 21.07.2005. 297 Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabe-lecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos. 298 REALE in REALE; MARTINS-COSTA, op. cit., p. 21. 299 FERREIRA DA SILVA, op. cit., p. 165.

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primento de uma função social, para proteger relações sociais mais justas e solidárias, exigin-

do não haver causa, ou então, uma causa contrária aos valores sociais300.

Atendendo a socialidade e pretendendo dar aos contratos finalidades e

estruturas sociais, vários dispositivos, expressamente, reportam-se à onerosidade excessiva,

ao lado de cláusulas que garantem que a resolução do contrato seja eqüitativa, além da disci-

plina da venda com reserva de domínio que, no Código de Processo Civil, mistura regras de

direito material e processual.

A onerosidade excessiva, ou teoria da imprevisão, está prevista no ar-

tigo 317301, mais restrito, ligado à figura do pagamento e às obrigações a termo ou sob condi-

ção, possibilitando a revisão contratual. Nos artigos 478 a 480302, de forma mais ampla, regula

a resolução por onerosidade excessiva. Em todos os casos, exige-se que haja um acontecimen-

to extraordinário e imprevisível que importe em onerosidade excessiva da prestação e, por

outro lado, que haja uma extrema vantagem para o credor da prestação303.

Ao princípio de que o contrato devia ser cumprido nos exatos termos

avençados pelas partes – pacta sunt servanda –, fruto do liberalismo econômico, social, polí-

tico e jurídico, pouco importava a alteração da situação de fato. Contrapondo-se a esse princí-

pio, surge a teoria da imprevisão – rebuc sic stantibus – como moralizadora e compatível com

o Direito brasileiro. Antes de sua inserção no novo Código Civil, foi o trabalho jurisprudenci-

al, obra criadora, que iniciou o seu reconhecimento e aplicação prática. Passou-se a permitir a

revisão contratual304.

300 Para uma visão mais ampla da questão, consultar: NEVES, José Roberto de Castro. O Enriquecimento sem Causa: Dimensão Atual do Princípio do Direito Civil. In MORAES, Maria Celina Bodin de (coord.), 2006, p.185. 301 Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. 302 Seção IV Da Resolução por Onerosidade Excessiva Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessi-vamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevi-síveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do con-trato. Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva. 303 FERREIRA DA SILVA, op. cit., p. 167. 304 PEREIRA, José Luciano de Castilho. A teoria da imprevisão e os limites sociais do contrato no novo Có-digo Civil – Implicações no Direito do Trabalho. In FRANCIULLI NETTO, op. cit., p. 382.

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A função social do contrato inspira a previsão da teoria da imprevisão

nos artigos 478, 479 e 480 do Código Civil. Com essas alterações, o princípio da conservação

contratual foi revisitado e deve ser aplicado para manutenção e continuidade da execução do

contrato, observadas as cláusulas da eqüidade, do equilíbrio contratual, da boa-fé-objetiva e

da função social do contrato. Não mais no sentido liberal, porque no pacta sunt servanda, os

contratantes teriam que cumprir tudo o que consta no contrato, sem nenhuma ponderação ou

consideração305.

Assim, no século XXI, pacta sunt servanda significa outra coisa, bali-

zado pelos princípios da igualdade, da justiça, da função social, entre outros, como balizas do

Direito privado, sempre à luz da Constituição Federal, sob pena de negar-se a história, do

ponto de vista social, político, econômico e jurídico.

Para Castilho Pereira, nos contratos, a legislação civil, juntamente

com o Código de Defesa do Consumidor, fixa alguns princípios fundamentais:

a) limites sociais do contrato; b) primazia da realidade sobre a forma, devendo, para tanto, ser levado em conside-ração a desigualdade real das partes; c) a necessidade da intervenção do Estado – legislador e juiz – para assegurar a jus-tiça na elaboração e na execução do contrato; e, d) a função social do contrato será apurada, caso a caso, pelo Estado-juiz.

Essas são, em linhas gerais, as principais inovações e o papel que o

princípio da socialidade, fundamentado na solidariedade constitucional, assume e representa

respeitante aos contratos.

4.3.2 O princípio da socialidade em família e sucessões

No novo Código, dividiu-se entre Direito pessoal e patrimonial de

Família. As relações patrimoniais do Direito de Família estão tratadas no Título II, do Livro

IV, do Código Civil e são respeitantes aos regimes de bens entre os cônjuges, ao usufruto e à

administração dos bens de filhos menores, aos alimentos e ao bem de família.

A grande preocupação de Reale306, no Direito de Família, foi a igual-

dade dos cônjuges e dos filhos, havidos do casamento ou não, e por adoção (conforme a CF),

com a redução progressiva do pátrio poder, até sua conversão em poder familiar, sugerida

considerando as novas disposições constitucionais. A “benéfica influência ético-social” se vê,

305 Nery Junior, op. cit., p. 423. 306 Ibidem, p. 22.

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ainda, na administração dos bens comuns pelo casal e no exercício do poder familiar, permi-

tindo que, nos dois casos, havendo divergências, qualquer dos cônjuges/pais possa recorrer ao

Judiciário para solucionar.

No tocante à igualdade dos cônjuges, em decisão na qual claramente é

vislumbrada a influência ético-social ou o princípio da socialidade na aplicação do Direito, o

Ministro Sydnei Sanches, em ação na qual o agravante pretende isentar-se da prestação de

alimentos com fundamento nela, assim manifestou-se:

(..) pretende o recorrente, ora agravante, em substância, é que se reconheça haver o § 5º do art. 226 modificado o Código Civil, na parte em que este trata de alimentos devidos por um cônjuge ao outro. Como acentuou a decisão agravada ‘não procede a alegação de ofensa ao § 5º do art. 226 da CF, segundo o qual, ‘os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mu-lher’. Tal norma constitucional não implicou revogação das do Código Civil, pe-las quais os cônjuges têm o dever de assistência recíproca e aquele que necessi-tar de alimentos pode exigi-los do outro, desde que este os possa prestar’. E as-sim é porque não pode ser reconhecida situação de igualdade entre os cônjuges, se um precisa de alimentos prestados pelo outro, e se este não precisa de ali-mentos, pode prestá-los àquele e lhos recusa. Com efeito, a igualdade de direi-tos pressupõe a igualdade de situações. E, na instância de origem, bem ou mal, com base na prova dos autos, ficou entendido que a ora agravada está em situação de precisão de alimentos e que o ora agravante está em condições de prestá-los307 (gri-fou-se).

A consagração, no âmbito familiar, do princípio da igualdade, da iso-

nomia entre os filhos e a constitucionalização da solidariedade, todos com normatividade,

promoveram a democratização (primeiro constitucional, depois infraconstitucional) daquela

família tradicional até então positivada, mas não mais real no mundo dos fatos.

A normatividade e a democratização, reconhecendo-se a constitucio-

nalização da solidariedade encontra-se presente nas decisões do Supremo Tribunal Federal,

como na decisão adiante:

"É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, com absolu-ta prioridade, o direito à dignidade, ao respeito e à convivência familiar. Daí ser vedada, de forma expressa, a discriminação entre os filhos havidos ou não da relação de casamento, e o reconhecimento de ser direito legítimo da criança saber a verdade sobre sua paternidade, decorrência lógica do direito à filiação (CF, artigos 226, §§ 3º, 4º, 5º e 7º; 227, § 6º)” (grifou-se)308.

A Constituição estabeleceu, já em seu preâmbulo, os valores de uma

sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social. Com referência

307 (RE 218.461-AgR, Rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 4-8-98, DJ de 5-3-99). 308 (RE 248.869, voto do Min. Maurício Corrêa, julgamento em 7-8-03, DJ de 12-3-04).

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à família, no artigo 226309, instituiu um sistema familiar constitucional, como lugar privilegi-

ado para o desenvolvimento pleno da personalidade de seus membros. Reconheceu e amparou

socialmente outras modalidades de núcleos familiares, denominando-os de união estável e a

comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes – família monoparental, além

do próprio casamento religioso. Respeita, assim, a liberdade das pessoas de escolherem o tipo

de vida familiar pretendido310.

Da igualdade decorre, também, agora de forma expressa, que tanto o

marido quanto a mulher, podem adotar o nome um do outro e o prazo para a separação con-

sensual baixou de dois anos para um ano. É oportuno lembrar que tramita projeto de Lei no

Congresso Nacional para eliminar a separação judicial, para que se faça diretamente o divór-

cio, sem a necessidade da etapa de separação judicial.

Corolário da igualdade, em caso de dissolução da sociedade conjugal

será observado o que os cônjuges acordarem sobre a guarda dos filhos e, não havendo acordo,

ela será atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la. A maioridade civil pas-

sou de 21 para 18 anos e a emancipação deve ser feita, necessariamente, pelo pai e pela mãe.

Em separação litigiosa, não havendo acordo sobre a guarda de filho, o

Supremo Tribunal Federal311 entendeu que das paixões condenáveis dos genitores, não pode

decorrer que os filhos sejam tratados como “coisa”, minorando a formação do menor em no-

309 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 6º - O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos. § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o plane-jamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. 310 SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. O Casamento: o Direito de Família, à luz da dignidade humana. In FRANCIULLI NETTO, op. cit., p. 1.112. 311 "As paixões condenáveis dos genitores, decorrentes do término litigioso da sociedade conjugal, não podem envolver os filhos menores, com prejuízo dos valores que lhes são assegurados constitucionalmente. Em idade viabilizadora de razoável compreensão dos conturbados caminhos da vida, assiste-lhes o direito de serem ouvi-dos e de terem as opiniões consideradas quanto à permanência nesta ou naquela localidade, neste ou naquele meio familiar, a fim e, por conseqüência, de permanecerem na companhia deste ou daquele ascendente, uma vez inexistam motivos morais que afastem a razoabilidade da definição. Configura constrangimento ilegal a determi-nação no sentido de, peremptoriamente, como se coisas fossem, voltarem a determinada localidade, objetivando a permanência sob a guarda de um dos pais. O direito a esta não se sobrepõe ao dever que o próprio titular tem de preservar a formação do menor, que a letra do artigo 227 da Constituição Federal tem como alvo prioritário." (HC 69.303, Rel. p/ o ac. Min. Néri da Silveira, julgamento em 30-6-92, DJ de 20-11-92).

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me do direito à guarda e, por isso, reconheceu assistir-lhes o direito de serem ouvidos e de

terem as opiniões consideradas quanto à permanência nesta ou naquela localidade.

O Direito da Família atende, ao mesmo tempo, a laços biológicos e

sociais, considerando os interesses dos filhos – a função social da família, base da sociedade.

Essa forte compreensão social permite ao juiz suspender o poder familiar em abuso de autori-

dade dos pais, ou de um deles, se faltar (em) aos deveres como pais ou arruinar (em) os bens

dos filhos, impondo as medidas necessárias para a segurança do menor312.

Outra novidade foi o reconhecimento da imprescritibilidade da ação

do marido para contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, no artigo 1.601313,

pois não se justifica impor limite de tempo para tanto.

O princípio da socialidade, aliado ao da eticidade, passaram a regular,

de forma muito ampla e com o mesmo espírito, a questão dos alimentos, no Direito da Famí-

lia. Permite que parentes e cônjuges (com ressalvas, adiante) peçam alimentos uns aos outros,

para viver de modo compatível com a condição social e para atender as necessidades da edu-

cação. O critério social para a fixação leva em conta as necessidades do reclamante e os recur-

sos da pessoa obrigada, ou o binômio: capacidade – necessidade314. O dever é recíproco entre

pais e filhos, abrangendo todos os membros da família e transmite-se aos herdeiros.

Assim, o princípio da paternidade responsável se expressa de forma

mais acentuada, acrescido do direito ao planejamento familiar e das obrigações dos pais de

criar, educar, respeitar e auxiliar os filhos, material e espiritualmente.

Na questão da paternidade responsável, cabe lembrar o direito da cri-

ança à paternidade e, por conseqüência, de saber a verdade sobre ela, enquanto decorrência

312 Ibidem, p. 255. 313 Art. 1.601. Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível. 314 Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que neces-sitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação. § 1o Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada. § 2o Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia.

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lógica do direito à filiação. Esse é o entendimento jurisprudencial consubstanciado em Recur-

so Extraordinário julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 07/08/2003315.

E, por outro lado, em decisão em Habeas Corpus, o mesmo Tribunal

rechaçou a possibilidade de condução do suposto pai “debaixo de vara” para a feitura do exa-

me DNA, em nome de garantias constitucionais implícitas e explícitas, como a preservação

da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e

da inexecução específica e direta de obrigação de fazer, remetendo a resolução do caso “para

a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à

prova dos fatos”.316

Entre os cônjuges, o Código faz a ressalva de que somente o inocente

e aquele que não tenha parentes e nem condições para o trabalho poderá pleitear alimentos e

que será fixado pelo juiz o indispensável para a sobrevivência317. Controverso, o caput do

artigo 1.707, que veda ao cônjuge a renúncia ao direito a alimentos, contrariamente a enten-

dimento pacificado na doutrina e jurisprudência, que conferia validade à cláusula de renúncia

de alimentos entre cônjuges. Como em todas as inovações, restam novos desmembramentos

da jurisprudência e dos estudiosos do Direito.

Na partilha em separação de união estável, embora antes da vigência

do Código Civil, o Supremo Tribunal Federal reconhece que a matéria vem tendo o tratamen-

to dispensado pela jurisprudência, na falta de legislação específica e, por isso, considera em

pleno vigor a Sumúla 380, do mesmo STF, com este enunciado: “Comprovada a existência de

315 "Constituição Federal adota a família como base da sociedade a ela conferindo proteção do Estado. Assegurar à criança o direito à dignidade, ao respeito e à convivência familiar pressupõe reconhecer seu legítimo direito de saber a verdade sobre sua paternidade, decorrência lógica do direito à filiação (CF, artigos 226, §§ 3º, 4º, 5º e 7º; 227, § 6º). (...) O direito à intimidade não pode consagrar a irresponsabilidade paterna, de forma a inviabilizar a imposição ao pai biológico dos deveres resultantes de uma conduta volitiva e passível de gerar vínculos familia-res. Essa garantia encontra limite no direito da criança e do Estado em ver reconhecida, se for o caso, a paterni-dade." (RE 248.869, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 7-8-03, DJ de 12-3-04). 316 "Discrepa, a mais não poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas — preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e dire-ta de obrigação de fazer — provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, ‘debaixo de vara’, para coleta do material indis-pensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos." (HC 71.373, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 31-3-98, DJ 22-11-96). 317 Art. 1.704. Se um dos cônjuges separados judicialmente vier a necessitar de alimentos, será o outro obrigado a prestá-los mediante pensão a ser fixada pelo juiz, caso não tenha sido declarado culpado na ação de separação judicial. Parágrafo único. Se o cônjuge declarado culpado vier a necessitar de alimentos, e não tiver parentes em condi-ções de prestá-los, nem aptidão para o trabalho, o outro cônjuge será obrigado a assegurá-los, fixando o juiz o valor indispensável à sobrevivência.

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sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do

patrimônio adquirido pelo esforço comum” 318.

O TJSC319, em questão de alimentos, analisou o problema dos meios

indispensáveis à sobrevivência, junto com artigo 1.694, que refere à condição social do ali-

mentado. Entendeu que, se este, apesar de possuir considerável patrimônio e ser apto ao traba-

lho, entender que os meios de que dispõe não geram a renda necessária para o atendimento de

suas necessidades, a ele compete trabalhar ou, ainda, reaver a forma como tem administrado

os seus bens e controlado as suas despesas e que o dever de assistência não abrange a manu-

tenção do status social.

A Constituição proclamou, com admirável amplitude, o que, na ver-

dade, os elaboradores do Anteprojeto de Código Civil, muito antes dela, já haviam levado em

conta. Mas, de qualquer sorte, todas as alterações provêm da Constituição e procuraram e ela

318 "Não seria, entretanto, possível, desde logo, extrair da regra do art. 226 e seu parágrafo 3º, da Constituição, conseqüência no sentido de reconhecer-se, desde logo, sem disciplina legislativa específica, determinação de comunhão de bens entre homem e mulher, em união estável, de tal forma que a morte de um deles importe o recolhimento automático de meação pelo sobrevivente. Na espécie, a matéria ainda vem tendo o tratamento dis-pensado pela jurisprudência, estando em pleno vigor o que se contém na Súmula 380, com este enunciado: ‘Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum’. Anota, nesse sentido, o professor Roberto Rosas, em seu Direito Sumular, 2ª ed., p. 171: ‘A jurisprudência do STF tem aplicado a Súmula n. 380, para admitir a socieda-de, pela existência do concubinato (RTJ 70/108;69/723; 54/762; 83/424; 79/229; 80/260; 89/181). Em outras circunstâncias há maior restrição para admitir a partilha, somente com o esforço (RTJ 69/467; 66/528; 64/665; 57/352; 49/664)’. E, adiante, observa: ‘A tendência é para admitir a partilha somente do patrimônio obtido pelo esforço comum (RTJ 89/81; 90/1.022)’ (op. cit., p. 171)." (RE 158.700, voto do Min. Néri da Silveira, julgamen-to em 30-10-01, DJ de 22-2-02). 319 Alimentos. O art. 1.694 do CC/2002 não assegura condição social do alimentado, destinando-se a verba ali-mentar tão somente àquele que necessita transitoriamente do indispensável para a sobrevivência. Impende salien-tar que o dever de mútua assistência não abrange a manutenção do status social da alimentada. Primeiro, porque o direito alimentar não se confunde com o sucessório e o previdenciário, sendo mero direito protetivo àquele que necessita transitoriamente do indispensável para a sobrevivência. Segundo, porque o art. 1.694 do atual Código Civil, consoante parcela da doutrina, se mostra totalmente inadequado e fora da realidade. A propósito, conforme alteração do mencionado dispositivo proposta pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família à Câmara Federal, "a expressão 'compatível com sua condição social' deve ser substituída por 'digno'. Mantendo-se a expressão utilizada, poderá ser feita a interpretação de que o credor dos alimentos não poderá diminuir o seu padrão de vida, quando na realidade, a simples divisão matemática dos bens de um casal que se separa muitas vezes não possibilita a mantença do padrão de vida para a pessoa que recebe, e também para a que alcança os alimentos" (Luiz Felipe Brasil Santos, Questões Controvertidas no Novo Código Civil, p. 210 e seg.). Terceiro, se em prin-cípio, o dever de mútua assistência que existe durante a sociedade conjugal decorre da lei, essa proteção não pode ir a ponto de assegurar o padrão de vida de quem postula alimentos. Assim, não pode a agravante, mulher apta ao trabalho e detentora de patrimônio considerável, alegar que está passando por dificuldades financeiras e requerer alimentos ao seu ex-cônjuge, posto que é evidente que dispõe do necessário à sua subsistência. Se a agravante, mesmo assim, entender que os meios de que dispõe não geram a renda necessária para o atendimento de suas necessidades, a ela compete trabalhar ou, ainda, reaver a forma como tem administrado os seus bens e controlado suas despesas. Acórdão: Agravo de Instrumento n. 2005.031952-6, de Timbó. Relator: Des. Monteiro Rocha. Data da decisão: 09.08.2007. Publicação: DJSC Eletrônico n. 296, edição de 24.09.2007, p. 103.

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se ajustar. A família passou por significativa mudança, ao valorizar o elemento afetivo nas

suas relações, numa formação social, buscando a felicidade pessoal.

Com relação ao regime de bens, cabe destacar a alteração que passa a

permitir a mutabilidade do regime de bens, no § 2º do artigo 1.639320, mediante autorização

judicial, porém ressalvados os direitos de terceiros. Para Direito321 venceu-se um tabu na le-

gislação brasileira, mas os profissionais do Direito terão um trabalho de monta para construir

uma jurisprudência que concilie a inovação com a má-fé e o escapismo de situações descon-

fortáveis para os cônjuges.

Também, o reconhecimento legal, seguindo a Constituição, da união-

estável322 como entidade familiar, não mais havendo confusão possível com o concubinato,

sendo este aquela relação constituída à margem da lei, com infração dos direitos e deveres que

cabem aos cônjuges. Nessa parte, mais duas inovações devem ser destacadas: o adultério não

é mais causa de impedimento ao casamento do adúltero com a pessoa com quem praticou o

adultério; e não é mais possível a anulação do casamento pelo fato de a mulher não ser mais

virgem.

Reale323 justifica a diferenciação do tratamento dado na sucessão aos

cônjuges324 e aos companheiros325, em suas relações patrimoniais, entendendo a união estável

em posição inferior, em confronto com o casamento. Os congressistas teriam entendido, com

tais limitações, que, “se os companheiros fossem em tudo equiparados aos cônjuges, não ha-

veria razão para a conversão de sua união em casamento, objetivo final a ser atingido, segun-

do a ótica do legislador constituinte”.

320 Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver. § 2o É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros. 321 DIREITO, Carlos Alberto Menezes. Da União Estável no novo Código Civil. In FRANCIULLI NETTO, op. cit., p. 1278. 322 Não se entrará na discussão acerca das uniões-estáveis serem apenas heterossexuais ou, também, homossexu-ais, matéria também afeta à Constituição Federal, acima referido. Também, críticas e comentários quanto a não-inclusão no CC de matérias outras, como filiação extra-uterina etc, que para Reale, não são matérias dotadas de devida experiência crítica, que exigem lei especial. Lembrar, entretanto, no tocante àquelas, há uma realidade a exigir soluções jurídicas, queiramos ou não, tenhamos ou não nossas convicções religiosas e morais. 323 REALE in REALE; MARTINS-COSTA, op. cit., p. 239. 324 Artigo 1.829, adiante. 325 Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III - se concorrer com outros parentes

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Essa posição verifica-se, também, na jurisprudência do Supremo Tri-

bunal Federal em Mandado de Segurança, quando o Ministro Octavio Galotti afirma que a

Constituição Federal coloca a união estável em plano inferior ao do casamento, tanto que a lei

deve facilitar a sua conversão em casamento.326

Inobstante isso, não é possível concordar com essa opinião, pois o le-

gislador constituinte não teria pretendido e nem permitido ao legislador ordinário impor limi-

tações, diferenciar em posições – inferior e superior – entidades familiares, limitando uma e

privilegiando as demais, ao mesmo tempo em que determinou a igualdade de todas elas.

Malheiros327 entende que o legislador civil foi bastante tímido, como

fora também o constituinte de 1988 e que este trouxe a figura da união estável porque foi in-

tensamente pressionado para isso: era bastante conservador e, por um ato falho ou proposital,

distinguiu família – como grupo de pessoas que têm origem no casamento – de entidade fami-

liar – o homem e a mulher, unidos de forma estável. O autor aponta a timidez legislativa por

tratar e defender a família por afeto, com o argumento de que também existe uma família

formada pelo afeto a gerar efeitos jurídicos e o faz baseado no princípio da solidariedade ou,

na função social, socialidade do Direito Civil.

Lembra a guarda compartilhada328, que juristas conseguiram incluir no

Código Civil, aprovada pela Câmara dos Deputados em 20/05/2008, sancionada como Lei n°

sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. 326 "Legalidade da decisão do Tribunal de Contas da União, que excluiu, do benefício de pensão, a companheira do servidor público falecido no estado de casado, de acordo com o disposto no § 3º do art. 5º da Lei n. 4.069-62. A essa orientação, não se opõe a norma do § 3º do art. 226 da Constituição de 1988, que, além de haver entrado em vigor após o óbito do instituidor, coloca, em plano inferior ao do casamento, a chamada união estável, tanto que deve a lei facilitar a conversão desta naquele." (MS 21.449, Rel. Min. Octavio Gallotti, julgamento em 27-9-95, DJ de 17-11-95). 327 MALHEIROS, Antônio Carlos. In MENCONÇA, Jacy de Souza et. al. Inovações do Novo Código Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2004. P. 156. 328LEI Nº 11.698, DE 13 JUNHO DE 2008. Altera os arts. 1.583 e 1.584 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, para instituir e discipli-nar a guarda compartilhada. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1o Os arts. 1.583 e 1.584 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, passam a vigorar com a seguinte redação: “Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada. § 1o Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5o) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. § 2o A guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores:

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11.698, em 13 de junho de 2008, a exemplo do Código Francês, em seu artigo 127, mas, me-

lhorada, pois, este se parece mais com as visitas, em verdadeiro exercício do poder familiar,

por determinar que se fixe o domicílio onde more a criança.

A lei brasileira, recentemente sancionada, define a guarda comparti-

lhada como aquela compreendida pela responsabilização conjunta e o exercício de direitos e

deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos

filhos comuns. Destaca-se, também, que o projeto dá preferência à aplicação da guarda com-

partilhada sempre que não houver acordo e obriga o juiz a informar ao pai e à mãe, na audiên-

cia de conciliação, o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de

deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusu-

las.

Direito329 afirma que “uma deficiência do Código foi não ter trazido

para o ninho da união estável a parte relativa à sucessão”. Informa que um anteprojeto da

Comissão de Juristas, que o autor integra, está tramitando no Congresso Nacional, com o ob-

jetivo de consolidar a legislação existente sobre a união estável. O anteprojeto, no artigo 8º, I – afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; II – saúde e segurança; III – educação. § 3o A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos. § 4o (VETADO).”(NR) “Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser: I – requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar; II – decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe. § 1o Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas. § 2o Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada. § 3o Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar. § 4o A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda, unilateral ou comparti-lhada, poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor, inclusive quanto ao número de horas de convivência com o filho. § 5o Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda à pes-soa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade.” (NR) Art. 2o Esta Lei entra em vigor após decorridos 60 (sessenta) dias de sua publicação. Brasília, 13 de junho de 2008; 187o da Independência e 120o da República. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto José Antonio Dias Toffoli.

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dispõe que a sucessão será deferida ao companheiro sobrevivente se não houver testamento,

nem ascendentes nem descendentes vivos do de cujus.

No Direito das Sucessões, para Reale330, houve a preocupação com a

justa causa para o testador poder clausular (inalienabilidade e impenhorabilidade) os bens da

herança, suprimindo as exigências descabidas e exageradas em matéria de testamento, como a

de que o testamento particular fosse redigido de próprio punho, lido na presença de cinco tes-

temunhas, ficando na dependência da sobrevivência de três delas.

Reale defende como um avanço, também, a modificação no sentido

de considerar o cônjuge herdeiro necessário, em razão das profundas mudanças no novo Có-

digo Civil no tocante aos regimes de bens no casamento. A qualidade de herdeiro necessário é

excepcionada no regime da comunhão universal, por neste já ser o cônjuge considerado meei-

ro, e no regime da separação obrigatória de bens. Além disso, estabeleceu-se a concorrência

do cônjuge com os ascendentes do falecido, em não havendo descendentes e, em falta de des-

cendentes e ascendentes, lhe é deferida a sucessão por inteiro.

Há que se ressalvar o artigo 1.829 e seu inciso I331 (que excepciona da

sucessão o regime da separação obrigatória de bens), pois ele pode dar a entender equivoca-

damente que o cônjuge seria também herdeiro necessário no regime da separação convencio-

nal de bens. Reale332 não aceita tal interpretação, lembrando Jean Portalis, um dos elaborado-

res do Código de Napoleão que dizia que “em um código os artigos se interpretam uns pelos

outros”333.

Concorda-se com o autor nessa sua opinião, pois, na atualidade, para

permitir a opção dos cônjuges ou, para casos de entidades familiares com filho (s) de relação

anterior, de cada cônjuge, de um deles e/ou filhos comuns, muitas vezes, quando os nubentes

assim o quiserem, tem que haver um regime convencional de bens no qual os integrantes pos-

sam optar pela não-sucessão de um na herança do outro e preservação, via de conseqüência,

da legítima de seus herdeiros particulares.

329 DIREITO, op. cit., p. 1282. 330 REALE in REALE; MARTINS-COSTA, op. cit., p. 241. 331 Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separa-ção obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares. 332 REALE in REALE; MARTINS-COSTA (org.). Op. cit., p. 229. 333 REALE in REALE; MARTINS-COSTA (org.). Op. cit., p. 229.

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Nesse caso, uma justa concreção do Direito exige uma interpretação

situada no contexto sistemático das regras pertinentes à questão que está sendo examinada.

Para tanto, deve-se lembrar que a elevação do cônjuge à categoria de herdeiro necessário se

deu pela inversão no regime legal de bens – passando de comunhão universal a ser o da co-

munhão parcial de bens – com a Lei nº 6.515/77. Isso buscando evitar que o cônjuge nada

herdasse dos bens particulares do autor da herança, no regime da comunhão parcial de bens,

em não possuindo bens particulares o cônjuge sobrevivente.

Entretanto, ao interpretar literalmente o artigo em pauta, estar-se-ia fe-

rindo mortalmente o artigo 1.687334, que garante a livre administração e disposição do patri-

mônio. Ademais, para Reale335, duas são as hipóteses de separação obrigatória de bens: a-

quela contida no artigo 1.687, do Código Civil, da separação convencional, que submete os

nubentes à obrigatoriedade, como conseqüência do pacto antenupcial entre eles celebrado e, a

outra, a da separação legal, aquelas contidas nos três incisos do artigo 1.641336.

Apontada a presença no novo Código Civil do aspecto social do Direi-

to de Família e sucessões, foram expostas algumas questões controvertidas, a serem equacio-

nadas pelos pensadores e profissionais do Direito. Passar-se-á, na seqüência, ao Direito da

Empresa.

4.3.3 O princípio da socialidade no Direito da Empresa337

Além do artigo 170, da Constituição Federal338, o artigo 206339, da Lei

n° 6.404/76 – Lei das Sociedades Anônimas (ou por Ações), recepcionado por aquele, trazem

334 Art. 1.687. Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real. 335 REALE in REALE; MARTINS-COSTA (org.). Op. cit. 336 Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II - da pessoa maior de sessenta anos; III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial. 337 Lembrar que o exercício da atividade empresarial importa no exercício de direitos de propriedade, que inclu-em tanto a propriedade material quanto a imaterial, cujos aspectos não serão aprofundados neste trabalho. Va-lem, quanto a isso, com respeito à função social e ao princípio da socialidade o que será analisado no próximo tópico: O princípio da socialidade na propriedade e na posse. 338 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente;

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a função social do Direito da Empresa. Na Lei, em especial, quando no inciso II, alínea “a”,

quando permite a extinção ou dissolução da companhia, por decisão judicial, quando não ela

não puder cumprir o seu fim, provado tal descumprimento por 5% ou mais do capital social.

No Direito da Empresa, antes Direito Comercial, Reale340 aponta sua

participação na disciplina da sociedade limitada, bem como no sentido da permissão do em-

prego de processos eletrônicos na escrituração empresarial, superando o excessivo formalismo

da legislação anterior.

Ao lado da atividade comercial, foram reconhecidas as atividades in-

dustrial e de serviços. Respeitaram-se as categorias jurídicas do Direito Comercial, mas ajus-

tadas à idéia de empresa. O Código abrange, também, outras formas habituais de atividade

empresária, como a do pequeno empresário, da profissão intelectual, de natureza científica,

literária ou artística, do empresário rural e da sociedade simples.

Reúne, destarte, os três fatores da empresa: a habitualidade, o escopo

de lucro ou resultado econômico e a organização ou estrutura estável da atividade, distinguin-

do entre os conceitos de empresa e estabelecimento e entre estes da figura do empresário ou

sociedade empresária, que representam os titulares da empresa.

VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte. IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995) Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. 339 Art. 206. Dissolve-se a companhia: I - de pleno direito: a) pelo término do prazo de duração; b) nos casos previstos no estatuto; c) por deliberação da assembléia-geral (artigo 136, número VII); c) por deliberação da assembléia-geral (art. 136, X); (Redação dada pela Lei nº 9.457, de 1997) d) pela existência de 1 (um) único acionista, verificada em assembléia-geral ordinária, se o mínimo de 2 (dois) não for reconstituído até à do ano seguinte, ressalvado o disposto no artigo 251; e) pela extinção, na forma da lei, da autorização para funcionar. II - por decisão judicial: a) quando anulada a sua constituição, em ação proposta por qualquer acionista; b) quando provado que não pode preencher o seu fim, em ação proposta por acionistas que representem 5% (cin-co por cento) ou mais do capital social; c) em caso de falência, na forma prevista na respectiva lei; III - por decisão de autoridade administrativa competente, nos casos e na forma previstos em lei especial. 340 REALE in REALE; MARTINS-COSTA (org.). Op. cit., p. 200.

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Assim, o conceito de ato de comércio é substituído pelo de empresa, e

o conceito de fundo de comércio pelo de estabelecimento.

A teoria dos atos de comércio mostrava-se bastante falha, a exemplo

da prestação de serviços, que não permitia consenso acerca da definição de sua natureza, per-

dendo totalmente sua finalidade ou aplicação prática, com a unificação do Direito privado.

Com a vigência do Código Civil, todos os contratos, antes mercantis e civis, passam a ser dis-

ciplinados pelo Direito Civil. Para a definição do objeto do novo Direito Comercial (empresa-

rial) surge a teoria da empresa, que deve ser entendida como uma atividade qualificada pela

presença de três elementos: econômico, profissional e organizacional341.

Na Parte Geral, o artigo 53342 distingue entre sociedade e associação –

fins econômicos e outras finalidades, respectivamente. Distingue, também, entre sociedade

simples e sociedade empresária (artigo 967343), sendo que o conceito desta resulta da defini-

ção dada ao empresário e a denominação Direito de Empresa emprega a parte pelo todo, a

pessoa jurídica que organiza a atividade econômica. A distinção é fundamental para o enten-

dimento do conjunto das disposições.

Para acabar com os “odiosos privilégios”, o Código Civil não mais

subordina a administração das sociedades limitadas (que se distingue por seu amplo espectro,

pois é empregada desde as microempresas até as empresas holding, que capitaneiam podero-

sas redes societárias) a vontades arbitrárias dos sócios majoritários. Procurou-se, segundo

Reale344, um maior equilíbrio, “salvaguardando, no mais das vezes, a livre iniciativa e aten-

dendo às diferenças essenciais entre os múltiplos tipos de sociedade limitada, numa combina-

ção inteligente de normas obrigatórias e facultativas”.

Destarte, nas sociedades limitadas, para se evitar a rigidez na sua es-

truturação, foram previstas novas estruturas sociais: Diretoria, Conselho Fiscal e Assembléia-

Geral, que se aplicam nos casos considerados obrigatórios, mas, prevalecendo o que estiver

livremente disposto no contrato social. Houve opção por uma solução plural, considerando a

341 FURTADO, Lucas Rocha. Estabelecimento Empresarial. In FRANCIULLI NETTO, op. cit., p. 931 342 Art. 53. Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos. 343 Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa. 344 REALE in REALE; MARTINS-COSTA (org.). Op. cit., p. 203.

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multiplicidade das formas societárias, quer sob o modelo da sociedade anônima, quer da soci-

edade simples, permitindo-se aos fundadores optarem pela regência supletiva de uma ou de

outra legislação nos casos omissos.

Nas sociedades com mais de dez cotistas, exige-se administração mais

complexa, bem como o contrato pode instituir conselho fiscal, eleitos pela Assembléia Geral,

e as deliberações devem ser tomadas em assembléia, conforme o contrato social. Por outro

lado, sócios e titulares com mais de um quinto do capital social podem convocar reuniões,

todos conforme os casos definidos no Código, como medidas cautelares destinadas à proteção

da minoria, para poder salvaguardar seus interesses.

Além disso, foi quebrada a clássica dicotomia existente entre o Direito

Comercial e o Civil, incluindo-se, no Código Civil, a primeira parte do Código Comercial,

revogando-a. A quebra da dicotomia foi matéria bastante controvertida, por serem o Direito

Comercial e o Civil vistos como disciplinas diferentes. Quem assim entendia defendia a im-

possibilidade da convivência harmônica, que importaria em prejuízos para o Direito da Em-

presa. Sobre isso, Reale assim se manifestou345:

as normas sobre Direito de Empresa, além de amplas e flexíveis, hão de ser interpre-tadas de acordo com a diversificação da atividade negocial, as condições econômi-cas e os costumes do meio. Os princípios doutrinários dão a forma geral das institui-ções empresariais, porém não as delineiam em modelos rígidos, pois os fatos eco-nômicos têm características distintas na vida dos povos. O Direito positivo, igual-mente, reflete as tendências da cultura, mas lhe é impróprio estabelecer dogmas, pa-ra não ser superado, depressa, pela realidade. No plano econômico, de modo singu-lar, o Direito deve conciliar racionalidade e objetividade, para que as relações inu-meráveis não se desdobrem à margem da lei.

Para Sylvio Marcondes, que elaborou a parte referente ao Direito da

Empresa no anteprojeto, o texto deve ser analisado346:

não somente à luz dos grandes focos, na contemplação de idéias, igualmente gran-des, mas vagas e imprecisas; o que cumpre é meditá-los, na complexidade objetiva com que procura dar segurança jurídica à totalidade dos fenômenos compreendidos na atividade negocial dos cidadãos.

Inobstante isso, são campos diversos de aplicabilidade do Direito.

Sempre que se aplicarem os princípios ao Direito da Empresa, deve-se ter o máximo de cui-

dado, levando em conta as especificidades e peculiaridades desse Direito e lembrando que é

345 Op. cit., 1999, p. 127. 346 In Reale, 1999, p. 127.

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uma atividade de risco, que importa em investimentos de pessoas físicas, transferidas para

uma sociedade, com o objetivo da lucratividade que remunere o investimento347

Quanto à função social pretendida com regras de regulamentação do

mercado e defesa do consumidor, o STF entendeu que não é possível invocar o princípio da

livre iniciativa para afastar aquelas348. Entendeu, também, que o Estado pode, por via legisla-

tiva, regular a política de preços de bens e de serviços, abusivo que é o poder econômico que

visa ao aumento arbitrário dos lucros, para conciliar os princípios constitucionais e auxiliar na

redução das desigualdades sociais.

Encerrando este quarto e último capítulo, serão levantadas as princi-

pais alterações nos institutos da propriedade e da posse, com o princípio da socialidade (ou

solidariedade constitucional).

4.3.4 O princípio da socialidade na propriedade e na posse

Da noção de propriedade (e de posse, como conseqüência), como di-

reito subjetivo por excelência, com prevalência sobre outras situações jurídicas individuais ou

coletivas, passa-se à funcionalização social da propriedade. A função social integra a proprie-

dade, não mais alicerçada na idéia da função social como uma limitação à propriedade. Por-

quanto, não cumprida a função social, o direito de propriedade será esvaziado349.

Na Constituição de 1988, o direito à propriedade é fundamental (inci-

so XXII, do artigo 5º350) e, logo em seguida, determina que a propriedade deve atender a sua

função social (inciso XXIII351). Ou seja, ao mesmo tempo em que assegura um direito indivi-

dual, estabelece uma função social, como cláusulas pétreas, não suscetíveis de alteração ou

347 PASSOS, op. cit., p.73. 348 RE 349.686, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 14-6-05, DJ de 5-8-05. E que: "Em face da atual Consti-tuição, para conciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e de serviços, abusivo que é o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros." (ADI 319-QO, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 3-3-93, DJ de 30-4-93). 349 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; OLIVEIRA, Andrea Leite Ribeiro. Função social da propriedade e da posse. In GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord). Função social no Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2007. P. 39. 350 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à pro-priedade, nos termos seguintes: (...) XXII - é garantido o direito de propriedade; 351 XXIII - a propriedade atenderá a sua função social.

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supressão e em vários outros artigos constitucionais. Além disso, avançou, tendo em conta

interesses difusos, coletivos e sociais, também no âmbito do Direito de propriedade.

Conforme já enunciado em outros momentos, inobstante constar a

função social da propriedade em Constituições anteriores (1934, 1937, 1946, 1967 e Emenda

nº 1, de 1969), mas sem elevar à condição de direito fundamental, a função social era condi-

cionada, ora à edição de lei, ora à idéia de interesse público ou bem-estar social, mas sempre

de conteúdo meramente programático ou sem eficácia normativa.

Ao julgar ação direta de inconstitucionalidade da Lei nº 6.194/74, em

seu artigo 7,º na redação que lhe deu o art. 1º da Lei n. 8.441/92, sobre o aumento das hipóte-

ses de responsabilidade objetiva, em acidentes de trânsito que, ao ampliar, teria transgredido

os princípios constitucionais que vedam a prática de confisco, protegem o direito de proprie-

dade e asseguram o livre exercício da atividade econômica, o Ministro Celso de Mello enten-

deu que: “a Constituição da República, ao fixar as diretrizes que regem a atividade econômica

e que tutelam o direito de propriedade, proclama, como valores fundamentais a serem respei-

tados, a supremacia do interesse público, os ditames da justiça social, a redução das desi-

gualdades sociais, dando especial ênfase, dentro dessa perspectiva, ao princípio da soli-

dariedade” (grifou-se)352, cuja realização parece ter sido implementada pelo Congresso Na-

cional ao editar a segunda lei referida, alterando a primeira.

O direito de propriedade mantém as suas características de ser absolu-

to, exclusivo e perpétuo, mas elas sofrem limitações353. Exemplo disso é o artigo 1.228,

§2º354, que veda ao proprietário a prática de atos que não lhe tragam comodidade ou utilidade,

352 ADI 1.003-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 1º-8-94, DJ de 10-9-99. 353 Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. § 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem. § 3o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente. § 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômi-co relevante. 354 Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

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e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem355. Da mesma forma, o § 1º determina

que o direito de propriedade, além das finalidades econômicas, deve ser exercido em conso-

nância com as suas finalidades sociais.

A respeito das limitações das características do direito de propriedade,

em especial a de ser absoluto, o STF entendeu que sobre ele356:

pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedi-mentos fixados na própria Constituição da República.

As finalidades sociais e econômicas não estão definidas no Código

Civil, por dependerem de fatores históricos e geográficos próprios de cada período histórico e

região. Portanto, elas serão apreciadas em cada caso concreto, com vistas à persecução da

tutela constitucional da função social.

Para Ferreira da Silva357, a Constituição Federal, ao reconhecer a fun-

ção social da propriedade, afirmando que só é assegurado o direito fundamental da proprieda-

de, enquanto ele for exercido e usufruído de acordo com a sua função social. A Lei Maior

também diz que função é essa: na propriedade rural, pelo artigo 186358, a função reside na

produtividade, enquanto que, na propriedade urbana, no § 2º, do artigo 182359, consiste no

atendimento “das exigências fundamentais e ordenação da cidade expressas no plano diretor”.

§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. § 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem. 355 KOJRANSKI, Nelson. Direitos Reais. In FRANCIULLI NETTO, op. cit., p. 998. 356 “O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimen-tos fixados na própria Constituição da República. O acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveita-mento racional e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a preser-vação do meio ambiente constituem elementos de realização da função social da propriedade.” (ADI 2.213-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 4-4-02, DJ de 23-4-04). 357 FERREIRA DA SILVA, op. cit., p. 155. 358 Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. 359 Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.

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O Ministro Celso de Mello, em Ação Direta de Inconstitucionalidade

sobre desapropriação como sanção constitucional oponível ao descumprimento da função

social da propriedade manifestou-se no sentido de que

o acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e a-dequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais dispo-níveis e a preservação do meio ambiente constituem elementos de realização da função social da propriedade (...). a desapropriação, nesse contexto reflete impor-tante instrumento destinado a dar conseqüência aos compromissos assumidos pelo Estado na ordem econômica e social. Incumbe, ao proprietário da terra, o dever jurí-dico-social de cultivá-la e de explorá-la adequadamente, sob pena de incidir nas dis-posições constitucionais e legais que sancionam os senhores de imóveis ociosos, não cultivados e/ou improdutivos, pois só se tem por atendida a função social que condiciona o exercício do direito de propriedade, quando o titular do domínio cumprir a obrigação (1) de favorecer o bem-estar dos que na terra labutam; (2) de manter níveis satisfatórios de produtividade; (3) de assegurar a conservação dos recursos naturais; e (4) de observar as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que possuem o domínio e aqueles que culti-vam a propriedade360 (grifou-se).

Com fundamento nesses argumentos, entendeu pela constitucionalida-

de das Medidas Provisórias atacadas,

pois visam, em última análise, a resguardar a integridade de valores protegidos pela própria Constituição da República. O sistema constitucional não tolera a prática de atos, que, concretizadores de invasões fundiárias, culminam por gerar — considera-da a própria ilicitude dessa conduta — grave situação de insegurança jurídica, de in-tranqüilidade social e de instabilidade da ordem pública.

Quanto à função social da propriedade urbana, em recurso extraordi-

nário, o Ministro Eros Grau manifestou-se no sentido de que a execução da política de desen-

volvimento urbano incumbe ao Poder Público municipal, nos termos do disposto no artigo

182 da Constituição do Brasil. Como instrumento voltado à correção de distorções que o

crescimento urbano desordenado acarreta, à promoção do pleno desenvolvimento das funções

da cidade e “a dar concreção ao princípio da função social da propriedade” (grifou-se)361.

§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitan-tes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. 360 (ADI 2.213-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 4-4-02, DJ de 23-4-04). 361 “Solo criado é o solo artificialmente criado pelo homem (sobre ou sob o solo natural), resultado da construção praticada em volume superior ao permitido nos limites de um coeficiente único de aproveitamento. (...) Não há, na hipótese, obrigação. Não se trata de tributo. Não se trata de imposto. Faculdade atribuível ao proprietário de imóvel, mercê da qual se lhe permite o exercício do direito de construir acima do coeficiente único de aprovei-tamento adotado em determinada área, desde que satisfeita prestação de dar que consubstancia ônus. Onde não há obrigação não pode haver tributo. Distinção entre ônus, dever e obrigação e entre ato devido e ato necessário. (...) Instrumento próprio à política de desenvolvimento urbano, cuja execução incumbe ao Poder Público muni-cipal, nos termos do disposto no artigo 182 da Constituição do Brasil. Instrumento voltado à correção de distor-ções que o crescimento urbano desordenado acarreta, à promoção do pleno desenvolvimento das funções da

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Em outra jurisprudência, o STF firmou o entendimento de que a única

hipótese na qual a Constituição admite a progressividade das alíquotas do IPTU é a do art.

182, § 4º, II, destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana362.

É importante não confundir a função social da propriedade, conforme

até aqui asseverado, com socializar a propriedade, mas vinculado a objetivos de justiça social,

orientando a interpretação e a aplicação de todo o ordenamento jurídico, cuja preocupção é

verificável nas ponderações dos Relatores nas decisões parcial ou totalmente transcritas.

No Direito de Propriedade, uma contribuição de Reale363, segundo o

próprio autor, com base na função social da propriedade, foi a compreensão da posse – apa-

rência de propriedade – sob o ponto de vista social, superando a visão romanista da posse co-

mo mera detenção da coisa. São dois institutos indissoluvelmente ligados ou associados.

Vale considerar, para a tutela da posse, que a propriedade, historica-

mente, decorreu e é posterior à posse e, atualmente, para existir a posse, tem que haver pro-

priedade. Aliás, a posse (jurídica) é essencial para que a propriedade cumpra sua função soci-

al. Então, o descumprimento desse dever social pelo proprietário pode significar uma lesão a

direitos outros, como os de trabalho e moradia, além da própria propriedade.

Para tanto, novas hipóteses de perda e aquisição da propriedade foram

previstas, com reduções consideráveis nos prazos de usucapião no caso de posse-trabalho364.

Nessa linha de raciocínio, os §§ 4º e 5§ do artigo 1.228 do Código Civil que, considerando o

interesse social e econômico, em áreas grandes, com benfeitorias, estabelecidos nela (s) gran-

de número de possuidores de boa-fé, por mais de cinco (5) anos, permitem a devida indeniza-

ção aos autores, mas sem a retomada da área pleiteada, em ação reivindicatória.

Em razão das alterações socioeconômicas, pelas quais passou a socie-

dade, que não descartaram ou esgarçaram a relevância da posse nas relações jurídicas no de-

correr do tempo, embora possa haver críticas, são plenamente justificáveis as inovações no

regramento da posse, consideradas globalmente365.

cidade e a dar concreção ao princípio da função social da propriedade (...).” (RE 387.047, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 6-3-08, DJE de 2-5-08). 362 (AI 456.513-ED, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 28-10-03, DJ de 14-11-03). 363 Ibidem, p. 21. 364 É a posse que figura no Estatuto da Terra como posse pro labore. 365 ARMELIN, Donaldo. A tutela da posse no novo Código Civil. In FRANCIULLI NETTO, op. cit., p. 951.

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Considerações Finais

Com referência ao primeiro capítulo, inicia-se considerando, conforme

nele delimitado, que o Estado democrático e constitucional de Direito traz um acréscimo às

formas anteriores de Estado de Direito, traduzido pela tendência de transformar a ordem insti-

tuída, em vez do conservadorismo (manter as coisas como estão), ainda imperante. Isso im-

porta em não afastar o Estado de Direito em sua fase anterior, a social, mas, apenas, para evi-

tar excessos e arbitrariedades, acrescentar-se-lhe o princípio democrático e a Constituição

Federal.

Em relação à evolução do Estado de Direito, pode-se afirmar que o

Estado social distingue-se do Estado democrático, a partir do exposto no desenvolvimento do

trabalho, pela tendência de transformar a ordem instituída. Nessa passagem necessária, exige-

se a participação da sociedade, ao contrário de um Estado paternalista, do primeiro. Nasce,

com isso, o caráter democrático do Estado de Direito.

E mais: o Estado democrático de Direito (princípio democrático) in-

troduz um propósito solidário – justificando a opção pelo princípio da socialidade – para solu-

cionar os problemas da vida individual e coletiva, superando as desigualdades sociais e regio-

nais, com um regime democrático, que realize a justiça social, conforme modelada e determi-

nada pela Constituição Federal.

Assim, o Estado constitucional, social e democrático de Direito é fi-

xado como o local, o ambiente no qual se insere toda a continuidade da pesquisa, em seus

capítulos subseqüentes.

No mesmo capítulo, para o cumprimento do problema e objetivos fi-

xados na introdução do estudo, fez-se uma fundamentação ética desse Estado de Direito, mais

especificamente centrada na desigualdade latente que existe de forma natural na sociedade

atual. Para entender possível o equacionamento de tais igualdades rompidas, através das re-

gras dos direitos humanos, fundamentados na teoria do discurso – que se dá entre seres livres,

como conseqüências de um processo de argumentação racional –, reconhecendo-se sua natu-

reza moral, em relação de complementaridade com as regras jurídicas, como fundamentação

ética da ordem jurídica do Estado democrático e social de Direito.

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Os direitos fundamentais da Constituição Federal constituem uma par-

te dos direitos humanos e constituem a base, o núcleo de todo e qualquer ordenamento jurídi-

co. E, nessa linha de raciocínio, a Constituição Federal é a espinha dorsal da categoria moral,

representada pelos direitos humanos.

Concordou-se com a afirmação de que não há um paradigma emergen-

te definido para apresentar como solução paradigmática que supere os paradigmas da moder-

nidade, ainda dominantes, porém decadentes. Para legitimar as práticas sociais e não excluir

novos conhecimentos, a igualdade no acesso ao discurso argumentativo e a expansão da de-

mocraticidade interna das comunidades, sem sombra de dúvidas, o princípio da democratici-

dade interna da comunidade interpretativa e o valor da dignidade humana (em cada sua forma

dependendo do tipo de conhecimento) são capazes de validar tais propósitos.

O valor da dignidade humana, aliás, um dos únicos consensos possí-

veis na pós-modernidade – a fase de profunda transição paradigmática – é o melhor legado da

humanidade e deve ser temperado na realidade contextual, como núcleo de sentido hermenêu-

tico para a interpretação de todo o ordenamento jurídico e como princípio de todos os princí-

pios constitucionais e infraconstitucionais.

Outra deficiência positivista foi a pretensão de imutabilidade temporal

e espacial de um Direito puro, que abstraía quaisquer juízos de valor, com caráter axiológico.

Tal questão é superada no capítulo segundo, com a normatividade dos princípios.

O caráter permanente dos princípios, a captação da mudança da reali-

dade e a abertura a concepções cambiantes da ‘verdade’ e da ‘justiça’asseguram a mutabilida-

de do Direito e a possibilidade de resolução de todos os casos, afastando as idéias de lacunas

do Direito ou vazios legais. Assim, a mobilidade do Direito é resolvida com os princípios

constitucionais que, além do papel que possuem na concretização do Direito, permitem a atua-

lização da própria Constituição e esta, como informadora de toda a legislação infraconstitu-

cional, tem o papel de atualização de todo o ordenamento jurídico.

Lembra-se, contudo, que os princípios sempre estiveram presentes nas

Constituições, no decurso histórico. Contemporaneamente, face à necessidade de superarem-

se, em definitivo, todas as concepções positivistas e os efeitos práticos delas decorrentes, na

verdade, o que se altera, é a visão que dos princípios se tem ou o papel que efetivamente a

eles pertence no ordenamento jurídico. Em outras palavras, de princípios meramente progra-

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máticos, da natureza de simples direção política ou de possuírem apenas valor declaratório,

eles passam a normas-princípios.

Para tanto, é preciso lembrar, acrescentar e considerar a tutela efetiva

e normativa, também, dos direitos fundamentais, na interpretação do ordenamento jurídico

como um todo, bem como a eficácia horizontal dos direitos fundamentais já assentada. Da

mesma maneira, a revolução copernicana que a Constituição de 1988 representa, a impor-se

sobre todo o ordenamento jurídico infraconstitucional.

Dessa forma, é possível assegurar, pela prestação jurisdicional, os ide-

ais ou as exigências de justiça social, de eqüidade, de redução das desigualdades, de promo-

ção da dignidade da pessoa humana , entre outras, aproximando-se de um Estado social – pelo

qual não passaram países periféricos como o Brasil – ao lado do Estado democrático procla-

mado pela Constituição Federal.

Destaca-se dos princípios, por fim, que eles se irradiam sobre todo o

sistema normativo, com função de orientar toda a aplicação do Direito, em posição indiscutí-

vel de superioridade, num sistema jurídico aberto de regras e princípios.

Na distinção entre texto e norma, aceitou-se, pela compreensão, a a-

firmação de que o texto como texto é inacessível, pois ele já aparece na sua norma ou não há

texto isolado da norma. Interpretar é aplicar, e não se interpreta/aplica em partes ou tiras. As-

sim, texto e norma são e têm significações diferentes, mas não existem separadamente. E, por

isso, preferiu-se usar o termo concretização, quando se referia aos seus dois aspectos: inter-

pretação e aplicação.

Por outro lado, na distinção entre regras e princípios, fixou-se que

ambos são normas, que coexistem e têm eficácia em um mesmo sistema normativo. A norma

é o gênero e as regras e os princípios são suas espécies. Além disso, os princípios são as nor-

mas que expressam a mais alta normatividade do sistema.

Na função das duas espécies de normas no ordenamento, os princípios

têm função explicadora e justificadora em relação às regras, ou, como se disse no desenvol-

vimento do trabalho, aqueles são normas de interpretação destas, conferindo unidade e orde-

nação ao ordenamento jurídico.

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Os princípios são mais abstratos que as regras na estrutura lingüística.

Não descrevem as condições necessárias para sua concretização (ou aplicação prática), apli-

cando-se a um número indeterminado de situações. Com as regras, as hipóteses de aplicação

são mais facilmente identificadas, com maior ou menor trabalho. Os princípios exigem uma

atividade argumentativa muito maior, para precisar seu sentido e inferir a solução que eles

propõem para o caso. As regras demandam apenas aplicabilidade.

As regras aplicam-se no modelo do tudo-ou-nada: ou são válidas juri-

dicamente ou não o são. Já os princípios determinam que algo seja realizado na maior medida

possível, permitindo uma aplicação mais ou menos ampla, de acordo com as possibilidades

físicas e jurídicas existentes.

Quanto à relação entre os princípios gerais de Direito e os princípios

constitucionalizados, concordou-se que aqueles caminharam para a constitucionalização, fa-

zendo-se a chave de todo o sistema normativo, mas, não havendo uma unificação (uns ocupar

o papel dos outros) daqueles em torno destes, entretanto. Assim, têm-se os princípios implici-

tamente e os explicitamente contidos na Constituição Federal. Os implícitos, em estado de

latência, não são resgatados fora do ordenamento jurídico, mas descobertos/deduzidos den-

tro/a partir dele.

Destarte, os princípios constitucionais – implícitos e explícitos – são

as normas supremas do ordenamento (normas das normas) e, via de conseqüência, avaliam,

por excelência, todos os conteúdos normativos de uma determinada sociedade ou, em outras

palavras, constituem a base de todas as normas jurídicas.

Da relação entre princípios gerais de Direito e princípios constitucio-

nalizados, a concepção de que os princípios implícitos são descobertos dentro dele, desata o

nó dos chamados princípios supralegais, afastando, também, qualquer transcendência, pro-

blemas afetos ao positivismo jurídico e à metafísica.

A partir das considerações efetuadas, o papel hermenêutico dos prin-

cípios está claramente delimitado. Na concretização do Direito esclarece-se o princípio. Uma

Constituição principiológica representa uma Constituição como lei, dotada de efetividade e

aplicabilidade ou eficácia jurídica, dando uma tradução prática do princípio da constituciona-

lidade. Como lei, a lei fundamental carece de interpretação, de concretização, para atuar dire-

tamente nas situações da vida. Conforme já se disse, a jurisdição constitucional passa a ser a

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condição de possibilidade do Estado democrático de Direito, com força para resgatar o Estado

social, atropelado historicamente.

Os princípios penetraram o nível do jurídico, permitindo um clima de

promover a atualização da própria Constituição, conforme acima defendido, além de permiti-

rem um clima de concretização do Direito e a sonhada eficácia constitucional.

Esse é o papel dos princípios constitucionais na solução do problema e

objetivos deste trabalho bibliográfico, demonstrando a inequívoca importância deles, ao lado

dos direitos humanos, no neo-constitucionalismo, para a superação definitiva e necessária do

positivismo, em todas as suas roupagens.

Já os princípios do novo Código Civil – socialidade, eticidade e ope-

rabilidade – e a técnica legislativa que permitiu a abertura do sistema, embora tratados com

muita brevidade, são frutos do maior intervencionismo estatal nas relações privadas, num pro-

cesso de reconstrução do Direito Civil. Os direitos da personalidade e os direitos fundamen-

tais passam a ser vistos sob nova ótica, sob o ponto de vista da função social do Direito.

As cláusulas gerais constituem fórmulas ordenadoras, com a introdu-

ção de conceitos flexíveis, modificando o papel representado pelos juízes e permitindo sua

intervenção nas relações de direito privado. A tessitura aberta permite o preenchimento valo-

rativo na apreciação de situações concretas e autoriza o uso de idéias morais, como as da boa-

fé, da eqüidade, entre inúmeros outros. E, ainda, demanda construção pelo intérprete do Direi-

to, captando sempre os valores vigentes na sociedade.

Cabe enfatizar, ainda, que os princípios do Código Civil e as cláusulas

gerais fazem uma ponte entre o público e o privado, entre este Direito e a Constituição Fede-

ral, cujo modelo de relacionamento refletirá na eficácia dos direitos fundamentais. Ensejam a

compreensão de uma nova metodologia, da compreensão do fenômeno jurídico como um to-

do, unitário.

Destarte, os princípios privados servem de mecanismo para imple-

mentar-se uma ordem jurídica renovada, de uma ordem jurídica justa, adequados, assim como

os princípios constitucionais, para a flexibilidade e as quebras, num sistema que contempla a

discordância. As cláusulas gerais são fontes criadoras de direitos, de ordem pública, para dar

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aos institutos privados a função social que a Constituição determina, ao lado do princípio de-

mocrático.

No terceiro capítulo estudou-se, num primeiro momento, o processo

de constitucionalização do Direito Civil.

A edição e a vigência do novo Código Civil Brasileiro contribuíram

para uma grande abertura para a hermenêutica da legislação civil e geral, processo conhecido,

também, como a constitucionalização do Direito Civil. Significa que esse processo todo deve

ser, também, analisado sempre à luz dos princípios e diretivas constitucionais, principalmente

os princípios da justiça social e da dignidade da pessoa humana, no contexto do Estado demo-

crático (e social) de Direito.

Inobstante isso, há que se ressaltar que foi a Constituição Federal que

inaugurou essa era e, vista no contexto do Estado democrático e social de Direito, por si só,

supriria todo esse trabalho hermenêutico, inclusive a própria edição do Código Civil. Para

tanto, há que se entender a Lei Maior como não somente programática, mas também normati-

va e com eficácia plena, conforme ela mesma determina em seus primeiros artigos. Sem ela,

estar-se-ia, isto sim, defendendo o status quo ante, do qual ainda se engatinha para sair.

Contudo, o novo Direito Civil, com seu cunho principiológico e axio-

lógico aproxima-se da Carta Maior, uma vez que enuncia direitos pessoais, cuja projeção na-

tural são as obrigações e os contratos. Organiza a parte privada do ordenamento jurídico, fir-

mando princípios ético-sociais, em consonância com as diretivas constitucionais. E, como se

disse, retira a condição de pureza da norma jurídica, permitindo a interdisciplinaridade e a-

proximando o Direito das disciplinas afins, como a Filosofia, a Sociologia e a Teoria Geral do

Estado.

Apesar das críticas apontadas, houve uma atualização frente ao Códi-

go revogado, tanto se dando um sentido técnico mais unívoco quanto precisando a distinção

de institutos jurídicos, tais como a prescrição e a decadência e a validade e a eficácia. Em es-

pecial, latente a preocupação em deixá-lo em maior consonância com a Constituição Federal.

Persistem falhas técnicas, mas nada que seja capaz de destruir a gran-

de conquista e, tampouco, a aproximação do novo Código Civil com a Constituição Federal –

localizada hierarquicamente no nível mais superior do ordenamento jurídico nacional, vendo

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o Direito num conjunto sistemático e unitário – e a realidade social brasileira. A caminhada de

construção doutrinária e jurisprudencial jamais estará pronta: um longo caminho resta a tri-

lhar, aliás, interminável, por constante.

A crise do Estado Social exigiu o adendo dado pelo princípio demo-

crático e a constatação da necessidade do deslocamento do Código Civil do centro das rela-

ções de direito privado. Reconhecer esse desapego importa na consciência da unidade do sis-

tema e no respeito à hierarquia das fontes normativas, com a Constituição (dotada de efetivi-

dade e aplicabilidade) em seu topo, por todos os profissionais do Direito, participantes de sua

concretização. A Carta Política consolida essa unidade do sistema, com os valores a serem

realizados, como base axiológica. Trata-se da estudada constitucionalização do Direito Civil.

Essa visão é imprescindível para manter o Direito em consonância

com a realidade sócio-econômica sempre do momento atual, em permanente construção e

evolução e transformar, realizar o Direito, com especial atenção à problemática social, à reali-

dade, associada à exclusão social. Os marginalizados sociais se formam e as diferenças levam

à opressão. Opressão significa dominação, que não se coaduna com o Estado e os direitos

sociais que se pregam.

Além da mudança paradigmática da leitura civil-constitucional, muitas

outras devem ser apontadas. Destacaram-se três mudanças, necessárias para o assentamento

de uma nova sociedade, como desafio da pós-modernidade e que se inserem diretamente na

temática pesquisada.

A tutela da autonomia da vontade deve ser relativizada com a acentua-

ção da proteção da dignidade da pessoa humana, centro gravitacional do Estado democrático,

social e constitucional de Direito. Da mesma forma, a segurança jurídica deve, com o aban-

dono da ética do individualismo, promover a sua transformação com uma opção pela ética da

solidariedade, desenvolvendo-se os direitos de terceira geração.

Ambos devem ser entendidos, então, insertos em outro Direito Civil,

não decadente, prevalente ou inferior, mas um Direito Civil constitucionalizado, de um orde-

namento jurídico unitário, com um repositório de valores a serem alcançados, assim como o

valor de justiça, comprometida com o seu tempo e espaço. Importa em uma releitura dos esta-

tutos fundamentais do Direito privado.

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A propriedade privada e a autonomia da vontade devem comunicar-se

com a realidade e outras áreas de conhecimento, deixando de ser o epicentro das relações ju-

rídicas privadas, para serem compreendidas no âmbito do Estado constitucional, social e de-

mocrático de Direito, sempre com respeito aos direitos e garantias fundamentais, aos princí-

pios constitucionais e, em especial, à dignidade da pessoa humana e à promoção do ser huma-

no. Essas mutações passam pelo sujeito. A pessoa humana deve ser (re) construída como um

sujeito em concreto, com cidadania, em cada caso concreto, em sua singularidade, situado

concretamente no complexo de suas circunstâncias éticas e socioeconômicas.

Em todos eles, suas estruturas conceituais precisam ser lidas junta-

mente com o projeto, as demandas e as normas constitucionais, como partes de um sistema

social e de uma organização política e econômica. Trata-se do paradigma do Estado democrá-

tico (e social) e constitucional de Direito, defendido com muita ênfase e entusiasmo em todo

este trabalho de pesquisa. Sustenta-se a reconstrução e repersonalização do indivíduo como

ser coletivo, na perspectiva da igualdade substancial, no centro dos interesses, rompendo-se

com a distinção sujeito/objeto.

Quanto ao terceiro paradigma, da eficácia dos direitos fundamentais e,

por conseqüência, dos princípios constitucionais, firmou-se a teoria da eficácia direta e imedi-

ata dos direitos individuais, com aplicabilidade plena nas relações interpessoais: uma atuação

legislativa ao lado de uma atuação jurisdicional. Aliás, essa posição está claramente presente

no projeto constitucional ou no Estado democrático, social e constitucional de Direito.

Para alcançar os objetivos visados, ainda no terceiro capítulo, teve-se

o propósito de aprofundar o tema levantado por autores que defendem uma nova roupagem

para a supremacia do público sobre o particular, ou vice-versa, por divisar uma absoluta ina-

dequação entre o predomínio de um sobre o outro e a eficácia da ordem jurídica brasileira.

Destarte, foi estabelecida a quebra da dicotomia entre Direito público

e Direito privado. Caracteriza a sociedade contemporânea e pós-moderna a interpenetração e a

imbricação do público e do privado. Não seria, sequer, necessário adjetivar o Direito Civil ou

a análise civil, constitucionalizando-os, pois a distinção deve ser vista como quantitativa, sem

qualquer inferência na qualidade de cada qual.

Com o advento da vida urbana, em substituição à vida rural e agrária,

o Direito público não mais se inspira na subordinação dirigida ao Estado para assegurar a li-

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berdade individual, mas sim, é substancial e reciprocamente complementar ao Direito Civil.

Restam os naturais desenvolvimentos da doutrina e da jurisprudência.

Não é possível outra conclusão, depois de reconhecer-se a incidência

dos direitos fundamentais e princípios constitucionais no campo das relações privadas, para

equacionar situações da vida de sujeitos concretos e a dignidade da pessoa humana como o

valor fonte de todos os valores.

Dos critérios diferenciadores, o mais apropriado é o da natureza das

relações jurídicas, que acrescente ao fator subjetivo, do sujeito, um valor objetivo, sendo pú-

blico o Direito que regula as relações dos Estados entre si e com os seus administrados e, par-

ticular, aquele que regula as relações entre pessoas singulares.

Atualmente, as normas públicas e privadas se comunicam, se interpe-

netram e confluem, sendo impossível fixar uma linha divisória precisa. Mesmo que existam

normas puras de cada qual, há uma zona de interferência recíproca entre elas. A distinção é

quantitativa e não qualitativa e, interessante, para fins didáticos.

Encerrando o terceiro capítulo, estabeleceu-se que existem restrições

aos direitos fundamentais, autorizados diretamente na própria Constituição, restrições abona-

das por ela, quando autoriza a edição de legislação restritiva e podem decorrer de restrições

não expressamente referidas no texto constitucional, em casos de colisão de direitos ou prin-

cípios no caso concreto, assim como a existência de direitos privados que não constituem di-

reitos fundamentais e o sentido geral de equilíbrio.

Trata-se de equilíbrio não na visão clássica e dicotômica ou moderna e

liberal, mas pela complementaridade entre a vida pública e a vida privada. Toda forma de vida

é um processo de equilíbrio, sob pena de perder-se a substância da parte da dimensão privada

do existir de cada pessoa, individualmente, sempre localizada em um todo, em um contexto

social. Deve haver um equilíbrio de encontro e de complementaridade, respeitando-se ambos

os espaços de cada qual, o público e o privado, do homem situado, contextualizado.

No quarto capítulo foram apresentadas as principais inovações no no-

vo Código Civil. No apontar as inovações, foram incluídos alguns conceitos básicos e consi-

derações pessoais, como forma de complementar as informações e dar uma unidade ao traba-

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lho de pesquisa, bem como algumas decisões jurisprudências, como forma de demonstrar a

possibilidade prática de eficácia constitucional, ao lado do Direito Civil.

Se os princípios civis são a ponte que liga o Direito Civil à Constitui-

ção Federal, o princípio da socialidade é decorrente e encontra fundamento na solidariedade

constitucional (ou fraternidade). Assim, andam juntos nesse projeto solidarista, de alcançar e

tornar eficaz o terceiro elemento da tríade democrática da Revolução Francesa, assentados de

forma ética na idéia de justiça distributiva, assimilando-se o conceito de humanidade.

É de se ressaltar, quanto ao risco da socialização – uma das mais for-

tes críticas à socialidade –, que a socialidade que se defende é no sentido de balançar e har-

monizar o individual e concreto com o serial e coletivo, numa unidade superior ética. Ou, na

solidariedade concreta, nos laços de ajuda mútua que ligam os indivíduos uns aos outros, na

necessária convivência e coexistência social, possibilitando a vida individual e a vida coletiva,

mantendo os laços entre as pessoas, relacionando-se e separando-se umas das outras.

Desse sentido de socialidade, fundada na solidariedade constitucional,

decorre a função social de todo o Direito Civil, em conexão e ligação íntima, construindo-se

uma nova teoria de Direito Civil. O princípio da solidariedade, princípio geral da Constituição

– é a essência de todo o sistema de direitos humanos.

Assentou-se a presença da socialidade no novo Código Civil, confe-

rindo uma visão social aos principais personagens e institutos civis, numa visão sistemática no

ambiente do Estado democrático e constitucional de Direito. Dessa forma, foi apontada essa

presença nos contratos, na família e sucessões, na empresa e na propriedade e posse.

No contrato, a função social limita a autonomia da vontade, transfor-

mando a vontade não mais voltada somente para os fins individuais do titular. A sua função é

ser útil e justa: passa a ser um negócio de interesses de toda a sociedade, não mais somente

para as partes. Estas devem pautar-se pelos valores da solidariedade, da justiça social, da li-

vre-iniciativa, respeitando a dignidade da pessoa humana.

O princípio da relatividade dos contratos, também, apresenta-se para

permitir a função social do contrato. Passa a ser consectário da autonomia da vontade, aliada à

boa-fé e ao equilíbrio contratual, que pode ser minorado pela idéia de cooperação, quando

terceiros, para que as trocas sejam justas e úteis, devem colaborar para manter a justiça e a

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utilidade. A função social dos contratos e da propriedade passam a ser de ordem pública, per-

mitindo atuação de ofício do juiz e que ela seja considerada retroativa.

Estão presentes, também, como fontes de obrigações, o enriquecimen-

to ilícito, sem causa e a onerosidade excessiva, para garantir a resolução ou revisão do contra-

to equitativa e atender à sua socialidade. Ao princípio do pacta sunt servanda – ser cumprido

nos exatos termos avençados – contrapôs-se o princípio da teoria da imprevisão, rebuc sic

stantibus, para moralizar e tornar a visão dos contratos compatível com o Direito brasileiro

que se defende.

Assim, a legislação civil fixa os limites sociais do contrato, conside-

rando a desigualdade real das partes e a necessidade de intervenção do Estado – Poderes Le-

gislativo e Judiciário – para auxiliar na execução dos contratos, permitindo a apuração casuís-

tica da função social dos contratos.

No Direito de Família, a igualdade foi recepcionada entre os cônjuges

e os filhos, com ressalva à distinção entre família e entidade familiar, com a qual não se con-

corda, por promover diferenciações, em especial, no plano sucessório. Mas, dessa forma, de-

mocratizou-se, seguindo a Constituição, o Direito de Família, também, reconhecendo-se a

união estável e a família monoparental.

As alterações provêm e se ajustaram à Constituição Federal. O ele-

mento afetivo foi valorizado nas relações familiares. O cônjuge passou a ser herdeiro na su-

cessão e várias outras previsões recepcionam a função social, ou socialidade, do Direito de

Família e Sucessões, como o princípio da paternidade responsável, a questão dos alimentos, a

guarda compartilhada, o exercício do poder familiar, entre outros.

No Direito da Empresa, cuja função social encontra-se na Lei das So-

ciedades por Ações e na Constituição Federal, houve a transposição da teoria dos atos de co-

mércio para a teoria da Empresa – uma atividade qualificada por três elementos: econômico,

profissional e organizacional – com a recepção de atividades empresárias outras, antes atípi-

cas, a exemplo da industrial e da de serviços.

Buscou-se um maior equilíbrio, visando a acabar com privilégios, nas

sociedades limitadas, pelo seu amplo espectro, salvaguardando, também, a livre iniciativa,

atendendo às diferenças essenciais entre os múltiplos tipos de sociedades limitadas, com nor-

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mas obrigatórias e facultativas. Foram previstas novas estruturas sociais, quebrando-se a rigi-

dez, com Diretoria, Conselho Fiscal e Assembléia Geral.

Quebrou-se a clássica dicotomia Civil x Comercial, de forma flexível,

exigindo-se o máximo cuidado ao trabalhar com ambos, atendendo às peculiaridades e especi-

ficidades do Direito Comercial, como atividade de risco, que importa em investimentos com o

objetivo de lucratividade.

Já no direito subjetivo, por excelência, a propriedade (e a posse, por

conseqüência) passou à funcionalização social, alicerçada na função social como limitação da

propriedade. Direito fundamental que deve atender a sua função social, considerando elemen-

tos difusos, coletivos e sociais.

As finalidades sociais deverão ser apreciadas em cada caso concreto,

para alcançar a previsão civil e constitucional da função social e essa função está prevista na

Constituição Federal, sendo que a da propriedade rural reside na sua produtividade e a urbana

consiste no atendimento das exigências fundamentais e ordenação da cidade consoante plano

diretor. Não significa socializar a propriedade, conforme já se ponderou sobre a função social

como um todo, mas vincular o direito de propriedade a objetivos de justiça social, para orien-

tar a concretização do ordenamento jurídico.

Da mesma forma, com base na função social da propriedade, deve-se

compreender a posse que, aliás, é essencial para que a propriedade cumpra a sua função soci-

al. A finalidade principal é não descartar ou esgarçar a relevância da posse nas relações soci-

ais, que poderiam acontecer com alterações socioeconômicas.

Reconheceu-se que a Constituição Federal, é a lei maior e integrante

de um sistema aberto de normas, no que foi seguido pelo NCC, por isso, admite a formulação

de outros princípios ou subprincípios. Daí a justificação do princípio da socialidade.

Destarte, foi apresentada a presença da função social - socialidade –

nos institutos de Direito Civil e, ligada ao princípio da solidariedade constitucional, que dá a

ponte entre o Direito privado interpenetrado com o Direito público, no ambiente do Estado

democrático (e social) e constitucional de Direito, com a unidade e a sistematicidade no orde-

namento jurídico, através do princípio civil da socialidade. Vale lembrar o papel dos direitos

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fundamentais e dos princípios constitucionais nesse desiderato, com eficácia horizontal e

normatividade.

O princípio da socialidade confere uma visão social aos principais

personagens e aos institutos do Direito privado e é capaz de justificar resoluções jurídicas,

interpenetrado com o Direito público, representado pela Constituição Federal do Estado pro-

pugnado.

Foram incluídas algumas jurisprudências, especialmente do Supremo

Tribunal Federal, para demonstrar que o caminho apresentado é capaz de promover mudanças

factuais na vida das pessoas e aproximar-se, passo- a-passo, da eficácia constitucional.

No Direito, sempre que se fala em crítica, existem relutâncias e difi-

culdades em assimilar o “novo” por parte de profissionais da área jurídica, para permitir a

inclusão do que está em crise, gerando choques de entendimentos e de possíveis soluções. Em

outras palavras, o fato de se estar há anos lutando para implantar essa nova realidade, a emba-

sar ações e decisões judiciais, traz consigo a necessidade de interpretação, com critérios her-

menêuticos, a exemplo da própria Teoria do Direito.

Críticas sempre existirão e fazem parte do crescimento. Entretanto,

não se pode interpretar o novo Código Civil com a mentalidade formalista e abstrata utilizada

na compreensão da codificação que ele substituiu. É imprescindível considerar que, no Direi-

to, nada é absoluto e, por isso, não se pode pretender esgotar um tema. Deixa-se, então, o tra-

balho aberto para novos enfrentamentos, utilizando-se das novas perspectivas que se apresen-

taram em outros possíveis trabalhos científicos.

Optou-se por um caminho a seguir nesta dissertação, acima considera-

do, para a ordenação e condução do trabalho de pesquisa e o cumprimento dos objetivos pro-

postos. Entretanto, por inevitável, outras vias de exploração científica se abrem sempre que

um tema é delimitido e pesquisado. Destarte, além de um estudo mais aprofundado sobre uma

teoria da concretização do Direito (interpretação e aplicação), por diversas vezes referida, ao

fixar-se insistentemente a unidade do ordenamento jurídico, a hierarquia das fontes (teoria das

fontes do Direito) também mereceriam um estudo mais extenso.

Outra via aberta a novos e mais aprofundados estudos é determinar o

“lugar” exato do juiz e, por conseqüência, dos outros Poderes (ou funções) estatais: Legislati-

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vo e Judiciário e, ainda, a relação e distinção entre democracia e jurisdição e entre o Direito, a

política e a economia.

Para que se aprofundasse de forma respeitável a pesquisa, indispensá-

vel seria a inclusão do estudo de outros temas, além dos acima referidos, como os direitos

fundamentais e a globalização – cosmopolismo – o que alongaria o trabalho. Seria imprescin-

dível uma revisão bibliográfica maior, para concluir com propriedade acerca de cada novo

aspecto que se apresenta durante a confecção da pesquisa.

O desenvolvimento da dissertação não apresentou outras dificuldades

para a sua conclusão, além do problema para a obtenção da bibliografia necessária. Distante

de grandes centros e de bibliotecas especializadas, na maioria das vezes, a única opção possí-

vel foi adquirir os livros por telefone ou internet.

Inobstante isso, toda a investigação científica é sempre proveitosa e

gratificante. As informações que buscadas e recebidas, de qualquer forma, para que constitu-

am conhecimento, devem assegurar a formação de opinião pessoal e crítica, possibilitando a

sua transmissão ou aplicação na vida prática, a partir de quando é possível falar-se em conhe-

cimento.

Da mesma forma, é imprescindível a humildade, presente ao reconhe-

cer a qualidade de toda opinião em contrário, assim como em apresentar o trabalho efetuado

para análise e considerações dos mais doutos, como forma de o tornar, juntamente com a ci-

ência que integra, mais imbuído de qualidade.

As considerações que permeiam o trabalho constituem o posiciona-

mento da autora, entendido apropriado, a partir da discussão teórica efetuada, em confronto

com situação fática real que cerca a sociedade.

Resta, por derradeiro, manter a inquietude necessária para que nunca

se deixe de estudar e atualizar o aprendizado. No tema desenvolvido, a grande lição que fica,

é a tarefa de lutar pelo Direito no seu aspecto substancial. A legislação evoluiu para o momen-

to presente. É preciso, apenas, lutar pela efetividade, privilegiando os valores não-

patrimoniais, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade e a real

proteção do ser humano, no coletivo e no social.

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Para encerrar, será usada a chamada de entrada do presente trabalho,

de autoria de Montesquieu: “Não se deve nunca esgotar de tal modo um assunto, que não se

deixe ao leitor nada a fazer. Não se trata de fazer ler, mas de fazer pensar”.

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