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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ ALEXANDRE CAVALLI DAS NEVES DISTINÇÃO ENTRE CULPA CONSCIENTE E DOLO EVENTUAL NOS DELITOS DE TRÂNSITO Curitiba 2018

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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ

ALEXANDRE CAVALLI DAS NEVES

DISTINÇÃO ENTRE CULPA CONSCIENTE E DOLO EVENTUAL NOS

DELITOS DE TRÂNSITO

Curitiba

2018

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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ

ALEXANDRE CAVALLI DAS NEVES

DISTINÇÃO ENTRE CULPA CONSCIENTE E DOLO EVENTUAL NOS

DELITOS DE TRÂNSITO

Monografia apresentada ao Curso de Direito, daUniversidade Tuiuti do Paraná, como requisitoparcial para obtenção do título de Bacharel emDireito.

Orientador: Prof. Msc. Luiz Renato SkrochAndretta

Curitiba

2018

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TERMO DE APROVAÇÃO

ALEXANDRE CAVALLI DAS NEVES

DISTINÇÃO ENTRE CULPA CONSCIENTE E DOLO EVENTUAL NOS

DELITOS DE TRÂNSITO

Esta monografia foi julgada e aprovada para a obtenção do título de Bacharel no Curso

de Direito da Universidade Tuiuti do Paraná.

Curitiba, _____ de _______________ 2017.

__________________________________

Prof. Dr. PhD Eduardo de Oliveira Leite

Coordenador do Núcleo de Monografias do Curso de Direito

Universidade Tuiuti do Paraná

Orientador: __________________________________________

Prof. Msc. Luiz Renato Skroch Andretta

Universidade Tuiuti do Paraná

Supervisor: _________________________________________

Prof. Msc. Murilo Henrique Pereira Jorge

Universidade Tuiuti do Paraná

Supervisor: __________________________________________

Prof. Msc. Roberto Aurichio Júnior

Universidade Tuiuti do Paraná

II

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente à minha família: muito obrigado Dora, Airton, Débora e Adriano

pelo incentivo e por acreditarem em tudo desse filho, esposo e pai. Tenho perfeita

consciência de que sem esse incansável apoio, absolutamente nada disso teria sido

possível. Recebam agora e sempre o meu mais profundo agradecimento!

Muito obrigado Luiz, tio preferido, professor, orientador dos meus estudos e

desta monografia. Obrigado pela paciência infinda, pelos livros emprestados, pelos

inúmeros cafés, bem como pelos inestimáveis ensinamentos que norteiam o meu

entendimento do Direito, e que levarei comigo nesta nova jornada profissional!

Meus queridos professores, cujo comprometimento e vocação ao ensino

surpreendeu este aluno “veterano”. Faço questão de registrar que considero-me

agraciado por participar da companhia destes docentes, dos quais, tentei humildemente

aprender o máximo que me fosse possível. Creio que além da boa técnica, guardarei

através de seus exemplos a magnífica lição de que o Direito pode – e deve! – ser

exercido com retidão ética, respeito e dignidade. Obrigado mestres!

Meus leais colegas, amigos e companheiros de viagem, dos quais tive a alegria

do convívio nesses anos da graduação; de fato, convivi convosco quase tanto quanto

com a minha própria família, e por isso, também, considero que tornaram-se parte

desta. Obrigado pela amizade!

III

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EPÍGRAFE

“Quantos crimes cometidos simplesmente

porque seu autor não podia suportar o fato

de estar errado!”

A Queda, Albert Camus.

IV

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO........................................................................................................1

2. A CONDUTA HUMANA RELEVANTE AO DIREITO PENAL.........................2

3. ESTRUTURA DA CONDUTA PUNÍVEL.............................................................3

3.1 TEORIA CAUSAL-NATURALISTA..................................................................3

3.2 CONCEITO ÔNTICO-ONTOLÓGICO..............................................................5

3.2.1 ANTECIPAÇÃO BIOCIBERNÉTICA DE MEIOS E FINS........................7

4. DEFINIÇÃO DE CULPA STRICTO SENSU.......................................................11

4.1 ELEMENTOS DA CULPA STRICTO SENSU..................................................13

4.2 ESPÉCIES DE CULPA.....................................................................................16

4.2.1 Culpa Inconsciente.....................................................................................16

4.2.2 Culpa Consciente........................................................................................16

5. DEFINIÇÃO DE DOLO.......................................................................................19

5.1 ELEMENTOS DO DOLO.................................................................................24

5.1.1 Elemento Cognoscitivo..............................................................................24

5.1.2 Elemento Volitivo.......................................................................................25

5.2 ESPÉCIES DE DOLO.......................................................................................26

5.2.1 Dolo Direto de consequências diretas e necessárias...................................27

5.2.2 Dolo Indireto ou de consequências eventuais.............................................27

6. DISTINÇÃO ENTRE DOLO E CULPA CONSCIENTE...................................31

7. A QUESTÃO DA ADEQUAÇÃO TÍPICA...........................................................36

7.1 TEORIA DA PROBABILIDADE.....................................................................39

7.2 POSIÇÃO DE WELZEL...................................................................................42

8. POSIÇÃO DO STJ SOBRE OS DELITOS DE TRÂNSITO..............................45

8.1 “NO ‘RACHA OU PEGA’ HÁ DOLO EVENTUAL”.......................................45

8.2 “NÃO SE PODE GENERALIZAR A EXCLUSÃO DO DOLO EVENTUAL

EM DELITOS PRATICADOS NO TRÂNSITO”...................................................45

V

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8.3 “AINDA QUE SE CONFIRMASSE A ANTERIOR INGESTÃO DE ÁLCOOL,

TAL CIRCUNSTÂNCIA, POR SI SÓ, NÃO SERIA SUFICIENTE PARA

CONFIGURAR O DOLO EVENTUAL”................................................................46

8.4 “O JULGAMENTO SOBRE A OCORRÊNCIA DE DOLO EVENTUAL OU

CULPA CONSCIENTE DEVE FICAR A CARGO DO TRIBUNAL DO JÚRI”....47

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................48

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO CONSULTADO...........................................50

VI

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1

1. INTRODUÇÃO

O objeto deste breve estudo é um dos mais polêmicos temas do Direito Penal

contemporâneo, pois versa sobre a dificuldade prática de se imputar corretamente a lei

Penal aos fatos delitivos ocorridos no trânsito. A dificuldade exigida pela análise do

tema reflete-se também nos diferentes níveis de reprovação social das condutas em

tela, e, consequentemente, na severidade da imposição das penas. Coexistindo com a

questão jurídica, também está o elemento real da insegurança no corpo social causada

pela repercussão da ocorrência deste fato típico, pois, como diz Beck, a sociedade

atual vive num processo de “compartilhamento de riscos”1, onde todos, sem exceção,

estarão expostos a estes incrementos de perigo no âmbito das relações, pelo simples

fato de transitarem nas vias públicas.

A estabelecida divergência doutrinária ocorre pelo fato de que o Código Penal

pátrio não é específico em delimitar claramente a distinção entre, o “assumir o risco”

de produzir um resultado, e o dar “causa ao resultado por imprudência, negligência ou

imperícia”. Neste sentido, procuramos, humildemente, aprofundar e expor as

diferenças técnicas entre estes dois institutos jurídicos, de modo a tentar torná-los mais

inteligíveis a outros acadêmicos, e servindo, quiçá, como ponto de partida para

vindouros estudos de maior abrangência e profundidade.

1 BECK, Ulrich. Sociedade do Risco, p.143.

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2

2. A CONDUTA HUMANA RELEVANTE AO DIREITO PENAL

O Direito Penal possui um caráter residual e subsidiário no campo legislativo, e

por isso não se interessa pela maioria das condutas humanas, mas apenas intervém

naquelas previstas no seu rol taxativo de comportamentos socialmente reprovados. É o

último lastro da sociedade, a ultima ratio, e por isso mesmo tende também a ser o mais

duro em suas reprimendas.

Não se concebe a idéia de um Estado penal, mas de uma sociedade defendida

pela legalidade e eficácia de suas instituições. Carrara2, em obra de 1859, já advertia

que “Os homens, com efeito, vivem tranquilos em sociedade, na confiança de que os

seus direitos se encontram protegidos contra as paixões dos maus, pela autoridade e

pela lei penal.” Logo, nota-se que sua intenção primeira não é o punir, mas através da

ameaça de uma pena, regular as ações dos seus jurisdicionados visando a preservar e

desenvolver a convivência social; e, com essa finalidade, elenca as proibições

impostas às condutas consideradas indignas ou perigosas, resguardando o

desenvolvimento da comunidade jurisdicionalmente tutelada. Em resumo, é o que

observa Robert, de que, modernamente, “o Direito Penal não se apresenta mais como

aquele que impõe, e sim como aquele que proíbe”3.

2 “Os homens, com efeito, vivem tranquilos em sociedade, na confiança de que os seus direitos seencontram protegidos contra as paixões dos maus, pela autoridade e pela lei penal. Uma ofensaque, a despeito de tal proteção, sobrevenha ao direito de alguém, é um relâmpago a revelar aimpotência da proteção. Ao ouvir que, não obstante a proibição, perpetrou-se a ação proibida,sente cada um que as paixões más rompem o freio da lei, e duvida, com razão, da eficácia dêssefreio; e embora não veja atualmente diminuída a própria segurança, sente-se menos seguro,porque prevê que, quando uma paixão impulsione algum perverso a planejar contra êle ofensasemelhante, a lei repressiva não lhe será garantia suficiente, como não o foi para o outro, já vítimado delito cometido.” [grifo nosso] CARRARA, Francesco. Programa do Curso de DireitoCriminal, p. 111.

3 Tradução livre do autor. No original: “Le droit pénal ne se présente pas comme celui qui oblige,mais comme celui qui interdit. C’est même la seule tâche que paraît lui assigner l’article5 de laDéclaration des droits de l’homme : ‘La Loi n’a le droit de défendre que des actions nuisibles àla société’.” [grifo nosso] ROBERT, J. H. L’obligation de faire pénalement sanctionnée, p. 1.

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3

3. ESTRUTURA DA CONDUTA PUNÍVEL

Trataremos a seguir – na ordem de sua adoção – das duas principais correntes

doutrinárias que se dedicaram ao estudo da conduta humana aplicável ao Direito

Penal, e, não por acaso, foram justamente adotadas pelo legislador pátrio na

elaboração do estatuto repressor de 1941, como também em sua posterior reforma,

ocorrida quarenta e três anos depois, no ano de 1984.

3.1 TEORIA CAUSAL-NATURALISTA

Foi Von Liszt, precursor do Direito Penal alemão, quem por primeiro

estabeleceu na doutrina do causalismo a perfeita tradução do pensamento cientificista

de século XIX4, ajustando a ela toda a ordem jurídica, criando uma espécie de teoria

“mecanicista” da imputabilidade criminal. Assim ensinava o mestre austríaco:

“Para podermos fixar a idéia do injusto, devemos investigar qual é oconjunto de circunstâncias a que a ordem jurídica liga os efeitos do injusto.As circunstâncias que são a condição para que se siga um efeito jurídicoconsistem sem exceção alguma em fatos juridicamente relevantes, isto é, emmudanças do mundo exterior apreciáveis pelos sentidos. Mas os efeitos doinjusto, e conseqüentemente a pena, só se ligam a certos e determinadosfatos. As circunstâncias constitutivas do injusto não podem seracontecimentos, que independam da vontade humana, mas somente açõeshumanas.Ação é, pois, o fato que repousa sobre a vontade humana, a mudança nomundo exterior referível à vontade do homem. Sem ato de vontade não háação, não há injusto, não há crime: cogitationis poenam nemo patitur. Mastambém não há a ação, não há injusto, não há crime sem uma mudançaoperada no mundo exterior, sem um resultado.

4 “A doutrina naturalista da ação, no fundo, é um produto do positivismo filosófico, isto é, de umaconcepção da realidade limitada aos fenômenos sensorialmente apreensíveis e da ciência comosimples captação das relações de sucessão ou semelhança dos fatos uns com os outros. Arealidade humana é – segundo esta concepção do pensamento filosófico do século XIX – reduzidaa fenômenos naturais predeterminados, e as ciências que dela se ocupam (entre elas a ciência dodireito), se reduzem à pesquisa de leis que expressam as relações de semelhança ou de sucessão,constantes e obrigatórias entre os dados.” [grifo nosso] LUISI, Luiz. O Tipo Penal, a TeoriaFinalista e a Nova Legislação Penal, p. 32.

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4Destarte são dados os dois elementos de que se compõe a idéia de ação eportanto a de crime: ato de vontade e resultado.”5

Toda a escola causalista – cujos valores vigoraram no Brasil até a promulgação

da Lei n.º 7.209, de 1984 – entendia que o delito nascia no mundo externo através da

possibilidade de atuação física do ser humano em termos de sua contração ou inércia

muscular, assim, só interessando ao Direito a objetividade material do fato que poderia

ser percebido e mensurado pelos sentidos. Dizia Alimena que

“nossa vontade não adere às coisas, e nós,− como conhecemos as coisasatravés do filtro dos sentidos −, assim lhes modificamos com o instrumentomobilizado ou inerte dos músculos, é natural que não se possa desejar umfato, uma modificação do mundo externo, sem o emprego dos meiosoportunos. A responsabilidade do crime, portanto, começa, quando começamo emprego deste meios.”6

Para estes “naturalistas”, o único aspecto subjetivo a ser considerado era o da

liberdade e da voluntariedade de ação, pois caso o impulso não fosse livre não haveria

como imputar crime ao agente, independente do resultado típico causado por ele.

Serve de resumo para este capítulo a sintética explanação de Beling:

“Para um indivíduo, a punibilidade só pode advir de suas próprias ações.Deve-se entender por ‘ação’ um comportamento corporal (fase externa,‘objetiva’ da ação) produzido pelo domínio sobre o corpo (liberdade deinervação muscular), ‘voluntariedade’, (fase interna ‘subjetiva’ da ação);portanto, o comportamento corporal voluntário, consistente em um ‘fazer’(ação positiva)’; isto é, um movimento corporal, como por exemplo, levantara mão, movimentos para falar, etc., já, o ‘não-fazer’ (omissão), é a distensãodos músculos”7

5 LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão, p. 217.

6 Tradução livre do autor. No original: “l’anima nostra non aderisce alle cose, e noi, – comeconosciamo le cose attraverso il filtro dei sensi –, così le modifichiamo con l'istrumento mobile oinerte dei muscoli, è naturale che non può volersi un fatto, una modificazione del mondo esterno,senza l’impiego di mezzi opportuni. La responsabilità del reato, dunque, incomincia, quandoincomincia l'impiego di questi mezzi.” ALIMENA, Bernardino. Principii di Diritto Penale, p.321.

7 Tradução livre do autor. No original: “Para un individuo, la punibilidad surge siempre solamentede sus proprias acciones. Debe entenderse por ‘acción’ un comportamiento corporal (fase externa,‘objetiva’ de la acción) producido por el dominio sobre el cuerpo (libertad de inervaciónmuscular, ‘voluntariedad’, (fase interna, ‘subjetiva’ de la acción); ello es, un comportamientocorporal voluntario’, consistente en un ‘hacer’ (acción positiva), ello es, un movimiento corporal,p.ej. levantar la mano, movimientos para hablar, etc., ya en un ‘non hacer’ (omisión), ello es,distensión de los músculos.” BELING, Ernst von. Esquema de Derecho Penal, p. 20.

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53.2 CONCEITO ÔNTICO-ONTOLÓGICO

Curiosamente, o movimento que veio a redimir as lacunas de aplicação prática

do causalismo, enquanto representante da ciência física moderna, seria outra retomada

histórica do monumento filosófico erigido na Grécia, cerca de 500 anos antes de

Cristo. Apesar de haver certa base conceitual pré-socrática, foi de Aristóteles a mais

apurada formulação, de que a ontologia é a “ciência primeira”, a “ciência do ser

enquanto ser”, ou ainda, na definição precisa de Martins, “é a primeira substância

comum a todos os seres”8. Como destaca Câmara, “o problema ontológico está sempre

presente no problema lógico, no problema do conceito. Pensar é pensar algo”9.

Modernamente, Heidegger10, ofereceu uma distinção bastante didática entre os dois

termos em tela, sendo o ôntico aquile que “compreende o existente simplesmente

como é, tal qual se apresenta aí e agora”; enquanto o ontológico, por sua vez, “se

refere à estrutura fundamental do ser”.

Do mesmo modo, em Direito Penal, o conceito ôntico-ontológico é o que toma

o resultado da ação, a finalidade e os meios escolhidos como ponto de partida para o

trabalho de adequação típica, ou, como bem resume Zaffaroni, é o que considera a

“ação em sentido final”11. Apesar de ser corrente entre os doutrinadores a posição de

que o finalismo erige seus fundamentos a partir da sólida filosofia aristotélica, em

nenhum momento Welzel atribui sua inspiração ao filósofo grego; o que sugere que o

autor alemão tenha chegado indiretamente às mesmas conclusões do estagirita.

Embora não seja do escopo deste estudo tratar da questão “autoral” do finalismo,

segue, em resumo, o comentário de Giovanni Reale sobre as etapas necessárias a

realização da conduta humana, segundo Aristóteles:

8 MARTINS, José Salgado. Preparação à Filosofia, p. 24.

9 MENDONÇA, Jacy de Souza. O Curso de Filosofia do Direito do Professor Armando Câmara, p.47.

10 MARTINS, J. S. Idem, p. 138.

11 Tradução livre do autor. No original: “Nuestro criterio, sintéticamente, es que el concepto óntico-ontológico de acción (la acción en sentido final) es respetado por el orden jurídico, que como talla individualiza en los tipos penales, presentándose como el género avalorado sobre el que lascaracterísticas valorativas (tipicidad, antijuridicidad y culpabilidad) delimitarán el concepto dedelito al adjetivarla.” [grifo nosso] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal, p.83.

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6“Como bom realista que era, percebeu muito bem que uma coisa é conhecero bem, outra é pô-lo em ato, realizá-lo e transformá-lo, por assim dizer, emsubstância das próprias ações; e tratou de determinar mais de perto quaisseriam os complexos processos psíquicos que o ato moral pressupõe.Em primeiro lugar, ele esclarece o que entende por ‘ações involuntárias’ e‘ações voluntárias’. Involuntárias são aquelas realizadas por imposição oupor ignorância das circunstâncias; voluntárias são aquelas ‘em que oprincípio motor está em quem age, se ele conhece as circunstânciasparticulares em que a ação se desenvolve’.(…) Aristóteles inclui entre as ações voluntárias também as que foramditadas pela impetuosidade, pela ira e pelo desejo; portanto, chama devoluntárias as ações das crianças (e até de outros animais, posto que têmorigem neles próprios, logo, dependem deles). É evidente que, nesse sentido,‘voluntárias’ são as ações simplesmente espontâneas, que se originam nossujeitos que as realizam, não coincidindo com aquelas a que nós, modernos,damos esse nome.Mas o Estagirita prossegue na análise e mostra que os atos humanos, além de‘voluntários’ no sentido mencionado, são determinadas por uma ‘escolha’(proaíresis); e afirma que esta parece ‘uma coisa essencialmente própria davirtude e mais apta que as ações para julgar os costumes’. De fato, a escolhanão pertence à criança ou ao animal, mas apenas ao homem que raciocina ereflete. A ‘escolha’ sempre implica raciocínio e reflexão, precisamenteaquele tipo de raciocínio e reflexão concernente às coisas e às ações quedependem de nós e que participam da ordem dos realizáveis. Aristóteleschama esse tipo de raciocínio e reflexão de ‘deliberação’.A diferença entre deliberação e escolha é a seguinte: a deliberação estabelecequais e quantos são os vários meios e as várias ações que cabe acionar paraatingir determinados fins.(…) Muitos estudiosos acreditam ver nessa passagem aquilo que chamamosde ‘vontade’, pois a escolha é um apetite ou um desejo deliberado; portanto,não é somente um desejo ou apetite, nem somente razão. (…) se é verdadeque a escolha é aquilo que nos transforma em autores de nossas ações,responsáveis por elas, ela não é o que nos torna verdadeiramente bons, poissó os fins a que nos propomos alcançar podem ser bons, enquanto a escolha(assim como a deliberação) refere-se apenas aos meios.”12

Seguindo nessa mesma linha de raciocínio, percebemos que para Aristóteles, o

desenrolar da ação se dá quando o sujeito livre escolhe os fins a serem alcançados e

delibera sobre os meios necessários para se atingir a esse fim escolhido. Para o

filósofo grego, são quatro as espécies de causas; sendo a material e a formal as que

constituem a realidade natural, a causa motora ou agente e a final. Como destaca

Sciacca, “a causa formal, a causa agente e a causa final coincidem; ou seja, coincidem

à forma constitutiva do ser, o princípio eficiente e o fim do processo ou do devir, da

consecução do fim”13. Destarte, quando o que age – causa eficiente, na definição

12 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles, p. 124-126.

13 Tradução livre do autor. No original: “Como es sabido, Aristóteles y el Aquinate distinguen cuatroespecies de causas: la material y la formal, o las que ‘constituyen’ la realidad natural; la motora

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7aristotélica – é um ser inteligente dotado de capacidade intelectual como o ser humano,

posto que age movido pela própria vontade, é então evidente que a aspiração de suas

ações será sempre um fim, uma causa final. Logo, considerando essa coincidência

necessária e intrínseca ao processo, vemos que o fim, ou melhor, o devir da ação

empreendida pode ser deduzido logicamente traçando o caminho contrário daquele

realizado pelo agente. Até aqui percebe-se claramente, que em comparação, não se vê

nada de diferente em relação à doutrina da ação final proposta por Welzel; o que por

óbvio não constitui nenhum demérito ao autor alemão, visto que, como bem observa

Villey, “os juristas não têm direito de ignorar esta filosofia, porque Aristóteles foi

provavelmente o fundador da filosofia do direito.”14

3.2.1 ANTECIPAÇÃO BIOCIBERNÉTICA DE MEIOS E FINS

Iniciamos com Carnelutti, que afirmava com razão, que sem previsão, o

homem não pode agir; e exemplifica de maneira brilhante: “a previsão precede a ação

como a luz dos faróis precede o avanço de um veículo na noite”15. Welzel, desenvolveu

seu conceito de ação tendo como base a natureza inteligente do ser humano em sua

conduta, não admitindo o acontecer causal cego, mas sim ações orientadas a um fim.

Zaffaroni destaca esse aspecto fundamental do discurso de Welzel16 em especial pela

o agente y la final, o sea, las causas necesarias para comprender el proceso de lo real. (…) comodice también Aristóteles, la causa formal, la causa agente y la causa final coinciden; es decir,coinciden la forma constitutiva del ser, el princípio eficiente y el fin del proceso o del devenir, dela consecución del fin.” [grifo nosso] SCIACCA, Michele Federico. Perspectiva de la Metafisicade Santo Tomas, p. 108.

14 VILLEY, Michel. Filosofia do Direito, p. 49.

15 Tradução livre do autor. No original: “Senza la previsione l’uomo non puó agire. Egli, per fare unpasso, ha bisogno di vedere (cernere) dove va. La previsione precede l’azione come la luce deifari precede la marcia d’un veicolo nella notte.” [grifo nosso] CARNELUTTI, Francesco. LaCrisi del Diritto, p. 178.

16 Tradução livre do autor. No original: “Concluyendo, una observación personal: cuando yo en elaño 1935 tomé de Nicolai Hartmann no la cuestión (que era mucho más antigua), pero sí elnombre ‘finalidad’ para caracterizar la acción como un acontecimiento dirigido y encauzadovoluntariamente, no imaginé que con esta nominación iban unidas muchas falsasinterpretaciones. Entretanto se ha elaborado en la Cibernética una designación mucho másajustada a la peculiaridad determinante de la acción, esto es, su dirección y encauzamiento.

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8utilização do termo originalmente cunhado por Spiegel, consideração biocibernética

antecipada, esclarecendo:

“Em nosso tempo tem-se expandido a chamada ‘ponte entre as ciências’, queé a cibernética, sendo uma de suas manifestações a combinação dasdisciplinas físicas com a biologia, o que deu por resultado a chamada‘biocibernética’. A biocibernética tem revelado que em toda conduta há umaprogramação, a partir de uma ‘antecipação do resultado’, indicando etapasanálogas às que temos indicado. Daí ter Welzel proposto também falar deuma ‘antecipação biocibernética do resultado’ em lugar de uma ‘ação final’.Seja qual for a denominação que se queira dar a ela, resulta pouco menosque indiscutível que esta é a estrutura ôntica da conduta, que de qualquermaneira, deve ser respeitada pelo direito penal.”17

O próprio Welzel admite que só “empregou a palavra finalidade, por falta de um

termo mais apropriado”, pretendia que fosse entendida no sentido de “designar a

peculiaridade da atividade humana de ‘antecipar mentalmente objetivos, eleger os

meios necessários para alcançá-los, e, depois colocá-los em marcha, conforme seu

plano, para a realização daqueles objetivos propostos”18, “encontrando-o, porém, em

1948 na obra de Richard Wiener, e a partir daí valeu-se deste termo de origem grega,

originalmente cunhado por Platão: cibernética”19.

Logo, esta prognose inteligente é algo que ultrapassa o conteúdo de antecipação

próprio dos animais, exigindo do agente um comportamento compatível com a

capacidade intelectual do ser humano. O convívio em sociedade demanda de todos

uma postura de respeito aos bens jurídicos alheios, e, aqui especialmente, no caso dos

bens penalmente tutelados.

Quizá a la teoría final de la acción se le habrían ahorrado muchas falsas interpretaciones comoteoría de la acción, en cuanto acontecimiento (cibernético) dirigido o encauzado por la voluntad.No sin razón Spiegel habla de una ‘consideración biocibernética anticipada’”. [grifo nosso]WELZEL, Hans. Derecho Penal Aleman, p. 43-44.

17 ZAFFARONI, E. R. Manual de Direito Penal Brasileiro, p. 360.

18 Tradução livre do autor. No original: “‘Finalitat’ debía designar la peculiaridad de la actividadhumana de ‘anticipar mentalmente objetivos, elegir los medios necesarios para logra-los ydespués ponerlos, conforme a su plan, para la realización de ellos’.” WELZEL, Hans. Estudiosde Filosofía del Derecho y Derecho Penal: La Dogmatica en el Derecho Penal, p. 57.

19 Tradução livre do autor. No original: “Cuando en 1935, adopté la palabra ‘Finalitat’, no existiaotra más acertada. La encontró, recién en 1948, Norbert Wiener: ‘cibernética’; con esta palabra,de origen griego empleada con frecuencia por Platón (por ejemplo, en el dialogo Gorgias, 511,D), se señalo con mayor exactitud idiomática la ‘dirección’ y el ‘encauzamiento’.” [grifo nosso]WELZEL, H. Idem, ibidem.

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9Ainda sobre o tema, é importante destacar a posição de Hartmann20, que ao

diferenciar nexo causal de nexo final, mostra também a evolução técnica advinda com

o finalismo. Do primeiro, entende-se simplesmente que de uma causa deriva um efeito,

e assim, ad infinitum. O segundo, por sua vez, contempla a obtenção inteligente de um

fim, e, para tanto, escolhe os meios necessários, que, no contexto da ação proposta,

representam a interposição de vários nexos causais destinados a realização daquela

finalidade inicial. Segue o ensinamento de Zaffaroni sobre o tema:

“É inquestionável que qualquer vontade humana dirige-se a um fim, ou seja,que não há vontade nem conduta sem finalidade. A vontade não é nem‘vontade de mover o corpo’, nem ‘vontade de inervação muscular’. Talvontade não existe, a não ser, na invenção dos autores causalistas. É evidenteque que sempre se quer algo, sempre a vontade é ‘vontade de’ e ‘vontadepara’. Não há vontade ‘de nada’, nem vontade ‘para nada’. Sustentar ocontrário implica em considerar a conduta ao mero nível físico e prescindirdo complexo entendimento dos níveis psicológico e sociológico. Opsicológico, que é impossível de ser desligado da conduta sem que ela deixede sê-la, é o que introduz o nexo de finalidade. (…) A rigor, a finalidade –que se esclareça desde já – não extrai da causalidade, se a entendermos comoalgo visto a posteriori, senão sobre a causalidade a priori, ou seja, sobre aprevisão da causalidade (resumindo o pensamento de Hartmann). De modoque, se afirma, como na clássica expressão de Welzel, que a causalidade é‘cega’, enquanto a finalidade é ‘vidente’.”21

20 Tradução livre do autor. No original: “La diferencia entre nexo causal y el nexo final se halla enlo siguiente: en el nexo causal de una causa sale un efecto; este efecto es a su vez causa de unnuevo efecto, y así se sigue in infinitum . Se produce un avanzar de caso en caso, sin que con elnexo se realice un fin. En el nexo final, por lo contrario, se pone un determinado fin que puedehallarse muy adelante. En el pensamiento se ubican los medios retrocediendo desde el fin, paraterminar realizándolos, y con ellos también el fin. El nexo final se construye de este modo sobreel nexo causal, pues en la búsqueda de los medios cuenta sólidamente con la secuencia de lacausa y el efecto” [grifo nosso] HARTMANN apud ZAFFARONI, E. R. Tratado de DerechoPenal, p. 64-65.

21 Tradução livre do autor. No original: “Es incuestionable que cualquier voluntad humana se dirigea un fin, o sea que no hay voluntad ni conducta sin finalidad. La voluntad ni es ‘voluntad demover el cuerpo’ ni ‘voluntad de inervación muscular’. Una tal voluntad no existe más que en lainvención de los autores causalistas. Es evidente que siempre se quiere algo, siempre la voluntades ‘voluntad de’ y ‘voluntad para’. No hay voluntad ‘de nada’ ni voluntad ‘para nada’. Sostenerlo contrario implica considerar la conducta al mero nivel físico y prescindir de los nivelespsicológico y sociológico de complejización. Lo psicológico, que es imposible desligar de laconducta sin que ella deje de ser tal, es lo que introduce en nexo de finalidad. (…) En rigor, lafinalidad – bueno es observarlo desde ahora – no se monta sobre la causalidad, si la entendemoscomo algo visto a posteriori, sino sobre la causalidad a priori, o sea sobre la previsión de lacausalidad (no otra cosa quiere decir Hartmann). Con ello se afirma, como es clásica expresiónde Welzel, que en tanto que la causalidad es ‘ciega’ la finalidad es ‘vidente’.” ZAFFARONI, E. R.Idem, ibidem.

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10Para além do exposto, pairou, no princípio, uma discussão sobre a

impossibilidade de se conceber o conceito penal de culpa stricto sensu dentro da

escola finalista; uma vez que na culpa, deve restar evidente que o agente não visava ao

resultado típico, seja por tê-lo previsto confiando de que poderia evitá-lo, ou ainda,

não tê-lo previsto quando deveria. Zaffaroni, porém, não só discorda desta crítica

como também esclarece que o finalismo, em sua visão, resolve a “questão” melhor do

que o causalismo, pois,

“Na teoria causal o juízo de antijuridicidade recai sobre um curso causalporém se esquece que os processos causais não violam deveres de cuidado;os acontecimentos causais puros não são ‘imprudentes’, ‘negligentes’ ou‘imperitos’: somente as condutas ou ações podem sê-lo, e, para averiguá-los, faz-se necessário conhecer a sua finalidade. Apenas concebendo aconduta tipicamente culposa como a que viola um dever de cuidado, tendo-se em conta o seu fim, é o modo através do qual a antijuridicidade poderecair sobre uma ação: os processos causais nunca podem ser contrários aum dever jurídico, e, tampouco, há processos causais antijurídicos.”22

Será esta base conceitual de conduta, que servirá de subsídio para o

desenvolvimento do presente estudo.

22 Tradução livre do autor. No original: “En la teoría causal el juicio de antijuridicidad recae sobreun curso causal pero se olvida que los procesos causales no violan deberes de cuidado; los purosaconteceres causales no son ‘imprudentes’, ‘negligentes’ o ‘imperitos’: sólo las conductas oacciones pueden serlo, y para averiguarlo se hace necesario conocer su finalidad . Sóloconcibiendo a la conducta típicamente culposa como la que viola un deber de cuidado, para loque se debe tomar en cuenta el fin de la misma, es como la antijuridicidad puede recaer sobreuna acción: los procesos causales nunca pueden ser contrarios a un deber jurídico y tampoco hayprocesos causales antijurídicos.” ZAFFARONI, E. R. Obra citada, p. 89.

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4. DEFINIÇÃO DE CULPA STRICTO SENSU

A culpa stricto sensu pertence a porção objetiva do tipo penal, mais exatamente

qualificada como elemento normativo de cunho extrajurídico ou cultural; pois, ao

tempo em que trata dos aspectos normativos que recaem sobre determinado agir

também exigem uma avaliação da antijuridicidade em abstrato da conduta devida no

caso concreto. Estes elementos sempre “tem um conteúdo cultural e requerem

valorações de ordem ética e social; a operação mental que sobre eles realizá o juiz se

ajusta ‘a normas e concepções que não pertencem, no entanto, à esfera do direito’”23;

como também depreende-se da lição de Damásio de Jesus:

“a par dos elementos objetivos, o legislador insere na figura típica certoscomponentes que exigem, para sua ocorrência, um juízo de valor dentro dopróprio campo da tipicidade. Daí denominar Asúa anormais os tipos que oscontêm, exatamente porque possuem conteúdo diferente dos tipos comuns eobrigam o juiz a ultrapassar a sua normal função de conhecimento, tendo emvista a sua vinculação à antijuridicidade. Note-se que, de um lado, olegislador insere no tipo termos de natureza meramente descritiva, comomatar, subtrair, destruir, de outro, expressões como sem justa causa,indevidamente, fraudulentamente, função pública, documento, mulherhonesta, dignidade, decoro, noções que só são compreensíveisespiritualmente, ao contrário daquelas, que podem ser compreendidasmaterialmente.”24

São esses elementos os que constituem “referências aos estados de consciência,

que podem consistir em uma intenção, representação ou conhecimento do autor do

feito, ou em um estado afetivo ou sentimental”25. Como bem observa Roxin, para

Welzel, “nenhum destes elementos [normativos] se realiza no mundo exterior, e todos

dependem de comprovação mediante um juízo de valor, pois, só se fazem

23 Tradução livre do autor. No original: “Los elementos normativos del tipo son de contenidojurídico o extrajurídico. Los primeros implican una valoración eminentemente jurídica en cuantose trata de conceptos que pertenecen al ámbito del derecho, al cual debe recurrir el intérpretepara fijar su alcance. Los segundos tienen un contenido cultural y requieren valoraciones deorden ético o social; la operación mental que sobre ellos realiza el juez se ajusta ‘a normas yconcepciones vigentes que no pertenecen, si embargo, a la esfera misma del derecho’” [grifonosso] ECHANDÍA, Alfonso Reyes. Tipicidad, p. 91-92.

24 JESUS, Damásio Evangelista de. Direto Penal, p. 274-275.

25 Tradução livre do autor. No original: “Los elementos subjetivos constituyen referencias a estadosde conciencia, que pueden consistir en una intención, representación o conocimiento del autordel hecho, o un estado afectivo o sentimental.” LOMAS, Roberto A. M. Terán. Derecho Penal, p.327.

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12compreensíveis, espiritualmente”26. Segundo Reyes Echandía, pelo fato de que ambos

vão além da mera descrição de condutas, mas que as qualificam através da percepção

de referências específicas com que deve atuar o agente; e justamente pelo que tem em

comum, podemos afirmar que ambos são elementos do mesmo gênero: tanto os

objetivos normativos quanto os subjetivos. Este fator de incompletude, é sem dúvida,

necessário, pelo fato de que o Direito positivado não teria possibilidade de abarcar

todas as possibilidades da vida, relacionando todas as espécies de cuidado necessários

para cada ocasião possível da vida em sociedade, assim o legislador opta por sancionar

certas condutas descuidadas. Como esclarece Zaffaroni:

“A característica de indeterminação que, prima facie, apresenta o tipoculposo, obedece ao fato de que este não pode descrever todas as condutas,que, em sua forma de realização,– base do juízo de desvalor da ação – sãosuscetíveis a afetar um bem jurídico, haja vista que estes são inumeráveis.”27

Esse dever de cuidado é algo que cabe ao discernimento e ao arbítrio de cada

indivíduo, no sentido de que cada um deve restringir-se a agir de maneira cuidadosa

perante os riscos que se lhe apresentam na realidade. Observa Zielinski, que esse

“mandado geral de cuidado dirige-se a todos, porém aplica-se apenas a situações

concretas, sendo que, a partir da decisão de se executar a ação, resultem dela possíveis

consequências colaterais não desejadas”28. Nesse sentido Damásio afirma que a culpa é

“a imprevisão do previsível”29.

Ainda sob esse aspecto, vale ressaltar uma evidente vantagem apontada por

Lomas30, no fato lógico da incompatibilidade da culpa stricto sensu com a

26 Tradução livre do autor. No original: “Algo resulta claro: todos los ‘puros elementos de laantijuricidad en el sentido de Welzel son elementos normativos. Ninguno de ellos se realiza en elmundo exterior, todos requieren ser comprobados mediante un juicio de valor, sólo soncomprensibles espiritualmente” ROXIN, Claus. Teoría del Tipo Penal, p. 121.

27 Tradução livre do autor. No original: “La característica de indeterminación que prima faciepresenta el tipo culposo, obedece a que éste no puede describir todas las conductas que en suforma de realización – que es lo que funda el desvalor de la acción – son susceptibles de afectara un bien jurídico, toda vez que éstos son innumerables.” ZAFFARONI, E. R. Obra citada, p.384-385.

28 Tradução livre do autor. No original: “El mandato general de cuidado se dirige por cierto atodos, pero sólo obliga en situaciones concretas de acción. La norma general necesita de laconcreción del deber. (…) Ella requiere, en primer lugar, la decisión de la ejecución de unaacción, de la cual resulten posiblemente consecuencias colaterales no queridas.” ZIELINSKI,Diethart. Disvalor de Acción y Disvalor de Resultado en el Concepto de Ilícito, p. 196.

29 JESUS, D. E. de. Obra citada, p. 293.

30 Tradução livre do autor. No original: “la presencia de elementos normativos significa el adelanto

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13concorrência das causas de justificação, que deverão ser sopesadas em conjunto,

formando um único juízo de valor sobre o fato; portanto, basta a demonstração de

prudência e cuidado no âmbito da relação (observância da conduta normativa) para

excluir a imputação do fato culposo ao agente.

É necessário, por fim, observar que a mens legis do Código Penal pátrio impõe

uma característica de excepcionalidade ao crime culposo, de modo que a contrario

sensu, percebe-se que a regra de imposição penal se dá quase na totalidade dos tipos

penais unicamente através da hipótese de crime doloso.

4.1 ELEMENTOS DA CULPA STRICTO SENSU

O atual texto legal pátrio traz a definição de que culposo é crime no qual o

agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia; o que na

definição de Damásio seriam todas apenas “formas de manifestação da inobservância

do cuidado necessário”31. Para este autor, assim como para a doutrina mais atual, o

Código teria mais precisão técnica ao tratar tanto da imprudência quanto da imperícia

com um único termo: negligência32.

Embora a fórmula do crime culposo estabeleça como marco a violação de um

dever objetivo de atenção e cuidado a ser analisado no caso concreto, requer-se do

sistemático de la antijuridicidad del hecho al momento del examen de su tipicidad, y su existenciaes incompatible con la concurrencia de causas de justificación. Su presencia en el tipo comoparte integrante permitirá resolver oportunamente el problema del error. Un error de derechosobre un elemento normativo será un error esencial que excluirá la culpabilidad, equivaliendo aerror de hecho, ya que versará sobre lo que constituye el hecho delictivo.” [grifo nosso] LOMAS,R. A. M. T. Obra citada, p. 322.

31 JESUS, D. E. de. Obra citada, p. 294.

32 “Enquanto na negligência o sujeito deixa de fazer alguma coisa que a prudência impõe, naimprudência ele realiza uma conduta que a cautela indica que não deve ser realizada. A doutrinaensina que a imprudência é positiva (o sujeito realiza a conduta) e a negligência, negativa (osujeito deixa de fazer algo imposto pela ordem jurídica). (…) Na conduta de quem dirige veículoem más condições de funcionamento, em que a negligência residiria na inobservância do dever deconsertá-lo antes, também está presente a imprudência de dirigi-lo naquelas circunstâncias. Daí acorreta observação de Basileu Garcia de que a rigor a palavra negligência seria suficiente paraministrar todo o substrato da culpa, incluindo a imprudência e a imperícia.” [grifo nosso] JESUS,D. E. de. Idem, ibidem.

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14agente também, e principalmente, além de uma mera transgressão das “regras mais

elementares da prudência”33 – para dizer como Alimena – mas também que resultado

típico fosse previsível ao sujeito da ação. Assim nos esclarece de maneira peremptória

o autor italiano: “Praticamente, a prova da culpa, portanto, encontra a sua base objetiva

na experiência comum e na opinião comum, e a sua base subjetiva, na idade, na

capacidade, nos particulares deveres daqueles que agiram”, e segue,

“Na culpa, portanto, o homem é responsável porque serviu-se de um meiocontrário aos fins da comunidade, ou, generalizando, porque ele empreendeuuma conduta contrária aos fins da comunidade: e o mal causado é a eleimputável precisamente porque é previsível que aquele meio, ou aquelaconduta possam ocasionar um mal, e, precisamente porque é previsível quepossa ocasioná-lo, o meio é antijurídico e a conduta é antijurídica.”34

Trata-se, portanto, da inobservância individual do cuidado necessário ao

exercício de uma atividade, cuja imputabilidade penal dependerá do conhecimento

concreto das circunstâncias fáticas e da existência de regulamentação específica desta

atividade. É essencialmente um apelo para que o exercício de qualquer atividade que

envolva um considerável perigo seja desenvolvida de modo mais precavido,

observando-se sempre uma conduta adequada aos riscos da função; sobre esta

“conduta adequada”, afirma Mezger que

“o determinante não são os costumes e hábitos unilaterais de um grupo maisou menos amplo de especiais interessados e participantes, senão aspretensões ordenadas às exigências do tráfego, geralmente observadas,donde cabe o estabelecimento de uma conduta adequada à índole da coisa”35.

33 Tradução livre do autor. No original: “le regole più elementari di prudenza” ALIMENA, B. Obracitada, p.321.

34 Tradução livre do autor. No original: “Praticamente, la prova della colpa trova, dunque, la suabase oggettiva, nella esperienza comune e nell’opinione comune, e la sua base soggettivanell’età, nella capacità, nei particolari doveri di colui che agisce. (…) Nella colpa, dunque,l’uomo è responsabile perché si è servito di un mezzo contrario ai fini della collettività, o, più ingenerale, perché ha avuto una condotta contraria ai fini della collettività: ed il male cagionato èa lui imputabile, appunto perché è prevedibile che quel mezzo, o quella condotta, possa cagionareun male, e, appunto perché è prevedibile che possa cagionarlo, quel mezzo è antigiuridico equella condotta è antigiuridica.” ALIMENA, B. Obra citada, p. 309.

35 Tradução livre do autor. No original: “Esto es aplicable, ante todo, a la existencia del deber. Haynumerosas explotaciones y actividades que llevan en sí aun cuando se desenvuelvan del modomás precavido, un cierto y con frecuencia, considerable peligro.(…) Tales conductas non estánprohibidas; el tráfico (en ele sentido más general) permite aquí un cierto riesgo (FRANK). Portal causa, estas conductas peligrosas no pueden, sin más trámites, constituir la base de unaresponsabilidad a título de culpa. No existe ele deber de evitar el peligro como tal, de un modogenérico. Antes bien, sólo pude admitir-se una conducta culpable cuando en el ejercicioindividual de actividad de que se trate se descuida por ele agente la atención y cuidado que tiene

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15Com a ressalva que faz Roxin, de que se “produz a impressão de que o delito

comissivo imprudente consistiria na omissão de um cuidado devido, o que sugere sua

interpretação errônea como um delito de omissão. Entretanto, ao sujeito não se reprova

haver omitido algo, senão ter criado um perigo amparado por risco permitido e

abrangido pelo fim de proteção do tipo, que se realizou num resultado típico.”36

Neste tipo de crime, parte-se de uma reprimenda menor por parte do legislador

do que no crime doloso, pelo fato de que mesmo sendo prevista como possível a

realização do evento típico, o agente, levianamente, ou acredita que o resultado não se

dará, ou tem esperança de evitá-lo; de modo que podemos afirmar que no âmbito do

crime culposo temos primordialmente uma conduta “descuidada”, cujo resultado

poderia ser perfeitamente evitado caso fosse seguido o supracitado dever objetivo de

cuidado.

el deber de desplegar. Una vez afirmada la existencia de un deber, su extensión objetiva seenjuiciará con arreglo a las especiales circunstancias. Se espera fundamentalmente del sujeto,como dice el parágrafo 276 del Código Civil, ‘el cuidado que el tráfico exige’. Lo determinanteno son las costumbres y hábitos unilaterales de un círculo más o menos amplio de especialesinteresados y participantes, sino las pretensiones que con arreglo a las exigencias del tráfico,generalmente observadas, cabe establecer en una conducta adecuada a la índole de la cosa. (…)Mas si se ha satisfecho el deber de cuidado objetivamente exigido, habrá que negar el carácterculposo de la conducta.” [grifo nosso] MEZGER, Edmund. Tratado de Derecho Penal, p. 182-184.

36 Tradução livre do autor. No original: “El elemento de la infracción del deber de cuidado noconduce más allá que los criterios generales de imputación. Es más vago que éstos y por tantoprescindible. En rigor es incluso ‘erróneo desde el punto de vista de la lógica de la norma’, puesproduce la impresión de que el delito comisivo imprudente consistiría en la omisión del cuidadodebido, lo que sugiere su interpretación errónea como un delito de omisión. Sin embargo, alsujeto no se le reprocha el haber omitido algo, sino el haber creado un peligro amparado porriesgo permitido y sí abarcado por el fin de protección del tipo, que se ha realizado en unresultado típico. Jakobs dice con razón: ‘En el ámbito de la comisión no se prescribe v.gr. Elmanejo cuidadoso de cerillas, sino que se prohíbe el manejo descuidado; no existe un deber demanejar’. Además, el fijarse en el deber de cuidado induce a la suposición errónea de que de lainfracción de prohibiciones de puestas en peligro abstractas o de normas de tráfico extralegales(…) se deriva eo ipso una imputación imprudente. Tampoco se pueden separar entre sí, comosucede con tanta frecuencia, la infracción del deber de cuidado y la imputación del resultado,porque los presupuestos de la imputación son idénticos a los de la infracción del deber decuidado.” [grifo nosso] ROXIN, Claus. Derecho Penal, p. 1000.

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164.2 ESPÉCIES DE CULPA

4.2.1 Culpa Inconsciente

É a hipótese da chamada culpa ex ignorantia, culpa inconsciente ou culpa sem

representação que contempla o acontecimento de um resultado típico que deveria ter

sido previsto pelo agente, mas que em função da ausência ou do erro de representação,

não há como imputar-se enquanto prática de crime. Aqui entra em cena outro aspecto

que deve ser analisado pelo julgador, que seria a própria capacidade intelectual do

sujeito ao qual se imputa a prática da conduta típica.

4.2.2 Culpa Consciente

É a culpa consciente ou culpa com representação. Embora tenha sido dito

anteriormente que o nível de representação depende da capacidade intelectiva do

agente em prever a ocorrência do fato danoso naquela situação específica. Seria então

caso em que só se realiza o resultado típico quando o agir está associado a um

“componente de azar”, externo, não previsto mas previsível, que produz um fato típico

não buscado pelo autor, mas que poderia ser evitado caso fosse observado o dever de

cuidado objetivo.

Uma questão bastante polêmica na obra de Welzel37, é a que trata da questão de

tomar como princípio metodológico um hipotético “homem inteligente e prudente,

colocado na situação do autor” como referência para a imputação dos delitos culposos;

ao que nos parece ser mais uma imprecisão terminológica do que propriamente um

erro de avaliação. Ressalte-se ainda que a maioria das tarefas realizadas no âmbito do

relacionamento social quotidiano são objetos de conhecimento empírico geral, como é,

37 WELZEL, H. O Novo Sistema Jurídico-Penal, p. 100.

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17por exemplo, o caso do trânsito em vias públicas. Carrara38, sob esse aspecto, faz uma

importante observação no sentido de que através dessa hipotética “norma da

previsibilidade”, se extrai a possibilidade de conceber também a existência de uma

culpa lata, ou seja, aquela que consiste praticamente numa obviedade que incide

“quando o evento danoso poderia ter sido previsto por qualquer homem”, e segue

exemplificando que para os Romanos, se a partir dos meios escolhidos o resultado já

fosse o razoavelmente esperado39, então não haveria razão de clemência na aplicação

da lei. Sobre o tema é emblemático o exemplo citado por Puppe:

“O homem pensa não apenas através de palavras e enunciados teóricos, mastambém através de imagens expressivas. (…) No caso do índio pataxó, queprovocou tamanha comoção aqui no Brasil, não se pode acreditar que osjovens que jogaram um litro de gasolina sobre um índio sem-teto quedormia, para depois incendiá-lo, quisessem ‘apenas assustá-lo’. Homensjovens sabem o que é gasolina, e sabem o que ocorre quando se encharca aroupa de uma pessoa com gasolina e depois acende.”40

Dentro desta mesma linha de raciocínio, Galves41, avança porém no sentido de

identificar o ente jurídico abstrato que surge para o Direito através de uma “inspeção

que parte do homem real ou ontológico para o Homo Juridicus”; pois, para o autor,

“A soma de todos os perfis humanos, ou figuras humanas, de que a ordemjurídica se ocupa – o Direito Romano usou da palavra ‘máscara’ (persona)para designar essas diversas figuras com que o homem real circula na cenajurídica –, junta-se para compor o homem a que o Direito se aplicadiretamente: o Homo Juridicus.”42

Logo: “o homem real deve inspirar as disposições relativas ao homo juridicus, ou seja,

inspirar os dispositivos que o sistema legal aplica a este”; porém, a lógica também se

aplica de maneira reversa neste caso, pois será também este – ontológico – modelo

abstrato do dever-ser, idealizado pelo Direito, e que fornecerá o sentido de aferição ao

– ôntico – homem real. Entretanto, adverte Damásio43, que o legislador exige que se

38 CARRARA, F. Obra citada, p. 93.

39 “Entre os Romanos, estimavam-se as condições subjetivas, em matéria de responsabilidade porculpa nos contratos. (...) é indubitável que quem contratou com indivíduo habitualmentenegligente ou idiota deve culpar, antes de tudo a si mesmo, se o ato do contratante por êleescolhido lhe acarretou dano.” CARRARA, F. Obra citada, p. 94.

40 PUPPE, Ingeborg. Dolo Eventual e Culpa Consciente, p. 1162.

41 GALVES, Carlos Nicolau. Manual de Filosofia do Direito, p. 3-4.

42 GALVES, C. N. Obra citada, idem.

43 JESUS, D. E. de. Obra citada, p. 292-293.

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18preveja [apenas] o que normalmente pode acontecer (…) não que preveja o

extraordinário, o excepcional”. Zaffaroni também afirma que

“dentro das limitações do conhecimento científico atual, há umconhecimento técnico das leis e da causalidade – patrimônio de poucos – eum conhecimento leigo paralelo, de que todos dispomos e que nos permiterealizar atos de vontade sem atualizá-lo. Seja lá como for, este conhecimentodo objeto sobre o qual nos propusemos a atuar, e das circunstâncias quecercam a nossa conduta, são adquiridos por diversos atos de conhecimento, eeste último, guia a nossa vontade. De modo que, todo ato de vontadepressupõe também atos de conhecimento.”44

Partindo da noção de culpa lata, trazida por Carrara, provavelmente tenhamos

encontrado o paralelo mais correto do que se espera do homem médio de Welzel;

porém, no caso, assiste ainda razão à Beling quando adverte que no caso concreto se

deve adotar, com mais justiça, a própria condição intelectual e cultural do sujeito ativo

em prever o resultado típico ou a antijuridicidade de sua conduta.

“Corresponde à reprovação de negligência o que há procedido sem cuidado,enquanto que do complexo de representações que teve, houvera podido edevido alcançar a representação total, através da qual, deveria fazê-loapartar-se de sua ação. Este ‘poder’ baseia-se na capacidade pessoal dosujeito concreto (não basta que o pudesse prever um ‘homem médio’.”45

Em resumo, eis o que poderíamos chamar, mutatis mutandis, de “elemento

subjetivo” da culpa stricto sensu, pois a imputação do fato depende da capacidade

subjetiva de representação do agente perante as consequências possíveis de sua ação.

44 Tradução livre do autor. No original: “dentro de las limitaciones del conocimiento científicoactual, hay un conocimiento técnico de las leyes de la causalidad – patrimonio de pocos – y unconocimiento lego paralelo, del que todos disponemos y que nos permite realizar actos devoluntad sin actualizarlo. De cualquier manera, este conocimiento, así como el conocimiento delobjeto sobre el que nos proponemos actuar y de las circunstancias que rodean nuestra conducta,son adquiridos por actos diversos de conocimiento y éste guía nuestra voluntad. Por onde, todoacto de voluntad presupone actos de conocimiento.” ZAFFARONI, E. R. Obra citada, p. 74.

45 Tradução livre do autor. No original: “Corresponde el reproche de negligencia al que haprocedido sin cuidado, en cuanto del complejo de representaciones que él tuvo, hubiera podido ydebido alcanzar a la representación total, que lo habría debido apartar de su acción. Este‘poder’ se basa en la capacidad personal del sujeto concreto (no basta que hubiese podido un‘hombre medio’).” BELING, E. von. Obra citada, p. 72.

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5. DEFINIÇÃO DE DOLO

No Direito Romano, a palavra dolus, já trazia em si a significação pejorativa de

voluntas sceleris, ou seja, uma espécie de vileza no agir, aplicada como o artifício

intelectual do indivíduo predisposto a prática do mal através do engano, oposta ao

sentido de violência física, “vis”. Com o advento do direito canônico na Idade Média,

o dolus, ganhou também sinonímia com palavras como iniquo animo, voluntas,

malitia e industria; e junto a esse refinamento de linguagem, houve também a

percepção da necessidade de se introduzir esse aspecto subjetivo do agente na

formulação legal, passando-se então a “diferenciar a pena dos crimes cometidos

intencionalmente, daqueles decorrentes da negligência, imprudência ou imperícia”.46

A grande inovação nesta área viria apenas ao final do século XIX, desenvolvida

pela escola causalista, especialmente através do chamado sistema Liszt-Beling. Em sua

esquematização, o injusto penal era bifásico: por um lado, uma fase objetiva, que

tratava a conduta como um mero acontecer causal no mundo físico; complementado

por uma fase subjetiva, marcada pela análise psíquica do agente que atribuía à

culpabilidade o dolo ou a culpa. Neste sistema no qual a própria tipicidade já

pressupunha a antijuridicidade. Como bem esclarece Zaffaroni, “o injusto abarcava

toda a causação física, enquanto a culpabilidade, eminentemente subjetiva, consistia na

causação psíquica. Concebeu-se, daí, a culpabilidade como uma relação psicológica

entre a conduta e o resultado.”47 Acreditava-se então que a própria tipicidade da

46 Tradução livre do autor. No original: “La volontà diretta ad un delitto si suol chiamare ‘voluntassceleris’, o più semplicemente ‘dolo’. La parola ‘dolus’, da δέλεχρ, esca – fu, nell’antico dirittoprivato romano, assunta nel significato do ‘inganno artificioso’, e come contraposta a ‘vis’, cheindicava la ‘violenza’. Poi, poco a poco, l’antitesi sparì; e la parola ‘dolus’ stette ad indicare,genericamente, ogni intenzione rivolta al delitto; mentre nascevano le formule pleonasticheantichissime: ‘dolo malo’, ‘sciens dolo malo’. (…) E nel diritto intermedio, la volontà vennerichiesta ed espressa con gran lusso di espressioni diverse: (…) ‘iniquo animo’, ‘pro illecitapresuptione’, ‘malitiose, ‘fraudolenter’, ‘dolose’, ‘pro conludio’, ‘pro peccatis’, ‘ingeniose’, ‘sesciens’; e poi ‘pensate’, ‘appensate’, ‘ex proposito’, ‘studiose’, ‘tractatim’, ‘meditate’. (…) Neldiritto canonico, il dolo era espresso con le parole: ‘dolus’, ‘voluntas’, ‘sciens’, ‘malitia’,‘scienter’, ‘studium’. ‘industria’. E le pene erano diverse, secondo che il danno fosse dovuto avolontà, ovvero ad imprudenza o a negligenza.” ALIMENA, B. Obra citada, p. 292-295.

47 Tradução livre do autor. No original: “Este sistema se caracterizaba por la gran influencia quesobre él ejercía el pensamiento filosófico positivista. En general, se regía por el ya criticadoprincipio sistemático ‘objetivo-subjetivo’: el injusto objetivo y la culpabilidad subjetiva. La

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20conduta já pressupunha a antijuridicidade, ou seja, era a sua ratio essendi. Esta foi a

posição adotada pelo legislador do Código Penal brasileiro de 1940.

Haviam porém inúmeras discussões doutrinárias que levantavam a insuficiência

técnica do causalismo em sua aplicação prática. Mayer, por exemplo, anuncia em 1915

que “a tipicidade é o mais importante fundamento cognoscitivo da antijuridicidade,

comportando-se, a seu respeito, como a fumaça e o fogo”48. Só com o

desenvolvimento da doutrina finalista de Welzel no início do século XX, porém, essa

mudança de paradigmática da tipicidade como ratio cognoscendi da antijuridicidade,

viria a prosperar de fato. Como esclarece Zaffaroni:

“mantendo separada a antijuridicidade (que é um juízo de desvalor) datipicidade (que é seu objeto), se esclarece o conceito de deito, sempre quelevemos em conta que a primeira constitui o indício que nos permiteaveriguar a segunda: enquanto o tipo é a descrição particularizada de umaconduta proibida, a tipicidade é a adequação ou subsunção de uma condutaconcreta com a sua particularizada descrição legal, e antijuridicidade é acontradição da realização dessa conduta proibida em relação ao ordenamentojurídico. A solução de um caso penal começa com a subsunção de umaconduta real sob as características do tipo penalmente anteposto que faz ocaso. Em consequência, dele se provará se a antijuridicidade da conduta estáexcluída por [alguma] causa de justificação.”49

conducta, a la que se privaba de la finalidad, estaba convertida en un acontecer causal. Lavoluntad era una capacidad de ‘inervación muscular’. El tipo abarcaba la exterioridad de laconducta, porque prescindía de cualquier elemento subjetivo. La antijuridicidad era objetiva, enel sentido de que recaía sobre esta exterioridad de la conducta, y era señalada por Liszt(concepción material) como una dañosidad social. El injusto abarcaba así toda la causaciónfísica, en tanto que la culpabilidad, eminentemente subjetiva, consistía en la causación psíquica.De allí que se concibiera a la culpabilidad como una relación psicológica entre la conducta y elresultado (teoría psicológica de la culpabilidad). Este sistema está fundamentalmente expuestoen las obras de Liszt y Beling, al punto de que los autores contemporáneos lo mencionan por elnombre de éstos” [grifo nosso] ZAFARONNI, E. R., Obra citada, p. 32.

48 Tradução livre do autor. No original: “Consideramos a testa teoría la más acertada, por lasrazones que expondremos en el capítulo siguiente. Si bien no fue Beling negador de esta teoría,fue M. E. Mayer quien la enunció en 1915, al precisar las relaciones del tipo con laantijuridicidad. Según esta teoría, la tipicidad ‘es el más importante fundamento cognoscitivo dela antijuridicidad’, comportándose a su respecto como el humo y el fuego (‘Sie verhalten sich wieRauch und Feuer’) [grifo nosso] ZAFARONNI, E. R., Obra citada, p. 213.

49 Tradução livre do autor. No original: “‘Manteniendo separada a la antijuridicidad (que es unjuicio de desvalor) de la tipicidad (que es su objeto), se aclara el concepto de delito, siempre quetomemos en cuenta que la primera constituye el indicio que nos permite averiguar la segunda: entanto que el tipo es la descripción particularizada de una conducta prohibida, la tipicidad es laadecuación o subsunción de una conducta concreta con la particularizada descripción legal, yantijuridicidad es la contradicción de la realización de esa conducta prohibida con elordenamiento jurídico’-. ‘La solución de un caso penal comienza con la subsunción de unaconducta real bajo las características del tipo penalmente antepuesto que hace al caso. Enconsecuencia, de ello se probará si la antijuridicidad de la conducta típica está excluida por

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As mudanças propostas por esta escola são significativas e abalam a estrutura do tipo

penal aceito até então, transformando-o no sistema trifásico, onde a finalidade da

conduta assume uma condição fundamental para adequação típica. Zaffaroni, é um

defensor da teoria finalista e de sua aplicação prática, pois, para ele,

“esta sistemática foi aperfeiçoada por Welzel, o qual, sustentando um critériotripartido, afirma que o dolo pertence ao tipo subjetivo, a independência daantijuridicidade e a possibilidade de compreensão da antijuridicidadepertencente a culpabilidade, ou seja, separada do dolo. (…) A teoria finalistaparte do fundamento de que não existe um conceito jurídico-penal de ação, anão ser que aquela que se identifica com o conceito ôntico-ontológico.”50

Uma das principais consequências da adoção da finalidade da conduta, ou

conceito ôntico-ontológico, como cerne da adequação típica, provocou o protesto de

Beling, em 1930, no sentido de não mais aceitar o dolo com aquela antiga conotação

vil do agir, de caráter genérico, que poderia ser aplicada a toda e qualquer situação da

vida; mas, agora entendendo-o no sentido de que cada tipo penal deveria ter a sua

própria previsão de dolo, havendo, nas palavras do doutrinador alemão, “tantos ‘dolus’

quanto houverem tipos penais.”51 A mudança, porém, seria irreversível. Esse é o

causas de justificación’” ZAFARONNI, E. R., Idem, ibidem.

50 Tradução livre do autor. No original: “Esta sistemática es perfeccionada por Welzel, quiensosteniendo un criterio tripartito afirma la pertenencia del dolo al tipo subjetivo, laindependencia de la antijuridicidad y la pertenencia de la posibilidad de comprensión de laantijuridicidad a la culpabilidad, o sea, separada del dolo (concepto que ya habían sostenidootros autores, que aún cuando considerasen al dolo en la culpabilidad, lo hacíanseparadamente). Welzel fue puliendo su teoría, particularmente en lo que a la estructura del tipoculposo se refiere y sus máximas exposiciones de conjunto se hallan en su Das DeutscheStrafrecht (El derecho penal alemán, última edición, 1969) y Das neue Bild des Strafrechtssystem(La nueva imagen del sistema del derecho penal) (…) La teoría finalista parte de la base de queno existe un concepto jurídico-penal de acción, sino que, este pretendido concepto y el óntico-ontológico se identifican.” ZAFARONNI, E. R., Obra citada, p. 33.

51 Tradução livre do autor. No original: “Este paso lo ha dado el actual Derecho Penal: todas lasleyes penales construyen las figuras delictivas de tal modo que el tipo de ilicitud que se enclavael ellas debe ser también correlativamente culpable (Mezger: ‘valoración paralela’) en otraspalabras: el delito-tipo es precisamente el ‘esquema rector’ común para la faz objetiva y para lasubjetiva del hecho. Con ello el dolus pierde también su unidad interna. Hay ahora tantos ‘doli’ como delito-tipos. No se puede decir de nadie que ‘haya tenido dolo’; sólo sirven los contenidosdolosos especializados: el dirigido a ‘matar a un hombre’, a ‘substraer una cosa mueble ajena’,etc. Lo mismo pasa con la culpa.” [grifo nosso] BELING, E. von. Obra citada, p. 72.

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22entendimento adotado pelo legislador brasileiro, incluído pela Lei n.º 7.209 de 1984,

que alterou o paradigma do Código Penal, e que permanece vigente até os dias de hoje.

Se existem, porém, diversas espécies de dolo, individualizados nas condutas

tipificadas no rol taxativo da lei penal, por outro lado, a lei não faz expressamente

nenhuma distinção prática sobre as suas modalidades, unido-as sob a condição de

“crime doloso”. É o que defende, por exemplo, Sancinetti, ao afirmar que “o dolo

eventual não é nem mais nem menos grave do que o dolo direto”, pois, para o autor

argentino, “a circunstância da decisão de agir contra o bem jurídico, de nenhum modo

tem que ser, necessariamente, de menor gravidade, no dolo eventual”52. E com razão,

fundamenta:

“precisamente porque o ilícito não pode desvalorar a ‘má intenção’ em si,pelo fato de que o propósito da proibição é a proteção de bens jurídicos, nãopode ser, pelo mero fato de ser direto, que um dolo seja mais grave – desteponto de vista – do que outro ‘meramente’ eventual. Esta diferença demotivação do autor que toma a decisão contra o objeto do bem jurídico, nãodeveria exercer nenhum papel no âmbito do ilícito; onde, somente pode serrelevante, a consciência sobre o grau de afetação do bem jurídico, em simesmo.”53

No caso do dolo eventual, basta que haja a razoável previsão de que os meios

escolhidos estejam impregnados deste componente de antinormatividade, ao expor ou

afetar injustificadamente bens jurídicos alheios. A questão da previsibilidade, também

merce destaque a posição de Luna, no sentido de não se fazer distinção entre as

modalidades de dolo, pois, “quem conhece o resultado futuro ‘morte de alguém’, e age

para alcançar o resultado conhecido ou previsto, evidentemente conhece a ação que

52 Tradução livre do autor. No original: “tengo para mí que el postulado de que el dolo eventual esmenos grave, desde el punto de vista del ilícito, carece de todo fundamento. El dolo eventual noes, en lo que se refiere a la consciencia de afectación, ni más ni menos grave que el dolo directo,y, en esta medida, el dolo directo no puede ser ‘más grave’, precisamente por la circunstancia deque la decisión de acción contra el bien jurídico, de ningún modo tiene que ser, necesariamente,de menor gravedad, en el dolo eventual.” SANCINETTI, Marcelo A. Teoría del Delito y Disvalorde Acción, p. 151.

53 Tradução livre do autor. No original: “precisamente porque el ilícito no puede desvalorar la‘mala intención’ en sí, sino que el propósito de la prohibición es la protección de bienes jurídicos,no puede ser que, por el mero hecho de ser directo, un dolo sea más grave – desde ese punto devista – que otro ‘meramente’ eventual. Esta diferencia de motivación en el autor que toma ladecisión contra el objeto de bien jurídico, no tendría que cumplir ningún papel en el ámbito delilícito; aquí solo puede ser relevante la consciencia sobre el grado de afectación del bienjurídico, en sí misma.” SANCINETTI, M. A. Obra citada, p. 154.

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23conduz a esse resultado, ou seja, a ação de matar”54; ao que conclui com maestria: “em

síntese: o conhecimento do resultado pressupõe o conhecimento da ação. O agente

deve conhecer também a sucessão causal entre a ação e o resultado.”55 Assim também

é para Frister, pois, para o autor, “o ilícito doloso se caracteriza pela decisão consciente

do autor a favor do acontecer descrito no tipo objetivo”56. Nesse contexto, basta que o

agente empreenda a ação através de uma decisão consciente em favor do resultado

proibido, para que ela seja percebida pelo julgador como dolosa. Trata-se, portanto, de

uma exigência individual de previsão – e de não-realização – dos resultados típicos

concomitantes àquela ação empreendida.

Essa visão mais atual do dolo enquanto elemento subjetivo do tipo, impõe ao

agente, a reflexão sobre os riscos de seu agir e conscientemente evitar o resultado

proibido de modo objetivo, demonstrando, através da conduta, que não estava agindo a

favor do acontecer previsto na porção objetiva do tipo penal. Caso contrário, poderá

ser demandado em função de sua condição de ser inteligente, capaz de realizar a

antecipação biocibernética de meios e fins.

Segue, a título de resumo, a explanação de Alimena:

“Considerado em seu conteúdo [o dolo] dirige-se a um evento, às vezesdiretamente desejado, e consequentemente tido como certo; às vezes dirigidoa um evento não diretamente desejado mas previsto apenas como possível.Tudo isso é evidente, posto que tanto faz querer um evento, quanto saber queo causamos ou que possamos causá-lo. De onde conclui-se que dolo, é tantoa vontade direcionada a um evento, bem como a representação de um eventodo qual a vontade não se desvia.”57

54 LUNA, Everardo da Cunha. Capítulos de Direito Penal, p. 234-235.

55 LUNA, Everardo da Cunha. Idem, ibidem.

56 Tradução livre do autor. No original: “El ilícito de un delito doloso de caracteriza por la decisiónconsciente del autor en favor del acontecer descripto en el tipo objetivo.” FRISTER, Helmut.Derecho Penal. Parte General, p. 219.

57 Tradução livre do autor. No original: “Considerato, ancora, nel suo contenuto, esso, alle volte, sirivolge ad un evento direttamente voluto, e quindi preveduto come certo; e, alle volte, si rivolgead un evento non direttamente voluto, e quindi preveduto soltanto come possibile. E tutto questo èevidente, poiché tanto è volere un evento quanto è sapere che lo cagionano, o che possiamocagionarlo. Onde bisogna concludere che è dolo così la volontà diretta ad un evento, come larappresentazione di un evento da cui la volontà non rifugge.” ALIMENA, B. Obra citada, p. 295.

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245.1 ELEMENTOS DO DOLO

É requisito indispensável para a imputação, a presença de um componente

psicológico da conduta, através do qual o comportamento proibido descrito no tipo

objetivo encontra sua projeção simétrica na porção subjetiva do tipo penal. Exige-se,

para tanto, que o autor do fato típico, tenha tido consciência e vontade dirigidas à

produção daquele resultado proibido. Como assegura Marques, “a conjugação do

momento intelectivo ao volitivo é imprescindível. Como disse Maggiore: ‘a previsão

sem a vontade é vazia, e a vontade sem a previsão é cega: o direito não pode prescindir

nem de uma nem de outra.”58

5.1.1 Elemento Cognoscitivo

Como já foi visto, não existe “vontade vazia”, posto que a vontade pressupõe

um determinado conhecimento prévio daquilo que se quer ou deseja. Importa que “o

conhecimento deve ser atual, ou seja, deve dar-se no momento da ação”59, como

esclarece Fragoso. Para Frank, rege o princípio de que “ao dolo pertence à consciência

de que a ação se dirige contra aquele interesse (bem jurídico) ou contra aquele dever

específico de cuidado, mediante cuja lesão ou colocação em perigo realiza

objetivamente o tipo”60.

Essa exigência de uma cognição atual das circunstâncias e das implicações

antijurídicas (diretas, necessárias ou eventuais) da conduta, é mensurada no trabalho

58 MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal, p. 225.

59 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, p. 210.

60 Tradução livre do autor. No original: “Según FRANK, debe regir este princípio básico: al dolopertenece la conciencia de que la acción se dirige contra aquel interés (bien jurídico) o contraaquel especial deber mediante cuya lesión o puesta en peligro se realiza objetivamente el tipo externo. El autor debe, en consecuencia, conocer, v.gr., el derecho ajeno (parágrafos242,246,263, 289, 292 del Código penal), o la posición jurídica ajena (parágrafo 172 de Códigopenal) contra la que actúa, o la pertenencia a un especial círculo de deberes (verbigracia,cualidad de funcionario).” [grifo nosso] FRANK apud MEZGER, E. Obra citada, p. 136.

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25de adequação típica, através de um juízo de dedução e de atribuição, obtido através do

critério da “valoração paralela na esfera do leigo”61; como bem resume Noronha:

“Mezger diz que a consciência da antijuridicidade é o conhecimento profanodo caráter proibido do ato. Asúa, repetindo êsses dizeres, lembra-nos quesabemos o que seja um automóvel sem conhecermos mecânica, o que sejapneumonia sem conhecermos medicina; logo devemos saber o que éantijurídico sem conhecermos o direito.”62

Damásio exemplifica que “no caso do crime de furto (art. 155), é

imprescindível que o sujeito saiba que a coisa móvel é ‘alheia’. Se não conhece a

qualidade da coisa ou tem uma falsa apreciação sobre ela, fica afastado o dolo e, por

consequência, o próprio fato típico”63; ou seja, fica evidente que não se precisa saber a

quem pertence, por direito, a coisa subtraída, basta ter o conhecimento da sua

alienidade.

5.1.2 Elemento Volitivo

Para haver o elemento subjetivo do tipo, exige-se também o componente da

vontade que impulsiona a realização da conduta típica, pois, como diz Damásio, “sem

análise do conteúdo da vontade (…) se eu vejo um homem, empregando um fuzil,

atirar em outro, matando-o pela simples apreciação objetiva não posso dizer qual é o

tipo penal realizado”64.

Sancinetti o define como a “vontade de realização do tipo”, que ocorre quando

“o autor decide atuar diante da consciência desta possibilidade [de realizar o tipo], ante

61 Tradução livre do autor. No original: “el actuar doloso exige, según el párrafo primero delparágrafo 59 del Código, el conocimiento de las diversas características del tipo, por tanto,cuando se trate de características típicas normativas, el conocimiento de su significación. Perodel profano en Derecho no puede exigirse además de ello una subsunción formal de los hechosbajo la ley. Pero si, ciertamente, es necesario en orden a tal conocimiento de la significación, unavaluación paralela del autor en la esfera del profano, o dicho más claramente: una apreciación dela característica del tipo en el círculo de pensamientos de la persona individual y en el ámbito delautor, que marche en la misma dirección y sentido que la valoración legal-judicial”. [grifo nosso]MEZGER, E. Obra citada, p. 136-137.

62 NORONHA, M. Obra citada, p. 156.

63 JESUS, D. E. de. Obra citada, p. 284.

64 JESUS, D. E. de. Obra citada, p. 233-234.

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26ao conjunto de circunstâncias que, segundo a norma (do delito doloso), motivam a

proibição desta decisão.”65

Ao Direito Penal importa verificar a existência desta “vontade incondicionada”

ou “vontade decidida” de realização da conduta típica na conduta do agente, pois

“surgem daí diversas espécies de dolo”66. Faz-se necessário distinguir, no entanto, que

não exige-se uma vontade ponderada ou refletida, pois o agente pode, por exemplo,

atuar dolosamente sob o domínio de violenta emoção, e nem por isso tal conduta

deixará de ser dolosa, por mais que sobrevenha ao agente um posterior

arrependimento.

5.2 ESPÉCIES DE DOLO

Para descrever as três as espécies de dolo, nos socorremos ao magistério de

Hungria. A primeira, é o dolo direto, quando “a vontade se exerce por causa do

resultado”67, logo o resultado buscado é justamente aquele proibido pela norma penal.

A distinção se dá apenas entre as consequências da ação, se diretamente desejadas

(dolo direto de 1.º grau), ou, concomitantes à produção do resultado típico buscado

(dolo direto de 2.º grau).

No dolo eventual – terceira espécie de dolo – a vontade, “dirigindo-se a certo

resultado, não recua ou não foge” dele, de modo que, o próprio agente cria a situação

propensa à realização do resultado típico, e “consentindo no seu advento, não pode

haver dúvida que esse outro resultado entra na órbita da vontade do agente, embora de

modo secundário ou mediato”68.

65 Tradução livre do autor. No original: “Voluntad de realización del tipo hay, pues, toda vez que elautor se decide a actuar ante la consciencia de esa posibilidad, ante el conjunto decircunstancias que, según la norma (del delito doloso), motivan la prohibición de esa decisión.”SANCINETTI, M. A. Obra citada, p. 210.

66 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Obra citada, p. 211.

67 HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Cláudio Heleno. Comentários ao Código Penal, vol. 1, tomo 2,p. 115-116.

68 HUNGRIA, N.; F., Idem, Ibidem.

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275.2.1 Dolo Direto de consequências diretas e necessárias

Ambas as hipóteses estão abrangidas no artigo 18, inc. I, do Código Penal

pátrio, ao descrever a situação de “quando o agente quis o resultado”. A primeira

situação ocorre quando o “resultado intencional da ação é dolosamente desejado” pelo

autor e por isso este é chamado de dolus directus. É sem dúvida, o conteúdo subjetivo

de mais fácil aferição através da conduta já que o sujeito orienta suas ações

imediatamente ao fim típico proibido e por isso é também chamado de dolo imediato,

ou, ainda, dolo direto de primeiro grau, pois representa o grau mais alto de reprovação

social da conduta, vez que do ponto de vista psicológico, a intenção do agente não é

outra senão o próprio agere contra verba legis, atacando diretamente de maneira

consciente e voluntária o bem jurídico penalmente tutelado.

Na segunda situação, embora a finalidade da ação esteja dirigida de modo direto

a busca do resultado, o autor prevê que para atingir o seu objetivo primeiro,

necessariamente deverá também produzir outros resultados típicos colaterais, não

queridos, mas aceitos. Em outras palavras, podemos dizer que nesta hipótese de dolo,

o agente se conforma com a produção de causalidades típicas concomitantes à ação

empreendida, para que uma finalidade direta possa ser alcançada.

5.2.2 Dolo Indireto ou de consequências eventuais

O dolo eventual distingue-se do direto, como explica Zafaroni, “quando nos

deparamos com a produção de um resultado concomitante, que, enquanto possível, foi

abarcado pela vontade realizadora”69. É o tipo de dolo no qual o sujeito cria uma

situação de risco antijurídico de modo que a apenas a produção do resultado depende

da eventualidade e de condições incertas e alheias ao seu controle. É agir voluntária e

69 Tradução livre do autor. No original: “Cuando nos encontremos con la producción de unresultado típico concomitante que como posible fue abarcado por la voluntad realizadora, setratará de dolo eventual. Cuando la finalidad se dirija directamente a la producción del fin típicohabrá dolo directo.” [grifo nosso] ZAFFARONI, E. R. Obra citada, p. 87.

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28conscientemente, porém legando a superveniência do resultado à sorte, por mais que

não o deseje diretamente; nesta situação dolosamente criada pelo agente, resta-lhe

apenas “torcer” para que não se realize o conteúdo proibido pelo típico penal.

Do ponto de vista legal, acompanhamos a advertência de Noronha, de “Na

oração que enuncia o dolo, acha-se compreendido na expressão ‘ou assumiu o risco de

produzi-lo’. Para o Código, querer um resultado ou assumir o risco de causá-lo são

situações equivalentes. Equiparou-as”70; sob esse aspecto é incorreto tratar o dolo

eventual de maneira diversa do dolo direto, pois formam uma unidade típica. Hungria

e Fragoso, nos seus Comentários, vão em sentido oposto, ao afirmar que o “Código

equipara as duas species, sob o ponto de vista da integração do crime; mas, no tocante

à gradação da pena in concreto, cumpre reconhecer que o dolo eventual é um minus de

intensidade em relação ao dolo direto.”71 Trata-se de respeitável posição doutrinária,

porém, que não encontra respaldo no texto expresso da lei. É mister observar que o

próprio legislador tratou de classificar apenas duas categorias de crime: dolosas e

culposas, não fazendo tal gradação de culpas. Ainda sobre os crimes de culpa ou dolo

eventual, lembremos que impôs-lhes o mesmo legislador uma importante diferença de

pena, demonstrando desde logo a distinção que fazia entre os dois institutos; apesar

dos esforços – também doutrinários – em apontar apenas uma “linha tênue” à separá-

los, quase como se fossem conceitos “siameses”.

Diferente do que pensa Ferri, para ele, quem age com dolo eventual representa a

mais perigosa categoria de indivíduos, pois são os que produzem eventos danosos

devido a um grave defeito de sensibilidade moral, marcado pela falta de respeito pelas

condições de existência das demais pessoas, citando como exemplo, “os motoristas

que, para satisfazer a própria obsessão por velocidade, conduzem um carro em

velocidade fantástica, inclusive em ruas movimentadas”; diz o autor italiano:

“pode-se dizer que se trata de casos de ‘dolo eventual’ (...) na medida em quese verifica uma condição psicológica pela qual a idéia do evento danoso seapresenta na mente de quem age, mas, apesar disso, mesmo não querendo oresultado, o sujeito não retrocede em sua conduta, precisamente em razão deum defeito de sensibilidade moral e disciplina social”72

70 NORONHA, M. Obra citada, p. 157.

71 HUNGRIA, N.; FRAGOSO, C. H. Obra citada, p. 172.

72 FERRI, Enrico. Delinqüente e Responsabilidade Penal, p. 110.

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29Para que seja imputada, porém, a forma mais grave de punibilidade ao autor,

através do dolo eventual, faz-se necessário seguir a orientação de Mezger, no sentido

de exigir-lhe também um “alto grau de possibilidade representada”73 através da

consciência subjetiva da probabilidade concreta de que suas ações possam causar um

resultado típico. Trata-se, portanto, de uma séria representação de perigo, diante da

qual, o agente insiste em não interromper sua ação. Como esclarece Fragoso, “Não

basta, portanto, a dúvida, ou seja, a incerteza a respeito de certo evento, sem

implicação de natureza volitiva”74. No mesmo entendimento, segue Pacelli, ao destacar

a importância da volição demonstrada através da atitude indiferente do sujeito perante

bens jurídicos alheios, pois insiste em agir apesar da representação do perigo. Para ele,

“o dolo eventual não se consubstancia pela mera possibilidade,probabilidade ou necessidade do resultado, mas por uma representação dessapossibilidade somada a uma atitude do sujeito diante dessa representação,que aqui é compreendida pela atitude de indiferença”75

Indo além do já exposto, destaca-se ainda a posição de Roxin, que de maneira

perspicaz, é favorável a concatenar aspectos relevantes de outras teorias para compor

um quadro mais preciso da facie subjetiva do agente. O autor alemão é claro ao

afirmar que nesta análise é inevitável que reste uma margem de “insegurança

residual”, e, por isso insiste no conhecimento “da magnitude do perigo real e das

circunstâncias em que se encontrava o sujeito; mas, também é preciso ir mais além, e

observar, por exemplo, os fatores indiciários do aspecto volitivo como a habitualidade

do comportamento perigoso e os esforços de evitação empreendidos”76; e ainda, –

baseado na teoria de Herzberg – realizar a ponderação objetiva dos riscos

“assegurados” ou “não-cobertos” pelo agente, quando da prática de sua conduta. O

73 Tradução livre do autor. No original: “Lo característico de este grupo es que hace depender lacolocación de la conducta en la forma más grave de la culpabilidad, en el dolo, del alto grado dela posibilidad representada, por consiguiente, de la probabilidad (representada) del resultado.”[grifo nosso] MEZGER, E. Obra citada, p. 157.

74 FRAGOSO, H. C. Obra citada, p. 212.

75 PACELLI, Eugênio; CALLEGARI, André. Manual de Direito Penal, p. 274.

76 Tradução livre do autor. No original: “La magnitud del peligro conocido y la circunstancia de siel sujeto tenía, desde su posición, algún motivo para conformarse con el resultado desempeñaranel papel más importante al respecto; otros criterios con la habituación al riesgo, los esfuerzos deevitación y la cobertura o aseguramiento poseen una trascendencia más indiciaria para lavalidación del peligro”. [grifo nosso] HERZBERG apud ROXIN. Obra citada, p. 447.

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30próprio Herzberg faz uma formulação de extrema utilidade à discussão em tela: “Não

interessa se o autor levou a sério um perigo por ele reconhecido, mas sim se ele

reconheceu um perigo que deveria ser levado a sério”77.

77 HERZBERG apud PUPPE, Obra citada, p. 1162.

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31

6. DISTINÇÃO ENTRE DOLO E CULPA CONSCIENTE

Foi do próprio Hans Welzel, a advertência de que “delimitar o dolo eventual da

culpa consciente é um dos problemas mais difíceis e discutidos em Direito Penal”78. É

questão revestida de grande importância prática, como adverte Beleza, pois “em

relação à grande maioria dos crimes, qualificar uma certa situação mental do seu

agente como dolo ou negligência significa normalmente escolher entre punibilidade e

a impunidade”.79

Luna destaca que “ao contrário da culpa, cujo conceito se fundamentou na lei

civil, o conceito de dolo construiu-se na lei penal dentro das XII Tábuas romanas”80,

sendo, portanto, institutos diversos desde o seu nascimento no campo jurídico. Grande

parte da dificuldade que se apresenta em sua aplicação prática está relacionada a

imprecisão terminológica do legislador, que descreveu o ato doloso de assumir o risco

como conceito que pode ser facilmente confundido com o mero agir de maneira

negligente ou imprudente; pois em ambos os casos entende-se que o agente “não quer

o resultado”. Beling, esclarece a essência dos institutos, de forma impecável: “o dolus

significa censurar o autor pelo feito de não haver-se detido ante ao pensamento de

estar agindo antijuridicamente; a culpa, censurar o autor por desconhecer a

antijuridicidade de sua conduta, devendo não havê-la desconhecido.”81 A explicação,

apesar de útil, não é suficiente per se para resolver a questão da aplicação prática.

Welzel oferece uma resposta para o caso, ao afirmar que a adequação típica depende

do critério da “vontade de realização”82 do agente. Logo, para o autor alemão, não

78 Tradução livre do autor. No original: “Delimitar el dolo eventual de la culpa (consciente) es unode los problemas más difíciles y discutidos del Derecho Penal. La razón de esta dificultad está enque el querer es un fenómeno anímico originario-último, que no puede ser reducido a otrosprocesos anímicos – ni emocionales, ni intelectuales – y que por ello solo puede ser circunscritopero no propiamente definido.” [grifo nosso] WELZEL, H. Obra citada, p. 83.

79 BELEZA, Tereza Pizarro. Direito Penal, p. 209.

80 LUNA, E. da C. Capítulos de Direito Penal, p. 195.

81 Tradução livre do autor. No original: “el dolus significa reprochar al autor el hecho de nohaberse detenido ante al pensamiento de estar obrando antijurídicamente; la culpa, reprochar alautor el hecho de desconocer la antijuridicidad de su conducta, debiendo no haberladesconocido.” BELING, E. von. Obra citada, p. 72.

82 Tradução livre do autor. No original: “Sólo respecto a los resultados concomitantes – que non son

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32basta a mera confiança subjetiva na não-produção do resultado; é preciso que esta

confiança encontre relação na realidade, de modo a ser comprovada pelas regras da

ciência ou da experiência prática, não bastando, a mera suposição ou a crença leviana

numa possível – porém improvável – evitação.

Destacamos outra importante afirmação de Welzel, capaz de refinar ainda mais

o entendimento técnico sobre a matéria. Para o autor alemão, o dolo eventual “tem seu

limite no momento em que o autor somente poderá ‘esperar’, porém, não ‘confiar’ que

o resultado não se produza”83. Extrai-se dessa singela afirmação uma das mais

profundas e indiscutíveis distinções aplicáveis às condutas dolosa e culposa. Welzel

entende que, na prática, a diferença se dá pelo controle real sobre a situação que

agente possui no momento em que empreende a ação perigosa.

Assim, haverá dolo eventual, portanto, se após iniciada a conduta houver a

criação de um perigo para o qual o próprio agente não possa mais intervir no acontecer

causal de maneira eficiente, restando-lhe apenas “torcer” para que o fato típico não se

realize. Ilustra-se muito bem a idéia com o exemplo de Andretta, onde o dolo eventual

seria como o “jogar dados com o acontecer causal. A partir do momento em que os

dados são lançados não há mais nenhum controle sobre o resultado, que pode ser

típico, ou não”84. Podemos, de certa forma, ainda relacioná-lo àquela situação em que

o autor perde o domínio sobre o curso causal antinormativo que houvera iniciado.

Metaforicamente, o autor torna-se uma espécie de partícipe em sua própria ação,

exatamente quando deixa de ter controle sobre a continuidade ou a paralisação do fato

delitivo em andamento; ou ainda, mutatis mutandis, é o mesmo que afirmar que o

autor “concorre com si mesmo” quando dá início ao evento de consequências típicas

eventuais, só lhe restando assistir passivamente a realização – ou não – do fato típico

oponível. Em contrapartida, a conduta será culposa apenas se os meios de evitação que

objecto primario de la voluntad de realización, sin sólo entran ella en forma secundaria, en lamedida en que el autor cuenta con su producción – es relevante el criterio de la probabilidadpara el ámbito de la voluntad de realización”. [grifo nosso] WELZEL, H. Obra citada, p. 84.

83 Tradução livre do autor. No original: “tiene su límite en el momento en que el actor sólo podrá‘esperar’ pero no ‘confiar’ que el resultado no se produzca.” WELZEL, H. Idem, ibidem.

84 Anotação de aula.

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33o agente tiver a sua disposição, – e nos quais deposita sua confiança – não se

mostrarem suficientes para impedir a superveniência do resultado típico indesejado.

É necessário, também, um exercício mais profundo de hermenêutica sobre o

texto legal, principalmente em função da significativa diferença de pena imposta em

cada um dos casos previstos em lei. Embora em ambos, o legislador entenda que

tratam-se de condutas penalmente relevantes, nota-se que há por um lado um grave

dolo de perigo contra bem jurídico alheio que deve ser punido de maneira exemplar;

enquanto que, por outro lado, há uma atitude desleixada ou meramente irresponsável,

digna de leve repreensão. Como diz Sancinetti:

“Decorre que a decisão consciente de maior agressividade não deve sertratada com menor pena; em sentido oposto, a decisão consciente de menoragressividade, por pior que seja, tem que ser tratada de maneira maisbenigna. Ao menos deve ser assim no que se refere ao juízo de desvalorsobre a decisão de afetação.”85

É ponto pacífico que toda ação empreendida pelo homem demanda a criação de

um “plano” que lhe anteceda, e assim também é com relação as condutas penalmente

relevantes. Este mesmo pensar prévio que estruturará a conduta delitiva do agente,

será objeto de uma “prognose póstuma”86 por parte de julgador, ou seja, um juízo de

dedução e atribuição “realizado a posteriori de uma causalidade a priori”87,

analisando-se toda a extensão da cadeia causal. Logo, se o dolo é a vontade realizadora

de um resultado típico direto ou eventual, o delito culposo não pode ser explicado a

partir do resultado, porém, deve-se analisar todo o curso causal buscando qual foi a

85 Tradução livre do autor. No original: “sucede que la decisión consciente de una mayoragresividad no debe ser tratada con menor pena; a la inversa, la decisión consciente de menoragresividad, por malvada que sea, tiene que ser tratada más benignamente, al menos debe ser asíen lo que se refiere al juicio de disvalor sobre la decisión de afectación.” SANCINETTI, M. A.Obra citada, p. 154.

86 “o critério da chamada prognose objetiva posterior, sugerido por Max Rümelin, ou, como diz VonLiszt e hoje vem geralmente repetido, o critério da prognose póstuma. O decisivo é o cursonormal da corrente causal que prende a manifestação de vontade do sujeito ao resultado,previsível, não a priori pelo agente, mas ex-post pelo juiz. Para esse juízo hão de ser consideradastodas as circunstâncias que se tenham manifestado na cadeia causal, não só as anteriores econcomitantes ao fato, mas ainda as posteriores ou as que posteriormente foram conhecidas.”[grifo nosso] BRUNO, Aníbal. Obra citada, tomo 1, p. 325-326.

87 Tradução livre do autor. No original: “En rigor, la finalidad (...) no se monta sobre la causalidad,si la entendemos como algo visto a posteriori, sino sobre la causalidad a priori, o sea sobre laprevisión de la causalidad”. ZAFFARONI, E. R. Obra citada, p. 65.

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34“falha de programação”88 biocibernética, condizente ao respectivo dever de cuidado

necessário e esperado que não observada, e por isso deu causa ao resultado proibido

pela norma. Por isso, Lomas faz uma observação sutil, porém muito esclarecedora:

“Os delitos culposos acontecem, não se cometem”89, – atribuindo-lhes um caráter

meramente acidental de existência.

Retomando a questão do dolo, Kaufmann defende sua posição através da

chamada “axiologia radical”, ao afirmar que “para uma teoria final derivada do ilícito,

se deve ‘eliminar integralmente… todos os vestígios do dolus malus’”90, visando a

uma abordagem absolutamente “desvalorada” que se adapta à definição de dolo apenas

como “saber e querer a realização do tipo”91, como fora sugerida por Welzel. Esta

visão é aceita e repetida por Frister, que afirma denominarem-se dolosas inclusive as

“ações neutras ou dignas de elogio”, de modo que para o autor, “alguém pode salvar

dolosamente um homem de morrer afogado, ou ainda desviar seu caminho para dirigir

dolosamente por uma estrada de bela paisagem”92. Assim também a definição de

88 Tradução livre do autor. No original: “El tipo culposo no puede explicarse desde el resultado,puesto que no es ese el modo en que se halla estructurado, pues la conducta culposa es tal en lamedida en que la programación de la causalidad dentro de la finalidad es defectuosa respecto deldeber de cuidado exigido. Desde este ángulo se debe apreciar el defecto de programación” [grifonosso] ZAFFARONI, E. R. Obra citada, p. 393.

89 Tradução livre do autor. No original: “Los delitos culposos se producen, no se cometen” LOMAS,R. A. M. T. Obra citada, p. 192.

90 Tradução livre do autor. No original: “Para una teoría final consecuente del ilícito, por ello, sedebe’eliminar integralmente… todos los vestigios del dolus malus’. Todos los intentos dedelimitar el dolo de la imprudencia consciente con la ayuda de criterios valorativos, se refieren alfin y al cabo a la consciencia de la contrariedad al derecho. Armin Kaufmann ya ha dicho todoacerca de la idoneidad dogmática de estos intentos: desde ‘el momento en que se operó, con lamoderna teoría de la culpabilidad, la distinción entre consciencia del ilícito y dolo como elconocimiento y voluntad de realización del tipo, …no puede tener para el dolo(consecuentemente) …la menor significación, qué actitud tenga el autor frente a la ‘lesión delbien jurídico’ o a la ‘afectación del bien jurídico’.” KAUFMANN apud ZILELINKI, Diethart.Disvalor de Acción y Disvalor de Resultado en el Concepto de Ilícito, p. 189.

91 Tradução livre do autor. No original: “Dolo es el saber y querer la realización del tipo” WELZEL,H. Obra citada, p. 77.

92 Tradução livre do autor. No original: “En el uso general del lenguaje no sólo acciones punibles oreprochables en alguna otra forma son designadas como ‘dolosas’, sino también accionesneutrales o dignas de elogio. Alguien puede salvar a un hombre, p.ej., dolosamente, de morirahogado o conducir dolosamente por un desvío través de un paisaje hermoso.” FRISTER, H.Obra citada, p. 249.

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35Sancinetti, de que o agir doloso, é, simplesmente, “realizar uma ação com tendência a

afetar a vida”93. Como bem exemplifica Frister:

“Assim como o plano de uma boa ação só adquire seu valor através deesforço para transformá-lo em ato (não há nada de bom: a não ser quealguém o faça), assim também, inversamente, o desvalor de um planodelitivo é derivado do fato de que o autor se esforce para realizar esse planoatravés de sua ação. Por isso, o desvalor da motivação de um delito dolosonão se baseia na mera decisão do fato, mas na consciência de realizar umplano delitivo (consciência da realização).”94

Na obra de Lomas, por exemplo, encontramos o destaque à “egoísta

indiferença”95 como fator característico do dolo eventual nos crimes de trânsito.

Assiste razão ao autor, pois, nesse caso o desvalor da ação perturba mais o ente social

do que a mera ocorrência do resultado. Quem atua dessa forma, reúne os atributos de

um agir antinormativo, digno de sanção legal, indo exatamente de encontro ao

conceito erigido por Busato96, de que “a missão do Direito Penal é a realização do

controle social do intolerável”.

93 Tradução livre do autor. No original: “En el ámbito de la norma del delito doloso, que proscribe‘realizar una acción con tendencia a afectar la vida’, se anidan también innumerables accionesparticulares: no dispares armas de fuego cerca de una persona, no cortes las venas del prójimo,no cuelgues a alguien con una soga al cuello, no empujes personas al vacío, no dejes que losniños pequeños se echen a nadar en ríos con rápidos peligrosos, etc.” [grifo nosso]SANCINETTI, M. A. Obra citada, p. 199.

94 Tradução livre do autor. No original: “Así como el plan de una buena acción recién adquiere suvalor por el esfuerzo de transformarlo en acto (‘no hay nada bueno, salvo: que uno lo haga’), asítambién, a la inversa, el disvalor de un plan delictivo se deriva recién del hecho de que el autorse esfuerce por realizar ese plan mediante su acción. Por ello, el disvalor de motivación de undelito doloso no queda fundamentado por la mera decisión al hecho, sino por la consciencia derealizar un plan delictivo (consciencia de la realización).” FRISTER, H. Obra citada, p. 223.

95 Tradução livre do autor. No original: “La materia del dolo eventual en el homicidio resultasumamente delicada, ante el auge de accidentes en calles y rutas, en los cuales la velocidad alpasar las esquinas o en cruce o en la extensión de las carreteras, la inobservancia de laadvertencia de los semáforos o la misma inexistencia de estos, y la desaprensión de losconductores nos colocan en verdad ante la egoísta indiferencia característica del dolo eventual.”[grifo nosso] LOMAS, R. A. M. T. Obra citada, p. 37.

96 “Em conclusão, é possível afirmar que a missão do Direito Penal é a realização do controle socialdo intolerável. Ademais, que a identificação do que é intolerável passa pela existência de umataque grave a um bem jurídico essencial ao desenvolvimento do indivíduo na sociedade. Essa, enenhuma outra, deve ser a justificação da imposição de uma norma jurídico-penal, a qual somentepode aspirar ser válida porque pretende ser justa.” BUSATO, Paulo César. Direito Penal, p. 17.

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7. A QUESTÃO DA ADEQUAÇÃO TÍPICA

Diversos autores de renome professam suas interpretações sobre a questão

“dolo eventual versus culpa stricto sensu”, assim como, por exemplo o fez Bustos

Ramírez, que defende a teoria de que o dolo eventual nada mais seria do que uma

espécie de “delito imprudente ‘qualificado’ pelo elemento subjetivo”97. Faz-se

necessário, porém, destacar que essa dita “qualificação” não pode ser realizada porque

pretende acrescentar elementos estranhos ao tipo, modificando-lhe a estrutura; algo

absolutamente inaceitável, pois ao se inovar a interpretação do texto de lei, ataca-se

uma das principais funções do tipo penal. Como bem destaca Cernicchiaro: “O tipo

exerce função de garantia. A tipicidade (relação entre o tipo e a conduta) resulta do

princípio da reserva legal. Logicamente, o tipo há de ser preciso para que a ação seja

bem identificada”98. Ainda nesse sentido, extrai-se da lição de Luna que não se pode

acatar uma inovação doutrinária interpretativa sem que antes ocorra a própria alteração

do próprio texto legal, posto que, “a linguagem da lei não é ‘instrumental’, mas

‘essencial’: sucede, aqui, como na poesia, com a diferença de que, enquanto a

linguagem poética é criativa, a linguagem da lei é normativa.”99

A culpa stricto sensu, como já foi visto100, possui apenas uma “fisionomia

objetiva”101, qual seria a violação do comportamento prudente esperado para uma

97 Tradução livre do autor. No original: “Ante todo, interesa considerar la opinión de Juan BustosRamírez, según la cual el ‘dolo eventual’ no sería propiamente dolo, sino una forma del delitoimprudente, calificada por un elemento subjetivo del ilícito. (…) En primer lugar, hay que decircontra esto que si el dolo eventual no participa de las condiciones del dolo, no se entiende biencómo podría recibir, aunque parcialmente, el tratamiento de la gravedad del dolo. (…) Ensegundo lugar, no está claro cómo se determinaría ese peculiar elemento subjetivo del ilícito. Sirealmente el dolo eventual no fuera dolo, y se distinguiera de la simple imprudencia sólo por ese,es decir, por un ‘elemento subjetivo del ilícito’, entonces, habría que proponer una fórmula quepermita resolver cuándo existe ese especial elemento subjetivo.” RAMÍREZ apud SANCINETTI,M. A. Obra citada, p. 194-196.

98 CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Direito Penal na Constituição, p. 14.

99 “Duvidamos, porém, que haja palavras supérfluas na lei, a ponto de serem retiradas sem qualqueralteração outra que não a puramente terminológica. E o fazemos porque pensamos que alinguagem da lei não é ‘instrumental’, mas ‘essencial’: sucede, aqui, como na poesia, com adiferença de que, enquanto a linguagem poética é criativa, a linguagem da lei é normativa.”LUNA, E. da C. Obra citada, p. 236.

100 Ver infra, item 4.

101 LUISI, L. Obra citada, p. 81.

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37situação específica; enquanto no dolo exige-se mais: é preciso que haja a simetria de

uma conduta proibida no tipo objetivo com representação idêntica no campo subjetivo

do autor. Destaca-se ainda a tese desenvolvida por Zielinski, que identifica nos casos

de culpa consciente o chamado “componente sem-haver”, e que serviria de ferramenta

para a adequação típica como ponto de aferição para o comportamento descuidado, o

que por sua vez, tornaria o resultado culposo. Como explica o autor:

“É evidente que o conteúdo específico do ilícito dos delitos imprudentesreside numa concreta colocação em perigo do objeto do bem jurídico. Éafirmar que a valoração tem que emitir, com relação a situação concreta, queexiste a possibilidade de lesão de um bem jurídico. De onde segue: que asnormas estabelecidas pelo observador objetivo (regras de cuidado)necessitam, em geral, de uma restrição: as ações descritas comoabstratamente perigosas estão proibidas somente para o caso de que elastambém sejam concretamente perigosas. Traduzindo-os em tipos descritivos,isto significa: é proibido ultrapassar em curvas sem visibilidade, sem haverse assegurado que não havia trânsito em sentido contrário; é proibido tirar ostijolos da parede sem haver colocado medidas de contenção diante da casa; éproibido deixar crianças pequenas brincando num jardim aberto para a rua,sem vigiá-las. Estas ações perigosas de modo completamente abstrato sãototalmente contrárias ao cuidado, somente porque não foram tomadasprecauções de segurança adicionais, e, nessa medida, só em união com ocomponente ‘sem-haver’ são respectivamente contrárias ao cuidado. No‘componente-sem-haver’ se encontra a referência da situação depericulosidade, que é portadora do juízo de imprudência.”102

Logo, o indicativo seria esse “componente de azar” – ocasionado pela

negligência, imprudência ou imperícia do agente – e que fora chamado por Zielinski

de “componente sem-haver”, que, por sua vez, diferenciaria a culpa do dolo eventual.

Apesar da validade da tese, cremos, ela não é suficiente para análise isolada dos casos

mais complexos, necessitando-se ainda de outros fundamentos complementares.

102 Tradução livre do autor. No original: “El manifiesto que el contenido específico de ilícito de losdelitos imprudentes reside en una concreta puesta en peligro del objeto de bien jurídico. Es decir,que la valoración tiene que arrojar, con relación a la situación concreta, que existe la posibilidadde lesión de un bien jurídico. De allí se sigue: que las normas establecidas por el observadorobjetivo (reglas de cuidado) necesitan, en general, de una restricción: las acciones descriptascomo abstractamente peligrosas están prohibidas sólo para el caso de que ellas también seanconcretamente peligrosas. Traducido a tipos descriptivos, esto significa: está prohibido cortarcurvas sin visibilidad, sin haberse cerciorado de que no venía tránsito en contra; está prohibidotirar ladrillos del trecho, sin haber puesto medidas de contención delante de la casa; estáprohibido dejar jugar niños pequeños en un jardín abierto a la calle, sin vigilar-los. Estasacciones peligrosas de modo completamente abstracto son totalmente contrarias al cuidado, sóloporque no fueron tomadas precauciones de seguridad adicionales, y en esa medida; sólo en unióncon el ‘componente-sin-haber’ son respectivamente contrarias al cuidado. En el ‘componente-sin-haber’ se encuentra la referencia de la situación de la peligrosidad, que es portadora deljuicio de imprudencia.” ZIELINSKI, D. Obra citada, p. 201.

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38Preferimos acompanhar Gallas, quando afirma que “por detrás do embasamento do

dolo eventual sobre uma suposta voluntariedade, e a culpa consciente sobre a

involuntariedade, oculta-se realmente uma diferença na valoração da motivação e do

consentimento”103. Kauffman, é claro ao afirmar que:

“O feito doloso não é excluído pela decepção das ‘esperanças’, com quecontou o autor; nem por uma ‘desaprovação’ que não impede o autor em seuagir; nem pelo ‘confiar’ num feliz resultado para qual nada faz o próprioautor para justificá-lo. Pelo contrário, as formulações positivas da ‘teoria daaprovação’ – ‘correr o risco’, ‘consentir’, ‘aprovar’ – podem perfeitamentecolocar-se em consonância com o pensamento que aqui se defende.”104

No dizer de Bruno, “do dolo até a culpa a representação e a vontade se atenuam,

desde uma manifestação completa e precisa até uma simples possibilidade.”105 Assim

também ocorre com a percepção do chamado perigo de realização do acontecer típico,

conforme descreve Frister:

“Quanto mais manifesto era o perigo de realização do acontecer típico, maispróximo se estará de que o próprio autor haja reconhecido este perigo, ouseja, que a partir de seu conhecimento empírico geral, haja chegado aconclusão de que, no caso concreto, poder-se-ia chegar a um acontecer destaíndole”106

Portanto, temos que no dolo, típica é a conduta em razão de sua finalidade,

enquanto, na culpa, típico é o planejamento descuidado. No primeiro, o fim determina

o dolo; na segunda, o fim só interessa para se determinar qual seria o dever de cuidado

correspondente. Tanto no dolo eventual quanto na culpa temos condutas que são, em

essência, antijurídicas, porque escolheram meios ou fins capazes de criar ou

103 “Detrás de basar el dolo eventual sobre la supuesta voluntariedad, y la culpa consciente sobre lano voluntariedad, se oculta realmente una diferencia en la valoración de la motivación y delconsentimiento.” GALLAS apud KAUFFMAN, A. Obra citada, p. 192.

104 Tradução livre do autor. No original: “El hecho doloso no es excluido por ‘esperanzas’ con cuyadecepción contó el autor, ni por una ‘desaprobación’ que no impide al autor en su obrar, ni porun ‘confiar’ en un feliz resultado para cuya justificación nada hace el autor mismo. Por elcontrario, las formulaciones positivas de la ‘teoría de la aprobación’ – ‘correr el riesgo’,‘consentir’, ‘aprobar’ – pueden perfectamente ponerse en consonancia con el pensamiento queaquí se defiende.” KAUFFMAN, Armin. El dolo eventual em la estructura del delito, p. 199.

105 BRUNO, Aníbal. Obra citada, tomo II, p. 58.

106 Tradução livre do autor. No original: “Cuanto más manifiesto era el peligro de realización delacontecer típico, más cerca se estará de que el autor mismo haya reconocido este peligro, esdecir, que, a partir de su conocimiento empírico general, haya extraído la conclusión de que en elcaso concreto se podía llegar a un acontecer de esa índole.” [grifo nosso] FRISTER, H. Obracitada, p. 231.

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39potencializar um risco previsível, cujo “efeito colateral” da ação desdobra-se num

resultado típico proibido pela norma penal.

A distinção dá-se, basicamente, devido à indiferença do primeiro, e a

desatenção do segundo, para com os bens jurídicos alheios; sendo que em função da

diferença de reprovação social existente entre as condutas, e por isso atribuiu-lhes o

legislador diferentes níveis de reprimenda.

É possível afirmar, que na culpa, há previsão da possibilidade, enquanto no

dolo, há previsão de probabilidade. Assim, tomamos a liberdade de adaptar, mutatis

mutandis, um antigo conceito de Carrara ao Direito Penal hodierno: “A previsão de

possibilidade ou de probabilidade da consequência ofensiva distinguem a culpa do

dolo. O não havê-la podido prever, separa o caso fortuito da culpa.”107

7.1 TEORIA DA PROBABILIDADE

A questão da previsibilidade das consequências da ação é fundamental à análise

de ambas as figuras típicas, posto que a distinção entre as modalidades ora em estudo

se dá principalmente no terreno da representação intelectual do agente e do juízo de

probabilidade de ocorrência do resultado típico, visto ex post facto. Curiosamente,

pesam críticas como a de Puppe108 e Welzel109 à chamada teoria da probabilidade, no

sentido de que ela interpretaria o querer do agente de forma demasiadamente

“quantitativa” e “intelectualizada”; o que causa alguma surpresa, pelo fato de que o

finalismo nada mais é do que um sofisticado sistema metodológico de organização dos

atos e de valoração da conduta humana. Uma atitude razoável seria admitir-se o

107 “O não ter previsto a consequência ofensiva distingue a culpa do dolo. O não havê-la podidoprever, separa o caso fortuito da culpa.” CARRARA, F. Obra citada, p. 92.

108 “Necessitamos, assim, não de um conceito quantitativo, e sim de conceito qualitativo do perigointenso, cuja representação fundamente o dolo do autor”. PUPPE, I. Obra citada, p. 1160.

109 Tradução livre do autor. No original: “Tampoco satisface la teoría de la probabilidad en lamedida en que interpreta el ‘querer’ en forma demasiado intelectualizada. Según ella, el dolo sediferencia de la culpa en el mayor grado con que el autor se representa la posibilidad deproducción del resultado (‘probabilidad’).” WELZEL, H. Obra citada, p. 84.

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40subsídio da probabilidade estatística como referência para a aplicação do Direito,

acrescentando ao contexto penal um método passível de verificação científica, porém

sem qualquer pretensão de torná-lo uma ciência exata. Tal é sua utilidade prática, que

Frister em obra recente destaca que essa teoria “foi durante muito tempo considerada

como superada, porém há demonstrado um considerável renascimento”110. Para melhor

compreensão do tema socorremo-nos novamente em Alimena, cuja reflexão é dotada

de uma lucidez capaz de nos guiar ainda hoje:

“Na linguagem matemática, a probabilidade se representa através de umafração, cujo numerador indica os casos favoráveis e o denominador indica oscasos possíveis. De modo que tanto a fração 1/100 como a fração 99/100representam duas probabilidades diferentes. Em linguagem corrente, noentanto, dizemos que um acontecimento é provável, quando o número dehipóteses favoráveis for de qualquer modo superior ao de hipótesesdesfavoráveis; de modo que dizemos ser provável o acontecimentorepresentado pela fração 51/100 e improvável aquele representado pelafração 49/100, enquanto que a fração 50/100 indica um estado, diria, deinércia ou indiferença. Parece-me, portanto, justo que para efeito deimputação dos eventos aos quais dependem de nossa vontade ativa, não devabastar somente a primeira probabilidade (51/100), mas também a e terceira(50/100) e a segunda (49/100), ou seja, é imputável também aquele evento,que, à consciência do réu, à nossa consciência e à consciência dosconcidadãos, pareça provável, ou ainda pouco provável de beirar aoimprovável; ou seja, para tornar-se imputável o crime, basta aquelaprobabilidade mínima, que bastaria, por exemplo, para determinar os meiosnecessários para sustentar uma casa. A solução é justa porque em nós estáintegrada a consciência da probabilidade do perigo com a consciência dobem que se põe em perigo.”111

110 Tradução livre do autor. No original: “Durante mucho tiempo esta teoría se consideró superada,pero en época más reciente ha cobrado un considerable renacimiento. Un número creciente deautores quiere hacer depender el dolo no, por cierto, de una probabilidad entendidaestadísticamente, pero sí de la clase y medida del riesgo reconocido.” [grifo nosso] FRISTER, H.Obra citada, p. 230.

111 Tradução livre do autor. No original: “Nel linguaggio matematico, la probabilità si rappresentacon una frazione, di cui il numeratore indica i casi favorevoli e il denominatore indica i casipossibili. Onde, così la frazione 1/100 come la frazione 99/100 rappresentano due diverseprobabilità. Nel linguaggio comune, invece, diciamo che un avvenimento è probabile, allor che ilnumero delle ipotesi favorevoli superiori, in qualche modo, quello delle ipotesi sfavorevoli; ondediciamo probabile l’avvenimento rappresentato dalla frazione 51/100 e improbabile quellorappresentato dalla frazione 49/100, mentre la frazione 50/100 indica un stato direi inerte,indifferente. Mi pare, dunque, giusto che, per l’imputazione degli eventi i quali dipendono dallanostra volontà attiva, non debba bastare soltanto la prima probabilità, ma anche la terza e laseconda, ossia è imputabile anche quell’evento, che, alla coscienza nostra e alla coscienza deiconsociati, appare probabile, ma così poco probabile da rasentare l’improbabile, ossia, perrendere imputabile il reato, basta quella probabilità minima, che basta, ad esempio, perdeterminare i mezzi necessario per puntellare una casa. E la soluzione è giusta, perché in nois’integrano la coscienza della probabilità del pericolo con la coscienza del bene che si mete inpericolo.” ALIMENA, B. Obra citada, p. 297.

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41Outra corrente ideológica, defendida por autores conceituados, traz a chamada

teoria da aceitação, para as hipóteses de dolo eventual. Esta teoria do consentimento,

da anuência ou da conformação, defende que para que haja a imputação dolosa, é

necessário que o sujeito preveja um resultado como possível e aceite ou consinta com

a sua realização.

Por óbvio que a exigida representação do perigo – dever de previsão, segundo

Frister – é inerente a todos que executam uma tarefa de risco, e a continuidade na

prática da conduta já denota tal consentimento com a eventual ocorrência típica. Fato

é, que a aplicação prática dessa teoria torna-se problemática e de aplicação insegura,

pois, por exemplo, é absolutamente incompatível com o “consentimento” o fato de que

o agente possua um sincero repudio pelo resultado obtido. De modo que, não há como

supor tal “anuência” ou “conformação” com o resultado, sem afetar uma perigosa

margem de erro. Pelos motivos expostos, postulamos para estes casos a aceitação dos

subsídios objetivos fornecidos pela teoria da probabilidade.

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42

7.2 POSIÇÃO DE WELZEL

Welzel trata especificamente da questão dos crimes de trânsito no quarto

capítulo de sua obra, O novo sistema jurídico-penal, situando-os no âmbito dos crimes

culposos, baseando-se “na divergência entre a ação realmente empreendida e a que

deveria ter sido realizada em virtude do cuidado necessário no tráfego”112. A análise do

autor é baseada na existência de uma lex artis das regras de trânsito, cuja

inobservância caracterizaria o crime culposo. E segue:

“O conceito de cuidado no tráfego é um conceito objetivo e normativo. Paraa determinação de seu conteúdo, não tem importância qual seja o cuidadoque tenha observado ou que tenha podido observar o autor, mas apenas qualseria o cuidado ‘necessário no tráfego’; tampouco serve de pauta o cuidadoque se observa, de fato, no tráfego, mas o que seria necessário. Uma condutacorresponde ao cuidado objetivo se considera prudentemente os efeitos daação planejada que sejam cognoscíveis por um juízo inteligente, ou seja, secoincide com a conduta que seguiria um homem inteligente e prudente nasituação do autor. O conteúdo do cuidado objetivo no caso concreto édeterminado, portanto, por meio de um critério ‘intelectual’ e um critério‘normativo’. (…) No processo de limitação do conteúdo do cuidado, podemser estabelecidos também certos princípios gerais de caráter material, isto é,princípios da experiência sobre a vinculação de determinados perigos acertas formas de conduta, às quais são inerentes, e sobre as medidas maisadequadas para evitar esses perigos. Entre os últimos, os mais conhecidossão os da lex artis das diversas profissões. Regras desse tipo existem emtodos os setores vitais.”113

O texto destacado é perfeito na análise da hipótese da incidência da culpa

stricto sensu na atividade regular do trânsito; porém, não se pode insinuar, como faz o

autor, que tal possibilidade esgota todas as possibilidades penais. A existência de

parâmetros como regulamentos e normas de trânsito não impede que seja utilizado um

veículo para o cometimento de crime doloso; como também o fato de não querer um

resultado típico decorrente da própria ação não é suficiente para cravar a adequação na

modalidade culposa. Entretanto, segue Welzel:

“Os delitos culposos baseiam-se também na consideração da ação humanacomo uma obra: a vontade, que, partindo de um fim, seleciona os meios daação, necessários para sua consecução, deve atender na seleção e utilizaçãodos meios às consequências que estes possam produzir, juntamente com o

112 WELZEL, H. O Novo Sistema Jurídico-Penal, p. 95-96.

113 WELZEL, H. Idem, p. 97-99.

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43fim ou em seu lugar. Nesse ponto, intervém o ordenamento, e ordena que, narealização de toda ação que possa ter como consequência (não desejada) alesão de um bem jurídico, seja observado ‘o cuidado necessário no tráfego’para evitar essa consequência. O conteúdo decisivo do injusto dos delitosculposos consiste, por isso, na divergência entre a ação realmenteempreendida e a que deveria ter sido realizada em virtude do cuidadonecessário no tráfego. Consiste, sobretudo, no desvalor da ação, enquanto odesvalor do resultado produzido (a lesão ou o perigo de lesão a um bemjurídico) tem apenas uma significação restritiva, delimitadora, ao destacar,entre as condutas que não correspondem ao cuidado devido, aquelas que têmrelevância para o Direito Penal.”

Cabe, porém, uma advertência à posição trazida por Welzel, que a nosso ver,

merece ser considerada desde o abismo socioeconômico e cultural que separa o nosso

país da pátria do mestre do finalismo. Pensar na realidade do trânsito alemão, que

comemora ano após ano sucessivos recordes de diminuição de mortes no trânsito114,

tanto que em 2016 alcançou o seu menor número em sessenta anos, ou seja, desde o

ano de 1956, com pouco mais de 3.200 vítimas fatais; contra a estarrecedora marca

nacional115 de mais de 47.000 vítimas fatais em 2017; dados que só fazem demonstrar

ser quase quinze vezes maior o perigo direto à vida de quem trafega no trânsito

brasileiro. Para tanto, destacamos um sem número de fatores que contribuem para

essas marcas tão distintas, sejam eles a diferença de idade da frota de veículos,

qualidade das vias públicas, quantidade e manutenção da sinalização viária, nível de

conscientização e educação para o trânsito além do rigor das punições que recaem

sobre os motoristas infratores.

Além desses fatores, reconhece o próprio Welzel, que com a tecnologia, perdeu-

se a escala humana que definia os regulamentos de conduta, e passou-se para um nível

“sobre-humano”, pois é fato que condução de veículos automotores potencializa

enormemente o risco ao ambiente comunitário das vias públicas. Diz o autor,

“Temos a impressão de que os reguladores da ação humana são concebidos,em primeiro lugar, em termos das forças ‘naturais’ do homem. Quando, pelocontrário, o homem usa forças que excedem em muito as suas, osreguladores de sua ação não trabalham mais com a mesma utilidade e

114 Alemanha tem menor número de mortes no trânsito em mais de 60 anos. Disponível em:<http://www.dw.com/pt-br/alemanha-tem-menor-n ú mero-de-mortes-no-tr â nsito-em-mais-de-60- anos/a-37709661>. Acesso em: 14 mar. 2018.

115 Trânsito no Brasil mata 47 mil por ano e deixa 400 mil com alguma sequela.<http://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2017/05/1888812-transito-no-brasil-mata-47-mil-por-ano-e-deixa-400-mil-com-alguma-sequela.shtml> Acesso em: 14 mar. 2018.

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44segurança. Ainda acontecia de maneira diferente, numa época em que oemprego de forças ‘sobre-humanas’ se limitava a alguns indivíduosselecionados e especialmente treinados, como na operação das ferrovias.Mas, colocando as forças da moderna circulação de veículos motorizados àdisposição de quase todos, o surgimento dos crimes de imprudência (...) é atécerto ponto inevitável. É o tributo pago pelo homem por seu progressotécnico”116

É contraditório o posicionamento do autor, que, ao tempo em que reconhece a

potencialização do risco social proporcionado pelos veículos automotores – não só

porque ultrapassam em muito as “forças naturais do homem”, como também pela sua

enorme quantidade em circulação – e, ainda assim, o autor nega-se a ver o cenário de

caos que pode ser criado pela “quase-impunidade” da imputação generalizada do

delito culposo. Aliás, basta ver os números de acidentes de trânsito fatais ocorridos no

Brasil, para que se tenha uma idéia do que pode ocorrer na ausência de uma punição

severa aos motoristas inconsequentes.

Conclui o autor alemão, que uma vez colocados os veículos automotores à

disposição de quase todos, o surgimento de crimes de trânsito é até certo ponto

inevitável, pois, para ele, este seria o tributo a ser pago pelo homem, em função do seu

avanço tecnológico. Acreditamos, em contrapartida, ser muito mais prudente e

adequado à realidade nacional o entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de

Justiça, ao vaticinar que

“Não se pode generalizar a exclusão do dolo eventual em delitos praticadosno trânsito. Na hipótese, em se tratando de pronúncia, a desclassificação damodalidade dolosa de homicídio para a culposa deve ser calcada em provapor demais sólida. No iudicium accusationis, inclusive, a eventual dúvidanão favorece o acusado, incidindo, aí, a regra exposta na velha parêmia indubio pro societate.”117

116 Tradução livre do autor. No original: “Los reguladores de la acción humana se conciben antetodo, parece, en función de las fuerzas ‘naturales’ del hombre. Cuando, por el contrario, elhombre se sirve de fuerzas que sobrepasan muy ampliamente las suyas, los reguladores de suacción ya no funcionan con la misma utilidad y seguridad. Ocurría aún diferentemente en unaépoca donde el empleo de fuerzas ‘sobrehumanas’ estaba limitado a algunos individuosseleccionados y especialmente formados como en la explotación de los ferrocarriles. Peroponiendo la circulación moderna de los vehículos a motor esas fuerzas a la disposición de casitodos, el recrudecimiento de los delitos de imprudencia, descripto más arriba, es hasta ciertopunto inevitables. Es el tributo pagado por el hombre por su progresos técnico.” WELZEL, Hans.Estudios de Filosofía del Derecho y Derecho Penal: La Imprudencia y los Delitos de Circulación.p. 61-62.

117 Ver supra, item 8.2.

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8. POSIÇÃO DO STJ SOBRE OS DELITOS DE TRÂNSITO

8.1 “NO ‘RACHA OU PEGA’ HÁ DOLO EVENTUAL”

Como exemplo de um entendimento jurisprudencial pacificado118 pelo Superior

Tribunal de Justiça, em seu Informativo de Jurisprudência n.º 91, sobre a aceitação de

dolo eventual nos casos de “racha ou pega” em vias públicas, pois, segundo o

entendimento do Ministro Félix Fischer, é atividade perigosa que, em essência, destoa

do risco tolerado no âmbito das relações sociais. Trata-se, sem sombra de dúvida, de

matéria que por sua própria natureza, adequa-se ao tipo penal doloso, mais

especificamente na modalidade eventual. Do informativo de jurisprudência,

destacamos: “Admitido (...) que houve ‘racha ou pega’ – conduta que foge à atividade

de risco de dirigir no trânsito tolerada pelo desenvolvimento da sociedade (…) há dolo

eventual.”

8.2 “NÃO SE PODE GENERALIZAR A EXCLUSÃO DO DOLO EVENTUAL

EM DELITOS PRATICADOS NO TRÂNSITO”

A despeito do que defende parte da doutrina nacional, posiciona-se o Ministro

Félix Fischer119, em voto proferido enquanto relator do REsp n.º 4.561.226/RS, no

sentido de que considerar-se de pronto os crimes de trânsito como culposos por uma

suposta “ausência de dolo”, é trair os próprios institutos do Direito Penal tão

duramente desenvolvidos ao longo do último século. No caso se trata tanto da

prevalência do princípio jurisprudencial do in dubio pro societate, como um

instrumento de defesa da sociedade perante o número alarmantes de mortes no trânsito

118 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Informativo de Jurisprudência n.º 0091.

119 _____. Recurso Especial nº 4.561.226/RS, de 24 de outubro de 2016. Relator Min. Félix Fischer.

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46brasileiro, mas também, e primordialmente, da necessidade de se realizar uma correta

adequação típica do fato à norma penal, como princípio sine qua non da distribuição

da justiça. Da referida decisão, destacamos o seguinte:

“Não se pode generalizar a exclusão do dolo eventual em delitos praticadosno trânsito. Na hipótese, em se tratando de pronúncia, a desclassificação damodalidade dolosa de homicídio para a culposa deve ser calcada em provapor demais sólida. No iudicium accusationis, inclusive, a eventual dúvidanão favorece o acusado, incidindo, aí, a regra exposta na velha parêmia indubio pro societate.”

8.3 “AINDA QUE SE CONFIRMASSE A ANTERIOR INGESTÃO DE ÁLCOOL,

TAL CIRCUNSTÂNCIA, POR SI SÓ, NÃO SERIA SUFICIENTE PARA

CONFIGURAR O DOLO EVENTUAL”

Em recente julgamento do Recurso Especial n.º 1.689.173-SC120, vota o Min.

Rogério Schietti Cruz, em entendimento acolhido pela Corte Especial, no sentido de

que “ainda que se confirmasse a anterior ingestão de álcool, tal circunstância, por si só,

não seria suficiente para configurar o dolo eventual”. Como subscrito:

“Não descuro que a embriaguez ao volante é circunstância negativa que devecontribuir para a análise do elemento anímico que move o agente. Todavia,não é a melhor solução estabelecer-se, como premissa aplicável a qualquercaso relativo a delito viário, no qual o condutor esteja sob efeito de bebidaalcoólica, que a presença do dolo eventual é o elemento subjetivo ínsito aocomportamento, a ponto de determinar que o agente seja submetido a JúriPopular mesmo que não se indiquem quaisquer outras circunstâncias queconfiram lastro à ilação de que a ré anuiu ao resultado lesivo.”

Assim também acreditamos, pois é preciso que haja um todo contexto de

criação ou implemento injustificado do risco tolerado no âmbito da relação – e não

apenas mera a diminuição da capacidade reflexiva e reativa em função do consumo de

álcool – para a correta a adequação típica na modalidade de dolo eventual. Destaca-se

no voto, também a seguinte passagem: “não se há de aceitar a matematização do

Direito Penal, sugerindo a presença de excepcional elemento subjetivo do tipo pela

120 _____. Recurso Especial n.º 1.689.173/SC, de 06 de dezembro de 2017. Relator Min. RogérioSchietti Cruz.

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47simples verificação de um fato isolado, qual seja, a embriaguez do agente causador do

resultado”121, onde assiste toda razão ao Ministro.

8.4 “O JULGAMENTO SOBRE A OCORRÊNCIA DE DOLO EVENTUAL OU

CULPA CONSCIENTE DEVE FICAR A CARGO DO TRIBUNAL DO JÚRI”

Sobre o tema pesa ainda outro Informativo de Jurisprudência122, de n.º 469,

advindo de decisão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, cujo voto do

relator Min. Jorge Mussi, privilegia a competência do Tribunal do Júri para os

julgamentos de crime contra a vida cometidos no trânsito. Tese trazida também à

conclusão deste trabalho, defende a necessidade da decisão pela via popular, tanto pelo

envolvimento da comunidade no exercício democrático das atribuições jurisdicionais,

quanto por ser a via que melhor oferece possibilidade de decidir através do seu

veredito. Do Informativo, destaca-se a seguinte passagem:

“segundo o Min. Relator, faz-se necessário aprofundado exame probatóriopara ser reconhecida a culpa consciente ou o dolo eventual, pois deve serfeita de acordo com as provas colacionadas. (…) conforme a jurisprudência,entende-se que, de acordo com o princípio do juiz natural, o julgamentosobre a ocorrência de dolo eventual ou culpa consciente deve ficar a cargodo tribunal do júri, constitucionalmente competente para julgar os crimesdolosos contra a vida.”

121 “em razão da insuficiência da resposta punitiva para os crimes de trânsito, que, invariavelmente,não importam em supressão da liberdade de seus autores – porque, sendo a conduta culposa, osautores do crime são beneficiados pelo regime aberto de cumprimento da pena e pela substituiçãoda sanção privativa de liberdade por restritiva de direitos – tem-se notado perigosa tendência de,mediante insólita interpretação de institutos que compõem a Teoria do Crime, forçar umaconclusão desajustada à realidade dos fatos. Seguramente, como dito, é possível identificarhipóteses em que as circunstâncias do caso analisado permitem concluir pela ocorrência de doloeventual em delitos viários. Entretanto, insista-se, não se há de aceitar a matematização do DireitoPenal, sugerindo a presença de excepcional elemento subjetivo do tipo pela simples verificação deum fato isolado, qual seja, a embriaguez do agente causador do resultado.” Idem, ibidem.

122 _____. Informativo de Jurisprudência n.º 0469.

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9. CONSIDERAÇÕES FINAIS

De um lado, vemos que pela hipótese de crime culposo, não há descrição legal

de ações especificamente proibidas, e sim, um tipo aberto que depende sempre da

comparação entre a conduta normativa socialmente aceita e a ação real empreendida

pelo agente; por outro lado, temos o crime doloso, cuja averiguação depende por sua

vez de um juízo de dedução através do qual atribui-se o dolo à conduta, enquanto

elemento subjetivo do injusto. Curiosamente estes dois elementos tão significativos

para os crimes de trânsito estão situados em polos diametralmente opostos, estando o

primeiro, na porção objetiva do tipo penal, e o segundo, em sua porção subjetiva.

Ambas as hipóteses, porém, têm em comum o fato de que se pratica uma conduta

antijurídica, onde não necessariamente se busca um resultado típico.

Foi visto que pela impossibilidade prática de se estabelecer regras específicas

para cada caso possível, a aplicação do Direito depende sempre de uma ponderação

através das regras comuns da experiência. Algo, porém, que só adquire validade se

realizado a partir de uma cuidadosa na análise dos fatos, valendo-se do máximo de

recursos disponíveis, como provas periciais, testemunhais, etc. A questão que se põe é

a de como diferenciar-se em termos práticos a gradação que parte do mero “azar” no

sucedâneo típico culposo, ao “deixar à sorte” a ocorrência do resultado proibido,

característico do dolo eventual.

O mais próximo que se pode chegar do estabelecimento de uma regra geral

sobre o tema, é, exemplificar a adequação típica através de uma hipotética uma

conduta causadora de um resultado antinormativo, e dela extrair as três possibilidades

de interesse do Direito Penal. São elas: a primeira, quando o agente tomou,

razoavelmente, os cuidados de prevenção, teremos um caso fortuito; a segunda,

quando o agente tomou quase todos os cuidados de prevenção mas não o suficiente

para evitar o resultado, teremos culpa consciente; e, finalmente, a terceira, quando o

agente destinou suas ações voluntariamente no sentido de facilitar a ocorrência do

evento típico, teremos então o dolo na modalidade eventual.

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49Ainda assim, nos casos limítrofes, onde prevaleça a indecisão sobre a culpa ou

dolo, em especial nos crimes de trânsito, acreditamos que a competência de

julgamento deva ser atribuída ao Tribunal do Júri, em função de seu caráter

verdadeiramente democrático. Não há ainda uma decisão pacificada, mas já

percebemos uma tendência nesse sentido123, advinda dos tribunais superiores, e muito

correta a nosso ver, que lega a decisão para julgadores escolhidos entre os do povo,

inspirados pela dialética do embate em plenário. Nos colocamos em sentido contrário

ao que sustenta Bitencourt, de que esta seria questão “puramente jurídica, (…) sendo

insuscetível de ser deixada à apreciação de juízes de fato, que julgam fatos, como

fatos, enquanto fatos.”124. Data venia, acreditamos que existe vantagem na escolha do

jurado leigo, justamente por extrapolar a fria discussão jurídica, baseando sua decisão

em seu conhecimento prático de concidadão, donde terá mais subsídios para avaliar

uma situação fática que também lhe é familiar; em suma, terá facilidade em colocar-se

no lugar dos personagens, com a propriedade e o conhecimento de quem transita pelas

mesmas vias em seu cotidiano; e, guiando-se pelas regras de sua experiência e de sua

comunidade, decidir através de um juízo de atribuição, o que é fundamental ao Direito:

qual a intenção subjetiva objetivada, externalizada pelo agente através de sua conduta,

e a relação desta com o resultado típico alcançado.

Fato é que o Tribunal do Júri oferece ainda, mesmo após o reconhecimento da

autoria e materialidade do crime, a hipótese de absolvição por clemência conforme

delimita o artigo 483, III, do CPP. No julgamento em plenário é respeitado também o

quesito genérico de absolvição, resguardado em sua resposta pelos princípios

constitucionais do in dubio pro reo e da soberania dos veredictos. Deste modo,

concluímos que muito mais se oferece à justiça, inclusive em termos de possibilidade à

defesa do réu de crimes de trânsito, através da utilização do procedimento especial do

Tribunal do Júri.

123 Ver infra, item 8.4.

124 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, p. 363.

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