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AGOSTO / 2008 102 REVISTA PROTEÇÃO NORMATIZAÇÃO As Normas Regulamentadoras completam 30 anos sem a devida revisão e atualização Fator de risco A Portaria 3214, publicada em 6/7/1978, está completando 30 anos de existência. Muitos profissionais que participaram da redação dessa lei continuam ativos e, quando falam de suas experiências, cau- sam surpresa para muitos prevencionistas que não eram nascidos naquela época. Ainda em 1978, o Dr. Eduardo Gabriel Saad, superintendente da Fundacentro na época, mandou editar uma publicação de- nominada Legislação de Acidentes, Se- gurança, Higiene e Medicina do Trabalho, que incluía a Lei 6514 e a recém-lançada Portaria 3214. Marcos Domingos da Silva - Presidente da ABHO, Higienista Ocupacional Certificado Marcos Domingos da Silva BETO SOARES / ESTÚDIO BOOM No texto de apresentação, assinado pelo próprio Dr. Saad e pelo Dr. Jorge Duprat Figueiredo, há citações históricas que me- recem ser destacadas. Inicialmente, eles consideram essa Portaria um avanço, es- crevendo que ela se caracteriza pela par- ticularidade de reunir todas as normas. Anteriormente, essas normas serviam de objeto às numerosas portarias. Isso difi- cultava a ação dos técnicos de saúde ocupacional, pois perdiam bom tempo na pesquisa do dispositivo relativo ao proble- ma a ser solucionado. Em uma atitude já esperada e muito justa, a direção da Fundacentro atribuiu ao Ministro do Trabalho da época, o en- genheiro Arnaldo da Costa Prieto, todo o mérito por ter conduzido juristas e técni- cos que trabalharam na redação da Lei 6514 e da Portaria 3214. Por essa bandei- ra política, em uma época de ditadura mi- litar, ele merece ser melhor reconhecido e honrado pelos atuais prevencionistas brasileiros. Além dele, o Dr. Roberto Raphael We- ber, secretário da Segurança e Medicina do Trabalho do Ministério do Trabalho, te- ve um papel importante na elaboração desses dispositivos legais, pois convocou toda a equipe técnica da Fundacentro que elaborou as Normas Regulamentadoras. O trabalho foi enfatizado pelo Dr. Saad e pelo Dr. Jorge Duprat Figueiredo dando louvores especiais para Geraldo Bueno

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AGOSTO / 2008102 REVISTA PROTEÇÃO

NORMATIZAÇÃO

As Normas Regulamentadoras completam 30 anos sem a devida revisão e atualização

Fator de risco

A Portaria 3214, publicada em 6/7/1978,está completando 30 anos de existência.Muitos profissionais que participaram daredação dessa lei continuam ativos e,quando falam de suas experiências, cau-sam surpresa para muitos prevencionistasque não eram nascidos naquela época.

Ainda em 1978, o Dr. Eduardo GabrielSaad, superintendente da Fundacentro naépoca, mandou editar uma publicação de-nominada Legislação de Acidentes, Se-gurança, Higiene e Medicina do Trabalho,que incluía a Lei 6514 e a recém-lançadaPortaria 3214.

Marcos Domingos da Silva - Presidente da ABHO,Higienista Ocupacional Certificado

Marcos Domingos da Silva

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No texto de apresentação, assinado pelopróprio Dr. Saad e pelo Dr. Jorge DupratFigueiredo, há citações históricas que me-recem ser destacadas. Inicialmente, elesconsideram essa Portaria um avanço, es-crevendo que ela se caracteriza pela par-ticularidade de reunir todas as normas.Anteriormente, essas normas serviam deobjeto às numerosas portarias. Isso difi-cultava a ação dos técnicos de saúdeocupacional, pois perdiam bom tempo napesquisa do dispositivo relativo ao proble-ma a ser solucionado.

Em uma atitude já esperada e muitojusta, a direção da Fundacentro atribuiuao Ministro do Trabalho da época, o en-genheiro Arnaldo da Costa Prieto, todo o

mérito por ter conduzido juristas e técni-cos que trabalharam na redação da Lei6514 e da Portaria 3214. Por essa bandei-ra política, em uma época de ditadura mi-litar, ele merece ser melhor reconhecidoe honrado pelos atuais prevencionistasbrasileiros.

Além dele, o Dr. Roberto Raphael We-ber, secretário da Segurança e Medicinado Trabalho do Ministério do Trabalho, te-ve um papel importante na elaboraçãodesses dispositivos legais, pois convocoutoda a equipe técnica da Fundacentro queelaborou as Normas Regulamentadoras.O trabalho foi enfatizado pelo Dr. Saad epelo Dr. Jorge Duprat Figueiredo dandolouvores especiais para Geraldo Bueno

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NORMATIZAÇÃO

Martha, José Manoel Gana Soto, SérgioSilveira Branco, Úrsula Maria Hecht Zeller,Mario Luiz Fantazzini, Eduardo Giampao-li, Leila Nadim Zidan, Irene Ferreira Duar-te de Souza Saad, Marcos Domingos daSilva, Jorge Santos Reis, Jorge Teruo Yo-shimoto, Carlos de Toledo Sanjar, Robertode Freitas, Maria Cristina Espósito Sil-vério, Francesco De Cicco, Delcir Pacífi-co Mendes e Pedro Robin que realizaram,durante longos meses, com zelo e dedi-cação, pesquisas e estudos aproveitadosamplamente pelo Ministério do Trabalhona redação da Portaria 3214.

Também faziam parte desse grupo osmédicos Koshiro Otani e Luiz Brasil daCosta Faggiano. O texto termina dizendoque a Fundacentro sente-se envaidecidapor ter contribuído para que o país fossedotado de Normas de Segurança, Higienee Medicina do Trabalho, as quais espelhamcom fidelidade as exigências da presenterealidade social e econômica.

PPPPPARCELAARCELAARCELAARCELAARCELAA nova legislação veio para mudar o

quadro acidentário do país que, nos anos70, era dramático. As estatísticas oficiaismostram as ocorrências naquele período.Veja o quadro 1, Acidentes de Trabalhonos anos 70.

A evolução da massa de trabalhadoresdá uma idéia do impressionante cresci-mento econômico na década de 70, comum aumento de 142% entre 1970 e 1979.Esse desenvolvimento, porém, não foiacompanhado, durante quase toda a dé-cada, por uma legislação prevencionistaadequada, o que resultou em altas taxasde acidentes. Em 1972, por exemplo, acada cinco empregados, um sofreu algumtipo de lesão que o afastou de suas ativi-

dades profissionais.As taxas oficiais de acidentes (veja grá-

fico acima) já vinham decaindo quando aPortaria 3214 passou a vigorar, em 1978,e continuaram em queda até 1984. Elasvoltaram a subir ligeiramente em 1986,mas retomaram a trajetória descendenteaté 1993. A partir daí, os números manti-veram-se em um patamar de 2%. Valeacrescentar que a economia brasileiraentrou em recessão na década de 90, re-duzindo a expansão de empregos paraapenas 7,7%.

Da taxa de acidentes do trabalho catas-trófica de 18,47%, em 1972, ao índice deacidentes calculado pelo INSS, em 2006,de 1,43%, pode-se dizer que houve um sig-nificativo avanço. Os últimos índices sãosemelhantes aos de países localizados emregiões desenvolvidas. A diferença é quenesses lugares os registros estatísticos sãobastante confiáveis, segundo a OIT (Or-ganização Internacional do Trabalho),enquanto os dados brasileiros refletem so-mente os trabalhadores amparados pelaprevidência social do governo.

Não há dúvidas de que a Portaria 3214impactou na prevenção de acidentes e do-enças no país. Mas, atualmente, ela nãoproduz o mesmo efeito porque deixou dereceber a atualização merecida.

Vale notar que, aproximadamente, 32%da população economicamente ativa tema Carteira de Trabalho assinada, descon-tando-se os servidores públicos. Isso sig-nifica que ainda existe um contingentemuito grande de trabalhadores fora do sis-tema previdenciário e sem amparo dosprogramas prevencionistas. Os excluídossão camelôs, agricultores, pescadores,muitos motoristas autônomos e milharesde brasileiros proprietários de pequenos

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NORMATIZAÇÃOnegócios.

ESTIMAESTIMAESTIMAESTIMAESTIMATIVTIVTIVTIVTIVASASASASASApesar de nenhuma agência brasileira

divulgar dados completos sobre os infor-túnios laborais, podemos obter informa-ções por meio de organismos internacio-nais. Um artigo científico, Global Estima-tes of Occupational Accidents, publicadona revista Safety Science, de Päivi Hämä-läinen, Kaija Leena Saarela (TampereUniversity of Technology and Institute ofOccupational Safety Engineering) e JukkaTakala (OIT), mostra um quadro muitosombrio à grande maioria dos trabalha-dores ao redor do mundo.

Os autores analisaram a situação de 175países fazendo estimativas de fatalidadese acidentes nos locais de trabalho que o-casionaram afastamentos de até três diasnos anos de 2001 e 2002. Veja o quadro 2,Estimativa de fatalidades em locais de tra-balho. A situação do país, segundo os pes-quisadores, é vergonhosa. Entre ospaíses avaliados, o Brasil ocupa o quartolugar entre os que possuem as maioresocorrências de mortalidade nos locais detrabalho (oitavo por taxa de óbito). Nalistagem dos acidentes não-fatais com me-nos de três dias de afastamento, a estima-tiva apresentada é de 12.679 ocorrências

a cada 100 mil traba-lhadores (12,7%), fi-cando com a 61ª po-sição, atrás da Argen-tina, Chile e México,que apresentam índices melhores de pre-venção.

Os pesquisadores fizeram referência àsubnotificação de acidentes, um proble-ma generalizado no mundo. Nos EstadosUnidos, há informações de que entre 33%e 69% das lesões por acidente de traba-

lho não são registradas. A OIT não rece-be dados corretos dos acidentes ocorri-dos nos países filiados a ela e calcula quesomente 62% das ocorrências na Europasão informadas. A China divulga menosde 1% e a Índia, Coréia, Malásia e Tai-lândia nada contabilizam. Na AméricaLatina e Caribe, apenas 7,6% desses infor-túnios são divulgados. Sabe-se que Gua-temala, Haiti e Paraguai possuem estatís-ticas alarmantes.

COMPETITIVIDADECOMPETITIVIDADECOMPETITIVIDADECOMPETITIVIDADECOMPETITIVIDADEDe acordo com estudos apresentados

pelo Fórum Mundial Econômico, o paísocupa a 23ª posição na listagem que asso-cia países comercialmente competitivose índices de fatalidade nos locais de tra-balho. Segundo a OIT, o argumento de quenações e empresas pobres não podembancar medidas preventivas é falho, poisnão há evidências de que tal atitude tragabenefícios ao longo do tempo. As organi-zações mais competitivas são também asque oferecem as melhores condições desegurança aos seus empregados.

A relação de competitividade comerci-al com as taxas de acidentes faz muitosentido, já que o estágio de desenvolvi-mento industrial de cada país altera o ce-nário dos infortúnios. Assim, a posição dopaís no panorama internacional parece sermais correta, embora seja totalmenteinsatisfatória, acusando a ocorrência de,aproximadamente, 17 fatalidades a cada

Demonstração durante o Congresso Nacional de Prevenção de Aciden-tes, em 1975, do dispositivo de proteção de serra circular desenvolvidopela Fundacentro. Da esquerda para a direita: Governador do RJRaimundo Padilha; Ministro do Trabalho Arnaldo Prieto; Secretário deSegurança e Medicina do Trabalho Roberto Rafael Weber; presidenteda Fundacentro Jorge Duprat Figueiredo, José Miguel Meira Militar(Fundacentro), acompanhados de Francesco De Cicco; Mário Fantazzinie Marcos Domingos da Silva (técnicos da Fundacentro desde aquelaépoca)

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NORMATIZAÇÃO

100 mil trabalhadores.Para quem participou da elaboração da

Portaria 3214, cujo texto foi concluído emtrês meses com um clima de colaboração,entusiasmo e compromisso de fazer omelhor trabalho técnico possível, o pro-cesso atual de atualização da legislaçãoprevencionista é decepcionante. Concei-tualmente, o sistema tripartite para dis-cussão e elaboração das normas é, semdúvida, o melhor no sistema democráti-co. Entretanto, a falta de resultados cons-titui um desrespeito às milhares de víti-mas dos acidentes de trabalho, incluindoviúvas e órfãos. A busca pelo consenso naelaboração ou atualização das normasprevencionistas não pode durar uma eter-nidade, como se tem visto nos grupos tri-partites. Quase todas as questões, sejamtécnicas ou administrativas, já foram tes-tadas em outros países. Portanto, não de-pendem de pesquisas científicas ou de so-luções economicamente inviáveis.

DIGNIDADEDIGNIDADEDIGNIDADEDIGNIDADEDIGNIDADEO aniversário de 30 anos da Portaria

3214 deve representar uma oportunida-de de reflexão para todos os prevencionis-tas, especialmente para aqueles que re-ceberam o poder de legislar a favor dostrabalhadores. A impressão que fica é deque o MTE (Ministério do Trabalho e Em-prego), não entende mais de prevençãode acidentes do trabalho e, portanto, nãosabe como conduzir o processo de revi-são e atualização da legislação.

O INSS avançou muito mais nas ques-tões prevencionistas atualizando suas ins-truções normativas (mesmo com algunsitens polêmicos) do que o MTE. Além dis-so, os Juízes do Trabalho, reunidos no XIV

Conamat (Congresso Nacional dos Magis-trados da Justiça do Trabalho – 29/4 a 2/5/08), na cidade de Manaus/Amazonas,em sessão plenária sustentaram que a re-lação entre o trabalhador e o seu local detrabalho deve ser examinada pelo prima-do da prevenção aos riscos ambientais enão pela monetarização desses riscos.Portanto, prestigiando-se o preceito fun-damental da dignidade da pessoa huma-na. Simplificando, outras organizaçõesestão fazendo o papel do Ministério doTrabalho.

Há, logicamente, questões que devemser negociadas no campo democrático,como a recente decisão do Supremo Tri-bunal Federal, que considera inconstitu-cional a vinculação do salário mínimo aoadicional de insalubridade. Nesse senti-do, deve ser enfatizado que a Portaria3214 tem a característica marcante deestabelecer a monetarização dos riscosocupacionais e a aposentadoria especial.

Esse é um lado vergonhoso da legisla-ção que se vem perpetuando desde 1936.Existem muitos procedimentos eminen-temente técnicos que podem ser tratadospor especialistas no assunto sem delonga.No final deste ano, mais de meio milhãode trabalhadores terão suas próprias his-tórias de acidentes com afastamento paracontar. Aproximadamente, 2.700 viúvasou órfãos estarão chorando as respectivasperdas. Será que o radicalismo sindical, ointeresse corporativo dos prevencionistas,o cinismo dos empresários e a falta devontade política do governo conseguirãoconsolar as vítimas dos infortúnios labo-rais? Parafraseando Ruy Barbosa pode-sedizer que, prevenção tardia não é preven-ção, mas o maior fator de riscos.