normatização contábil - ensaio sobre sua evolucao

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MARTINS, Eliseu; MARTINS, Vincius A.; MARTINS, Eric A.

Normatizao contbil: ensaio sobre sua ...

NORMATIZAO CONTBIL: ENSAIO SOBRE SUA EVOLUO E O PAPEL DO CPCEliseu Martins1 Vincius A. Martins2 ric A. Martins3 Resumo Nos pases do direito romano (code ou civil law), o processo de normatizao sempre foi a partir da lei, de cima para baixo, com pouca participao do profissional de contabilidade e menos ainda dos usurios da informao contbil; sempre privilegiou o credor, o fisco, o princpio do conservadorismo, a prevalncia da forma e da orientao por meio do mximo de regras possvel. Nos do direito consuetudinrio (common law), o processo de normatizao comeou a partir dos profissionais de contabilidade, posteriormente passando a ter forte participao dos usurios (principalmente analistas), da academia, das empresas; sempre privilegiou o investidor em aes, o princpio da competncia, a prevalncia da essncia econmica sobre a forma jurdica e a orientao com base em princpios e no em regras. Na dcada de 70 criaram-se o FASB nos EUA e o IASC (hoje IASB) na Europa, e este ltimo, com o objetivo de ser internacional, apesar de ter sido criado para fazer frente ao primeiro, adotou, e at com maior grau do que aquele, toda a filosofia bsica dos pases anglo-saxnicos: prevalncia da essncia sobre a forma, fundamento no conceito econmico o mais possvel, normas com base em princpios etc. Com o apoio da IOSCO e da Unio Europia, alastra-se hoje sua influncia total ou parcialmente por mais de 100 pases. O Brasil est muito atrasado, mesmo comparativamente aos pases emergentes, mantendo processo normativo contbil com base no code law, mas tentando seguir a filosofia contbil da common law. Recentemente, o governo federal tomou a iniciativa de apoiar um movimento privado de h praticamente duas dcadas e deu fora, formal e informalmente, criao do CPC Comit de Pronunciamentos Contbeis, rgo de direito privado formado por: ABRASCA, APIMEC, BOVESPA, CFC, FIPECAFI e IBRACON. Tem esse rgo, que ainda conta com participao ativa do Banco Central, da CVM, da SUSEP e da Receita Federal, o objetivo de centralizao do processo de emisso de pronunciamentos contbeis, fornecendo material a se transformar em normas contbeis pelos rgos reguladores prprios. O governo ainda deu fora para a aprovao do Projeto de Lei no 3741/2000 j que possui caractersticas sem as quais ser impossvel o pleno desenvolvimento das normas contbeis brasileiras rumo s do IASB, j que esse passou a ser o objetivo do governo e de todas essas entidades citadas.

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Doutor (Livre Docncia), Universidade de So Paulo (USP), emartins usp br. Doutor, Universidade de So Paulo (USP), vinicius usp br.

Graduado, cadastroseric terra com br.7Vol. 1, no 1 p. 7-30, set/2007

RIC/UFPE - Revista de Informao Contbil

MARTINS, Eliseu; MARTINS, Vincius A.; MARTINS, Eric A.

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Este trabalho mostra, a evoluo de todo o processo normativo contbil ao redor do mundo, o que facilita o entendimento do que ocorre hoje no s l fora, mas principalmente dentro do Brasil. Introduo A normatizao contbil, assim como a prpria contabilidade, tem sofrido um processo constante de evoluo; mas tambm tem se mostrado como totalmente influencivel, e deveras influenciada, pela cultura, pela economia, pelo pensamento jurdico, pelo poder, pelos interesses em jogo etc. Neste trabalho procuramos mostrar esse processo em dois grandes grupos de pases, apresentando um pouco dos aspectos originais, da evoluo e dos pontos favorveis e desfavorveis de um e outro. E tambm algo talvez inimaginvel h poucas dcadas atrs: a convergncia internacional hoje forte e, segundo alguns, sem retorno. Ao final, numa anlise mais detida sobre a situao brasileira, falaremos do ponto mais atual desse processo de normatizao contbil no Brasil: a criao, o papel e o provvel futuro do CPC - Comit de Pronunciamentos Contbeis - recentemente criado. A Normatizao Contbil nos Pases de Code Law So inmeros os trabalhos divulgados (inclusive nossos) sobre a influncia da filosofia do code law sobre a contabilidade, mas muito pouco tem sido escrito sobre essa influncia no processo de normatizao contbil. Vamos dividir essa anlise em diversos trechos da evoluo. A origem, o passado Muitos pases so regidos pela figura do code law, ou seja, do direito romano, do direito da normatizao extensiva e detalhada sobre todos os direitos e todas as obrigaes, da exigncia do cumprimento de tudo que estiver escrito da forma como est escrito, onde a presena do ato jurdico ou de qualquer instrumento nele alicerado fundamental, onde os julgamentos se do em funo da relao entre os fatos e os fundamentos antes detalhados em lei ou atos por ela previstos. Nesse grupo estamos ns, brasileiros, os latinos, os germnicos e alguns outros povos; entre estes, alguns ligados por uma espcie de empatia com essa filosofia, mesmo que desenvolvida de forma diferente, como os japoneses. Nesses povos, como muito bem sabemos, o processo de normatizao contbil nasceu com a caracterstica de ser "de cima para baixo". Toda a normatizao derivada do alto dos poderes executivo e/ou legislativo e por eles realizada detalhadamente. Leis determinam como se d o processo de normatizao, e leis do as normas contbeis propriamente ditas ou determinam quais rgos governamentais tm o poder para tanto. O Estado quase que absoluto nesse processo. Por isso temos, por exemplo, no Brasil, a contabilidade normatizada pela Lei 6.404/76 (antes pelo Decreto-Lei 2.627/40 e assim por diante), pelo Cdigo Civil ( bom nem falarmos do que l est contido hoje), pela Lei dando poderes ao Banco Central para emisso das regras contbeis especficas das instituies financeiras e pela Lei fazendo o8RIC/UFPE - Revista de Informao Contbil Vol. 1, no 1 p. 7-30, set/2007

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mesmo para a CVM em termos das companhias abertas e alguns outros exemplos. E a filosofia de que o Estado quem normatiza tem at levado alguns rgos reguladores federais a emitirem normas contbeis at mesmo sem autorizao legal para tanto, quase que "por embalo, no vcuo desse pensamento: cabe ao Estado normatizar. E no s no Brasil, onde a Receita Federal, por exemplo, s vezes exerce esse papel, sem ter esse poder formalmente constitudo (at onde seja do nosso conhecimento), mas tambm em outros pases. Esse processo de o Estado normatizar a contabilidade assim tambm na Frana, Alemanha, Espanha, Sua, Itlia, Japo etc. No caso do Japo, algo interessante: as normas contbeis so, nessa fase, dadas pelo Ministro da Fazenda, conforme disposio legal. Na maioria desses pases h, inclusive, plano de contas codificado nacional nico utilizado para a contabilidade de todas as empresas, e isso h praticamente um sculo em alguns deles. No Brasil essa codificao dada pela Lei (a das S/A) em termos apenas de demonstraes e alguns grupos de conta (Ativo Circulante, por exemplo), com determinao do seu contedo, mas sem obrigatoriedade de uma terminologia prdefinida para cada conta componente; esse detalhamento existe apenas em alguns casos no Brasil, como o COSIF para o caso das entidades sob o controle do Banco Central e outros. Pelo que vimos, praticamente apenas o Estado normatiza sobre a contabilidade nesses pases de code law ou a ele assemelhados, variando, claro, os nveis de detalhes dessa normatizao e da distribuio desse poder a um nmero restrito ou um pouco maior de organismos governamentais. Mas esse processo foi sofrendo algumas mudanas. O Poder Econmico e o Usurio mirado por essa normatizao nos pases de Code Law Nesses pases, o usurio externo empresa originalmente tomado como aquele que o alvo desse processo de normatizao, ou seja, o usurio externo principal, sempre foi o credor. O Cdigo Comercial Francs inaugurou isso h sculos, determinando que todos os comerciantes tivessem contabilidade pelo mtodo das partidas dobradas e elaborassem seus balanos... para proteo ao credor. interessante notar que a Contabilidade no nasceu para atendimento aos objetivos do prprio Estado, no nasceu para atender s necessidades informativas do investidor, ou mesmo do credor, ou para satisfazer a qualquer capricho. Nasceu para atender s necessidades de controle e mensurao do resultado dos mercadores, ou seja, nasceu para fins exclusivamente gerenciais. Os credores, os primeiros usurios externos das demonstraes de seus clientes, todavia, foram fortes. E conseguiram com que o Estado viesse e acabasse determinando que a contabilidade fosse elaborada para proteo a eles, credores. Pelo menos inicialmente, e nos pases sob a gide do code law. Olhando por outro ngulo, interessante notar que, nesses pases, a figura do intermediador financeiro, o banco, era figura mpar na economia no processo de financiar as empresas, e isso ainda ficou mais forte quando do crescimento dessas empresas nesses pases a partir da Revoluo Industrial. Nesses pases juntaram-se, portanto, as foras do banco com a do pensamento do direito codificado e criou-se, via o Estado, via a Lei, a obrigao da contabilidade e a9RIC/UFPE - Revista de Informao Contbil Vol. 1, no 1 p. 7-30, set/2007

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normatizao de como deveria ela ser praticada, bem como de como deveriam ser os critrios de elaborao de balanos etc. tudo visando a figura do credor. O referencial terico dessa fase O Conservadorismo Veja-se como fcil perceber, a partir dessa simples viso histrica, o porqu do surgimento de um forte Conservadorismo na contabilidade desses pases, a ponto de vir a ser ele o princpio contbil mais forte em alguns deles, como na Alemanha, por exemplo; mais forte e mais exigido do que a prpria Competncia! Se for para proteger o credor, e conseqentemente fugir dos riscos legais de ser acionado e, s vezes at criminalizado por eventuais prejuzos a terceiros, nada como restringir o conceito de ativo, baix-lo o mais rapidamente possvel, provisionar tudo o que for possvel e imaginvel no passivo, postergar receitas, antecipar perdas etc. etc. At hoje remanesce, na Sua, a figura da Proviso para Riscos Gerais, que pode ser constituda pela administrao simplesmente se considerar que isso para proteo aos credores... A figura da image fidle Nasce, dentro dessa filosofia, a figura de que o balano deve prover uma image fidle do que ocorre. Mas a idia do que seja essa imagem fiel perturbadora; afinal de contas, talvez passssemos a entender como imagem fiel ao que ocorre isso realmente foi o incio mas a complementao passou a ser: "e registrada conforme as leis". Farta literatura francesa explica muito bem o vnculo da figura da image fidle com a regularit, sendo esta ltima vinculada rgua da lei. Ou seja, o importante que se faa um balano de acordo com a lei, para assim deixar de se estar passvel de punio por eventual prejuzo a terceiros. Essa figura da obedincia lei foi dada como muito importante para proteo em funo da prpria legislao punitiva quando de prejuzo a credores. Nesses pases, portanto, a procura pela normatizao at requerida por parte dos profissionais de contabilidade (e tambm de auditoria, mais tarde), para evitar esses problemas de infringncia ao princpio da proteo ao credor. Normatizao rules oriented Dentro dessa linha, nada melhor tambm do que toda a normatizao ser dominada por regras detalhadas (rules oriented); tudo o mais normatizado possvel; tudo com base em regrinhas: se acontecer isto, faa aquilo, se acontecer a alternativa a, faa a pergunta b, se esta for positiva, faa tal coisa etc. E, se possvel, todas as solues so encontradas a partir da leitura detalhada das regras e do seguimento dos passos dados. No preciso nem devido criar, o julgamento se restringe s classificaes de onde o fato contabilizvel se enquadra. Claro que o comentado neste ltimo pargrafo um caso extremo, porque nas normatizaes nunca se consegue ter todas as alternativas colocadas. Mas essa a meta no processo rules oriented.10RIC/UFPE - Revista de Informao Contbil Vol. 1, no 1 p. 7-30, set/2007

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E isso tambm ajuda no processo de se retirar o peso das costas, j que basta o profissional ter uma leitura adequada do que passvel de registro contbil para, seguindo as regras, no poder ser acusado de inpcia, erro ou, pior ainda, fraude. Fases seguintes: o surgimento, do investidor em aes e do Estado tributante Quando se desenvolve nesses pases de code law a figura da sociedade por aes, com o financiamento no derivado de bancos, mas sim diretamente de pessoas fsicas e jurdicas poupadoras via emisso de aes, o poder desse mercado, frente ao bancrio, no suficiente para uma mudana forte no processo de normatizao nem nas prprias normas contbeis. Surgem, sim, leis para proteo ao interesse dos investidores minoritrios (no detentores do controle ou do bloco de controle), mas a figura central da normatizao contbil continua sendo, mesmo agora numa segunda fase, a do credor. Questo de poder: os bancos continuam a forte fonte de financiamento das empresas, e no o mercado de aes na Alemanha, na Frana etc. Por outro lado, com o desenvolvimento da tributao via imposto de renda, ocorre algo interessante: muito importante para o empresrio que seja mantido o status quo, j que uma contabilidade bastante conservadora leva tambm a uma postergao do pagamento desse tributo. Logo, interessa ao contribuinte que o fisco tribute sobre o lucro contbil conservador e no interessa qualquer mudana do que vem sendo feito at ento. Mas o Estado comea a fazer uso de seu poder normativo sua arrecadao. Nos pases germnicos, principalmente, o empresariado consegue segurar a situao e a contabilidade e o fisco ficam totalmente atrelados um ao outro, mas ambos atrs da primazia, que sempre a figura do credor. Continua, assim, um conservadorismo muito forte. J nos estados latinos, o poder do Estado faz com que, na lei, a situao continue dando o credor como o grande usurio externo a ser beneficiado com a normatizao contbil, mas, na prtica, o interesse tributante faz com que cada vez mais a contabilidade seva voltada para o interesse da arrecadao. Com isso, nos germnicos a tributao segue o interesse pela proteo ao credor mas, nos latinos, o interesse dos credores fica mais atrelado aos interesses fiscais (qualquer semelhana com a situao brasileira no mera coincidncia...). Pode surgir a pergunta: mas como os credores ficam com demonstraes contbeis com tanta influncia fiscal e to conservadoras? A resposta fcil: eles tm acesso s informaes que quiserem, que pedirem, porque conseguem isso quando seus clientes vm pedir seus emprstimos. No dependem tanto assim os credores, portanto, apenas dos balanos formais divulgados ou colocados sobre suas mesas. E sabedores que uma contabilidade conservadora posterga desembolso com dividendos e com tributos, tm nela um aliado para reter recursos dentro da empresa, o que lhes aumenta a probabilidade de recebimento de seus juros e de seu capital. Surgem mudanas nesse processo o hibridismo normativo De qualquer forma, o incremento da participao do mercado acionrio no financiamento das empresas comea a fazer presso para mudanas nesses pases de code11RIC/UFPE - Revista de Informao Contbil Vol. 1, no 1 p. 7-30, set/2007

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law. Mas mudanas em lei de natureza contbil so coisas dificlimas de acontecer. Outro ponto: quando se tem a introduo de novas leis, tem-se, de fato, a oportunidade de grandes avanos. Por exemplo, a mudana em 1976, com a introduo da Lei das S/A, foi um dos maiores marcos evolutivos da contabilidade no Brasil. Mas, a partir da, quantos novos tipos de negcios apareceram, novos instrumentos financeiros foram criados, novas evolues na tcnica contbil surgiram, e nada de se conseguir implementar as mudanas necessrias na lei. Sempre o interesse na evoluo da lei contbil , no Congresso, residual. Com isso, a lei alavanca a contabilidade no primeiro momento e, logo a seguir, continua funcionando como alavanca, mas para impedir o desenvolvimento contbil. Alm do mais, muitas vezes os rgos reguladores governamentais, por terem responsabilidade sobre o acompanhamento da sade e vitalidade das sociedades que lhe so submetidas, acabam por regular muito mais pensando em si mesmos do que nos demais usurios das informaes contbeis. Isso j aconteceu muito no passado brasileiro no caso, por exemplo, do Banco Central, da SUSEP, DNAEE etc. Mas, a comentada evoluo do mercado acionrio, a prpria profisso, o ensino, a pesquisa, o conhecimento da evoluo no mundo relativo contabilidade, a reao aos rgos que regulam pensando em si mesmos e outros fatores vo pressionando para que se tenha, nesses pases de code law, um desatrelamento da contabilidade dos interesses fiscais, que se tenha uma viso das demonstraes contbeis no to exageradamente conservadora, que se tenha uma preocupao com os demais usurios externos e se consigam, assim, balanos de melhor qualidade para os usurios externos em geral. (Os usurios internos, ou seja, a prpria administrao da empresa, sempre tm condies de produzir relatrios gerenciais conforme as prticas que consideram mais informativas.) Com isso vo surgindo organizaes, nessa fase, normalmente no governamentais, que se colocam na funo de complementadoras das normas dadas pelo Estado. No Brasil, temos o caso do IBRACON Instituto dos Auditores Independentes do Brasil, do CFC Conselho Federal de Contabilidade e, como extenso da CVM Comisso de Valores Mobilirios, da sua Comisso Consultiva de Normas Contbeis. S que, no fundo, esses rgos no tm poderes normatizadores legalmente estatudos, no conseguem ter poder de enforcement sobre as administraes das empresas. Produzem muitas vezes documentos de alta qualidade contbil mas, na prtica, pouco de fato conseguem, j que a estrutura est baseada no que est na lei e nas mos dos rgos que tm poderes conferidos por lei. Mas no deixa de ser louvvel todo o trabalho empreendido pelos que tentam a evoluo, apesar de s poderem ter sucesso parcialmente. mais ou menos essa a situao atual do Brasil. A Normatizao Contbil nos Pases de Common Law Os pases anglo-saxnicos so guiados pela filosofia do common law, do direito consuetudinrio, do direito dos costumes, onde se escreve o mnimo possvel na lei e deixa-se aos julgadores a aplicao desse mnimo em casos particulares com base, agora, nos costumes, na tradio, na jurisprudncia.12RIC/UFPE - Revista de Informao Contbil Vol. 1, no 1 p. 7-30, set/2007

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Vemos isso fortemente nos filmes norte-americanos onde nos tribunais so constante e fundamentadamente citados os casos julgados na corte tal, em tal outro caso etc. No h preocupao em se deter em detalhes da lei, os julgadores que tm que estar preparados para saber o que que representa, perante a sociedade, o conceito de "justo" em cada caso. Por isso at hoje elegem tambm os juzes: eles vm do seio da sociedade porque esta reconhece que eles tm uma boa capacidade de entender o que o justo. A Origem, o Passado Nesses povos, e a esto a Inglaterra, a Irlanda, a Esccia, os EEUU, a Austrlia etc., o processo de normatizao contbil nasceu com caracterstica completamente diferente: "de baixo para cima". No se colocam na lei regras contbeis, quais demonstraes devem ser feitas, como se classificam os ativos, como se reconhecem as despesas de depreciao etc. A lei apenas exige que se tenham as demonstraes contbeis e, normalmente, nada mais. E quem se responsabiliza por dar as normas de contabilidade (e todas as demais normas tcnicas das outras reas do conhecimento) so os que trabalham com a contabilidade, os que a produzem, ou seja, os Contadores. Criam-se associaes desses profissionais para que eles digam como se deve processar a contabilidade. Da a famosa expresso princpios contbeis geralmente (generalizadamente, melhor dizendo) aceitos, mas aceitos por quem? Pelos prprios contadores. No toa que o Instituto de Chartered Accountants da Inglaterra e o dos Certified Public Accountants dos Estados Unidos tiveram, nessa fase, o total domnio do processo de normatizao contbil. Nada de leis, de decretos, de instrues de rgos reguladores etc. Os contadores que normatizam! Na fase inicial nesses pases de common law, praticamente o Estado inexiste no processo de normatizao contbil. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, a lei apenas estabelecia que a contabilidade era de responsabilidade de uma agncia governamental a SEC Securities and Exchange Commission (a CVM deles), mas esta simplesmente delegava, integralmente, essa tarefa aos contadores, principalmente aos do AICPA, instituto j mencionado. O Poder Econmico e o Usurio alvo dessa normatizao nos pases de Common Law Nesses pases, especialmente Inglaterra no incio e Estados Unidos posteriormente, desenvolve-se vigorosamente a companhia aberta, principalmente a partir dos altos valores de capitais exigidos para a montagem das grandes empresas com a Revoluo Industrial. O forte do financiamento das grandes indstrias, das grandes companhias que precisam de altssimo capital (de estradas de ferro, siderrgicas e outras no incio, de eletricidade, telefonia e outras posteriormente) se d atravs de lanamento de aes, e no de financiamento bancrio. Com isso, neles cresce a figura de um usurio externo que se torna o principal foco de ateno dos normatizadores contbeis: o investidor minoritrio em aes. S que ele no pode, como podem os credores, ter acesso diretamente s informaes das empresas. No tm o poder do credor que exige informaes adicionais que lhe permitem visualizar13RIC/UFPE - Revista de Informao Contbil Vol. 1, no 1 p. 7-30, set/2007

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melhor a evoluo do patrimnio da empresa. Com isso, vital que se consigam meios de dar a esses investidores informaes que sejam suficientemente confiveis a fim de que possa o mercado acionrio crescer, onde os acionistas possam vender suas aes quando precisarem de recursos ou por outros motivos, e onde possam as companhias obter novos recursos mediante venda de novas aes. Da a necessidade de informaes mais realistas, no exageradamente conservadoras, sem as tais reservas ocultas formadas por deliberadas subavaliaes de ativos ou superavaliaes de passivos. E precisam de terceiros que examinem essas demonstraes e sobre elas opinem antes de ir ao mercado: nasce da o papel do auditor independente e do seu parecer. No que se abandone figura do credor, mas inverte-se a prioridade, dando-se mais nfase, no processo de normatizao contbil, ao usurio representado por investidor em aes. O Referencial Terico dessa fase Representao Econmica Regime de Competncia O Regime de Competncia assume papel preponderante, pois se acredita que ele d uma viso muito mais realista do que ocorre com a empresa e permita ao investidor condies de melhor olhar para o futuro (tantas pesquisas hoje provam isso com instrumentos economtricos muito interessante!). Ele ganha preponderncia sobre o Conservadorismo. No que se tenha deixado de ser conservador, prudente; apenas o nvel e a prioridade mudaram; deixou-se de ser to exageradamente conservador quando isso provoca deformaes contbeis. O princpio bsico europeu continental continua sendo o do conservadorismo, o das ilhas, passa a ser o da competncia. Num exemplo clssico: reconhecer o resultado nos contratos de longo prazo apenas quando do trmino da obra , at hoje, a regra nacional para grande parte dos pases do code law europeu. No h apurao de lucro enquanto no se terminar a encomenda, mesmo que isso leve vrios anos; isso bom tambm para fins fiscais, na viso de muitos empresrios. J essa forma no aceitvel para o mercado acionrio: falta de resultado nos primeiros anos e, quando se termina a obra, todo o resultado reconhecido de uma vez. Preferem os anglo-saxnicos a idia de um resultado mesmo que aproximado, mas reconhecido durante a execuo da obra, com os ajustes sendo feitos medida que ela avana. Tantos outros exemplos existem. A figura da true and fair view Nasce, dentro dessa filosofia, a figura de que o balano deve prover uma true and fair view do que ocorre. No , de fato, a mesma viso que a image fidle comentada, j que esta assim entende tudo que est de acordo com a lei, mas a viso verdadeira e adequada (justa) dos anglo-saxnicos considera a realidade econmica como bsica. A expresso tpica criada de que accounting follows economics, ou seja, a contabilidade segue a economia, segue o fato econmico. E true and fair view quando se tem a representao da realidade econmica atravs da contabilidade.14RIC/UFPE - Revista de Informao Contbil Vol. 1, no 1 p. 7-30, set/2007

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Prevalncia da Essncia sobre a Forma Decorre dessa viso a conseqncia de que, se houver, em algum momento, algum instrumento formal, mesmo que por lei ou apoiado em lei, que precise ser contabilizado e que, se registrado conforme suas caractersticas formais, no represente bem a realidade, deve-se ento abandonar, na contabilidade, a forma, e registrar-se a essncia econmica dos fatos e atos escriturveis. Essa prevalncia da essncia sobre a forma fundamental nesses pases, base conceitual fortssima. Por isso, h dcadas, noutro exemplo clssico, se recusam a reconhecer os arrendamentos mercantis financeiros como operaes de emprstimo, e sim como compra e venda financiada. Normatizao principles oriented Dentro dessa linha do common law, nada melhor tambm do que toda a normatizao ser dominada por regras baseadas em princpios, e no em detalhes. O mais clssico exemplo, a velhssima definio de equivalncia patrimonial: mtodo que faz com que o lucro lquido e o patrimnio lquido sejam iguais aos que seriam obtidos na consolidao dos balanos. Pronto, por que dar mais detalhes? Basta normatizar isso. S que isso passa a exigir julgamento, capacidade de interpretao, responsabilidade pela deciso de como contabilizar, do que aceitar na auditoria etc. (Talvez da a to maior imagem do contador nesses pases: profisso que assume riscos, que exerce julgamentos, que decide, que age visando a true and fair view, e no mero cumpridor das regras detalhadamente colocadas.) Fase seguinte: o surgimento do Estado tributante Nesses pases, quando o Estado entra tributando, logo se cria a noo de que ele um usurio especial, que precisa mesmo de regras especiais. E por causa disso merece um balano especial, separado, s para ele, se suas regras no forem as do interesse dos demais usurios externos, principalmente o investidor em aes. Nascem da os balanos fiscais separados dos contbeis; originam-se destes, mas contm regras separadas para muitas finalidades: depreciaes, provises para riscos, reconhecimento de receitas e de despesas, arrendamento mercantil financeiro etc. Apesar de que, em princpio, nesses pases o fisco tambm procura fazer com que sua tributao seja em cima de resultados contbeis baseados na essncia econmica. De onde fomo buscar a figura do LALUR livro de apurao do lucro real? De onde veio essa idia, originalmente trazida pela Lei das S/A, de se ter uma contabilidade separada quando exigncias e interesses especficos requerem regras diferentes dos princpios contbeis geralmente aceitos? claro que foi desses pases, quando se tentou, em 1976, pela primeira vez, uma guinada na contabilidade para a viso anglo-saxnica.

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Surgem problemas nesse processo o endogenismo normativo Mas esse processo em que os contadores que mandam na contabilidade comeou a sofrer enormes crticas por parte dos usurios da informao contbil. Comearam, principalmente os investidores minoritrios, a reclamar que os contadores normatizavam a contabilidade muito mais preocupados com seus empregadores ou contratantes, ou seja, com as companhias, do que com eles, usurios. O prprio Estado entendeu e verificou uma forte verdade nesses reclamos e agiu. No passou, todavia, a exercer o papel de normatizador, continuou delegando-o, mas no mais a apenas um grupo dos interessados na contabilidade (no caso ns, os contadores), mas sim a um grupo mais amplo, onde estivessem representados os que produzem os balanos (as companhias abertas), os auditores independentes, os usurios e a academia (!!!). E assim nasceu, nos Estados Unidos, h pouco mais de quatro dcadas, o FASB Financial Accounting Standards Board, rgo privado, que age por delegao de um rgo governamental. Uma Novidade: nasce o IASC, antecessor do IASB. Mudaram os Europeus Continentais (Code Law)? No mesmo ano da criao do FASB, os europeus passaram a se preocupara com duas coisas: a) primeiro, que esse organismo fortaleceria ainda mais o poderio e a influncia da contabilidade norte-americana sobre o mundo, e provavelmente aquele pas tentaria fazer com que suas normas se transformassem em nicas no mundo. E eles, europeus, no estavam dispostos a reconhecer que um dia teriam que obedecer s regras ditadas pelos norte-americanos; b) segundo (incrvel!): que o mundo europeu estava mudando: I. acabaram, pelo menos na elite contbil europia, por verificar que seu velho modelo baseado na normatizao pelo Estado, e com o exagerado conservadorismo, no estava mais satisfazendo um mercado onde os usurios iam ficando mais exigentes. Devido ao crescimento das formas de negociao e dos instrumentos de negcio, inclusive os instrumentos financeiros, e devido lentido dos rgos estatais normatizadores, um enorme hiato ia se formando; II. crescia a figura do investidor minoritrio, com o crescimento do mercado acionrio e a viso de que ele se expandiria muito mais ainda. Dessa forma os credores no eram mais os nicos e nem necessariamente os mais importantes usurios da informao contbil; III. os credores no tinham mais condies de conseguir, diretamente junto a seus clientes, todas as informaes que antes conseguiam, inclusive pelo crescimento do nmero de clientes. Assim, sua dependncia dos balanos aumentava e eles precisavam ter mais balanos com a true and fair view; IV. com isso, a figura da essncia sobre a forma passou a ser fundamental para demonstraes contbeis realistas e carregadas de maior poder informacional e preditivo; etc.16RIC/UFPE - Revista de Informao Contbil Vol. 1, no 1 p. 7-30, set/2007

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Com isso, juntaram-se com representantes tambm de outros continentes e criaram o IASC International Accounting Standards Committe, rgo de direito privado, com o objetivo de criar normas genuinamente internacionais, mediante a juno de representantes de muitas naes (veja-se que ele comeou com quase uma centena deles). Ainda, foi estruturado com base tambm na idia de juntar todos os interessados: os que produzem as informaes contbeis, os que a auditam, os que a utilizam e a academia. De fato, os europeus se uniram e mudaram! Habilidades polticas do IASC - IASB Alm de sua habilidade em comear congregando enorme nmero de pases, conseguiu incluir os ingleses entre seus membros, at porque usariam sua filosofia bsica; colocaram, inclusive, sua sede na Inglaterra. Alm do mais, colocar os ingleses, sempre to ligados aos norte-americanos, era politicamente muito bom, pois os teriam como aliados, e no como eventual aliado dos "inimigos". Outra habilidade: comeou o IASC a produzir normas contbeis para uso internacional dentro da linha anglo-saxnica da essncia sobre a forma, da true and fair view; mas, no princpio, para atrair simpatizantes e no assustar a todos, aceitando muitas alternativas para inmeras situaes contbeis. Depois, com o decorrer do tempo, foi procurando eliminar muitas dessas alternativas, criando a figura do tratamento preferencial (benchmark) e do tratamento alternativo para certas situaes, e, mais recentemente, eliminando a quase totalidade desses tratamentos alternativos. E isso muito interessante, haja vista seu nascimento em meio a pases onde a maioria tinha um histrico muito mais rules oriented do que principles oriented. Ocorre que, ao mesmo tempo em que os pases de Common Law passaram a adotar uma postura mais forte no sentido de emisso de normas e regras especficas (note-se a quantidade de detalhes hoje existentes nas normas do FASB), aqueles de Code Law passaram a se movimentar tambm em uma direo mais ao centro das duas posturas: esto agora assumindo uma posio mais baseada em princpios do que em regras. Assim, a elite pensadora desses pases de code law comeou a perceber, por conta dos pontos j apresentados anteriormente, que esse caminho era mais adequado, principalmente quando se tratava de normatizao internacional. E no precisava a mudana ser to drstica, j que poderiam ser um pouquinho rules oriented tambm, igualmente aos norteamericanos. Mais tarde conseguiu ainda o IASC que a IOSCO International Organization of the Securities Commissions rgo que rene as CVMs de quase o mundo todo, sugerisse a adoo de suas normas por parte dos seus associados. Desde o incio adotou o IASC a representao tambm relativamente paritria entre quem produz as informaes, quem as audita e quem as usa, alm da academia, reconhecendo que o melhor modelo esse em que se colocam na mesma mesa todos os interessados, dali saindo as normas contbeis, por consenso de preferncia, ou pelo menos por maioria, mas aps oportunidade para todos colocarem seus pontos de vista. Mais tarde, mudou toda sua forma estrutural e governana, passando para IASB International Accounting Standards Board, com representao mais ampla e democrtica e com diversos nveis de gestores mas um nico rgo deliberativo tcnico.17RIC/UFPE - Revista de Informao Contbil Vol. 1, no 1 p. 7-30, set/2007

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E, no incio deste sculo, o IASB conseguiu que a Unio Europia passasse a exigir, a partir de 2005, que suas companhias abertas divulgassem suas demonstraes consolidadas de acordo com suas regras.

Referencial Terico do IASB Sem nos alongarmos muito, o IASB tem como grandes usurios gerais o investidor minoritrio e o credor, com leve preponderncia do primeiro, mas tambm se preocupa com empregados e outros usurios; de forma alguma tem como objetivo quaisquer usurios em particular, como o fisco, rgos reguladores etc. Sua bandeira mor a essncia sobre a forma, a ponto de, em seu IAS 1, definir que, na hora da aplicao de suas normas, se alguma delas, em situao que se acredita seja rara, produzir qualquer deformao em qualquer informao contbil, ela no poder ser usada e ter que ser substituda por outra que retrate melhor o que precisa ser contabilizado. Caso contrrio, no poder a empresa dizer que est seguindo as normas internacionais! Ou seja, a substncia econmica mais relevante do que as regras propriamente ditas. Procura trabalhar com base na filosofia do principles oriented, ou seja, suas normas procuram dar mais nfase aos princpios do que s regras detalhadas, apesar de algumas vezes isso no ser bem seguido, principalmente em situaes muito difceis e novas, como no caso dos instrumentos financeiros avaliados a mercado. Segue a filosofia, claro, da true and fair view e da representao econmica. Um Susto Os escndalos norte-americanos Os Estados Unidos passaram, o FASB passou, o IASB e a Unio Europia tambm, todos passaram por um perodo quase que de pnico quando, no final dos anos noventa e incio desta dcada os escndalos contbeis norte-americanos sacudiram o mundo. Estaria a filosofia do FASB, da essncia e da representao econmica errada? A normatizao por um rgo privado estaria no caminho incorreto? Deveria ser estatizada a normatizao contbil etc. etc.? Os norte-americanos se aprofundaram no assunto, concluram que no s a filosofia do FASB e forma de atuao estavam adequadas, mas tambm como toda a sua filosofia. Na realidade, a nica crtica foi de que precisava voltar a ser mais principles oriented do que vinha sendo, mas nada mudou l. O problema no estava nas regras contbeis, mas sim no comportamento de algumas pessoas que, alm de no no seguir a filosofia da essncia sobre a forma, cometeram fraudes. Problema de comportamento e carter pessoais, no do modelo de normatizao. Tanto que mudaram as regras relativas ao processo de auditoria independente, mas no os da normatizao contbil ou das regras contbeis em si. A Unio Europia tambm parou para pensar, analisou e concluiu a mesma coisa, deliberando por continuar em seu plano que acabou se implementando: a partir de 2005 as companhias abertas l tm seus balanos consolidados conforme as IASs (International Accounting Standards Normas Contbeis Internacionais).18RIC/UFPE - Revista de Informao Contbil Vol. 1, no 1 p. 7-30, set/2007

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Tudo ento no passou de um susto. O Mundo e o Brasil at recentemente O Mundo O mundo mudou, como j falamos da Unio Europia; tantos pases criaram seus organismos internos plurais e de direito privado, como at a Alemanha e o Japo, fora claro, de Inglaterra, Austrlia e tantos outros. Mas mesmo com tais rgos individuais em cada pas, h por parte dessa grande maioria um alinhamento s normas internacionais. Em muitos pases ainda so realizados os balanos individuais, primrios, das empresas de acordo com as normas internas de cada pas (mesmo em se tratando de membros da Unio Europia), mas os balanos consolidados so apresentados de acordo com as normas internacionais do IASB. O Mxico criou o seu organismo denominado CINIF Consejo Mexicano para la Investigacin y Desarrollo de Normas de Informacin Financiera, que substituiu integralmente o papel do Instituto Mexicano de Contadores e est caminhando rapidamente para a convergncia com as normas do IASB. O Uruguai costuma aprovar integralmente as normas do IASB conforme publicadas originalmente. A China, no seu processo de abertura economia mundial, est com trabalhos inmeros para a implantao dos IASs, inclusive com programas de treinamento ambiciosos para seus contadores e auditores. Vrios pases da frica e do Caribe substituram, por completo, suas normas locais pelas do IASB; Austrlia e Hong Kong as adotam, mas efetuam algumas adaptaes. Hoje, mais de uma centena de pases, no mundo, de forma parcial ou completa, utiliza essas normas internacionais. O Brasil at recentemente J comentamos atrs vrios dos aspectos relativos ao Brasil. Em 1976 houve a tentativa de levar a nossa contabilidade para a filosofia anglo-saxnica, inclusive com a busca da segregao da contabilidade societria de outros interesses, principalmente da contabilidade fiscal (art. 177, par. 2o da Lei no 6.404/76). Mas a prpria posio do fisco e a falta de capacidade nossa, contadores, de nos movimentarmos pelo efetivo cumprimento da lei levou a transformar isso em letra talvez no morta, mas pelo menos moribunda. Mesmo assim, o avano com essa Lei foi monumental, com a insero da equivalncia patrimonial, consolidao, correo monetria, eliminao das antigas contas de pendente do ativo e passivo, nomenclatura mais avanada (eliminao dos ilgicos fundos de depreciao, devedores duvidosos e outros), classificao mais moderna, introduo da demonstrao das origens e aplicaes de recursos e da mutao do patrimnio lquido, segregao entre demonstrao do resultado e dos lucros ou prejuzos acumulados etc., etc. Mas continuvamos, e ainda continuamos, dentro das amarras da lei geral e das leis especficas que do poderes a determinados rgos governamentais. Vrios organismos, conforme j citados, comearam a emitir normas, com e sem poderes legais19RIC/UFPE - Revista de Informao Contbil Vol. 1, no 1 p. 7-30, set/2007

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para isso e o que conseguimos foi uma certa balbrdia, com muitas entidades sujeitas normatizao contbil de vrios rgos diferentes, e eles, entre si, nem sempre harmonizados. Alis, pelo contrrio, s vezes em completa desarmonia. H j vinte anos um grupo procurava eliminar essa diversidade, procurando criar um organismo brasileiro que fosse nico nesse processo de normatizao contbil, de direito privado, constitudo por representantes plurais dos agentes envolvidos. Vrios projetos de lei foram levados ao Congresso, mas tudo sem sucesso. Em 2000 um projeto de lei, de no 3.741/2000, procurou novamente o caminho e, aps sete anos de discusso, parece que est, efetivamente, para ser votado. E ele poder, realmente, significar um outro fantstico ponto de apoio para nossa evoluo contbil, mas falaremos disso mais frente. E ns vimos, de certa forma at que com certa rapidez, tambm emitindo normas que so tradues ou adaptaes daquelas do IASB, como os Pronunciamentos do IBRACON que se transformaram em Deliberaes da CVM recentemente (nos 488 e 489 de 2005, 505 e 506 de 2006 etc.), as NBCTs do Conselho Federal de Contabilidade (19.12 de 2007, 19.11 de 2006 etc.). Mas, inmeras vezes, temos que fazer adaptaes ou simplesmente deixar de aplicar certas normas porque h impedimentos por parte da lei brasileira. Mas continuvamos, h pouqussimo tempo, com cada um emitindo normas sobre o mesmo assunto (como algumas das citadas), e no de maneira harmonizada. A Criao do CPC H poucos anos, nosso Presidente da Repblica teve sua ateno chamada, em Davos, Sua, para o fato de que o Brasil no estava, concretamente, implantando as normas internacionais. Fez ele o assunto ir ao Ministrio da Fazenda que passou a ter uma posio pr-ativa muitssimo interessante, cobrando inclusive o andamento do processo. Com isso passou tambm a ter uma atitude bastante firme com relao ao andamento do citado Projeto de Lei no 3741/2000. Aproveitando esse momento, aqueles abnegados que h tanto tempo procuravam por esse caminho, entusiasmaram-se e deram novamente fora ao velho projeto. A formalizao do CPC Em final de 2005, as seguintes entidades de direito privado (ABRASCA Associao Brasileira das Companhias Abertas, APIMEC NACIONAL Associao dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais, BOVESPA Bolsa de Valores de So Paulo, FIPECAFI Fundao Instituto de Pesquisas Contbeis, Atuariais e Financeiras e IBRACON Instituto dos Auditores Independentes do Brasil) oficiaram ao CFC Conselho Federal de Contabilidade pedindo a criao do CPC Comit de Pronunciamentos Contbeis. O CFC, pela Resoluo no 1.055/05 criou tal Comit, formado por essas seis entidades. Formalmente foram trs as razes dadas para sua criao; necessidades de: - convergncia internacional das normas contbeis (reduo de custo de elaborao de relatrios contbeis, reduo de riscos e custo nas anlises e decises, reduo de custo de capital);20RIC/UFPE - Revista de Informao Contbil Vol. 1, no 1 p. 7-30, set/2007

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centralizao na emisso de normas dessa natureza (no Brasil diversas entidades o fazem); e - representao e processo democrticos na produo dessas informaes (produtores da informao contbil, auditor, usurio, intermedirio, academia, governo). Ou seja, enumeraram-se, como motivos para sua criao, em primeiro lugar os mesmos utilizados em todo o mundo: reduo dos custos de elaborao de diversos balanos, sob diversos critrios, para pases ou organismos diferentes. A transnacional que tenha investimentos em 20 pases (como algumas brasileiras j o tm), precisa decodificar balanos de possveis 20 critrios diferentes, passando-os aos brasileiros, para fins de equivalncia patrimonial e consolidao. E, depois, talvez pass-los ainda para as normas norte-americanas ou as internacionais para satisfazer seus acionistas e credores no exterior. Quanto custa isso? Pior ainda, quanto custam as decises erradas por se analisar balanos que, conforme os critrios adotados, podem mostrar patrimnios, relaes patrimoniais, desempenho diferentes? E o mundo que cada vez mais empresta dinheiro, investe dinheiro, d e recebe crdito para transaes comerciais no pode ficar merc desses riscos, desses custos e desse tempo perdido. Com isso, h um acrscimo do custo de capital que pode muito bem ser reduzido. O segundo conjunto de motivos o reconhecimento que precisamos, antes de mais nada, de uma harmonizao entre ns mesmos, j que temos tantos organismos emitindo normas sobre o mesmo assunto e, conforme j dissemos, s vezes no harmonizadamente. E essa harmonizao s vivel se se sentarem todos mesma mesa. E o terceiro o abrao idia de que as normas contbeis so algo por demais importantes para ficarem nas mos de apenas um grupo dos diversos que tm interesse nas informaes. Por isso, precisa estar juntos quem prepara as informaes, quem as audita, quem as analisa, quem as utiliza para fins comerciais, quem as estuda e sobre elas pesquisa e o prprio governo. O forte apoio governamental sabido que houve forte apoio governamental para a criao do CPC. O Ministrio da Fazenda, a CVM, o BACEN, a SUSEP e outros rgos deram seu apoio idia. No caso da CVM, por exemplo, seu Presidente deu inmeras declaraes, inclusive pblicas, incentivando a criao desse Comit, o mesmo acontecendo com o DENOR Departamento de Normas do Banco Central etc. Objetivos do CPC E assim nasceu o CPC tendo como objetivos, segundo a Resoluo que o criou:o estudo, o preparo e a emisso de Pronunciamentos Tcnicos sobre procedimentos de Contabilidade e a divulgao de informaes dessa natureza, para permitir a emisso de normas pela entidade reguladora brasileira, visando centralizao e uniformizao do seu processo de produo, levando sempre em conta a convergncia

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da Contabilidade Brasileira aos padres internacionais. (negritos e sublinhados nossos)

Permitir a emisso de normas pela entidade reguladora brasileira Por que essa expresso? O problema que a Constituio Brasileira impede que organismos pblicos deleguem atribuies que lhes foram dadas por lei para terceiros. Com isso, diferentemente do que pode, por exemplo, a SEC norte-americana, a CVM brasileira no pode delegar ao CPC a capacidade de emisso de normas contbeis que ela tem, nem o Banco Central etc. Assim, o nico caminho encontrado, juridicamente, foi o seguinte: o CPC emite seus Pronunciamentos (note-se que no so chamados de "Normas") e eles precisaro ser aprovados por todos os rgos reguladores envolvidos (BACEN, CVM, CFC, IBRACON e outros). Na verdade a CVM j vem fazendo isso h mais de 20 anos com documentos emitidos pelo IBRACON, por exemplo, mas isso dever se transformar em regra daqui para frente. Convergncia da Contabilidade Brasileira aos padres internacionais Est ento devidamente formalizado que o CPC dever trabalhar em convergncia com as normas do IASB, o que j comeou, inclusive, a fazer. Provavelmente na maioria das situaes existiro apenas tradues de normas do IASB; em outras, quando for necessrio, ajustes sero efetuados de natureza talvez redacional, exemplificativa ou outra, sem que a substncia se modifique. Em casos extremos que poder haver alguma no convergncia, que dever ser temporria, ou por razes de ordem legal ou outra a ser devidamente sanada. Se for o caso, inclusive, de se detectar que temos condies de emisso de uma norma tecnicamente melhor, ou de que h imperfeies na norma original, deveremos informar imediatamente ao IASB para que eles tenham a oportunidade de efetuar os ajustes, se com eles concordarem. Persistindo eventual divergncia uma deciso ter que ser tomada que levar em conta a relevncia da matria e dos valores possivelmente envolvidos, o objetivo maior da internacionalizao das normas e outros, conforme cada caso. Alis, muitos perguntam: isso significa que o CPC tem vida temporria? Afinal, aps a completa convergncia, o que restar a ele fazer? Traduzir apenas as novas normas? De uma certa maneira seu papel dever, no futuro, realmente mudar: passar a ser um coadjuvante, que esperamos de fora, no sentido de oferecer ao IASB trabalhos, crticas, proposies, minutas e tudo o que for possvel no processo de melhoria da informao contbil ao longo do mundo e sua harmonizao e convergncia.

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O Funcionamento do CPC Caractersticas bsicas a) Composio e Autonomia O CPC totalmente autnomo de cada uma das 6 entidades que hoje o compem, deliberando por conta prpria, sem que tenha que formalmente submeter suas decises a qualquer desses ou outros rgos. Cada uma das 6 entidades indica 2 membros, o que lhe d hoje ento um plenrio com 12 pessoas votantes. E a maioria desses 12 membros precisa ser de Contadores devidamente registrados. Suas deliberaes so tomadas por 2/3 desses membros, membros esses que no recebem remunerao por esse trabalho. Adicionalmente, grupos de trabalho podem ser formados por especialistas nas diversas reas especficas sendo normatizadas, o que j vem comeando a ser feito, sendo os membros do CPC os relatores oficiais de cada matria. Por fim, alm daquelas com assento fixo no CPC, outras entidades podero vir a ser formalmente participantes no futuro do Comit, conforme ser visto frente. b) Entidades permanentemente convidadas e outras participaes Pelo seu regimento interno, so permanentemente convidados, e esto de fato participando, os seguintes rgos governamentais: CVM Comisso de Valores Mobilirios, BACEN Banco Central do Brasil, SUSEP Superintendncia dos Seguros Privados e SRF Secretaria da Receita Federal Ou seja, esses rgos participam de todas as reunies, tm direito a voz, opinio, mas no votam. Outras entidades, inclusive pessoas fsicas, podem ser convidadas a participar de reunies do CPC quando assuntos especficos de seus interesses forem discutidos ou quando puderem oferecer contribuies para o desenvolvimento dos documentos. c) Governana, Assemblia de Presidentes e Coordenadorias A governana do CPC est assim estruturada: os 6 organismos hoje constituidores do CPC tm seus respectivos presidentes compondo o que se denomina Assemblia de Presidentes; Ela tem poderes para eleger os membros do CPC, com mandatos de 4 anos (exceto alguns no incio para se estabelecer vencimento de prazo no igual para todos). Tambm pode, por deliberao de de seus membros, convidar outras entidades a fazerem parte do CPC. Por enquanto isso no ocorreu. Essa Assemblia Criou e pode modificar o Regimento Interno do CPC. Regimento esse que complementado por Regimentos Administrativos das diversas Coordenadorias. (Essa estrutura e esses documentos podem ser vistos no site do CPC: www.cpc.org.br) O Comit propriamente dito est dividido em 4 Coordenadorias que tm, resumidamente, as seguintes atribuies:23RIC/UFPE - Revista de Informao Contbil Vol. 1, no 1 p. 7-30, set/2007

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Coordenadoria de Operaes - que tem por atribuio todo o relacionamento com o CFC para o bom funcionamento do CPC, especialmente: Convnios com os rgos Reguladores, Audincias Pblicas, Divulgao dos Atos do CPC, Estrutura fsica, recursos humanos, biblioteca, tecnologia etc., Divulgao do CPC e do seu trabalho; Coordenadoria de Relaes Institucionais - que tem por atribuies: Gesto para a adoo dos Pronunciamentos pelos rgos reguladores, Representao em matria no tcnica do CPC junto a: governo, organizaes no governamentais, imprensa e, sociedade em geral; Coordenadoria de Relaes Internacionais - que tem por atribuies: Representao do CPC junto a, organismos internacionais governamentais e, organizaes internacionais privadas, Acompanhamento e relato dos assuntos em andamento nas principais entidades internacionais ligadas s regras contbeis; Coordenadoria Tcnica - que tem por atribuies: Elaborao da pauta do CPC, Convocao e coordenao das reunies do CPC e, Representao do CPC nas matrias tcnicas. V-se assim que, numa forma muito democrtica, o CPC no tem presidente, funcionando com a estrutura e forma de governana apresentadas. Estrutura fsica Atualmente, toda a estrutura fsica para o funcionamento do CPC est sendo provida pelo CFC. Nesse sentido est ele disponibilizando o local para o CPC funcionar, secretaria, materiais de trabalho, biblioteca, acessos eletrnicos, pgina na internet etc. Em alguns momentos os recursos so buscados junto aos prprios constituintes do CPC ou terceiros. A sede oficial o CFC em Braslia, mas ele pode funcionar em qualquer dos Conselhos Regionais ou, eventualmente, em algum outro lugar; vem se reunindo regularmente na sede do CRC-SP, que tambm dessa maneira contribui. Tambm j utilizou a sede do IBRACON. O CFC tem tambm o compromisso de dar ampla divulgao s minutas dos documentos em estudo, viabilizar as audincias pblicas, desenvolver esforos e firmar24RIC/UFPE - Revista de Informao Contbil Vol. 1, no 1 p. 7-30, set/2007

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convnios para as agncias reguladoras adotarem os Pronunciamentos do CPC, divulgar os atos do Comit e outros. Os Documentos do CPC O CPC tem como produto do seu trabalho trs diferentes instrumentos: Pronunciamentos Tcnicos que so as "normas" propriamente ditas, que no tm esse nome pelo que j se comentou: as normas sero emitidas pelos rgos reguladores prprios aprovando esses Pronunciamentos Tcnicos; Interpretaes que so documentos complementares a serem emitidos quando, espera-se raramente, surgirem dvidas quanto ao efetivo entendimento do que estiver contido num Pronunciamento Tcnico; e Orientaes documentos relativos a assuntos que, principalmente, no devam, pelo seu alcance ou algum outro motivo sair na forma de Pronunciamento Tcnico, ou que exijam algum nvel de rapidez na sua emisso. Audincia pblica Todos os Pronunciamentos Tcnicos, obrigatoriamente, e os demais documentos quando necessrio e vivel, sofrero amplo processo de audincia pblica. Por exemplo, a primeira minuta de Pronunciamento ficou em audincia pblica durante 4 meses, via internet, correspondncia enviada a mais de uma centena de rgos interessados privados e governamentais, com chamadas nos sites de todos os membros etc. Ritual de aprovao H todo um ritual para a aprovao dos documentos, sendo que para os Pronunciamentos Tcnicos ele mais rigoroso. Existem, nesse caso, pelo Regimento Administrativo, as diversas etapas que vo desde a Minuta Zero Seis, conforme pode ser visto mais detalhadamente no site mencionado. A aprovao final, conforme dito, depende da aprovao de 2/3 dos membros do CPC. Algo muito especial: Audincia Pblica junto com a CVM A CVM, pela sua Deliberao 520/2007, de 15 de maio de 1007, decidiu quea CVM poder colocar em audincia pblica conjunta com o CPC as minutas de pronunciamentos tcnicos por ele emitidas, disponibilizando-as, na sua pgina na rede mundial de computadores;

Ou seja, a CVM deliberou que dever fazer suas audincias pblicas, nas matrias que dizem respeito a normatizao contbil, conjuntamente com o CPC. Talvez outros organismos federais sigam esse caminho.

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O Projeto de Lei no 3.741/2000 Conforme j comentado ao longo deste trabalho, esse projeto de lei essencial para o sucesso do CPC e da tarefa de convergncia com as normas internacionais de contabilidade. H 4 clusulas que costumamos chamar de ptreas na rea contbil nesse Projeto de Lei (PL): A Criao do LALUC A criao do LALUR Livro de apurao do lucro real como j dito, foi um enorme avano no Brasil, em 1977, mas no o suficiente para a emancipao da nossa contabilidade. Segundo a Lei das S/A, ele deveria receber todos os registros necessrios para interesses fiscais que divergissem da Lei das S/A ou dos princpios contbeis geralmente aceitos, alm dos ajustes de natureza no contbil (despesas no dedutveis, incentivos fiscais etc.) Todavia, ela acabou tendo sua utilizao muito cerceada por interesses da prpria SRF, que limitou seu uso. Com isso, nunca se pde praticar uma contabilidade desprovida de efeitos diretos e indiretos da legislao tributria. Por exemplo, diferentemente do que ocorre nos pases anglo-saxnicos, no podemos depreciar um ativo por uma vida til superior fiscal atribuda na contabilidade e usar da vida til aceita fiscalmente, ajustando-a no Lalur. Se algum depreciar um veculo em 13% na contabilidade no poder efetuar uma deduo dos 20% para fins fiscais, porque esse diferencial de 7% no aceito para registro no Lalur. Nesse caso, sabemos que os proprietrios jamais aceitam contabilizar pelos 13% se podem deduzir 20% do imposto de renda e da contribuio social. Assim, a contabilidade brasileira trabalha praticamente com as depreciaes e amortizaes com base nos percentuais mximos admitidos fiscalmente, independentemente de suas verdadeiras vidas teis econmicas. Desde 1990, por outro lado, havia sido aceito pela cpula da SRF, a partir da idia talvez um pouco bizarra para muitos contadores (e com certa razo) de dois outros contadores poca prestando servio ao governo federal, o caminho inverso. A Receita Federal argia que um nmero grande de registros no Lalur dificultaria enormemente o trabalho da fiscalizao, que inclusive precisaria de um treinamento enorme para lidar com eles. Saiu da a idia ento de fazer o contrrio, j que o que importa o produto final da contabilidade: balanos e outras demonstraes teis para os usurios. Assim, procurou-se desenvolver o seguinte raciocnio: as empresas poderiam escriturar conforme as regras legais e fiscalmente aceitas, tudo dentro do que a legislao e a normatizao fiscais admitem, e chegar ento ao balano e apurao do resultado para fins tributrios. S que essas demonstraes seriam secretas, no sentido de que seriam de exclusiva utilizao da empresa e do fisco, no sendo, de forma alguma, objeto de divulgao a terceiros. Na verdade, mais ou menos o que se faz hoje com a declarao de imposto de renda da pessoa jurdica.

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A seguir, seriam reabertos esses balanos, de forma a se proceder aos registros, formalizados via Dirio e Razo, para que se chegasse aos balanos efetivamente para fins contbeis externos: da o nome Livro de Apurao do Lucro "Contbil". Esses sim seriam os balanos para fins formais, oficiais, de publicao, registro junto aos rgos prprios, com validade para clculo do dividendo mnimo obrigatrio, valor patrimonial, aprovao na assemblia dos acionistas ou dos quotistas etc. E todos os registros para passagem de um para outro estariam fora do alcance tributrio. Essa idia foi aceita pelo Ministrio da Fazenda e est totalmente inserida no PL citado. S que, para se evitar problemas nesses ajustes, as empresas que aderirem a esse modelo (e podem ser as fechadas tambm, sem problemas) tero que submeter essas demonstraes ao parecer de auditores independentes. Pode mesmo parecer estranho, a alguns, que se d, na ordem cronolgica, uma aparente prioridade ao balano fiscal, e secundria ao contbil, mas essa idia nos parece totalmente errnea. No interessa essa ordem de escriturao, o que interessa, e fortemente, que teremos condio de efetivamente pratica nossa profisso contbil com menor dependncia de critrios fiscais e dos interesses empresariais (legtimos, por sinal) de no antecipar pagamento de tributos. importante lembrar que no sero dois balanos para divulgao, para entrega aos credores e outros usurios etc., apenas um, o societrio. O fiscal ser apenas para o fisco, no fundo, mais ou menos como j hoje ocorre. Convergncia s Normas Internacionais O citado PL determina que a contabilidade brasileira caminhe rumo s normas internacionais; no menciona expressamente o IASB, por ser um rgo privado, mas esse o nico rgo genuinamente internacional hoje, j que a ONU abdicou, h anos, dessa tarefa de emisso de normas contbeis. Alteraes na Lei das S/A Essa lei, que normatiza a contabilidade brasileira hoje, inclusive de quem no S/A mas sociedade tributada pelo "lucro real", possui diversos dispositivos que esto ultrapassados tecnicamente e em desacordo com as normas internacionais. Assim, o Projeto de Lei introduz as mnimas alteraes necessrias para que o processo de normatizao rumo s IASs no se defronte com esses impedimentos legais. E isso sem que, quando atreladas essas disposies brasileiras a incentivos fiscais, prejudique as empresas. Por exemplo, subvenes para investimento so, quase no mundo todo, tratadas como parte do resultado, e no como contribuio de capital. A mudana prev essa alterao sem prejuzo dos benefcios fiscais hoje existentes para tais subvenes. Limitaes surgem s reavaliaes espontneas, eis que originadoras de tantos problemas nos balanos brasileiros. Mecanismos so criados, todavia, para seu uso no caso de negociaes de empresas que levem a fuses e aquisies que devem provocar, nos balanos, ajustes de ativos e passivos a seus efetivos valores negociados, sem que isso traga qualquer antecipao tributria. Outros ajustes esto previstos.27RIC/UFPE - Revista de Informao Contbil Vol. 1, no 1 p. 7-30, set/2007

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Normatizao contbil: ensaio sobre sua ...

Convnios com rgos reguladores O Projeto de Lei prev que os rgos contbeis brasileiros possam efetuar convnio com o CPC (no menciona expressamente esse rgo, de novo por ser de direito privado mas d as caractersticas que lhe cabem em cheio), de forma que possa haver uma nica fonte na normatizao contbil brasileira. Na realidade, esses convnios podem at ser feitos hoje, nada h que impea, desde que no se faa delegao de poderes do rgo pblico a outra entidade qualquer. Mas eles reforam, e muito, a idia da necessidade da centralizao da emisso das normas. E normas convergentes s internacionais. A Situao Atual, Relao FASB e IASB e Resumo Quando terminamos este material, incio de junho de 2007, o citado Projeto de Lei est se encaminhando para votao final, e o CPC j est com sua segunda minuta de pronunciamento em audincia pblica. J foi a audincia relativa ao pronunciamento sobre Reduo no Valor Recupervel dos Ativos (Impairment), correspondente IAS 36 do IAS. Entretanto, tendo em vista a aprovao da CVM para que as audincias pblicas dessa autarquia e a do CPC sejam realizadas em conjunto, esse pronunciamento est em processo de entrada em audincia pblica novamente, agora em conjunto com a CVM. Est em audincia a minuta relativa Converso das Demonstraes Contbeis, correspondente a parte da IAS 21, e esto em andamento as minutas relativas a Estrutural Conceitual da Contabilidade, a Demonstrao dos Fluxos de Caixa, a Contratos de Seguros, a Contabilizao das Concesses Pblicas, s Subvenes Governamentais, e s Relaes entre Partes Relacionadas. O FASB e o IASB firmaram um protocolo para convergncia de suas normas para at 2009, recentemente a SEC levantou a hiptese de virem a ser aceitas demonstraes, nos EEUU, feitas segundo as IFRS (atual nome oficial das normas do IASB). Alm disso, muitos pases, como praticamente todos os da Unio Europia, esto adotando uma prtica ainda cara e trabalhosa: uma contabilidade para fins locais e outra, nos balanos consolidados, para fins de divulgao junto aos mercados financeiros, de acordo com o IASB. Ora, isso ainda custoso, trabalhoso e com certeza fonte de confuso para os prprios gestores das empresas. E de confuso tambm para os usurios que tomarem conhecimento dos dois conjuntos de informaes, no comparveis entre si. Tambm aqui temos uma situao parecida, mas temporria, conforme j exposto em outro veculo por este autor: o BACEN determinou que, a partir de 2010, as instituies financeiras devero divulgar seus balanos consolidados conforme as regras do IASB. E a CVM est em audincia pblica com minuta de Instruo na mesmssima direo. Teremos ento trs balanos? O plano das instituies ligadas ao CPC, e tambm do governo, que o Brasil tenha sua contabilidade totalmente harmonizada com as normas internacionais, e o trabalho desse comit est sendo desenvolvido no sentido de que isso seja j aplicado diretamente nos balanos individuais, primrios, de tal forma que no exista um balano de acordo com as regras brasileiras e outro de acordo com as internacionais, como est ocorrendo28RIC/UFPE - Revista de Informao Contbil Vol. 1, no 1 p. 7-30, set/2007

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hoje nos pases da Unio Europia, onde cada empresa faz o seu balano de acordo com suas regras nacionais e, depois, o consolidado de acordo com o IASB. Queremos evitar isso, queremos que o individual e o consolidado brasileiros sejam feitos com base em um nico conjunto de regras. Mas esse trabalho do CPC no tem um tempo totalmente definido para ser completado, pois precisa ser implantado paulatinamente, j que atingir todas as empresas brasileiras que elaboram balanos. Como ambas as autarquias esto determinando que, a partir de 2010, as sociedades a elas submetidas publiquem seus balanos consolidados de acordo com o IASB, poder haver, sim, temporariamente, dois conjuntos publicados: o balano individual, dentro das regras em vigncia no Brasil, e o balano consolidado, totalmente conforme o IASB. A diferena com relao a hoje, quando j temos os dois conjuntos, que tanto o individual quanto o consolidado esto, com raras excees, dentro das mesmas regras. O que se espera, todavia, que, at l, as diferenas sejam bastante restritas e que, rapidamente, elas desapaream completamente, e assim teremos os dois balanos, o individual e o consolidado, dentro das mesmas regras, as internacionais. V-se, tambm, que o balano fiscal no ser nunca publicamente divulgado. E divulgao de dois balanos com critrios diferentes (brasileiro e internacional) s ocorrer para as companhias abertas e as instituies financeiras, a partir de 2010 e somente durante o tempo que faltar para a completa harmonizao da contabilidade brasileira s normas internacionais. Resumindo, o mundo saiu de dois caminhos totalmente divergentes e vai chegando a um denominador comum; os de code law saram de um processo de normatizao puramente estatal, passaram por um processo relativamente misto e agora vo para outro onde o Estado apenas acompanha o processo e s vezes dele participa, mas ele desenvolvido no setor privado. E desenvolvido num rgo nico, com a participao de todos os agentes interessados e entendidos na normatizao contbil: quem produz as informaes, quem as audita, quem as analisa, quem as usa e quem sobre elas pesquisa e ensina. Os pases de common law saram de um processo totalmente deixado aos prprios contadores e evoluram para esse com rgo colegiado com participantes das vrias reas interessadas e afetadas pela normatizao contbil. E os que vinham na filosofia da image fidle, da prevalncia da forma jurdica, da normatizao super detalhada, passam agora para a true and fair view, para a prevalncia da essncia econmica sobre a forma e para a normatizao principles oriented. Na verdade, no que diz respeito a esse ltimo ponto, h uma certa miscigenao, j que as regras de fato no so assim to orientadas apenas por princpios no mundo anglo-saxnico hoje, nem mesmo as do IASB assim so de maneira pura (mas mais do que as dos norteamericanos, por exemplo, que vm adotando uma postura rules oriented at mais agressiva do que seria de se esperar de um pas de common law). Acabou prevalecendo o bsico da filosofia anglo-saxnica, no h dvida, mas num processo mais amplo e democrtico com um organismo genuinamente internacional se transformando no centro da normatizao mundial.29RIC/UFPE - Revista de Informao Contbil Vol. 1, no 1 p. 7-30, set/2007

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E, no Brasil, estamos, um pouco tardiamente, mas estamos caminhando junto a essa filosofia e a esse processo de convergncia com as normas internacionais. S que seguindo um caminho mais ousado que muitos pases mais avanados do que ns: fazendo com que nossas demonstraes contbeis individuais, primrias, j sejam assim elaboradas conforme essas regras, o que nos dever levar a uma posio de menores custos e riscos. Deveremos demorar um pouco mais do que a maioria, mas com certeza com um final provavelmente mais feliz. Comentrios finais que dariam outro material do tamanho deste: a exigncia de adoo de uma contabilidade mais concentrada na essncia do que na forma, a convergncia descrita e a estrutura conceitual que fundamenta essas normas internacionais fazem com que a contabilidade adquira um outro patamar. Ela s poder ser desempenhada por profissionais bem formados, com capacidade de anlise do que ocorre no mundo todo, com melhor formao econmica, com domnio pelo menos da lngua inglesa tambm e, o que fundamental: com formao tcnica e tica que lhe permitam tomar deciso, deliberar sobre o que a essncia econmica do que precisa ser escriturado e analisado, e no simplesmente um seguidor de regras. Caractersticas que efetivamente do direito a dizer que se trata de uma profisso liberal, e mais, uma profisso que pode vir a adquirir aqui o status que j possui em tantos outros pases. Bibliografia BAETGE, Jrg et alli (19 autores ao total), German Accounting Principles: An Institutionalized Framework. Accounting Horizons, Vol. 9, n. 3, sept. 1995, p.92-99. COLASSE, Bernard, The French notion of the image fidle: the power of words, The European Accounting Review, Vol. 6, Nr. 4, 1997. DING, Yuan; STOLOWI, Herv; TENENHAUS, Michel, Shopping Around for Accounting Practices: The Financial Statement Presentation of French Groups. ABACUS, vol. 39, n 1, p. 4265, 2003. HULLE, Karel Van; The True and fair view override in the European Accounting Directives, The European Accounting Review, Vol. 6, Nr. 4, 1997. MARTINS, Eliseu; LISBOA, Lzaro P., Ensaio Sobre Cultura e Diversidade Contbil, Revista Brasileira de Contabilidade, do CFC, n 152 (Maro/Abril - 2005). NOBES, Christopher; PARKER, Robert et alli, Comparative International Accounting, Prentice Hall (UK), p. 3-277, 1991. ORSINI, Larry L.; GOULD D. John; Mc ALLISTER, John P.; PARIKH, Rajeev N., World Accounting. Lexis Publisher, 2000.Eliseu Martins, Professor Titular da USP (SP) emartins usp br. Universidade de So Paulo (USP-SP) Faculdade de Economia Administrao e Contabilidade Departamento de Contabilidade Aturia. Avenida Professor Luciano Gualberto, 908 Prdio III Butant - 05508900 - So Paulo, SP - Brasil Telefone: (11) 3091-5820, ramal: 140, fax: (11) 3813-0120. Vincius Aversari Martins, Professor da USP-Ribeiro Preto (SP), [email protected] Universidade de So Paulo Faculdade de Economia, Administrao e Contabilidade de Ribeiro Preto, Departamento de Contabilidade. Avenida Bandeirantes, 3900 Bloco C, sala 13 Monte Alegre - 14040-900 - Ribeiro Preto, SP - Brasil Fone: (16) 3602-3000 Ramal: 3899 Fax: (16) 3633-3221 ric A. Martins, Graduado em Cincias Contbeis.

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