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maio|2003 Meio Ambiente 46 Interdisciplinaridade, pesquisas científicas, envolvimento da comunidade, parcerias e monitoramento constante fazem de projeto brasileiro de proteção às tartarugas marinhas modelo internacional Fivelas, pentes e óculos confeccionados com o casco de tartarugas marinhas ainda fazem parte da memória, ou até mesmo dos pertences, de muitos brasileiros ou turistas estrangeiros que um dia aqui estiveram. Ou então, a lembrança de encontrar, entre as delícias do cardápio de um restaurante, localizado em uma praia distante, suculentas sopas de tartaruga, sendo oferecidas a preços módicos e irresistíveis ao paladar curioso de quem nunca degustou algo similar. Felizmente, tudo isso faz parte do passado. Não há mais adereços ou iguarias gastronômicas de tartaruga sendo livremente comercializados. No caminho certo ... No caminho certo ... Patrícia Domingues de Freitas Banco de imagens do Tamar

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Page 1: No caminho certo - Universidade Federal de São …univerci/n_1_a2/tamar.pdfmaio|2003 46 Meio Ambiente Interdisciplinaridade, pesquisas científicas, envolvimento da comunidade, parcerias

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Interdisciplinaridade, pesquisas científicas, envolvimento da comunidade, parceriase monitoramento constante fazem de projeto brasileiro de proteção às tartarugasmarinhas modelo internacional

Fivelas, pentes e óculos confeccionados com o casco de tartarugasmarinhas ainda fazem parte da memória, ou até mesmo dospertences, de muitos brasileiros ou turistas estrangeiros que umdia aqui estiveram. Ou então, a lembrança de encontrar, entre asdelícias do cardápio de um restaurante, localizado em uma praiadistante, suculentas sopas de tartaruga, sendo oferecidas a preçosmódicos e irresistíveis ao paladar curioso de quem nunca degustoualgo similar. Felizmente, tudo isso faz parte do passado. Não há maisadereços ou iguarias gastronômicas de tartaruga sendo livrementecomercializados.

No caminho certo ...No caminho certo ...

Patrícia Domingues de Freitas

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Essas criaturas habitam nosso planeta hámais de 150 milhões de anos, remontando àépoca dos dinossauros. Inúmeras catástrofesnaturais – incluindo chuvas meteóricas, ex-plosões planetárias e glaciações – e até mesmoa ação do homem não foram capazes deextinguir esse importante grupo de animaismarinhos. Porém, além da predação natural aque estão submetidas, inúmeras ações an-trópicas contribuíram para sua inclusão naslistas do Ibama (Instituto Brasileiro do MeioAmbiente e dos Recursos Naturais Renováveis)e da IUCN (União Mundial para Conservaçãoda Natureza) de espécies em risco de extinção.

As tartarugas fazem parte do grupo derépteis aquáticos pulmonados (que neces-sitam de oxigênio atmosférico para respirar).Elas habitam águas tropicais e subtropicais ese reproduzem a partir da postura de ovos. Atéatingirem a idade adulta, realizam inúmeras mi-grações intercontinentais. Das sete espéciesoceânicas existentes, cinco ocorrem no Brasil.A mais comum é a Caretta caretta, tambémconhecida como Cabeçuda, por apresentaruma cabeça relativamente maior que a dasdemais espécies. As tartarugas de Pente (Eret-mochelys imbricara), Verde (Chelonia mydas),Oliva (Lepidochelys olivacea) e de Couro (Der-mochelys coriacea) também são encontradasem nosso litoral, porém em menor freqüência.

Riscos e ameaças

Apesar da pesca e captura dos ovos detartarugas serem consideradas ilegais, se-gundo a Lei de Crimes Ambientais (lei no 9605,de 12/2/1998), a utilização de redes de arrastopara pesca, principalmente de camarão, oca-siona um número grande de capturas aci-dentais. As malhas das redes mantêm presasas tartarugas, que se vêem impossibilitadas deemergir à superfície para respirar.

O ciclo de vida desses animais tambémcontribui para uma maior interferência dohomem em sua sobrevivência. Por apre-sentarem comportamento migratório e ne-cessitarem da areia da praia para se reproduzir,as tartarugas marinhas tornam-se extre-mamente vulneráveis. A poluição e o desen-volvimento urbano desenfreado em regiõescosteiras têm promovido uma diminuiçãosignificativa das populações.

A iluminação e o sombreamento artificiaisnos locais de desova interferem diretamentena postura dos ovos e na orientação dos

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filhotes, além de alterar a razãosexual dos indivíduos nascidos.A diminuição da incidência desol na areia da praia, devido aedificações e plantações altas abeira-mar, reduz a temperaturada areia, ocasionando um au-mento no número de machos(temperaturas mais altas fa-vorecem o desenvolvimento degônadas femininas). Por outrolado, à noite, as luzes artificiaisdesorientam os filhotes, que mi-gram em direção oposta ao mar.Essa iluminação interfere tam-bém na desova das fêmeas que,ao se assustarem com o excessode claridade, evitam chegar àareia. Outra grande ameaça aesses animais refere-se à con-taminação das praias e marescom materiais tóxicos de di-versas origens, tais como pe-tróleo e esgoto.

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Capturas acidentais,poluição edesenvolvimentourbano desenfreadoem regiões costeirassão as principaisameaças àsobrevivência

Soluções

Preocupados em reverteresta situação, há mais de duasdécadas, pesquisadores e pro-fissionais de diferentes áreasuniram-se com o propósito deproteger as tartarugas ma-rinhas do risco de extinção.Assim nasceu o Projeto Tamar(www.tamar.org.br), que, desde1980, desenvolve diferentestipos de ações visando garantira sobrevivência das espéciesexistentes na costa brasileira.Estudos envolvendo aspectosrelacionados com nutrição,reprodução, doenças, ecologiae genética desse grupo deanimais têm contribuído deforma efetiva para o melhorentendimento da biologia e docomportamento das popu-lações de tartarugas. As pes-quisas realizadas até o mo-mento demonstram que a in-

terdisciplinaridade éfundamental parapromover o melhoraproveitamento deum programa deconservação.

A primeira base doTamar foi a da Praia doForte (BA), que até hojeé a maior, protegendouma área correspon-dente a 400 km depraia. Atualmente, oprojeto tem bases nosEstados do Ceará, RioGrande do Norte, Per-nambuco, Sergipe, Ba-hia, Espírito Santo, Rio

de Janeiro e São Paulo. O Projetode Proteção às Tartarugas Ma-rinhas tem sido consideradocomo um excelente modelopara programas que visam aconservação de outras espéciestambém ameaçadas, assumindodestaque internacional entreimportantes instituições conser-vacionistas. A World WildlifeFoundation (WWF), a Conser-vation International, a Universityof Florida, a Frankfurt ZoologicalSociety e a Wider Caribbean SeaTurtle, entre outras, têm ga-rantido um número expressivode convênios e intercâmbios,que possibilitam a realização deinúmeros trabalhos coopera-tivos. A interação entre entida-des governamentais e não-go-vernamentais, entidades cien-tíficas e empresas privadas sãoexemplos de parcerias que têmdado certo. A cada ano, cerca de60 universitários realizam es-tágio em uma das 22 basesespalhadas pelo Brasil.

Os espécimes juvenis e adultos têmuma certa segurança em relação ainimigos naturais. Porém, na épocada desova, tornam-se frágeis

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Pesquisas

Para o oceanógrafo FernandoNiemeyer Fiedler, coordenadordo Tamar da Praia do Forte,apesar dos avanços obtidos nos23 anos de existência do Tamar,ainda existem muitos aspectosa serem melhor investigados.Sabe-se muito pouco, por exem-plo, sobre o comportamentomigratório dos indivíduos ju-venis. Apesar de constatadas mi-grações intercontinentais du-rante esta fase do desenvol-vimento, ainda não foi possívelidentificar um local de cres-cimento preferencial. Não sesabe onde estão os filhotesdurante o lost year (ano perdido),como é conhecido este período.Da mesma forma, aspectos re-lacionados à sitiofidedignidade(as tartarugas sempre retornam

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Iluminação esombreamentoartificiais nos locais dedesova alteram a razãosexual dosnascimentos,desorientam os filhotese assustam as fêmeasadultas

ao mesmo local para realizar adesova) precisam ser melhorexplorados. Diferenças de ape-nas alguns poucos metros jáforam observadas para dife-rentes desovas realizadas poruma mesma fêmea.

Outro importante aspectoque tem sido alvo da atençãodos pesquisadores está rela-cionado com o padrão genéticodas populações de tartarugasCabeçudas. A análise do DNAdessa espécie poderá deter-minar se há estruturação depopulações ao longo da costabrasileira, ou seja, se a espécieconstitui uma grande e únicapopulação ou se existem di-ferenças genéticas entre po-pulações de duas ou mais lo-calidades. O trabalho, que fazparte do desenvolvimento de

uma dissertação de mestradodesenvolvida na Pontifícia Uni-versidade Católica de Belo Hori-zonte, além de possibilitar acaracterização genética da es-pécie, poderá auxiliar na melhorcompreensão de questões rela-cionadas ao comportamentoreprodutivo desses animais.Análises de DNA em Lepido-chelys olivacea também estão

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sendo realizadas com o objetivo de caracterizargeneticamente as populações (em parceriaentre o Tamar de Sergipe e a PUC do Rio Grandedo Sul). Pesquisadores da Universidade Estadualde Campinas (Unicamp) e da UniversidadeEstadual Paulista (Unesp) iniciaram um estudoem colaboração, que visa estabelecer possíveisinterações entre comunidades de peixes derecifes de corais e populações de tartarugas queocorrem na ilha de Fernando de Noronha.

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Mais recentemente, esforços estão sendo em-penhados para diminuir a captura acidental detartarugas ocasionada pela pesca. Além decontribuir com o aumento da taxa de mortalidadedos animais, esses incidentes causam prejuízo aospescadores, que têm suas redes e equipamentosdanificados. No final de 2002, foi criado o Planode Ação Nacional para Redução da CapturaIncidental de Tartarugas Marinhas pela AtividadePesqueira (Plano Tamar/Pesca), coordenado pelooceanólogo Gilberto Sales. Além do trabalho deconscientização junto aos pescadores, prin-cipalmente de lagostas e camarões, o Tamar/Pescapretende monitorar todas as áreas pesqueiras, pormeio do desenvolvimento de um sistema esta-tístico de controle pesqueiro. Este trabalho contacom a parceria de diversas entidades, tais como aBahia Pesca, o Centro de Pesquisa e Gestão deRecursos Pesqueiros do Sudeste e Sul e o MuseuOceanográfico do Vale do Itajaí (Movi), vinculadoà Universidade do Vale do Itajaí, entre outras.

Sociedade em ação

Além dos estudos relacionados à biologia doanimal e ao desenvolvimento de tecnologias demanejo, o trabalho junto às comunidades locaistem garantido o sucesso do programa de pre-servação. Oceanógrafos, biólogos e veterinários,juntamente com pescadores e moradores locais,têm mostrado que o conhecimento produzido

Fiedler: “Orientações sobre o convívio social, noções de higienepessoal e o intenso trabalho de educação ambiental contribuempara que a preservação biológica seja encarada como algo desuma importância pelas novas gerações”

Comportamento migratório deindivíduos juvenis,sitiofidedignidade e caracterizaçãogenética de populações sãoaspectos ainda pouco estudados

Utilização de redes de arrasto para pesca,principalmente de camarão, ocasiona um grandenúmero de capturas acidentais

Patrícia Freitas

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pela ciência pode romper oslimites acadêmicos e, com oapoio da sociedade, revertersituações consideradas amea-çadoras. A coordenadora doProjeto Tamar da Praia de Arem-bepe (BA), Cristiane CoimbraAché Assumpção, afirma que acolaboração da comunidadelocal foi determinante na dimi-nuição da mortalidade das tarta-rugas. Segundo ela, antigospescadores desses animais pas-saram a ajudar na fiscalizaçãodas praias, protegendo os ovose as fêmeas que chegam na areiapara desovar. Alguns “tarta-rugueiros”, como são conhecidasessas pessoas, estão há mais de20 anos trabalhando no projeto.“Muitos filhos de tartarugueirostambém já ajudam no moni-toramento das praias”, contaCristiane.

O coordenador do Tamar naPraia do Forte concorda que otrabalho desenvolvido nas co-

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munidades locais é um dosgrandes responsáveis pelo su-cesso alcançado pelo projeto.“Muitas crianças já nascem a-prendendo a respeitar o meioambiente”, destaca. “Elas viven-ciam diariamente o trabalhocooperativo realizado. Alémdisso, orientações sobre o con-vívio social, noções de higienepessoal e o intenso trabalho deeducação ambiental contribu-em para que a preservação bio-lógica seja encarada como algode suma importância pelas no-

vas gerações”, enfatiza Fiedler.

Atualmente, o Projeto Tamarconta com inúmeras pessoas au-xiliando diretamente o trabalhode preservação. Oportunidadesde emprego foram criadas, pro-movendo o surgimento de no-vas fontes de subsistência paraquem antes sobrevivia da cap-tura das tartarugas e seus ovos.Cerca de 400 funcionários (pes-cadores e moradores locais)estão integrados ao Tamar, tra-balhando nas sedes do projeto,nas oficinas de artesanato e naconfecção de outros artigoscomercializados nos locais devisitação. Muitas dessas pessoastambém trabalham como guias,orientando e dando informa-ções aos quase um milhão deturistas que visitam o Tamartodos os anos. Em algumas ba-ses, os centros de visitação ofe-recem diferentes serviços, desdea observação das tartarugas atéa comercialização de produtos.Todas essas atividades, incluindoo turismo ecológico, possibi-litaram a captação de recursospróprios, os quais, atualmente,correspondem a cerca de umterço do total de recursos ar-recadados pelo projeto (finan-ciado, desde 1983, pela Petro-brás). A renda obtida é revertidaem salários e aplicada nas di-versas atividades desenvolvidas,garantindo não só a susten-tabilidade do projeto, mas, prin-cipalmente, uma melhoria naqualidade de vida das comu-nidades locais.

Conscientização ecriação de alternativasde rendatransformarampescadores em fiscaisque protegem os ovose as fêmeas quechegam às praias

Patrícia Freitas

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Estrutura

Um aspecto importante paraa garantia da boa funciona-lidade do programa de preser-vação das tartarugas marinhasconsiste na estrutura organi-zacional e no padrão meto-dológico adotados pelo Tamar.Cada base possui uma equipeprópria, incluindo um profis-sional responsável pela coor-denação do trabalho local. Sãoelaborados relatórios semanaissobre as atividades desenvol-vidas em cada base, sendo pos-teriormente redigido um rela-tório regional, que é apresen-tado em uma reunião nacional.Nesta reunião, são discutidas asdiferentes estratégias de manejoutilizadas e os resultados ob-tidos. Por fim, é elaborado umdocumento abordando essasmetodologias e discutindo osaspectos positivos e negativosde cada uma. Para FernandoFiedler, essa estrutura mantémas sedes integradas e, ao mesmo

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tempo, facilita o funcionamentode cada base. “Existem inúmerasparticularidades em cada umadas bases do Tamar. Alguns lo-cais são sítios de reprodução ealimentação, outros somente dealimentação ou de desova. EmUbatuba (SP), por exemplo, astartarugas só utilizam o localpara se alimentar. Já na Praia doForte (BA), a área é utilizadatambém para desova. “Em al-guns sítios, a iluminação artificialé uma grande ameaça e a es-tratégia utilizada deve ser outra”,explica Fiedler.

A autonomia e sincronia entreas diferentes bases, somadas aomonitoramento diário realizadonas praias, garantem cerca de80% de sucesso reprodutivo.Diariamente, os tartarugueiros euma equipe responsável saempara verificar o local de postura

Em áreas consideradas de risco, comintensa interferência antrópica, os ovossão retirados e transladados para abase, para serem incubados até onascimento dos filhotes

Tamar

Tamar

De cada miltartaruguinhas, apenasuma ou duaspermanecem vivas atéa idade adulta...

e o número de ovos depositadosnos ninhos. Quando a área ofe-rece pequeno risco, os ovospermanecem no local. Em áreasconsideradas de risco, com in-tensa interferência antrópica, osovos são retirados e transla-dados para a base, para seremincubados até o nascimento dosfilhotes. Após a eclosão, os re-cém-nascidos são soltos na areiada praia e vão em direção aomar, nadando intermitentemen-te e realizando várias migraçõesaté atingirem a idade adulta. Osfilhotes são pequenos e frágeis,medindo apenas cerca de cincocentímetros. Muitos são devo-rados por caranguejos, avesmarinhas, polvos e, principal-mente, peixes. De cada mil tarta-ruguinhas, apenas uma ou duaspermanecem vivas até a idadeadulta...