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SUMÁRIO

FRAGILIDADE DA VELHICE E DA DOENÇA - ALGUNS EXEMPLOS DA IDADE MÉDIA BEIRÃIRIA GONÇALVES ......................................................................................................................................................4

A CRÓNICA DOS CÓNEGOS REGRANTES DE SANTO AGOSTINHO E A 1ª ESCOLA DE MEDICINAPORTUGUESAROMERO B. GANDRA ...............................................................................................................................................8

A MEDICINA E O MÉDICO PERANTE O DOENTE MORIBUNDO E INCURÁVEL, NO SÉC. XVI -TESTEMUNHODE AMATO LUSITANOANTÓNIO LOURENÇO MARQUES ........................................................................................................................ 12

ANTÓNIO DE ANDRADE (1581 - 1634) - O PROBLEMA DO CATAIO E DAS PATOLOGIAS PELA LUZ EPELO FRIO EM GRANDES ALTITUDESALFREDO RASTEIRO ............................................................................................................................................. 16

APOLOGIA DA HIDROTERAPIA NA CONSERVAÇÃO DA SAÚDE - NOTA INTRODUTÓRIA À TRADUÇÃODE UM MANUSCRITODE RIBEIRO SANCHESFANNY ANDRÉE FONT XAVIER DA CUNHA ......................................................................................................... 19

MEMÓRIA SOBRE OS BANHOS DE VAPOR DA RÚSSIA CONSIDERADOS PARA A CONSERVAÇÃO DASAÚDE E PARA A CURA DE VÁRIAS DOENÇASANTÓNIO RIBEIRO SANCHES ............................................................................................................................... 23

O SENTIMENTO DA MORTE NOS FINAIS DO SÉCULO XIX, NAS NOTICIAS NECROLÓGICAS DA BEIRAINTERIORMARIA ADELAIDE SALVADO .................................................................................................................................. 40

UM ENSALMO ARCAICO DA RAIA DE RIBA CÔA. O SALMO DA “GIPLÊ” E A ORAÇÃO DE “SANTA CILHÊ”J. PINHARANDA GOMES........................................................................................................................................ 47

ESTADOS DE ALMA - DOENÇA E MORTEJOSÉ MORGADO PEREIRA ................................................................................................................................... 51

EPITÁFIOS E CRISÂNTEMOS DA MEMÓRIABRANQUINHO PEQUENO ...................................................................................................................................... 55

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Medicina e Interdisciplinaridade

Este 4°- caderno de cultura “Medicina na Beira Interior da pré-históriaao séc.XX”, que agora se publica, reúne mais um conjunto decomunicações apresentadas durante as nossas II Jornadas de Estudo,que tiveram lugar na Escola Superior de Educação de Castelo Branco,em Novembro de 1990.

Também esta selecção engloba trabalhos de investigadores situadosem áreas diversas do saber e, temporalmente, abrange épocas que vãodesde a Idade Média aos nossos dias. Julgamos continuar assim acumprir os propósitos que têm norteado a realização dos referidosencontros.

A medicina representa bem a função aglutinadora de uma, só aparente,multiplicidade de pólos que atraiem os estudiosos.

A sua capacidade abrangente relativamente a tantas manifestaçõesdo homem que traduzem preocupações concretas da existência duranteos tempos, neste espaço determinado da Beira Interior, tem um fascíniosingular. Mas é um dado adquirido que só a visão interdisciplinar permitea compreensão mais acertada de cada componente que se seleccionapara objecto de estudo, pois há uma “conjuntura global” em que mergulhae da qual não pode realmente separar-se.

É esta orientação que tem sido observada, com resultados proveitosos,pelos participantes das Jornadas de Estudo “Medicina na Beira Interior -da pré-história ao séc.XX’ que tiveram, neste mês de Outubro, a suaterceira concretização.

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FRAGILIDADES DA VELHICE E DA DOENÇA: ALGUNS EXEMPLOS DA IDADEMÉDIA BEIRÃ

Iria Gonçalves*

Portugal inscreve-se numa zona de climatemperado, isto é, como todos os demaisportugueses, nós, os beirões da Beira Interior,nascemos sob aquilo que um leigo no assunto, apartir da palavra que o define, esperaria que fosse abenignidade de um clima temperado. É o que nosensinam os manuais de geografia. Científicos,portanto. Que o mesmo é dizer, veiculadores deconceitos científicos. Mas, e esses conceitospassados à prática? A uma vivência diária e que o foihá quinhentos anos? Uma vivência que o foi de todos:novos, velhos, sãos, doentes. Velhos, doentes.Velhos doentes. É na junção deste binómio que seescondem as maiores fragilidades, as maiores dores,os maiores dramas. É aqui que o nosso climatemperado, mas onde acidentes orográficos e outrosvêm desfazer uma amenidade que seria naturalesperar nesta parte do mundo, pode tornar-seinsuportável até ao extremo máximo.

É neste sentido que gostaria de deixar algunsapontamentos. Marcas que ficaram, plantadas porpessoas concretas que aqui viveram, anónimas eignoradas durante toda a vida, mas a que os azaresda documentação, preservando essas marcas du-rante séculos e fazendo-as chegar até nós, conferiama mais ampla dimensão: a da exemplaridade. Éprecisamente por que são anónimos os protagonistasdesta história, que eles podem servir para, por seuintermédio, conhecemos ambientes, situações,vivências generalizadas. Vejamos, pois.

Por volta de 1479, um certo Lopo Álvares morreu,“per frjo e desemparo”, na Covilhã. Na mesma altura,sua mulher, Beatriz Gonçalves, “jazja pera morrer”(1).

Todos nós, os que conhecemos e algum diavivemos nesta região, sabemos como os seusInvernos podem ser inclementes. Os “nossos”Invernos, do século XX. Mas sabe mos também comoo clima do planeta tem vindo a sofrer um aquecimentogradual, desde, “grosso modo”, os meados do séculopassado(2). Se recuarmos no tempo, se percorrermosos espaços medievais, constataremos que, a partirde meados do século XII, a realidade se apresentavabem diferente(3). A um clima que até essa data e du-rante meio milénio, se conservara quente - oconhecido “optimum” medieval - sucedeu uma fase

de arrefecimento não linear, composta,fundamentalmente, por três vagas de frio, uma dasquais, precisamente, embora a menos violenta, seprolongou de 1310 a 1480(4). Temos portanto, comopano de fundo do nosso quadro, um Invernopossivelmente bem gélido, numa terra bem gélida.

Alguns anos antes, ali ao lado, os moradores daGuarda lembraram ao rei que a sua cidade era tãofria e de tão má servidão, que se não fosse pelocolégio da sé, como cabeça do bispado, e por ser,ela mesma, cabeça do almoxarifado régio e estaremali, sempre, os respectivos oficiais, ela fora perdidae despovoada(5). Também ali próximo, os do Sabugal,pela mesma altura, lembravam as cruezas dos seusfrios invernais.

Lopo Álvares e Beatriz Gonçalves no julgado deLafões. Acusados de assassínio, foram presos peloouvidor do duque de Viseu, D. Diogo, que entãodetinha a jurisdição cível e crime das terras. Comoera hábito, foram acorrentados a cadeia que seguiaaquele oficial, nas suas deambulações pelas terrasonde lhe competia promover a administração dajustiça(7). Assim chegaram à Covilhã. Aí, porcircunstancias imprevistas(8), foram obrigados apernianecer durante seis meses. Assim aconteceupassarem o Inverno naquela vila.

Como normalmente se verificava, quando essascadeias ambulantes chegavam a qualquer lugar,mormente se se estava em época de mau tempo, ouse a permanência se antevia de alguma demora, eraalugado ou requisitado um qualquer edifício, quepassava a desempenhar, provisoriamente, asfunções de prisão. Em regra escolhia-se uma loja,um barracão, ou uma outra estrutura do género, quede momento se encontra-se desocupada, ou que sedesocupasse para o efeito. Um espaço amplo.Instalações normalmente muito más, preparadas, porvezes, para armazém de produtos ou abrigo deanimais. Sabemos como a habitação medievalprotegia pouco da humidade e sobretudo do frio(9).Podemos imaginar o quão pior estasdesempenhariam aquelas funções.

Ali iria permanecer um conjunto de pessoas, porvezes numeroso e ainda em aumento, por novosdetidos que a justiça lhe ia acrescentando, todosacorrentados uns aos outros, a aguardar umatransferi encia para outra localidade onde a situaçãose repetiria e onde o grupo, uma vez mais, aumentariade número. Nestas circunstâncias, sem qualquer* Professora da Universidade Nova de Lisboa

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conforto, sem liberdade de movimentos e por issoobrigados a permanecer, durante a maior parte dotempo, inertes, deficientemente alimentados, emquantidade e qualidade(10), as suas condições de vidaeram péssimas.

Não nos foi dito, no caso concreto, qual era asituação. Esta que descrevi era por demais vulgarpara, na época, se considerar conveniente explicitá--la e para, agora, nós, pensarmos que, aqui, elapoderia não se verificar. O que nos foi dito, isso sim,é que na cadeia jaziam muitos presos. Os quais,aparentemente pelo menos, sobreviveram àtribulação daquele Inverno. Mas o casal em questãoera muito velho.

Também aqui os conceitosmedievais diferiam um poucodos nossos. Na Idade Média,todos sabemos, a vida era, emregra, mais curta. A velhicecomeçava mais cedo. Sefizermos fé nas teorias dosintelectuais do tempo,consideraremos que elacomeçava entre os quarenta ecinco e os sessenta anos, deacordo com as ideias dorespectivo teorizador(11).

Todavia, na prática, as coisaspassavam-se de maneiradiferente. Sobretudo entre asgentes comuns, entre oscamponeses e mesteirais queconstituíam, por toda a parte, a grande massa dapopulação. Para eles a velhice, a verdadeira velhice,chegava com a incapacidade de trabalhar(12), decontinuar a desenvolver aquela actividade que, asmais das vezes, o indivíduo desenvolvera desde ainfância. Era a fraqueza física, tantas vezes acrescidapela doença, que definia o velho(13).

E aquele casal era dito muito velho. Isto é, fraco,fisicamente degradado, in capaz de trabalhar, deangariar o seu sustento. O frio de Inverno, odesamparo, as condições infra-humanas, foram ocaminho da morte. Que para um deles, o marido,chegou mesmo; para a outra, a mulher, talvezbastante mais nova, como era tão vulgar na IdadeMédia(14), apenas se fez anunciar: ela “jazja peramorrer”. Foi transferida daquela para a cadeia da vila,onde as condições seriam menos desumanas. Dali,até conseguiu fugir.

Na mesma linha do que acabo de dizer e apenaspara reforçar o exemplo, gostaria de lembrar um outrocaso, sem comentários porque a situação seassemelha muito, nos traços que para aqui importam,à anterior.

Vasco Esteves morava na Lardosa. Por volta de1447, matara um homem, para vingar a morte de

um seu filho. Fugindo à justiça, fora inscrever-se,como homiziado, no couto do Sabugal(15). Aípermaneceu, ao abrigo do respectivo estatuto, du-rante sete anos. Mas com o decorrer do tempoenvelheceu, o cansaço e a doença chegaram. Comocorolário de tudo isto, era o fim que se aproximava,duplamente gélido, mais uma vez.

Por isso se queixava, pedia mercê: era já muitovelho, cansado e “adoorado”, de modo que com agrande frialdade, era muitas vezes “em ponto demorte”(16). De novo a crueza do Inverno Beirão - paramais a Beira da Terra Fria - a tornar-se insuportável,porque a velhice, o cansaço e a doença, tinham

chegado.Todavia, no outro extremo da

escala térmica, também háinclemêcias a assinalar. Em1480 ou 1481, um tal FernandoÁlvares, de Valhelhas, morreu,possivelmente de insolação, nocaminho entre esta vila e aCovilhã(17).

Não obstante o que deixeidito sobre os rigores invernaisdo clima medieval, sobre o seuacentuado arrefecimento emrelação àquele de queactualmente disfrutamos, osVerões, na nossa terra, podiamser bem tórridos. Também nopresente sabemos comopodem ser grandes as ampli-

tudes térmicas aqui verificadas.Vejamos as circunstâncias.De novo nos encontrámos em presença de um

delinquente. Alguns homens de Valhelhas - três,segundo a informação documental - haviam praticadofurtos e outros desacatos e violências, na aldeia domato; termo da Covilhã. A mando do juiz, diversosmoradores daquele lugar - ao menos vinte e um(18) -deslocaram-se a Valhelhas, com as justiças, a fimde os prender e trazê-los, sob custódia, para aCovilhã. Dois deles, ou porque avisados ou porquemais lestos, conseguiram fugir. O terceiro, FernandoÁlvares, foi preso e com aquela enorme escolta,iniciou o caminho que deveria conduzi-lo aostribunais. Mas Fernando Álvares era muito velho. Porisso, co a “aragem” de sua prisão, adoeceu.

O caminho, a pé, pelos alcantilados da serra,subindo penhascos e descendo ravinas, devia serbem difícil para um velho naquelas condições, aindamesmo que acostumado ao trilho de tais veredas.Para mais, sob a força do calor estival. Para mais nomomento, pouco apetrechado para o enfrentar. Avários níveis. Fisicamente, porque velho e doente;psicologicamente, porque preso e caminhando parauma detenção que não podia prever amena e para

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uma possível sentença que a lei decretava paradelitos semelhantes àquele de que era acusado(19).Pouco apetrechado, ainda, em termos de vestuário.

Fernando Álvares era clérigo. Mas um clérigo, umcura de almas, para mais rural, neste século XV, nãose distinguia dos seus paroquianos, nem quanto aovestuário(20), nem, até, quanto ao teor da vida. Porisso ele devia vestir, com toda a verosimilhança,sobre umas calças justas, uma saia, talvez commangas, a dispensar camisa, mas que deveria, nomínimo, chegar aos joelhos(21). A moda que a vinhadecretando mais curta, cada vez mais curta, nãochegava aos campos e às suas gentes comuns eneste caso, ainda que tivesse chegado, a Igrejatentaria que os seus membros a não adoptassem(22).Todavia, este aspecto, da forma do vestuário, não érevelante, de momento. O que importa, isso sim, é otecido.

Sabemos que na Idade Média não existia vestuáriode estação(23). A mesma roupa era usada,indiferentemente, no Verão e no Inverno. Numagrande parte das vezes ela era, mesmo, única(24),com a possível excepção de algumas peças maisrequintadas, que se usava apenas nas grandesocasiões e que não raro passava de pai a filho, demãe a filha(25).

Ora, se excluirmos algumas roupas interiores - nemsempre existentes - confeccionadas com o bragalfabricado em casa, as gentes do campo vestiam-sede buréis, nacionais ou estrangeiros, galezes, panosde Castela, de Irlanda, por vezes, numa roupamelhor,algum pano de Bristol. Isto é, vestiam-se delã(26). Aliás outros tecidos seriam demasiado carospara as suas bolsas, ainda mesmo que aspragmáticas que sucessivamente foram sendopromulgadas, lhes permitissem usá-los. Restavam--lhes, pois, estes tecidos mais baratos. Todos de lã.Para o tempo frio, como para o tempo quente. Naverdade, o vestuário medieval era feito,fundamentalmente, para proteger o corpo dasintepéries invernais, além de, naturalmente, opreservar, em público, dos olhares alheios(27).

Fernando Álvares devia, pois com toda averosimilhança, encontrar-se vestido de lã. Nestepormenor, é certo, não existia desvantagem emrelação aos seus companheiros de momento, poistodos deviam trajar pelo mesmo figurino, mas esteseram, por certo, mais novos e não carregavam o fardoda detenção que sobre ele pesava. Com tudo isto.“por ser muyto uelho e bem assy com a grande calmaque fazia se uiera a finar antr elles todos que o assypresso traziam”(28).

De novo a velhice, a doença, as condições deviolência a que o indivíduo se encontrava sujeito, atornarem insuportável as cruezas do clima beirão.Desta vez os tórridos calores estivais que a serratambém sabe oferecer.

Em todos os casos, o perdão é o mesmo: o homemmuito velho, portanto o que já entrou na decrepitudeou na senilidade, se quisermos retomar asteorizações sobre as idades da vida que a época noslegou, o indivíduo fraco e cansado, no dizer maissimples das gentes simples, já não pode suportar ascondições adversas. Adoece. Fisicamente degradadopelos anos, tornara-se um ser frágil. Só lhe faltamorrer. Morre.

Com efeito, para a Idade Média, a fragilidade dovelho só pode ser comparada à da criança muitopequenina. Só pode ser superada pela dela. Como,Por exemplo, a daquele menino de três ou quatromeses que, por esta mesma altura, de acordo com otestemunho materno, morreu de medo de uma briga,em Benespera, lá para os lados da Guarda(29).

NOTAS

(1) - Arquivo Nacional da Torre do Tombo (a seguirdesignado por A.N.T.T.), Chancelaria (a seguirdesignado por Chanc.) de D. João lI, liv.2, fl.71. Trata--se de uma carta de perdão, onde se circunstanciamas ocorrências que determinaram aqueles desfechos.É nela que me vou basear para o que digo a seguir.Dispenso-me, por isso, de voltar a citá-la.

(2) - Cf., por exemplo, Emmanuel Le Roy Ladurie,Histoire du climat depuis I’an mil, Paris, 1967, pp.66,208 e outras ainda.

(3) - Id., “Le climat. L’histoire de Ia pluie et du beautemps”, Faire l’histoire, dirig. por Jacques Le Goff ePierre Nora, vol.lll, Nouveaux Objects, (Paris), 1974,p.22.

(4) - Ib., pp.22-23, 25.(5) - Rita Costa Gomes, A Guarda medieval. Posição,

morfologia e sociedade (1200-1500), Lisboa, 1987,p.176.

(6) - A.N.T.T. Chanc. de D. Afonso V, liv.4, FI.40.(7) - Sobre as funções do ouvidor podem ver-se,

por exemplo, Marcello Caetano, História do direitoportuguês, vol.I, Fontes-Direito público (1140-1495),Lisboa-S. Paulo, 1981, p.309; António ManuelHespanha, História das instituições. Épocas medi-eval e moderna, Coimbra, 1982, pp.300-301.

(8) - O ouvidor morrera por essa altura e a cadeiaficara, possivelmente, a aguardar a nomeação dosubstituto.

(9) - Robert Delort, La vie au Moyen Age, Paris, 1982,p.33.

(10) - É sabido como o regime alimentar dosindivíduos se deteriorava (se deteriora) à medida quetambém se deterioravam as sua condições

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económicas e sociais. Para o conhecimentoparticularizado deste assunto, sobretudo em relaçãoaos últimos séculos medievais, muito se temadiantado, desde há uma décadas, a nível da Europaocidental. De momento, limitar-me-ei a citar umaobra, que já se tornou clássica: Louis Stouff,Ravitaillement et allimentation en Provence aux XIVee XVe siècle, Paris - La Haye, 1970, pp.229-250.

(11) - Este foi um assunto que suscitou muitasteorizações da intelectualidade medieval. Cf.; entreoutros, o que a este respeito adiantam, A.H. deOliveira Marques, A sociedade medieval portuguesa.Aspectos da vida quotidiana, Lisboa, 1964, pp.223-224; id., Portugal na crise do século XIV e XV, vol.IV,de Nova Historia de Portugal, dirig. por Joel Serrão eA.H. de Oliveira Marques, Lisboa 1987, pp.22-23;Charles de Ia Roncière, “La vie privée des noblestoscans au seuil de Ia Renaissance”, Histoire de Iavie privée, dirig. por Philippe Ariès e George Duby,t.2, De I’Europe feodale a Ia Renaissance, dirig. porGeorge Duby, Paris, 1985, pp.230-231; GeorgeMinois, Histoire de Ia vieillesse en Occident del’Antiquité a Ia Renaissence, (Paris), 1987, pp.224-228, 327. Entre nós, as idades da vida tambémsuscitaram teorizadores, como D. Duarte, queconsiderava a velhice como iniciando-se aoscinquenta anos (“Leal Conselheiro”, Obras dosPríncipes de Avis, int. de M. Lopes de Almeida, Porto,1981, cap.l, p.242).

(12) - George Minois, ob. cit., p.228; Maria JoséPimenta Ferro tavares, Pobreza e morte em Portu-gal da Idade Média, Lisboa, 1989, p.126.

(13) - Cf., por exemplo, um retrato da velhice quenos é dado pela poesia medieval, em Alice Planche,“Le corps em vieillesse. Regard sur Ia poésie duMoyen Age tardif”, Razo, Cahiers du Centre d’EtudesMédiévales de Nice, nº 4, Le corps souffrant: mala-dies et médications, 1984, p.41.

(14) - Henri Bresc, “L’Europe des villes et decampagnes (Xllle -XVe siècle)”, Histoire de la famille,dirig. por André Burguière, Christiane Klapisch -Zuber, Martine Segalen e Françoise Zonaben, vol.I,Mondes lointains, mondes anciens, Paris, 1986,pp.400-402, Michel Vovelle, La mort et I’Occident de1300 à nos jours Paris, 1983, p.97.

(15) - Sobre os coutos de homiziados e estatutosque os regiam, cf. Humberto Baquero Moreno,“Elementos para o estudo dos coutos de homiziadosinstituidos pela Coroa”, Portugaliae Historica, vol.ll,

1974, pp.13-63. O couto do Sabugal é tratado app.24-27.

(16) - A.N.T.T., Chanc. de D. Afonso V, liv.4, fl.40.(17) - A documentação que vou utilizar consta de vinte

e uma cartas de perdão, aliás todas iguais porquereferente ao mesmo caso e algumas delas registadasapenas em ementa. Encontram-se no A.N.T.T.,Chanc. de D. João lI, liv.1, fL.64v°- 65, 108, 156v°,liv.4, fl.116-116v°-., 117; liv.19, fL.92vº:

(18) - Como disse, temos vinte e uma carta de perdãopassadas em favor de outras tantas pessoas, todasda Aldeia do Mato, com excepção apenas de uma,que morava no Teixoso (ib., liv.1, fl.108). Mas nadagarante que as outras cartas se não tenham perdido,ou de alguns dos intervinientes na captura as nãotivessem obtido, ou mesmo oedido. O grupo poderia,pois, ser maior.

(19) - A lei era bastante dura nos casos de roubo eprevia sentenças que podiam ir até à pena de morte(Ordenações Afonsinas), Iiv.V, Coimbra; 1972, tit.LXV,pp.262-262). É certo, como direi a seguir, FernandoÁlvares era clérigo. Estava, portanto, abrangido pelodireito eclesiástico. Mas, neste caso concreto, elecairia sob a alçada da lei geral. Com efeito, nela sedizia, por exemplo; que o clérigo “pode ser citadoperante o juiz leiguo por força, que faça em cousaalguua movel, ou raiz” (ib., Iiv.Ill, tit.XV, & 7, p.50), oque, naturalmente, incuía o caso de furto, aquicontemplado.

(20) - A.H. de Oliveira Marques, A sociedade medi-eval portuguesa. Aspectos da vida quotidiana, p.178.

(21) - Ib., p.54.(22) - Ib., p.178.(23) - Robert Delort, ob. cit., p.35, entre outros.(24) - Cf., por exemplo, o que diz Philippe Braunstein,

“L’émergence de I’individu. Approches de l’intimité.XIVe - XVe siècle”, Histoire de la vie privée, dirig. porPhilippe Ariés e George Duby, t.2, De L’Europefèodale á Ia Renaissance, dirig. por George Duby,Paris, 1985, pp.562-563.

(25) - Robert Delort, ob. cit., p.138:(26) - Sobre estes assuntos, cf. Ana Maria Pereira

Ferreira, A importação e o comércio têxtil em Portu-gal no século XV, (1385-1481), Lisboa, 1983, pp.108-122.

(27) - Robert Delort, ob. cit., p.36.(28) - A.N.T..T., Chanc de D. João lI, liv.l, fl.64vº-65.(29) - Ib., liv,22, (L.124.

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A CRÓNICA DOS CÓNEGOS REGRANTES DE SANTO AGOSTINHO E A PRIMEIRAESCOLA DE MEDICINA PORTUGUESA

Romero Bandeira *

“Chronica da Ordem dos Cónegos Regrantes doPatriarcha J. Agostinho”, pelo P.Dom Nicolao deS.Maria, natural de Lisboa, Cóne go Regrante eCronista da Congregação de Santa Cruz de Coimbra,foi publicada em Lisboa e impressa na Officina deJoam da Costa no ano de MDCLXVIlI, “com todasas licenças necessárias

Trata-se de uma obra rara, tendo desaparecidorecentemente o único exemplar que havia naBiblioteca Pública Municipal do Porto, encontrando--se dois ou três exemplares na Biblioteca Nacional(Pinto, 1982).

A Crónica consta de duas partes, a primeiraconstituída por 6 livros e 98 capítulos e a segundacom 6 livros e 185 capítulos num in-fólio de 582páginas numeradas (Santa Maria N 1668), com umtotal de 12 livros e 284 capítulos.

De acordo com Barbosa Machado (1966) o autorrecebeu o hábito em 5 de Dezembro de 1615 efaleceu a 7 de Novembro de 1675. Francisco LeitãoFerreira nas “Me mórias Cronológicas daUniversidade de Coimbra”, pág.538 § 1153, chama-lhe Douto Cronista.

Os Cónegos Regrantes de Santo Agostinhopertencem a uma Instituição da época das grandesreformas gregorianas, formada pelos membros doscabidos das colegiadas e catedrais que, depois deaceitarem a Regra de Santo Agostinho, se unirampara levar uma vida de Comunidade. A ideia de seunirem os clérigos de uma mesma igreja numa vidaem comum havia surgido já antes de SantoAgostinho, debaixo da influência do Monacato Ori-ental mas não chegou a realizar-se.

No ano de 1061, Alexandre II levou a reforma àmais antiga das Congregações de cónegosregulares, a de S. Salvador de Latrão. No século XVIhouve em Itália uns 500 Institutos e no resto daEuropa cerca de 400. Deles saíram 36 papas, uns600 cardeais e muitos bispos. O hábito branco queusa o Santo Padre é uma recordação da sua

residência com os Agostinhos em Latrão. Em Portu-gal, a Congregação de Santa Cruz em Coimbra foifundada em 1132 e reformada em 1537 pelo padreJerónimo, Bias de Braga (Ferreres, 1950). Do pontode vista sócio-cultural se dividirmos a Idade Médiaem quatro períodos, os séculos XI e XII são acharneira de todo o movimento teocêntrico que fazcom que a sociedade viva em torno da Igreja, sendo--lhe cometidas praticamente todas as tarefas do foroassistencial. Desde os pobres aos peregrinos, aacção dos vários tipos de congregações foiextraordinariamente importante.

Nos séculos XI e XII, sobretudo o século XII é aépoca criadora da Idade Média, assiste-se àintrodução de um regime novo, marcado pelaformação do senhorio feudal, depois pelorenascimento do estado e pela emancipação popu-lar.

A Idade Média procura instituir uma sociedadeperfeita, a Cristandade, onde se conciliem a belaépoca, a unidade de espírito indispensável à suaexistência, a diversidade e a independência vitais dasnações, das comunidades e das pessoas que têmcada uma o seu lugar na colectividade. Ela possuium poder espiritual, o Papa, superior a todo equalquer poder.

Esta sociedade possui também os seus meios deexpansão: as cruzadas, as peregrinações, p.ex. ade Santiago de Compostela, fazendo convergir todasas Ordens, todas as classes, todos os povos, nummesmo pensamento e ideal ao serviço de Deus e daCristandade (Chevalier, 1956). Durante a Alta IdadeMédia, na Gália Merovíngia, as peregrinações a S.Maninho de Tours condicionaram uma marcadadeslocação de populações com a concomitantenecessidade de protecção e assistência (Lelong,1963). Nasce também na província de Narbone acongregação de Santa Maria de Rocamador que viráa dar os seus frutos em Portugal, quando chegar aopais em 1189, difundindo-se a partir de 1193 porvários estabelecimentos assistenciais.

D. Afonso II no seu testamento de 1221 lembra-sede Santa Maria de Rocamador; nas Inquirições deD. Afonso III analisamos que há um elevado número

* Delegado Nacional da Sociedade internacional deHistória da Medicina

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de terras que pertencem a essa Congregação, tendo--se a ela também referido a Rainha Santa Isabel noseu último testamento, o de 1324 (Almeida, 1949).

O Hospital-Albergaria de Rocamador foi, na cidadedo Porto, o precursor longíquo do Hospital de SantoAntónio. É neste ambiente socio-cultural e políticoque a Medicina Portuguesa nasce e se começa aestruturar, na sua história podemos considerar oaparecimento da Escola de Santa Cruz de Coimbracomo o início do Primeiro Período, que vai de 1130até à instituição dos Estudos Gerais em 1290 (Lemos,1881).

Porém, se quisermos ser exactos, deveremosconsiderar o início deste período em 1132, dado sereste o ano do estabelecimento da Congregação dosCónegos Regrantes de Santo Agostinho em Portu-gal. Não entendemos que se trate de um rigorismo,visto pretender-se com esta data assinalar umperíodo fundamental em toda a História da MedicinaPortuguesa.

Em alguns mosteiros portugueses criaram-seescolas regulares de humanidades, possuindo belaslivrarias com obras religiosas, filosóficas, etc. OAbade de Alcobaça, Frei Estevão Martins funda em1269 no Mosteiro da Congregação de Santa Mariaaulas públicas de gramática, lógica e teologia(Boaventura, 1827).

Neste statu quo surgem os charlatães, osfeiticeiros, os fabricantes de medicamentos. Dadasas carências assistenciais aparecem os primeirosmecenas, reis e gente nobre, que economicamenteapoiam as iniciativas, tendentes a minorar osofrimento alheio; várias ordens religiosas tratam dosenfermos, na medida das suas possibilidades ecritérios do tempo.

Se com D. Afonso Henriques se desenvolve oterritório, o povoamento do mesmo e a estabilizaçãoda sociedade obrigam D. Sancho I a uma políticadiferente, nomeadamente de âmbito cultural. Aaprendizagem da medicina processa-se ou através

dos médicos laicos ou em conventos. É rudimentar.A purga, a sangria, o clister, a uroscopia, oherbalismo„ o termalismo; sempre os mesmosdenominadores comuns de âmbito diagnóstico eterapêutico, face, por exemplo, às epidemias e àsmigrações. Dois médicos, um deles de craveirainternacional, marcam este período: Pedro Hispanoe Frei Gil Rodrigues, este também da escola de SantaCruz.

O estudo deste período da Medicina Portuguesatorna-se muito difícil dada a escassez dedocumentos. Apesar desta Crónica não ser coevada época a que aludimos, merece ser analisadanalguns dós seus passos. Assim, no livro VII, ocapitulo XV intitula-se:

Através dele tomamos conhecimento de que osprimeiros cónegos ordenaram que houvesse sempreno dito Mosteiro, Mestres das boas Artes e Ciências.

O Mecenas deste empreendimento foi o Rei D.Sancho I, que pretendeu fazer de Coimbra não só asede do poder político mas também a dodesenvolvimento intelectual, no domínio das Artes eCiências.

Procurou estimular os estudos no Mosteiro deSanta Cruz e paralelamente “mandou que os gastosque os Conegos de S. Cruz fazião em Pariz;estudando as ciencias & graduando senellas peraas vir ensinar a Coimbra, fossem à conta de suafazenda Real, como consta da doação que o mesmoRey fez ao dito Mosteiro de S. Cruz de quatro centosmorabitinos pera ajuda da sustentação dos Conegosdo mesmo Mosteiro que estudavão em França, quediz assi:

Em nome de Christo saibão todos os que esta Cartade doação ouvirem ler; que eu D. Sancho Rey dePortugal, & do Algarve de minha própria vontade dou,& concedo ao Mosteiro de S. Cruz quatrocentos

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morabitinos de minha fazenda, para sustentação dosCónegos do dito Mosteiro, que estudão em as partesde França. Foi feita esta Carta a 14. de Setembro doanno de 1199:” (II Parte, p.58).

Desenvolveram-se os estudos da Filosofia e daMedicina. D. Sancho I nomeou Prior o Padre D.Gonçalo Diaz, que entendeu mandar graduar emMedicina em Paris ”um dos cónegos bolseiros “pelamuita necessidade que havia desta Ciência noReino:”

... Este Prior pois entre as cousas que ordenou perautilidade, não só do seu Mosteiro, mas da Corte, &do Reyno, foi mandar, que hum dos seusConegosque estudavão em Pariz, estudasseMedicina, & se graduasse nella pera a vir ler noMosteiro de S. Cruz, pella muita necessidade quehavia desta ciencia no Reyno; & porque por aquellestempos não era o estudo da Medicina indigno degente Ecclesiastica, & illustre, antes havia muitosEcclesiasticos, & gente ilustre que com grande creditoprofessavão a ciencia de Medicina, de que há muitosexemplos nas nossas Historias Portuguezas. Tevetambem o Prior D. Gonçalo Diaz particular intentoem mandar, que alguns de seus Conegosestudassem Medicina, & foi ter: hum Hospital juntoao seu Mosteiro de S. Cruz, em que por amor deDeos se curavão os pobres, & peregrinos, como logodiremos.”, (II Parte pp.58-9).

Torna-se nuclear para a compreensão do tema afigura seguinte, extraída directamente: do texto daCrónica.

e, continua: “& entre os discipulos que teve foi humGil Rodriguez, filho do Alcaide Mor de Coimbra D.Rodrigo, que depois tomou o habito de S. Domingos,& foi o segundo Provincial chamado o Santo Fr. Gil,que sempre foi muito affeiçoado à nossa Ordem emque se criou, & grande amigo do Beato D. GonçaloMendez Prior do nosso Mosteiro de S. Vicente deFora, que foi seu condiscipulo em S. Cruz.” (II Parte,p.59).

A Escola de Santa Cruz atingiu grande nível e em1287 o seu Prior sugeriu a D. Dinis a criação daUniversidade; nesta ordem de ideias logrou obterajudas dentro da Comunidade Eclesiástica e apoiareconomicamente a fundação da nova Universidade,“offerecendo o dito Prior de Santa Cruz (& a seuexemplo os mais Prelados) pagar das redas do seuMosteiro os salarios ao Reytor, & Lentes, & maisofficiais da nova Universidade.” (II Parte, p.59):

Esta Escola foi desde a primeira até ao fim dasegunda dinastia, uma pedra angular da estruturauniversitária portuguesa: “até o tempo dei Rey D.João III que a passou pera Coimbra outra vez,mandando edificar junto ao Mosteiro de S. Cruz douspolidos, & concertados Collegios hum à mão direitado dito Mosteiro, & outro à esquerda. O primeirodestes Collegios se chamava de S. Agostinho, & tinhacinco Aulas ou Gerais, ladrilhados, & forrados comsuas cadeiras pera os Mestres, feitas por grande arte,& neste primeiro Collegio se lia Philosofia,Theologia,& Sagrados Canones. O segundo Collegio sechamava de S. João Bautista, & tinha outras tantasaulas, & Cadeiras, em que se lião Leys, Medicina, &Marthematica” (II Parte, p.60)

...e, mais adiante: “Tambem della consta comosempre se continuou o costume antigo do Mosteirode S. Cruz, ter sempre na Universidade de ParizConegos a estudar até se graduarem de Mestres,pera que houvesse sempre quem lesse no ditoMosteiro Artes, Theologia, Medicina, & Canones quesão as sciencias, que se permittem aos Religiosos.”(II Parte, p.61)

Para ultimar esta breve análise da Crónica, vamosreferir a assistência aue era exercida através doHospital-”Fudados pois nesta doutrina os primeiros,& santos Cone gos do Mosteiro de S. Cruz, tratarãologo no principio da Fundação do mesmo Mosteirode edificar junto a elle hum hospital; pera nelle seexercitarem em todo o genero de charidade com ospobres, & peregrinos, & lavandolhes os pés;dandolhes de comer, vestindo sua pobreza, &curando suas enfermidades.” (II Parte, p. 62)

Como directamente junto dos doentes.Quando chegava algum peregrino pobre de novo,

o Cónego Provedor do Hospital devia providenciarpara que lhe lavassem os pés, fizessem a cama elhe dessem de comer.

Torna-se claro que não podemos obter através daanálise da Crónica, qual a terapêutica exercidaperante as situações clínicas que se deparavam, maspodemos aquilatar de que os meios, parcos na época,para tratamento dos doentes, eram postos emexecução, pese embora o facto de existiremsituações que são claramente expressas: a fome ea peste.

Ao longo dos 500 anos, desde a sua fundação,essa acção desenvolveu-se quase ininterruptamente,

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estabelecendo-se uma.incipiente acção socialuniversitária, quando no tempo em que D. João IIIestabeleceu a universidade em Coimbra, se davamatravés do Mosteiro, rações a 24 estudantes pobresque estudavam e se graduavam na Universidade,situação que se mantinha em 1668, segundo o autorda Crónica.

Outra acção, deveras interessante, era o envio aosHospitais de fios de linho, obtidos a partir de hábitosvelhos, que se utilizavam para fazer os pensos nasferidas, sendo portanto os precursores da actualgaza.

A assistência durante a epidemia de 1202 é relatadanestes termos: “Porém aonde se mais esmerou, &melhor se deixou ver a grande charidade dosConegos de S. Cruz pera com os pobres, foi no tempodas fomes, & pestes, que houve neste Reyno,acudindo a curar os inficionados da peste, não sócom temporaes medicinas, mas com as espirituaesdos Sacramentos da Confissão, & SagradaComunhão, morrendo muitos dos ditos Conegosnesta santa empreza. E consta das memorias doCartorio do dito Mosteiro de S. Cruz, que naquellageral fome, & peste que houve neste Reyno pellosannos 1202 reynando EI-Rey D. Sancho I morrerãotrinta & tres Conegos do mesmo Mosteiro de S. Cruz,curando aos feridos da peste, & ministrandolhes osSacramentos;” (II Parte p.64) ,

É ainda de realçar a acção exercida aquando dagrande fome de 1356, no final do reinado de D.AfonsoIV, em que morreu cerca de 213 da população doReino. Como já dissemos esse apoio às vitimas. dapeste e da fome foi sempre constante, referindo ocronista que durante os anos de 1597 e 1599, “porfalta de todos os mantimentos de pão, vinho, azeite,legumes, & frutas, veyo a gente pobre das Aldeias acomer manjares, que nunca gente racional comeu,’& acudindo muita desta gente à Cidade de Coimbra,vinha já tam debilitada que morria muita,” (II Parte,p.65) essa acção se intensificou.

Figura 5

Instituída em 1132 e desenvolvendo a suaactividade áurea até ao reinado de D. João III foi,dada a importância da Congregação e os meios deque dispunha, indubitavelmente a primeira Escola daMedicina - Portuguesa, quer porque graduouoficialmente alguns dos seus membros noestrangeiro, os quais posteriormente aqui vieramexercer,

Como se sabe o isolamento em tempo deepidemias era uma das medidas terapêuticas maisusadas, e assim “porque nos taes tempos esta era aordem que tinhão os Conegos do Mosteiro de S. Cruz:fechavão as Portarias do dito Mosteiro, & recolhiãodentro consigo Médico, & Barbeiro, & pellas gradesdas janeilas baixas fazião as mesmas esmolas aospobres.” (II Parte, p.65), quer ainda porque a suaacção decorreu segundo o espírito cultural e aspossibilidades da época, realizando a tríade queainda hoje nós procuramos constituir: estudo, ensinoe assistência.

A Escola de Santa Cruz de Coimbra foi o embriãolongínquo das modernas Escolas de Medicina e oexemplo típico duma Instituição confrontada com asrealidades sociais em que não só avultava a doença,mas também as dificuldades em a minorar qualquerque fosse o quadrante em que ela era encarada,Hoje, quase novecentos anos depois, no momentoem que se põe o problema da Educação Médica”,com toda a acuidade, será bom ter presentes aspalavras lapidares de D. Gonçalo Diaz relativas àCiência que tem por fim prevenir e curar as doenças:“pela muita necessidade que havia desta Ciencianeste Reyno”.

MACHADO D.B. (1966) Bibliotheca Lusitana, Vol III, Nov.Ed. Atlântida, Coimbra, pp.494-5.

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A MEDICINA E O MEDICO PERANTE O DOENTE INCURAVEL E MORIBUNDO NOSÉCULO XVI - TESTEMUNHOS DE AMATO LUSITANO

António Lourenço Marques*

Amato Lusitano (1511-1568), o autor das SeteCentúrias de Curas Medicinais (cuja publicação -vertida do latim para português por Firmino Crespoe pelo médico José Lopes Dias, investigadoralbicastrense evocado durante estas II Jornadas -tão fértil se tem revelado pelas investigações de muitosignificado para a história da medicina que vemproporcionando), também nascido nesta cidade daBeira interior, foi um dos mais representativosmédicos europeus do Renascimento.

A sua envergadura de humanista e de médico queexerceu o mister balizado pelos conhecimentos maisevoluídos da época, inspirados em particular na“ciência hipocrática” redescoberta, ilustram bem aluminosidade desse período histórico que, emborasem romper abruptamente com a Idade Média,permitiu o desenvolvimento fulgurante doconhecimento, sob a égide e o estímulo “dum espíritonovo, desembaraçado de preconceitos dogmáticose movido pela curiosidade intelectual”.

João Rodrigues de Castelo Branco, “um dosvagabundos da Ciência, perpétuos estudantes quepara aperfeiçoar os conhecimentos percorreram todaa Europa”(1), oferece nos na sua obra escrita um pano-rama de grande amplitude. Podemos descortinarnela, o estado dos conhecimentos médicos da épocae a sensibilidade manifestada por diversasproblemáticas; alguma persistindo até aos nossosdias, num percurso de incessante procura desoluções teimosamente provisórias.

A “arte de curar” configura da melhor forma o oficioque Amato exerceu. Fê-lo com arte e também com asabedoria moldada pelo estudo dos autores clássicose pela experiên cia do contacto com milhares dedoentes e doenças. Uma atitude sempre firme,mesmo perante os casos que pareciam sem grandeshipóteses de cura, revela a genuína estruturação damentalidade do médico, arquitectada dentro dascaracterísticas que se tornaram universais e perenes.

Na cura LXXIII da Sexta Centúria, o autor ao tratardum caso de disenteria, após a verificação doprognóstico mortal, abandona o doente. Informa-nosporém que na sua decisão pesou o ensinamento de

* Assistente Hospitalar de Anestesiologia

Hipócrates. “Apresentado o diagnóstico de que embreve morreria, como todos observamos teracontecido assim dois dias depois, pedida desculparetiramo-nos apoiados no conselho de Hipócrates -que só com os prognósticos se devem deixar oslamentados”(2).

Esta foi uma decisão “cruel” que Amato não deixoude deplorar. A medicina hipocrática, no entanto, erabem clara e firme neste ponto. Perante asenfermidades mortais e incuráveis os médicos tinhampor obrigação abster-se de qualquer atitudeterapêutica. Este preceito imbricava na supremaregra hipocrática - primum non nocere. Assim, se otratamento já não produzia eficácia na restituição dasaúde, a abstenção seria a melhor garantia documprimento daquele principio.

É claro que questionamos-nos legitimamente sobreo valor dos elementos em que se baseavam osmédicos hipocráticos para concluírem os seusprognósticos que, quando fatais e em caso de erro,acarretavam consequências desastrosas. Noentanto, se o desenvolvimento da prognosishipocrática que parece dominar em grande medidaa medicina hipocrática pode assumir em algunscasos uma finalidade táctica, ao servir os desígniosdo médico preocupado em gerar confiança à suavolta, é bem provável que, como defende José Alsinae Lain Entralgo, a sua natureza profunda fosse maisde ordem técnica(3), pois a decisão de se abster detratamento não deixaria de ter invariavelmente gravesreflexos quer sociais quer éticos mesmo religiosos.

Figura 1

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Tomas Morus (1478-1535), que foi contemporâneode Amato Lusitano e é um dos autores maisparadigmáticos do espírito renascentista, interessadoem propor, de acordo com o antropocentrismo quepassou a dominar a época, um modelo de felicidadeperfeita e total pára o homem, defendeu na Utopia,quanto à assistência aos doentes moribundos eincuráveis, que aos que assim sofrem “consolam-nos visitando-os assiduamente, falando-lhes emsuma, proporcionando-lhes todo o auxílio possível”(4).Tomemos nota do conselho de Amato exposto noseguimento da Cura que vimos citando: “Todavia,para não parecermosinsensíveis, se formoschamados de novo a veros que assim estão,l a m e n t a v e l m e n t eperdidos, é nossaobrigação visitá-los paraque eles próprios nãocaiam no desespero”(5).

Que semelhança decuidados! Terá AmatoLusitano lido a Utopia,livro publicado, pelaprimeira vez, emLovaina, em 1516?Certamente que nãoprecisava de o ter feitopois podemos estarperante o pensamentohabitual dos homensevoluídos de então. Asensibilidade de Amato,se era fruto do seu génio,comungava também doespírito do tempo eligava-se à riquíssima experiência adquirida notratamento de milhares de doentes.

A formação médica de Amato Lusitano eravastíssima e, como vimos, Hipócra tes exercia umainfluência determinante. No entanto, a aplicação dosensinamentos sofre um processo de significativoenriquecimento. Perante o doente incurável, se aatitude do médico é por vezes lineramente deabandono (“recusa Hipocrática de abandono”) (CuraXXV da I Centúria, Cura XC da III Centúria, etc ),também o acompanhamento do doente até à morte( Cura XXXI da I Centúria ) com a finalidade deminimizar o sofrimento psíquico do moribundo, queo abandono por certo agravava, é praticado.

Os casos de abandono dos doentes moribundos eincuráveis podem parecer-nos confrangedores.Porem, os horizontes profundos que orientam aprática médica da Amato não o deixavam perder devista o objectivo mais nobre da medicina.

Na Cura XC da III Centúria, abandona uma criança

de Ancona atingida por doença infecciosa incurável.A mãe e os três irmãos do pequenito acabavam demorrer quando Amato foi chamado. Nada há a fazer.Mas o médico percebe que a doença foi devida “aoambiente fétido que a velha exalava e infeccionavao ar”.

E como ainda viviam naquela casa fatídica algunscriados de boa saúde, aconselha de imediatomedidas como “fazer lume de ramos e ervasodoríferas e de ramos de lenha de suaves exalações,mantendo-o permanentemente em vários pontos dacasa, tais como de rosmaninho, alecrim (?), orégãos,

poejos, manjerona,loureiros, zimbro,ciprestes e semelhantese a manterem abertas asfrestas da casa,enfrentadas por outrascasas, para não seremvarridas pelo vento”.

Portanto, o “desprezo”pelo doente com umprognóstico fatídico nãoé real, pois o quepreocupa o médico é apreservação da vida ourestituição da saúde erespeito por estesprincípios é superior esobrepõe-se, aodeterminar as medidasque vão proteger todosaqueles que podemainda vir a ser atingidospela mesma causa dadoença. Esta escolhapela vida, num contexto

de morte, traduz um espírito médico solidamenteestruturado, consciente de que o seu empenho comoprofissional não se esgota perante a fatalidade damorte.

Há outros casos de doenças graves em que AmatoLusitano não intervém, mas ficamos com duvidas seseria realmente esse o seu desejo. Ao descrever--nos na Cura LXXXIV da V Centúria(8) a morte FreiPaulo, da ordem dos Cruciferários, vítima de suicídiopor envenenamento, por motivos de paixão amorosa,pressente-se que não se solidariza com númeroschamados para observar o moribundo e que nãoactuaram “por este ter trocado a vida pela morte”sendo esta “o castigo da sua paixão”. Amato teveconhecimento do caso com muito pormenor.Provavelmente porque lho contaram. Mas o modocomo se refere à atitude do frade, que justifica por“ter perdido a coragem”, portanto uma legítimafraqueza humana perante um sentimento que nãocondena, leva-nos a pensar que se pudesse ter

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interferido directamente, provavelmente não ficariade braços cruzados como os seus colegas. A “paixãoinflamada” do frade de vinte anos tem uma origemperfeitamente natural, quase inevitável, tal comoAmato a descreve, fazendo parte da própria vida.Certamente que para o grande médico doRenascimento que assim se refere à tragédia do“bom do frade”, a morte está desajustada pelo que élegítimo pensar que se tivesse interferidodirectamente no caso, não se limitaria a assistir.

Podemos ainda assinalar uma outra nobredimensão envolvida na actuação de Amato peranteo doente moribundo e que diz respeito a tratamentosexclusivamente dirigidos ao alívio de sintomasextremamente puníveis. Trata-se do embrião de umaparte da medicina - os cuidados paliativos - que temtido alguma dificuldade em impor-se entre oscuidados que o tratamento integral dos doentes exige.

Na Cura XCl da V Centúria(9), refere-se à ingestãode cal viva por uma criança de oito anos. O doenteficou com “febre muito intensa” e uma “sedeinextinguível”. Chamado Amato. Lusitano, este fez oprognóstico “de que em breve morreria”. No entanto,aconselhou á que “lhe dessem a beberabundantemente leite ou qualquer caldo de carnebastante gordo”. Este é um belo exemplo da actuaçãodo médico, que começa aqui aperceber que omoribundo exige também tratamentos que lhe aliviemou anulem os sintomas causadores de sofrimentodesnecessário. Mesmo perante o prognóstico dedoença mortal e breve, Amato não negou osconselhos destinados a amenizar o sofrimento domoribundo.

É importante dizer que este médico albicastrenseprocedia, com constância, dentro de uma perspectivaética irrepreensível. Casos complicadíssimos... E onosso médico utiliza uma razoável panóplia de“recursos” que se sucedem quase como se fosseminesgotáveis, por vezes até à morte, que não éinvulgar.

O sentimento pessoal da morte, já para além dopressentimento, foi uma característica de muito longaduração na história da morte e que se perdeu, nassociedades ocidentais, a partir do último meioséculo(10).

É curioso verificar como Amato Lusitano percebiaque quando o moribundo detinha conhecimentosmédicos, tal sabedora tinha também a função deservir como chave para o entendimento pessoal daprópria morte, desdramatizando-a. Na Cura LXXXVIda II Centúria de Curas Medicinais(11), ao relatar-nosa morte de Ludovico Bobio “vítima de uma falsapleurite”, afirma que “enquanto a dor era fortíssima”(...) “quando percebeu que as forças começavam afaltar, decla-rou aos assistentes que morria, pois estehomem, velho e sabedor, cultivava a medicina e atéa exercera”. (...) “Morreu no dia citado” e eis a

maravilhosa noticia necrológica registada por Amato:“não sem grande pesar do piedoso embaixador dorei de Portugal junto do Papa Júlio III, pois o estimavacom aquela costumada amizade que e apanágiodispensar a todos os homens cultos e sábios”. Nãotemos mais pormenores, mas a descrição desta Curarevela-nos bem uma nova maneira de encarar amorte, despida já das cores mais sombrias emacabras das épocas anteriores. Pressente-se, dealgum modo, um ambiente de tranquilidade, comoque amenizado pela categoria distinta do morto. Acultura e a sabedoria, como grandes referências dohomem novo do Renascimento, contribuem aqui paraesbater o drama da própria morte.

Muitos outros testemunhos de actuação de AmatoLusitano que exprimem o estado da medicina cioRenascimento perante a situação do doentemoribundo e incurável podem perscrutar-se naanálise das setecentas curas das CentúriasMedicinais. E pois uma perspectiva fascinante.

Vislumbram-se frequentemente, nas suas decisõese comentários, ideias em embrião ou já estabelecidase que perduraram. Um grande amor pelo homem,cuja vida e bem valorizada por ser única, interpenetratodos aqueles casos clínicos. O homem, mesmo amorrer, desperta no grande médico uma atençãomuito intensa, não encarando a morte inevitável comotragédia absoluta. Embora certo da suainexorabilidade, confia profundamente no papelseguro que compete à medicina, no restabelecimentoda saúde, quando exercida por médicos sabedorese inimigos do charlatanismo. Um criado doembaixador do Rei de Portugal junto do Papa JúlioIII “ao dizer que se está de boa disposição quandose é tratado por médico sabedor” proporcionou umaoportunidade singular que traduz de forma expressivaessa sereni-dade perdida perante a morte. Foi entãoque “ouviu o doutor Ludovico Bobio contestar em vozbaixa, com prudência: e não se morria no tempodaquele grande Galeno?”(12).

Amato Lusitano, que conheceu estes horizontesdas planícies de Castelo Branco, com poucosrecortes por ventura, dando-nos por vezes asensação de que a riqueza, a exuberância, as árvoresfrondosas e os rios refrescantes moramdefinitivamente para além dos limites secos eagrestes, produziu uma obra que constitui umrepositório de saber com grande vastidão. JoãoRodrigues de Castelo Branco ergueu-a fora desteslugares, é certo. Mas não devemos esquecer que foiaqui que ele bebeu o primeiro leite. Na sua estrutura,que lhe proporcionou tão notável porte no expoenteda Medicina Renascentista, há seguramentemateriais destas paragens. Talvez este o maiorparadoxo do homem beirão e que parece terperdurado. Mesmo grande foi quase semprepequeno na sua terra.

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NOTAS.

(1)- Dir. de René Taton, Historia General de IasCiências, Barcelona, Editiones Orbis, 1988, vol IV,p. 183.(2)- Amato Lusitano, Centúrias de Curas Medicinais,Trad. de Firmino Crespo, Universidade Nova deLisboa, vol. IV, p. 114.(3)- José Alsina, Los Orígenes Helénicos de IaMedicina Ocidental, Barcelona, Guadarrama, 1982,p. 55.(4)- Thomas More, Utopia, Lisboa, p. 106.

(5)- Amato Lusitano ob. cif. p. 114.(6)- Ibid., vol. II, p. 319.(7)- Ibid., p. 320.(8)- Ibid., vol. III, p. 277.(9)- Ibid., p. 286.(10)- Philippe Aries, Sobre a História da Morte noOcidente desde a Idade Média, Lisboa, Teorema,1988, p. 180.(11)- Ob. cif., vol. II, p. 149.(12)- Ibid.

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ANTONIO DE ANDRADE (1581-1634),O PROBLEMA DO CATAIO E AS PATOLOGIAS

PELA LUZ E PELO FRIO EM GRANDES ALTITUDES

Alfredo Rasteiro*

António de Andrade (1581-1634), natural deOleiros, Castelo Branco, filho de BartolomeuGonçalves e de Margarida de Abreu, é um dosprimeiros europeus que descreve correctamente apatologia provocada pelo frio e será provavelmenteo primeiro que com conhecimento de causadescreverá aquilo que hoje designamos porfototraumatismo. Assim, não sendo médico tem oseu nome gravado a letras de oiro na História daMedicina e a História dos Homens recordá-lo-ánecessariamente por isto e ainda pelo valiosocontributo que deu aos estudos geográficos eetnográficos e ao relacionamento entre os Homens.Era um Homem decidido, determinado, que nãovergava nem torcia, que caminhava a direito por sítiosonde apenas caberia um pé de cada vez, emequilíbrio instável a grande altura ou deitado erastejando na neve, indiferente ao frio, teimoso, aquem os sofrimentos não assustam, até que a morte,ou a peçonha... o vençam.

Sabe-se que António de Andrade deu entrada noColégio da Companhia de Jesus, em Coimbra, nodia 15 de Dezembro de 1596, tendo prosseguido osestudos em Lisboa, de onde partiu para Goa em 22de Abril de 1600 na nau S. Valentim, onde seguia oVice-rei Aires de Saldanha. Bom, esta a informaçãoque parece correcta e que em 1987 foi transmitidapara o grande público em “Navegadores, Viajantese Aventurados Portugueses, séculos XV e XVI”, vol.2;- António de Andrade. A penetração pela fé”, pp.192--201, da Editorial Caminho e da responsabilidade deLuís Albuquerque ou mais recentemente na página70 do livro “Viagens na Ásia Central em demanda doCataio. Bento de Goes e António de Andrade”,introdução e notas de Neves Águas, de PublicaçõesEuropa-América, 1988- Porém, a “Relação das Naose Armadas da India com os successos dellas que sepuderam saber, para a noticia e instrucção doscuriozos, e amantes da História da India (British Li-brary, Codice Add.20902)”, Leitura e Anotações deMaria Hermínia Maldonado, Biblioteca Geral da

Universidade, Coimbra; 1985, diz-nos na página 103que no “Anno de 1600” “Aires de Saldanha vizo-rei ecapitão-mor de quatro naos partio a 4 de Abril.Capitães: Fernão Roiz de Sá que morreo antes dechegar a Goa,...”. O vizo-rei seguiu na nao S.Valentim. Fernão Roiz de Sa ia de capitão-mor nanao S. Francisco...,... e ainda outra informaçãoimportante é a de que “Nestas naos forão brevespara Francisco Ros, religioso da Companhia, serbispo Angamale que he nas serras de Cochim ondehabitãm os christãos a que chamão de Sancthomé”.

Aí fica essa diferença de 18 dias da vida de Antóniode Andrade para entretenimento de historiadoresprofissionais e entretanto o nosso Herói continuaráos seus estudos no Colégio de S. Paulo, em Goa emais tarde seguirá para Agra, no reino de Akbar(reinado de 1556 a 1605), depois governado porJahangir. Em Agra aprenderá a língua persa usadana Caxemira e colherá informações sobre asmisteriosas terras do Cataio e Reinos de Tibet, querelações teriam com a China e sobre a possibilidadede atingir Samarkanda e a antiquíssima rota da seda.Os nossos Historiadores não falam nisso mas é esseo trajecto seguido por Bento de Góis (1562-1607) eserá nessa direcção que irá situar-se: a Chaparangueou Tsaparang, na parte mais ocidental do Himalaya,onde Andrade fundará uma missão em 1626.

Curiosamente, na sua primeira viagem ao Tibet,para os lados da Caxemira, Andrade não levou nadaque induzisse os naturais a confundi-lo com ummercador, o que terá sido causa de preocupações efaltas à verdade, nomeadamente que iria procurarum irmão e que os trajos negros seriam para o casode já ter falecido:.. E depois, a verdade e mentiratinham as suas regras, ficamos sem saber se Antóniode Andrade ia acompanhado por dois meninos oupor três e até talvez nem fosse culpa sua porque orelato de que se dispõe foi impresso a partir de umacópia, de que apenas se conhecem dois exemplares:um na Biblioteca Nacional e outro na Torre do Tombo,da iniciativa de Matheus Pinheiro, Lisboa, 1626,segundo a informação de Neves Águas.

E a verdade, o relato exacto dos factos é uma coisa,a descrição sem base real, outra. No relato queparticularmente nos interessa, contido na Carta que* Professor da Faculdade de Medicina de Coimbra

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António de Andrade escreveu em Agra e datou de 8de Novembro de 1624, impressa com o titulo de“Novo Descobrimento do Gram Catayo, ou Reino deTibet”, há coisas que então já eram sabidas emrelação com a patologia pelo frio, há fantasias e hácoisas novas que merecem destaque.

Certamente já seria sabido que a permanência naneve levaria a que Andrade afirmasse: “Nos pés,mãos e rosto, não tínhamos sentimento, porque como demasiado rigor do frio, ficávamos totalmente semsentido”, mas já se colocarão dúvidas para aafirmação:”.-. aconteceu-me, pegando em não sei oquê, cair-me um bom pedaço do dedo sem eu dar fédisso nem sentir ferida”, e até aqui tudo bem’, mas...“.:. se não fora o muito sangue que dela corria”. Naverdade, de um simples golpe num dedo gelado, nãoserá de esperar muito sangue e muito menos muitosangue que corria...Segue-se a afirmação:”Os pésforam apodrecendo de maneira que, de muiinchados, no-los queimavam depois com brazasvivas e ferros abrazados, e com mui poucoSentimento nosso” e aqui surgem dois tipos deinterrogações: tratar-se-ia de patologia pelo frio egangrena das extremidades ou apenas umamanifestação de aquilo que virá a chamar-seescorbuto e, nos nossos dias Avitaminose C?. E aoutra interrogação a fazer é se depois de tais tratosaqueles pés ainda teriam condições para o regressoe para uma segunda viagem e os desejos de terceira.Não oferece porém dúvidas que, havendo anestesiapelo frio ou os grandes inchaços do escorbuto,haveria insensibilidade. E havia mais:”... a isto seacrescentaram dons grandes males, o primeiro, quecada um de nós tinha um mortal fastio, com queficávamos como que impossibilitados de comer; nãome lembra que em doença tivesse outro igual a este;mas a necessidade precisa fazia que sobre todas asrepugnancias comesse alguma cousa, e com muitaforça e com algumas invenções procurava com osmoços o mesmo, mais do que nunca fiz a doentesgraves. A outra cousa que nos foi de pena era nãoachar água pera beber, a qual ainda, no meio de taisfrios, nos era bem necessária, por razão da securaque causava o muito trabalho; não era esta falta porfaltarem fontes, mas per todas correrem ocultamentepor baixo da neve...” e tudo isto quando...” o trabalhoque passávamos foi muito excessivo, porque nosacontecia muitas vezes ficar encravados dentro daneve, ora até aos ombros, ora até os peitos, deordinário até o joelho, cançando a sair acima, maisdo que se pode crer, e suando suores frios, vendo--nos não poucas vezes em risco de vida; muitasvezes era necessário ir por cima da neve com ocorpo, como quem vai nadando...” e aqui já surge aexperiência vivida, a linguagem rica e expressiva, aimaginação refreada...

E surge o momento mais dramático daquela

viagem: “Já neste tempo tínhamos a vista dos olhosquase toda perdida, mas eu a perdi mais tarde queos moços, pola muita diligência que fiz em resguardaros olhos; mas não foi bastante pera não ficar quasecego por mais de vinte e cinco dias, sem poder rezaro Ofício Divino nem ainda conhecer uma só letra doBreviário”. Ora, Andrade em 1624 teria exactamente43 anos, mais mês, menos mês e se acaso teriaaquilo que hoje entendemos ser uma visão normal,estava a entrar numa época da sua vida em quenecessitaria de óculos para ler o Breviário, que atéteria letras de razoáveis dimensões e daí um motivomais de angústia a juntar a muitos outros problemasque nada eram comparados com a falta deautorização, por não ter sido solicitada, para estaviagem que por ter terminado em bem terá sidoconsiderada como dentro das responsabilidades eatribuições do Padre Andrade.

Em todo o relato, chama-nos especialmente aatenção a resistência ao frio, que nos nossos diascontinua a ser uma enorme dificuldade para quemdeseje subir às mais altas montanhas do mundo.Amato Lusitano (1511-1568) escrevia em 1554 naTerceira Centúria, dedicada ao “embaixador” emRoma Afonso de Lencastre, na Cura 13 relativa acriados e escravos deste Senhor que “... hoje, osnossos Portugueses fazem o comércio na zonaequinocial e vivem, como os Lapões, sob a zonapolar...” mas os equipamentos de que Andradedisporia eram incipientes, ainda que mostrassemnotável avanço em relação ao que não existiu, porexemplo, na passagem do Cabo da Boa Esperançaem 1506, onde muita gente da frota de Tristão daCunha pereceu de frialdade. No relato de António deAndrade é especialmente impressiva a passagem:“... só me faltava a mim a vista, e não é muito poisaté os mesmos serranos, que desta segunda vezforam connosco, com serem costumados e nascidosentre as mesmas neves, padecem grandes doresnos olhos por alguns dias, sem lhes valer antolhosde certas redes que fazem pera defender a vista dosraios do sol, que, ferindo a neve, cegava os olhoscom a continuação de poucos dias.”

Uma expedição médica em 1957 explorou os Hima-layas numa zona situada a 5300 metros de altitude.sensivelmente a altitude atingida por Andrade em1624 e registou como principais dificuldades áadaptação ao frio, os problemas respiratórios e atosse que não impressionaram muito o nossomissionário, a alimentação e os problemas com osolhos. Os problemas com os olhos são de extremagravidade e têm relação com o frio, o vento, ahumidade do ar, a luminosidade e as radiações ul-tra-violetas. O frio intenso alterará os mecanismosfisiológicos que mantêm a córnea transparente, im-pede a deturgescência, a córnea imbebe-se de água,não perde água, edemacia-se, torna-se opaca. Em

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condições de temperatura favorável, pode readquirira sua espessura normal e a transparência. Se asituação se agravar poderá produzir-se umaqueimadura pelo frio, com dificuldades deregeneração agravadas no caso de haver exaustãodas reservas vitamínicas e outras.

A mudança brusca para um meio com baixastemperaturas, poderá dar grandes dores nos olhospor alguns dias, sem lhes valer antolhos. Podemestas dores ser devidas a queimaduras pelo frio, ou,situação ainda mais dramática que esta, seremprovocadas por crise de glaucoma que pode levar àcegueira.

BIBLIOGRAFIA

1. Neves Aguas: Viagens na Ásia Central emdemanda do Cataio: Bento de Góis e António deAndrade, 1988, Europa-América, Lisboa

2. Proença, R.: “Um Português no tecto do mundoem 1624 (António de Andrade, 1581-1634)”, Kalliopede Medicina, 1988, 1(2) 45-46

3. Spirig, B.: “Medicin dans I’Himalaya”, SymposiumCiba, 1957, 5 (2) 57-62

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APOLOGIA DA HIDROTERAPIA NA CONSERVAÇÃO DA SAÚDE

Fanny Andrée Font Xavier da Cunha*

Nota introdutória à tradução de um manuscrito de Ribeiro Sanches (1699-1783)

Aquando da realização das I Jornadas de Medicinana Beira Interior - da Pré-História ao século XIX,considerámos Ribeiro Sanches campeão da Higienee da Profilaxia, um verdadeiro precursor da nossahigiene político-social.

Dele nos diz Luís de Pina: “NaHistoria da Higiene, em Portugal,Ribeiro Sanches pode exprimir otermo de uma época, o V período (de1688 a 1756, data da publicação do“Tratado da Conservação da Saúdedos Povos”), e o início de outro, o VI,de 1756 a 1813 (criação da Junta deSaúde)(1).

Na continuidade da comunicaçãoentão apresentada, iremos recordar“páginas esquecidas”, apenaspublicadas em Paris, no ano de 1782,in: “Histoire de Ia Société Royale deMédecine”, por Theophile Barrois.

Trata-se do manuscrito Mémoiressur les bains de vapeur de Russie,considerés pour Ia conservation deIa santé et pour Ia guérison deplusieurs rnaladies. Par Mr. António Ribeiro Sanches,ancien premier Médecin du Corps de L’Imperatricede toutes les Roussies, et Associé étranger, etc.(2).

Ribeiro Sanches acreditava acima de tudo nosbenefícios da água, como se infere da leitura do seumanuscrito, que nos propusemos traduzir, comohomenagem a tão insigne médico da Beira Interior.

António Nunes Ribeiro Sanches escrevia: “Eu nãodesprezo todos os remédios taes como os purgantes,

* Museu Nacional da Ciência e da Tecnologia:Sociedade de Estudos do séc.XVlII.

o ópio, o mercúrio, a quina, etc... Mas penso que obanho russo pode substituir metade dos remédioscontidos na maior parte das “pharmacopeias”...”(3).

Já no século XVI e XVII a balneoterapia despertavao interesse de alguns médicosnotáveis.

Assim Zacuto Lusitano (1575-1642) aconselhava as termas(férreas, nitrosas, sulfúricas,alumenosas, etc.) para o tratamentode várias doenças, principalmenteartropatias, tão frequentes nosnossos dias, e imitando AmatoLusitano (1511-1568), aconselhavapráticas hidroterápicas contra certasdoenças febris. E Rodrigo de Castro(1546-1627) fizera indicaçõesanálogas para combater as doençaspróprias das mulheres(4).

Na “História da MedicinaPortuguesa” M. Ferreira de Mira diz--nos que a medicação hidrotermalexistia já na Península Ibérica,anteriormente ao domínio romano.

É o caso das Caldas de Vizela, e das termas cujasruínas se encontraram em Lisboa no sítio das PedrasNegras, em 1771. O autor cita várias outras entreelas Cabeço de Vide, perto de cujas nascentes foramencontradas ruínas de alicerces de banhos commagníficos mosaicos, além de medalhas de cobredo tempo de Augusto”(5).

Depois foi a invasão dos Bárbaros, e ainda que osGermanos tivessem adoptado a civilização dosvencidos, as termas despovoaram-se e caíram emruínas.

Um autor do século XVIII o médico Francisco daFonseca Henriques, no seu “Aquílégio Medicinal, emque se dá notícia das águas de Caldas, de Fontes,

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Rios, etc..., que ou (pelas suas virtudes medicinaes,que tem; ou por outra singularidade, são dignas departicular memória” (1726), dá-nos uma boainformação sobre a hidro e balneoterapia da época.

Já no século XIX Francisco Tavares, professor deMedicina, farmacologia e hidrologia, no seu tratado“Instruções e Cautelas Práticas sobre a natureza,diferentes espécies, virtudes em geral e legítimo usodas águas minerais com a notícia de aquelas quesão mais conhecidas em cada uma das provínciasdo Reyno de Portugal, e omethodo de preparar as águasartificiais”, principia com estaspalavras:

“Portugal é talvez o país daEuropa onde proporcionalmenteà extensão do seu território hámaior quantidade de águasminerais particularmente deCaldas, e onde é maisuniversalmente ignorada a sualegitima aplicação”.

Informa-nos acerca das queeram mais conhecidas na BeiraInterior, no ano de 1810.

Por Caldas entendem-se asnascentes de águas quentes oucálidas.

Eram elas:Alpreada: Três legoas distante

de Castello Branco na falda daSerra da Ribeira cha mada deAlpreada nascem humas aguassulfurosas frias, de que podefazer-se uso proveitoso embebida e em banho, procurando--se para esses fins ascommodidades que somentepodem aproveitar os vizinhos dosítio.

Freixialinho: a duas legoas deCastello Branco, no Monte de S.Luiz junto ao sitio chamadoFreixialinho há nascente de águas hidrogenio--sulfuradas que tem as propriedades e uso que sãopróprios da sua qualidade; assim aquecidas embanho como muito principalmente em bebida.

Penagarcia: em distancia de nove legoas para L.de Castello Branco, na Serra de Penagarcia ramoda Serra d’Estrella..., tem origem a chamada FonteSanta por se haver nella curado algumasenfermidades.

Francisco Tavares descreve estas Caldas, de PenaGarcia, aliás já citadas e descritas por FonsecaHenriques, no “Aquilégio”, como sendo todas as seisfontes existentes de abundante “agoa tépida, clara,slutifera, para beber excellente. Destas à mays

copiosa chamão a Fonte Santa; sem dúvida quepelos prodigiosos efeytos, que nela seexperimentao...”. A dado passo diz FonsecaHenriques: “O Doutor António Sanches Rybeiro (sic.),medico de bom engenho, e letras, assistindo na Villade Salvaterra, teve para si que esta agoa passavapor minas de ouro, não negando que corre pelos ditosminerais de ferro e enxofre: sobre o que fez humdiscurso agudo, e curioso...”(6).

Intitula-se esse estudo “Discurso sobre as Águasde Penha Garcia”, 1725.

Fonseca Henriques diz-nostambém que “O dito DoutorAntónio Sanches, que deveogrande beneficio a esta fonte,porque lhe servio de remédio dehurra gotta rosada quandopequeno, e de huma hypochon-dria depoys de adulto, notoucuriosamente que no Estio,quando o Sol no meyo dia temchegado ao seu Zennith, estáfrigidíssima esta agoa; e que aoSol posto torna à sua tepidez,que de manhã conserva...”.

Quanto a esta curiosapropriedade, Francisco Tavaresnega-a: “Ou foi ilusão desentidos, ou perdeu-se de talmaneira esta curiosapropriedade, que apenas restãodella memórias despojadas desegura continuada observação,e somente lhe asseverada na féde quem a escrevêra”(7). Emcontrapartida dá-nos umadescrição mais real das referidasCaldas: “Da sua nascente heconduzida a agua por hum canoque na falda da Serra terminan’hum tanque fabricado dentrod’huma pequena caza deabobada, a qual por mui vaga

tradição se diz mandada fazer pello Senhor InfanteD. Francisco. Estão as ruínas desta caza, que muitosanos ha, ficou em total abandono, na margemesquerda do rio Ergea, que separa Portugald’Hespanha. O sitio he deserto, e a povoação maisvizinha he Monfortinho distante huma grande legoa:porem assim mesmo em outro tempo para aliconcorrião para o uso de banhos não somentePortugueses de Monfortinho, Monsanto, Penagarcia,e outras pequenas povoações, mas tambémHespanhoes, vivendo no meio tempo em cabanasfeitas de ramos de arvores de que o lugar abunda...Tambem se lhe dá o nome de Caldas deMonfortinho”(8). Estas Caldas ou termas possuem um

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balneário construído em 1940.Refere mais:Penamacor: “Distante huma legoa de Penamacor

no lugar de Águas de vinte a trinta fogos, desviadodelle cousa de hum tiro de bala nascehorizontalmente debaixo d’huma rocha pouco maisou menos de hum annel d’água clara, com cheirohepatico que longe do sitio se percebe: sabor,semelhante: de calor cerca de 67gr, de F. ou de 15 1/2 de R. Deixa por onde corre deposito ou lodo fusco,e tem no mesmo sitio da nascente hum pequeno poçoque apenas cobre meio corpo, aonde sem reparosnem cautela alguma tomão banhos, de cujo uso aindaassim narra o povo bons effeitos, dos que sãoproprios das águas sulfureas como esta he”.

Unhaes da Serra: “Três legoas ao S. O. da Covilhãtambem citado por F. Henriques, denominando-aCaldas da Covilham, no lugar de Unhaes da Serra,onde “ha hurra fonte de agoa sulphurea, que detidaem hum tanque em que se tomão banhos, he remédiode achaques frios de juntas e nervos; porque curagotta arthetica, tolhimentos de braços e pernas; eassim tambem costuma curar os achaques cutaneos,como proidos, impigens, bustellas, e uzagres;segundo as experiencias que nos communicarão; emconsideração das quaes entedemos, que tambemserão utteys estes banhos, para parlisias, estupores,vertigens, debilidade de estomago, e outros achaquessemelhantes, em que devem uzar-se com prudencia,e curiosidade, afim de alcançar quaes serão asvirtudes desta agoa que só pelos effeytos sereconhecem”(9).

Francisco Tavares termina a sua descrição deáguas com a das Zebras: “a L. de Castello Novo,entre a Idanha e Alpedrinha, e ao S. E. desta última,Comarca de Castello Branco, junto aos cazaes deZebras e de Monte do mesmo nome ha huma Fontea que denominão Santa que he sulfurea fria, de cujaagua se servem os Pastores para curar da sarna osgados e cães, lavando-os; e he provavel que assimcomo as suas semelhantes, possa utilizar em bebida,e em banho quente dos enfermos que necessitão dehum tal auxilio”.

Concluindo, o autor escreve: “As águas minerais,pois, merecem ser consideradas como remédio demaior extensão e apropriado a quase todas asdoenças crónicas, e muitas vezes no fim dasagudas”(10)

“At last, but not at least”, as Águas do Alardo(Castelo Novo) águas de mesa, fracamentemineralizadas; provocando aumento de diurese ecom subsequente eliminação dos produtos tóxicos,diminuindo a taxa de ureia nos auto-intoxicados,melhorando as cárdio-nefrites com albuminúria eazotúria. Indicações e terapêuticas: rins, diabetes eafecções hapáticas.

Na introdução da obra de Ramalho Ortigão

intitulada “Banhos de Caldas e águas minerais”,deparamos com as seguintes palavras de Júlio CésarMachado: “Sempre que temos sido grandes, ohavemos devido às águas. Mas agora já seriacaturreira querermos ser heróis por ter andado aode cima delas; façamos melhor: bebamo-Ias!...”Sabemos como são abundantes na Beira asnascentes termos-medicinais, e podemos seguir oconselho.

Porém o uso mais antigo das águas termais comoremédio, foi o banho, sendo o seu uso em bebidamuito posterior. No número dos banhos entra o devapor de água termal.

E é da aplicação da água sob a forma de banhosde vapor que R. Sanches faz a apologia, para aconservação da saúde, como “remédio contra afadiga, o cansaço do suor, contra a comichão,reumatismos, sarna e outros males”(11). “O uso dobanho de vapor da água quente parcial ou aquellesmembros aonde he necessário relaxar a pelle, abriros poros, e augmentar a transpiração na parte, epromover o suor, he de tempo immemorial. Dasconhecidas vantagens do vapor applicadoparcialmente se passou em casos análogos à suaapplicação geral ou a todo o corpo; e dos vapores dasimples água aos das águas thermaes, cujas virtudesexperimentadas nos banhos de immersãoautorisarão as esperanças do beneficio dos seusvapores”.(12).

Parafraseando Ramalho Ortigão, na obra já citada,a nossa obrigação como viventes é a vida.(13)

E a água pode muito no Governo do corpo, já oafirmava Fonseca Henriques.(14)

Segue-se a apologia dos banhos de vapor feita porR. Sanches.

Notas Bibliográficas

(1) -Luís de Pina, História da História da Medicinaem Portugal, “Imprensa Médica”, Lisboa, 1956, p.

(2) -Biblioteca Pública de Braga, (Arquivo Distritalde Braga-Universidade do Minho)

(3) - A. Nunes Ribeiro Sanches, ms. cit., fls.12.(4) - Manuel Ferreira de Mira, História da Medicina

Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional de Publ.,1947,p182.

(5) - M.F. de Mira, ob. cit., pp. 9-10(6) - Francisco da Fonseca Henriques, “Aquilégio

Medicinal”, Lisboa Oc., Off. da Musica, 1726 pp. 4546.(7) - Francisco Tavares, Instrucções e cautelas

práticas sobre a natureza, diferentes espécies,virtudes em geral e uso legítimo das águas minerais.Coimbra, 1810, Ip., pp. 83-85; Ilp. pp.69-71.

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(8) - Francisco Tavares, ob. cit., pp.83,84,85.(9) - F.F. Henriques, ob. cit. p. 25-26.(10) - Francisco Tavares, ob. cit. pp. 43-88.(11) - A.N. Ribeiro Sanches, Tratado da Conservaçam

da Saúde dos Povos. Consideraçoens sobre osTerremotos, Lisboa, Off. Josheph Filipe, 1757, p. 258.

(12) - F. Tavares, ob. cit., parte II, pp. 69-70.(13) - José Duarte Ramalho Ortigão, Banhos de

Caldas, e águas minerais, Lisboa, 1944, Prefação.(14) - Francisco da Fonseca Henriques, ob. cit., p. 1.

BIBLIOGRAFIA

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ALMEIDA, AMARO DE - Inventário Hidrológico dePortugal, 1977.

BELEZA, ANTÓNIO MARTINS - Método práticopara se tomarem banhos, Porto, 1763.

DIAS, JOSÉ LOPES - Hidrologia médica do Distritode Castelo Branco, Sep. da “Imprensa Médica”,Lisboa, 1951.

GUIMARÃES, FELICIANO AUGUSTO DA CUNHA- Francisco Tavares, hidrologia; 1947.

HENRIQUES, FRANCISCO DA FONSECA-Aquilégio Medicinal, Lisboa Ocidental, Off. da Musica1726.

LEMOS, MAXIMIANO DE - História da Medicinaem Portugal: Doutrinas e Instituições, Lisboa, ManuelGomes, 1898.

LOPES, ALFREDO LUÍS - Águas minero--medicinais de Portugal, Lisboa, 1892.

MAGALHÃES, JOÃO JACINTO DE - Descriptionof a glass apparatus for making Mineral Waters, Lon-don, 1772.

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MEMÓRIA SOBRE OS BANHOS DE VAPOR DA RÚSSIA CONSIDERADOS PARA ACONSERVAÇÃO DA SAÚDE E PARA A CURA DE VÁRIAS DOENÇAS

Pelo Sr.António Ribeiro Sanchez

antigo primeiro Médico do Corpo da Imperatriz de todas as Russias, Associado estrangeiro (etc.)

Remedia autem maxime universalia nota hactenus suntaqua, ignis, argentum vivum, opium.

Boerhaave Inst. Med. Sect. 1182

Segundo a experiência que tenho da utilidade debanhos Russos, pensei ser vantajoso expor aospovos as vantagens que eles tirariam do uso dosbanhos, se mandassem construir banhossemelhantes. A minha intenção não é instruir osmédicos; escrevo para as pessoas que vivendo nocampo, estão privadas dos socorros que seencontram nas cidades. Não se deve esperarencontrar aqui pesquisas físicas; menos ainda demedicina. Não citarei outras, e se as citar por acaso,será na intenção de não parecer original. O que tenhoem mente é provar que os banhos Russosultrapassam em utilidade e em comodidade aquelesde que os Gregos, os Romanos fizeram uso, eaqueles que os Turcos empregam, tanto para aconservação da saúde, como para a cura de váriasdoenças; e que eles podem ser do maior auxílio paraos habitantes do campo, para os nobres retiradosnas suas propriedades, para os conventos dos doissexos, para as guarnições de soldados, e para asfábricas onde há um grande número de operários.

Ficareis admirados que ouse ser o primeiro aescrever sobre as propriedades dos banhos Russos;ficareis ainda mais admirados, quando reflectirdesque desde há cem anos sempre houve na corte enos exércitos da Rússia hábeis médicos Alemães,Ingleses, Holandeses, Italianos e Gregos, e quenenhum deles escreveu sobre os banhos emquestão; mas talvez lhes tenha acontecido o mesmoque a mim, quando me encontrava ao serviço doimpério da Rússia no exército, na nobre corporaçãodos cadetes e na corte; continuamente ocupado, ealgumas vezes abatido de fadiga, não tinha tempode redigir as minhas observações sobre as utilidadesdos banhos Russos, os quais eu utilizava muitofrequentemente, tanto para a cura das indisposições

* Lido no dia 5 de Outubro de 1779 (nota à margem domanuscrito)

causadas por longas viagens, como para aconservação da saúde. Desde que os meusincómodos habituais não me deixam outro bem quenão seja o de meditar e de reflectir, ocupei-meseriamente dos bons efeitos que esses banhospoderiam produzir: penso que com esse recursopoderemos conseguir a mais preciosa de todas asvantagens: o vigor e a saúde.

Se considerarmos atentamente as descobertasespantosas feitas na Europa desde há duzentos ecinquenta anos, na literatura, nas Artes e nasCiências, comparadas às da Ásia, da Grécia, daRepública Romana, parece que, entre estas nações,um dos pontos essenciais da constituição dos seusestados, era tornar os corpos robustos, sãos evigoro-sos: elas tinham um cuidado tão particular deeducar a juventude, em todos os exercíciosnecessários para servirem a sua pátria em tempo depaz e em tempo de guerra que ficamos admiradospor os estados da Europa, com conhecimentos muitosuperiores aos desses antigos impérios, em físicageral, em economia, em política e na arte da guerra,não os imitarem com estabelecimentos destinadosa educar a juventude de uma forma que pudessetornar a sua pátria gloriosa e formidável.

Todos os que, nos nossos dias, procuram tornar--se notados pelas suas vigílias e seus escritos, tratammais do que pode alimentar e entreter a sociedadeno bem-estar, na abundância e nos prazeres do quedaquilo que pode tornar os corpos robustos e sãos,desde a mais tenra idade, e aumentar o número decidadãos úteis dos quais dependem a felicidade e aconservação dos estados.

Os autores, guiados pelas normas dos impériosde que são súbditos, ou ignorando a causa pela quala agricultura, o comércio em geral e as belas-artesalcançaram tão alto grau de perfeição, nãoconsideram nas suas pesquisas o atraso dapopulação, a fraqueza dos corpos nos nossos dias,comparados aos dos séculos anteriores, e não

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aprofundam a causa do depauperamento dosexércitos, que fica reduzido a um terço, e algumasvezes a metade, no fim de cada campanha, edemonstram que os seus conhecimentos não saemnunca do círculo dos estudos das universidades daEuropa, e principalmente das da Europa meridional.

O grande cuidado que todas as repúblicas da antigaGrécia tiveram em construir nas grandes cidadesedifícios espaçosos chamados ginásios, e as grandesdespesas que faziam para os manter, mostram comoelas se empenhavam na educação da juventude ecomo elas se ocupavam dos meios de a tornar útil àsua glória e à sua conservação: parece que era oponto principal dos seus governos. Os ginásios, ouedifícios destinados a lá aprender as letras, asciências, e todos os exercícios que podem tornar ocorpo vigoroso, eram divididos em vários cursos, emvárias áreas cobertas ou descobertas, em váriosterraços e passeios, onde toda a sorte de cidadãose de jovens ia ouvir as lições dos reitores, dos mestresde matemáticas, dos oradores, dos filósofos.

Para os que queriam exercitar-se, havia mestresque ensinavam a montar a cavalo, a guiar carros;havia-os também para a corrida, a luta, o disco, paraaprender a atirar com arco, a lançar a lanceta. Parase refazerem destas fadigas e para enrijar o corpo,eles entravam no fim num banho de vapor, emseguida no de água morna, e enfim no de água fria.Dali iam aos seus negócios. Esta instrução e estesbanhos praticavam-se todos os dias; não havia fériasnem dias privilegiados.

Esta espécie de escolas ou de universidades, comoas designaríamos se fossem introduzidas entre nós,foram introduzidas bastante tarde entre os romanos,ainda que nesta temível república desde o princípio,se fizesse uso do banho banho e dos exercícios ; sóconheceram os ginásios e os banhos com a disciplinae a magnificência dos gregos, no tempo de Pompeuo Grande. Sabemos pela história que a juventudedistinta se exercitava, então, todos os dias no campode Marte, e que para se lavarem do pó ou paraconservarem o hábito de nadar, atravessavam o Tibrea nado, imediatamente a seguir; mas os romanos dotempo de Augusto ultrapassaram os gregos naconstrução dos seus banhos; e eles construíram-nosnão só tendo em vista conservar a saúde, mas aindapara o deleite, para o prazer e para o luxo.

Este uso conservou-se sem interrupção até aotempo de Constantino o Grande e como esteimperador escolheu Bízâncio para capital do impérioRomano, os banhos foram aí introduzidos com umamagnificência igual aos de Roma. O mesmoConstantino, primeiro imperador cristão, foi a causada abolição da educação romana nas letras, nosexercícios e nos banhos. Era de esperar que ainteligência, as forças e o vigor da nação fossemaniquilados quando uma tão excelente educação

posta à prova durante tantos séculos fosse abolida.Logo que este imperador abraçou o cristianismo,elevou a dignidade episcopal a uma tal grandeza,que lhe concedeu a maior parte da jurisdição civil, eo cuidado de toda a educação da juventude com opoder de regulamentar (sem consultar o senado queele reduzira a quase nada) a disciplina.

A vanidade da religião cristã, a filosofia Platonianaque os bispos tinham abraçado no século IV, nãopodiam permitir que a antiga educação romanasubsistisse. A destruição dos templos pagãos, aabolição dos lugares públicos, a proibição doscasamentos que não fossem realizados segundo asleis da igreja, a necessidade de providenciar àmanutenção e à subsistência de vários milhares deescravos que tinham abraçado o cristianismo paraobterem a liberdade; postas em execução todas estasdisposições, elas foram as primeiras causas dadestruição dos ginásios, dos banhos públicos e devários edifícios análogos, erigidos para a educaçãoda juventude e para a manutenção da religião pagã.O poder que os bispos tinham de mudar a face doimpério, mostrou-se mais evidente sob o reinado deJustiniano, o qual, por uma das suas leis suprimiu osalário dos professores de belas-artes. Os ginásiosque serviam para os exercícios e para a educaçãoda juventude, foram substituídos, depois dadestruição do império romano no século V peloexercício da caça, e da equitação, por conventos daordem de S. Benedito, pelos cabidos das catedrais,e, vários séculos depois, pelas universidades daEuropa. Os banhos e uma grande parte dos ginásioscriados para a conservação da saúde não foramsubstituidos por nenhum estabelecimento adequadoa favorecer e a aumentar a força e o vigor das naçõeseuropeias subjugadas pelos bárbaros do Norte e daAlemanha. Logo que estas nações conquistaram oImpério Romano do Ocidente, fundaram reinos emItália, em França, e em Espanha; e, abraçando areligião cristã, conservaram os seus costumes e osseus usos, ainda que eles fossem na sua maioriacontrários ao cristianismo. Os reis da Lombardia, osda nação dos Francos estabelecidos nas Gálias, eos Visigodos, conservaram também os seus, noscasamentos e no exercício da caça, ainda quefossem contrários ao espírito do cristianismo, e estecostume tomou tão profundas raízes que ainda semantém nalguns países cristãos, como entre osTártaros Mongóis, os Elus ou Kalmuques, ou entreos súbditos Cuntaichs. A primeira instrução dajuventude entre os cristãos, foi nos conventos de S.Benedito, em Itália, em França, em Espanha, e naInglaterra. Como na época todos os bispos saíramdos conventos de religiosos, formaram cabidos queserviam não só para cantar as horas canónicas, masainda para ensinar à juventude os mistérios dareligião e para lhes dar algumas ideias das ciências,

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e da filosofia de Platão e de Aristóteles.A ordem de S. Benedito, tão digna de ser venerada

e respeitada, à qual a Europa deve a introdução daagricultura, a conservação dos livros originais Gregose Latinos, enchia os ginásios Gregos e as escolasdos Romanos. Em seguida as universidades foramestabelecidas no século VIII, pelos Papas.

Ainda que os banhos artificiais construidos pelosRomanos tivessem sido quase destruídos durante200 anos, eles foram substituídos, sob o domínio dosÁrabes, em Espanha, nas províncias meridionais deFrança, de quase toda a Itália, como um instrumentonecessário à observância da religião Maometana queeles tinham adoptado, mas logo que esses povosforam expulsos da Europa pelos príncipes cristãos,os eclesiásticos fizeram-nos demolir, como contráriosaos costumes e à pureza da religião.

Parece pelos espécimens que restam daantiguidade mais recuada, comparados com os queforam construidos desde o século XVIII, que as forçasdos homens e o seu vigor diminuíram. Seríamostentados a crer que nem as riquezas, nem ospoderes, nem a arte dos mais poderosos reis daEuropa poderiam hoje bastar para construir aspirâmides do Egipto, a capital de Ciro, de que se vêemainda as ruínas, o templo de Aone-Hany, na provínciade Salisbury em Inglaterra; o pantéon de Agripa, emenos ainda as estradas dos Romanos, osaquedutos, os banhos, dos quais se vêem ainda osrestos dos que tinham sido construidos em Romapor Antonino, Caracala e por Deocleciano. É talvez arazão da pouca grandeza e da pouca duração dosnossos edifícios públicos, e da pequena expansãodos banhos na Europa. Como a arte de conservar asaúde dos povos, e de curar as doenças não entramhoje nas leis dos estados da Europa, e que esteobjectivo está à disposição de cada indivíduo, delenão pode resultar nenhum mais capaz de tornar adar ou de conservar uma nação forte e vigorosa, ede a põr em condições de afrontar as variações dasestações, e de não se ressentir das suasirregularidades.

Quando se viram ou se frequentavam algunsbanhos de águas termais ou de águas frias, e quandoconsideramos os edifícios que os constituem, quandoos comparamos com os dos Gregos e dos Romanos,ou com os dos Turcos, ficamos surpreendidos daignorância e da negligência dos povos aos quais anatureza prodigaligou os seus tesouros para o bemda humanidade.

Não se encontram lá, muitas vezes, nenhum dosmeios que a arte teria podido produzir para conservara saúde ou para curar uma infinidade de doenças, ese as grandes viagens que somos obrigados a fazerpara benefeciar desses banhos, não fossem o maiorremédio para as doenças comsideradas comoincuráveis, estes banhos, ainda que salutares, tornar-

-se-iam prejudiciais pela sua má administração:Vejamos presentemente o estado dos banhos

artificiais dos quais se fez uso na Europa;examinemos as suas propriedades e vejamos se elespossuem as mesmas vanta gens que os Gregos eos Romanos obtinham daqueles que utilizavam.

Não se devem considerar como medicinais osbanhos chamados de limpeza os quais a maioria dosparticulares bem como os médicos, utilizavam, sejapara alguns incómodos, seja para curarem algumasdoenças.

Toda a gente sabe que este meio consiste em estardeitado numa tina cheia de água morna, de aí ficardurante algum tempo, até que se produza uma levetranspiração no rosto.

Os que tomam banho nestas tinas, metem-se nacama quando dela saem: aí eles traspiram; depoisvestem-se, e expõem-se habitualmente ao ar livre.O mal que causam muitas vezes estes banhos delimpeza, é relaxar, enfraquecer, inervar as partessólidas de todo o corpo: como o ar do quarto em queestão deitados é sempre mais frio que a água emque mergulharam, respirando este ar o pulmão nãoestá tão quente como a superficie do corpo, éincontestável que a circulação do sangue deve sofreralgumas perturbações naquela víscera, donde asupressão da perspiração insensível, os catarros, asdores de cabeça, os fluxos.

As estufas da Alemanha, e as dos banhos de águaquente, tanto em Itália como no resto da Europa,relaxam sempre o sistema dos sólidos, e tornam ocorpo sensível a todas as impressões do ar logo quedelas se sai, ainda que nelas se respire um ar tãoquente como o vapor que contacta o corpo, porqueeste ar, e estes vapores não se renovamcontinuamente; devemos acrescentar que poringorância ou por cupidez dos banheiros, os doentesperdem muito sangue dos ombros, do pescoço e dasgorduras das pernas por meio das ventosas oucornetos escarificados, o que enfraquece e relaxaainda mais que o vapor quente do banho que não érenovado.

Parece que os banhos Turcos, como os que foramconstruidos em Londres, para uso do público, nãoestariam sujeitos aos incovenientes de amolecer, deafrouxar, de enfraquecer os corpos, e que eles seriamos mais adequados para conservar a saúde e curarvárias doenças. Eles são preferíveis aos banhos delimpeza, e às estufas; mas eles têm todos um defeito;é que no quarto onde se transpira, o ar e o vapornunca se renovam, como nos banhos russos.

Como vi esta última espécie de banhos em Londrese na cidade de Azof, tomada pelo exército Russo noano de 1736, deles darei aqui uma descrição sucinta,bem como dos banhos Gregos e Romanos.

É um edifício composto de quatro ou cinco grandesquartos: despimo-nos no primeiro, o qual está

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mediocramente aquecido, e entramos de imediatono banho de vapor. É um edifício circular, feito depedra talhada, coberto por um capitel ou cúpula,perfurada no centro, e revestida de vidraças para oeluminar. No centro levanta-se uma banqueta circu-lar, de um diâmetro proporcionado ao espaço doedifício, na qual estão sentados os que entram parase banharem. Sobre o soalho, que é feito de pedrasgrandes, deita-se água até à altura de algumaspolegadas.

Esta água eleva-se de vapor devido ao fogo de umforno subterrâneo, pelos canos de ferro ou de cobreque sobem ao longo das muralhas deste edifício. Osque estão sentados, sem o mínimo desconforto,transpiram tanto quanto as suas forças lho permitem;dali entram num grande compartimento onde existemum banho de água morna, e um outro de água fria;entram de imediato no primeiro, onde um banheiroos esfrega, lhes massaja as artiuculações e os lava:daqui eles saiem para retomar o seu vestuário, amenos que queiram lavar-se primeiro com água fria;aí alguns mergulham antes ou depois de terem sidoesfregados, outros nadam durante alguns instantes.Se o ar e o vapor fossem renovados neste banho acada momento como no banho Russo, seria o maissalutar e delicioso dos banhos de que se faria usona Europa. Os banhos Gregos e Romanos tinhamem geral o mesmo defeito; o ar e o vapor não eramrenovados, como seria de desejar para o bem e oprazer dos que se banhavam.

Não será fora de propósito dar a conhecer aconstrução dos banhos dos antigos Gregos eRomanos, de que temos a descrição em Vitrúvio: Éverdade que a construção dos banhos tomou váriasformas sob os imperadores Romanos, tanto pelagrandeza dos edifícios como pelo número dos quar-tos: fizeram-se algumas alterações na administraçãodas águas quentes ou frias; utilizaram-se tambémpomadas e águas de cheiro, mas todas estasvariações decorreram unicamente segundo osprincípios que vou enumerar.

Como todos os exercícios acima mencionadosexecutados nos ginásios, terminavam pelo uso dosbanhos de vapor, era preciso que toda a suaconstrução e que tudo o que servia a sua utilizaçãofosse um remédio adequado a curar asconsequências da fadiga, as contusões, as quedas,a sede, a febre excitada pelos violentos exercícios:ainda os mais violentos, como são os de guiar oscarros, montar a cavalo, e o remédio consistia ementrar no primeiro compartimento do banho quente,de temperatura agradável; aí se despiam: chamadoapodyterion: Este calor aumentava vários grausquando se entrava no segundo compartimentodesignado de formas diferentes, segundo o grau decalor da água quente, isto é, hypocaustum,laconicum, vaporarium, sudatorium que nós

chamamos banhos propriamente ditos, onde seusava e onde se esquentavam até ao último grau decalor que podiam suportar. Os incómodosprovocados pelos exercícios violentos dissipavam--se por meio deste suor abundante; era então precisoreparar as forças perdidas, tornar o corpo vigoroso,ficar em estado de não se sentir nenhuma sequelaquando se saía do banho, e se era exposto a respirarar livre.

Este banho de vapor era quecido por meio defornos subterrâneos; o vapor elevava-se da água queera lançada sobre o chão de mármore, como hojese faz nos banhos Turcos: a sua construção éperfeitamente semelhante ao hypocaustum ouvaporarium dos Gregos ou dos Romanos.

Saindo deste banho propriamente dito,entrava-se numa outra divisão, que tinha umespaçoso banho de água morna, chamadobaptisterium , onde de era massajado com váriasespécies de terras argilosas ou pomadas; lavavam-se aí; alguns saíam, e passavam ao quarto onde setinham despido; outros passavam para o quarto quetinha o banho de água fria, que se chamava piscina;era tão espaçoso que se podia lá nadar, e cansarem--se nadando. Quando estavam fartos das suas fan-tasias, passavam ao quarto onde se tinham despido:aí havia vários gabinetes onde se esfregavam compomadas e óleos de cheiro antes de se tornarem avestir, de seguida iam tratar dos negócios habituais,e muitas vezes sentavam-se à mesa. Tendo osmédicos Gregos e Romanos reconhecido que estesbanhos provocavam uma febre de algumas horas eque eles aumentavam a perspiração insensível,começaram a servir-se deles; por fim os banhos devapor foram postos em uso por Hipócrates, Celso,Galeno, Oribasio; eram a metade dos remédios deque se serviam para a cura das doenças.

Se considerarmos atentamente o banho Russo,veremos que ele é uma súmula, um tratado do banhoRomano, e do banho Turco dos nossos dias, porquese faz numa única divisão ou quarto, tudo o que sefaz nos outros banhos à Romana ou à Turca, emquatro ou cinco divisões.

Como na Rússia há duas espécies de banhos, istoé, banhos públicos e particulares, eles não diferemquase nada entre eles, salvo que nestes últimos seconstrói ao lado um quarto com camas, onde sedeitam os que saem dos banhos, o que não acontecenos banhos públicos: entra-se nestes banhos,despem-se e deitam-se nus sobre um colchão cheiode feno ou de palha, colocado sobre a primeira ousegunda banqueta. Como o forno está quente eguarnecido de pedras do rio, tornadas vermelhas equase embraseadas pelo fogo que está por baixo, eque se vai lançando mais água fria, levanta-seimediatamente um vapor expesso, ardente, queaquece todo o interior do banho. Pode aumentar-se

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e renovar-se este vapor ardente consoante a -quantidade de água que se deita sobre as pedras;então sua-se abundantemente: quando já se suouabundantemente, quando já se suouabundantemente, são esfregados com sabão e comramos de tília cujas folhas estão cobertas depenugem, e aí se lavam com água morna e emseguida com água fria, despejando vários baldes deágua sobre a cabeça.

Os que se banham nos banhos públicos, em vezde se lavarem no banho, quando de lá saem,mergulham nalguns ribeiros ou tanques expostos aoar livre, e terminam aí a operação do banho. Os quese banham nos banhos particulares mandam queeles lancem vários baldes de água fria na cabeça; equando saem do banho passam para um quarto aolado, que está mediocramente aquecido; deitam-seaí e descansam até que o suor desapareça; aí sevestem e alguns aí passam a noite.

Comparemos agora a parte essencial do banhoRusso com a dos banhos Turcos e dos antigosRomanos. Não se podem comparar a grandiosidadenem o prestigio destes edifícios: a comparação seráapenas quanto à natureza do vapor levantado daágua aquecida pela força do fogo e que invade ointerior do banho ou vaporium dos Romanos.

Nas estufas dos nossos dias, nos antigos banhosdos Gregos e dos Romanos e nos dos Turcos, ovapor quente que se eleva da água fica no espaçodo banho: a água deitada no solo não se renovanunca. Os que se banham são obrigados a respiraros mesmos vapores, ficando este ar aquecido efechado, também sem a mínima comunicação como ar exterior.

Toda a gente sabe que a respiração de váriaspessoas fechadas numa mesma divisão semcomunicação com o exterior é extremamenteprejudicial, pois que o suor e sobretudo a respiraçãosão matérias não assepticas que saem do nossocorpo; então estes vapores quentes, misturados como suor dos que se banham, relaxarão os seus corpose enfraquecê-los-ão; e ainda que esta acção sejaum pouco corrigida pelo vapor de água quente, comoeles não são renovados com uma mudança de arpor novos vapores, podemos facilmente convencer--nos que os que saem deste banho não retiraramtoda a utilidade que esperavam.

Dissemos que nos banhos Russos havia um fornoconstruido na mesma divisão na qual havia umaquantidade de pedras do rio, as quais por meio defogo que se fazia no forno, se tornavam vermelhas equase embraseadas; e que para encher todo oespaço do banho com vapores ardentes ou quentes,se deitava a água fria sobre estas pedras. Os queestão deitados nestes banhos e que usam nestasbanquetas, quando se sentem incomodados com ogrande calor ou quando não suam tanto quanto

desejariam, mandam os banheiros deitar água friasobre as pedras ardentes; levanta-se logo um vaportão violento e em tão grande quantidade, queultrapassa em calor e actividade os vapores dosoutros banhos. Esta operação renova-se de cincoem cinco minutos; pelo menos durante: uma hora.Vejamos presentemente os efeitos destes vapores,e a sua causa baseados na física da água, do ar, edo fogo.

Sabe-se hoje, por uma infinidade de experiências,que a água contem partículas de fogo e de ar: maseste fogo é um fogo elmentar, estas partículas estãoextremamente ligadas e pressionadas; sucede omesmo em relação ao ar. Estes elementos do fogoe do ar são libertados e saem da água logo que porquaisquer causas poderosas são obrigados a deixaro seu estado de elementos ou de partes constituintesda água, e se apresentam soba forma de vapor ousob a forma de ar. Vejamos agora os efeitos dosvapores de água. Elevados pela violência do calordas pedras incandescentes postas de banho Russo,depositam-se sobre os corpos dos que lá estãodeitados completamente nus, e que respiram estear e estes vapores contidos no mesmo banho.Consideramos quantas vezes durante uma hora sepodem renovar este ar e este vapor e este fogoreproduzido de novo num instante, e então veremosque na medicina não se encontra nenhum remédioque possa igualar a força, a energia e a salubridadedestes agentes combinados, para fortificar, mudar evivificar o corpo humano.

Estes três agentes combinados; e pelos seuscontactos recíprocos postos em acção nasprofundezas das cavernas do nosso globo, são acausa dos tremores de terra e dos efeitos maisterríveis que a natureza nos apresenta.

Diz-se um homem são, aquele que pode fazerexercício e praticar todas as acções da vida humanacom facilidade, com prazer, e com uma certa firmeza;mas aquele que não pode fazer exercício nemexecutar a menor função da vida sem repugnância,sem fadiga de todo o corpo ou de alguma das suaspartes, com dor, fadiga, ou mal-estar, deve ter tidoou considerado como um homem doente.

O homem que goza da melhor saúde está pelasua natureza exposto a cada momento a alterá-la oua perdê-la; as mudanças tão continuadas do ar e tãonecessárias à conservação do nosso sistemasublunar, as suas súbitas do frio para o calor, do secoao humido, os alimentos, as bebidas, os excessos,os exercícios forçados, as quedas de corposestranhos ao nosso ou do nosso sobre outros corpos,são as causas inevitáveis dos nossos males e dasnossas doenças.

As doenças reduzem em geral o homem a serincapaz de fazer a mínima acção, e obrigam-no aestar deitado: neste estado ele é habitualmente

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atacado pela febre, sente um calor incómodo por todoo corpo e sofre de sede, respira com dificuldade, temdores npos rins, nas partes musculosas das pernase na cabeça, com pulsações nas têmporas; mudaconstantemente de posição, sentado ou deitado;algumas vezes tem vómitos, o coração no ventre;sente uma angústia, uma inquietude, sem relaxar,sem sono, muitas vezes com arrepios; algumasvezes sente muito calor e logo depois frio. As causasgerais deste estado, que é uma doença aguda oufebre quente, são as inflamações ou a podridão maisou menos desenvolvidas no nosso corpo.

O segundo estado de doença é aquele no qual ohomem pode empreender algumas acções ealgumas funcções mas sem facilidade, sem prazer,sem firmeza, diz-se que o atacado tem uma doençacrónica. Esta doença ataca ou a cabeça ou o toraxou os rins; são de ordinário as consequências dedoenças agudas, ou doenças venéreas mal curadas.O efeito mais sensível nesta doenças é a falta detranspiração insensível ou daquele vapor invisível quesai e que deve sair continuamente do nosso corpo equando esta perspiração ou vapor fica retido no corpodestes doentes, a sua doença aumenta, cada dia asfunções do estomago são todas imperfeitas; os sucosque lá se preparam sendo mal digeri-dos, nãoalimentam os corpos; estes mesmos licores ou sucospassam ao peito, à cabeça, ao fígado, aos intestinos,ao mesentério, comunicando-lhes vícios quecontrairam! e todos os dias se realiza nesses corposum círculo vicioso que aumenta a doença.

Vê-se que a sociedade civil seria feliz se seencontrásse um remédio fácil, pouco oneroso e tãoeficaz que pudesse não somente conservar o estadode saúde, mas ainda curar ou aliviar os males de tãofrequentemente atingem os homens: não encontrosenão o banho Russo, administrado como prescrevea sã medicina, que possa produzir esse efeito.

Os incómodos causados por violentos exercíciospor mudanças súbitas da atmosfera, as contusões,os resfriamentos, as grandes refeições, os excessosde bebidas e de prazeres, provocam uma languidezem todo o corpo e a prespiração insensível ésuprimida, e aumentam todos os incómodos quedescrevemos. Que aqueles que se ocupam de curarme indiquem um remédio tão eficaz, tão fácil e tãorápido a curar aquelas indisposições, como o vaporda água continuamente renovado e aplicado no corpodoente deitado nu no banho Russo. A quantidade deágua que se deita nas pedras incandescentes dilata--se 1400 vezes mais que o seu próprio volume. Estevapor expande-se por toda a capacidade do banhotão rápidamente que obscurece a luz utilizada paraassinalar os que se banham. Como a água contémuma infinidade de princípios elementares de ar e defogo, quando a exposição se faz por meio de fogo,dilata-se com uma rapidez e uma força muito

grandes. Sabe-se que a pólvora para canhão, acesa,ultrapassa cinco mil vezes o seu volume, mas a água,com o seu ar elementar excede de vários milhares oespaço que ocupava. Este vapor, tão activo, tãopenetrante e tão quente, aplicado a um corpo nu,deitado, já aquecido, respirando o ar de umatemperatura igual à do corpo humano e para mais,relaxa a pele; ela faz-se pelas mínimas artérias eveias de todo o corpo, tanto no interior como àsuperfície; o doente começa a suar, sente uma calmamais reconfortante e cai, sem se dar conta, num sonotranquilo e satisfatório.

Com o tremómetro de Farhenheit o qual marca namão até 500 graus e fora da mão, preso no banho,cerca de 98 graus, experimentei tudo o que acabode dizer, estando deitado nesse mesmo banho.Quando sentimos um calor incómodo, alguma dorde cabeça, algum embaraço na respiração, manda-se logo o banheiro deitar água em cima das pedrasincandescentes: forma-se um novo vapor, um novoar, o doente ou o homem são sente-se aliviado, fundeem suores, sem fraqueza e fica numa calma que odeleita. Este vapor não relaxa as partes sólidas comoo vapor dos banhos Romanos ou dos Turcos. O vapordos banhos Russos está animado pelos elementosdo fogo e pelos do ar renovados à vontade, eles dãoflexibilidade à pele sem a relaxar, elasticidade aosórgãos da respiração, às veias e às artérias, estevapor restabelece a vitalidade de que certas partesestavam dotadas antes da doença.

Que pretenderam os médicos antigos e qual afinalidade dos modernos na cura das inflamações,isto é, nos tumores internos e externos com febre,dor e tensão, nas febres ardentes, varíola e nasfebres pútridas e lentas?

É relaxar a pele, moderar o calor, temperar a sedee as dores, acalmar as inflamações, alcançar o sonoe deixar ao cuidado da natureza a acção da causamórbida para ser expurgada pela prespiraçãoinsensível e pelos suores, sem enfraquecerem. Paraconseguirem este fim eles utilizavam a sangria, asevacuações, os diluentes e os refrescantes, asfermentações, os antisépticos, o leite, o hidromel, osácidos misturados com mel, açucar e os remédiosmucilaginosos; mas se considerarmos atentamentea propriedade dos vapores animados pelo fogoelementar e pelo ar, veremos que eles serão maiseficazes, mais fáceis de executar que todos osremédios que acabamos de enumerar. Se asdoenças fossem tratadas por um médico hábil, quemandasse fazer uso deste banho cada seis ou oitohoras, tendo o cuidado de alimentar o doenteenquanto ele descansa, fora do banho, na sua cama,e de lhe manter o intestino limpo à custa de algunsclisteres, estou persuadido que ficariam curados maisdepressa e mais seguramente que pelo métodoordinário. Não desprezo todos os remédios tais como

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os purgativos, o ópio, o mercúrio, a quinquina; maspenso que o banho Russo pode ocupar parte dasfarmacopeias.

Percorramos com atenção o que os médicos sepropõem na cura das doenças crónicas: Vejamos emque consistem a natureza e as propriedades dosremédios que eles utilizam, e veremos que a suaindicação principal é de produzirem uma leve febre,por meio da qual tentam dissolver a natureza espessaque causa a pertubação nas glândulas, nas veias,nas artérias capilares, nas túnicas de todo o corpo enas suas cavidades. Por meio da mesma febremoderada, eles procuram aumentar a perspiraçãoinsensível, os suores salutares e a perfeição de todasas digestões de todo o corpo humano; para oconseguirem eles aconselham o exercício, as longasviagens, por terra e por mar, o sabão, as gomas daÁsia, os purgativos, e, misturados com essas gomas,os espíritos voláteis, os amargos.

Mas que fazem estes exercícios, a pé ou a cavalo,as frições, as longas viagens por terra ou por mar,senão aumentarem o fogo e o ar no nosso corpo,produzirem uma febre moderada renovando essefogo e esse ar? O que é o sabão? É fogo e arconcentrados e condensados nos sais salinos, nosóleos ou gorduras, ou na cal. As gorduras da Ásia,os aromáticos, as raizes e as cascas amargas osespíritosvoláteis, alcalinos e oleosos, contêm umamaior quantidade de fogo e de ar do que o resto dosmedicamentos que encontramos na Europa; Todosestes remédios produzem uma febre moderada, umaprespiração insensível quando o estômago o digere.Eis o alcance da principal indicação médica nestasdoenças; mas que se comparem todos estes socorros, todos estes remédios, com os vapores dosbanhos Russos sobre o corpo humano durante quatroou cinco horas no espaço de vinte e quatro horas;então ficaremos persuadidos que estes vaporesactivos e animados produzirão efeitos superiores aosque se podem esperar dos remédios que utilizamosdiariamente.

Modo como banhar-se nos banhos russos.Tanto Públicos como Particulares

Entra-se nos banhos Russos, tanto públicos comoparticulares, logo que a lenha posta no forno estáfeita em brasas ou cinza, e quando o tubo por ondesai o fumo está perfeitamente fechado: Então o caloré ardente, e mesmo sufocante para os que não estãohabituados desde a infância. Habitualmente não seentra nos banhos particulares antes de se ter deitadouma certa quantidade de água em cima das pedrasardentes postas no forno; e antes que o interior dobanho esteja cheio de vapores. Os que entram paraaí se banharem despem-se lá. O comum das gentesexpõe-se ao calor ardente e sufocante antes que o

banho esteja completamente cheio de vapores;deitam-se nas duas ou três banquetas chamadas emRusso Poloc, onde o calor se faz sentir maisvivamente. Alguns sentem fortes dores de cabeça,outros sofrem uma sede excessiva; alguns sentem--se tão atormentados que bebem a água próxima,em grande quantidade, no próximo banho. Os queagem assim no banho arruinam a sua constituição,adoecem, e morrem mesmo algumas vezes nopróprio banho, como aconteceu em Moscovo a doiscriados, por terem bebido água com gelo, estandono banho. Se considerarmos com atenção os efeitosque produzem as bebidas com gelo, a água fria, oua hidromel, quando o corpo está sofrendo os efeitosdo calor quente e ardente, quando o banho, o canoda chaminé e a porta estão fechados, veremos, nomesmo instante em que se bebem esses licores frios,que se formam polipos, isto é, que o sangue se tornaespesso; forma crosta no ventrículo direito docoração, na veia pulmonar, no sinus da dura-mater,a pele de todo o corpo, e o interior do pulmão secame inflamam-se; então a febre surge com asconsequências de uma inflamação generalizada atodo o corpo.

Quando nos sentimos esquentados no banho e ocalor ardente se torna incómodo, deita-se água sobreas pedras quase em brasa: o vapor levanta-se comrapidez e com violência enche todo o espaço dobanho e quando começa a dissipar-se e a mostrar--se por meio de gotas de água renova-se a água etorna-se o vapor ainda mais forte e espesso. Entãousa-se abundantemente, esfregamo-nos com sabão,e com folhas de tília (em Russo berosé), amolecidasna água quente, e esfregadas com sabão: emacabando estas frições feitas por todo o corpo,mandamos deitar por sobre a cabeça vários baldesde água morna ou fria, á vontade de cada um.Acontece muitas vezes que os que vão aos banhospúblicos, os quais são sempre construidos ao ladode qualquer ribeiro ou tanque, mergulhem na águaou na neve, antes de se vestirem e irem à sua vida.Os que se banham nos banhos privados, antes deeles sairem para tratarem da sua vida, passam paraoutro compartimento aquecido, mesmo provido decamas, onde se deitam e suam, algumas vezespassando aí a noite, o que é mais vantajoso paraconservar a saúde, aumentar o vigor e a constituiçãodo corpo.

Abusos cometidos vulgarmente pelos que sebanham nos banhos russos

O primeiro abuso cometido no banho Russo,principalmente pelos que se banham nos banhospúblicos é o de entrarem lá quando o ar do banho éainda seco ardente, e que se sente imediatamenteum aperto em volta da cabeça. Durante todo este

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tempo, ainda que a lenha que serviu para aqueceresteja em brasa ou em cinza, e que se não sintanenhum cheiro desagradável produzido pela lenhaque ainda poderia estar no forno, ou pela humidadedo banho, se antes ele estava gelado, não se develá entrar antes que tenham lançado sobre as pedrasardentes uma quantidade de água suficiente, e quetodo o forno não esteja cheio de vapores. Seria dedesejar que fosse proibido a cada inspector dosbanhos públicos de lá deixar entrar quem quer quefosse, enquanto o banho não estivesse no estadode vapor que acabamos de determinar.

Há pessoas bastante imprudentes para entraremtanto nos banhos públicos como nos particulares,depois de terem tomado as suas refeições, sejajantar, seja ceia. O banho é então pernicioso,principalmente se dele se faz frequentemente uso, ocorpo torna-se pesado e penoso, gordo; sujeito aosfluxos; as digestões tornam-se imperfeitas; e arespiração é suprimida. Este abuso é ainda bem maisperigoso para o sexo, as menstruações desaparecemou perturbam-se, seguem-se perdas brancas emuitas vezes os casamentos tornam-se estéreis.Nunca se deveria entrar no banho senão quatro oucinco horas depois da refeição e o mais seguro seriao não entrar lá enquanto se sentisse o estômagocarregado de alimentos e bebidas. As pessoas dopovo não pensam se têm o ventre livre e algumaspessoas da classe média procedem da mesmaforma, mas se se tem o ventre preso por dois ou trêsdias, com dores de cabeça, farão muito mal(sobretudo as pessoas do sexo em especial asmulheres grávidas) em irem aos banhos e de sebanharem como de costume. O mal não seria tãogrande para as pessoas que fazem exercício. Podefacilmente conseguir-se esta vantagem por meio deum clister ou mastigando um bocado de ruibarbo, ouempregando quaisquer outros que sejam maiscaseiros.

Conheci várias pessoas que faziam uso deventosas escarificadas, depois de terem suado e dese terem massajado nos banhos, usavam-nas cadamês ou todas as duas semanas, ou desde que sesentissem pesadas ou enfartadas. Penso que esteuso de perder sangue sem necessidade passou daAlemanha para a Rússia, através dos banheiros queprestam serviço nas estufas deste país. Qualquerque tenha sido a forma de introdução, o que é certoé que ele é muito pernicioso; os que têm o hábito deperder uma libra ou mais de sangue por mês ou todasas seis semanas, são obrigados a repetir estaoperação, ainda que as suas forças não sejamsuficientes para aguentar esta sangria, porque, logoque a altura na qual estão habituados a tiraremsangue chega, todo o seu corpo se torna pesado,ficam inquietos e no primeiro grau de doença.

Tornam-se gordos mas fracos. O Sexo; esta san-

gria altera e suprime o curso das menstruações.Todos estes incovenientes levam a pedir aos que

forem propostos para a superintendência sdosbanhos, para proibirem tais operações, sem ordemexpressa de um médico autorizado.

Das frições com o sabão

As frições com o sabão e ramos de tília amolecidosna água quente tornados escorregadios pelo sabão,administradas depois de se ter suado algum tempono banho, são um dos remédios mais eficazes paraconservar a saúde; por este meio a circulaçãonormaliza-se, as partes sólidas fortificam-se, aespessura ou a podridão do sangue são corrigidas:e como se respira um ar húmido quente e a umatemperatura semelhante ao calor do corpo, toda amáquina se renova ao mesmo tempo. O sabão é omaior dissolvente dos nossos humores; os quegozam de boa saúde não deveriam usar outra matériapara se esfregarem no banho; é preciso abandonara água-ardente, as águas do cheiro, as pomadas, ainfusão de rábano na água ardente e outrascomposições idênticas cujo uso foi intriduzido pelaignorância ou pelo luxo. Falaremos das doenças nasquais as frições com sabão são prejudiciais ou sãosalutares: no momento ocupar-nos-emos dos quegozam de boa saúde e que utilizam o banho para aconservarem.

O costume que há de nos lavarmos com água mornaou fria, ao sair do banho

Talvez me censurem por aquilo que repito comfrequência, que a operação do banho é umaexsudação dos humores mais subtis do corpo, pormeio do vapor quente e das fricções, mas o corpodeve sair ou tão quente como lá entrou. Todos quegozam de uma constituição robusta, que sãosaudáveis e fortes, podem lavar-se no fim do banhocom água morna ou fria, esfregarem-se na neve enadar no gelo, mas os que são de temperamentodelicado, que têm o estômago fraco, o peitorestabelecido da tosse ou sem tosse e que sentemhabitualmente dores de cabeça, arriscariam muitoexpondo-se a mudanças súbitas e violentas. Essescorpos fracos, ou por constituição ou por doença, oupela idade, depois de se terem esfregado com sabãoenquanto ainda suam, não deveriam lavar-se senãocom água morna e não devem mandar duchar assuas cabeças senão com a mesma água, seria maisconveniente que se metessem na cama num quartoaquecido ao lado do banho e aí passassem a noite.As mulheres da cidade devem tomar maisprecauções a este respeito, a menos que a sua saúdeiguale em vigor a das camponesas, ou das que sãocriadas no trabalho.

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Não posso terminar a enumeração dos abusos quecometem os que se banham nos banhos públicos eparticulares, sem censurar o uso universal eespalhado em toda a Rússia, de mandar entrar ascrianças algumas horas depois do seu nascimento,nos banhos ardentes e sufocantes, antes que elesestejam temperados pelo espesso vapor.

É muito difícil destruir e desenraizar costumesestabelecidos numa nação, principalmente, quandoeles são credenciados de bons sucessos.

Descreverei esta matéria que julgo da maiorimportância e sobre. a qual ninguém até agoraescreveu.

Quando uma mulher dá à luz e fica completamentelivre e em estado de caminhar, seja durante o inverno,quando todos os caminhos estão cobertos de neve,seja durante outras estações, o costume estabelecidona Rússia é que ele saía de sua casa com a criançaque acaba de dar à luz; ela vai ao banho público (faloda classe baixa), porque as que não são destacondição, entram nos próprios banhos construidosnas suas casas.

Vimos atrás o abuso de entrar nos banhos públicosou particulares antes que eles estejam cheios devapores; porque então o calor é ardente e sufocante,principalmente se as pessoas se deitam na segundaou terceira banqueta. As mulheres, imediatamentedepois do parto, entram nesses banhos geralmenteantes que estejam cheios de vapores, suamabundantemente e fazem-se friccionar com sabão ecom ramos de tília molhados em água fria; deitampor cima das cabeças vários baldes dessas duasespécies de água e em saindo do banho vão deitar-se nas camas. O método de suar abundantementedepois do parto, é soberano para prevenir váriasdoenças que são as consequências dos partos: éessa a razão pela qual espero me seja permitidoentrar nalguns detalhes sobre uma matéria tãointeressante para a humanidade e para o estado.

Todas as mulheres durante a gravidez,principalmente as que estão habituadas ao trabalho,acumulam nas veias uma super fluidez de humoresserosos que tendem à podridão ou já estãodeteriorados. Quando uma mulher entra em trabalhode parto, o qual dura algumas das vezes três dias,as partes do seu corpo que estão sempre cobertas,quentes e ao abrigo de todas as espécies de ar, sãoexpostas muitas vezes ao ar; elas arrefecem maisou menos, segundo a duração ou dificuldade detrabalho, e este arrefecimento não se cura nuncasenão por uma febre ligeira, se esta mulher não derde mamar ao seu filho logo que nasce; o leite ficanos seios e incham, a febre aparece e acresce à doresfriamento.

Logo que a mulher dá à luz, é atormentada pelasdores, cólicas tão incómodas e tão fortes, que aseliminações param, então a febre torna-se mais

violenta; um facto mais é que depois do parto todasas partes ficam em estado de inflamação: nestascircunstâncias, qual o remédio apropriado maiseficaz, que o de expor tudo, o corpo ao vapor daágua quente e de respirar ao mesmo tempo estevapor.

O suor provocado pelo vapor do banho aumenta acirculação do sangue e a pele relaxa-se, bem comotodo o sistema das artérias e das veias; asserosidades suprabundantes reunidas durante novemeses, eliminam-se sob a forma de suor pela pele,a transpiração suprimida durante o trabalho de partosai com o suor, a tensão dos seios cheios de leite, oinchaço, as dores, e as cólicas dissipam-se enfim adesobstrução obtém-se mais prontamente por estemétodo os socorros que se poderiam esperar comtodos os outros remédios. Se esta mulher se sentirincomodada depois de ter estado no banho, se sentirdores, no seio ou algures, volta para o banho, sua aíabundantemente, antes e depois de ter sidofriccionada com sabão, e fica curada; a partir do 5dia fica em condições de ir às suas ocupações, detrabalhar e de alimentar o filho. Logo que tive aconfirmação do sucesso desta prática na Rússia, omeu método de tratar e de curar as mulheres e asdamas depois do parto, era de as manter na cama,de se agasalharem bem, as mãos e braços sempredebaixo dos cobertores tendo a cabeça coberta;faziam-lhes tomar as bebidas e os alimentos semprequentes, e manterem o corpo a transpirar ou pelomenos num estado de transpiração definido duranteos cinco primeiros dias: não me arrependo de teraprendido este método das camponesas Russas, ede outras mulheres que as imitam.

Não é necessário persuadir as mulheres da classebaixa da Rússia, a utilizarem o banho de vapor depoisde darem à luz: seria desejável que todas asmulheres da Europa também os usassem; evitariambastantes sofrimentos e doenças crónicas, econservariam a sua beleza, as suas graças e osdentes.

Por cálculos concretos de economia política pareceque nas grandes cidades em dez parturientesmorreram 3. Cada médico é livre de pensar e de falarda causa desta mortali dade com a mesma liberdadecom que o faço, ouso afirmar que esta mortalidadevem do virus venério, tão escondido e tão difícil dedesenraizar e de curar. e se não se faz suar asparturientes durante os primeiros cinco dias, a suamorte neste estado é quase inevitável. Sabe-se, pelorelato acima, que as mulheres que deram à luzrecuperam as forças e a saúde pelo uso do banhode vapores; mas nunca se presta atenção, quandoessas mulheres utilizam o banho, se elas lá entramquando ele está em vapores ou sem vapores: é umcostume apanhado nos banhos públicos, e mesmomuitas vezes nos banhos privados; mas veremos a

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seguir os efeitos perniciosos que daí resultam paraas crinças que lá se banham com as mães. Osbanhos de vapores Russos são sempre perigososquando lá se entra quando não está cheio de vapores.Como todo o povo Russo está habituado a isso desdea infância, ele não se apercebe facilmente quando oar está demasiado seco e ardente: os Russos nãoatendem aos defeitos perigosos e aos males quesofrem os que não estão habituados a sentir e arespirar de repente um ar tão seco, tão ardente e tãosufocante. Daí advém que as mulheres não sofremquase nenhum incómodo depois dos partos,banhando-se em banhos públicos ou particularesantes que eles estejam cheios de vapores; mas nãosucede o mesmo em relação aos filhos, os quaisderam à luz algumas horas antes: nós vamosdemonstrar os incovenientes qua a humanidaderecebe, e a perda que o estado sofre com estaprática.

Se observarmos com atenção o que se passa naeconomia de uma criança durante as primeiras 20ou 40 horas do seu nascimento, verificamos que acirculação do sangue que se faz pelo pulmão, produznele uma agitação contínua e uma espécie de febrecomo numa leve peripneumonia; ela mostra-o bemcom a sua inquietude; e o mais eficaz remédio,enquanto o pulmão não está completamente livre edesenvolvido, antes que a circulação do sangue láseja livre e perfeitamente estabelecida, é atranquilidade, o sono, e de o pôr ao peito a mamarlogo que acorde, gritando.

Sabe-se que o feto, no ventre da mãe conservatodos os excrementos que se formam no seuintestino; quando de lá sai respira, evacua alguns:tem-se grande cuidado, e com razão, de fazer deforma que esses excrementos escuros sejamevacuados, porque a experiência provou que se ficamretidos nos corpos dos recém-nascidos, elesprovocam doenças que em pouco tempo levam àmorte.

Consideramos agora esta criança entre os braçosde sua mãe deitada na primeira ou segunda banquetanos banhos Russos, 10 ou 20 horas depois de tervisto o dia, respirando um ar ardente, seco, durantevários minutos, e vejamos os efeitos que daí resultamnesse corpo tenro e delicado. Devido ao calor secoe ardente do ar que ele respira, o pulmão não sedilata, não somente devido ao ar ardente que o im-pede de respirar livremente mas também porque opulmão que é ainda tenro, se encontra comprimidoe quase desde a sua formação, uma parte do sanguefica lá retida e a outra parte é obrigada a regressarao canal arterial e à cavidade oval.

A criança fica quase sufocada, e como se tivesseuma inflamação no pulmão. Consideraremos oembate que sofrem esses tenros órgãos devido aesse ar ardente e seco que impede as operações

mais necessárias da vida as quais são a respiraçãolivre e a facilidade de circulação do sangue. Estaúnica causa é suficiente para fazer parecer um recémnascido em pouco tempo, mas ainda há outra quenão é menos mortífera. Os intestinos desta criançaestão ainda cheios de excrementos negros, os quaisquando foram retidos provocam a sua morte. O calordeste banho aperta toda a pele, a superfície doentérion e do pulmão e a cavidade dos intestinos; asua capacidade reduz-se; o mecónio torna-se maisglutinoso, mais duro; toma uma consistenciasemelhante à do pez, e assim não pode nunca sairtotalmente pelas vias naturais e provoca em poucotempo mil incomodidades que terminam na morte.(a)

Para remediar este abuso seria necessário quehouvesse uma lei que proibisse, sob penas perigosasa entrada nos banhos a quem quer que fosse, antesque estivessem cheios de um vapor espesso e quevissem as gotas de água na sala dos banhos.

Das doenças nas quais não devem friccionar-se nobanho de vapor, nem lavarem-se com água fria e

menos ainda com gelo

Dissemos mais acima que os que se queixam dafadiga, de peso na cabeça, os olhos carregados einchados, com dificuldade de se moverem, depoisdas fadigas e dos exercícios violentos, ou depois deexcessos na alimentação, na bebida, etc., que osque tinham dores, inchaços, contusões depois dequeda se curariam por meio de banho de vapor, senão houvesse factura ou luxação. A queda que o Dr.Muller deu do cavalo na Sibéria, com dores de rinsmuito vivas e inchaço, foi tratada por meio do banhode vapor que lhe foi ordenado pelo Dr. Gmelin, Pro-fessor de Anatomia Imperial (Vd. Tomo XVII de“Histoire Générale des Voyages”, p.331, Paris, 1768,in:4.).

Logo que a criança esteja lavada e depois que amãe esteja arranjada e sentada na cama, ela deve,ao fim de uma hora ou duas, dar o peito ao filho. Seele não o toma à primeira ou à segunda vez, não sedeve por esse motivo dar-lhe uma outra bebida oualimento, nem o peito de outra mulher; essa criançanão precisa de alimentos, nas primeiras 24 horas, asua única necessidade é o sono, para estabelecer anova circulação do sangue.

Se a mãe tivesse a habilidade de pôr ela mesma obico do seio na boca da criança, mesmo quando eladorme, ela chuparia uma espécie de leite como osoro do leite, o que seria vantajoso para a criança epara a mãe. Este leite alimenta o bebé, e ao mesmotempo expulsa os excrementos formados no seuintestino durante a gravidez da mãe: fica assim livrede várias doenças e mesmo da morte permatura.

A mãe dando ao filho tanto leite como o que elepossa tomar, previne a febre do leite, cerca do 3°-

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dia como sucede nas que não dão peito aos filhos.Então as cólicas não serão suprimidas. Aquelas nãosentirão as dores na região do umbigo; e seentrassem nó banho de vapor com os filhos, 12 a 20horas depois de teremdado à luz, ficariam de saúdeno 5°- ou 7°- dia, e em estado de se levantarem. Ascrianças seriam sãs e vigorosas, se as mães nãoestivessem atacadas de uma antiga doença.

O banho Russo seria o mais salutar para aliviarinstantaneamente esses incómodos, fazendo friçõescom sabão e ramos de tília, lavando-se depois comágua morna ou com água fria, o que tornaria o corpoágil e vigoroso; e dormindo depois durante algumtempo, ter-se-ia o espírito e a cabeça perfeitamentealiviada.

Os mesmos banhos, as mesmas frições, asmesmas loções com água morna ou fria seriam umalívio e um remédio excelente nos desgostos, nasdepressões, no aborrecimento, na tristeza, deseguida a acessos de paixões fortes: então o banhode vapor é preferível às viagens por terra ou por mar;seria o alívio mais rápido e mais fácil.

Mas se esses incomodos são acompanhados defebres, de dor de cabeça, de arrepios, de sede, decalor ardente, de dores de rins e dos músculos daspernas, que o doente não consiga estar sossegado,que não possa ficar deitado, nem de lado, nem decostas, que o ventre esteja preso, duro, tenso, comhemorroidas tumefactas, que a língua esteja seca,amarelada, branca ou escura, que os olhos estejamvermelhos; pode então utilizar-se o banho, logo queele esteja em vapor e a uma temperatura temperada,e suar lá tanto quanto as suas forças o permitam;mas é preciso evitar as frições e não devem entãolavar-se com água fria no fim do suadouro. Lavar--se-ão unicamente com água morna, deixando-a cairsuavemente sobre a cabeça. Sair-se-á do banho bemagasalhado, e vai-se para a cama; e se ainda hásede e fraqueza, tomar-se-ão alimentos e bebidasconvenientes.

Todos os doentes que têm febre e estão acamados,tomarão como único alimento, o caldo feito comfarinha de aveia, de centeio ou de trigo negropreparado à moda dos Russos (a): é um alimentomuito salutar em todas as espécies de febre e quenão difere da tisana dos antigos médicos gregos.

As bebidas serão ou hydrogale, ou meio leite,adoçado com um pouco de açucar ou mel, ou bebidasaciduladas por meio de vinagre ou de azedas. Podefazer-se ferver as azedas em leite que talhará; ecoando-o através de um pano, ter-se-á um soro deleite agradavelmente ácido, que será adoçado àvontade (b),

Os doentes que têm febre devem ir todos os diasao banho de vapor, uma ou duas vezes durante 24horas, e algumas vezes todas as noites ou todas asseis horas, consoante se achem mais esquentados,

que não durmam, que as dores aumentem, e queelas não lhes dêem nenhum descanso: depois do5°- ou 7°- dia, os doentes assim tratados pelos suorese as bebidas aciduladas, enfraquecerão; acrescentar--se-á então à bebida uma muito pequena quantidadede água ardente, mas com uma tal moderação queela não possa esquentar, nem provocar nenhumador de cabeça, nem aumentar a febre. Tenho aexperiência que este método é excelente para curartodas as espécies de febre desde o seu aparecimentoaté ao seu declínio, com auxílio do banho.

Os doentes que têm febre e que são forçados aestar na cama, sentem embaraço na respiração; têmdores fixas e agudas, ou no meio do peito, ou de umou de outro lado, com uma tosse seca e escarros;algumas vezes deliram, perdem o conhecimento,caem em convulsões. Estes sintomas não devemimpedir de se meterem os doentes no banho devapores, e de lhes deitar sobre todo o corpo nu edeitado, água morna enquanto transpiram; é precisocontinuar esta operação docemente e até àdiminuição do transporte das dores e das convulsões.É preciso que o doente lá fique uma ou duas horas,e algumas vezes mais, sempre numa transpiraçãomoderada, pelo novo aumento do vapor deitandoágua sobre as pedras ardentes, enquanto ele nãoenfraqueça e possa resistir a esta exsudação. O sdoentes irão para a cama ao saírem do banho, erestabelecerão as forças com os alimentos e bebidasdescritas acima. Se, algumas horas depois osmesmos males voltarem, entrarão de novo no banho,o que se repetirá 2 ou até 4 vezes nas 24 horas assimnos dias seguintes até á cura completa.

A varíola, a rubéola e as outras doenças com febre,dor, sede, dificuldade de respirar, devem ser tratadasda mesma maneira. As frições com ou sem sabãosão sempre pernicio sas nestas doenças e é entãoperigoso lavarem-se ou banharem-se em água fria.Eu disse acima que quando se está no banho devapor, e quando aí se sinta sede, calor, inquietude,se se deitar água fria sobre as pedras ardentes, ovapor que se levanta refresca logo de imediato odoente, e ele sente-se logo aliviado.

Em Petersburgo e em Moscovo os banhos sãobastante espaçosos e as pessoas estão, nestesbanhos deitadas a uma certa distância do forno: ovapor que se levanta circula na capacidade do banho,e o doente não respira tão ardente como os outrosbanhos mais pequenos.

Não sucede o mesmo nas outras cidades e vilas:os banhos são aí tão pequenos, e mal construidos; ovapor que se levanta da água lançada sobre aspedras ardentes não tem o espaço suficiente paracircular; então este vapor é ardente, e não deixa deo ser senão quando o fogo das pedras começa adiminuir.

Acontece muitas vezes que nas febres quentes o

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sangue sai pelo nariz, pelo ânus e pelo canal urinário.Se o doente está no banho quando surgem estasperdas de sangue, é preciso fazê-lo sair de láimediatamente, deitá-lo num lugar frio e fazer-lhebeber continuamente água fria gota a gota, compartes iguais de vinagre, ou um terço, consoante assuas forças: é o remédio específico de todos os fluxosde sangue, com excepção dos da natureza: neste oremédio é a água pura e fresca, bebendo-acontinuamente gota a gota, e respirando ar livre efrio.

Das doenças nas quais é necessário utilizarfricções no banho de vapor

Pode fazer-se uso do banho de vapor e mandarexecutar frições com sabão e com ramos de tília,em todas as doenças que não são acompanhadasde febre, de alterações da saúde e de dores comardor, isto é, as frições são sempre úteis para fortificaro corpo e aumentar a perspiração insensível; equando são feitas com sabão, são mais eficazes:porque sendo o sabão composto se sal alcalino e dematérias gordas, contém muito fogo e ar elementare por esta razão abre os poros da pele, e aumenta aperspiração insensível bem como a circulação; eprovoca uma ligeira excitação e febre em todo ocorpo; torna-o mais leve, mais activo e mais animado.Quando se cai em doenças que têm a sua origemno estômago. como a falta de apetite, digestõesdifíceis, seguidas de sensação de peso, de dores,ómitos, gases, regorgitações; de cólicas, obstipação,de tonturas, é necessário fazer uso do banho devapores com frições todos os dias, durante um mêsou seis semanas, e seguir ao mesmo tempo um re-gime de alimentos de fácil digestão, seguindo aomesmo a recomendação de não trabalhar e de nãohaver constantemente preocupação quanto aqualquer assunto.

O doente neste estado torna-se melancólico, comsono inquieto e interrupto; fica fraco; algumas vezeso seu rosto fica amarelo, sente um peso no ladodireito, dores de rins e lassidão ao mínimomovimento. Este estado deriva geralmente de febresmal curadas, de um trabalho árduo, de desgostos,de ter levado uma vida triste, uma vida monótona,sem exercício como acontece nos conventos;consequências de doenças venéreas que não estãocuradas ou que foram mal tratadas.

Em todas as doenças de peito, com dificuldadesrespiratórias, com tosse, quando não há febre,quando se não cospe sangue, podem utilizar-se osbanhos de vapor, todos os dias com frições, até quese sintam aliviados ou curados.

Então uma bebida semelhante á que se faz comquasí mel, vinagre, e uma pequena quantidade deágua ardente, seria um remédio, e serviria em parte

como alimento. A alimentação mais conveniente nasdoenças de peito, em que não há nem febre; nemalteração, nem dor de cabeça violenta, é uma gemade ovo diluida em água a ferver, a qual se junta umpouco de mel ou de açucar, tomando-se uma ou duasvezes em vinte e quatro horas.

O banho de vapor com as frições, e os remédiosque acabo de indicar para as doenças de peito,convêm em todas as doenças de rins, ureteres,quando não há febre.

Dos males que causa a doença venérea e dosremédios adequados ao seu tratamento

Quando se consideramos males infinitos edestrutivos que a doença venérea tem causadodesde há 300 anos, fica-se surpreendido que osgovernos da Europa não tenham até agora tomadoprecauções contra a sua malignidade, e o dano queela provoca na população. O que ainda mais é delamentar, é que os que são atacados, não serão talveznunca mais libertados radicalmente da doença; elaé rebelde a quase todos os socorros que os médicose os cirurgiões puseram em uso até agora: estadesgraça seria ainda tolerável se as criançasnascidas desses casamentos infectados, não fossematingida; mas infelizmente acontece o contrário, e évisível que as gerações perderam muito das suasforças e do seu vigor desde que esta doençaapareceu na Europa. Lembro-me que durante aconversa que tive com ele sobre os homopitecinaeque estavão sobre o seu comando: Tenho vergonhade ver hoje a pequena estatura das nossas tropas;na batalha de Norva em que éramos 60.000, eu eradas mais pequenas estaturas.

Era então um venerável velho de estaturaavantajada.

Não direi que a diminuição da estatura e das forçasatléticas da nação Russa provêm unicamente dadoença venérea: há várias razões bem conhecidasdesta mudança, tais como o desmazelo ou odesprezo que a nobreza dos dois sexos tem pelobanho de vapor; a moleza ou o luxo introduzido desde1725, ano da morte de Pedro o Grande, etc. ...Recordo-me de ter visto em Moscovo, em 1731,vários nobres de rica estatura, de saúde robusta,ainda que no declínio da idade: conheci os filhos delesque estavam no serviço militar, e que não osigualavam nem em estatura nem em vigor.

Sei que esta diminuição de estatura e das forçasnão é tão generalizada nas províncias do Impériocomo nas cidades capitais; no entanto apercebemo--nos desta mudança aquando da chegada dosrecrutas aos quartéis.

Os vícios poderiam em parte ser eliminados pelafrequentação dos banhos de vapor. Como oscamponeses, os artesãos, e geralmente de todos os

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sexos, das classes baixas, de todos os estados,quando são infectados por esta doença, não podemseguir com toda a exactidão necessária os remédiosque lhes preceituam as gentes da arte, e que elestirariam pois os maiores socorros do uso frequentedo banho de vapor, alongar-me-ei aqui sobre as suasvirtudes e demonstrarei que ele pode remediar a estaterrível doença. Os maiores males que esta doençavenéra causa da sociedade civil, não são produzidosdurante o tempo em que os doentes sofrem dosardores da urina, que tem um escoamento de matériaesbranquiçada, amarelada, verde, sanguinolenta, emque sentem dores, quando têm chagas, febre,tumores, nas partes destinadas à reprodução, porqueos dois sexos não podem, por causa das dores,contactar neste estado, ou pelo menos senão comdificuldade e raramente. O mal principal deriva dequase estas doenças no começo do contágio, sãomal tratadas e nunca perfeitamente curadas. Trêssemanas ou quarenta dias depois, as dores, osardores, e os tumores acalmam-se o virus espalha--se por todo o organismo, e dá-se então a conhecerpela mudança da cor do rosto, pela vermelhidão dosolhos, pelas dores de garganta, a dificuldade deengolir, pelas dores no centro dos ossos longos , adifuldade das pernas, das coxas, e dos braços du-rante a noite, com a lassidão de todo o corpo, porúlceras no rosto, úlceras em qualquer parte da pele.Todos os sinais se dissipam com o tempo, ou pormeio de alguns remédios ou pelo vigor de umtemperamento, e então estes doentes não sentemnem dores nem incómodos que impe-çam as funçõesda vida. O veneno desta doença fica muitas vezesescondido no sangue; se se casam , e que nasçâmcrianças desses casamentos, ou as crianças morremem pouco tempo ou elas enlanguecem cheias dedeficiências que as tornam pesadas a elas mesmase aos que delas devem cuidar.

Esta disposição viciosa é também a causa de váriasdoenças lentas que são a amargura da vida dasmulheres, depois da cessação das regras. Elasrevelam-se através dos incómodos da melâncolia, edos males vulgarmente denominados do útero ou damatriz, por dores dos olhos , da cabeça, cólicas,pedras nas urinas; e entre a aclasse baixa e ossoldados, sob a forma de escorbuto. Enfim estadoença aparece disfarçada sob a forma de todas asdoenças lentas, conhecidas até agora por médicos.Na Rússia ela aparece mais commumente com oscaracteres da doença chamada dineja, que é oescorbuto. Os camponeses, os operários quetrabalham ao ar livre, os soldados que suportam frioscom os fatos húmidos e molhados, se dormem nesteestado, são imediatamente atingidos pela doença.Tenta-se em vão curá-los com os remédios adquadosao escorbuto; todos estes remédios se tornam inúteis.Esta espécie de escorbuto que se encontra nas e

nos hospitais da Rússia é habitualmente provocadapela doença venérea degenerada.

Estou persuadido que os três quartos das doençascrónicas na Rússia, provêm origináriamente damesma causa escondida e disfarçada sob forma deoutras doenças.

Remédio contra esta doença

Se qualquer doente de um ou de outro sexo seacha atingido por alguma das lesões de que acabode falar, não conheço outro remédio neste estado,senão o de ir todos os dias ao banho, pelo menosuma vez em 24 horas, mas o mais seguro e o melhorseria ir lá duas vezes, e ficar de cada vez duas horasem suor, fazendo-se friccionar com sabão e ramosde tília, lavarem-se de seguida com água morna, edeitarem-se ao sair do banho. Far-se-á ao mesmotempo uso de uma forte decocção de “luxo” ou dezimbro, se não há febre, dor, ardor nas partes dereprodução, porque então terá de se beber hidromel.A tintura de sublimado corrosivo é um remédio seguroe poderoso, com o auxilio do banho a vapor, ele étambém o menos dispendioso e fácil de preparar,mas não deve ser administrado senão por um médicoou um cirurgião ben instruído. Comecei a utilizar estasolução em 1743 e, a meu pedido, o sábio Sr.Schreiber usou-a no hospital de terra. Eu dava umadose de uma onça e algumas vezes de duas aosdoentes, antes que entrassem no banho de vapor, eeles iam lá duas vezes por dia e no espaço de trêssemanas, alguns dias a mais ou a menos, ficavamcurados. Poucos anos depois apercebi-me que oefeito deste remédio era mais rápido e mais salutare mesmo mais agradável para os doentes quandose lho dava logo que eles saíam do banho, e erammetidos na cama num quarto aquecido. O doenteentão suava abundantemente: dava-se-lhe de beberenquanto suava, decocção de salsaparrilha ou debardana bastante forte. Desde então a experiênciaconfirmou a minha tentativa. Fui talvez o primeiro acompor esta tintura, como segue:

Sublimati corrosivi, gr. vjSpiritus vini communis Rutheni vulgo Gbettok, 3xij.Digerantur per xxx horas calore arenae,saepùs agitando,Servetur ad usum

Infelizmente verificou-se que esta tintura, semauxilio dos banhos de vapor, não produz os efeitosque verifiquei, e que muitas vezes matou os doentesquando se negligenciou fazê-los suar.

Como a doença venérea está tão espalhada e étão difícil de curar, é necessário indicar os meios paraa vencer, e mencionar os alimentos e bebidas quenão impedem o efeito dos remédios que se usarão

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para a combater.Em geral, o leite é contrário à cura do vírus que

provoca a doença venérea, é preciso no entantodistinguir os diferente estados desta doença. Quandoo doente sinta ardores, dores, tenha inchaço, tumoresnos orgãos genitais com úlceras, com escoamentodas matéria purolentas, corroentes, esbranquiçadas,amarelas, verdes, sanguinolentas, que atormentamo doente, pode fazer-se uso do leite cortado commetade ou um terço de água; pode também escolher--se como bebida morna ou fria soro de leite, ou leitedesengordurado; mas logo que este estadoinflamatório esteja curado com o auxilio dos banhosde vapor, é preciso abster-se de leite como alimento,e como bebida ainda que preparado como acabámosde indicar.

Para aliviar as dores, ardores e calores das partesgenitais inflamadas ou ulceradas, podem usar-secataplasmas feitas com farinha de aveia; o leite e asgemas de ovo que se aplicarão sobre as partesdoentes ao sair do banho de vapor; quando se estádeitado nu no banho, não se devem usar cataplasmasnem outros remédios externos, senão o próprio vapordo banho.

Ao terminar este artigo observarei que aqueles queestão atacados da doença venérea, com chagasescorbúticas, desinterias, cancros, numa palavra,doenças cuja podridão e mau cheiro sãoinsuportáveis, devem banhar-se em banhos queapenas serão destinados a este uso, ou em banhosparticulares, se os seus recursos lhes permitem tê--los; que quando eles tiverem saído será necessáriopurificar o banho lançando sobre as pedrasincandescentes, vinagre, quer puro, quer misturadocom água, ou uma pequena quantidade de pólvora,distribuída em diferentes lugares e à qual se deitaráfogo.

Talvez que em tempo de peste ou de doençasepidémicas contagiosas, se se purificassem todosos dias os banhos com os meios propostos, sepudessem permitir o uso do banho de vapor comutilidade, ainda que durante essas calamidades eleseja proibido na contigência de aumentar o contágio;mas é necessário que a experiência decida, antesde aventurar este remédio em tempos de peste.

Os bons efeitos produzidos pelobanho de vapor na varíola, * a pleurisia, etc.

As varíolas que tratei em Moscovo, emPetersburgo, no governo de Verónis e na Ucrânia,não foram mortais, excepto numa jovem mulherKalmuque e um jovem da mesma nação.

Não sei nas províncias que bordejam a Tartária elaé funesta para os habitantes. Soube de um Senhorque tinha as suas terras no Reino de Cazan, que oscamponeses tomavam pelo nariz pó feito com crosta

secas de varíolas e que em seguida se metiam nobanho de vapor para suarem durante perto de 3 dias,e que no meio desta operação eles se livravam davaríola. Não duvido da veracidade deste relato,sabendo que esta espécie de inoculação é conhecidana China sem o apoio do banho.

Talvez que os Tártaros da Mongólia e Tongous eos súbditos de Cuntaish façam uso da mesmaoperação, e que os habitantes de Casan e de Usadela façam igualmente uso.

Os sinais mais mortíferos que notei na varíola sãouma espécie de dor de garganta dolorosissima queimpede totalmente o doente de engolir, hemorragiasuterinas nas raparigas ou mulheres no início destadoença e urinas sanguinolentas nos homens, comfebre alta, dores por todo o corpo e sobretudo nacabeça. Estou convencido que, se estes doentesutilizassem o banho de vapor duas ou 3 vezes pordia, logo que são obrigados a ficar na cama, nãocairiam em tão terríveis sintomas, principalmente sea água lançada sobre as pedras incandescentesfôsse misturada com vinagre. Penso que a dor degarganta e a dificuldade em engolir nesta doença sepoderia prevenir ou dissipar-se pelo mesmo meio, eaplicando uma cataplasma feita de sementes demostarda moídas, de farinha e de óleo de linhaça;por-se-ia esta cataplasma à volta do pescoço; e logoque o doente sentisse um ardor incómodo, tirar-se--lhe-ia, e ele seria então exposto ao banho de vaporonde este ardor em breve se dissiparia.

Pode aplicar-se esta mesma cataplasma na dorde peito nas pleuresias com febre e dificuldade derespirar, e agir da mesma forma, indo ao banho devapor três vezes em 24 horas, e lá ficando pelomenos hora e meia, ou duas horas, se a fraqueza ouperda de forças a isso se não oposerem. Esta doençaé muito rara na Rússia, e só a vi uma vez em NoureiPaulushka, num oficial Russo que regressava daprovíncia de Bacou, na Pérsia.

Nestas doenças os alimentos devem ser ohidromel, o leite desnatado, o soro de leite, o quazacidulado e adoçado com mel ou açucar. Logo que ainflamação tenha passado, e depois do décimoprimeiro dia, pode animar-se ligeiramente esta bebidacom uma muito pequena quantidade de água--ardente; pode-se também permitir deitar-lhe entãoa Cacha, que é ao mesmo tempo remédio e alimento,e convém singularmente nestas circunstâncias.

A doença conhecida sob o nome de fluor albus émuito comum em vários climas, sobretudo nos paísesfrios e húmidos, em que as mulheres estão sujeitasà supressão das regras. Esta doença é prejudicialpara as mulheres; pode torná-Ias estéreis, e afastardelas os maridos. Tenho a experiência que uma fortedecocção dos extremos dos ramos recentes degiesta picados, tomada na dose de três copos demanhã, durante três semanas ou um mês, tomando

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todas as noites o banho de vapor, e deitando-se elasdepois de ter recebido a água morna sôbre o corpo,curariam esta doença.

Penso que se poderia tentar o uso do banho devapor no tratamento do cancro quer oculto queraberto, tendo o cuidado de ao mesmo tempo utilizarcataplasmas de cenou ras amarelas e, na sua falta,de nabos, que se retirariam ao entrar no banho, afimde que a parte doente ficasse exposta, como o restodo corpo, ao vapor de água quente. Antes de sair dobanho esfregar-se-iam com sabão todos os sítios quenão estivessem doridos. Seria necessário continuarestes remédios durante quatro meses, e não tomardurante todo este tempo nenhum alimento vegetal:ter-se-ia também cuidado, se houvesse úlcera de anão enxugar ao fazer o penso, co receio de ferir acarne viva e fazé-la sangrar, o que não faria senãoaumentar o mal. Não preciso avisar que serianecessário juntar vinagre à água que se lançassesobre as pedras incandescentes, para purificar o ardo quarto.

Proponho o método seguinte para curar ahidrofobia:

É preciso 1° que aquele que teve a infelicidade deser mordido por um animal raivoso: façaimediatamente uso, durante quarenta dias seguidos,duas vezes por dia, do banho de vapor; mas devemisturar-se coma água que se deita sobre as pedrasincandescentes uma segunda parte do vinagre. Nãose deve aplicar pensos nas chagas feitas pelo animasraivoso, senão com panos ensopados numa misturafeita em partes iguais, de água e vinagre. Se o doentetem medo da água, e que nem a possa ver semestremecer, é preciso que entre no banho todas asseis horas, e que lá fique tanto quanto puder suportá--lo, sem desmaiar. Não se deve aplicar nenhumafricção no corpo, mas sómente deitar sobre o doenteuma grande quantidade de água morna logo que elesaia do banho, e em seguida levá-lo para a cama.

Durante todo o tratamento o doente deve evitar osprazeres do amor, os licores espirituosos, as paixõesvines, é preciso obrigá-lo a habituar um lugar obscuro.A alimentação será gruan (massa de flor de farinha)com caldo, muito pouca carne ou peixe leve, e quenão seja salgado. A bebida será acidulada; se odoente estiver fraco, poder-se-á animá-lo com umapequena quantidade de água-ardente. Tendoconsiderado as virtudes dos remédios que pus emuso para a cura desta doença, e tendo combinadoos seus efeitos, acho aqueles que acabo de propormais eficazes e mais fáceis de executar.

Sobre os efeitos destes banhos, a usarem-nossegundo as regras da medicina, e a redigirem porescrito, sob a forma de jornais, todas as suasobservações, para instruirem a posteridade, e

tornarem-se úteis à sociedade.

Da construção do banho de vapor:

Se me contentasse em falar só da excelência dosbanhos da Rússia para a conservação da saúde e acura de várias doenças, sem falar da construçãodestes banhos, tanto públicos como particulares edos banhos construidos expressamente para aconservação da saúde e dos que são construidospara a cura das doenças, o meu trabalho tornar-se--ia inútil:

Como só ao Estado compete fazer a despesanecessária para a construção destes banhos, e paraa sua manutenção, seria necessário que houvesseum tribunal de polícia espalhado por todo o reino parafazer a sua inspecção, e para lhes impor osregulamentos necessários.

A água e a lenha são as coisas mais precisas parao funcionamento dos banhos; para constuír um banhopúblico é pois necessário escolher o terreno maisconveniente, para ter essas coisas com o menos dedespesa possível tanto quanto as circunstâncias opermitem.

Quando o terreno estiver marcado, será necessárioabrir dois canais paralelos, bastante longos, eprofundos, revestidos de pedras ou tijolos, para umescoamentos das águas que serviram à utilizaçãodo banho e das imundícies. Enquanto se fizer estaobra tão necessária para a salubridade do banho,poderão construir-se as suas fundações ou de pedrasou de tijolos, com a altura de cinco a seis pés fora daterra; estas fundações devem ser construídas entreos dois canais que acabamos de marcar, os quaisdeverão terminar em qualquer ribeiro ou pelo menosnalgum declive do terreno e afastado do banho.

O primeiro de cada lado deste balneário deve serde dezasseis até dezoito pés, medida inglesa; aaltura, desde o soalho até ao tecto deve ser de dezaté onze pés, mesma medida.

Seria bastante se lá se colocassem duas banquetasem vez das três que por hábito se costumam pôr emvolta da capacidade do banho. O espaço restantedeve sempre ser aberto, e nunca fechado ouescondido pelos degraus que servem para aspessoas se deitarem sobre as banquetas. Énecessário que o vapor e o ar encerrados nacapacidade deste edifício sejam igualmenteaquecidos por toda a parte.

Estas banquetas devem ter pelo menos três ouquatro pés, afastadas do forno que estará semprecolocado à esquerda quando se entra, o centroencostado à muralha . Não determino as dimensõesdo forno nem da sua arcada nem das aberturas atéà grande canalização. A capacidade do banhodetermina as suas proporções, que qualquerarquitecto pode facilmente determinar; porque “a prin-

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cipal finalidade deste forno é que ele sejasuficientemente espaçoso, e bastante bem situadopara que o vapor, ardente que se levanta das pedrasvermelhas se expanda num instante em toda acapacidade do banho e que aí circule livremente. Osoalho deste edifício deve ser inclinado de modo aque a água que se deita sobre a cabeça dos que sebanham, possa ir ter a um pequeno canal praticadonum dos lados do banho e que as águas caiam noaqueduto que se contruíu; o que contribuirá para aconservação, a limpeza e a salubridade daedifícação.

Querer que tudo seja feito na maior ordem é amesma coisa que reduzirmo-nos a nada querer fazer.Seria de desejar que os banhos públicos fossemconstruidos de pedras talhadas, ou de tijolos bemcozidos. Para esta construção, gastar-se-ia menosmadeira; os banhos conservariam o calor o dobrodo tempo que aqueles que são construidos commadeira; durariam mais de um século, e os demadeira não podem durar além de dez a doze anos:estes apodrecem fácilmente devido à humidade eao calor; para mais perderem calor pelos ângulos epelas fendas que ficam sempre entre as tábuas,apesar do musgo e dos revestimentos que lá sepõem.

Não se pode duvidar destes factos; mas seconsiderarmos a enorme despesa que serianecessário fazer se se construíssem banhossemelhantes em todas as cidades e vilas de umEstado, e se tivermos em conta que os habitantesdas diferentes aldeias não poderiam aguentar essasdespesas, então tentar-se-iam em construir osbanhos públicos com boas madeiras, com excepçãodas fundações, tendo o cuidado de o ar exterior nãopudesse nunca entrar pela porta, que deve serdefendida por uma outra porta, e que ambas devemfechar tão exactamente que o calor do banho nãopossa nunca evaporar-se, e se conserve o maistempo possível.

As três principais câmaras que compunham osbanhos Gregos e Romanos, e que constituem nosnossos dias os banhos Turcos e os da Pérsia, estãoreduzidas a uma só na maioria dos banhos Russos:só nalguns banhos particulares há ao lado um quartoaquecido por um forno, e no qual existem dois leitos.

Em razão do grande número de pessoas que vãoaos banhos públicos, parece-me necessário quecada um desses banhos seja constituído por trêsdivisões separadas umas das outras. Os quequizessem banhar-se entrariam numa grandedivisão, na qual se despiriam, tendo o cuidado decobrirem as partes genitais com uma espécie de telaou de pano, de três pontas, como fazem os Turcoseos Persas: desta primeira câmara entrariam nobanho própriamente dito, para aí suarem, se fazeremfriccionar, etc.: feita esta operação, sairiam pela

mesma porta pela qual tinham entrado, parapassarem a uma treceira câmara por uma galeriacoberta construída entre os dois edifícios, onde selavariam com água quente ou fria, voltando depois aentrar na primeira divisão por uma outra galeriacoberta, para aí retomarem o seu vestuário. Osbanhos particulares poderão ser constituídos por umaúnica divisão; mas a decência e os bons costumes,bem como a saúde, exigem que haja um maiornúmero de divisões nos banhos públicos.

Não entraremos aqui nas leis que a policia e areligião devem fazer observar, para a conservaçãoda decência e dos bons costumes.

O que acabamos de dizer diz apenas respeito aosbanhos destinados à conservação da saúde, mas aconstrução dos banhos destinados a curar asdoenças deve ser diferente.

É muitas vezes necessário que um doente entreno banho duas ou três vezes em 24 horas. Não pensoque um banho construído de madeira possaconservar o calor e o vapor necessários, além deseis a oito horas: são absolutamente necessáriaspara o aquecer e pô-lo em estado de funcionamento,três a quatro horas, apesar da habilidade e a vigilânciado banheiro.

Se houver trinta doentes que entrem no banho duasvezes por dia, acontecerá que um só banho não serásuficiente para a sua cura: na sua maior parte serãoforçados a esperar quatro ou cinco horas antes de láentrarem, e falharão a cura.

Será necessário construir nos hospitais banhoscujo forno será colocado no meio da sala do banho:desta forma haverá um lado a mais, no qual secolocarão banquetas, e um maior número de doentespoderá tomar o banho ao mesmo tempo.

É preciso notar que, desde a primeira trave querecebe o conglemerado de pedras, até àscanalisações, há uma porta que se tem o cuidado defechar, na qual se fez um corte, para tornar visível astrês arcadas e os canos que servem de condutaspara o fumo.

Poderia construir-se a sala de banhos de tijoloscimentados com o cimento do Senhor Loriot. Estecimento é duro como pedra, faz fogo com o briquet,resiste à água. O soalho superior seria em abóbadachata, segundo o método do conde d’Espice, utilizadano palácio de chalvet, em Tolosa, no palácio de Bour-bon, em Paris e em algumas Igrejas.

Os tijolos de abóbada chata seriam cimentadoscom o cimento do Sr. Loriot, e se se desejasse,poderia montar-se uma ventosa para a entrada doar, que se abriria ou fecharia à vontade. Poderiaconstruir-se o soalho superior em forma semi--esférica cimentado e construído com a arcada chata;desta forma, e não se empregando carpintaria, porconsequência nenhum perigo de incêndio, o edifícioseria incombustível.

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Deve existir uma inclinação insensível no sobradoinferior, o qual será pavimentado com grandes lajes,para provocar o escoamento das águas, e um esgôtoque se tapará à vontade. As barras de ferro dafornalha, que formam a grelha, devem ser de duaspolegadas de diâmetro, mas as que sustentam oconglemerado de pedras e cimento, que é a espéciemais dura de pedra e o mais pesado dos arredoresde Paris, devem ter quatro a seis polegadas dediâmetro, porque elas ficam expostas à acçãoviolenta do fogo e à reacção do calor das pedras. Oforno deve ser construído com tijolos, ligados comargila vermelha ou com terra para forno. As calotesou arcadas devem ser construídas com a terra coma qual se fabricam fornos de reflexão. O forno deveser quadrado e com três pés e meio. Se o edifício éde tijolo, em vez de madeira, deverão utilizar-se lajesde faiança à moda holandesa. com o cimento do Sr.Loriot. O soalho inferior será de lajes de pedras pretase brancas.

O soalho superior será branqueado com o cimentodo Sr. Loriot, o qual resiste à água quente e à águafria, assim como se fez em Menards, em casa do Sr.de Marigny. Será bom colocar termómetros ehigrómetros em cada canto assim como noscorredores, no quarto de cama e no exterior. Aspequenas janelas da sala de banho serão duplas comgrandes vidros espessos.

A primeira vez que se utilizassem os banhos, seriabom termos um médico junto a nós.

N.P. Na Rússia, as salas dos banhos de vapor são demadeira; em França, este tipo de edificação não é ha-bitual. É preciso poupar o calor pela arte e poupar amadeira.

NOTAS

a) Os caldos dos Russos, chamados cdscha sãode farinha de aveia ou de trigo negro fervido em águacom alguns grãos de sal. Quando se está de saúde,comem-se estas farinhas fervidas com carne oupeixe. Também se usam à moda de caldo.

b) Todos os habitantes da Rússia usam uma bebidachamada quaz composta de farinha de centeio oude cevada fermentada; para impedir que ela azedeem pouco tempo, acrescenta-se-lhe a planta inteiraconhecida pelo nome de menta e na Rússia miata. Éuma bebida agradável e amiga do estômago: nuncaproibi o seu uso e não lhe reconheci nenhummalefício nas febres, quando usada com moderação.Se os doentes atacados de febre, com sede, doresde cabeça ou de barriga, ou de qualquer outra parte,pediam de beber, quer estivessem no banho ou nacama, eu permitia-lha; acrescentava-lhe mesmo umpouco de vinagre ou de mel, para tornar esta bebidaacidulada ou doce, e ao mesmo tempo maisagradável.

c) Tanto quanto possível receitava esta bebidamorna, e cerca do 5°- ou 7°- dia fazia juntar-lhe umamuito pequena quantidade de água-ardente decereais.

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O SENTIMENTO DA MORTE NOS FINAIS DO SÉCULO XIX NAS NOTICIASNECROLOGICAS DA BEIRA INTERIOR.

MARIA ADELAIDE NETO SALVADO *

Lousa da morte! as lágrimas não podemAmolgar-te a dureza:

Nem mais sobeja do que tristes lágrimas;Que o mais, tu .o roubaste.

Almeida Garrett(Angra, 1821)

“A morte, esse acaso que surge a cadatransformação Ado mundo e a cada salto em frenteda vida”(1), como a definiu Edgar Morin, suscita,consoante as culturas e as épocas, atitudes ecomportamentos radicalmente diferentes.

Sentidas e empolgadas manifestações de dorenraizadas nos rituais pagãos da Antiguidadecaracterizaram, até ao século XIII, o comportamentoperante a Morte no Ocidente Cristão.

Persistentes e prolongados foram os esforços daIgreja primitiva peninsular para arrancar do coraçãodos convertidos à Fé de Cristo as raízes dos antigosrituais pagãos que expressavam a dor e a saudadeprovocadas pela Morte.

O cânon XXII do III Concílio de Toledo(2), celebradoem 589, faz eco dessas proibições. Nele,terminantemente se proíbem, no enterro dosreligiosos, quer os cânticos que era costumecantarem-se aos defuntos, quer as lamentaçõesacompanhadas de pancadas no peito com quefamiliares e servos exprimiam a sua dor durante oscortejoas funebres dos que lhes eram queridos.

Esclarece o cânon que esta proibição se prendecom o facto de se considerarem contrárias, essasantigas e usuais manifestações de dor, à esperançana Ressurreição dos cristãos. E acrescenta: “OSenhor não chorou a Lázaro morto, antes derramoulágrimas por aquele que haveria de ressuscitar paraas misérias desta vida”(3). O único tributo a prestar

* Docente na Escola Superior de Educação deCastelo Branco

aos restos mortais dos cristãos deveriam, pois, sercânticos divinos. Os Bispos deveriam desenvolveresforços de modo a tornarem extensivas estasnormas a todos os cristãos. Sentia-se serconveniente, esclarece-se no cânon que “em todo omundo se enterrem os corpos dos defuntos cristãosde igual modo”(4).

No entanto, em toda a Europa Ocidental os velhosrituais de dor, com maior ou menor intensidade,continuaram prática corrente até ao séc.Xlll.

Mas um longo período se lhe sucedeu em que ador se ocultou, se retraiu e ritualizou em secasfórmulas, gerando perante a morte atitudes dumquase frio e distante distanciamento.

A onda fervilhante do romantismo, mergulhando afundo na Idade-Média, fez ressurgir vibrantementevalores e comportamentos longínquos dessa épocaquase mítica. E deste modo o século XIX devolveuao ritual da Morte não apenas as antigas e sentidasmanifestações da Dor do passado, mas envolveu-onuma nova roupagem marcada por um dramatismomais violento e profundo traduzido fundamentalmentenuma multiplicidade de manifestações de Dor quechoravam, sobretudo, a separação que a Mortesempre arrasta consigo. Reflectindo como que umaintolerância nova, uma rejeição quase feroz peranteessa inexorável separação, estes comportamentosrevelam, no entanto, uma atitude de certo modoparadoxal. Os poetas do século XIX cantaram a Mortecomo em nenhuma outra época.

A Morte atrai e fascina. Fala-se da beleza com queela marca os que consigo leva. Fala-se da paz quese alcança sob as suas asas, mas fala-se, dum modo

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igualmente pertinente, da “negra ideia”(5) da Morte,da dor sem nome em que ela mergulha o coraçãodos homens.

Entre os muitos poetas que, em Portugal e duranteo século XIX, cantaram a Morte foi talvez Soares dePassos aquele em cujos poemas transparecem, maisvincadamente, todos os multifacetados sentimentosque ela pode inspirar.

Assim. no poema “Últimos momentos deAlbuquerque”, escreveu:

“A morte... a morte... que anseio!Sinto um gelo sepulcral...Abre-me, ó terra, o teu seio.Quero o repouso final...”(6)

Se a Morte é aqui cantada como porto de paz, nopoema “Infância e Morte”(7). onde uma filha exprimea saudade pela sua Mãe, é a amargura e o desesperopela separação que são belamente expressos:

“A nossa janela não mais foi aberta,O fogo apagou-se na cinza do lar.As pombas são tristes, a casa deserta.E as flores da Virgem se vão a murchar”.

Para no poema “Amor e Eternidade” nos surgir apaz triste e tranquila dos cemitérios, os cenários daMorte:

“Oh! Quão saudosa a viração murmuraNo cipreste virenteQue lhes protege as urnas funerárias!E o sol, ao descair lá no ocidente.Quão belo lhes fulguraNas campas solitárias!”(8)

Mas se por um lado a Morte foi, por vezes, umestado que ansiadamente se desejou, por outro,nunca como em nenhum outro século a separaçãoque ela provoca despole tou tão profundas e intensasmanifestações de rejeição. Fosse à cabeceira dequem agonizava, fosse no triste e nostálgico redobrardos sinos anunciando a chegada da Morte paraalguém. fosse na evocação da lembrança de quempartira, a dor e o luto materializavam-se de um modoexcessivo, nas suas múltiplas formas de expressão(lágrimas, gestos. palavras). Inscrições tumulares;monumentos funerários. notícias necrológicas erammeios que perpetuavam essa dor. E os ecos demuitas dores sem nome e sem consolo que feriramcorações que há muito deixaram de bater; ressoamainda bem palpáveis um pouco por todos oscemitérios da Europa Ocidental.

Na verdade, quando nos detemos perante umjazigo ou um monumento funerário do século XIX equando lemos as suas sentidas inscrições, um

estremecimento nos percorre: a dor e o sofrimento,vividos por quem as escreveu e que há muito a mortetambém levou ainda vivamente nos envolvem.

No caso concreto docemitério de CasteloBranco, um pequenomonumento erguido em1850 parece-me serparadigma exemplar.Em dois degraus degranito que a passa gemdo tempo coloriu demanchas de líqueneslevanta-se como que umpequeno altar demármore sobre o qualse ergue uma grandetaça coberta por ummanto de pregasp r i m o r o s a m e n t eesculpidas. Assenta estataça numa base onde sedestaca em relevo uma flor de cardo (alcachofra)-suaúnica decoração. Perpetua este pequeno monumentoa memória da curta vida (apenas três anos) de umrapazinho que viveu aqui em Castelo Branco há 140anos. Nele, uma pungente e simples quadra:

“Anjo de graça e canduraQual flor viveu e passouNão o choreis, esta no Céu,Chorai os Pais que deixou”.

Todo um décor, um cenário cuidadosamentepreparado, ajudava a criar um ambiente solene edramático onde a dor se extravasava.

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Mas a chegada da Morte era, nesta região, tambémcuidadosa e antecipadamente preparada. Ela estavapresente em todos os actos da Vida.

Na sala onde decorrem as sessões destas IIJornadas estão expostos alguns dos testemunhosmateriais, quer do suporte desse cenário, quer dapresença insidiosa da Morte em todos os momentosda Vida.

O belo pano de larga renda que enfeita a mesa erapeça imprescindível em qualquer casa das aldeiasda raia da Beira Baixa, onde, dentro das arcas,aguardava achegada da Morte. Servia ele então paracobrir, transformando-a em altar, uma cómoda ouuma mesa sobre a qual se colocavam um crucifixo eos candeeiros de azeite de metal amarelo (um porcada casa de amigos e vizinhos) que com a suatrémula luz iluminavam todo um cenário de dor. Juntodesse altar improvisado, chorava-se, rezava-se easpergia-se com água benta, por meio de um ramode oliveira, aquele que tinha partido. O desejo da pazna eternidade vegetalizava-se, materializando-se nouso do ramo dessa árvore (símbolo da paz) por meiodo qual as gotas de água-fonte de vida - eramlançadas sobre aquele para quem a vida terrena tinhaterminado.

As toalhas que decoram as paredes (toalhascercadas como se chamam nas aldeias de Malpicado Tejo e Monforte da Beira. donde são provenientes)eram peças imprescindíveis no bragal de qualquernoiva. Em cada bragal duas toalhas cercadasconsideravam-se obrigatórias e destinavam-se umaà noiva. outra ao noivo. Guardadas nas arcas entre

peças de uso quotidiano e rocas de alfazema,aguardavam toda uma vida o seu destino: o deservirem de cobertura ao corpo quando depositadono caixão.

Que pensamentos, que sentimentosexperimentaria uma jovem no tempo, certamentelongo, que demorava a confecção das belas rendasdestas toalhas? Vida ou morte? Alegria ou dor?Temor, aceitação ou angústia?

Mas como se manifestou a atitude de rejeiçãoperante a Morte na região da Beira Interior?

Que formas adquiriram neste interior beirão, isoladoe recôndito, os comportamentos que exprimiam. noséculo XIX, o sentimento da Dor?

Esta comunicação tem como objectivo trazer aovosso conhecimento algumas reflexões suscitadaspela leitura de notícias necrológicas; extraídas doJornal “Estrela da Beira”, que se publicava emAlpedrinha em meados do século XIX. No entanto,estas reflexões são muito pessoais, admitindo que asua fonte possa ser de outro modo interpretada.

Apesar de tudo, penso que estas notíciasconstituem uma amostragem significativa do modocomo certas classes sociais: aqui nesta região,exprimiam o seu luto e a sua dor, pewte odesaparecimento da vida daqueles que amavam.

Algumas respostas às minhas interrogações.penso, pois, ter encontrado.

Senão vejamos.Depois de uma citação de Job (“Fuerunt mihi

lacrima mea panes die ac nocte”- Dia e noite o meupão foram as minhas lágrimas), assim começa umanotícia datada de 1864: “Lágrimas, dores, tribulações,eis o que desde o alvorecer da vida até à meta dosepulcro encontramos na estrada escabrosa destemundo cheio de engano e ilusão”(9). Anunciava estanotícia a morte do pároco de Vale de Lobo, povoaçãoque hoje se chama Vale da Senhora da Póvoa,concelho de Penamacor.

Toda a contradição de sentimentos e atitudesperante a Morte que marcou o século XIX perpassanesta notícia. Por um lado “a vida é uma estradaescabrosa” e a morte afirma-se como a grandelibertadora dum mundo enganador e ilusório: poroutro, é todo um quadro de dor que se descreve nareferência à inconsolável família “envolvida em luto”e nas sentidas e ardentes lágrimas derramadas pelopovo da Benquerença junto à fria campa do seupároco.

Também é de 1864 esta outra notícia que,encimada pela citação “La vie c’est Ia mort”, assimse inicia:

“Uma lágrima de saudade sobre esses palmos deterra que encerram os restos daquele que há tãopouco roubou de entre nós o braço devastador damorte, que tão impassível arrasta ao abismo o pobrede entre as suas mesquinhas palhas, como o

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opulento envolto em damascos e arminhos. Saudadee nada mais”(10).

Anunciava esta notícia a morte do administradordo Conde da Graciosa. Para além de relatar a “fundador que trespassa o peito dos tios e do pai do finado”e a dor “dos corações magoados dos povos dosconcelhos de Idanha-a-Nova e de Penamacor”, oautor da notícia, amigo do finado, enaltece ossocorros prestados pele médico de Idanha-a-Nova,que, embora “hábil”, não conseguiu impedir que “aalma se desprendesse do seu invólucro material”.

Alguns aspectos, penso, deverão ser relevadosnesta notícia. Narrando a morte de um servidorplebeu nobre opulento senhor de terras e de gentesdos concelhos de Idanha-a-Nova e Penamacor, oautor salienta de modo particular as qualidades de“talento” e de virtude do finado, acrescentando queelas reflectem uma nobreza de mais valia que anobreza do sangue. A morte é assim encarada edescrita como a grande niveladora social, na medidaem que o autor afirma arrastar ela ao abismo “tantoo pobre nas suas mesquinhas palhas como oopulento envolto em damascos e arminhos”. Estasconsiderações traduzem, julgo, uma faceta dos novosvalores sociais que os ventos da revolução liberaltrouxeram a esta região.

Uma outra notícia, também de 1864, anunciandoa morte da Baronesa de Proença-a-Velha, éencimada por uma citação de Job (“Sicut Dominoplacuit, ita factum est: sit nomen Domini benedictum”-Como agradar ao Senhor, assim seja feito e sejalouvado o nome do Senhor”), e deste modo começa:“Que ente atingiu a meta da vida di-lo o dobre afinados!... Mas quem será esse ente? Alguém queDeus quis provar neste mundo experimentando-lhea paciência no martírio? ou carregado de anos e dedecepções foi no seio do Senhor achar alívio e paz?Não! o ente que se finou não sucumbiu ao peso dosanos nem dos desgostos( ...).”(11).

Carinhosa mãe no vigor dos anos era a Baronesa,arrancada aos filhos. Talvez por isso, nesta notícia,a Morte é chamada de “terrível parca que em suarobusta mão segura os ténues fios da existência”.

Datada de 8 de Março de 1865 e publicada a 15 deMarço desse mesmo ano, assim se inicia outranotícia:

“No dia 6 de Março deixou de existir a mais linda emimosa flor, que vegetava fresca e louçã nos vastoscampos da humanidade! Um anjo que habitava sobrea terra, abriu suas cândidas asas e qual cisnemavioso se elevou às alturas, seguindo seu voo paraa mansão dos justos”(12). Foi deste modo empolado,misto de barroquismo e poesia, que um professorde Segura iniciou a notícia da morte duma sua alunade 8 anos. Apurada forma de demonstração da pro-funda dor provocada pela separação da morte, pensoconstituir esta notícia, pois essa separação é aqui

comparada a um “acre fel no coração dos queamavam”. A uma submersão na “mais cruel e am-arga dor” é assemelhado o estado dos pais e dequantos a conheciam, e isto apesar de na notíciatambém se afirmar ter sido a menina “arrebatada aum mundo de corrupção e crime. Ela foi gozarperante o trono do Altíssimo delícias inefáveis”.

Vejamos ainda uma outra notícia:“Chamou-a Deus e ela fugiu-nos!... não para

sempre porque além túmulo há uma vida também.Quebrou-se o barro, e sua alma voou pura aos pés

dc Eterno! A matéria voltou à matéria, o pó ao pó!mas a luz fo procurar outra luz(...).

Fugiu-nos! ...perdemo-la... por algum tempo, só poralgum tempo!(13).

Assim começa o relato da morte duma senhora danobreza rural do Fundão, escondendo-se o seu autorsob as iniciais J.G..

De salientar nesta notícia, datada de Maio de 1865,que nem a acentuada esperança na vida além--túmulo, nem a convicção da brevidade da separaçãoprovocada pela Morte tão manifestamente expressa(“... perdemo-la por algum tempo, só por algumtempo”) impedem o autor de revelar publicamente asua dor: “Pungidos de mágoa e de saudade,dobrando os joelhos e nos inclinando sobre as suascinzas”. Foi deste modo sofrido que o autordescreveu o pedido de intercessão junto de Deuspor parte da Senhora de quem a morte o separou.

E mais uma outra notícia:“Que pode o homem para o homem que já não

existe?Nada senão um frio epitáfio.A pedra guarda a memória por mais tempo que

coração, e é por isso que se grava um nome sobreun sepulcro”(14).

Principia assim a notícia da morte duma meninade 14 anos da nobreza albicastrense, ocorrida aquiem Castelo Branco nos começos de Novembro de1864. Escreveu-a de Lisboa um seu primo que apublica no “Jornal de Alpedrinha”:

“Os baldados socorros da medicina” para aarrancar da Morte, o cuidado dos pais na educaçãoda jovem como forma de lhe legarem um patrimóniocondigno à sua condição social, o êxito nos estudose a sua “marcada inclinação par a música”,prenunciadores duma vida que se adivinhava felizperpassam pungentemente por esta notícia. “A pedraguarda a memória por mais tempo que o coração”,escreveu o primo talvez conhecedor do papel dotempo desvanecedor da lembrança dos que partiramcedo, daqueles para quem vida mais não foi do queum punhado de efémeras esperanças. Geralmente“sentida e chorada”, afirma-se, foi a morte da jovem,e acrescenta-se: “Sirva ao menos isto de consolaçãoà sua família”. Lágrimas, manifestações de dor comoconsolo da separação para os que ficam, reflectem

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comportamentos e atitudes característicos dumséculo ainda ber próximo de nós.

Marcado sabor romântico possuem duas notíciasque relatam a mesma morte: a dum jovem de Alcainsque estudava Direito em Coimbra pelo ano de 1865e que, aos 24 anos, foi vitima duma “apoplexia”. Umadessas notícias, datada do Louriçal do Campo,contém uma dupla interpelação: à Morte e a Deus.Nela se lê: “Ah morte tirana! tirana morte! que tãocruel e desapiedadamente ergueste teu gigante erobusto braço para brandires tuas mortíferas setascontra um inocente jovem na primavera da sua vida(...). Ah meu Deus! Quanto são árduos e difíceis deperscrutar vossos desígnios!!! ...(15).

A outra, datada da Guarda, foi escrita por um jovemamigo, também de Alcains, que estudava nessacidade e assim começa: “Para que tão triste lidar?Para que tão sérios cuidados sobre esta precária vidase ela foge - velut umbra? O que ontem era bonina efrescor, hoje são ramos de fúnebre e murcho cipreste,caídos sobre mais uma campa, que há pouco sefechou!!!(...). Venho chorar sobre tua campa, amigo,venho desfolhar sobre ela o resto de uma saudadeque alguém primeiro do que eu começou adesfolhar!!!” (16). Quer uma quer outra destas notíciasse iniciam com uma citação do livro de Job: Aprimeira:” Miseremini mei, miseremini mei, saltem vosamici mei, quia menus Domini teligit me”-Compadecei-vos de mim, compadecei-vos de mim,ao menos vós que sois meus amigos, porque a mãodo Senhor me feriu”; a citação da segunda notíciatem um teor completamente diferente: “Quid esthonro, quia magnificas eum?-Que coisa é o homempara que o engrandeças? Se a consciência daefemeridade ressalta fortemente na segunda dasnotícias é também nela que se patenteia a saudadeda separação, a rejeição profunda da situação que amorte traz sempre, sempre consigo. Pormenorescheios de saudade por ela perpassam: recordam-seos “doces trabalhos do estudo” e o alegre retorno aAlcains. “Era chegado o tempo de nos reunirmos àsnossas queridas famílias e ali gozarmos de alegresfolguedos, eu porém regressarei só... “- escreveu ojovem amigo.

Datada de Seia e encimada por uma citação deJob (“Dies mei breviabuntur, et solam mihi superestsepulcrum”-Os meus dias se abreviam e só me restao sepulcro), inicia-se a notícia da morte dum membroda nobreza albicastrense do modo que se segue:“Mais um varão ilustre, desceu à triste e geladamansão do sepulcro; a morte no seu voo continuoroçou-lhe na fronte com suas negras asas,comunicou-lhe seu hálito pestilento, e com sua durae implacável foice cortou-lhe os fios da sua existênciapreciosa, e agora misturado no pó dos túmulossomente dele nos resta a memória. Oh! mundoquanto são falsas e mentirosas tuas ilusões, e quanto

é curta e limitada tua duração?!...” (17).

Mais uma vez o lamento pela efemeridade da vidae a consciência da precaridade e ilusão das coisasdo mundo que ressaltam como grito de angústianesta notícia datada de Abril de 1865. Escreveu-aum amigo do finado como forma de pagar à suamemória o “tributo de homenagem e respeito” quelhe devia.

As circunstancias da morte, “aguda e prolongadadoença”, a ineficácia dos esforços dos “hábeisfacultativos para lhe dilatarem a vida” (pois,esclarece-se,” a areia da ampulheta fatal estavaesgotada”), a aceitação resignada da morte por partedaquele que partia - são aspectos que ressaltam.Mas o relato mais pormenorizado é reservado àdescrição da “pungente e acerba dor pela perda doesposo modelo, do pai extremoso, do amigo dedicadoe sincero”.

Datada de Idanha-a-Nova a 3 de Abril de 1865 eencimada com a citação: “Sat cuique sua dies”- Cadaum tem marcada a sua hora fatal, é este o começoda notícia da morte dum nobre de Idanha-a-Nova:“São 5 horas da manhã e já o dobre dos sinos anunciaaos-habitantes desta vila d’Idanha, que mais umd’entre eles foi riscado do número dos vivos; (...)tocou a sua vez, e chegou o dia de pagar o tributoirrevogável imposto a todo o vivente; o povo corre àcapela da casa do ilustre finado e ali se mostra umféretro que contém os seus restos mortais, porque asua alma saiu de entre o véu da humanidade (...)”(18).Escrita por um amigo de infância, todas as alegriase vicissitudes duma vida que sempre decorreu nomeio da riqueza e opulência são focadas nesta noticiamuito longa. É a morte da sua primeira esposavitimada de tísica pulmonar que na esperança de curafoi terminar os seus dias na ilha da Madeira; é o seusegundo casamento com uma jovem fidalga; são osfaustosos esponsais da sua única filha, nascida doprimeiro casamento, com o irmão da sua segundamulher; são os esforços dos médicos para oarrancarem à morte, esforços baldados que assimsão descritos: “medicina a quem a morte se impôs edisse:- Sat cuique sua dies!!!- Cada dia traz a cadaum o que chega!!!”

No entanto, é o perfil ideológico do finado que maismarcadamente se ressalta: “liberal da família, liberaldesde o berço (...) foi sempre um cidadão conspícuo,probo, e honrado, um cidadão prestante, valioso ebenfazejo”, escreveu o amigo. E a dor, a dor pungenteda sua filha e da sua mulher que sentidamentechoraram a sua morte.

Dois aspectos convém desde já sublinhar. Oprimeiro refere-se ao facto de as notícias apenasdizerem respeito a pessoas oriundas dedeterminados estratos sociais. Padres, nobres,professores, estudantes- eram esses que tornavampública nas páginas dos jornais a sua dor e o seu

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sofrimento. O outro diz respeito ao seguinte: emborarecorrendo a uma linguagem de sabormarcadamente ultraromântico, as notíciasnecrológicas do século XIX publicadas aqui na nossaregião estão longe, penso, de obedecerem a clichésuniformes como é característico das notícias desteséculo XX. Em cada uma delas ressalta uma notaindividualizante que se adapta ou à pessoa ou àcircunstância da morte que se relata.

A morte ora é descrita como a grande niveladorasocial (como aconteceu na notícia referente aoadministrador do Conde da Graciosa), ora comoterrível Parca no caso da jovem Baronesa deProença-a-Velha. Tanto se fala num cisne maviosoque se elevou nos céus quando é relatada a morteda menina de Segura, como é a efemeridade da vidao aspecto mais evidenciado como na notícia referenteao jovem estudante de Alcains e na do nobrealbicastrense datada de Seia. Fala-se em quebra dobarro e na procura da luz na notícia da senhora doFundão, mas para a efémera vida da menina nobrealbicastrense acentua-se que é a pedra que guardaráa sua memória mais tempo que o coração.

As citações latinas de algumas das notícias, todasretiradas do Livro de Job, foram sabiamenteescolhidas pois cada uma se adapta com pungenteharmonia às circunstân cias da morte ou àpersonalidade e qualidades, que se desejavam pôrem relevo, daqueles a que as notícias se referem.

Lágrimas como pão de cada dia no caso do párocode Vale de Lobo;resignação à vontade de Deus:“como agradar ao Senhor, assim seja feito” na morteda Baronesa de Proença-a-Velha - jovem mãearrebatada cedo pela Morte; apelo aos amigos paraque o chorem porque “fui ferido pela mão do Senhor”como acontece na primeira notícia do jovem deAlcains; ou a eterna interrogação acerca daefemeridade da vida: “Que coisa é o Homem paraque o engrandeças?”-que surge na segunda notícia,relativa a esse mesmo jovem, onde a angústia pelabrevidade da vida tão pungentemente é manifesta.Aceitação plena da morte para quem foi vítima deprolongada doença; “Os meus dias se abreviam, sóme resta o sepulcro”, na notícia datada de Seia;apreensão resignada pela chegada de uma morteinesperada como aconteceu na notícia do nobre deIdanha-a-Nova cuja citação recorda que “cada umtem marcada a sua hora fatal”.

Reservei para o fim a mais longa notícia queencontrei, pois preenche três compactas colunas dapágina dum jornal de formato A3. Escrita nosprimeiros dias de Dezembro de 1864, reporta-se auma morte ocorrida aqui em Castelo Branco em Abrildesse ano, mas que seria publicada só em Janeirode 1865.

As razões desse desfasamento temporal justifica--as o seu autor: falta de serenidade de espírito para

buscar frases com que “possa exprimir a sua gratidãoe pungentíssima mágoa”, turvação imensa que sólhe permitia “exalar do peito sentidíssimos ais egemidos”, “lágrimas que a cada passo interrompiamum desordenado discurso”- são as razões apontadas.

Mais do que participação duma morte ou elogiofúnebre, penso ser esta notícia uma sentidamanifestação pública da dor de alguém a quem amorte separou de um ser muito amado e ummagnífico exemplo das atitudes e comportamentosque marcaram uma época.

Abrindo com uma citação do Salmo 40 (“Beatusqui intelligit super egenum, et pauperem; in die malaliberabit eum Dominus”- Bem aventurado o que cuidasobre o necessitado e o pobre, o Senhor o livrará nodia mau”) e com duas quadras duma paráfrase aesse mesmo Salmo da autoria da Marquesa deAlorna:

“Quão feliz é quem piedosoCuida de um pobre indigenteSe o vê num leito de doresE lhe adoça o mal que sente.Nos dias maus, se ele sofreO senhor vem consolá-loE do seio das angústiasCompassivo liberta-lo!!”(19) - em nada este recurso

literário retira a esta notícia necrológica a suapungente autenticidade. Nem a linguagem rebuscadadum mundo que há muito morreu, nem as mutaçõesvertiginosas dos longos 126 anos que sobre elapassaram, desvaneceram as marcas duma“amargurada soledade” que dela se desprendem. Étoda a trajectória da vida duma rapariga que casouaos 16 anos e se tornou companheira inseparáveldum homem que foi Juiz de Fora na Guarda,Governador Civil em Viseu e que os ventos darevolução liberal empurraram uns tempos comoemigrante para Espanha. É a vida quotidiana dumamãe de família duma classe nobre aqui em CasteloBranco, nos meados do século passado, quetransparece vivamente nesta noticia. São as suasidas diárias à Igreja “por mais que chovesse, por maisfria que corresse a estação”; são os consolos quedispensava “aos tristes e aos aflitos”, é a sua ternasolicitude à cabeceira dos filhos doentes; é asufocação da sua dor aquando da morte de um filho,para melhor confortar a dor do seu marido. E é a suamorte rodeada pelos familiares; é o último beijo comque, já moribunda e sem fala, se despediu do netoque mais amava. É o seu enterro aqui em CasteloBranco na mesma sepultura do filho que a tinhaprecedido na morte. “Pareceu de razão - relata anotícia - que se confundissem no mesmo jazigo osossos de dois entes, cujos espíritos tão unidos econformes viveram cá na terra”. Estecomportamento, traduzido na reunião dos mortos damesma família numa só sepultura, concretiza um dos

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aspectos individualizantes da nova atitude perante amorte que o século XIX trouxe consigo. É uma modaque se estende por todas as classes sociaisreveladora de dois sentimentos que marcaram asociedade deste século. Por um lado, esta modaexprime a tentativa de fazer perdurar para além damorte os laços de afecto que ligavam os membrosde uma família. A família unida na vida deveriacontinuar indissoluvelmente unida na morte.(20)

Por outro lado, esta moda traduz o papel deverdadeira casa de família que o túmulo passa aassumir numa sociedade que, estreitadas as relaçõescidade-campo, se torna marcadamente móvel, nummundo que numa mutação rápida via desaparecerlaços e valores.

Mas é a última parte desta longa noticia que, quantoa mim, se torna numa manifestação pública deamargura e de saudade. O discurso muda de tom,torna-se um pouco desconexo e é dirigindo-se àesposa falecida, como se ela o pudesse ler ou ouvir,que o autor da notícia aviva uma a uma asrecordações da sua longa vida em comum. E terminadeste modo:”( ...) era para nós ambos uma alegriasempre nova o sairmos de braço dado à face do sol,em plena rua, ambos sós na presença de toda agente: essa deliciosa situação que fantasiou afecunda e tão amena imaginação de um dos maiorespoetas do século, realizou-se entre mim e a minhaadorada esposa!!! mas acabou, como tudo acabano mundo, era muita ventura na terra(...)”

Que de outro modo mais amargamente sentido sepoderia chorar a felicidade perdida? Que de outromodo mais belo e profundamente triste se poderiaexprimir a dor, a saudade e a separação causadapela morte?

NOTAS

(1) Morin, Edgar, O Homem e a Morte, Lisboa,Publicações Europa América, 1970

(2) Vives, José, Concílios Visigóticos y HispanoRomanos, Barcelona, Consejo Superior deInvestigaciones Cientificas, 1963, p. 132

(3) Vives, ob. cit., p. 133(4) Vives, ob. cit., p. 133(5) Soares dos Passos, A.A., Poesias, Porto, Cruz

Coutinho Editora, 1890, p. 80(6) Soares dos Passos, ob. cit., p.63(7) Soares dos Passos, ob. cit., p.67(8) Soares dos Passos, ob. cit., p.78(9) Estrela da Beira, n° 7, 12 de Outubro de 1864(10) Estrela da Beira, n°- 5, 28 de Setembro de 1864(11) Estrela da Beira, n°- 2, 7 de Setembro de 1864(12) Estrela da Beira, n°- 31, 15 de Março de 1865(13) Estrela da Beira, n°- 55, 31 de Maio de 1865(14) Estrela da Beira, n°- 15, 7 de Dezembro de 1864(15) Estrela da Beira, n°- 50, 20 de Maio de 1865(16) Estrela da Beira, n°- 51, 24 de Maio de 1865(17) Estrela da Beira, n°- 45, 3 de Maio de 1865(18) Estrela da Beira, n°- 39, 12 de Abril de 1865(19) Estrela da Beira, n°- 22, 25 de Janeiro de 1865(20) No jazigo n°- 3 do cemitério de Vila Franca de Ara

uma inscrição ilustra de modo evidente este desejo dumaunião familiar por toda a eternidade. Nela se lê:

Da família F.L.Mandado fazer pelo seu chefe J.J. de F.L.Para que o íntimoAmor da FamíliaQue tanto tem unidoOs membrosDestaDurante a VidaAqui os possaReunir também Depois da Morte.

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UM ENSALMO ARCAICO DA RAIA DE RIBA COA. O ENSALMO DA «GIPLÊ» E AORAÇÃO DE «SANTA CILHÊ»

Pinharanda Gomes*

Riba Coa é por ali, a nordeste da raia albicastrense.Na gíria regional distinguimos, lá em cima, duas raçasde gente: os quadrazenhos ou povos do Coa, e oscamponeses, ou povos do Campo. Estão separadospela serra da Malcata, cuja vertente norte serve deencosto à ribeira, a feminina Coa, que, rompendofortes e contrafortes, decidiu correr para o rio do oiro,nele e por ele sendo engulida, junto a Vila Nova deFoz Coa; e cujas entranhas servem de berço àgrandiosa e poética Baságueda, a prenha veia deágua da Malcata, que corre para sul, para o Campo,e que foi, na geografia, na hidrografia e na orografiado século XVII, confundida com a Coa; e cuja vertentesul morre nos plainos da Egitânia, com CasteloBranco ao meio. Do Talefe, ou do ponto mais alto daMalcata, vemos sete concelhos. Os do norte e denordeste e, para sul, desde que há electricidade, oalvo Castelo Branco, à noite.

Riba Coa é um cantão, uma região cultural e étnica.Nunca fomos castelhanos, por sermos portugueses,jamais fomos portugueses, por sermos castelhanos;e jamais houve claro entendimento do que fomos, edo que somos.

Os arcaísmos, a remota idade, prevaleceram ali,sobretudo no Alto Riba Coa, até há pouco. O AltoRiba Coa é este feixe de terra e de serra junto àSerra das Mesas, campo aberto entre Leão e a BeiraInterior, o coração mesmo da Lusitânia. Dizerarcaísmo de Riba Coa é significar um corpo de vivatradição que ainda palpitava nos meados do presenteséculo. Uma cruenta e viçosa medievalidade aindafalante, ainda florescente, ainda companhia de pãomorno e de água fresca. Tudo destruído pelaemigração francesa, nesse pequeno país onde,agora, já não se fala a gíria de Quadrazais, mas sepapagueia o lisbonês - falar típico da Radiotelevisãodita Portuguesa - e se vive em francês de emigrante.

Nesta nossa região, a medicina popular manteve,incólumes, e utilizáveis segundo as circunstâncias eas exigências, os três sistemas médicos da sapiênciae da epistemologia - o sistema mágico, o sistemasacerdotal e o sistema naturalístico. Os três obrigam

a um demorado, denso e extenso inventário -dicionarizado, sistematizado e articulado - que oranão tem jus a efeito, porque nestas Jornadas Médicasda Beira Interior. se trata apenas de trazer uma fru-gal merenda, um breve contributo, um penso.

Trazemos, por isso, e seleccionado do mais vastocontexto dos três sistemas, um exemplo arcaico damedicina popular. É, ele, impuro, porque nãoresguardou o genuíno de qualquer um dos sistemas.Antes, de modo bem diverso, acasalou as trêstradições: mágica, sacerdotal e naturalística. Équanto nos oferece este ensalmo aliás magnífico,popular mas erudito, e de alta escola, do ensalmode benzer a giplê e de Santa Cilhê.

P’RA BENZER A GIPLÊ(Registo oral directo) (1)

Jasus, Jasus, três bezes Jasus,Jasus,três bezes Jasus,É t’atalho o tê mals’é ar, ó sangue, ó poco, ó giplê, ó gepela,ó geplão, ó carnacão, ó néboa, ó neboeiroó cabrito, ó unheiro, ó ramatismo, ó narboso,ó cornemento, ó talhamento, ó dor, ó temor,e ê t’atalho todo o mal que tiberesE é t’atalho e te boto pó mar sagradopa que nem cresças nem remanesçasnem ti mesmo esfaleçase ar e sangue e fogotlim, tim, tim,merreu Noss’Senhor Jasus Cristona cruz por ti.Dois t’o deramtrês to terarão.S. Pedro e S. Paulo,Apóstão do Senhor S. João,cunforme isto é bardade,o Senhor te seque esta infirmidade.Em labor de S. Pedro e S. Paulo,Apóstão do Senhor S. João.Santa Cilhê tinha três filhês.Umê foi à fonte,oitrê foi à misse,outra queimõ-se no fogo da cinzê.* Escritor. Investigador

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Santa Cilhê binhê de RomaJasus Cristo encontrouJasus Cristo a le dixe:-Tu, Santa Cilhê, donde bens?-Eu, Senhor, benho de Roma. -Que mal pacedem lá?c’o espártego do campo e azeite d’olibê.São palabras tuês, minhês e da Birzem Mariê.Em labor de Santa Cilhé que fez a só mãozinhê,Faça também estaSalbé Raínhê.

Reza-se 9 vezes seguidas.

Entre as doenças contempladas pela dermatologia,a giplê designa, na região fronteiriça, não apenas aerisipela, mas outras variedades de infecções da pelee da carne, que apresentem analogia com estadoença. O vocábulo giplê, quadrazenho, pertence àmesma família cudano-leonesa em que se registamvariantes como disipela (asturiano ocidental), gipla(Aldeia da Ponte e Forcalhos), zipla (Vale deEspinho), estas últimas no concelho de Sabugal, eerisipela, forma de notável correcção morfológica,corrente em Alamedilla(2).

O ensalmo destinado à repulsa da giplê é longo,complexo e, se o termo for lícito, policlínico, porqueele não visa tão somente exorcizar a erisipela, mastodo o mal que lhe andar associado.

Ele desenvolve-se a partir de uma dificuldade, ouaporia, expressa num caracter de sub condicione,ou seja: o ensalmo exprime-se em dúvida face aomal, por isso que o diagnóstico está longe do seupropósito. Todo o núcleo, ou todo o elencosintomatológico, é enumerado a partir do termocondicional s’é, quer dizer, se é, porque pode nãoser e, pois, a energia

salutífera do carma não produzir

o efeito desejado, esperado, previsto. Uma claraseriedade deontológica emana deste posicionamentodo ensalmador face ao doente. Ele, ensalmador, nãopromete seja o que for. Procede à invocação dasfontes curativas, - Jasus - ; anuncia o que se propõefazer - é t’atalho o tê mal - com o desejo de conseguiro que se propõe fazer, se o remédio que vai utilizarpossuir eficácia para obter a catarse da fisiológicaimpureza, mas se essa impureza cair, de facto, soba jurisdição médica do teor ensalmódico. Se não cair,decerto que o salmo não produzirá efeito:

No entanto, de modo, implícito, o texto mágico--sacerdotal tende à visão enciclopédica e, porconseguinte, à cura universal, procurando quenenhum mal lhe fuja, ou venha a ficar fora da suaalçada. Começa pela sintomatologia mais evidente -o mal do ar; que pode’ confundir-se com mau olhado,e imerge no mais profundo, o sangue. Regride paraos males visíveis do corpo - o carnicão, ou furúnculo,e exorciza a vista, passível de néboa e de neboeiro,

e, pois, de cataratas e alteração da harmoniasomática por falta de vista. Viaja, noutro sentido, paraàs extremidades do corpo, exorcizando os unheirosou inflamações entre as unhas e os dedos; e bemassim os espíritos malignos que afectam odinamismo somático - o reumatismo, o nervoso e ocornemento, que julgamos ser uma formadeturpadíssima de corrimento, o qual poderá ser umcorrimento interno, provocado por ferida, ou tumornos órgãos internos. Enfim, sobe do corpo para aalma e exorciza a dor e o temor, causas de força quepodem reflectir-se em males do corpo-fenómeno quena moderna psicologia, sobretudo depois de Freude de Jung; se acha altamente comprovado; numaindução à teoria mais clássica de que alguns malesdo corpo são meros retratos exteriores dos invisíveis’males da alma. Enfim, num repto que compromete oensalmo, mas lhe dá o carácter de saberenciclopédico e, pois, de panaceia, ou de remédiopara todos os males, eis que propõe -”é t’atalho todoo mal”.

A complexidade teorética reside, antes de mais,nesta como que contradição entre a seriedade inicial,que se propõe uma aporia condicional, e a seriedadefinal, que se propõe uma visão inteira, só licita àpanaceia. Não há, porém, contradição lógica, porqueo salmo parte da condição em que contempla osparticulares, elevando-se, através destes, para osuniversais. E, não podendo, ou não sabendoenumerar estes, implicita-os na fórmula genérica -todo o mal -, de onde o perfil que ele nos apresenta,de uma gnosiologia por eskaton, isto é, de umaescatologia operativa, que ascende dos particularesaos mediais e, por fim, às segundas causas, em quese reconhecem as primeiras. O método é propíciona teoria do conhecimento, tanto da aristotélica, comoda platónica, em que se propõe o ascenso dofenómeno para o paradigma, ou do tipo para oarquétipo, ou, ainda, do reconhecimento da primeiracausa pela interpretação das segundas causas.

Depois de enumerar as malignas que se propõeexorcizar, o salmo desenvolve-se noutra sequência- o próprio exorcismo; para que o mal se retire, e selance feito pó nas águas do mar, que tudo purificam,de modo a que nem cresça, nem remanesça, ou seja,que morra e não volte mais àquele corpo. Doexorcismo faz parte uma interpolação mágica - ocarma. Neste ensalmo, o carma é incompreensível,tal como noutras fórmulas mágicas e sacerdotais econstitui o coração iniciático, secreto e esotérico dotexto. O carma é a própria oração sacerdotal, apalavra-chave do discurso, também chamadasecreta, e, neste salmo aparece na sequênciaonomatopaica tlim, tim, tim. Estamos altamenteincertos quanto à ortodoxia deste

. carma. É um facto

que ele constitui um átrio para a próxima invocaçãoda trindade de intermediários que vão tirar o mal,

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mas a singeleza da onomatopeia causa-nos algumadúvida, alguma perplexidade, quando se consideraa complexa urdidura do salmo.

E regressamos à complexa urdidura, Ele assentanuma iniciação guemátrica e pitagórica. O primeiroversículo é um real compêndio da Década; com todosos desenvolvimentos simbólicos da aritmosofiapitagórica. Vejamos:

“Jasus, Jasus, três bezes Jasus, Jasus, três bezesJasus”. de onde:

Uníade- Jasus.Díade- Jasus, Jasus,Tríade- Jasus, Jasus, Jasus ( simplificada na

forma didác-tico/mnemónica “ três bezes Jasus”).Tétrade- Jasus, Jasus/ Jasus, JasusA soma da uníade, mais, díade, mais, tríade ,

mais,tedrade igual a década. O esquemaaritmosófico será: 1, mais, 2, mais, 3, mais, 4, iguala 10.

O que me parece, neste caso, da modestaonomatopeia no contexto hierático, é o ter-se dadouma corrupção do texto original e propriamentehierológico, não sendo de repugnar - e deixamos istocomo disputável hipótese - que o carma fosse, notexto iniciático, uma, palavra destinada à expulsãodos espíritos mal-fazejos - mazzikin - prevista, aliás,pela medicina hebraica de obediência mágica(3). Noexorcismo dos espíritos impuros, uma das secretas-mais iniciáticas visava reduzir o espírito maligno aoridículo, fazendo-o desaparecer por vergonha. Ei-lo:”chabriri, briri, siri, iri, ri” - tal como no-la ensina omagistério talmúdico.(4)

A interpolação do intruso tlim, tim, tim, do mesmomodo que, do ponto de vista hierárquico esoteriológico, retira a eficácia à palavra, pode terocorrido por duas causas concomitantes: a) o tratar--se de um ensalmo de cerne judaico-pitagórico e aintrusa onomatopeia ser apenas uma recorrênciapara “encobrir” a sua genealogia; b) o constituir umacorruptela na transmissão e na tradição, sendo o seunúcleo alterado por amnésia sapiencial, ou porimperitura iniciação no esquema litúrgico e no ritocatártico.

Aliás, o ensalmo recolhido em Quadrazais, a pardo rio Coa e da serra da Malcata, contém outrasperplexidades, a maior das quais é a anexação dasnomenclaturas cristãs a um salmo de sensívelnatureza alheia. O nome de Jesus não nos causagrande espanto. Nem, assim, o inciso relativo a S.Pedro, S. Paulo e S. João. O que nos causaperplexidade é a discorrência deste salmo puro, queassenta apenas no efeito das palavras, para umaoração que não é pura, porque justapõe o carácterhagiológico e o carácter naturalístico. Com efeito, enum rompante que nos parece uma fractura teorética,o ensalmo perde-se numa memória legendária deSanta Cecília, obviamente inspirada no flos

sanctorum e nas hagiografias medievais, em que,embora o tema sintomatológico seja análogo - o “mald’impola”, o recurso terapêutico se abre àfarmacopeia e, pois, aos naturais.

Assim:1. Todo o ensalmo “p’ra benzera giplê”, até à chave,

constitui um acto de fé no valor da palavra, com osseguintes característicos:

a) acto de tentar a cura sem tocar a doença;b) evitar o recurso a remédios materiais;c) pôr toda a força curativa ou terapêutica na

palavra.2. O ensalmo, a partir de “Santa Cilhê”, admite que

a santidade da palavra não baste, e apresenta asseguintes características:

a) uma simbologia da purificação: água, missa,cinza; b) um recurso aos naturais: o espártego (es-parto) e o azeite, significando que a “empola” deveriaser ungida com um pincelinho de esparto molhadoem azeite, o que obriga a tocar na ferida, ou no tumor,num acto de menor esperança na axiologia verbal.

Ora, o que se nos propõe inferir é um fenómenode empobrecimento e de corrupção de dois salmosautónomos, independentes, e só justapostos porimperfeita itinerância da teorese textual para atradição oral.

A primeira parte do ensalmo é um salmo integral,que adiante, com todas as reservas, tentaremosreconstituir. É um salmo de enxalmador, o que curasó com palavras, de idade arcaica, talvez um dosque fazia parte dos oracionários desses médicosenxalmadores regiamente reconhecidos por D.Afonso V(5). A segunda parte do salmo é umamnemónica hagiológica, próprio do curadorchamado, na terminologia medieval - bajanco(6),o que,utilizando a palavra, também recorre às ervas e tem,pois, além do oracionário, o ervanário. Como é obvio,o recurso a instrumentos alheios à palavra contradiza essência sapiencial da enxalmologia, que sefundamenta num firmamento: o poder do que revelao princípio, o verbo do Logos, onde e pelo qual tudose solve(7).

Segundo o ritual da palavra, todo o hábito tem umaprimeira vez. Se não houver uma primeira vez nãohaverá hábito, de onde a recomendação rabínica emidráshica: “Não te habitues a absorverremédio”(8).Em contrapartida, assim como as máspalavras fazem mal, as boas palavras fazem bem.

A nossa hipótese de trabalho propõe uma primeiraabordagem ao enigma desta popular oração da giplê,em relação à qual sugerimos o seguinte esquemainterpretativo:

1. A oração “p’ra benzer a giplê”, tal como se nosapresenta, é um sincretismo de três salmos, ou, sequisermos, de um enxalmo puro e de duas orações,ou benzeduras.

2. O percurso inicial do enxalmo é arcaico, de

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origem hebraica, com motivações aritmosóficas decarácter pitagórico.

3. O percurso integrado pela oração “Santa Cilhê”,embora de origem medieval, não faz parte doprimeiro, sendo uma oração distinta.

4. Este oração é hierático-naturalística, enquantoo ensalmo inicial é unicamente sacerdotal, de ondeo “Santa Cilhé” ser mais popular, enquanto o primeiroé de origem iniciática.

5. Entre ambos os textos, e por necessidade lógicade os suturar, por não haver interonticidade entreambos, interpolou-se um fragmento de outra oração,de outro tipo de benzedura, de origem nitidamentecristã, tal como o “Santa Cilhê”.

6. A invocação do nome de Jesus no primeiroensalmo é apenas um “marranismo”, supondo-se queo ensalmador dizia um nome, mas deveras invocavaoutro, e isto porque a palavra pode exprimir, nãoapenas o literal, mas o anagógico.

7. Enfim, o núcleo inicial do texto é puramentemessiânico, ou messianológico, enquanto o texto deSanta Cecília é mariológico, procedendo-se porintercessão dos medianeiros, enquanto no anteriorse apela directamente à fonte, fons vitae.

Destas sete razões, e sem excluir o contributo demelhor causa, julgamos possível a seguinte leituradistintiva:

1. Ensalmo propriamente dito:

Adonai, Adonai, três vezes Adonai,Adonai, três vezes Adonai,Eu te atalho o teu mal,se é ar, ou sangue, ou pocho (9),ou giplê, ou gepela, ou gepelão, ou carnicão,ou névoa, ou nevoeiro,ou cabrito, ou unheiro, ou reumatismo, ou nervoso,ou corrimento, ou talhamento, ou dor, ou temor,e eu te atalho todo o mal que tiveres.E eu te atalho e te boto para o mar sagradopara que nem cresças, nem remanesças,nem tu mesmo esfaleçase ar, e sangue, e fogo,Chabriri, briri, riri, iri, ri.

(O salmista repete, ou bisa)

2. Interpolação Fragmentária:

... Morreu Nosso Senhor Jesus Cristona cruz por ti.Dois to deram três to tirarão.S. Pedro e S. Paulo,Apóstolos do Senhor; e S. João.Conforme isto é verdade,O Senhor te seque esta enfermidade.Em louvor de S. Pedro e S. Paulo,

Apóstolos do Senhor, e S. João.

3. Oração de Santa Cecília:

Santa Cecília tinha três filhas.Uma foi à fonte,outra foi à missa,outra queimou-se no fogo da cinza.Santa Cecília vinha de RomaJesus Cristo encontrou.Jesus Cristo lhe disse:- Tu, Santa Cecília, de onde vens?- Eu, Senhor, venho de Roma.- Que mal pacedem lá?- Mal de empola.- Santa Cecília, volta atrás,mal de empola atalharás,com o espargo do campo e azeite de oliveira.São palavras tuas, minhas e da Virgem Maria.Em louvor de Santa Cecíria,que fez a sua maãezinha,faça também esta Salvé Rainha.

Diz-se nove vezes

NOTAS

1 - Franklim Costa Braga, Quadrazais, Etnografiae Linguagem (Lxa., 1971) p. 244.

2 - Clarinda de Azevedo Mala. Os FalaresFronteiriços do Concelho de Sabugal e da VizinhaRegião de Xalma e Alamedilla (Coimbra, 1977) pág.370.

3 - Talmud, Aboth, 5, 9.4 - Talmud, Moéd, Pesakhim, 112 a.5 - Viterbo, Elucidário li, p.221.6 - Viterbo, ob. cit., 11, 12.7 - Cf. Actos dos Apóstolos, passim. A cura pela

palavra é, em nossos dias, uma das grandesesperanças de crentes agrupados em movimentode Carismáticos, Pneumáticos e Pentecostais.

8 - Talmud, Pesah, 113.9 - É a nossa leitura de poco: pocho, mau-humor,

obesidade doentia. Cf. J. Pedro Machado. GrandeDicionário de Língua Portuguesa, vol. tx, p. 216.

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ESTADOS DE ALMA, DOENÇA E MORTE

José Morgado Pereira*

A educação médica, ao centrar-se quaseexclusivamente nos parâmetros biológicos dadoença, cinde doença e doente, excluindo osaspectos psico-sociais da doença. Tal factocorresponde ao estado da medicina contemporânea,dominada pelo reducionismo físico-químico peloprimado da tecnologia.

Significativa mas contraditoriamente, sabe-se cadavez mais que uma importante percentagem dedoentes recorre aos cuidados de saúde primários,por queixas médicas d claro significado psicológicoou problemas de vida que se apresentam comoqueixas médicas, ou ainda por mistura de problemaspsico-sociais e somáticos. Mesmo nas doenças dereconhecida base orgânica, múltiplos trabalhosmostram a importância dos factores sociais epsicológicos, que interferem com o tratamento, sãocausa importante de invalidez e influenciamsignificativamente o prognóstico.

Mas se alargarmos o ponto de vista do observado(médico) ao observado (doente), novos factores vãosurgir pois a vivência de estar doente, o sentimentosubjectivo individualizado do doente é o outro ladoda questão e de importância decisiva. No mundoanglo-saxónico existe um distinção semântica entre“illness” e “disease”, sem fácil tradução paraportuguês, e que permite ilustrar melhor estes temas.Os médicos diagnosticam e tratam “diseases” (alterações estruturais e funcionais dos sistemasorgânicos) e os doentes sofrem “illnesses”(experiências de estados alterados do bem-estar edo funcionamento social). Como se compreende,estas concepções podem estar em correspondência,mas pode haver um parcial ou até total desencontroentre as perspectivas do médico e do doente, comas inevitáveis implicações quanto à eficáciaterapêutica, por exemplo.

Muitas vezes as queixas dos pacientes sãosimplesmente referidas como incapacidade total ouparcial de executar ou desempenhar determinadasacções da vida diária, mal estar geral, sensação vaga

de ameaça, uma quase invencível fixação da atençãonuma parte do corpo, solidão - com vivências deisolamento e impossibilidade de comunicar assensações corporais - ou o sentir-se diferente ouanómalo em relação aos outros.

De um ponto de vista mais emocional encontramosmedo, a recusa ou revolta, ou no pólo oposto aentrega resignada, a aceitação activa, ou aindiferença ou apatia, dependência emocional, até ainfantilização. É curioso o facto de haverinterpretações culturais diferentes podendo a doençaser considerada um castigo, um azar, provação quese tem de enfrentar, etc... Aliás, tanto por parte doenfermo como do médico, a enfermidade é sempreum facto cultural e muda com as condições culturais.Neste sentido não parece nada fácil um médico trataro seu doente se não o conhecer bem e à sua“experiência e visão da doença”.

Os estudos de antropologia médica revelam queos representantes das chamadas medicinaspopulares se preocupam essencialmente com o ladosubjectivo e humano da doença - “illness”, sendo oseu êxito parcialmente explicável pelo facto depoderem responder melhor às angústias eexpectativas pessoais e familiares e daremexplicações mais de acordo com o sistema decrenças de determinadas pessoas e comunidades.

Mas estar doente é sentir em si, de forma mais oumenos aguda, a possibilidade de morrer. A angústiaperante a morte é característica humana (O HomemSer-para-a-Morte das filosofias existenciais). Repare--se, contudo, que o actual universo hospitalar,fornecedor de cuidados sofisticados por equipas desaúde diferenciadas, acaba por retirar importância àmorte individual, enquanto acontecimento vital daexistência de cada pessoa, família e comunidade,acentuando-se o anonimato e solidão do morrer ac-tual.

Nalgumas pessoas, diversos mecanismospsicológicos, que são poderosos meios de defesado “Eu”, podem ser activados podendo conduzir emcertos casos à negação da própria realidade,demasiado ameaçadora para poder ser e aceite. Nopólo oposto, há pessoas onde o medo e a angústia

* Médico Psiquiatra.

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se misturam com os outros sentimentos, geralmenteauto-punitivos e com intensa culpabilidade,conduzindo à paralisia - das defesas psicológicas eorgânicas. Estes pacientes como que se deixammorrer, acelerando à própria morte com uma atitudede angústia invencível e de derrota prévia. Noimpressionante conto “O homem que queria morrer”(Retalhos da vida de um médico, segunda série),Fernando Namora conta como um homem (oSerrano) adoeceu na sequência de um desgostocausado “pela irmã, o que lhe provocou imensavergonha. Apresentava queixas e sintomas que nãocorrespondiam a uma patologia: definida, queixas esintomas que desapareciam para aparecerem outrosainda mais estranhos e imprevistos. O que semantinha era o seu o desespero, desgosto e vontadede morrer. Seguiram-se períodos de agitação em quese auto-agredia, e outros de abulia. Já preocupado,o narrador-médico leva-o ao hospital, mas tambémaí ninguém conseguiu compreender o que sepassava. Desde o princípio o Serrano afirmava queia morrer, mas que não se importava. A administraçãohospitalar acabou por não o tolerar dados os seusgritos e berros que incomodavam e perturbavam oambiente hospitalar. Teve alta e morreu pouco depois.“A autópsia nada revelou. Este homem queria morrer.É tudo - deduziu com desalento o mais idoso dosmeus colegas”. E perguntado sobre se isso bastapara que alguém morra, retorquiu:

“Meu amigo, há certas perguntas que não se fazemnem aos médicos nem aos padres velhos. Nós e eles,a partir de certa altura, deixamos de crer nasconvenções mais firmes”.

Em relação à morte e ao moribundo, a medicinamoderna encontra-se desarmada, constituindo paraa visão científico-natural e tecnicista uma insuportávelnegação ou ameaça, problema tanto mais agudoquanto a ausência de sentido da morte écontemporânea da sua progressiva hospitalização emedicalização no século XX.

Além de alguns livros de Fernando Namora(Retalhos da vida de um médico, O homemdisfarçado é Domingo à tarde), parecem-me tambémsignificativas a respeito dos temas da doença e damorte, e só no domínio da ficção, certas narrativasde José Rodrigues Miguéis e de Maria Judite deCarvalho.

Mas com Memórias da Grande Guerra de JaimeCortesão, assistimos a um outro tipo de mortes. Estasjá não são as mortes descritas por Ariès ou Vovelle,mortes “familiares” ou “interditas” são ainda afinal“mortes doces”; as mortes que Cortesão descrevesão as antiquíssimas e sempre actuais formas demorrer na guerra, todo o absurdo e horror do passadoe do presente com que os homens prosseguem asua aventura na terra. É a descrição realista e brutal-porque vivida pelo narrador-médico -dos ferimentos

horríveis, do desespero dos atingidos e depois o dopróprio narrador, que é também atingido por gases efica cego. Depois é o médico que o examina e oatende com enfado e Cortesão escreve que o médicolhe disse “este homem” como se dissesse “estacoisa”, depois são as suas aflições, medos e receios,e por fim a esperança: “Quando descerro os olhos jávejo um pálido clarão, nevoeiro de luz, donde a Vidasurge como um doce fantasma”. Curiosamente,Cortesão, que se oferecera para combater por opçãoideológica na Primeira Grande Guerra, regressaferido e é logo preso pelos sidonistas, o que contacom amargura, exclamando a findar: “É esta a Mãe-Pátria?”.

A propósito de Manuel Laranjeira, encontramos umtipo de atitude completamente diferente perante amorte (e a vida), bem contrária à de Cortesão, e queestá patente no livro de versos Comigo, publicadono ano da sua morte (1912), embora seja extensivaa toda a sua obra. Falo de um tipo de “Estados dealma” melancólicos ou variantes particu-lares damelancolia (nostalgia, spleen, acédia, tédio,neuras-tenia, etc...). A este respeito, citarei de novoJaime Cortesão, que no livro A Arte e a Medicina,que é uma crítica à Nosografia de Antero feita porSousa Martins, mostra magnificamente que “parafazer o estudo fraccionário de Antero doente énecessário ainda assim estudar paripassu o Anteroartista e o Antero filósofo”, e ergue o seu protestosentimental contra Sousa Martins que qualificaraAntero de “degenerado hereditário superior”!!! Aofalar de melancolia a propósito de Laranjeira nãopretendo portanto imitar a irritante tendência, quecontinua bem presente, de se querer explicarabusivamente vidas e obras de artistas oupensadores por qualquer doença real ou imaginária.Por isso falo em “Estados de alma” que é algo muitomais lato e impreciso que qualquer suposta entidadepsicopatológica.

Em relação ao melancólico, toda a sua experiênciavivida é a de uma lentificação do tempo vital, face àqual a vida exterior parece apresentar um ritmoacelerado e envolta numa comédia sem nexo, falsae mascarada. Starobinski afirma que é quase sempreo melancólico que denuncia a falsidade do mundo esuas máscaras. Como escreveu Nerval: “Hipocondriamelancólica. É um mal terrível. Faz ver as coisas talcomo são”. Demasiada lucidez? Auto-afirmaçãonarcísica? Talvez.

O mundo do melancólico é caos, vazio, ruína, oufarsa e vaidade; a escrita, procura de um sentidoperdido; tudo, aliás, esta feito, pensado, escrito; tudochega demasiado tarde.

A melancolia, já no sentido moderno, tem que vercom o vazio de Baudelaire, o conceito de angústiade Kierkegaard, e vai até Walter Benjamin quecolocava a sua escrita expressamente sob o signo

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de Saturno.Na ausência de consistência ontológica, de

referente primeiro, o mundo oscila no melancólicoentre a aparência e a aparição, entre a fruição doprazer e a morte, entre o sonho e a realidade, numaauto-exposição apaixonada de si próprio e dasformas (C. Buci-Glucksmann).

Viver para o nada, exclamava Laranjeira. Diantedeste nada pode perder-se. lacerar-se, martirizar-se,ficar-se na lamentação lírica ou trágica do “Eu”,interiorizando a morte, como parece ter sido o casode Manuel Laranjeira. Ele usa frequentemente ostermos tédio e melancolia:

«A tarde lenta cai. E cai tambémuma melancolia venenosa,meu Deus! que se não sabe donde vem...

E vem como uma sombra vagarosaque chovesse d’um céu crepuscular...Vem subindo da terra dolorosaComo um grande dilúvio de pesar,como um olhar de dor silenciosaque tentasse subir para as estrelase ficasse disperso pelo ar...»

***

«Perguntas-me o que tenho? O tédio horrívelde saber que e inútil, desprezível,a ventura que a gente concebeu...»

***

«Cheia de tédio e pesar,responde minh’alma triste: -O remédio é naufragar...»

***«A morte! sempre a morte! em tudo a vejotudo m’a lembra! e invade-me o desejode viver toda a vida que perdi...

E não me assusta a morte! Só me assustater tido tanta fé na vida injustae não saber sequer pr’a que a vivi!»

***

Um homem em busca da morte, e talvez fascinadopor ela, o autor de “Comigo”.

Concluirei dizendo que o modelo bio-médico,próximo da visão científico-natural, procurandoexplicar define uma etiologia, faz um diagnóstico,seguem-se o prognóstico e a terapêutica. Estemodelo, se permitiu progressos importantíssimos naelucidação e tratamento das doenças, parece hojeinadequado face às novas conceptualizaçõescientíficas e às responsabilidades sociais damedicina.

Que atitude médica e/ou psicoterapêutica podetratar, ajudar ou simplesmente compreender “estadosde alma” perante a doença e a morte como as dosexemplos que tentei dar?

Para compreender o significado dos sintomas eda doença para o paciente (ou de simples estadosde alma perante a doença e a morte) é talvez precisoum modelo cultural hermenêutico que proceda àreconstrução significativa da doença como realidadedo ser que sofre. A atitude terapêutica neste contextosó poderá ser a de ajudar a refazer ou reformularuma determinada experiência pessoal (e nessesentido única) através da compreensão e de umdiálogo sem hierarquias do saber.

A propósito da doença e da morte, e de “estadosde alma” a elas ligados, a literatura pode falar (e fala)melhor que a ciência, talvez porque se consegueaproximar de uma experiência total ou pelo menosfalar dessa mesma expe-riência, enquanto a ciênciacinde o real para o poder explicar e descrever.

As condições e possibilidades de uma MedicinaDialógica estão em aberto, mas parecem longínquas.O apenas teórico modelo bio-psico-social ou até ascorrentes psicossomáticas e antropológicas emMedicina são certamente meras aproximações.Talvez possamos apenas sonhar com uma práticamédica onde o compreender e o explicar sejamnaturalmente complementares. Entretanto, o queafinal continua a preservar a Medicina de soçobrarna tentação e ilusão objectivistas, é o ela ser à partidauma praxis em ligação com um sofrimentoglobalmente vivido, experimentado por uma pessoaenquanto totalidade concreta.

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BUCI-GLUCKSMANN, CHRISTIANE - “Le cogitomélancolique de la modernité”. Magazine Litteraire,n° 244, 1987

CORTESÃO, JAIME - “A Arte e a Medicina - Anterode Quental e Sousa Martins”. : Coimbra, 1910.“Memórias da Grande Guerra”. Lisboa. PortugáliaEditora, 1969. (1á Edição, 1919).

EISENBERG, LÉON E KLEINMAN, ARTHUR-”TheRelevance of social science for Medicine”. D. Reides,Dordrecht, Holland (1981)

BIBLIOGRAFIA LARANJEIRA, MANUEL - “Commigo” (Versos d’umsolitário) Porto, 1923. (1á Edição, 1912).

LAIN ENTRALGO, PEDRO - “Ciência, tecnica ymedicina” Madrid. Alianza Editoral, 1986.

L. ENGEL, GEORGE - “The need for a New Medi-cal Model; A challenge for biomedicine”. Science, 196(1977) NAMORA, FERNANDO - “Retalhos da Vidade um Médico”, (2á Série). l5á Edição. PublicaçõesEuropa-América, 1989 (1á Edição 1963)

ROF CARBALLO, JUAN - “Teoria y Practicapsicossomática”. Bilbao. Editora Desclee de Brouwer,1984.

SERRÃO, JOEL - “Temas oitocentistas - II” Lisboa.Portuga-lia Editora, 1962.

STAROBINSKI, JEAN - (Dossier). MagazineLitteraire, n°- 280, 1990.

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EPITÁFIOS E CRISÂNTEMOS DA MEMÓRIA

António Branquinho Pequeno*

Na senda dos ensinamentos e das contribuiçõesteóricas do antropólogo americano Gregory Batesone de seus herdeiros ideológicos da escola de “PaloAlto” da Califórnia, uma atenção particular começoua ser dada às interacções familiares e suacircularidade. Este modelo sistémico de abordagemfamiliar traduz-se essencialmente por um conjuntode regras interagentes reguladas de acordo com oprincípio homeostático do equilíbrio e que sãoinduzidas a partir do comportamento dos indivíduos“aqui e agora”, comportamentos para os quais nãose procura a causa, a causa originária, mas antes acircularidade interagente.

E quanto aos mortos? Estão os membros“desaparecidos” duma família definitiva eirremediavelmente ausentes? Diz-me que fazes aosteus mortos, dir-te-ei quem és. Eles partiram. O queé insuportável, nomeadamente aqueles que bemconhecemos e amámos. Insuportável porque osabemos sem apelo, sem remédio, e por outro ladoporque essas partidas nos confrontam com a nossafutura e própria partida.

Como conciliar definitiva ausência e desejo deimortalidade, negação e sobrevivência? Como nosimortalizarmos na memória colectiva se nos tornamosnas nossas socieda des inexoravelmente o “Outro”,o que partiu para a terra do Sol Posto?

Creio que através dum sistema de signos, decanais, de rituais e simbologias, que vamosseguidamente procurar pôr em relevo.

Para ilustrar a presença implícita dos“desaparecidos” na vida familiar e comunitária, bastaassinalar certas práticas ainda hoje correntes nasregiões rurais e que consistem, no momento docasamento, na obrigação para os noivos, conduzidospelos respectivos parentes próximos, de passarempelo cemitério, cada família do seu lado, antes depassarem à igreja.

* Docente na Universidade “François Rabelais”, Tours,França. Antropólogo Clínico.

Para além do carácter desculpabilizante que esteacto pode traduzir, é um pouco, neste caso, comose o casamento não pudesse ser celebrado sem abênção dos desaparecidos, sobretudo se se tratadum pai, dum patriarca, dum ascendente respeitado.Isto para que a coesão e a continuidade do gruponão sofram roturas que possam ameaçar a suaidentidade. Assim se consolidam nos momentosprivilegiados da vida os laços entre mortos e vivos,passado e futuro.

Por outro lado, o casamento projecta-se no futuro,ele tende a conduzir à constituição dum novoagregado familiar, ele é também a morte de qualquercoisa, uma separação, uma partida, por vezesressentida como um abandono. De qualquer modouma segmentação da primitiva “unidade celular”, seesta existia.

Também, em matéria de casamento, de festejos ede prazeres, seria indecente não associar os mortosà festa, porquanto presumimos que eles gostariambem de a ela se associarem. Os festejoscarnavalescos sempre o atestaram ao longo dahistória e, mais perto de nós, no Carnaval de Basileiaou de Veneza. Em Florença o “Carro Naval” eraalgumas vezes substituído por um carro mortuáriocom caixões que se abriam em dado momento.

É também evidente a maneira como, por intermédiodos mortos, se exerce ainda hoje um controlo sociale de vizinhança sobre as famílias dos desaparecidos.Refiro-me à conservação das sepulturas pelosfamiliares, à limpeza dos locais. Os descuidos nãoserão perdoados. A comunidade aldeã, maisparticularmente, saberá tirar as suas conclusões ejulgará de acordo com os comportamentos duns edoutros.

Os mortos não morreram pois tão completamenteassim, malgrado o ostracismo e a conspiração dosilêncio que envolvem as suas memórias. Elescontinuam de certo modo exprimindo-se e a interferirna vida colectiva. Pelo nascimento, filhos e netos,reproduzem mesmo o seu nome, as suasidentidades, - a tal filho se dará o nome de “José”que era o do avô, a um outro o de “Maria” que era o

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nome duma tia desaparecida -, e assim por diante.Ausências e presenças, morte e reencontro. E que

nos dizem os epitáfios, que nos dizem esses textosfunerários, essa literatura marginal, que algo do mortopretende conservar, através da escrita? ‘

A etimologia da palavra vem do grego “epi” (sobre)e “taphos” (sepultura). Texto de adeus e deperenidade, memória gravada.

Hoje esta escrita obedece em geral a fórmulas“standard”, patentes em listas, no comércio. A mortefoi “domesticada”. O discurso também. Semesquecer que um texto original custa caro, um preçonão acessível à bolsa de todos os mortos.

O epitáfio tornou-se pois hoje tão esquelético easséptico quanto o próprio morto. Outrora não eratanto assim, como mostrarei mais adiante. Bem maisexuberantes são, em contrapartida, os epitáfios dassepulturas dos cães, mais poéticos, mais humanostalvez e portanto mais mortais. Quem tiver dúvidasacerca disso, basta dar um saltinho ao JardimZoológico lisboeta e fazer a leitura das tabuletas (nemem Lisboa, nem em Portugal, tanto quanto eu tenhaconhecimento, há cemitérios autónomos para cães).Mortos... no Jardim Zoológico!... Se já não é vida decão (não é só gente que a tem), é pelo menos... mortede cão!...

Mas voltemos aos humanos. Os epitáfios de hojesão um modelo de sobriedade.

Não são somente razões de ordem económica queconduzem a esse laconismo e a essa estereotipia: amorte tornou-se tabu. Morre-se sem fazer barulho,pianíssimo, também para não perturbar os que cáficam, que demasiado perturbados já eles andam!!!.Morrer bem, de boa morte, de preferência na suacama, sem crimes, suicídios ou acidente violento.

No século passado, os epitáfios eram mais prolixos:“ Aqui jaz... filho legitimo de... nasceu em... saiu de

casa de seus avós onde fora educado na tenra idadede ... anos e ... meses, viveu sempre incógnito deseus parentes, viveu sempre em boa harmonia comos seus semelhantes, não só em Portugal como noBrasil, como nas Américas espanholas onde residiupor algum tempo, nunca assinou papel algum paraperseguir o seu semelhante, cumprindo sempre coma maior prontidão todos os seus pagamentosenquanto negociou. A terra lhe seja leve”.Lisboa, cemitério dos Prazeres.

Epitáfio, como vemos, com um teor muitodesculpabilizante para o morto e provavelmente paraos seus familiares (viveu sempre em boa harmonia,nunca fez mal ao próximo e certinho nas contas epagamentos). Sem esquecer de mencionar que erafilho legítimo. Portanto, tudo bem...

Ou ainda este, datado da segunda metade doséculo passado, onde se misturam consideraçõesmorais e sociais: “Oh minha filha modelo de piedade,de candura e de bondade, que durante 17 anos fez a

felicidade da nossa vida. Adeus. Um só pensamentoconsola teu pai e tua mãe, o de te reencontrar noscéus... a sua alma agradava a Deus, eis porque Elese apressou a retirá-la do reino da iniquidade”.Cemitério de Tours, França, 1870

Enfim, este pungente epitáfio, mais recente, de1979, dolorosamente poético, que também foge àgrelha “standard”:

“Teodora porquê tão cedo, talvez porque erasperfeita? por isso não tinhas lugar onde só háegoísmo e maldade

...foi essa terrível doença, foi a morteviverás sempre nos nossos coraçõesque te amarame conheceram a tua convivênciaTeodora da Conceição Correia

eterna saudade de seu marido, sogros, cunhado esobrinho 1924-1979

(Cemitério de Cascais)

O epitáfio tem à partida uma função deidentificação, isto é, o nome que figura na pedraidentifica o morto (do latim, “iden”: o mesmo).

A aparição do epitáfio coincide com a existênciada civilização da identidade individual (ex: a civilizaçãogreco-latina). Atribuíam-se ao morto ascaracterísticas individuais que o tinham distinguidoem vida.

A partir do século V da nossa era, a preocupaçãoda identidade depois da morte vai-se apagando,desaparece em primeiro lugar o retrato do morto,como se deixasse de haver rosto; depois asinscrições tornam-se cada vez mais raras ao longoda Idade Média. Nem para Carlos Magno houveescrita. Resistiram os epitáfios dos santos, dos pa-pas, de certos notáveis ou figuras carismáticas. Dumamaneira geral as grafias tornam-se cada vez maisdescuidadas.

A partir do século XI o epitáfio vai reaparecertimidamente, tal como a efígie, que representa aforma do corpo, - mas é só a partir do século XIII,início da era moderna, - que o anonimato perdeefectivamente terreno e que o indivíduo aparece emseus contornos com cada vez maior nitidez(sobretudo nos laicos das classes superiores). Deigual modo, a sepultura individualiza-se, a artefunerária personaliza-se; é a “morte de si” como nosindica ainda Philipe Aries(1). O povo, esse manter--se-á no anonimato até bem mais tarde, até ao séculoXVIII.

E hoje? Vejamos alguns aspectos da estrutura edos estatutos dos epitáfios.

“NOS” E “THANATOS” Como tínhamos sugerido,o morto resiste a morrer, o que não deixa de ser uma

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maneira de preparar o “futuro” dos vivos, que destafeita, chegada a hora, não morreriam assim tãocompletamente.

“Terminaram teus sofrimentosQue o teu repouso seja doce”Cemitério de Cossonet - Suíça - (tradução)ou ainda este:“À memória de Anne Elie Marie Aurelie de

Monmorency, marquesa de Biencourt, nascida a 23de Abril de 1803 e adormecida na paz do Senhor a25 de Abril de 1883”

Igreja de Azay - 1e - Rideau Indre et Loire,França.(Tradução)

Aliás, “cemitério”, do grego “Koimeterion”, significa“lugar para dormir”.

O morto adormecido envia-nos à aliança entre“Thanatos” e “Hypnos”, os irmãos gémeos que nomito grego o transportavam, segurando-o, um pelacabeça, o outro pelos pés.

Sabemos também que o finado, não só estádormindo como o faz em paz, sem sobressaltos nemviolências, como já referi. Trata-se pois daconsagrada fórmula do “requiescat in pace”. Para queas almas penadas não regressem. Estas nunca vêmpor bem. Pedem contas aos vivos a toda a hora eculpabilizam-nos.

O sono é pois parente da morte, diz o ditado. Estarecusa da morte, esta necessidade fantasmática dea iludir, inscreve-se naquilo a que Urbain Didier(2)

chamou a sociedade de conservação, o que osepitáfios seguintes, do cemitério de Oeiras, traduzem:

“Não morreste, ainda te amamos”;“Como se te tivesses ausentado”.

Dum ponto de vista semiológico-linguístico, denotar o emprego cada vez mais frequente do presentedo indicativo na escrita, no discurso dos epitáfios,paralelamente à perda da vitalidade do pretéritoperfeito simples, tempo do passado irrevocável. Opresente é um tempo sem tempo, a-temporal, porquanto ele exprime tanto o passado (presentehistórico) e o presente propriamente dito, como ofuturo (ex: “parto amanhã”)-. Na linguagem correnteninguém mais diz “partirei amanhã”, o que conotariaum estilo pretensioso. Ora, o imperialismo linguísticodo presente do indicativo nos textos funerários doscemitérios europeus não é anódino: ele favoriza epermite a desciramatização, linguística pelo menos,da morte, e “sacraliza” o morto, que passa a situar--se para além ou para aquém da história, fora dela.Desdramatização que leva a obnubilar o “acidente”e a inscrevê-lo numa dimensão em que passado epresente se confundem, num território fora do Tempoe das contingências. Fora do Tempo e portanto... daMorte.

A Sociedade da Conservação

Neste deslize do passado para o presente e parautilizar o modelo linguístico e a terminologia deWeinrich,(3) trata-se aqui da passagem dos temposda descrição aos tempos do comentário, o ausentetornando-se desta feita mais presente, ou numa outrafórmula, o ausente ter-se- ia somente ausentado.

O emprego exaustivo do presente do indicativo (e,em francês, do “passé composé” - que é um presenteno passado) - na língua dos epitáfios, mesmo nosmenos estandardizados, reforçaria assim anecessidade imperiosa da conservação fantasmáticado “desaparecido”. O que foi igualmente assinalado,noutros termos por Urbain Didier.

A “escamotagem” do acontecimento traduz-se aliásnão só por intermédio deste deslize verbal mastambém pela “nominal ização” do discurso, como oilustram os epitáfios sem verbo, sem descrição, semhistória, do género”eterna recordação” ou ainda estasfórmulas extremas, que subtraem, à vida e à morte,princípio e fim:

“in lovely memory”,(cemitério inglês de Lisboa);ou este outro:“A foi les fleurs, à nous les pleurs”(Indre et Loire, França)

Fantasma da conservação também, por quanto adecomposição do cadáver é ao mesmo tempo uminsulto e uma ameaça. Em certas sociedadesafricanas o morto não adquire esse estatuto antesda completa mineralização do corpo. É só nessaaltura que se passa às segundas cerimóniasfúnebres, que consistem na transladação definitivados ossos (a parte nobre) para o jazigo familiar. Estaé também prática corrente dos “Batsileo” e dos“Merina” dos planaltos de Madagascar(4).

Por outro lado, certos eufemismos são portadores,“et pour cause”, de fortes cargas pulsionais. Eisporque uma atenção particular lhes deve ser dada.

Ora, “desaparecido” é um desses eufemismos daconservação: qual é o estatuto dum desaparecido(le “disparu”, em francês)? Trata-se de alguém poisque ainda não morreu, que participa duma certaindecisão fronteiriça entre os mortos e os vivos, eque uma vez mais se pretende conservar.

Mármores e Granitos

Fantasma da conservação (e da ressurreição?)ainda nos mármores e granitos das sepulturas. Estesmateriais são nobres e duros. À ameaçadoraputrefacção dos corpos opõe-se a dureza e a nobrezadestes materiais. A leitura do texto dum catálogopublicitário francês “A arte funerária no granito”, que

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não resistimos a tentação de transcrever, é bastanteelucidativa a este respeito:

“O granito material nobre de múltiplos “coloris”cristalizado no solo desde há milhares de anos é arocha natural inalterável utilizada na fabricação dosmonumentos apresentados neste catálogo”.

Como vemos, a palavra chave do texto,“inalterável”, equivale metaforicamente à inalterávelimagem do morto. Quanto à “cristalização” no solo,ela responde à mineràliza ção do cadáver, à sua“sacralização”, e... ao fim do luto. Com amineralização o finado entra no eterno “requiescat inpace”.

Enfim, o granito é descrito como uma rocha natu-ral - o que vem corroborar o que acaba de ser dito.Além do mais, a insistência do texto publicitário nocarácter natural desta rocha confere ao defunto e àsua nova essência uma particular “naturalidade”.

Quem fala a quem ?

O discurso “alocutório” faz o finado menos ausente,fá-lo mesmo interlocutor. Neste discurso a funçãode Contacto é mais importante que a função detransmissão da informação, para utilizar aterminologia de Georges Kassai:

1- São geralmente os próximos parentes que sedirigem ao “desaparecido”:

----”anjinho, reza por nós”(cemitério de Tours, França) -morte duma criança-

No epitáfio dum outro cemitério lisboeta odestinatário da mensagem é quem passa:

“pára caminhante, aqui jazem os restos mortais de...filha obediente, consorte amável, mãe carinhosana idade de 36 anos

seu marido inconsolável (1840)”

2- Mais curiosamente, pode ser o “desaparecido”a dirigir-se a quem passa:

--- “sofri demasiado nesta terra, estou feliz por meencontrar por ela coberta”

(cemitério de Saint Lambert des Levées, Saumur,Indre et Loire, França)

Pode haver mesmo intimidação, evidente noslegendários textos da Bretanha profunda:

--- ”rezai por nós, finados, porque um dia tambémo sereis”

ou ainda:---”arrependei-vos enquanto vivos, pois que para

nós, mortos, já é demasiado tarde”

3- Enfim, Deus tem a palavra:---”deixai vir a mim as criancinhas, o Céu

pertence-lhes”(cemitério de Tours)- 1863 -(Traduções)

Necessário seria também estabelecer, neste registoda antropologia da morte, uma tipologia dos epitáfios:ricos e pobres, civis e militares, casados e solteiros,crentes e ateus, homens e mulheres, novos e velhos.

Contentar-me-ei aqui em destacar alguns aspectosdo estatuto.

Da mulher e da criança

Como já foi bem posto em evidência por UrbainDidier “a mulher tem uma identidade restrita... mãe,esposa de senador, de director, etc... sua promoçãoe qualificação passam pela do homem (boa esposa,boa mãe), o que também já vimos em epitáfio acimacitado, e que este outro ilustra:

---”Estelle Naquartesposa em primeiras núpcias do capitão Apchie

em segundas núpcias do tenente - coronel Renouard”(Cemitério de Nancy - 1845-1928) (Tradução)

Como vemos, aqui a mulher é um epifenómeno aolado do capitão e do tenente-coronel, só “existe”,ganha sentido, apoiada em seus sucessivos maridos.Ela continua pois a ter na morte o estatuto subalternoque já era o seu em vida. Trata-se da reproduçãopost-mortem das desigualdades em vida, tema bemconhecido e sobre o qual não me alongarei aqui.

E as crianças?Elas estão duplamente falecidas nos nossos

cemitérios: em primeiro lugar, estão votadas a umostracismo territorial, confinadas ao cantinho dascriancas. Por outro lado, não raramente, nos seusepitáfios apenas figura seu nome próprio. O apelidonão é mencionado. Deste ponto de vista elas sãomais inexistentes que as mulheres. Aliás, elas são“anjos”, o que significa de certo modo que estão jápara lá da” humanidade” ou que não chegaram aatingi-Ia.

---”Ao voares anjo querido fugiu-nos a felicidadeAmor orgulho esperança tudo morreu contigo”

(Cemitério dos Prazeres, Lisboa)

Porque não inumar as crianças no seio dos seusfamiliares? As razões económico-cemiteriais não sãoconvincentes. O que me parece evidente, emboranão fácil de admitir, é que as crianças ocupam já emvida um lugar à parte, marginal. Vistas como adultos

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NOTAS

(1) Philippe Aries, cf “Images de I’homme devant lamort”, Ed Seuil, Paris 1983 e “Essai sur I’histoire dela mort en occident”, Ed Seuil, Paris 1975

(2) Urbain Didier, “La société de conservation”, EdPayot, Paris

(3) Harald Weinrich “Le temps”, Paris (trad. fran.)(4) A. Branquinho Pequeno “Les morts voyagent

aussi... le dernier retour de I’immigré portugais”,Revista “Esprit”, Paris, 1983.

em miniatura, em geral elas não têm verdadeiroestatuto no xadrez comunitário até chegarem à idadeadulta. Os adultos continuam negando um rosto àscrianças, continuam negando sua identidade. A Estacegueira, esta debilidade mental adulta está perdendono entanto algum terreno, as coisas mudam pouco apouco, para bem das crianças e dos adultos queserão mais tarde.

A leitura semiológica dos epitáfios revela pois umarecusa da morte e um desejo de “conservar” o mortoe sua imagem de marca, valorizativa.

Considero no entanto que, devido justamente aotabu que pesa sobre a morte, a parte do não - dito,para além e aquém do epitáfio, a parte escondida doiceberg, é bem mais importante. As visitas massivasaos cemitérios no dia 1 de Novembro são em parte ademonstração desculpabilizante desse não dito,desse silêncio ao longo do ano.

Os terapeutas “sistémicos” deveriam pois dar maisatenção ao lugar que continuam a ocupar os mortos

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no xadrez das interacções dentro da família e nareprodução transgenerativa dessas interacções. Umamelhor compreensão dos dados culturais eantropológicos, do peso do “não dito” na morte,ajudará também a melhor situar e compreender afantasmática interagente no seio destas constelaçõesfamiliares.