mundo a fora - politicas de inclusão de negros

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  • 7/25/2019 Mundo a Fora - Politicas de Incluso de Negros

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    Braslia, novembro de 2011

    mundo aforaPolticas de incluso de afrodescendentes

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    A Coleo Mundo Afora publicada pelo Minist-rio das Relaes Exteriores com o intuito de apre-sentar a seus leitores polticas pblicas de va-riados pases, relacionadas a aspectos-chave daagenda poltica contempornea. Outros nmerostrataram de polticas de combate violncia ur-bana, combate s desigualdades regionais, finan-

    ciamento educao superior e polticas de divul-gao cultural, espaos verdes em reas urbanase polticas de promoo da igualdade de gnero.

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    Prefcio

    O Departamento Cultural do Ministrio das Re-laes Exteriores tem a satisfao de apresentara oitava edio da revista Mundo Afora. Aprovei-tando a grande capilaridade da rede de Postos doItamaraty no exterior, a Mundo Afora traz, a cadavolume, textos que relatam exemplos de boas

    prticas sobre temas relevantes para o debateinterno brasileiro.

    A presente edio, dedicada a polticas de inclu-so de afrodescendentes, dialoga de forma mui-to prxima com a edio anterior, sobre polticasde promoo da igualdade de gnero. Ambas re-tratam efeitos de uma interpretao moderna doprincpio da igualdade, segundo a qual no basta aigualdade formal de todos perante a lei, mas ne-

    cessrio que o Estado se envolva ativamente paragarantir iguais oportunidades aos cidados de to-das as raas, credos, etnias e orientaes sexuais.Corolrio desse raciocnio a adoo de polticaspblicas voltadas incluso daqueles que so v-timas de alguma forma de discriminao.

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    Os textos da Mundo Afora n8propiciam uma re-flexo no apenas sobre o formato das polticasde incluso de afrodescendentes adotadas emcada pas, mas tambm sobre os desafios ineren-tes sua criao e implementao. Muitos des-ses desafios se repetem em pases de diversas

    heranas e latitudes e refletem tambm ques-tes presentes no debate brasileiro sobre o tema.A presente publicao, elaborada pelo Departa-mento Cultural em coordenao com a Divisode Temas Sociais e lanada no Ano Internacionaldos Afrodescendentes, pretende, ao retratar dife-rentes experincias internacionais, dar sua con-tribuio a esse debate.

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    ndice

    De pas fraturado a nao arco-ris? polticas afirmativas na frica do Sul ps-apartestaPG. 08

    O combate invisibilizao do negro na

    Argentina e o resgate de sua presena econtribuio histrico-culturalPG. 13

    Os afrodescendentes na sociedade canadensePG. 22

    A herana afrodescendente no ChilePG. 28

    Ao afirmativa em favor dosafrodescendentes: os casos brasileiro ecolombianoPG. 31

    Notas sobre a situao dos afrodescendentesna Costa RicaPG. 38

    Polticas de incluso de afrodescendentes emChicago

    PG. 47

    Separados mas iguais a evoluo das aesafirmativas nos Estados UnidosPG. 52

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    O embate entre as estatsticas da diversidade ea Repblica FrancesaPG. 59

    Polticas pblicas de incluso de

    afrodescendentes na GuatemalaPG. 67

    Do passado colonial tradio natalina:o combate ao racismo e a incluso dosafrodescententes na sociedade neerlandesaPG. 72

    Os afrodescendentes em HondurasPG. 78

    Os afro-paraguaios: passado e presentePG. 87

    Afro-peruanos: rompendo a invisibilidadePG. 91

    A Repblica Dominicana e os afrodescendentesPG. 98

    Notas sobre a Evoluo da Questo

    Afrodescendente na VenezuelaPG. 104

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    De pas fraturado a naoarco-ris? polticasafirmativas na frica do Sulps-apartesta

    Pedro Lus Carneiro de Mendona

    A legislao dirigida s populaes historica-mente em desvantagem (historically disadvanta-ged people) teve papel importante no esforo deconstruo de uma nao democrtica na fricado Sul aps o fim do regime apartesta, que, comose sabe, mantinha poltica oficial de segregao

    de direitos e oportunidades entre as populaesbrancas e no brancas do pas.

    As relaes inter-raciais na frica do Sul forammarcadas historicamente pelas tenses e pelosegregacionismo. Allister Sparks apresenta, emseu livro The mind of South Africa the story ofthe rise and fall of apartheid, um pungente gestosimblico para descrever as razes desse senti-mento: Jan van Riebeeck, lder do primeiro grupode funcionrios da Companhia das ndias Orien-

    tais holandesa a estabelecer-se, em 1660, prxi-mo ao Cabo da Boa Esperana, demarcou comuma cerca de amndoas selvagens o territrioque ocupariam.

    Como ento determinado pelo holands, os con-tatos com os vizinhos africanos, os Khoikhoi, de-veriam restringir-se compra de carne do gadocriado pelos locais, com vistas a abastecer o en-treposto europeu e os navios que faziam o comr-cio com as ndias ricas em especiarias. No haviainteresse, naquele momento, em colonizar o ter-ritrio; a fileira de amendoeiras deveria segregar

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    o enclave branco do resto do vasto continente ede seus habitantes. Remanescentes daquelas r-vores permanecem at hoje no local.

    A barreira fsica acabou sendo superada, mas amentalidade por ela representada persistiu du-rante sculos, consolidando-se de maneira bru-tal, a partir de 1948, quando se instituiu algo cujaorigem remonta chegada dos holandeses nosculo XVII: o regime poltico do apartheid, que

    restringia a plena cidadania das populaes ne-gras em vrios aspectos, do direito moradia, livre circulao dentro do prprio pas e ao aces-so a servios pblicos.

    A tentativa de preservao desse regime no ps--Guerra implicou represso violenta e revoltascada vez mais intensas, alm de condenaointernacional. Quando comprovada inapelavel-mente sua inviabilidade, tiveram incio, a partir

    de 1990, complexas negociaes polticas que le-varam ao fim do regime de segregao, em 1994,com a realizao de eleies vencidas por Nel-son Mandela. Iniciou-se, ento, amplo processode reconstruo democrtica, em que se buscousuperar as distores do passado.

    Nesse contexto, foi criada a legislao para aspopulaes historicamente em desvantagem,com o intuito de reparar desigualdades devidas injusta distribuio de oportunidades, preocupa-

    o fundamental para o estabelecimento de umademocracia estvel.

    A Constituio sul-africana, adotada em 1996,tendo por base a Constituio interina de 1993,enumera, dentre seus valores fundamentais, adignidade humana, a obteno da equidade, oavano dos direitos e liberdades, a no discri-minao por motivo de raa ou sexo e o sufrgiouniversal adulto.

    A cidadania garantida a todos os sul-africanos,em termos de igualdade de acesso a direitos, pri-

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    vilgios e benefcios e sujeio a deveres e res-ponsabilidades. O princpio da equidade determi-na que todos so iguais perante a lei. Para queesse princpio seja atingido, medidas legislativase outras devem ser tomadas com vistas a protegere promover indivduos ou categorias de indivduosem desvantagem devida discriminao injusta.

    J em 1994, dois documentos determinam a ne-cessidade de adoo de polticas afirmativas tanto

    no setor governamental quanto no privado. Den-tre os princpios constitucionais norteadores daadministrao pblica, inclui-se determinao nosentido de que esta deve ser amplamente repre-sentativa do povo sul-africano, com as prticas deemprego e a administrao de pessoal baseadasna habilidade, objetividade, justia e na neces-sidade de retificar os desequilbrios do passadocom vistas a obter ampla representatividade.

    O Ato de Equidade no Emprego de 1998, em vi-gncia a partir de 1999, consagrou o princpio darepresentao demogrfica em todos os nveisde emprego nos setores pblico e privado. Talprincpio determinava que, em todos os nveis dahierarquia, deveria ser atingido um grau de re-presentatividade que espelhasse a composioracial do pas. Para tanto, prioridade deveria serdada indicao e promoo de black people definidos como africanos, mestios e indianos com vistas a corrigir sua sub-representao de-

    vida discriminao injusta.

    Em 2003, foi adotado o Ato de EmpoderamentoEconmico Negro (Black Economic Empower-ment BEE), legislao-quadro voltada paraestimular o nmero de cidados negros proprie-trios de empresas, ocupantes de cargos geren-ciais e envolvidos na conduo da economia dopas. O Ministrio da Indstria e Comrcio (DTI)regulamentou, posteriormente, a implementaodo BEE.

    No h sanes criminais para empresas que

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    no atingem os padres estabelecidos pelosatos regulatrios do BEE, baseados em sistemade pontuao at um mximo de 100, mas estastornaram-se progressivamente incapacitadaspara participar em licitaes pblicas, alm desofrerem outras restries. Na prtica, a adesoao BEE tornou-se mandatria.

    Os principais jornais do pas costumam noticiarque as metas estabelecidas (43% de negros em

    cargos de gerenciamento seniorat 2012 e 60%at 2017; 63% em gerenciamento mdio at 2012e 75% at 2017; 68% em gerenciamento juniorat 2012 e 80% at 2017) esto, em 2011, aindalonge de serem alcanadas, embora haja avanosem alguns segmentos.

    O ritmo lento de conquistas no a nica crticadirigida s polticas de ao afirmativa em vigor. ausncia de polticas correlatas de universaliza-

    o da educao pblica de bom nvel que habi-litaria todos a competir no mercado em condiesde igualdade de combate pobreza, acesso terra e a servios de sade, somam-se alegaesde queda da qualidade dos servios pela nome-ao, exclusivamente pelo critrio racial, de in-divduos despreparados para o cumprimento dastarefas, alm de aumento dos custos trabalhistaspara as empresas.

    Em que pesem as motivaes para algumas des-

    sas crticas, a percepo generalizada de queas polticas afirmativas, embora importantes,no sero suficientes para lidar com a complexaquesto das relaes inter-raciais na frica doSul ps-apartesta.

    Um fato narrado pelo Professor Jonathan Jansen,cidado negro nomeado Reitor da Universidadedo Estado Livre em 2008, demonstra de maneiraeloquente a pergunta que se coloca Nova fri-ca do Sul, em sua trajetria de pas racialmentefraturado em passado recente rumo ao objetivode Nao Arco-ris, belamente representado em

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    sua bandeira, que busca incorporar todas as co-res polticas existentes.

    Em reunio em que os estudantes elegiam seuslderes para as residncias universitrias, Pro-fessor Jansen anunciou que estas deveriam serinter-raciais. Uma jovem estudante afrikanerco-meou longo e irado discurso em que questiona-va o direito do Reitor de determinar com quem eladeveria morar, tendo sua av e sua me pertenci-

    do ao mesmo alojamento a que ela se candidata-va e sequer sendo ele natural daquela provncia.

    Semanas mais tarde, a aluna procurou o Reitore pediu para falar-lhe. Perguntou se ele a reco-nhecia, o que ele confirmou. A jovem comeouento a chorar copiosamente, desculpou-se pelaatitude tomada e pediu-lhe que a ajudasse a fazerparte da soluo para o dramtico dilema inter--racial com que se depara no apenas aquela

    universidade, mas todo o pas. Pediu-lhe a aluna:por favor, faa-me parte da soluo.

    Nenhuma poltica oficial de governo, por neces-sria e importante que seja, poupar cada cida-do deste pas de se colocar esta simples e as-sustadora pergunta: estando todos envolvidoscom o problema da construo de uma naopluralista e democrtica, de que maneira serparte da soluo?

    Pedro Luiz Carneiro de Mendona Embaixadordo Brasil em Pretria.

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    O combate invisibilizaodo negro na Argentinae o resgate de sua presenae contribuio histrico-cultural

    Enio Cordeiro e Thiago Melamed de Menezes

    INTRODUO

    comum ouvirmos que a populao da Argen-tina tem origem europeia. A histria nos mos-

    tra, no entanto, que a formao do pas, antesdas ondas migratrias que vieram da Europa apartir de 1880, foi profundamente marcada pelapresena do africano e do indgena, alm do co-lonizador espanhol. Neste artigo, veremos que opercentual decaiu, em termos relativos, mas osafrodescendentes continuam integrando em n-mero significativo a populao argentina at osdias de hoje. As organizaes sociais que os re-presentam apontam um longo processo de invi-sibilizao do negro na Argentina, que s agora

    comea a ser revertido. Passo fundamental paraisso a retomada, j em curso, da produo deestatsticas oficiais que mensurem a presenaafrodescendente no pas. A Argentina de hoje re-conhece a inestimvel contribuio da populaonegra para a conformao da nao, em todos osplanos de sua histria e cultura.

    A PRESENA AFRICANA E SUA CONTRIBUIOPARA A FORMAO DA ARGENTINACONTEMPORNEA

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    Buenos Aires foi um dos principais portos do con-tinente onde atracavam as embarcaes que na-vegavam pelas rotas do trfico negreiro no Oce-ano Atlntico. A colonizao espanhola voltou--se infame utilizao da mo de obra escravaafricana em razo de vantagens comparativasque esta apresentava em relao, por exemplo, mo de obra indgena. diferena da populaoamerndia, os africanos j haviam sido expostoss zonas epidemiolgicas ligadas ao continente

    europeu, tendo assim adquirido imunidade a do-enas como o sarampo. Alm disso, pesou a ex-perincia milenar dos povos do continente negrona minerao, no trabalho artesanal com metaise no plantio agrcola.

    A mo de obra escrava foi utilizada maciamentena lavoura argentina. No meio urbano, as fam-lias proprietrias exploravam a fora de trabalhonegra, obrigando os cativos a trabalharem como

    artesos, ourives, confeiteiros e em tarefas do-msticas. Em 1813, a escravido foi abolida, mash correntes historiogrficas que defendem queo ano de 1861 marca realmente o fim da escra-vatura no pas, pois a alforria de 1813 teria signi-ficado uma liberdade sobretudo formal, j que aescravido seguia sendo tolerada e vigoravam, defato, condies de servido em algumas regies.Em 1861, Buenos Aires subscreveu a Constitui-o Nacional e com essa Carta efetivamente garantido o fim da escravido.

    A maioria dos afro-argentinos tem ascendentesno tronco bantu, do centro-sul da frica. Muitasvezes no se observa, mas a influncia negraest latente em algumas das expresses cultu-rais mais identificadas com a argentinidade. Es-tudos acadmicos sugerem que teria ocorridouma nacionalizao de fenmenos culturais paraos quais contriburam decisivamente os afrodes-cendentes, como o tango, a milonga, a payada, achacareira e outras expresses, em relao aosquais no so comumente mencionadas as ori-gens africanas. No mesmo sentido, podem ser

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    mencionadas festividades, alm do Carnaval,como a comemorao dos dias de So Baltazare de So Benito.

    A influncia da cultura de matriz africana podeser verificada, igualmente, pela incorporao aovocabulrio corrente de palavras como quilom-bo, mucama, e marote. Mesmo o argentins-simo lunfardo aporte informal da cultura dotango linguagem corrente faz uso de palavras

    como mandinga, milonga, zamba e mina,todas de raiz africana. A culinria tambm foimarcada pela influncia africana, presente svezes em cones nacionais do pas, como o docede leite e o consumo de midos (encontrado nomondongo e na parrillada).

    O DECLNIO DA POPULAO AFRODESCEN-DENTE E A INVISIBILIZAO DO NEGRO

    As estatsticas disponveis hoje em relao ao pe-rodo colonial revelam que, em 1778, a popula-o negra chegava a alcanar 42% na provnciade Tucumn. Na provncia de Santigo del Esteroo ndice era de 54%; em Catamarca, 52%; emCrdoba, 44%; em Mendoza, 24%; em La Rioja,20%; em San Juan, 16%; em Jujuy, 13%; e em SanLus, 9%. A ltima vez em que a pergunta sobreascendncia africana foi includa em um censoocorreu em 1887. Naquela ocasio, 1,8% dos re-

    sidentes em Buenos Aires respondeu que era deraa negra. O percentual parece mnimo, mash indcios de que esse dado possa ser engana-dor: durante esse perodo, a comunidade negradesenvolvia uma prolfica atividade social e cultu-ral, que inclua cerca de 20 peridicos da comuni-dade e ao redor de cem entidades afro-portenhas(entre sociedades carnavalescas, de ajuda mtua,centros polticos, artsticos e culturais).

    Ao longo do sculo XIX, verificou-se um decrsci-mo constante da populao africana. Nas ltimasdcadas daquele sculo, a chegada de um contin-

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    gente massivo de imigrantes de origem europeiafez baixar drasticamente, em termos relativos, apopulao negra (como tambm a ndia) em todo opas. A partir da anlise das estatsticas, pesquisa-dores passaram a se perguntar por que os negros,que em 1810 totalizavam um tero da populao deBuenos Aires, haviam decrescido para apenas 8 milafricanos e afro-argentinos ao final do sculo XIX.

    Para explicar essa estranha modificao da ca-

    racterstica demogrfica no pas, surgiram duashipteses principais, provavelmente complemen-tares. A viso histrica mais tradicional assina-lava que a populao negra, particularmente amasculina, havia sido dizimada nas guerras emque tomou parte o pas nesse perodo (as guerrasde Independncia e a Guerra do Paraguai). Comefeito, os registros histricos mostram que em1801 foram regulamentadas as formaes mi-licianas com negros, chamadas Compaias de

    Granaderos de Pardos y de Morenos1

    . Como res-tavam muito mais mulheres que homens, essascomearam a casar-se com brancos, diluindoprogressivamente em sucessivas miscigenaesos sinais mais evidentes da presena negra. Tam-bm teriam contribudo para a notvel diminui-o da populao negra as frequentes epidemiasde febre amarela ocorridas at o fim do sculoXIX, que afetariam com particular rigor os afro-descendentes em razo das ms condies devida enfrentadas pela ampla maioria dessa popu-

    lao.

    A outra hiptese, fruto de um processo de revisohistoriogrfica, aponta para um projeto de invi-sibilizao dos negros argentinos. Como ocorri-do em muitos dos pases do continente, as elitespolticas viam no branqueamento da populaoum requisito para o desenvolvimento e o progres-so do pas. Para alcanar esse objetivo, recorriamao fomento no caso da Argentina plasmado naConstituio ento vigente da imigrao bran-ca e europeia e restrio da imigrao africanaou asitica. A particularidade local foi a negao

    1 A contribuio heroicadesses regimentos para aRevoluo de Maio, a guerrade Independncia do pas,foi imortalizada por JorgeLuis Borges no poemaMilonga de los Morenos.

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    da presena negra dentro do pas. Se considerar-mos 1861 como o ano da abolio da escravaturade fato, veremos que, j em 1863, comea-se afalar (com notas publicadas nos almanaques dapoca) do iminente desaparecimento biolgicoe cultural dos negros. Nos documentos oficiais,a populao de ascendncia africana remanes-cente, anteriormente denominada como negra,parda, morena ou de cor, passou a ser cha-mada de triguea, vocbulo ambguo que pode

    designar diferentes grupos tnicos ou nenhum.O perodo que vai de 1838 a 1887 consideradocomo crucial nesse desaparecimento artificial,

    j que a fins de 1887 a porcentagem oficial denegros de 1,8% e, a partir de ento, j no seinforma sobre esse dado nos censos realizados.

    Embora a diminuio em termos relativos dos ne-gros seja um fato real, fortes evidncias mostramque considerar que os negros desapareceram

    foi e continua sendo uma inverdade. As organiza-es sociais afrodescendentes consideram exis-tir ainda, latente na sociedade, mecanismos quedo continuidade negao da negritude. Argu-mentam que uma parcela significativa dos argen-tinos a quem se pergunte sobre os negros no pasresponderia, muito provavelmente, eu no osvejo pelas ruas. Isso depender de, em primeirolugar, por que ruas caminha o interlocutor, poisquestes relacionadas pobreza que atingiu amaioria dos afrodescendentes na Argentina atu-

    aram como fora centrfuga que os afastou doscentros das principais cidades.

    A prpria comunidade afrodescendente consi-dera hoje que os negros, no af de evitar seremobjeto de manifestaes de racismo, mantiveramsua cultura portas adentro, com o que involun-tariamente teriam contribudo para a construoda invisibilidade. Tudo isso gerou um estado decoisas em que o afrodescendente ou no visto,ou tomado por estrangeiro. No visto, quan-do, em razo da mestiagem cultural e biolgica, tido como branco. E tomado por estrangeiro

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    quando, ao transitar pelas ruas, seus patrciosconcluem automaticamente tratar-se de brasi-leiro ou africano.

    Outra questo levantada pelos movimentos dereivindicao dos direitos dos afrodescendentes a de que os elevados ndices de pobreza entre apopulao negra teriam levado a uma migraodo conceito de negritude para um conceito de po-breza. Assim, quando se fala de negros no pas

    comum que se incorpore ao conceito uma dimen-so econmica e social.

    A LUTA PELO RECONHECIMENTO DAIDENTIDADE AFRO-ARGENTINA PASSA PELAMENSURAO DA POPULAO NEGRA

    Com a redemocratizao do pas, em meados dadcada de 1980, a garantia dos direitos humanos

    foi progressivamente alada a mxima prioridadepoltica. Uma primeira etapa, fundamental, foi agarantia jurdica desses direitos. A reforma cons-titucional de 1994 elevou a status constitucional(art. 75, inc. 22) diversos documentos interna-cionais de proteo dos direitos humanos, entreos quais se encontra a Conveno Internacionalsobre a Eliminao de Todas as Formas de Dis-criminao Racial. Com isso, a Conveno estequiparada ao resto das disposies constitucio-nais e se encontra acima de outros tratados inter-

    nacionais e da legislao nacional ou provincial.

    Conforme as disposies da Conveno, penali-zam-se expressamente os atos de intolerncia.Nesse sentido, sancionou-se a lei n 23.592 quegarante o pleno exerccio, sobre bases igualit-rias, dos direitos e garantias reconhecidos naConstituio Nacional. So considerados, parti-cularmente, os atos e omisses discriminat-rias determinadas por motivos tais como raa,religio, sexo, nacionalidade, ideologia, opiniopoltica ou sindical, posio econmica, condiosocial ou caractersticas fsicas. A lei prev san-

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    o de privao de liberdade para os infratores.

    Com base nesse arcabouo jurdico, governo esociedade civil passaram a articular-se para aconstruo de polticas pblicas que aproximema letra da lei da realidade. O Plano Nacional con-tra a Discriminao concentrou suas aes refe-rentes aos afrodescendentes em quatro eixos detrabalho: (i) visibilidade aos aportes afro na cons-truo da nacionalidade argentina; (ii) visibilidade

    comunidade afro-argentina em toda sua varie-dade (descendentes de escravos, comunidadecabo-verdiana, migrao afro-latino-americanae nova migrao africana); (iii) fortalecimento dainstitucionalidade das organizaes sociais afro-descendentes; e (iv) articulao de organizaessociais e Estado para o desenho, implementaoe monitoramento das polticas pblicas para acomunidade afro.

    Em parceria com organizaes da sociedade civil,amadureceu-se o consenso em torno da necessi-dade de se contar com dados oficiais sobre a po-pulao afro-argentina2. Essa demanda datava deantes de 2001, quando ONGs do movimento negroargentino conseguiram aprovar, na Terceira Con-ferncia Mundial contra o Racismo, realizada emDurban, em 2001, recomendao ao Governo ar-gentino para que fossem includas perguntas sobreos descendentes de africanos no censo seguinte.

    O Governo encampou a reivindicao e no Censodo ano 2010 incluiu uma pergunta para medir apopulao afrodescendente. A apelao noode afrodescendente e no de negro foi umadeciso estratgica, j que o processo de mesti-agem funcionou no pas, conforme mencionado,como um mecanismo de invisibilizao da raize dos aportes africanos cultura argentina. Apergunta que constou no recenseamento foi ela-borada, dentro do paradigma de autodeclaraoda ascendncia africana, com a colaborao dediferentes organizaes afro do pas3.

    2 At ento, contava-seapenas com uma medio

    no oficial da populaoafro, resultados dos estudosrealizados pela FundaoGaviria e a Universidade deOxford que depois foramratificados por uma provapiloto realizada no ano 2005pela Universidade NacionalTrs de Fevereiro, comapoio econmico do BancoMundial e o assessoramento

    tcnico do InstitutoNacional de Estatsticase Censos (INDEC).

    3 O texto-base utilizadoindagava: O Senhor/Senhora ou alguma pessoadesta residncia, ou temantepassados de origemafrodescendente ou africana(pai, me, avs/avs,bisavs/bisavs)? Sim/No/Ignora. Se respondeu simindique o n de pessoas.

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    Na preparao para o censo, houve o cuidado deenfrentar a questo do chamado endorracis-mo, ou seja, a autonegao da ascendncia afro.Essa situao foi observada em prova-piloto rea-lizada, na provncia de Santa F, junto a famliasde afrodescendentes. O governo realizou ento acampanha Sou afro-argentino, como estrat-gia para difundir a noo de afrodescendncia,que incluiu anncios televisivos, psteres de rua,folhetos, cartes postais e capacitaes locais e

    organizacionais.

    O censo prov o primeiro resultado oficial depoisde 115 anos de invisibilizao da populao afrono pas. Os resultados divulgados at o momentoda elaborao deste artigo apontam que os afro-descendentes seriam 4% da populao do pas, oucerca de dois milhes de pessoas. Os resultadosoficiais permitiro no apenas medir a populaonegra, como tambm, a partir de cruzamentos es-

    tatsticos com outras variveis, fornecer um qua-dro da brecha racial em matria de acesso aosdireitos econmicos, sociais e culturais, em quese basearo polticas pblicas orientadas para oenfrentamento de injustias histricas.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    CIRIO, Pablo. El argentino no est preparado para ver a los ne-gros. Pgina 12, 27/07/2009. Entrevista concedida a Leonardo

    Moledo e Nicols Olszevicki.

    GOMES, Miriam Victoria. La presencia negroafricana en la Ar-gentina: passado y permanencia. Boletn Digital de la Bibliote-ca del Congreso de la Nacin, n 9.

    RAPISARDI, Flavio. Informe para Cancillera sobre tema afro-descendientes en Argentina. Mimeo.

    YAO, Jean Arsne. Negros en Argentina: integracin e identi-dad. Revue de Civilisation Contemporaine de LUniversit deBretagne Occidentale. http://uinv-brest.fr/amnis.

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    Enio Cordeiro Embaixador do Brasil emBuenos Aires.

    Thiago Melamed de Menezes diplomata lotadona Embaixada do Brasil em Buenos Aires.

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    Os afrodescendentes nasociedade canadense

    Piragibe dos Santos Tarrag, Renato Barros de AguiarLeonardi e Renata Fernandes Peres Rodegher

    A populao de origem afrodescendente no Ca-nad possui razes que remontam ao sculoXVII. Diferentemente do que ocorreu nos EstadosUnidos, a presena afrodescendente no Canaddeveu-se quase que exclusivamente a migraesvoluntrias, composta sobretudo de ex-escravosoriundos do vizinho do Sul nos ltimos quartisdo sculo XIX. A chamada ferrovia subterrnea(underground railroad), complexa rede de rotas e

    abrigos secretos utilizados por escravos negrosfugitivos dos Estados Unidos em direo ao Ca-nad naquele sculo, se tornou uma das princi-pais vias de entrada no pas, chegando a ser uti-lizada por, aproximadamente, 100 mil pessoas1.

    Os primeiros decnios do sculo passado, por seuturno, assistiram a entrada de numeroso fluxo deimigrantes negros, atrados pelo mercado de tra-balho local, mormente para os centros urbanosde Toronto e Montreal e para as regies minera-

    doras. A aceitao de tais imigrantes, porm, foiacompanhada por polticas de cunho racista quefrequentemente excluam essas populaes doacesso a melhores condies de trabalho e edu-cao. Contudo, ao contrrio dos Estados Unidos,que albergavam Estados com poltica segrega-cionista, no Canad os imigrantes enfrentaramempecilhos menores, que variavam ao sabor dasmudanas no governo central. Finalmente, em1962, todas as restries para a imigrao foramabolidas. E a partir de ento o pas passou a re-ceber maiores fluxos de afrodescendentes, pro-venientes da regio caribenha.

    1 Franklin, John Hope & MossJr., Alfred. From Slaveryto Freedom, A History ofAfrican Americans. 8th ed.New York: 2000, pp. 3-5.

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    De acordo com o censo de 2006, o contingentecanadense de afrodescendentes alcanava 784mil pessoas, ou 2,5% da populao total do pas,constituindo-se na terceira minoria visvel2maispopulosa do Canad (atrs apenas das popula-es de origem sul-asitica e chinesa, com 4,1%e 3,9%, respectivamente). Estima-se que, em 25anos, esse nmero dobre de tamanho e atinja,em 2031, cerca de 1,6 milho de pessoas regis-tro ainda inferior aos de descendentes sul-asi-

    ticos e chineses, que continuaro a ser, segundoestimativas para aquele ano, as minorias visveismais populosas no pas, ocupando faixas de 8,1%e 6,1%, respectivamente.

    Em relao distribuio de sua populao entreos principais centros urbanos do pas, as cidadesque mais possuem populao afrodescenden-te so Toronto, Montreal, Ottawa, Calgary, Van-couver, Edmonton, Hamilton, Winnipeg, Halifax e

    Oshawa. No que tange sua populao em rela-o s minorias visveis nas provncias e territ-rios canadenses, os afrodescendentes sobressa-em-se na Nova Esccia, com 51% do total dessasminorias, seguida da Ilha Prncipe Eduardo (Prin-ce Edward Island), com 35%; Nova Brunswick,com 33%, e Quebec, que registra 28%3. Na maispopulosa provncia canadense, Ontrio, tal con-tingente representa somente 17%. A ColmbiaBritnica encontra-se como a ltima em termospopulacionais de afrodescendentes em relao

    s demais minorias visveis, com fraca participa-o de apenas 3%. Na grande Halifax, na provn-cia de Nova Esccia, devido ao movimento hist-rico de imigrao, o grupo chega a representarquase 60% do total das minorias visveis locais, oque reflete a incidncia maior dos fluxos de imi-grantes de ascendncia africana para a regionordeste do pas.

    Um dos aspectos que diferenciam as populaesnegras dos Estados Unidos e do Canad suaorigem, conforme visto acima. Os negros cana-denses so, em sua maioria, imigrantes ou des-

    2 Segundo o StatisticsCanada, o conceito de

    minoria visvel significawhether a person belongsto a visible minority

    group as defined by the

    Employment Equity Act and,

    if so, the visible minority

    group to which the person

    belongs. The Employment

    Equity Act defines visible

    minorities as persons,

    other than Aboriginal

    peoples, who are non-Caucasian in race or non-

    white in colour. The visible

    minority population consists

    mainly of the following

    groups: Chinese, South

    Asian, Black, Arab, West

    Asian, Filipino, Southeast

    Asian, Latin American,

    Japanese and Korean

    3 Canada Year Book2010, Catalogue No.11-402-X, p. 168-9.

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    cendentes de imigrantes provenientes da Amri-ca Central e Caribe (62%)4. A Jamaica respondesozinha por 32% dessa populao. Essa configu-rao explica por que grande parte desse grupopopulacional no se identifica com o conceito deafrodescendente5. De fato, h, segundo o Censode 2006, clivagens conceituais importantes nes-se sentido, sendo que a identificao tnica entreessa populao varia entre o conceito de afro--americano, afrodescendente e afro-caribe-

    nho. Segundo Walcott6, de uma maneira geral,h uma identificao em torno do termo negrocanadense apesar de uma parcela crescentedesse grupo se identificar como afrocaribenho,ou caribenho canadense.

    Visando a corrigir eventuais diferenas em ma-tria de incluso social no mercado de traba-lho, o Canad implementou, em 1986 (modifi-cado em 1995), a Lei de Igualdade no Emprego

    (Employment Equity Act), iniciativa que tem porobjetivo reduzir desigualdades em ambiente detrabalho e conceder s mulheres, s popula-es aborgenes7, s minorias visveis e a pes-soas com deficincia tratamento preferencial naseleo e contratao por empresas sujeitas regulamentao federal. A lei tambm prev queos empregadores implementem prticas positi-vas para as fases de contratao, treinamento epromoo para os membros desses grupos. Dotexto da lei:

    O objetivo desta Lei promover a igualdade no lo-cal de trabalho, de modo que a nenhuma pessoasejam negadas oportunidades de emprego ou be-nefcios por motivos alheios capacidade e, nocumprimento desta meta, corrigir as condiesde desvantagem no emprego experimentadas pormulheres, povos aborgenes, pessoas com defici-ncia e membros de minorias visveis, pondo emprtica o princpio de que a equidade de empregosignifica no s tratar as pessoas da mesma ma-neira, mas tambm adotar medidas especiais eacomodao das diferenas.8

    4 Tal situao varia de regiopara regio. Segundo o Censo2006, as regies do sudoestede Ontrio e da Nova Escciapossuem populaes de afro-descendentes provenientesdo movimento histricoda imigrao dos EstadosUnidos no sculo XIX, muitos,como explicado, por meio

    da ferrovia subterrnea.5 Para fins desse ensaio,contudo, considerarse- o conceito de afro-descendentes em geral.

    6 Walcott, Rinaldo. BlackLike Who?: Writing BlackCanada. InsomniacPress, 2003, 2a ed.

    7 Categoria que inclui os

    seguintes subgrupos: a)populaes indgenas; b)mestios; e, c) Inuits (rtico).

    8The purpose of this Act isto achieve equality in theworkplace so that no personshall be denied employmentopportunities or benefitsfor reasons unrelated toability and, in the fulfillmentof that goal, to correct the

    conditions of disadvantagein employment experiencedby women, aboriginalpeoples, persons withdisabilities and members ofvisible minorities by givingeffect to the principle thatemployment equity meansmore than treating personsin the same way but alsorequires special measuresand the accommodationof differences.

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    O Employment Equity Act pode ser considera-do uma variante da poltica de ao afirmativa9

    aplicada em pases, como os Estados Unidos e oBrasil. Mas ressalte-se que, na promulgao daLei em 1986, o Canad evitou o uso do conceito deao afirmativa. Os juristas na poca alegaramque o termo era complexo e poderia gerar inter-pretaes subjetivas alm disso, a experinciaencontrada em outros pases alertava para obs-tculos polticos e sociais na implementao de

    polticas desse cunho. Relevante tambm su-blinhar que, diferentemente da poltica de aoafirmativa aplicada em pases como os EstadosUnidos e o Brasil, a verso canadense incideto somente sobre o mercado de trabalho. Noabrange, pois, matria relativa a acesso a univer-sidades e demais instituies de ensino. Como leifederal, seu alcance no que tange regulao domercado de trabalho tambm limitado, ao co-brir somente alguns tipos de setores econmicos

    que possuem regulamentao federal, a exemplode bancos, empresas de telecomunicao, com-panhias de transporte (areo, martimo, terrestree ferrovirio), minerao e corporaes contro-ladas por duas ou mais provncias. Segundo oRelatrio Anual de 2009 do Employment EquityAct10, a cobertura do programa estende-se, emtodo o territrio, a somente 10% da fora de tra-balho nacional; a maior parte dos empregadorespermanece, portanto, fora do escopo da lei.

    O Employment Equity Act acompanhado, tam-bm, do Programa Federal do Contratante (Fe-deral Contractors Program FCP), administradopela Agncia de Recursos Humanos e Especiali-zaes do Canad. O FCP estende a obrigatorie-dade do respeito equidade para empregadoresregidos por leis provinciais que possuam no m-nimo cem empregados e participem de proces-sos licitatrios para compras governamentaisfederais de mais de 200 mil dlares canadenses.Muito embora o FCP complemente o Act, aqueleainda pode ser considerado muito restrito, em ra-zo de suas especificidades, ao deixar de cobrir a

    9 Vide, para maioresinformaes, Abella, R.

    S. (1984), Report of theComission on Equalityin Employment, Ottawa:Government of Canada, 1984.

    10 Employment Equity Act:Annual Report 2009. Stioeletrnico do Ministriodo Trabalho: http://www.hrsdc.gc.ca/eng/labour/equality/employment_equity/tools/annual_reports/2009/page09.shtml. Acessoem 19/07/2011.

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    grande maioria dos empregadores privados, semquaisquer vnculos com a administrao federal.

    As poucas organizaes no governamentaisexistentes, voltadas exclusivamente aos interes-ses da minoria negra no Canad, salientam queas aes do governo so insuficientes se noineficientes no combate situao de desigual-dade racial que existiria na sociedade canaden-se. Essa desigualdade se evidenciaria na maior

    presena de negros trabalhando em funes quepagam baixos salrios e em setores tradicionaisde baixa renda, por serem sub-representados emsetores e em cargos com alto rendimento mensale por apresentarem uma alta taxa de desempre-go bem como sofrerem marginalizao social,serem mais pobres e, proporcionalmente, haverum nmero maior de negros encarcerados nopas. Em relao a esse ltimo item, digno denota o fato de que, muito embora o Canad tenha

    se tornado cada vez mais, nos ltimos cem anos,uma nao multitnica e multicultural, a popu-lao carcerria no pas no reflete essa diversi-dade. De acordo com pesquisa realizada junto aoSistema Correcional Federal Canadense (FederalCanadian Correctional System)11sobre os presospertencentes s minorias visveis, em relao asua proporo na populao canadense, os ne-gros esto desproporcionalmente representados,enquanto brancos e asiticos esto sub-represen-tados. H tambm maior representao quanto

    ao nvel de renda. Os negros canadenses perten-cem minoria cuja renda est entre as menoresdo Canad e as mulheres negras, em termosde renda, incorrem em risco duplo. Sendo ne-gras, elas pertencem minoria que tem a menorrenda no pas e, sendo mulheres, recebem aindamenos do que os homens negros. De acordo comlevantamento sobre a renda da mulher negra noCanad realizado pela Associao Canadense deTrabalhadores Sociais (Canadian Association ofSocial Workers CASW), em dezembro de 2005, amdia do salrio anual dessa categoria chegava a79% do que os homens negros ganham e apenas

    11 A Profile of Visible MinorityOffenders in the FederalCanadian CorrectionalSystem,por ShelleyTrevethan e ChristopherJ. Rastin, 2004.

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    a 57% do que os homens canadenses, em geral,recebem. Ainda segundo a CASW, 34,5% das mu-lheres negras que vivem em famlia so pobres,enquanto 52,7% das que no tm vnculos fami-liares esto na mesma situao.

    Tratando-se de polticas pblicas de inclusosocial no Canad, fica-se com a impresso queestas so voltadas aos imigrantes e s minorias,sim, mas sem maior distino entre elas. Como a

    prpria Comisso Canadense dos Direitos Huma-nos esclarece, ao se referir razo de ser e aosobjetivos do Employment Equity Act, este exis-te para que a nenhuma pessoa sejam negadasoportunidades nem benefcios por razes norelacionadas a habilidades individuais e que osempregadores corrijam, no ambiente de traba-lho, desvantagens por que passam membros dequatro grupos definidos: mulheres, aborgenes,pessoas portadoras de deficincia e minorias vi-

    sveis. Ou seja, os negros canadenses, como mi-noria que so, recebem ateno e so objeto depolticas pblicas de incluso social por parte dogoverno do Canad, mas no de forma especial-mente diferenciada da ateno e das polticas di-rigidas s minorias em geral.

    Piragibe dos Santos Tarrag Embaixador doBrasil em Ottawa.

    Renato Barros de Aguiar Leonardi diplomatalotado na Embaixada do Brasil em Ottawa.

    Renata Fernandes Peres Rodegher oficial dechancelaria lotada na Embaixada do Brasil emOttawa.

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    A herana afrodescendenteno Chile

    Frederico Cezar de Araujo e Daniel Augusto Rodrigues Ponte

    O continente americano beneficiou-se enorme-mente com a herana deixada pelos africanos.A escravido, triste fato histrico nas Amricas,moveu a economia de diversos pases at a se-gunda metade do sculo XIX. Se por um lado, osangue e suor dos africanos foram fundamen-tais para a economia de muitas naes, por outrolado, inegvel a riqueza cultural legada pelosescravos s comunidades afrodescendentes.

    Essa herana mais visvel em pases com maiorpresena afrodescendente, como Brasil, Cuba,Colmbia, alm das naes caribenhas. Os afro-descendentes, no entanto, esto presentes emmuitos outros pases. So comunidades de me-nor tamanho, mas que tambm contriburampara o progresso e para a diversidade cultural.Esse o caso do Chile.

    O Chile recebeu fluxo limitado de escravos africa-nos durante o perodo colonial. O pas, ao alcan-

    ar sua independncia, foi um dos pioneiros naeliminao da mancha da escravido. Com efeito,foi promulgada, em 1811, logo aps a indepen-dncia, a Ley de Libertad de Vientres, seme-lhante Lei do Ventre Livre brasileira.

    A escravido, no Chile, foi totalmente abolida em1823. Estima-se que o pas teria entre 3 e 4 mil es-cravos naquela poca. No h, hoje em dia, sinaisvivos daquela presena afro-chilena especfica.

    Contudo, a histria, em mais um de seus sur-preendentes movimentos, fez que a principal he-

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    rana afro-chilena se estabelecesse por meio daGuerra do Pacfico (1879-1884), na qual o Chileenfrentou-se com os vizinhos Peru e Bolvia. Aanexao de territrios peruanos, ao fim do con-flito, trouxe ao pas uma pequena, mas hoje orgu-lhosa comunidade afrodescendente.

    Os afrodescendentes, com efeito, constituamimportante base das milcias peruanas em Arica.H registros de afro-peruanos, naquela regio,

    que lutaram contra as tropas chilenas na Guer-ra do Pacfico. O cabo mulato peruano AlfredoMaldonado Arias tornou-se heri ao imolar-se,explodindo o paiol de plvora do Forte Cidadela,durante a ocupao de Arica, quando os chilenosiavam sua bandeira naquela praa.

    A pequena comunidade afrodescendente chile-na, como resultado do conflito, est concentradano extremo norte do pas, a exemplo da cidade

    de Arica. Essa comunidade, nos ltimos tempos,vem buscando resgatar sua identidade e legado,por meio da ao de organizaes no governa-mentais, como a Fundao Oro Negro.

    A declarao, pela Organizao das Naes Uni-das, de 2011, como Ano Internacional dos Afro-descendentes, tem servido de motivao adicio-nal para que os afro-chilenos busquem maiorreconhecimento.

    No existem, contudo, dados oficiais sobre o n-mero de afrodescendentes no Chile, pois o censonacional no contempla essa categoria. Parte domovimento negro chileno, com efeito, tem pleite-ado a incluso da categoria afrodescendente nocenso nacional de 2012.

    O pequeno tamanho da comunidade afrodescen-dente bem como a sua concentrao no norte dopas fizeram que o governo chileno no possu-sse, at o momento, polticas pblicas voltadaspara essa minoria. O foco de ateno das autori-dades e da opinio pblica, na verdade, est vol-

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    tado para as relaes com os povos originrios,em particular, os mapuches.

    Tramita, mesmo assim, no Congresso do Chile,desde 2009, projeto de lei para o reconhecimentopelo Estado da etnia afrodescendente no pas. OChile, no entanto, exemplo concreto da exten-so do legado afrodescendente pela Amrica La-tina. Mesmo nos pases onde a escravido no foiexpressiva, a presena afrodescendente contri-

    bui, mesmo que limitadamente, para o enrique-cimento cultural e tnico.

    Frederico Cezar de Araujo Embaixador doBrasil em Santiago.

    Daniel Augusto Rodrigues Ponte diplomatalotado na Embaixada do Brasil em Santiago.

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    Ao afirmativa em favor dosafrodescendentes: os casosbrasileiro e colombiano

    Antonino Mena Gonalves, Anna Paula de Oliveira MattosSilva e Denilson Lima Santos

    Tanto no Brasil como na Colmbia, comum quese identifiquem as reformas constitucionais (de1988 e 1991, respectivamente) como marcos noprocesso de reconhecimento da diversidade tni-ca e cultural da populao. Em 1991, a Colmbiareconhece, em sua constituio, sua pluralidadetnica. Tanto negros como indgenas so contem-

    plados na carta magnacolombiana. Direitos soassegurados: autonomia da comunidade tnica,ensino bilngue, territorialidade e educao deacordo com suas tradies. No entanto, comoafirma Molina et alli, a pesar de los avances mo-dernizadores de orden constitucional y legal, laautonomia tnica-cultural no est exenta de con-tradicciones entre estado, gobierno y comunida-des tnicas (MOLINA, 2002, p. 16). No Brasil, aConstituio de 1988 assegura direitos aos ind-genas e aos afrodescendentes.

    Trata-se de documentos construdos num con-texto global de afirmao e consolidao de na-es democrticas e plurais, o que implicou, nocaso dos dois pases, instituir polticas de repa-rao que visassem a democratizar o acesso aosbens nacionais, reduzir as disparidades sociaise promover a maior participao das chamadasminorias nas decises coletivas. Na esteiradas polticas multiculturalistas, os grupos afro-descendentes foram, em ambas as sociedades,identificados como comunidades dotadas de ca-ractersticas a serem destacadas e promovidas, o

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    que torna bastante relevante a anlise compara-tiva que iremos esboar a seguir.

    Brasil e Colmbia seguem, h mais ou menos30 anos, um trajeto de assimilao gradativa dasidentidades negras como componentes funda-mentais de sua constituio cultural. Para quemedidas polticas no sentido de construir um es-pao real de interveno para esse imenso con-tingente de cidados fossem efetivadas, longos e

    acidentados trajetos legais se iniciaram, desdeprogramas estatais de concesso de terras atleis de reforma educacional. Alm de ressaltaro legado simblico ofertado pelas comunidadesafro-americanas, tais recursos apontam para anecessidade de garantir certos benefcios sociaise econmicos, prerrogativas que assegurem aautonomia dos grupos e a manuteno de suasformas de vida.

    No se pode deixar de admitir a origem populardessas aes, na medida em que so fruto demobilizaes desencadeadas pelos movimentosnegros nacionais desde as dcadas de 1970 e1980. Entidades como o Movimento Negro Uni-ficado Contra a Discriminao Racial (MNU), noBrasil, e o Movimento Cimarrn, na Colmbia,tiveram parte de suas antigas reivindicaes con-templadas pelas novas polticas. A prpria desig-nao da populao negra como sujeito jurdicode direitos afirmativos deriva do reconhecimento

    das condies de desigualdade e subordinaos quais esta mesma populao foi historica-mente submetida. Desse modo, os resultadosmais imediatos da atuao estatal no campo dadiscriminao positiva so a percepo dos afro-descendentes como grupo (heterogneo, porm,movido por demandas comuns) e a etnizaodos direitos concedidos.

    De acordo com Lvia Grueso Castelblanco (Cas-telblanco, 2007), alm do Artigo Transitrio 55 daConstituio de 1991, a Lei 70 de 1933 e o docu-mento Conpes 2909 de 19971apresentam formas

    1 O Artigo Transitrio 55da Constituio de 1991garante s comunidades

    negras da Bacia do Pacficoa popriedade das terrasbaldias por elas ocupadas;a Lei 70 de 1993 confere populao negra daColmbia o carter degrupo tnico diferenciado;o Documento Conpes 2909de 1997 institui o Programade Apoyo para el Desarrolloy Roconocimiento tnico delas Comunidades Negras(Castelblanco, 2007).

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    variadas de definir a populao afro-colombiana,utilizando categorias que, dependendo da apli-cao, se revertem em polticas de natureza di-versa. Termos como etnia, comunidade oupopulao vulnervel, por exemplo, so ins-trumentos de identificao que podem se referir identidade cultural, forma de organizao ede apropriao do territrio ou s condies es-truturais de existncia. No entanto, comum atodas as classificaes o status diferencial dos

    afrodescendentes como grupo de direito coletivo.

    No caso brasileiro, a incluso de programas deao afirmativa na agenda pblica nacional es-teve muitas vezes subordinada s medidas decarter social, nas quais a condio econmicaprevalecia como categoria discriminatria sobreo determinante tnico. Reivindicaes dos movi-mentos organizados no perodo de democratiza-o passaram a exigir que a interveno do Es-

    tado em questes de raa transcendesse a pos-tura antissegregacionista e se concretizasse emaes de promoo dos grupos vitimados pelopreconceito. Os projetos oficiais apresentados apartir da reforma constitucional adotaram cate-gorias raciais, tnicas ou sociais, por vezes mes-clando as trs dimenses, como em programasde bolsas e cotas nas universidades que se di-rigem, ao mesmo tempo, a estudantes carentes,alunos de escolas pblicas e jovens de origemafro-brasileira (Moehlecke, 2002). Na esfera de

    promoo da cultura africana, em 2003, o entoPresidente da Repblica Luiz Incio Lula da Silvasanciona a lei 10.639, que institui a obrigatorie-dade do ensino de Histria e Cultura africanas eafro-brasileiras nas escolas.

    Na Colmbia, a adoo do critrio geogrfico naconcesso da propriedade coletiva de terras paracomunidades negras aponta para o modo como oEstado colombiano passou a apreender a questotnica a partir da dcada de 1990. Ao localizar naRegio da Cuenca do Pacfico e no Arquiplagode San Andrs, Providncia e Santa Catalina os

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    limites da ao reparativa, a administrao p-blica cria uma relao estreita entre as tradiespalenquera e raizal e o que se entende comocultura negra no pas:

    En la Ley 70 de 1993 hito nacio-nal y regional del reconocimientoafroamericano reconoce los de-rechos colectivos sobre tierras yconocimientos ancestrales; sea-

    lan los mecanismos de consultaprevia, libre e informada con co-munidades tnicas. En esta ley sehace lar (sic)referencia a este gru-po poblacional como ComunidadNegra, a la cual define como: ()un conjunto de familias de ascen-dencia afrocolombiana que poseeuna cultura propia, comparte unahistoria, y [que] tiene sus propias

    tradiciones y costumbres dentrode la relacin campo-poblado, querevela y conserva conciencia deidentidad que la distingue de otrosgrupos tnicos Art.2. de la Ley70/1993 citada en: Ministerio deJusticia y del Interior de Colombia,s.a (COLOMBIA, 2011).

    A antroploga Luz Stella Rodriguez (RodrguezCcerez, 2009) promove o confronto entre as di-

    ferentes experincias de demarcao territorial econclui que, na Colmbia, o referente geogrficotornou mais evidente a localizao e a dimensodo territrio a ser reintegrado, enquanto no Bra-sil o referente histrico dos quilombos e suascomunidades remanescentes torna bem maisdifusas as reas a serem atendidas pelas polti-cas fundirias e bem mais amplo o espectro dossujeitos em expectativa de posse. Devido a umaconcepo ampla do que vem a ser consideradouma comunidade negra, o nmero e a localiza-o dos grupos favorecidos indeterminado, po-dendo ser encontrados inclusive em territrios

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    urbanos. Essas observaes colaboram para quepercebamos a dimenso contextual das aesafirmativas. Cada realidade exige medidas espe-cficas, que estaro invariavelmente associadas conceituao assumida, ao histrico local, s po-lticas de proteo patrimonial e s relaes defora vigentes.

    Essa ao de reconhecimento pode ser conside-rada pelo vis de aes afirmativas, uma vez que

    estas podem ser compreendidas como o conjun-to de polticas pblicas adotadas com o objetivode promover a ascenso de grupos socialmenteminoritrios, sejam eles tnico-culturais, sexuaisou portadores de necessidades especiais (PAL-MARES, 2011).

    O caminho trilhado para o reconhecimento dascomunidades quilombolas e palenques ainda tmido. No h dvida, porm, de que, tanto no

    Brasil quanto na Colmbia, h a posse de terrapor descendentes de escravizados, que se podeconsiderar como ao afirmativa [que] temcomo objetivo combater as desigualdades sociaisresultantes de processos de discriminao nega-tiva, dirigida a setores vulnerveis e desprivile-giados da sociedade (PALMARES, 2011).

    Do mesmo modo, podemos afirmar que diferen-tes modalidades de violao de direitos deman-dam intervenes adequadas por parte do Esta-

    do. No campo da educao, as polticas tnicasque beneficiam a populao afrodescendentedo Brasil se apresentam como uma experinciapioneira na histria das aes afirmativas latino--americanas. Tema de grandes polmicas, a im-plementao de cotas para estudantes negrosque se iniciou na Universidade de Braslia (UnB)superou resistncias, estendendo-se maiorparte das instituies estatais de ensino superiordo pas. Em um artigo sobre a insero de alunosnegros no ensino superior na Colmbia, AndrsGarca Snchez (2007) mostra-nos que o exemplobrasileiro serviu de referncia para iniciativas pa-

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    recidas nas Universidades Del Valle, de Antioquiae de Medelln. Propostas de discriminao positi-va para corrigir o dficit de acesso da populaonegra educao superior teriam aflorado na IConferncia Nacional Afro-Colombiana, em 2002.A partir de ento, algumas instituies designa-ram individualmente reservas de vagas de 2 a 4%para negros e indgenas, sem que tais iniciativastenham se revertido, at o momento, em um pro-grama governamental.

    Como defende Garca Snchez, os direitos adqui-ridos pelos afro-colombianos nos documentosConpes precisam desencadear aes afirmativasno mbito educacional, sendo estas compreendi-das como a resposta a um direito tnico e culturalhistoricamente infringido. Se os Estados do Bra-sil e da Colmbia preveem em suas legislaesgarantir um modelo de educao afinado com asnecessidades e caractersticas dos grupos tni-

    cos que compem as duas sociedades, um pla-no de desenvolvimento que se pretende eficientedeve adequar-se concepo plural de nao,democratizando tanto o acesso ao sistema edu-cativo quanto os modos de construo e difusodo conhecimento.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    COLOMBIA, Ministerio de la Cultura de. Afrocolombianos, po-

    blacin con huellas de africana.In: http://www.mincultura.gov.co/?idcategoria=38618. Acesso em 11 de jun. 2011.

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    GRUESO CASTELBLANCO, Libia. La poblacin afrodescen-

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    diente y su referencia como sujeto de Ley en el desarrollonormativo de Colombia.Punto de partida para definir nivelesde Reconocimiento y Reparacin. In: MOSQUERA ROSERO--LABB, Claudia & BARCELOS, Luis Claudio (Eds). Afro-repa-raciones:memorias de la esclavitud y justicia reparativa paranegros, afrocolombianos e raizales. Bogot: Universidad Na-cional de Colombia/ Facultad de Ciencias Sociales/ Centro deEstudios Sociales (CES), 2007.

    MOEHLECKE, Sabrina. Ao afirmativa: histria e debates no

    Brasil. In: Cadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002, pp.197-217.

    PALMARES, Fundao Cultural. Aes afirmativas, o que sig-nifica? In: http://www.palmares.gov.br/?page_id=117. Acessoem 11 de jun de 2011.

    RODRGUEZ CCEREZ, Luz Sella. Titulao territorial paracomunidades negras no Brasil e na Colmbia: Estado, capitale resistncia tnica. Congress of the Latin American Studies

    Association, Rio de Janeiro, Brazil June 11-14, 2009.

    Antonino Mena Gonalves Embaixador doBrasil em Bogot.

    Anna Paula de Oliveira Mattos Silvaprofessora leitora junto Pontificia UniversidadeJaveriana, em Bogot.

    Denilson Lima Santos professor leitor junto Fundacin Universitaria del Area Andina, emPereira.

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    Notas sobre a situao dosafrodescendentes na CostaRica

    Tadeu Valadares

    Oye negro, ya ves,ni inmigranteni conquistador,dueo legtimo del banquete.Eulalia Bernal, Tatuaje

    Como na quase totalidade das Amricas, a che-gada de contingentes africanos na Costa Rica

    guarda estreita relao com os processos de ex-panso colonial e com o trfico de escravos im-pulsionado pelas principais potncias europeiasa partir do sculo XV.

    Segundo os historiadores Carlos Melndez eQuince Duncan, em obra que hoje j um clssi-co El Negro en Costa Rica(1972) , a chegadade africanos ao pas ocorreu em quatro momen-tos principais, o primeiro deles no sculo XVI,quando ingressaram na colnia na condio de

    escravos dos conquistadores espanhis. Umasegunda leva deveu-se ao trfico de escravosrealizado pelos piratas e zambos mosquitos.Estes, habitando a Costa dos Mosquitos, no lito-ral caribenho da Nicargua, mantinham com aCosta Rica relaes de cooperao via comrcio inclusive de escravos e de conflito, ao fre-quentemente saquearem as plantaes de cacaulocalizadas no vale de Matina, hoje parte da Pro-vncia de Limn.

    O terceiro perodo de marcado ingresso de ne-gros decorreu da fuga de escravos que no mais

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    suportavam as pssimas condies de vida im-postas por seus amos britnicos e holandesesem vrias colnias das Antilhas. A maioria des-ses fugitivos dirigiu-se para Cartago e Asseri, lo-calidades situadas nas cercanias de So Jos.

    Entre 1879 e 1921, aps a abolio da escravatu-ra, registra-se a quarta onda imigratria, quan-do trabalhadores de origem jamaicana se esta-beleceram na zona atlntica do pas. Trouxeram

    consigo a lngua inglesa, a religio protestante,culinria nica, que lembra um pouco a baiana,e costumes diferentes dos que predominavamno Vale Central. Foram a mo de obra utilizadana construo de estradas de ferro, no servioporturio de Limn e na explorao dos enclavesbananeiros, atividade em que se destacaram porum lado a poderosa e exploradora United FruitCompany e, por outro, o movimento sindical quede maneira destemida defendeu os interesses da

    fora de trabalho predominantemente negra. Emtermos culturais e tnicos, essa migrao jamai-cana terminou por dar Provncia de Limn seutrao particular, que a faz to fascinantementedistinta do restante do pas.

    Embora h dcadas essa populao negra habi-tasse o litoral caribenho da Costa Rica, bem comopartes do interior da provncia de Limn, no censode 1927 foram sumariamente classificados comoestrangeiros oriundos da Jamaica. O outro lado

    da moeda: at mesmo pela inexistncia de pol-ticas governamentais voltadas para a integraodesses afrodescendentes, ainda que as geraesse sucedessem em Limn os afrodescendentescontinuavam a se sentir antes jamaicanos do quecostarriquenhos. Sua expectativa de vir a obtera nacionalidade costarriquenha era remota, e oEstado no cogitava inclu-los plenamente na so-ciedade. Uma das mais claras e brutais sinaliza-es nesse sentido: para que pudessem se des-locar do litoral a So Jos, no Vale Central ondese concentra a populao branca ou que comotal se considera, os negros deviam obter passes

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    especficos, autorizaes que lhes permitissem,ainda que apenas de visita, deixar a rea caribe-nha, subir a montanha e chegar ao Vale. Apenasem 1949, ao comeo da Segunda Repblica e viadecreto-lei, foi-lhes outorgada a condio de ci-dados. E somente com a adoo da Constituiode 1949, at hoje em vigor, a populao afrodes-cendente e as mulheres obtiveram o direito devotar. Em 1950, a percentagem de afrodescen-dentes que vivia em Limn correspondia a 91% do

    total de negros costarriquenhos. De acordo como afro-costarriquenho Quince Duncan, o fenme-no de macia concentrao dos negros em Limndecorreu basicamente das atividades de planta-o, colheita e exportao de banana, a mo deobra barata sendo utilizada sobretudo nos encla-ves desenvolvidos por companhias estrangeiras ena zona porturia.

    No plano social, h marcado distanciamento en-

    tre a populao negra e a branca, esta concen-trada nas alturas do Vale Central e com algumapresena no litoral do Pacfico costarriquenho.Historicamente, a integrao tnica se revelou di-fcil. At mesmo o sistema educacional contribuapara tanto, uma vez que os currculos no con-templavam qualquer tema relativo diversidadecultural que efetivamente existia no pas desdeo incio da conquista colonial. Com isso, persis-tiram ou se fortaleceram esteretipos negativoscom respeito aos afrodescendentes, afirmaram-

    -se os preconceitos raciais e se naturalizaram oscomportamentos discriminatrios que ainda so-brevivem na sociedade costarriquenha.

    Pouco a pouco, com o advento da Segunda Rep-blica e com a construo, superadas as divisesque levaram guerra civil de 1948, da democra-cia de ndole social-democrata que teve seu augenas dcadas de 1950 e 1960 do sculo passado,tanto o estado quanto a sociedade passaram ase esforar no sentido de integrar o contingenteafrodescendente na vida nacional. Mas, na visoda maioria dos lderes comunitrios negros, ain-

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    da hoje persiste no pas o que identificam comodiscriminao mais ou menos dissimulada.

    Lanando mo dos sindicatos, das igrejas e dapequena imprensa de mbito local, os negroscostarriquenhos buscaram melhor organizar-se,nem bem iniciado o sculo XX. Nesse perodo,destaca-se o papel exercido pela Unio de Arte-sos e Trabalhadores e por outras instituiesemblemticas, como a Associao Universal para

    o Progresso do Negro fundada por Marcus Garveyem 1919. Atuante na Costa Rica e em vrios outrospases, essa associao promovia, entre outrosvalores, a dignidade da populao afordescenden-te, enquanto que simultaneamente buscava unir adispora africana. Com o passar do tempo, vriosmovimentos, associaes e instituies contribu-ram para a construo do sentimento de orgulhoem ser afrodescendente, e para a emergncia declara conscincia tnica na vanguarda do movi-

    mento negro, hoje fortemente reivindicativo. Dis-so resultaram aes dos afrodescendentes cos-tarriquenhos, durante as primeiras dcadas dosculo passado, no sentido de garantir o exercciode seus direitos civis, polticos, econmicos e so-ciais, mais de duas geraes depois da chegadados primeiros contingentes jamaicanos. A partirde 1949, o processo de naturalizao de milharesde afro-caribenhos nascidos na Costa Rica, masque ainda permaneciam na condio de estran-geiros, seria acelerado. Em 1955, o primeiro de-

    putado afro-costarriquenho, Alex Curling, logrouobter, via adoo de lei especfica, a conclusodesse processo de concesso da nacionalidadecostarriquenha aos afrodescendentes.

    A construo da identidade nacional costarri-quenha, desde o sculo XIX e a partir das ideiasproduzidas pela intelectualidade do Vale Central,apoiou-se em diversos mitos fundadores, umdeles a imaginria homogeneidade da culturacostarriquenha, ao ver dos idelogos caracte-rizada, no plano tnico, como branca ou, no li-mite, mestia. Com isso, o pensamento social e

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    culturalmente hegemnico negou ou terminoupor invisibilizar a multiculturalidade que existiano pas real. Em termos de interao social, talviso conduziu, no importa se por clculo deseus defensores ou como efeito no antecipado,ao fortalecimento de conjunto de arraigados pre-conceitos cujo alvo principal eram os segmentostnico-raciais e culturais minoritrios, os afro-descendentes, os povos indgenas e comunida-des outras, como a integrada por descendentes

    de chineses que tambm se estabeleceram emLimn no sculo XIX.

    Contrapondo-se a essa percepo mtica quereduz o pas to somente a um imaginrio ValeCentral liricamente transformado em Arcdia,est em curso na sociedade civil e no interior doestado outra dinmica, que aponta para a neces-sria adoo de prticas e polticas sociais dis-tintas, conjugadas a viso multicultural da iden-

    tidade nacional. Para os afrodescendentes, hque valorizar a Costa Rica atual como resultantede contribuies diversas, como herana marca-da pela complexa interao de vrias classes egrupos tnicos e culturais. Trata-se de projeto edesafio que comeou a ganhar corpo e a ser maisfrequentemente suscitado ao longo das ltimasdcadas. Essa difcil reformulao in fieri, essedebate em aberto sobre o que faz a singularidadecostarriquenha, sobre que vetores conformaramhistoricamente o pas e sobre qual deve ser o fu-

    turo desenho da sociedade e do estado parece,aos olhos do observador no comprometido, con-tar com o apoio de nmero significativo de indiv-duos, atores polticos, movimentos e grupos so-ciais. Trata-se de estratgico conflito de valores ede ideias no qual os afrodescendentes sublinhamalgo a seu ver essencial: o aperfeioamento dademocracia costarriquenha deve levar em contaque as configuraes de poder, as relaes so-ciais e as desigualdades econmicas esto pelomenos parcialmente codeterminadas pela di-menso tnica e cultural, pela presena de mino-rias e por suas contribuies decisivas constru-

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    o da nacionalidade, da sociedade e do estado. Acorreo dos desequilbrios gerados pela histriadepende deste prvio reconhecimento.

    Nesse contexto em que a invisibilizao temarecorrente, para os afrodescendentes os censos eas estatsticas nacionais devem levar elaboraode fotografia que permita revelar de forma precisaa multifacetada realidade cultural e tnica. Defen-dem que o desenho do censo e seus instrumen-

    tos de coleta e anlise de dados sejam capazes deafinal apreender a Costa Rica multicultural, e queessa realidade se manifeste, nos dados coleta-dos, tal como se apresenta na vida cotidiana. Paraeles, a informao estatstica sobre a realidadesocial e econmica ferramenta potencialmenteefetiva para dar espao e visibilidade pluralidadetnica e cultural do pas. Em consequncia, pode-ro os governos traar e concretizar polticas p-blicas eficazes com vistas diminuio dos des-

    nveis sociais e superao das desigualdadeseconmicas fundadas em discriminaes tnicase raciais. Em suma, o segmento afrodescendentenutre a expectativa de que os resultados do censono venham a ser obstculo a mais s desejadaspolticas de ao afirmativa.

    Tanto assim que, durante o processo de prepa-rao dos trabalhos do censo realizado de 30 demaio a 3 de junho de 2011, representantes da co-munidade afro-costarriquenha buscaram nele in-

    corporar, segundo alguns com sucesso parcial, otema da multiculturalidade. Na tica dos lderescomunitrios afrodescendentes, seria de mximaimportncia contar com informao que permi-ta melhor apreender as condies em que vive aminoria negra e outras, e que leve a identificar demaneira rigorosa a forma em que o racismo e adiscriminao racial se manifestam na vida coti-diana. Um censo com esse vis avanado facilitariaa elaborao de propostas e a adoo de polticassociais focadas, que idealmente permitam ganhosefetivos para os afrodescendentes e outras mino-rias, entre elas a formada pelos povos indgenas.

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    Ainda que as vias propostas pelos afrodescen-dentes costarriquenhos nessa matria sejamclaras, no igualmente claro que grau de apoiosuas propostas recebero. O universo compreen-dido pelas polticas afirmativas em benefcio dosnegros , na prtica, inexistente no pas. O estadocostarriquenho no desenvolveu polticas de aoafirmativa voltadas para os afrodescendentes. Aisso agregue-se que os dados hoje disponveiscom respeito populao negra so extrema-

    mente precrios. De acordo com o censo realiza-do em 2000, o grupo tnico afro-costarriquenhoalcanava pouco mais de 73.000 pessoas, a to-talidade da populao sendo ento de 3.810.000indivduos. Ou seja, os negros representavam1,91% da populao total do pas. Os resultadosdo censo mais recente ainda no so de conheci-mento pblico, o que impede sequer determinaro atual tamanho da populao afrodescendentecostarriquenha e qual sua percentagem sobre

    a populao total. A adoo do critrio de auto-classificao para definir pertencimento tnico,opinam lderes comunitrios, dever subdimen-sionar o tamanho da populao negra, uma vezque frao significativa desse universo ainda nose reconhece como tal. Essa avaliao indireta-mente aponta para quanto caminho ainda serpercorrido, antes que os interesses dos afro-cos-tarriquenhos cheguem a efetivamente pesar nabalana social.

    Hoje, polticas de ao afirmativa so antes umaexpectativa do que realidade; o Estado ainda tra-balha prioritria ou quase exclusivamente compolticas universais. Mas o debate sobre a neces-sidade de adot-las dever ser fortalecido e enri-quecido no curto prazo espera-se , em decor-rncia da criao pelo governo de duas comissescujos trabalhos certamente lanaro luz sobre asituao dos afrodescendentes costarriquenhos.Tendo em conta que 2011 o Ano Internacionaldos Afrodescendentes, em 24 de fevereiro passa-do foi criada a Comisso Afrocostarriquenha,composta por representantes do Estado (Minist-

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    rio da Educao Pblica e Ministrio da Cultura eJuventude) e de afrodescendentes notveis, estesem representao da sociedade civil. A Comissotem como principal objetivo fomentar polticas decombate discriminao racial e organizar ascomemoraes do Ano Internacional dos Afro-descendentes. Sua atuao, ao mesmo tempo emque abrir janelas de oportunidade, dever levarem conta graves lacunas, dentre as quais se des-tacaria, segundo lideranas afrodescendentes, a

    inexistncia de lei que reconhea e implementeos direitos da populao negra costarriquenha.

    O Ano Internacional dos Afrodescendentes tam-bm motivou o Ministrio da Educao Pblica acriar, em 21 de maro ltimo, a Comisso Na-cional de Estudos Afro-Costarriquenhos, encar-regada de desenvolver pesquisas e de promover apublicao de ensaios e artigos sobre a situaoeconmico-social da populao negra.

    Enquanto o Estado d passos com vistas me-lhoria da situao dos costarriquenhos afrodes-cendentes, as organizaes que lhes vocalizamos interesses denunciam a persistncia de pre-conceitos e esteretipos de cunho racista queagridem a populao afrodescendente, bemcomo a ausncia de polticas de ao afirmativa.Embora ainda muito longe de chegar a configu-rar situao explosiva, a questo no deixa deser preocupante. Recentes pesquisas de opinio,

    feitas pela Universidade Nacional e pela UNICEF,informaram que para 70% dos costarriquenhosos afrodescendentes so vtimas de discrimina-o racial.

    Fato a complicar o quadro: a participao dosafrodescendentes nas esferas de poder polticodo pas escassa, e o mesmo se repete no dom-nio econmico. Os resultados das eleies geraisde 2010, que definiram quem ocupar a Chefia doEstado at 2014 e a composio do Parlamentounicameral, apontaram para situao que gerouconsternao entre os afrodescendentes. Na atu-

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    al Assembleia Legislativa no h sequer um par-lamentar negro. No mbito do Executivo, a nicafuncionria negra a ocupar posio de relevo Maureen Clarke, Presidenta Executiva do Institu-to Nacional das Mulheres que no foi, entretan-to, a primeira opo do Executivo para o cargo.Antes, a presidncia do Instituto foi oferecida aRoco Cerdas, que dela desistiu.

    A condio do segmento negro da populao

    costarriquenha continua a ser marcada pela de-sigualdade de oportunidades, pelo preconceito epelo racismo mais ou menos disfarado. O gover-no mostra-se atento ao problema e vem buscan-do aprofundar o dilogo com as lideranas afro-descendentes. As medidas recentemente adota-das podero, no mdio prazo, se o levantamentode dados, a elaborao de estudos, a publicaode ensaios e outras aes se aprofundarem, con-duzir desejvel adoo de polticas de discrimi-

    nao positiva. A mais recente sinalizao da boavontade governamental foi a criao das duasComisses cujo trabalho impulsar as comemo-raes relativas ao Ano Internacional dos Afro-descendentes. Polticas sociais centradas emaes afirmativas por enquanto no foram ado-tadas, mas talvez no seja irrealista afirmar queo atual debate aponta para uma mudana de pa-radigma. Enquanto isso no ocorrer, a sociedadee o estado continuaro imersos no processo quedefinir o futuro da populao afrodescendente

    costarriquenha e de outras minorias.

    De seus resultados prticos depender em boaparte o futuro perfil do pas. Afinal, trata-se deque Estado e sociedade acordem deciso queconferir ou no maior densidade ao bem-suce-dido itinerrio democrtico iniciado na Costa Ricaem 1949.

    Tadeu Valadares Embaixador do Brasil emSo Jos.

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    Polticas de incluso deafrodescendentes emChicago

    Tania Malinski

    HISTRICO

    Os desafios a serem enfrentados por polticas p-blicas de incluso dos afrodescendentes em Chi-cago refletem o histrico da ocupao geogrficada cidade desde o sculo XIX.

    A primeira comunidade negra em Chicago datade 1840 e foi formada por escravos fugitivos ou

    alforriados. Especialmente aps a Guerra Civilnorte-americana, o Estado de Illinois passou aadotar em grande medida uma legislao pro-gressista antidiscriminatria. A segregao nosistema escolar foi abolida em 1874, relativa-mente cedo no histrico do pas.

    Entre 1910 e 1960 centenas de milhares de negrosvieram do Sul dos Estados Unidos para Chicago,compondo uma populao urbana. O South Sideof Chicago, conhecido como rea de concentrao

    da populao negra na cidade, caracterizou-secomo uma rea afro-americana dcadas antesdos movimentos pelos direitos civis que marca-ram tambm a cidade como um polo de reivindi-cao em torno do tema da igualdade racial.

    Apesar do histrico progressista e de abrigar con-sidervel contingente de populao negra parapadres norte-americanos, a urbanizao de Chi-cago ainda contm elementos herdados de pol-ticas discriminatrias, sobretudo no setor de ha-bitao. Em 1920, proprietrios e imobilirias deChicago foram os primeiros a introduzirem ra-

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    cially restrictive housing covenants, que foramchancelados pelo sistema judicirio. A populaonegra de Chicago passou ento a ser prejudicadapor polticas segregacionistas comuns no Sul dosEstados Unidos. Emprego e moradia eram escas-sos. O quadro jurdico para a formao de quistosou guetos enraizou-se no cenrio urbano.

    Outro fator que contribuiu para a formao de gue-tos em Chicago foi a competio territorial com

    grupos de imigrantes, sobretudo os irlandeses.

    COMUNIDADES TRADICIONAIS

    Nos dias atuais, o South Side of Chicago continuaabrigando bairros com caractersticas de gueto,e reas situadas nas margens da cidade comu-mente concentram populao negra. So os ca-sos de Austin e Cicero, no lado oeste. Os bairros

    conhecidos como bairros tipicamente negros emChicago permanecem entre os mais desprovidosde desenvolvimento urbano.

    Existe, no entanto, uma considervel classe mdianegra em Chicago, e est comprovado que h ummovimento de ascenso de parte da populaonegra em termos de moradia, tendo aumentadoa presena de negros nos subrbios de Chicago.

    O Departamento de Direitos Humanos do Gover-

    no do Estado de Illinois recebe denncias de vio-laes de direitos humanos relativas a moradia etem o prazo de um ano para tramitar um procedi-mento administrativo relacionado a qualquer tipode discriminao.

    INSTNCIAS PBLICAS

    Nos ltimos anos Chicago tem se pautado por umatica ps-racial o nmero de afro-americanosnas burocracias estadual e municipal crescen-te, sobretudo no campo da justia. O atual prefeito

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    da cidade de Chicago, de origem judaica, ganhouas ltimas eleies com um discurso abertamen-te ps-racial, tendo obtido nas urnas apoio dosbairros majoritariamente brancos e negros.

    O Estado de Illinois mantm, no seu departa-mento de correes, um escritrio de aesafirmativas (Office of Affirmative Action). O es-critrio mantm estatsticas e relatrios solici-tados pelo Departamento de Direitos Humanos

    de Illinois e coordena agncias responsveis pordiscriminao em contrataes trabalhistas emresposta s demandas da Equal EmploymentOpportunity Commission. Para atender a peti-es e requerimentos, o escritrio coordena de-poimentos de testemunhas e proporciona repre-sentao em conferncias de investigao (factfinding conferences).

    O instrumento legal que oferece o quadro jurdico

    de apoio a aes afirmativas no estado de Illinois o Illinois Human Rights Act, que logo nos pri-meiros artigos menciona:

    It is the public policy of this Sta-te: a) Freedom from UnlawfulDiscrimination. [Constitui polticapblica deste Estado garantir a)liberdade contra discriminaoarbitrria;]

    (...)

    g) Equal opportunity, AffirmativeAction. To establish Equal Oppor-tunity and Affirmative Action asthe policies of this State in all of itsdecisions, programs and activities,and to assure that all State de-partments, boards, commissionsand instrumentalities rigorouslytake affirmative action to provideequality of opportunity and elimi-nate the effects of past discrimina-

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    tion in the internal affairs of Stategovernment and in their relationsto the public. [Igualdade de opor-tunidade, Ao Afirmativa. Estabe-lecer igualdade de oportunidade eaes afirmativas como polticasdo Estado em todas as suas deci-ses, programas e atividades, paraassegurar que todos os departa-mentos do Estado, diretorias, co-

    misses e instrumentos levem emconsiderao a poltica de aoafirmativa de modo rigoroso, paraprover igualdade de oportunidadee eliminar os efeitos de discrimi-naes passadas nos assuntos in-ternos do governo do estado e nassuas relaes com o pblico.]

    O Departamento de Direitos Humanos do estado

    de Illinois tramita e encaminha ao sistema judici-rio denncias de discriminao com base em 20critrios elencados pelo Human Rights Act esta-dual, considerado um marco no nvel federal emtermos da abrangncia de sua proteo. Algunsdos critrios de proteo contra a discriminaoso raa, ascendncia e nacionalidade de origem.

    J houve casos em que a crtica ao afirma-tiva, feita em pblico, foi considerada ilegal emChicago. De fato, o Chicago City Colleges Board

    of Trustees processou um sindicato de profes-sores por crticas feitas a polticas inclusivas noDaley College.

    No mbito nacional, a National Organization ofBlack Law Enforcement Executives (NOBLE),foi fundada em 1976 para tratar do problema docrime em reas urbanas de baixa renda. A or-ganizao mantm um representante regional eparticipa ativamente de reunies realizadas pelaHomeland Security.

    O escritrio de Homeland Security Affairs em Illi-

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    nois procura criar uma rede de parcerias com asociedade civil, sobretudo em relao a trs seg-mentos populacionais: afro-americanos, descen-dentes de poloneses (Chicago a maior cidadeem imigrantes poloneses) e hispnicos.

    O escritrio de aes afirmativas do estado deIllinois coordena o Equal Employment Opportu-nity/Affirmative Action Program e o EmployeesAssistance Program.

    VIOLNCIA URBANA E JUVENTUDE NEGRA

    As reas conhecidas como reas urbanas commaior concentrao da populao negra so ex-tenses onde a taxa de criminalidade tambm alta. frequente a existncia de cmaras de vigi-lncia policial nessas reas.

    Por outro lado, a presena de negros no sistemade justia e policial j significativa nos dias dehoje, e as autoridades tm realizado um trabalho

    junto juventude negra, sobretudo ex-detentos,com vistas sua valorizao.

    RELIGIES DE MATRIZ AFRICANA

    A presena de cultos de matriz africana em Chi-cago no significativa, uma vez que os bairros

    negros, exceto o South Side, situam-se em reasque antes foram ocupadas por migrantes euro-peus de religio catlica, onde , portanto, co-mum haver igrejas catlicas. H significativa po-pulao negra crist evanglica e imensas estru-turas de culto voltadas para a difuso televisiva.

    Tania Malinski diplomata e foi Chefe do SetorCultural do Consulado-Geral do Brasil emChicago.

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    Separados mas iguais a evoluo das aesafirmativas nos EstadosUnidos

    Mauro Vieira e Daniella Araujo

    As relaes raciais constituem tema que, aomesmo tempo, separa e aproxima Brasil e Es-tados Unidos: se, por um lado, ambos os pasescompartilham o fato de serem as maiores demo-cracias multitnicas e multirraciais das Amri-cas, com expressivo contingente de afrodescen-

    dentes, por outro se apartam na forma como asrelaes entre brancos e no brancos so viven-ciadas em cada uma dessas sociedades.

    Ao estudar comparativamente a situao do ra-cismo nos EUA e no Brasil, o socilogo OracyNogueira formulou conceito de preconceito demarca, aplicvel dinmica do racismo brasilei-ro, em contraste com o preconceito de origemque caracterizaria o racismo norte-americano.

    Segundo essa formulao, o preconceito de mar-ca exercido em relao aparncia do indivduo,ao manifestar-se com relao aos seus traosfsicos, sua fisionomia ou forma de expresso.Deste modo observa Nogueira , um indivduono Brasil pode contrabalanar a desvantagem dacor por meio de superioridade, quer seja educa-cional, profissional ou econmica, o que lhe fran-queia acesso a ambientes, oportunidades e situ-aes que no so oferecidos da mesma forma aoutras pessoas com traos raciais equivalentes.

    Nos Estados Unidos, ao contrrio, o preconceito

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    de origem apresenta-se em funo da descen-dncia de certo grupo tnico, ou seja, remete aum processo de excluso incondicional por partedo grupo discriminador. As restries impostasao grupo negro, historicamente, se mantiveram,independentemente de condies pessoais comoinstruo, ocupao ou condio social.

    So, portanto, distintos os processos de gnesedo conflito racial norte-americano e do brasileiro.

    Reflexo do status quovigente nos EUA que seinstituiu, a partir do final do sculo XIX, com o fimda Guerra Civil, arcabouo jurdico que instituiuno pas um estado de segregao racial de fato ede direito.

    Paradoxalmente, neste momento que so rati-ficadas a Dcima Terceira Emenda Constituiodos EUA (1865), proibindo a escravido; a DcimaQuarta Emenda (1868), que trouxe o princpio do

    devido processo legal e proibiu a discriminaoracial, por meio da garantia de igual proteoperante a justia (Equal Protection Clause); bemcomo a Dcima Quinta Emenda (1870), que im-pediu o cerceamento do voto por motivo de raa.

    O estado de segregao de jurefoi institucionali-zado nos EUA por meio de inmeras leis estadu-ais, sobretudo no Sul do pas, que determinavamlugares separados para negros e brancos em ci-nemas, restaurantes e at mesmo em penitenci-

    rias. A doutrina jurdica que justificava este tipode interveno do Estado ficou conhecida comoseparate but equal e sua jurisprudncia, con-solidada por deciso da Suprema Corte em 1896,vigoraria por quase 60 anos, vindo a ser derru-bada somente em 1954. A doutrina amparava-sena idia de que a segregao baseada em clas-sificaes raciais no constitua discriminao,contanto que as reas reservadas a brancos e anegros fossem equiparveis em qualidade.

    Na prtica, a maioria das instalaes pblicas,como banheiros, restaurantes e escolas desti-

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    nadas aos negros eram inferiores em qualidadequelas que serviam populao branca. Emparticular, as escolas de crianas negras em es-tados do Sul padeciam de falta crnica de finan-ciamento, o que contribua para impedir a melho-ria dos indicadores econmicos e da participaopoltica dos afrodescendentes. Somente por meiode outra deciso histrica que reverteria a de1896 , no caso Brown vs. Board of Education ofTopeka, que a Suprema Corte declarou incons-

    titucionais as leis estaduais que estabeleciam se-gregao nas escolas.

    Como se pode perceber, a narrativa das polticasde promoo de igualdade racial nos EstadosUnidos pode ser traada em grande parte pelahistria de decises da Suprema Corte. O queno chega a surpreender, vez que a incorporaoda segregao no ordenamento jurdico do pasdeterminou o envolvimento ativo do judicirio,

    que proferiu incontveis sentenas contraditriassobre o tema, conformando realidade profunda-mente diferente daquela encontrada no Brasil.

    Decorre desta realidade particular o surgimentodas polticas de ao afirmativa nos EUA, pois asdecises da Justia impulsionaram Governo Fe-deral e Congresso a adotar polticas e programaspara criao de oportunidades de educao eemprego em condies de igualdade para negrose brancos. Tal implementao deu-se por meio

    de aes afirmativas que buscavam remediardesequilbrio racial histrico em atividades tra-dicionalmente segregadas.

    No plano educacional, a aprovao do Civil RightsAct de 1964, incluiu dispositivo que proibia a dis-criminao tnica e racial em todos os progra-mas e atividades que recebessem apoio federal,incluindo instituies educacionais pblicas eprivadas. Isso fez com que o Departamento deEducao estabelecesse medidas de ao afir-mativa nos procedimentos de admisso em esco-las e universidades. Os programas de ao afir-

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    mativa passaram a ser elaborados com base emcritrios estatsticos comparativos entre negros ebrancos: em 1952, cerca de 10% dos afro-ameri-canos entre 14 e 24 anos eram no eram capa-zes de ler e escrever o prprio n