monografia christhian
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
INSTITUTO DE ARTES
CURSO DE MÚSICA
CIACCONA BWV 1004 DE JOHANN SEBASTIAN BACH NA VERSÃO
VIOLONÍSTICA DE ABEL CARLEVARO
Uberlândia
2015
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CHRISTHIAN BARCELOS CARVALHO LIMA BESCHIZZA
CIACCONA BWV 1004 DE JOHANN SEBASTIAN BACH NA VERSÃO
VIOLONÍSTICA DE ABEL CARLEVARO:
Análise comparativa da primeira seção
Trabalho de Conclusão de Curso apresentadocomo requisito parcial da obtenção do título deBacharel em Música – habilitação em violão -da Universidade Federal de Uberlândia,orientado pelo Prof. Dr. Maurício Orosco
Uberlândia
2015
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Sumário
Introdução ............................................................................................................................................... 6
CAPÍTULO 1: Transcrição ......................................................................................................................... 8
1.1 Breve histórico da transcrição para o violão ..................................................................................... 9
1.2 Andrés Segovia e sua transcrição para violão da Ciaccona BWV 1004 ........................................... 14
1.3 Transcrição bachiana para o violão pós-Segovia............................................................................. 17
CAPÍTULO 2: Idiomatismo Violonístico ................................................................................................. 22
2.1 Revisão do conceito de idiomatismo violonístico ........................................................................... 23
2.3 Idiomatização e Transcrição ............................................................................................................ 25
2.3 Idiomatismo violonístico em Abel Carlevaro .................................................................................. 29
CAPÍTULO 3: Análise Idiomática da Ciaccona BWV 1004 ...................................................................... 32
3.1. Confronto de partituras de pontos representativos da Ciaccona BWV 1004 ................................ 33
Considerações Finais ............................................................................................................................. 49
Referências ............................................................................................................................................ 51
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Lista de figuras
Figura 1: Wolfgang Amadeus Mozart, Das Klinget So Rerrlich, da ópera ‘A Flauta Mágica’. 9
Figura 2: Fernando Sor, Variações sobre um tema de ‘A Flauta Mágica’ Op. 9. .................... 10
Figura 3: Frederich Chopin, Prelúdio Op.28 n.4, original para piano. ..................................... 11
Figura 4: Frederich Chopin, Prelúdio Op.28 n. 4, transcrição de Francisco Tárrega. .............. 11
Figura 5: Johann Sebastian Bach, Fuga BWV 1000, transcrição do próprio compositor da
Fuga BWV 1001 para o alaúde................................................................................................. 12
Figura 6: Johann Sebastian Bach, Fuga BWV 1001, transcrição de Francisco Tárrega. ......... 12
Figura 7: Isaac Albéniz, Cádiz, original para piano, compassos 69-72. .................................. 26
Figura 8: Isaac Albéniz, Cádiz, reelaborações de Francisco Tárrega, Manuel Barrueco, JulianBream, compassos 69-72. ......................................................................................................... 27
Figura 9: Abel Carlevaro, Prelúdios Americanos: III. Campo, tema A. .................................. 30
Figura 10: Abel Carlevaro, Prelúdios Americanos: III. Campo, compassos 45-49. ................ 31
Figura 11: Abel Carlevaro, Prelúdios Americanos: III. Campo, compassos 18-19. ................ 31
Figura 12: Abel Carlevaro, Prelúdios Americanos: III. Campo, compassos 60-64. ................ 31
Figura 13: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 1-4, manuscrito original.
.................................................................................................................................................. 33
Figura 14: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 1-4, transcrição de
Segovia. .................................................................................................................................... 33
Figura 15: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 1-4, idiomatização de
Busoni. ...................................................................................................................................... 34
Figura 16: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 1-4, transcrição de
Carlevaro. ................................................................................................................................. 34
Figura 17: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 17-24, manuscrito
original. ..................................................................................................................................... 35
Figura 18: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 17-24,.transcrição de
Segovia. .................................................................................................................................... 35
Figura 19: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 17-24, idiomatização de
Busoni. ...................................................................................................................................... 36
Figura 20: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 17-24, idiomatização de
Costa. ........................................................................................................................................ 36
Figura 21: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 17-24, transcrição de
Carlevaro. ............................................................................................................................ 36
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Figura 22: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 24-27, manuscrito
original. ..................................................................................................................................... 38
Figura 23: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 24-29, transcrição de
Segovia. .................................................................................................................................... 38
Figura 24: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 24-27, idiomatização de
Busoni. ...................................................................................................................................... 39
Figura 25: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 24-29, idiomatização de
Costa. ........................................................................................................................................ 39
Figura 26: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 24-27, transcrição de
Carlevaro. ................................................................................................................................. 39
Figura 27: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 31-38, manuscrito
original. ..................................................................................................................................... 41
Figura 28: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 31-38, transcrição de
Segovia. .................................................................................................................................... 42
Figura 29: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 31-38, idiomatização de
Busoni. ...................................................................................................................................... 42
Figura 30: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 31-38, idiomatização de
Costa. ........................................................................................................................................ 43
Figura 31: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 31-38, transcrição de
Carlevaro. ................................................................................................................................. 44
Figura 32: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 56-60, manuscrito
original. ..................................................................................................................................... 45
Figura 33: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 56-60, transcrição de
Segovia. .................................................................................................................................... 45
Figura 34: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 56-60, idiomatização deBusoni. ...................................................................................................................................... 46
Figura 35: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 56-60, idiomatização de
Costa. ........................................................................................................................................ 47
Figura 36: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 56-60, transcrição de
Carlevaro. ................................................................................................................................. 47
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Introdução
Esta monografia tem como objeto de estudo de exemplos representativos da primeira
seção transcrição de Abel Carlevaro da Ciaccona BWV 1004, quinto e ultimo movimento daPartita para Violino Solo em Ré menor de Johann Sebastian Bach. O uruguaio Abel Carlevaro
(1916 – 2001) é amplamente reconhecido na história do violão do século XX principalmente
por seu trabalho minucioso como pensador da técnica do instrumento, exposto em seu livro
Escuela de la Guitarra - Exposición de la Teoria Instrumental . Também dedicou-se à revisão
de repertório e a composição, mas com menor evidência nessas áreas. Carlevaro ainda não é
um autor estudado enquanto revisor crítico pelo meio violonístico de modo geral. Seu
trabalho é evidente em publicações didáticas focadas em técnica pura, ou seja, exercícios sem
finalidade musical imediata. Apesar disso, existem publicações de sua autoria de revisão de
repertório – como a suíte BWV 998 e os álbuns Técnica aplicada Vol.1 e 2 – que revelam sua
preocupação com o discurso musical, e não somente com a execução mecânica do mesmo.
Sua transcrição da Ciaccona BWV 1004, de 1989, integra esse panorama de revisões com
soluções aparentemente mistas, tanto técnicas quanto musicais.
A presente pesquisa, que situa-se entre as subáreas musicologia e práticas
interpretativas, é qualitativa em sua abordagem metodológica, visto que tratará o objeto de
estudo através da perspectiva subjetiva inerente do ponto de vista dos pesquisadores acerca de
fenômenos criativos igualmente subjetivos estudados neste trabalho. No estudo das soluções
musicais de Carlevaro, optamos pela realização de uma análise idiomática comparativa com
transcrições de outros violonistas, destacando a de Andrés Segovia, que foi um marco na
história do violão, apreciada e estudada desde sua estreia, em 1935, até os dias de hoje. Nossa
pesquisa pretende investigar se Carlevaro preocupa-se em transcrever esta obra prima de
Johann Sebastian Bach de acordo com a concepção estética de seu contexto histórico
particular, ou preocupa-se em tornar acessível ao meio violonístico em geral à consagrada
transcrição romantizada proposta por Segovia, aplicando didaticamente os pressupostos
técnicos e teóricos de sua escola violonística, mas corroborando com as decisões estéticas
segovianas.
O espanhol Andrés Segovia (1893-1987) é introduzido ao violão enquanto ainda criança
e se dizia autodidata no decorrer de sua longa carreira. A importância na atuação e a
influência do legado de Segovia vai muito além de seu trabalho com as transcrições. Como
intérprete, evidenciou a capacidade sonora do violão e revolucionou o imaginário que seconstruía sobre o instrumento no público adepto da música de concerto do século XX. Essa
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evidenciação atraiu a atenção de jovens compositores que gostariam de escrever para o violão,
mas que, sem a tutela de Segovia, não compreenderiam o instrumento o suficiente para que o
pudessem fazer. Por consequência, uma parcela significativa do repertório moderno foi
composto através de sua participação em colaborações com tais compositores, adequando a
execução de incontáveis peças à linguagem violonística. Sua atuação elevou a reputação do
violão e estimulou a criação de um repertório próprio, mas sempre pautado por suas
preferências estéticas que remontam à tradição romântica. Como resultado de suas constantes
realizações devotadas ao instrumento no decorrer de seus 94 anos de idade, é considerado o
violonista mais influente do século XX. Edelton Gloeden evidencia a significância de Segovia
em sua dissertação de mestrado, realizada na USP em 1996, intitulada O ressurgimento do
violão no século XX: Miguel Llobet, Emilio Pujol e Andrés Segovia , ao mencionar a atuação
do mestre espanhol como marco da ruptura na ordem de produção de repertório violonístico,
com a “figura do intérprete compositor cedendo lugar ao compositor não violonista e o
intérprete especialista”, (GLOEDEN, 1996, p.91).
No primeiro capítulo deste trabalho, demonstraremos a trajetória histórica da
transcrição para violão; o contexto da transcrição de Segovia da Ciaccona; e as mudanças de
paradigma na transcrição para violão do repertório bachiano. No segundo capítulo,
discorreremos sobre a ferramenta analítica adotada para este estudo, o idiomatismo
violonístico; sobre um conceito derivado do idiomatismo e correlacionado à transcrição, a
idiomatização; e demonstraremos brevemente os recursos idiomáticos do processo
composicional de Abel Carlevaro por meio da análise de trechos pontuais de sua peça Campo.
No terceiro capítulo, analisaremos através do confronto de trechos da partitura1 das
transcrições da Ciaccona de Carlevaro, Segovia, Busoni (para demonstrar a origem de muitas
soluções segovianas e averiguar sua influência indireta em Carlevaro) e Gustavo Costa (como
forma de ilustrar uma leitura atual desta obra bachiana).
1 FONTES DAS IMAGENS: Ressaltamos que todas as partituras utilizadas no decorrer deste trabalho sãotrechos coletados do ascervo de parituras de domínio público do IMLSP, salvo os trechos de Campo, de Abel
Carlevaro, escaneada para a análise, e as versões da Ciaccona BWV 1004 de Andrés Segovia, Gustavo Costa eAbel Carlevaro (que também trás o manuscrito original no final), por sua vez mencionadas nas referências aofim do trabalho.
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CAPÍTULO 1: Transcrição
O termo transcrição2 é empregado com diferentes significados em vários contextos
musicais, como o processo de grafar música ouvida ou como sinônimo de arranjo, versão e
adaptação. Flávia Vieira Pereira (2011), em sua tese As práticas de Reelaboração Musical ,
propõe delimitações conceituais menos subjetivas para os termos que se referem ao processo
de reelaboração musical em geral. A autora apoia-se na proximidade entre o discurso original
e a resultante reelaborada em termos de fidelidade vs. liberdade através da categorização de
aspectos musicais de uma obra. Embasados neste trabalho, definimos transcrição como o
processo de transferir um discurso musical de um instrumento para outro preservando
fidelidade ao discurso original conforme as possibilidades do novo meio instrumental,
dispensando quaisquer acréscimos ou supressões associáveis a maiores liberdades que
configuram uma terceira resultante musical, mais próxima do conceito de idiomatização, que
será apresentado no capítulo dois.
Para que possamos compreender as origens e as principais transformações que
acometeram a transcrição para violão ao longo da evolução do instrumento, apresentaremos
no primeiro tópico deste capítulo um breve histórico da transcrição para o violão.
O segundo tópico, Andrés Segovia e sua transcrição para violão da Ciaccona BWV1004, apresenta o contexto histórico desta transcrição impactante de um dos violonistas mais
influentes do século XX e trás informações a respeito da obra, considerada uma das obras
primas de Johann Sebastian Bach.
O terceiro tópico, Transcrição bachiana para o violão pós-Segovia, revisa as
transformações estilísticas oriundas das pesquisas musicológicas acerca da música antiga e
problematiza as concepções musicais românticas de Segovia. Introduzimos o estudo da
transcrição da Ciaccona BWV 1004 de Abel Carlevaro, de 1989, como uma versão poucoexplorada de um também influente violonista do século XX, representante de outro momento
histórico.
2 “Transcrição origina-se do verbo latino transcribere, composto de trans (de uma parte a outra; para além de)e scribere (escrever), significando, portanto, “escrever para além de”, ou ainda “escrever algo, partindo de umlugar e chegando a outro” (BARBEITAS, 2000, p. 90).
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1.1 Breve histórico da transcrição para o violão
De acordo com Gloeden e Morais (2008, p.73 et seq.), a história da transcrição para o
violão3, pode ser dividida em quatro momentos, dos quais os primeiro e segundo – a
transcrição como processo de composição e o trabalho de Francisco Tárrega (1852-1909),
respectivamente – serão descritos resumidamente do modo a contextualizar o terceiro
momento, o da atuação de Andrés Segovia, nos qual nos aprofundaremos. O quarto momento,
relativo ao panorama contemporâneo da prática de transcrição dentre os violonistas se
encontra além do escopo deste trabalho.
O primeiro momento está ligado aos grandes compositores clássicos da história do
violão, como os expoentes canônicos Fernando Sor e Mauro Giuliani. Neste primeiromomento observamos o conceito de transcrição associado aos processos composicionais -
interligado, portanto, ao processo criativo destes intérpretes-compositores.
Exemplos desta prática podem ser facilmente constatados em uma análise superficial
das obras Seis árias da Ópera ‘A Flauta Mágica’ Op.19, de Sor, e Seis Rossinianas Op. 119-
124, de Giuliani , nas quais encontramos aproveitamento abundante de temas operísticos4. No
caso do Op. 19 de Sor, as seis árias foram transcritas bem próximas ao original da ópera de
Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791). Uma dessas árias, Das Klinget So Rerrlich (Fig. 1),encontrada no final do primeiro ato da ópera, serviu de material para a composição de uma
das obras mais conhecidas de Sor, as Variações sobre um tema de ‘A Flauta Mágica’ Op. 9,
iniciada por uma variação do tema de Mozart. (Fig. 2). Vejamos em seguida um pequeno
comparativo entre os inícios do tema operístico e da obra de Fernando Sor:
Figura 1: Wolfgang Amadeus Mozart, Das Klinget So Rerrlich, da ópera ‘ A Flauta Mágica’ .
3 Consideramos aqui o instrumento com a estrutura já com seis cordas simples.4 No caso de Giuliani, as Rossianianas tratavam-se de arranjos bastante livres, virtuosísticos, elaborados a partirde trechos de óperas de Rossini. (MORAIS, 2007, p. 35-37).
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Figura 2:Fernando Sor, Variações sobre um tema de ‘A Flauta Mágica’ Op. 9.
O procedimento de transcrição de obras de outros instrumentos para o violão recebe um
novo enfoque com os esforços do compositor Francisco Tárrega, que parte da premissa de que
os grandes compositores espanhóis e os internacionalmente renomados compositores-
pianistas de sua época também podiam ser interpretados nas seis cordas. Tárrega transcreveu
mais do que compôs, quase setenta por cento da sua obra foi dedicada à transcrição
(MORAIS, 2007, p. 38), de forma a provar a capacidade plena na execução do repertório
erudito no violão.
Como exemplos do legado de suas transcrições, podemos listar a apropriação bem
sucedida do repertório pianístico de Isaac Albéniz (1860-1909) e Enrique Granados (1867-
1916), que figuram ainda hoje no repertório tocado por violonistas ao redor do mundo.
(GLOEDEN; MORAIS, 2008, p.73). Com seu intuito de unir o violão ao cenário musical
europeu, transcreveu e interpretou obras de Beethoven, Berlioz, Chopin, Grieg, Handel,
Haydn, Mendelssohn, Mayerbeer, Mozart, Paganini, Schubert, Schumann e Wagner, e foi o
primeiro a descobrir que algumas peças de Bach poderiam ser tocadas ao violão de forma
satisfatória. Suas transcrições de Bach incluem a Bourré Partita I para violino BWV 1002, as
Bourrés I e II da Sonata III para Cello BWV 1009, a Fuga da Sonata I para Violino BWV
1001 e o Crucifixus da Missa em Si menor BWV 232 (WADE, 1985, p. 14)
Os esforços de Tárrega acabam fomentando a prática da transcrição e a exploração de
novos artifícios de adaptação do discurso musical e efeitos de outros instrumentos ao violão.
A formação do duo de violões tornou-se também um recurso bastante explorado pelos
herdeiros de Tárrega, Miguel Llobet (1878-1938), Emílio Pujol (1886-1980), pelos quais
seguiram-se também o aperfeiçoamento do processo de transcrição e a consolidação do
repertório que se construía. Para ilustrar o segundo momento na prática da transcrição,
momento da atuação de Francisco Tárrega, reproduzimos abaixo o início do Prelúdio Op.28
n. 4 (Fig. 3), de Frédéric Chopin (1810-1849) e a transcrição5 (Fig. 4). Notemos a tonalidade
5 Essa e outras maneiras de solucionar os problemas gerados na adaptação do discurso original às possibilidadesdo instrumento de destino dizem respeito ao idiomatismo violonístico e à idiomatização, tratados no capítulo 2.
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da peça, que muda para melhor se adequar ao novo instrumento e a supressão do
acompanhamento nos momentos de movimento melódico:
Figura 3: Frederich Chopin, Prelúdio Op.28 n.4, original para piano.
Figura 4:Frederich Chopin, Prelúdio Op.28 n. 4, transcrição de Francisco Tárrega.
Segundo Ribeiro (2014, p. 41), Fuga BWV 1001, obra transcrita pelo próprio
compositor para o alaúde, catalogada como BWV 1000, foi publicada em 1907. Esta fugatornou-se a primeira gravação de Bach ao violão, em 1927, por Andrés Segovia. Para
exemplificar o tratamento de Tárrega em sua transcrição (Fig. 6) do discurso de Bach (Fig. 5),
acompanhemos as partituras:
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Figura 5: Johann Sebastian Bach, Fuga BWV 1000, transcrição do próprio compositor da Fuga BWV 1001 para o alaúde.
Figura 6: Johann Sebastian Bach, Fuga BWV 1001, transcrição de Francisco Tárrega.
Sérgio Ribeiro identifica logo no início da obra um portamento típico das obras
tarreguianas mais conhecidas (como em Maria, Rosita, Marieta, Capricho Árabe, etc.),
possivelmente para imitar a arcada do violino (RIBEIRO, 2014, p. 85). Pela figura acima
ressaltamos a escolha confortável da tonalidade de Lá menor para o violão, a divisão clara das
vozes através da preocupação com as cordas, com o polegar destacando a voz mais grave,
bem como inconsistências sutis, típicas de um empreendimento pioneiro de transcrição, como
é o caso. Um exemplo disto é a nota Si da primeira voz (comp. 2.3), para a qual é sugerido o
dedo 1, o mesmo que é requisitado para a ligadura Sol-Fá da segunda voz. As durações das
notas no compasso 3 também são comprometidas com a digitação sugerida, nos levando a
especular a sonoridade que Tárrega tinha em mente – já que não há indicações do próprio na
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partitura – , privilegiando acordes sustentados quando possível e marcando articulações curtas
quando estes não fossem possíveis.
Posteriormente, no século XX, inaugurando um terceiro momento deste pequeno
histórico, a tarefa de transcrever material musical de outros repertórios para o violão torna-se
responsabilidade não só do compositor-violonista, mas também do intérprete especialista,
como é o caso de Andrés Segovia. No tópico que segue, veremos em detalhes o papel que
desempenhou sua transcrição da Ciaccona no processo de legitimação do violão nos palcos
das salas de concerto.
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1.2 Andrés Segovia e sua transcrição para violão da Ciaccona BWV 1004
O repertório praticamente restrito aos compositores do período clássico de fins do
século XIX era, de certo modo, um fator limitador, que taxava o violão como um instrumento
inapto para expressar discursos musicais mais arrojados, a exemplo das grandes obras
musicais pianísticas, camerísticas ou sinfônicas do período romântico. Lembremos que o
incremento do repertório violonístico por intermédio das descobertas musicológicas do
repertório renascentista só aconteceriam próximas à segunda década do século XX. Neste
contexto, tornou-se prática comum e necessária evidenciar-se a capacidade do instrumento
através da incorporação de obras de compositores referenciais conhecidas pelo mesmo
público do qual os violonistas buscavam aceitação. É nesse contexto que Andrés Segovia atua para conferir maior credibilidade ao instrumento, dando continuidade ao trabalho de
Francisco Tárrega e sua escola, inclusive também transcrevendo obras para violão. Apesar de
seus esforços na transcrição, ressaltamos que o principal eixo da atuação de Segovia foi o
incentivo ao desenvolvimento e a performance de um novo repertório, pela associação a
diversos compositores não violonistas.
Transcrever obras compostas para outros instrumentos, portanto, foi uma das práticas
adotadas por Segovia e outros violonistas atuantes no início do século XX. Nesse contexto,são incorporadas ao repertório transcrições de movimentos de suítes para instrumentos
desacompanhados escritas pelo compositor alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750),
assim como música de outros compositores do período6. O trabalho realizado por Segovia na
Ciaccona7 – o quinto e último movimento da Partita para violino no. 2 BWV 1004, composta
por Johann Sebastian Bach entre 1717 e 1723 – representa sua apoteose na prática de
transcrever. Esta transcrição foi publicada em 1934 e se baseia na reelaboração para piano de
Ferruccio Busoni (1866-1924), escrita por volta de 1892, revisada e republicada em diversos
momentos até 1916.8 Conforme a perspectiva do violonista venezuelano Rodolfo Betancourt
(1999), as diversas análises comparativas da transcrição segoviana com a de Busoni
6 Destacam-se Georg Frideric Handel (1685-1759), Girolamo Frescobaldi (1583-1643), Louis Couperin (1668-1733), Jean-Philippe Rameau (1683-1764), Domenico Scarlatti (1685-1757).7 Usamos no decorrer do trabalho o termo escolhido por Abel Calervaro, o italiano Ciaccona (encontradatambém no francês Chaconne ou no espanhol Chacona) que delimita uma forma composicional característica do
período barroco: uma dança lenta em compasso ternário que explora variações sobre uma pequena progressãoharmônica, muito semelhante a outro gênero também muito popular na época, a Passacaglia (que se constrói,
por sua vez, a partir de variações sobre um ostinato melódico).8 Christopher Berg evidencia com exemplos em partitura a proximidade entre a transcrição de Segovia e a deBusoni em seu artigo no site Pristine Madness (2009). O link está disponível nas referências ao fim do trabalho.
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evidenciam a similaridade dos preenchimentos harmônicos, além de indicações de andamento
e expressão inspirados na tradição de transcritores românticos. (COSTA, 2012, p. 114)
A Ciaccona BWV 1004 é o maior movimento de suíte escrito no período barroco, com
performances que giram em torno de quatorze minutos, atingindo até mesmo o extremo de
vinte minutos (como a de Paul Galbraith). Em extensão, esta obra supera a soma dos demais
movimentos da Partita II, razão que colabora para sua interpretação avulsa do restante da
mesma (COSTA, p. 71). Outro fator que contribui para essa independência da Ciaccona em
relação à suíte que integra provém de sua própria sonoridade, enigmática e misteriosa, que
tanto seduz estudiosos e violinistas. A estrutura da Ciaccona pode ser claramente percebida
três grandes sessões, definidas pelas ênfases na tonalidade de Ré menor e sua homônima, Ré
maior, na seguinte proporção: Ré menor (132 compassos), Ré Maior (76 compassos) e Ré
menor (49 compassos).
Na época da transcrição de Segovia, tratava-se de uma obra de execução inimaginável e
intransponível para o violão, levando em consideração sua reputação de figurar dentre as mais
preciosas peças de música de J. S. Bach. “ A maior estrutura já composta para violino solo”,
nas palavras de Yehudi Menuhin (1916-1999), considerado um dos melhores violinistas do
século XX, em sua autobiografia Unfinished Journey. Johannes Brahms (1833-1897), um dos
principais compositores do período romântico e aficionado pela música de J. S. Bach,
publicou sua adaptação para piano em 1879, adaptada para mão esquerda para conferir à
interpretação similar dificuldade. Escreveu em vários momentos sobre sua paixão pela obra
em correspondência à distinta concertista Clara Schumman (1819-1896). Traduzimos um
trecho extraído desta correspondência onde Brahms demonstra sua admiração: “ Em uma
pauta, para um pequeno instrumento, [Bach] escreve um mundo inteiro dos pensamentos
mais profundos e os mais poderosos sentimentos.”9
Apesar do grande desafio que era interpretar no pouco prestigioso violão uma obra detal fôlego para os entusiastas e especialistas da música clássica da época, relatos de excelência
na execução de Segovia circundaram a estreia da peça nos palcos em 1935, embora também
tenha sido registrada rejeição (WADE, 1985, p. 18). É possível afirmar que a Ciaccona foi a
obra que mais repercutiu na sedimentação do violão como instrumento concertista, sagrando-
se como um monumento no repertório violonístico. Nas palavras de Costa (p. 116), “a
gravação em 1955 deixou sua influência nas gerações de violonistas que viriam, fazendo com
9 “On one stave, for a small instrument, the man writes a whole world of the deepest thou ghts and most powerful feelings” Letters of Clara Schumann and Johannes Brahms, 1853 – 1896. Hyperion Press, 1979, p. 16.
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que sua transcrição [de Segovia] seja tomada como modelo por muitos concertistas até
hoje”. Sem desmerecer seus esforços e conquistas, no tópico seguinte percorreremos uma
breve revisão de literatura sobre a mudança de paradigma estético trazida pelos estudos
musicológicos da música antiga para embasar nossa concepção da transcrição de Segovia
como romantizada em seu pensamento acordal.
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1.3 Transcrição bachiana para o violão pós-Segovia
Mesmo com o grande impacto da Ciaccona de Segovia, que obteve grandioso sucesso
perante o público em geral, outros transcritores se empenharam em construir suas próprias
versões para violão pautando suas decisões a partir de premissas diferentes. Não sendo mais
necessária a revelação do potencial sonoro do instrumento e sua capacidade para a
interpretação de discursos musicais tão complexos quanto dos demais instrumentos, alguns
expoentes das novas gerações de interpretes passam a levar em consideração características
estilísticas inerentes do período em que foi composta a obra, distanciando-se da perspectiva
romântica de Segovia10, agora informados sobre os avanços nos escritos musicológicos acerca
da interpretação da música antiga. Thiago Colombo de Freitas atribui as origens de taisavanços à busca de uma nova estética musical pós-guerra, contrastante à precedente:
Após a segunda guerra mundial, o ocidente passou por um período de revisionismo histórico e os esforços em apagar um passado recente acabaram por estabelecer a antítese de um processo dialético de um século marcado por extremismos. Natradição interpretativa de Bach, este revisionismo está expresso nogrande aumento das publicações musicológicas sobre o assunto e a busca das execuções “autênticas”, baseadas nestas publicações.(FREITAS, 2005, p.25)
Segundo Ribeiro (2014), a primeira importante referência nessa busca por uma
performance autêntica é o trabalho do alaudista e musicólogo Arnold Dolmetsch (1858-1940).
Em 1915, sua obra The Interpretation of the Music of the XVIIth and XVIII Centuries sagra-se
como marco da interpretação historicamente informada.11 Conforme Wade (1985, p. 22-23).,
dando continuidade ao movimento, Thurston Dart (1921-1971), com sua obra The
Interpretation of Music (1954), estuda os problemas envolvidos na performance atual de
música escrita entre 1350 e 1850. Tais problemas incluem o papel do editor, instrumentação e
10 É corrente no meio violonístico o conceito da versão da Ciaccona por Segovia como romantizada, porém, taladjetivação é comumente associada à maneira de Segovia interpretá-la, sendo que pouco diz respeito às escolhase a pertinência das texturas gerais, notas (acréscimos e supressões) e outros elementos musicais distintos daagógica (irrestrito emprego de rubatos, alargandos, acelerandos) previsivelmente variante da performance semdistinção estilística - eventualmente em função da dificuldade do trecho para a conveniência técnica doviolonista, como ocorre em trechos de obras de Joaquin Rodrigo na revisão do violonista. Além disso, outracontribuição para tal concepção romantizada é que Segovia foi influenciado por técnicas dos instrumentos decorda friccionada, visto que não queria seu violão soando como um alaúde ou cravo . (WADE, 1985, p.27).11 Outros influentes pesquisadores de música antiga foram os britânicos Robert Donington, Thurston Dart e
Nikolaus Harnoncourt (1929), que escreveu as importantes obras Baroque Music Today. Music as Speech. Waysto a New Understanding of Music (1982) e The Musical Dialogue. Thoughts on Monteverdi, Bach and Mozart (1984). (RIBEIRO, 2014, p. 51)
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sonoridade, extemporization e aspectos estilísticos da interpretação. Robert Donington (1907-
1990), aluno de Dolmetsch e autor das obras The Interpretation of Early Music (1963) e
Baroque Music: Style and Performance: A Handbook (1982), se empenha em desenvolver
argumentos e apresentar evidências que suportem a interpretação da música antiga como uma
arte madura em seus próprios méritos, não adaptada aos nossos hábitos modernos de
performance, mas bem ao contrário, instigando o músico a adaptar-se para escapar da
inadvertida modernização da interpretação.
O trabalho dos musicólogos acima mencionados é sumarizado no decorrer do livro de
Graham Wade, The Guitarrist’s Guide to Bach (1985), principalmente no capítulo 5,
Approaches to Ornamentation. Neste capítulo, o enfoque é a ornamentação e embelezamento
na música de Bach, expondo a estética metamórfica da leitura de sua música em diferentes
intérpretes, sejam consagrados violonistas ou outros instrumentistas referenciais da música
barroca. Sua revisão demonstra a gradual transformação na concepção da
autonomia/espontaneidade envolvida na performance deste repertório, apresentando
argumentos de outros reconhecidos autores, tanto favoráveis quanto desfavoráveis à
intervenção do instrumentista no discurso original.
Tais estudos musicológicos e o crescente interesse na performance historicamente
informada agiram para distanciar a interpretação do repertório antigo em geral da leitura
romantizada que vinha sendo adotada pelos intérpretes da primeira metade do século XX.
Apesar da crescente vertente de músicos que passariam a lidar com a performance
historicamente informada, as preocupações de interpretação conforme tais moldes não são
preocupações centrais no meio violonístico brasileiro em geral, sendo geralmente deixadas
para aqueles que se especializam no repertório antigo ou em instrumentos de época.
Ressaltamos que, até hoje, muitos violonistas ainda pautam sua interpretação do repertório
pré-clássico nos moldes da interpretação segoviana, prática atualmente condenada pordiversos autores. Pontuando esse pensamento, Thiago Colombo de Freitas sugere que:
“A tradição romântica de execução da obra de Bach é fruto
do anacronismo resultante do redescobrimento de uma linguagemmusical em uma época musical e filosoficamente diferente e atéantagônica.” (FREITAS, 2005, p. 23)
Inevitavelmente, as novas diretrizes de interpretação da música antiga impactaram
também na forma de transcrever o repertório bachiano para o violão. Seguindo a introduçãoda tese de Costa (2012), a tendência atual de transcrição bachiana no meio violonístico
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internacional vinha se aproximando cada vez mais da escrita original, gradualmente deixando
de adicionar baixos e preenchimentos harmônicos nos Sei solo à Violino senza Basso
accompagnato (BWV 1001-1006). O desenvolver de seu trabalho contraria esta tendência de
pretensa autenticidade, apoiando-se no procedimento do próprio J.S. Bach ao reelaborar suas
obras de um meio instrumental ao outro: adicionar quanta harmonia julgasse necessário desde
que o instrumento de destino a comportasse, visando maior elaboração polifônica ao discurso
(ressaltamos que são adições de teor contrapontístico característico da obra bachiana,
refletindo preocupações horizontais na condução das vozes em suas adições). Sua conclusão é
que uma pretensa fidelidade ao texto original para transcrever é anacrônica e equivocada.
Corroborando para tal visão, Brombilla, em sua dissertação, O concerto RV 199: Uma
transcrição para violão segundo os procedimentos utilizados por J.S. Bach no concerto BWV
973, afirma que:
“Como transcritor, Bach jamais aceitou em princípio que asideias originais deveriam ser escrupulosamente respeitadas. Não
somente ele fez alterações técnicas como também as harmonias foram, em muitos casos, ampliadas; a adição de notas de passagem e ornamentos. Um exemplo disso é o Largo do concerto BWV 973, que, apesar das grandes modificações, tem o caráter e oestilo italiano preservado.” (BROMBILLA, 2013, p.22)
Algumas ressalvas podem ser feitas a respeito do posicionamento Brombilla quanto à
tentativa de legitimação de suas reelaborações através da fidelidade ao procedimento
composicional de Bach, e não em seu discurso escrito. Para o compositor, em sua época, não
havia problematização em torno de respeitar ou não as ideias originais, já que este conceito de
fidelidade é derivado do resgate muito posterior de um pensamento musical que pretende
reavivar práticas descontinuadas. Bach é um transcritor segundo o viés de um músico do
século XX ou XXI, mas, em seu contexto, o reelaborar fazia parte de seu processo
composicional. Categorizar a prática composicional de Bach como transcrição já é por si só
um anacronismo.
A importância histórica da versão da Ciaccona BWV 1004 de J. S. Bach por Segovia é
indiscutível, tanto como marco na carreira do violonista quanto para o desenvolvimento do
violão de concerto no século XX. No entanto, ao analisarmos as soluções de Segovia para o
discurso da obra por meio de uma abordagem contrapontística detalhada, muitas destas
sobressaem-se como impróprias. Tanto a sua gravação de 1955 (pela gravadora DeutscheGrammophon), quanto a versão publicada em 1934 (pela editora Schott) mostram
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procedimentos que tendem à verticalização dos eventos harmônicos da peça – transformando,
sintetizando e reforçando os blocos acordais e pedais harmônicos – , ao invés de valorizar o
discurso horizontalmente, ou seja, de propor um tratamento melódico contrapontístico nos
vários planos sonoros, a exemplo de vozes independentes no preenchimentos de melodias
intermediárias e o encaminhar da linha do baixo por graus conjuntos, como uma melodia
cantável.
Nesta monografia, comentamos pontos representativos da transcrição de Segovia e
trazemos para uma análise idiomática comparativa com a ainda inexplorada transcrição de
Abel Carlevaro, de 1989, que conta com inúmeras intervenções técnicas e musicais via
supressão e acréscimos de notas em comparação à transcrição de Segovia e o manuscrito
original de Bach – que o uruguaio declara ser sua principal fonte. O grande enfoque na
transcrição de Segovia é necessário para que possamos compreender até que ponto Carlevaro
manteve-se fiel ao manuscrito e ao pensamento contrapontístico bachiano, investigando a
fundo se sua transcrição também compartilha da visão acordal segoviana.
A Ciaccona BWV 1004 já vem sendo estudada academicamente por iniciativa de alguns
violonistas brasileiros no século XXI. Seus trabalhos, frutos de pesquisas na área de pós-
graduação em música, se encarregam de revisar as transcrições consagradas, questioná-las
quanto aos critérios apresentados em cada trabalho e oferecer uma transcrição própria como
resultado do confronto com a obra original.
O primeiro destes trabalhos é a dissertação de Thiago Colombo de Freitas, Ciaccona em
Ré menor BWV 1004 de J.S. Bach: um estudo das articulações e uma transcrição para violão,
orientado por Daniel Wolff na UFRGS em 2005. Nessa pesquisa, Freitas confronta a versão
original para violino com diversas transcrições, não só para violão, e analisa o emprego das
articulações, principalmente as ligaduras, e suas propriedades retóricas inerentes da escrita
musical do período barroco. Também em sua dissertação, Freitas faz breve menção a duas performances da Ciaccona acompanhada por canto, consequência do livro Johann Sebastian
Bach. Ciaccona - Tanz oder Tombeau?: Eine analytische Studie (1994), da violinista Helga
Thoene. A musicóloga alemã investiga extensivamente a obra como um Tombeau para a
morte da esposa de J.S. Bach, Maria Bárbara Bach, que morreu e teve seu funeral enquanto o
compositor esteve ausente em uma de suas longas viagens.
Em 2010, também orientado por Wolff na UFRGS, Alisson Alípio estuda O processo de
digitação para violão da Ciaccona BWV 1004 de Johann Sebastian Bach em sua dissertação.
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Seu trabalho é voltado para o processo de digitação de mão esquerda de um modo geral,
aplicando-o nesta peça como forma de exemplificar os métodos expostos pelo autor.
Em 2012, Gustavo Costa defende sua tese Seis sonatas e partitas para violino solo de J.S.
Bach ao violão: fundamentos para a adaptação do ciclo, pela USP. Baseando-se em modelos
de transcrições de suítes ou movimentos soltos da época de Bach, seu foco consiste em
transcrever os ciclos violinísticos para violão sem a pretensão de autenticidade, mas
atendendo ao próprio modo bachiano – que de certa forma já é uma tentativa de validar sua
proposição artística através da autenticidade ao procedimento de Bach -, onde as
possibilidades harmônicas do instrumento de destino irão influenciar diretamente na textura e
nos contrapontos. Estudando também as diversas transcrições dos ciclos por violonistas de
renome internacional, inclusive da Ciaccona, o trabalho de Costa tornou-se um importante
referencial para esta pesquisa.
Enquadramo-nos neste panorama de estudos sobre a Ciaccona abordando a versão de
Abel Carlevaro com o intuito de averiguar suas escolhas técnico-musicais em comparação às
soluções de outros violonistas. Vai além da proposta deste trabalho a elaboração de uma
transcrição própria ou a escolha de uma das já existentes como objetivamente superior. Para
contextualizarmos as soluções idiomáticas da transcrição e o idiomatismo composicional
próprio de Carlevaro, apresentamos no próximo capítulo o idiomatismo violonístico.
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CAPÍTULO 2: Idiomatismo Violonístico
Neste capítulo, apresentaremos uma revisão do conceito de idiomatismo
12
. Em música,tal conceito pode significar a linguagem pessoal de determinado compositor em seus
procedimentos técnico-composicionais próprios, ou diz respeito às questões instrumentais e
de seus elementos musicais (PEREIRA & GLOEDEN, 2012). Desta forma, podemos nos
referir ao conceito de idiomatismo aplicado às possibilidades musicais do violão, o
idiomatismo violonístico.
Para este trabalho, é fundamental o entendimento do idiomatismo violonístico para
nossas análises comparativas das decisões de cada violonista em suas transcrições da
Ciaccona BWV 1004. A análise idiomática é o processo de identificação de soluções técnico-
mecânicas idiomáticas (ou a ausência delas) em determinado discurso musical, à parte de
questões estilísticas, oferecendo pistas quanto ao intuito pretendido e o pensamento estético
do compositor ou reelaborador. Adotamos a análise idiomática como alternativa aos
procedimentos de análises formal e harmônica já bem explorados em trabalhos acadêmicos,
acompanhando uma tendência recente nos trabalhos de revisão do repertório violonístico.
Sumarizamos no primeiro tópico, revisão do conceito de idiomatismo violonístico, sua
construção através da revisão da literatura de alguns trabalhos que com ele lidam – quando se
referia ao fenômeno indiretamente, sem a associação com o termo, ou diretamente, já como
ferramenta analítica do repertório. No tópico seguinte, idiomatização e transcrição, nos
aprofundaremos na contribuição mais recente em torno das discussões conceituais sobre
idiomatismo, a proposição de Ribeiro (2014) do termo idiomatização, refletindo sobre a
transcrição em função do idiomatismo. O último tópico, idiomatismo violonístico em Abel
Carlevaro, identifica soluções idiomáticas no processo composicional de Abel Carlevaro
através de uma breve análise idiomática de sua peça Campo.
12 “ Idiomático. Sobre uma peça musical, explorando as potencialidades particulares de um instrumento ou voz para o qual é intencionado. Essas potencialidades podem incluir timbres, registros, e meios de articulaçãoassim como combinação de alturas que são mais facilmente produzidas em um instrumento do que em outro.(...)
O surgimento do virtuoso (...) no século XIX é associado com uma escrita crescentemente idiomática, inclusiveem músicas que não são difíceis tecnicamente.” Apel, Willi. Harvard Dictionary of Music. 2nd ed. 1969 (APUD.CARDOSO, 2006, p. 12)
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2.1 Revisão do conceito de idiomatismo violonístico
O idiomatismo violonístico pode ser considerado o conjunto de possibilidades musicais
intrínsecas do instrumento. Segundo Cardoso, o termo é aplicado para descrever “o uso
composicional do violão no ato de criação, quando explora ao máximo as potencialidades do
instrumento” (2006, p. 12). Scarduelli afirma que este conceito
refere-se ao conjunto de peculiaridades ou convenções quecompõem o vocabulário de um determinado instrumento. Estas peculiaridades podem abranger desde características relativas às possibilidades musicais, como timbre, dinâmica e articulação, atémeros efeitos que criam posteriormente interesse de ordem musical(SCARDUELLI, 2007, p.139).
Ainda em seu trabalho, sugere duas novas subcategorias para classificar os recursos
idiomáticos no violão, os implícitos e os explícitos. Os recursos implícitos são “a escolha de
centros, modos e tonalidades que favoreçam um amplo uso de cordas soltas no instrumento”,
enquanto os explícitos “ são aqueles que exploram características e efeitos peculiares do
instrumento, utilizados para a elaboração de idéias ou motivos musicais” (p. 142-43).
Marco Pereira (1984), em sua dissertação Heitor Villa-Lobos: sua obra para violão,
aponta para o processo composicional de Villa-Lobos pautado pelo idiomatismo violonístico,mas atendo-se a uma enumeração dos procedimentos idiomáticos presentes em sua obra sem
relacioná-los ao conceito de idiomatismo instrumental – até então inexistente como tal na
literatura acadêmica brasileira.
Os compositores que o antecederam, e mesmo seuscontemporâneos, serviram-se do violão para exprimir umalinguagem musical mais geral, quer dizer, comum a outrosinstrumentos. Villa-Lobos foi, seguramente, o primeiro a utilizar
aquilo que lhe era exclusivo, a essência do instrumento, comomaterial temático. Ele se serviu, frequentemente, de evidênciasdigitais para construir sua matéria musical, partindo de umadigitação prefixada para obter certos resultados sonoros. Isto é desuma importância visto que sua atitude não era só de impor aoinstrumento os sons que estavam em sua mente mas também defazer com que ele soasse com sua linguagem própria. Além disso,soube utilizar de maneira muito pessoal os elementos técnicosvulgarizados a mais de duzentos anos. Os efeitos de ligados,trêmolos, harpejos e escalas, ganham uma nova dimensão naescrita do compositor. A utilização do quinto dedo da mão direita para a execução de acordes “plaqués” de cinco sons também foi
colaboração sua. Esses exemplos são abundantes e em quase todasas suas peças temos algo de especial, um carimbo, a marcaregistrada do compositor. (PEREIRA, 1984, p.109)
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Maurício Orosco (2001), em sua dissertação O Compositor Isaias Savio e sua obra para
violão, chama a atenção para o que denominou Clichés de Mão Esquerda junto a outras
definições de processos de escrita violonística como Digitação Melódica Avançada e
Digitação Harmônica Avançada. Sobretudo o primeiro, Clichê de Mão Esquerda, tem relação
direta com a citação do processo acima por Marco Pereira, referente a formulações fixas no
braço do violão pela mão esquerda, que se mantém inalteradas em várias posições deste,
durante a execução de uma determinada ideia musical. Isaias Savio, foco do trabalho de
Orosco, utiliza-se frequentemente deste recurso em suas composições, inclusive, em
determinados momentos como material musical. Portanto, mais uma vez aqui, como ocorrera
em Marco Pereira, tal processo ainda não havia sido vinculado ao conceito de idiomatismoviolonístico.
O pioneirismo do idiomatismo violonístico como conceito analítico é reivindicado por
Thomas Cardoso (2006), em sua dissertação Um violonista-compositor brasileiro: Guinga. A
presença do idiomatismo em sua música. Neste trabalho, seu enfoque musical é na análise do
uso de cordas soltas e formas características de mão esquerda como elementos estruturantes
no processo composicional de Guinga, relacionando-os à ocorrência destas expressões
idiomáticas do instrumento em Leo Brouwer e Villa-Lobos.Fabio Scarduelli (2007), em sua dissertação A obra para violão solo de Almeida Prado,
estuda o idiomatismo nas quatro peças compostas para violão pelo compositor paulista. O
trabalho de Scarduelli teve maiores desdobramentos acadêmicos na difusão do conceito.
Marcelo Fernandes Pereira, em sua tese A contribuição de Camargo Guarnieri para o
repertório violonístico brasileiro (2011), investiga e discute a viabilidade técnica das peças
deste compositor para violão, impopulares no ensino do instrumento e em programas de
concerto, submetendo-as à análises idiomáticas no capítulo Idiomatismos e a relação-esforço.
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2.3 Idiomatização e Transcrição
Na dissertação de Sergio Ribeiro (2014), Reelaborações para violão da obra de J.S.
Bach: análise das versões de Francisco Tárrega e Pablo Marquez da Fuga BWV 1001,
orientado por Nicolas de Souza Barros na UNIRIO, o autor sugere o termo idiomatização
seguindo as diretrizes da tese de Flávia Vieira Pereira (2011), As práticas de Reelaboração
Musical , que, por sua vez, propõe delimitações conceituais menos subjetivas para os termos
que se referem ao processo de reelaboração musical.
Vemos até aqui, portanto, o caminho terminológico do entendimento daquilo que
venha a ser uma execução natural de qualquer ideia musical no violão. Anteriormente a
consolidação do termo idiomatismo, a autora anteriormente mencionada, Flávia Pereira,
propõe distinções entre processos musicais como transcrição, arranjo, adaptação, dentre
outros, tendo como ponto de partida a exequibilidade em uma análise final. Flávia Pereira
distinguirá, por exemplo, transcrição de arranjo via observação do que considerou de maior
importância – o nível de reelaboração musical. Para ela, arranjo demandará maior nível de
elaboração musical, embora deva sempre partir da ideia original (2011, p. 175), caso
contrário, seria uma paráfrase (rumo a uma ideia musical nova).
Sérgio Ribeiro propõe a idiomatização para uma das categorias de adaptação sugerida
por Flávia Pereira, para evitar confusões terminológicas, considerando uma reelaboração
musical que apresenta soluções de transcrição com considerável recriação musical do material
original em função do idiomatismo do instrumento. A idiomatização é definida pelo autor
como:
a reelaboração que visa não só possibilitar a interpretaçãonas novas possibilidades físicas do instrumento de destino, mastransformar os elementos da obra em função do novo meio,apresentando alterações tanto em aspectos ferramentais (meioinstrumental, altura, timbre, textura, sonoridade, articulação,acento e dinâmica) como estruturais (estrutura melódica,harmônica, rítmica e formal), exceto na estrutura formal.(RIBEIRO, 2014, p. 58).
Ressaltamos a existência de trabalhos acadêmicos que se valem do entendimento
crítico e prático das soluções violonísticas e musicais de seus objetos de estudos, porém sem
aderirem ao uso dos termos e conceitos que designam tais práticas, ainda sim com a
necessária competência nos resultados finais. Por outro lado, acreditamos que os conceitos de
transcrição e idiomatização discorridos neste trabalho melhor delimitam as práticas, a fim de
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otimizar a descrição e facilitar a referência à tais processos de reelaboração, embora a
compreensão terminológica dos conceitos seja perfeitamente descartável para a prática em si.
Como forma de exemplificar a tênue diferença entre transcrição e idiomatização, no
exemplo abaixo (Fig. 8), inspecionamos em Cádiz13 um momento que sumariza os processos
utilizados por cada um no decorrer da peça:
Figura 7: Isaac Albéniz, Cádiz, original para piano, compassos 69-72.
13 Na tese de Maurício Orosco, Concerto para violão e orquestra de Francisco Mignone: edição crítica a partirda versão de Sérgio Abreu (2013), o segundo capítulo fundamenta a revisão crítica presente no repertórioviolonístico através de uma análise da prática de diversos transcritores referenciais no decorrer da história.
Dentre seus exemplos, analisa o trabalho de três violonistas na transcrição de Cádiz para o violão, quartomovimento da Suíte Espanhola composta originalmente para o piano por Isaac Albéniz. É através do estudodesta análise em particular que elaboramos o exemplo aqui empregado.
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Figura 8:Isaac Albéniz, Cádiz, reelaborações de Francisco Tárrega, Manuel Barrueco, Julian Bream, compassos 69-72.
Neste trecho de Cádiz, Julian Bream realiza inventivas intervenções que caracterizamseu processo como idiomatização, enquanto Francisco Tárrega e Manuel Barrueco tentam
manter a fidelidade à melodia original (Fig. 7), que configura seus trabalhos como
transcrição. A seta indica um momento onde Bream se inspira no gênero flamenco para
encontrar uma solução criativa para o trecho que funcione melhor ao violão, e não na obra em
si, como fizeram Tárrega e Barrueco no mesmo trecho.
Também como um processo de idiomatização, demonstraremos no decorrer das
análises do capítulo 3 a ação de Gustavo Costa (Figs. 20, 25, 30, 35) e Feruccio Busoni (Figs.
15, 19, 24, 29, 34) em suas reelaborações da Ciaccona. Categorizamo-las como tal por sua
ampla ação criativa na adição de material musical que diferencia significativamente a
resultante musical do original. Costa age para complementar contrapontisticamente o discurso
bachiano de acordo com as possibilidades que oferecem o violão, alterando-o em sua estrutura
melódica. Busoni reelabora elementos rítmicos e melódicos para explorar todas as
possibilidades sonoras do piano, como demonstra Flávia Pereira (2011). Já Segovia e
Carlevaro serão vistas como transcrições, com alterações num âmbito de textura (e esparsas
adições contrapontísticas), através de suas adições de preenchimentos harmônicos e notas
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pedais, de caráter secundário ao discurso original do violino, ainda claramente reconhecível
em todos os momentos da obra.
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2.3 Idiomatismo violonístico em Abel Carlevaro
O idiomatismo violonístico vem sendo efetivamente incorporado no processo
composicional da música de concerto desde o início do século XX, momento de particular
efervescência de um nacionalismo tardio no Brasil, onde a figura do compositor resgataria as
melodias e instrumentação oriundos do folclore popular. O violão, que neste momento
histórico enfrentava o escárnio dos músicos clássicos, inspira e conquista ainda jovem o
compositor Heitor Villa-Lobos (1887-1959), que sagrou-se pioneiro na escrita idiomática14
para o instrumento, onde o próprio funcionamento técnico do violão inspira a matéria prima
musical. Seus Doze Estudos tornaram-se emblemáticas no repertório violonístico por
tratarem-se de peças de resultado musical de grande efeito, escondendo os limites (volume
reduzido e mecânica limitadora das capacidades polifônicas) e sublinhando as potencialidades
(possibilidades de nuances timbrísticas e agógicas) do violão (PEREIRA & GLOEDEN,
2012, p. 528).
Em 1943, Abel Carlevaro é convidado por Villa-Lobos para visitá-lo no Rio de
Janeiro, momento em que tem a oportunidade de estudar sua obra violonística, em especial os
doze estudos, estreando seus prelúdios 3 e 4 durante seu período na cidade. Assim como
Villa-Lobos, Carlevaro como compositor também adota a técnica do instrumento como fonte
inspiradora em uma escrita idiomática. Para exemplificar seu tratamento característico do
discurso musical pautado pela acessibilidade à mecânica do violão, demonstramos alguns
trechos ilustrativos de Campo, terceira peça das cinco contidas em seus Prelúdios
Americanos, dedicados a Andrés Segovia.
14 “[...] Podemos dizer que uma escrita idiomática [...] é aquela que é construída sobre movimentos maisnaturais para o instrumento, ou movimentos ergonômicos, cuja realização resulta em maior aproveitamento na
relação esforço/resultado. Dentro desse princípio, distensões e contrações dos dedos, pestanas requeridas porlongos períodos e grandes saltos da mão esquerda do violonista, seriam, por exemplo, menos ergonômicos e porisso, mecanicamente menos idiomáticos.” (PEREIRA & GLOEDEN, 2012, p. 528)
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30
Figura 9:Abel Carlevaro, Prelúdios Americanos: III. Campo, tema A.
O uso abundante de cordas soltas, sempre indicado pelas setas nas figuras deste tópico, é
uma característica marcante de seu procedimento composicional. Citamos abaixo uma
explicação mais detalhada a respeito da relação deste procedimento com o idiomatismo
violonístico dos autores Marcelo Fernandes Pereira e Edelton Gloeden, no artigo
Apontamentos sobre o idiomatismo na escrita violonística:
Em termos de potência sonora, o uso de cordas soltas ou denotas cujos harmônicos coincidam com as cordas soltas doinstrumento trazem vantagens acústicas, pois os harmônicosnaturais do instrumento reforçariam a sonoridade resultante(SCARDUELLI, 2006. p. 141). Por esse motivo, o manejo dascordas soltas – tanto sua utilização dentro da composição quantoconsiderar seus harmônicos em termos de reverberação porsimpatia - tem um papel importantíssimo para a criação de umaescrita idiomática [...], as cordas soltas proporcionam aindavantagens sob o aspecto mecânico (PEREIRA & GLOEDEN 2012, p. 528)
A estrutura do primeiro tema (Fig. 9) faz amplo uso de cordas soltas em momentos detransição de posições da mão esquerda, empregando os mecanismos básicos da técnica
violonística, aspecto que certamente age para garantir maior fluência da música sem debilitar
o fraseado e a complexidade harmônica da peça.
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Figura 10: Abel Carlevaro, Prelúdios Americanos: III. Campo, compassos 45-49.
O tema da parte B (Fig. 10) aproveita as possibilidades de apresentação de
posicionamentos transversal e longitudinal da mão esquerda – ao mesmo tempo em que
exercita este aspecto técnico – contando apenas com uma mudança de posição ao ir para uma
pestana na casa VII. Ambos os trechos exemplificam a escrita idiomática de Carlevaro,adotando cordas soltas intercaladas às notas presas sempre que necessário na construção e
elaboração de suas ideias musicais, sempre evitando a interrupção do valor da nota através de
saltos partindo de uma nota presa. Abaixo, dois exemplos de uso de posições avançadas do
braço do violão – coincidindo com grande tensão musical – onde Carlevaro mantém a fluidez
e minimiza a dificuldade técnica através do uso destes elementos idiomáticos:
Figura 11: Abel Carlevaro, Prelúdios Americanos: III. Campo, compassos 18-19.
Figura 12: Abel Carlevaro, Prelúdios Americanos: III. Campo, compassos 60-64.
Verificamos momentos onde ocorrem idiomatismos implícitos, pela maneira como
ocorrem as cordas soltas decorrentes da harmonia centrada em Si menor, e explícitos, em
decorrência do aproveitamento da forma de mão esquerda (Fig. 11) e também pelo efeito
gerado pela sobreposição dos dois planos melódicos, o principal, conduzido nos baixos e osecundário, composto pelo oportuno pedal invertido de cordas soltas (Fig. 12).
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CAPÍTULO 3: Análise Idiomática da Ciaccona BWV 1004
Neste capítulo, confrontaremos o manuscrito original com diferentes transcriçõesatravés de uma análise idiomática de trechos selecionados nos primeiros sessenta compassos
da Ciaccona BWV 1004. Circunscrevemos estas primeiras ocorrências para o embate não só
pela grande extensão da obra, mas principalmente pois as soluções idiomáticas detectadas são
recorrentes em conteúdo e passam a ser repetitivas no decorrer do discurso como um todo.
Buscaremos justificar os motivos de cada solução pensando nas possibilidades idiomáticas
que o violão oferece como novo meio instrumental para a obra. Nosso intuito é evitar o juízo
de valor das propostas das duas importantes figuras do violão do século XX, procurando
entender as escolhas/decisões musicais no contexto histórico que cada um fez parte. Em suma,
a análise iniciada no tópico a seguir atende a três objetivos centrais:
I. Demonstrar como agiu Segovia na elaboração de sua consagrada reelaboração
da Ciaccona para violão, estabelecendo paralelos com Busoni e
fundamentando suas soluções de acordo com o contexto pioneiro que
enfrentou esta adaptação da grandiosa obra de J.S. Bach;
II. Descobrir até que ponto Carlevaro foi influenciado pela maneira segoviana (e
também indiretamente a de Busoni) de lidar com a Ciaccona e se procede sua
declarada postura de fidelidade em relação ao original para violino.
III. Entender as escolhas de Carlevaro e Segovia que conflitam com os princípios
contrapontísticos do discurso bachiano segundo o entendimento atual, através
do confronto com as soluções de Gustavo Costa, a exemplo de como procedem
os transcritores no século XXI.
No decorrer das análises, serão empregados recortes das partituras dos trechos de cada
um dos autores na seguinte ordem:
I. Johann Sebastian Bach, manuscrito original;
II. Andrés Segovia, transcrição de 1934;
III. Ferruccio Busoni, idiomatização de 1916,;
IV. Gustavo Costa, idiomatização de 2012, exceto no exemplo 1; 15
V. Abel Carlevaro, transcrição de 1989.
15 A reelaboração da Ciaccona de Gustavo Costa pode ser encontrada na página 50 dos anexos de sua tese.
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3.1. Confronto de partituras de pontos representativos da Ciaccona BWV 1004
Exemplo 1
Figura 13: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 1-4, manuscrito original.
O primeiro exemplo a ser destrinchado é o tema principal da peça, apresentado nos primeiros quatro compassos, que já se encontra modificado em relação ao violino (Fig.13).
Notemos abaixo o preenchimento dos acordes na versão de Segovia (Fig. 14), potencializando
cada seguimento acordal da obra e, com isso – desde o início – reforçando a prática da
verticalização das linhas em blocos:
Figura 14: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 1-4, transcrição de Segovia.
Especulamos que a razão por trás dos preenchimentos de acordes (indicados com
setas) diz respeito a tentativa de encorpar a sonoridade do violão, dando-lhe maior
profundidade ao fazê-los soarem com mais harmônicos. Esta solução estaria ligada
possivelmente a intenção de Segovia de causar logo no início da obra um impacto positivo no
público que encontrava-se incrédulo das potencialidades do violão em seu período da estreia
(1935). Com uma boa impressão inicial, imagina-se que o convite a escuta do restante da obra
no violão estaria feito. Este início pronunciado com maior veemência já pode ser observado
em Busoni ao piano (Fig.15):
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Figura 15: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 1-4, idiomatização de Busoni.
Já em Carlevaro (Fig. 16), verificamos que a solução segoviana é apresentada como
uma ossia, mas o discurso preferencial é equivalente ao original do violino. A opção por umatextura menos densa será característica em sua transcrição, como esta escolha demonstra.
Nota-se, porém, na última seta, a adição do Lá solto já presente em Segovia, contradizendo o
discurso original que trás apenas o Ré 3 e optando por um encaminhar contrapontístico
inusitado sem a resolução ascendente da sensível Dó#3 prevista no violino.
Figura 16: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 1-4, transcrição de Carlevaro.
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Exemplo 2
Figura 17: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 17-24, manuscrito original.
Neste outro exemplo podemos observar, no segundo membro da segunda variação,
que Segovia (Fig. 18) adiciona notas não previstas no original (Fig. 17). Seu pensamento aqui
atende novamente ao funcionamento idiomático do violão, sobrevalorizando ainda mais seu
aspecto acordal. Trata-se não apenas de um procedimento de preenchimento, mas também um
recurso de variação para uma ideia propositalmente redundante na linha melódica original –
que, no violino, corresponde a uma escrita consideravelmente carregada, tendo em vista as
limitações do instrumento no que diz respeito a polifonia.
Figura 18: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 17-24,.transcrição de Segovia.
As inclusões de notas por Segovia preenchem os acordes com notas implícitas na
harmonia, procedimento também visto em Busoni (Fig. 19), mas ignorando a coerência
horizontal/contrapontísticas do estilo bachiano. Partindo de estudos musicológicos posteriores
à reelaboração de Segovia, que observam a constituição do contraponto em vozes extremas ou
intermediárias, a solução para o trecho de Gustavo Costa (Fig. 20) adiciona uma terceira voz,
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promovendo a variação outrora desejada por Segovia, porém atentando para a construção
polifônica da obra:
Figura 19: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 17-24, idiomatização de Busoni.
Figura 20: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 17-24, idiomatização de Costa.
Figura 21: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 17-24, transcrição de Carlevaro.
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Como contraste às soluções de Segovia e Costa, Carlevaro (Fig. 21) segue a ideia do
manuscrito original (também mantida em Busoni, Fig. 19), mantendo o discurso em apenas
duas vozes e sem adicionar notas até o momento onde o próprio Bach carregaria a textura
com a adição de uma passageira terceira voz, momento em que Carlevaro insere Si e Lá.
Portanto, Carlevaro aqui é fiel ao manuscrito e a preocupação com a redundância que tiveram
Costa e Segovia também é adereçada, embora não por adições de notas, mas através de uma
diferente digitação que explora a sonoridade da corda dois para o início do trecho em sua
repetição.
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Exemplo 3
Figura 22: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 24-27, manuscrito original.
Dando sequência aos exemplos com a próxima variação, notemos pelo primeiro
círculo assinalado que Segovia (Fig. 23) segue o original e deixará a sensível Dó# na voz
superior sem resolução no compasso 24, mantendo o caráter da resolução descendente doviolino, momento em que poderia ter carregado a textura com uma adição
contrapontisticamente pertinente. Segovia também ressalta a repetição da nota Ré da sexta
corda solta no compasso 25 (segundo círculo assinalado), servindo ao caráter expressivo
presente em Busoni (Fig. 24). O violonista aqui antecipa o movimento rítmico apresentado
por Bach (Fig. 22) nos dois compassos seguinte (Bach opta por começar o movimento do
baixo: colcheia, pausa de colcheia e semínima no compasso 26). Para este Ré também
supomos uma inspiração de Segovia em Busoni que, como demonstra a seta, também atacaráno segundo tempo, porém em um padrão rítmico diferente e aproveitando-se do
preenchimento acordal idiomático do piano.
Figura 23: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 24-29, transcrição de Segovia.
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Figura 24: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 24-27, idiomatização de Busoni.
Figura 25: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 24-29, idiomatização de Costa.
Em Costa (Fig. 25), circulamos a adição da resolução da sensível Dó# com a adição de
um Ré4 no compasso 25. Costa efetuará também o acréscimo nos compassos 28-29,
exemplificando um tratamento contrapontístico em função das possibilidades harmônicas do
violão. Nas setas dos compassos 26 e 27, percebemos a transformação da linha de baixo em
uma nova voz, usando as mesmas notas apresentadas no início desta nova variação oitava
abaixo (Fá-Mi-Ré-Dó#) como um contracanto motívico, ao invés de simplesmente pontuar
harmonicamente a progressão original de acordes.
Figura 26: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 24-27, transcrição de Carlevaro.
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É verificável nos círculos em Carlevaro (Fig. 26) o mesmo procedimento de Segovia
na adição de preenchimentos em cordas soltas, oitavando duas notas Lá e um Ré que não
estão presentes no manuscrito original. Tendemos a encarar pontos em comum como estes
como a influência indireta que o pensamento acordal de Segovia exerceu em Carlevaro.
Podemos perceber esta influência em nível de inspiração e não de cópia, pois Carlevaro
reforça (e antecipa) os baixos em sua versão – à maneira de Segovia – mas segue na nova
variação sem a repetição do mesmo, dando certa autonomia ao fragmento melódico da nova
variação (como faz o violino).
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Exemplo 4
Figura 27: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 31-38, manuscrito original.
Verificamos agora os compassos 31-38, trecho particularmente rico em diferentes
adições de notas em cada um dos analisados. Assinalamos com uma linha o surgimento deuma voz contrapontística em Segovia (Fig. 28), inspirado em Busoni (Fig. 29). As setas
indicam o preenchimento acordal que demarca a mudança de variação com uma textura mais
densa, que é o mesmo procedimento idiomático empregado por Busoni, de carregar a textura
segundo o que comporta o instrumento, como também vimos no exemplo anterior. Importante
destacar aqui que Segovia também preenche esta textura segundo o que o violão comporta, ou
seja, com as resoluções em três notas (cordas Lá, Ré e Sol) para tensões precedentes em duas
cordas, em clara preocupação acordal junto à linha do baixo. Notemos também, no compasso
36, que o violão não comporta a manutenção da resolução em três cordas, momento em que
Segovia opta por utilizar-se de duas (notas Lá - Fá).
Logo em seguida, no compasso 37, circulamos a adição de uma linha de baixo por
parte de Segovia, que irá ressaltar Sib e Sol# da voz superior, como fez Busoni. Enfatizamos
que as notas escolhidas por Busoni em seu acompanhamento – Sib-Si – oferecem um
caminho cromático que contempla sutilmente a progressão harmônica de T – DD, enquanto
Segovia escolhe notas exatamente equivalentes às fundamentais das mesmas funções
harmônicas, uma vez mais, portanto, enfatizando a harmonia básica – o pensamento vertical
que sempre ressaltamos em cada um dos exemplos. O compasso 38 reforçará essa conduta de
Segovia, ao apresentar baixos em cordas soltas, 5ª, 4ª e 6ª.
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Figura 28: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 31-38, transcrição de Segovia.
Figura 29: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 31-38, idiomatização de Busoni.
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Em Costa (Fig.30), a linha indica uma alternativa ao contraponto de Busoni e Segovia.
Os losangos ressaltam a adição do contraponto, formando uma única voz horizontal clara e
concisa, diferente das adições acordais segovianas. Circulado, percebemos também o
tratamento contrapontístico da adição da linha de baixo.
Figura 30: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 31-38, idiomatização de Costa.
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Figura 31: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 31-38, transcrição de Carlevaro.
Ressaltamos com a linha reta a opção de Carlevaro (Fig.31) pela textura menos
carregada de acordo com o manuscrito, sem a adição de baixos, a exceção de apenas um Ré2 da sexta corda solta que pontua o início da variação. Nas setas, vemos a adição de uma única
nota onde os demais fazem preenchimentos mais densos, que sugere o movimento Ré4 – Dó4
– Sib3, que, apesar de simples, garante ênfase no caráter descendente da linha melódica.
Circuladas estão as mesmas adições de baixos empregadas por Segovia (por sua vez inspirada
em Busoni), demonstrando claramente sua referência na versão segoviana.
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Exemplo 5
Figura 32: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 56-60, manuscrito original.
Entre os compassos 57 e 60 temos um exemplo bastante representativo da busca de
Segovia (Fig. 33) por uma sonoridade robusta no violão, porém, neste trecho, combinada a
intenção do autor em delimitar o início de uma nova variação da progressão harmônica. Na
seta do compasso 57, Segovia adiciona o baixo Ré2 da sexta corda solta, que promove uma
resolução contundente da cadência que se desenhara no compasso 56 e também imprime um
padrão de sonoridade encorpada para a nova variação – confirmada pela anotação “f” junto ao
início do mesmo compasso. Ao verificarmos este padrão iniciado na linha do baixo no
compasso 57, observamos que não há continuidade nos compassos 58-60, sendo interrompido
o motivo por limitação de tessitura, deixando de realizar uma nova linha descendente Ré2 –
Dó2 – Si1 que seria sugerida pelo primeiro Ré2.
Figura 33: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 56-60, transcrição de Segovia.
A versão de Busoni (Fig. 34), na qual Segovia se inspira em muitas de suas soluções,
tampouco promove a resolução da D – T dos compassos 56-57 de modo tão contundente.
Mesmo indicando “f” e articulação marcatissimo, Busoni respeita as oitavas originais (Fig.
32), o que reforça o indicativo do ideal sonoro por parte de Segovia, uma vez mais
sobrevalorizando os blocos harmônicos – já tão claros e implícitos – ao invés da linha
melódica.
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Figura 34: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 56-60, idiomatização de Busoni.
A versão de Gustavo Costa (Fig. 35) tomada desde o compasso 56, permite observar o
caminhar natural da harmonia na resolução da dominante na troca de variações entre os
compassos 56 e 57. No compasso 56, Costa adota a sensível Dó# (ao invés dos baixos Lá em
Busoni e Segovia), desfazendo assim o impacto causado na resolução por salto e resolvendo a
sensível melódica meio tom acima, no baixo Ré3. Nota-se, contudo, que Costa compartilha da
ideia segoviana do baixo Ré2 da sexta corda solta no compasso 57, porém, após a resolução
na cabeça do tempo e evitando a repetição do Ré3. De certa maneira, ele também não mantém
de modo estrito a relação intervalar entre a tônica da resolução e o desenho descendente até o
compasso 60 – isso nem seria possível para o violão de seis cordas – , mas mantém o contorno
interno entre os compassos 57-59. O resultado final de sua solução apresenta uma indução,
via contorno de mesmo padrão, a se ouvir os demais contornos dos compassos 58 e 59 como
seguindo uma sequência descendente direta. Em suma, o aspecto horizontal, mesmo não
sendo estritamente seguido por limitações do violão, resulta numa sugestão de escuta
descendente de modo uniforme entre as notas dos primeiro e segundo tempos dos compassos
57-59, na tentativa de garantir um equilíbrio na linha e visando o contraponto na harmonia
empregada.
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Figura 35: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 56-60, idiomatização de Costa.
Figura 36: Johann Sebastian Bach, Ciaccona BWV 1004, compassos 56-60, transcrição de Carlevaro.
Em Carlevaro (Fig. 36), circulamos a escolha pelo Ré2 solto da sexta corda, como fez
Segovia. Notemos na seta a inusitada interrupção da voz superior, o dedo 1 que manteria o
Fá4 pela duração de uma semínima é requisitado uma colcheia antes, exigindo uma pausa
abrupta que rompe a simetria motívica na melódica. Carlevaro abre mão da manutenção desta
nota em função da inevitável repetição de dedo na mão esquerda no próximo compasso,
dando preferência à reutilização do dedo 1 ao invés do imediato (em duração de semicolcheia)
movimento com dedo 3 que aconteceria em Segovia e Costa - ambos sustentam o Fá4 em
semínima (nota-se que aqui Segovia não segue Busoni, que atende ao ritmo original em
colcheias). Tal solução corrobora com nossa conclusão de que Carlevaro optará por soluções
de maior conveniência técnica com objetivo didático, mesmo que debilite a simetria
sequencial da linha melódica superior (as semínimas do terceiro tempo dos compassos 57 e
59).
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Considerações Finais
No primeiro capítulo, conduzimos o leitor pela história da transcrição para violão e
contextualizamos a participação de Andrés Segovia na consolidação do violão concertista.
Evidenciamos como sua transcrição da Ciaccona BWV 1004 fora crucial para este objetivo e
pontuamos que as obras do período pré-clássico passaram por metamorfoses estéticas a partir
da difusão de estudos musicológicos posteriores, introduzindo nossa investigação da
transcrição da obra por outra figura emblemática do violão do século XX, Abel Carlevaro.
No capítulo dois, apresentamos o conceito de idiomatismo violonístico, demonstrando
brevemente como as próprias possibilidades mecânicas básicas da técnica do instrumento
tornam-se matéria prima do pensamento composicional, como no caso de Villa-Lobos e
Carlevaro. Na obra Cádiz de Isaac Albéniz (Figs. 7 e 8), vimos a abordagem inventiva de
Julian Bream que, a partir do estilo flamenco inerente à peça, propõe soluções idiomáticas
conflitantes com uma proposta de fidelidade à ideia original de Albéniz, mas que
potencializam a resolução da cadência Frígia, típica do gênero. Com as análises e
procedimentos mostrados aqui, pudemos demonstrar como o processo de transcrição junto do
pensamento idiomático se transforma em um novo processo, onde o intérprete atua com maior
liberdade, situação que Ribeiro denomina idiomatização (2014, p. 58).Com os exemplos do capítulo três, apontamos uma possível compreensão sobre a
preocupação de Segovia em sua transcrição: conquistar um público ainda descrente, fazendo o
violão soar no máximo de suas possibilidades, independentemente do estilo e das implicações
contrapontísticas da Ciaccona (particularmente evidente nas análise comparativa dos
exemplos 2, 3 e 5). Essa constatação ganha forças sobretudo com o confronto com a
idiomatização de Gustavo Costa, que por sua vez, serve como fonte elucidativa de um
pensamento contrapontístico (Figs. 20, 25, 30 e 35).Constatamos que Carlevaro está atento ao manuscrito original, mas embasa-se em
soluções de Segovia em seu pensamento acordal. Também são encontradas adições de notas
pedais em cordas soltas do registro grave (Lá3 e Ré2), principalmente para pontuar inícios de
variações, constituindo uma linha de baixo composta por repetições de nota e saltos sem o
devido tratamento como linha melódica, portanto, sem função contrapontística (ver Figs. 21,
26, 36). Ainda sim, seus preenchimentos nos acordes são menos densos que seriam em
Segovia (Exemplos 1, 2, 4 e 5). Essa opção por uma textura menos carregada sinaliza a opção
de Carlevaro pela clareza do discurso original e simplicidade em favor da fluidez. Sua
transcrição favorece uma leitura livre de maiores obstáculos técnicos, presumivelmente
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embasada também em pressupostos de sua escola para obter tais resultados. Sugerimos,
portanto, que as soluções de Abel Carlevaro para a Ciaccona BWV 1004 levam em
consideração principalmente seu intuito didático. No âmbito prático, a leitura e estudo da
primeira sessão das três versões para violão constatou que Carlevaro é a mais acessível para
atingir um resultado musical consistente com menor esforço. Tendo em mente sua correlação
com muitas soluções segovianas, também conjecturamos que sua transcrição visa tornar a
proposta segoviana tecnicamente mais acessível, sugerindo ainda uma escuta romantizada
característica das decisões de Segovia.
Costa destaca-se como a versão que melhor transmite a poética barroca conforme o
entendimento contrapontístico que supomos ser esteticamente mais adequada à obra, apesar
da demanda significativa de soluções técnicas mais rebuscadas e complexas. Ainda sim,
apesar de não evidenciado neste trabalho, algumas de suas adições melódicas comprometem a
formação de determinadas tensões entre as vozes do contraponto original bachiano e, por
vezes, algumas tensões suspensas acabam sendo resolvidas precocemente em adições de notas
em novas vozes. Desta forma, a engenhosidade econômica de Bach na elaboração de alguns
dos contrapontos ao violino é ocultada pelo novo material adicionado.
Helga Thoene, em Johann Sebastian Bach. Ciaccona - Tanz oder Tombeau?: Eine
analytische Studie (1994), supostamente evidencia significados numerológicos ocultos no
discurso e suas análises constatam referencias motívica na Ciaconna de suas obras corais que
fazem alusão à morte e ressurreição, tal como no dueto para soprano e contralto da cantata
BWV 4, Christ lag in Todesbanden. A pesquisa de Thoene teve impacto internacional, mas
não está disponível em outra língua senão o alemão, apesar de atuais dissertações e artigos em
língua inglesa difundirem suas descobertas. Freitas (2006) já aponta para a existência deste
trabalho, mas uma investigação aprofundada e as implicações dessas análises na
idiomatização e interpretação da Ciaconna ainda não foi realizada no meio violonísticoacadêmico brasileiro. Concluímos portanto que uma transcrição que atenta ao procedimento
bachiano de adicionar notas conforme a capacidade do instrumento pode aproximar-se da
poética barroca, mas é possível que intervenções deste tipo possam prejudicar a sutil
coerência interna arquitetada por Bach em suas obras primas.
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Referências
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BWV 1004 deJohann Sebastian Bach. Dissertação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010.
BARBEITAS, Flávio T. Reflexões sobre a prática da transcrição: as suas relaçõescom a interpretação na música e na poesia. Per Musi, p.89-97 Universidade Federal deMinas Gerais, 2000.
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BETANCOURT, Rodolfo J. The process of transcription for guitar of J.S. Bach
Chaconne from Partita II for violin without accompaniment, BWV 1004. Dissertação.The Lamont School of Music, Denver, 1999.
BORGES, L. Fabiano F. Trajetória estilística do choro: o idiomatismo do violão desete cordas, da consolidação a Raphael Rabello. Dissertação. Universidade Federal deBrasília, 2008.
BROMBILLA, Marcelo C. O concerto RV 199: Uma transcrição para violãosegundo os procedimentos utilizados por J.S. Bach no concerto BWV 973. Dissertação.Universidade Federal de Goiás, 2013.
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CARLEVARO, Abel. Guitar Masterclass: Volume IV. J.S. Bach – Chaconne BWV1004. Chantarelle Verlag, 1989.
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______. O Processo de transcrição para Violão de Tempo di Ciaccona e Fuga de
Béla Bartok . Dissertação, Universidade de São Paulo 2006.
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