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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO JOSÉ CARLOS PIRES DE CAMPOS FILHO Os pressupostos filosóficos do Estado ético-jurídico na obra “A Cidade de Deus” de Santo Agostinho MESTRADO EM FILOSOFIA DO DIREITO SÃO PAULO 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

JOSÉ CARLOS PIRES DE CAMPOS FILHO

Os pressupostos filosóficos do Estado ético-jurídico na obra “A

Cidade de Deus” de Santo Agostinho

MESTRADO EM FILOSOFIA DO DIREITO

SÃO PAULO

2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

JOSÉ CARLOS PIRES DE CAMPOS FILHO

Os pressupostos filosóficos do Estado ético-jurídico na obra “A

Cidade de Deus” de Santo Agostinho

MESTRADO EM FILOSOFIA DO DIREITO

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora do Programa de Pós-

Graduação em Filosofia do Direito do

Núcleo de Pesquisa em Filosofia do Direito

da Faculdade de Direito da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como

exigência parcial para obtenção do título de

Mestre em Filosofia do Direito sob a

orientação do Professor Livre-Docente

Cláudio de Cicco.

SÃO PAULO

2012

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PIRES DE CAMPOS FILHO, José Carlos. Os pressupostos filosóficos do Estado ético-jurídico na obra “A Cidade de Deus” de Santo Agostinho. 2012. 160 páginas. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.

ERRATA

Folha (página) 1 (Folha de Aprovação da banca examinadora)

Linha 11

Onde se lê Doutor em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

Leia-se Professor Titular Aposentado de Direito Constitucional na Universidade Mackenzie

Folha (página) 10

Linhas 31, 32 e 33

Onde se lê Após a morte de Teodósio, em 395 d.C, seus filhos (Honório, no Ocidente e Arcádio, no Oriente) não foram capazes de deixar unido o Império.

Leia-se Após a divisão feita por Teodósio, em 395 d.C, seus filhos (Honório, no Ocidente e Arcádio, no Oriente) não foram capazes de manter a unidade entre os dois impérios, do Ocidente e do Oriente.

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JOSÉ CARLOS PIRES DE CAMPOS FILHO

Os pressupostos filosóficos do Estado ético-jurídico na obra “A

Cidade de Deus” de Santo Agostinho

Aprovada em ________

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________________

Professor Livre-Docente Cláudio de Cicco

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

__________________________________________________________________

Professor Ives Gandra da Silva Martins

Doutor em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

__________________________________________________________________

Professor Álvaro Luiz Travassos de Azevedo Gonzaga

Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo

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Agradeço ao meu orientador, homem digno e

educador brilhante, que tanto me apoiou e me

ensinou nas aulas e nos encontros em sua

residência durante este período de

aprendizado no caminho do conhecimento da

minha formação acadêmica.

Agradeço a minha competente e eficiente

colega, Marília Chiaradia, na formatação

desta dissertação.

Ao Fernando Franco pelo apoio e

compreensão.

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Aos meus primos e tios por todo apoio.

À minha amada mãe, constante incentivadora

de meus passos na vida, aos meus irmãos,

Eduardo e Fernanda, e à minha querida avó.

Ao Mário e a Cidinha por me quererem bem.

Ao meu pai, pessoa amada e sempre presente

em minha caminhada.

À minha mulher, Carla, amor de minha vida,

pessoa sem a qual esta dissertação não seria

possível. Amor presente que torna presente a

paixão do amor a todo instante por toda a

vida.

Ao meu filho amado, Bernardo, amor

apaixonado, coração de minha família.

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RESUMO

O objetivo desta dissertação é expor os pressupostos filosóficos centrais da teoria do filósofo

Santo Agostinho sobre a natureza do Estado ético-jurídico. O pensamento é aqui

compreendido como uma defesa do Estado justo e da concepção de lei natural contra as

acusações de que o Cristianismo causa prejuízo à comunidade política. A concepção

agostiniana de sociedade justa e feliz permite, ao contrário, aprimorar as virtudes cívicas

como meio para alcançar o bem ‘comum e a paz. A ontologia agostiniana permite que a

verdade seja a referência das virtudes e dos vícios, como preceitos do agir capazes de formar a

unidade de uma civilização. A “Cidade de Deus” é a alegoria de sociedade justa presente no

mundo através dos tempos em convivência com o Estado terreno.

Palavras-chave: lei, natural, pressupostos, filosóficos, justo, sociedade, comunidade, política,

bem-comum, feliz, virtudes, ontologia, civilização, Estado, Cidade de Deus.

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ABSTRACT

The objective of this dissertation is to expose the philosophical assumptions of the theory of

the philosopher St. Augustine on the nature of the ethical and legal State The thought here is

understood as a defense of the just State and of the conception of natural law against

accusations that Christianity causes injury to the political community. The Augustinian

conception of a just and happy society allows, instead, enhancing the civic virtues as a means

to achieve the common good and peace. The Augustinian ontology allows the truth to be the

reference of virtues and vices, as precepts of action capable of forming the unity of a

civilization. The "City of God" is the allegory of a just society that is present in this world

through the ages in coexistence with the earthly state.

Keywords: law, natural, assumptions, philosophical assumptions, just, society, community,

politics, common good, happy, virtues, ontology, civilization, State, City of God.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................... 9

Delimitação do tema .................................................................................................................... 9

Método ....................................................................................................................................... 13

Objetivo ..................................................................................................................................... 14

1. PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS DA “CIDADE DE DEUS” ................................ 15

1.1 Criação: natureza e conhecimento ....................................................................................... 15

1.1.1 Ontologia agostiniana .................................................................................................... 17

1.1.2 A ontologia agostiniana e a integralidade do homem ................................................... 24

1.1.2.1 O conhecimento: verdade e falsidade ..................................................................... 26

1.1.2.2 O homem e a lei natural racional ............................................................................ 30

1.1.3 A filosofia agostiniana e o platonismo .......................................................................... 32

1.1.4 A influência da ontologia agostiniana na ideia de Estado ............................................ 35

1.2 Ordem como vontade ........................................................................................................... 36

1.2.1 A ordem e a causa ......................................................................................................... 37

1.2.1.1 A lei natural como vontade de conservar a ordem ................................................. 40

1.2.2 A ordem: razão e sentido ............................................................................................... 41

1.2.2.1 A justiça como ordem das virtudes ........................................................................ 46

1.2.3 Aspecto prático da ordem: contemplação e conduta ..................................................... 50

1.2.3.1 A conduta e o Estado .............................................................................................. 51

1.2.3.1.1 A Carta 134 de Agostinho a Apringius ............................................................ 54

1.2.3.1.2 Carta 153 de Agostinho a Macedonius ............................................................ 55

1.2.3.1.3 A conduta ordenada é razoável ........................................................................ 56

1.2.4 A ordem como elemento constitutivo da unidade no Estado ........................................ 57

1.2.4.1 A lei eterna e a justiça............................................................................................. 58

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1.3 Livre-arbítrio ........................................................................................................................ 59

1.3.1 A lei divina e a lei civil autônomas por natureza e dirigidas para o bem comum na

esfera estatal ........................................................................................................................... 62

1.3.1.1 A lei civil (temporal) e a justiça (atemporal) .......................................................... 63

1.3.2 O arbítrio só é livre na verdadeira justiça ..................................................................... 65

1.3.2.1 A liberdade e as virtudes ........................................................................................ 67

1.3.3 A justiça objetiva (divina) não prejudica o Estado e leva o homem a uma vida feliz .. 69

1.3.4 O livre-arbítrio é um bem .............................................................................................. 72

1.3.4.1 A liberdade e a verdade: princípio da subordinação............................................... 73

1.3.4.1.1 A verdade e as formas: os números e a linguagem desvelam a força

ontológica agostiniana .................................................................................................... 76

1.3.4.1.2 A verdade e a felicidade ................................................................................... 80

1.3.4.2 A liberdade e a verdade: princípio da participação ................................................ 82

1.3.5 A liberdade e a ordem dos bens .................................................................................... 83

1.3.5.1 A ordem dos bens e os sistemas políticos .............................................................. 85

1.4 Graça .................................................................................................................................... 92

1.4.1 A justiça......................................................................................................................... 94

1.4.2 Os fins do Estado e da Sociedade: a paz e a felicidade ................................................. 95

1.4.3 A lei civil: o bem e o bom ............................................................................................. 97

1.4.4 A lei natural como fruto da graça ................................................................................ 100

1.4.5 A Carta 155 de Agostinho a Macedonius.................................................................... 101

1.4.6 As Cartas 91 e 104 a Nectarius e a Carta 138 a Marcellinus ...................................... 103

2. DELINEAMENTOS JURÍDICO-POLÍTICOS DE ESTADO NA OBRA “CIDADE

DE DEUS” .................................................................................................. 108

2.1 Origem das Cidades celeste e terrena ................................................................................ 108

2.2 As qualidades das duas Cidades indicam o Estado ético-político agostiniano .................. 118

2.3 Os Estados terrenos e a Cidade de Deus: genealogia histórico-alegórica do poder .......... 128

2.4 O paralelismo histórico-temporal das duas Cidades .......................................................... 134

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2.5 Os objetivos das cidades terrena e celeste: paz e felicidade .............................................. 139

CONCLUSÃO .............................................................................................. 152

BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................................155

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INTRODUÇÃO

Delimitação do tema

O objetivo do presente trabalho será mostrar as bases filosóficas sobre as quais se

fundamenta a ideia de Estado na doutrina de Santo Agostinho sob a perspectiva da “Cidade de

Deus” (“De Civitate Dei”). O Estado existe autônoma e institucionalmente como realidade

político-jurídico-histórica (cidade política) baseado no vínculo da concórdia que procura

atingir a paz terrestre (bem comum) por meio das leis humanas em busca da felicidade (usar

bem as coisas) dos homens. A Justiça é a virtude que distribui a cada pessoa o que é seu. Não

pode existir Estado (República) sem Justiça.

O Estado civil poderá se aproximar da chamada Cidade de Deus (“Civitas Dei”) ou

se afastar dela. A Cidade Celeste, enquanto peregrina no mundo através dos tempos, está

baseada na concórdia ordenada, mútua estima e amizade verdadeira dos cidadãos, para

alcançar a paz celestial por meio da lei do amor (amor ordenado) e das virtudes (retidão da

vontade para a vida beata) em busca da felicidade eterna (sumo bem = fruir de Deus) dos

homens pelo conhecimento da Verdade (idêntica a si mesma).

A lei inscrita naturalmente no coração (=razão) dos homens de que não façamos ao

outro o que não queremos que nos seja feito só se cumpre pela graça. É essa graça que torna

livre nosso arbítrio de modo a evitar o mal e a fazer o bem. O mal não se encontrará na

natureza (“physis”), mas sim na vontade (“voluntas”= vontade livre da alma racional). O fruto

da graça é a caridade (“ordenata caritas”), ponto de referência das virtudes e dos vícios,

traduzida no amor de Deus e por este ao próximo (perfeição da ética natural). O amor guarda

a ordem do ser (“Justus ordo naturae”). Nisso consiste a verdadeira justiça (“vera justitia”) da

Cidade Celeste, e o direito reduz-se a ela. As leis positivas devem se fundamentar nas

exigências da lei moral natural. A justiça a Deus pertence. O homem torna-se digno ao

participar da bondade de Deus. Essa é, pois, a figura alegórica da Cidade Celeste e o ideal de

sociedade justa. A Cidade de Deus será uma sociedade de homens em busca de uma paz

eterna para além da paz terrestre.

De modo diferente, o Estado se afastará da Cidade Celeste e se aproximará da Cidade

Terrena (“Civitas diaboli”) ao substituir a fé pela razão como único critério de verdade, ao

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antepor os bens terrenos aos celestes, ao construir a felicidade por si mesmo, ao pretender

alcançar a sabedoria pela própria inteligência e fora da verdade, ao se conformar com a paz

terrestre e a justiça distributiva, ao desprezo pelas coisas divinas, ao preferir os vícios às

virtudes, ao se disfarçar de valor absolutamente supremo e ceder às ideias dominantes no

tempo e no espaço e ao ficar fechado em seu destino meramente terrestre.

Por honestidade intelectual, não omitiremos que os conceitos mais jurídicos desta

dissertação, como lei natural e justiça, originam-se e abrigam elementos de fé que

desqualificariam o discurso agostiniano em uma sociedade pluralista, mas, interessantemente,

trarão à tona manifestações importantes para o diálogo entre a cultura cristã e o Estado de

modo a encontrar o ponto de intersecção em leis que permitam a segurança e a paz, sem

desprezar a ética metafísica agostiniana que em nada prejudicará as bases seculares de um

Estado justo. Sem nos aprofundarmos nas circunstâncias históricas em que vivia Agostinho,

perceberemos que escrever a obra “Cidade de Deus” terá mais um aspecto pragmático,

inclusive nas relações entre o Estado e o Cristianismo, do que ideal na medida em que o

objetivo será defender os cristãos contra as falsas acusações pela ruína do império Romano.

De fato, em 313 d.C., os governantes romanos do Ocidente e Oriente, Constantino e

Licínio, puseram fim à perseguição aos cristãos pelo Édito de Milão com o objetivo de não

menosprezar religião alguma .Isso aconteceu após a vitória de Constantino, que mantinha o

controle sobre a Gália e Espanha, sobre o rival Maxêncio, que controlava a Itália e a África,

na luta pelo controle do poder no Império Romano na batalha da Ponte Mílvia, a oeste de

Roma, após ter visto uma cruz ereta sob o sol com a inscrição “sob este signo, vencerás”, em

312 d.C. Em 324 d.C., Licínio ordenou a prisão e execução de alguns bispos orientais. Essa

medida levou Constantino a se pôr como o defensor dos cristãos no Império e a derrubar o

rival. Constantino fundou Constantinopla como a nova Roma, capital do império, em 330 d.C.

Em 378 d.C, os godos derrotaram o imperador romano Valêncio em Adrianópolis. Em 391

d.C, houve a destruição do prédio Serapeum que abrigava parte da biblioteca de Alexandria

em razão de lutas entre os cristãos e aqueles que seguiam as tradições pagãs com ataques

sistemáticos destes àqueles após o imperador Teodósio I emitir um decreto que ordenava a

destruição dos templos pagãos. Os cristãos prisioneiros dos pagãos no Serapeum eram mortos

e torturados, o que levou a destruição do prédio por determinação de Teodósio I por causa das

imagens pagãs apesar de ter poupado os pagãos. Após a morte de Teodósio, em 395 d.C, seus

filhos (Honório, no Ocidente e Arcádio, no Oriente) não foram capazes de deixar unido o

Império. Em 410 d.C, sob a liderança de Alarico, os visigodos saquearam Roma, muito

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embora tenham preservados os templos cristãos, onde cristãos e não cristãos se refugiavam,

na medida em que parte dos bárbaros era da religião cristã ariana.

Não por outro motivo, Agostinho dispõe em ordem os mais variados temas do

Cristianismo e do paganismo, do império e da igreja, da justiça divina e humana, da

providência e do poder temporal, em que as questões da igreja e do Estado nunca estão

separadas inteiramente.

É nessa atmosfera que o filósofo tentará demonstrar que o Cristianismo em nada

prejudicará o Estado justo, pelo contrário, poderá fundá-lo em bases éticas sólidas com base

na prática das virtudes. A Cristandade exigirá uma transformação no entendimento clássico

romano das virtudes cívicas. Para tanto, buscará já em Cícero a manifestação de valores

indispensáveis para a República com o intuito de desmistificar os supostos malefícios do

Cristianismo para o Estado de modo a coincidir em vários pontos o próprio pensamento

romano nas épocas consideradas de decência política com os valores cristãos. De igual modo,

Agostinho se apossará da filosofia grega com ressalvas e da tradição judaica para demonstrar

como a Cidade Celeste se manifesta na história de modo a conservar a sociedade, assim como

o direito conserva a ordem social.

Assim, a relevância dessa dissertação será, justamente, descobrir as relações entre fé e

razão, Estado e Cristianismo, lei natural e lei civil a partir do esquema filosófico mental em

que Agostinho está implicado, a imiscuir elementos teológicos, filosóficos, políticos e

jurídicos. Consideramos que o raciocínio do filósofo será precioso por enfrentar, na prática,

situações teológico-político-jurídico-religiosas inseparáveis que, por assim dizer, formarão o

substrato de um pensamento que atravessará o tempo. Por esses motivos, voltamos nossa

atenção ao filósofo cristão da antiguidade que, a nosso ver, teve um papel decisivo para a

formação desse pensamento.

Tentaremos descrever o pensamento agostiniano livre das amarras modernas do

positivismo jurídico, bem como de concepções de direito natural que surgiram

posteriormente. Neste trabalho não teremos a pretensão de comparar ou de tecer críticas

sobre o pensador ou suas concepções de mundo. Esta dissertação não pretende, de igual

forma, tecer detalhes históricos. Para essa difícil tarefa, descreveremos os pressupostos

teóricos e filosóficos agostinianos e deles extrairemos naturalmente os conceitos político-

jurídicos da dissertação como as noções de Estado, povo, lei e justiça, pois não há maneira

mais transparente de aprendermos do que voltarmos ao esquema mental do autor estudado.

As bases teóricas da Cidade de Deus, tratado político por excelência escrito de 413 a

426 d.C., estão ligadas às seguintes categorias do pensamento de Agostinho: a Criação, a

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Ordem, o Livre arbítrio e a Graça. Esses quatro elementos constituirão o esquema filosófico

no pensamento político do pensador cristão. Não poderemos falar em lei natural ou lei como

ordem sem sabermos o que se entende pelos respectivos qualificativos. Do mesmo modo, não

poderemos falar em justiça punitiva e os respectivos limites sem discorrermos sobre o papel

do livre-arbítrio para o homem e para a sociedade, bem como conciliar este bem com a

natureza e a ordem. Veremos, de igual modo, que a função da graça – embora mais teológica

do que filosófica – permitirá compreendermos que a lei não será suficiente para sustentar uma

ética no Estado, diferentemente, sua existência poderá estimular a própria violação. Com

maior abrangência, a graça permitirá que Agostinho fundamente filosoficamente não retribuir

o mal com o mal em questões dentro do Estado de modo a afastar a vingança da pena em

termos jurídicos, a imputar a pena ao crime praticado, e, não, à pessoa.

A ideia da criação será o ponto central do pensamento de Santo Agostinho. O “logos”

(Deus) é a razão criadora de todas as coisas, causa eficiente e segura do raciocínio. A criação

nos fala que Deus é Deus por natureza (metafísica) e a natureza, tal como é, não é Deus

(física). Esse raciocínio ontológico permitirá separar o Estado da Cidade de Deus, sem, no

entanto, ficarem indenes entre si, bem como entendermos o que carrega o qualificativo

“natural” na expressão “lei natural”. Na primeira parte deste trabalho cuidaremos dos

delineamentos deste ponto central que sustenta a doutrina do bispo de Hipona.

Por essa Razão criadora, a criação tem sua ordem (sentido), titulada de ordem natural

ou ordem justa da natureza. O conceito de Natureza (“physis”) indica os seres inanimados e

animados, inclusive o homem. A ordem da natureza que está nas leis naturais e no gênero

humano traduz, notadamente, a moralidade do próprio ser que apela à consciência. O respeito

pela criação indica o respeito pela Razão (fonte de conhecimento). Poderemos dizer que a

criação sustenta o racionalismo filosófico de Santo Agostinho enquanto conhecimento.

O Estado será autônomo, mas tanto mais perfeito quanto mais se aproximar da ordem

da criação, traduzida na Cidade Celeste. Assim como o ser humano será tanto mais perfeito

quanto se aproximar da ordem moral do próprio ser (amor ordenado). Essa ordem do ser será

o fundamento do dever (virtudes morais). A ideia de ordem permitirá legitimarmos a justiça

punitiva, bem como encontrarmos nas virtudes a concretização da ordem no Estado. É nesse

sentido que Agostinho define lei natural como ordem. Na segunda parte desta dissertação,

trataremos dos delineamentos doutrinários da ideia de ordem na filosofia agostiniana.

Só poderemos considerar essa ordem se partirmos da integralidade do ser humano

como ser livre participante da Verdade, medida última de toda criação. A liberdade poderá

levar o ser humano para os vícios ou para as virtudes. As virtudes orientam o reto agir, o que,

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por sua vez, pressupõe o reto crer. O Estado valerá o que valem os seus cidadãos e, então,

passa a ser possível ter as boas e as más formas de governo. Assim, o problema do livre-

arbítrio consistirá nosso terceiro ponto a ser investigado.

Na terceira parte desta exposição discorreremos sobre a graça como dom que torna

livre nosso arbítrio, e que tem como fruto a caridade. A graça será peça chave para a Justiça

na medida em que as leis humanas devem atender à lei natural inscrita no coração do homem

até à perfeição de amar a Deus e ao próximo. A lei civil, por si só, não será capaz de fazer

com que os homens se tornem éticos (a lei natural é, em certo sentido, ética), ao contrário,

poderá ser capaz de atiçá-los a descumpri-la pelo prazer da maldade, muito embora seja

considerada um bem em si mesma como a existência do Estado o é. Sem a graça, o homem

não alcançará a verdadeira Justiça consistente em fruir de Deus. A verdadeira justiça

conduzirá a Cidade Celeste através dos tempos.

Por fim, trataremos da origem e atributos da Cidade de Deus e da Cidade terrena, bem

como dos respectivos aspectos dos dois tipos de sociedade do ponto de vista histórico-

alegórico e histórico-temporal, a demonstrar que a Cidade de Deus não terá a pretensão de ser

um Estado em termos humanos, mas, sim, conduzir os homens de modo justo no Estado, na

medida em que o objetivo da Cidade de Deus é escatológico, isto é, direcionar os homens para

Deus. Por isso, a razão e o amor constituirão as bases da Cidade Celeste. A concórdia, vínculo

jurídico entre os cidadãos, deverá ser autêntica enquanto amizade verdadeira ordenada para o

bem comum em busca da paz. As virtudes serão o caminho enquanto estiverem centradas nas

noções de ordem e amor, as quais todos os bens, inclusive o homem, são ordenados em Deus.

A felicidade será a finalidade do Estado enquanto sumo bem que consistirá no fruir de Deus,

início e fim de todas as coisas.

Método

A metodologia seguida terá como base o livro “A Cidade de Deus” entendida como a

obra de maior interesse na busca das lições de Estado e lei no pensamento de Santo

Agostinho.

Não descreveremos por completo todos os âmbitos – o histórico, por exemplo - que

permeiam o pensamento do bispo de Hipona ao escrever esta obra de relevância singular para

o pensamento humanista. Procuraremos cuidar dos aspectos filosóficos que constituem a base

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do Estado Justo, sem ignorarmos que razão e fé andam juntas no pensamento agostiniano,

sem se excluírem mutuamente.

Na perspectiva doutrinária, não teremos a ambição de expor pormenorizadamente

todas as posições delimitadas pelos autores que escreveram sobre o tema. O que se pretende é

descrever as ideias centrais e principais entendidas pela doutrina que, de uma maneira ou de

outra, repousam no pensamento do filósofo Agostinho originariamente. Os livros VIII e XI

contêm a síntese da filosofia agostiniana e os livros XVIII, XIX, XXI e XXII a alegoria da

“Cidade de Deus”,

Por este motivo, outros livros nos ajudarão traçar a base de sustentação da “Cidade

Celeste”, como “O livre-arbítrio”, “A Trindade”, “A graça”, “Confissões”, “Contra os

acadêmicos”, “A ordem”, “A grandeza da alma”, “O mestre”, “Sobre a vida feliz” e alguns

escritos políticos do pensador cristão.

A pesquisa se desenvolverá no âmbito das obras de Santo Agostinho, as quais

propiciarão aclarar o entendimento de como alcançar o Estado de Direito “ideal” e na

existência de uma lei natural como fundamento do Direito, na qual as leis positivas devem

atender às exigências daquela.

Assim, trataremos de desvendar os pressupostos filosóficos da Cidade de Deus pela

leitura conjunta dessa obra com as demais citadas. Falaremos, pois, da Criação, da Ordem, do

Livre-arbítrio e da Graça de forma a torná-los visíveis no tratado político por excelência de

Santo Agostinho.

Objetivo

O objetivo do trabalho será descrever os pressupostos filosóficos do Estado ético-

jurídico como alegoria da cidade celeste contida na obra “A Cidade de Deus” que traduz o

pensamento de Agostinho de sociedade justa e feliz.

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1. PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS DA “CIDADE DE DEUS”

1.1 Criação: natureza e conhecimento

O objetivo subjacente a esse subtítulo é descrever o conceito de Criação como ponto

central da base filosófica do pensamento de Santo Agostinho. Por meio do conceito de

Criação, é possível reconhecer o Estado como fato político-jurídico autônomo em relação a

Deus, bem como entender a razão pela qual aquele não deve ser indiferente a Este. A ideia de

Criação permite ligar dois pontos centrais: a Cidade terrena – parte do mundo - e a Cidade

Celeste – peregrina no mundo -, as virtudes e os vícios com a ideia de Verdade. A Verdade,

por sua vez, é alcançada pelo conhecimento racional e moral entendido em termos

agostinianos. A construção do Estado justo depende do conhecimento verdadeiro.

Conhecimento e natureza constituem o cerne da ontologia1 agostiniana da criação.

O conhecimento humano se tornará mais verdadeiro quanto mais se aproximar de

Deus. Cristo é a manifestação de Deus na história humana segundo o filósofo cristão.

Teologicamente, é o Verbo de Deus não criado e consubstancial ao Pai criador de todas as

coisas. O Cristianismo, para ele, está baseado na razão, porquanto fonte de saber como

plenitude da Verdade. Os cristãos são os seguidores de Cristo, mediador dos homens que

conduz os homens à “imortalidade feliz”2, a tê-Lo por fundamento de vida. O ato da criação

está intimamente relacionado com a felicidade na medida em que o conhecimento da Verdade

ensina, na visão agostiniana, que tudo foi criado e disposto segundo a vontade do Sumo Bem

em perfeita harmonia.

Para o filósofo antigo, Deus é o criador do universo e essa verdade reverbera no

homem e na natureza criados. No Livro X, item 5, da obra “Confissões”, indaga ao lembrar

dos filósofos gregos: “Quem é Deus”3? Interroga o ar, o céu, as estrelas, o sol, lua, os animais

e tudo o que é corpóreo exclama que não é Deus. Continua a interrogar e pede para o

Universo dizer, e obtém a resposta: “Não sou eu, mas foi Ele que me criou”4. Os homens

podem interrogar sobre as belezas do mundo “para verem as perfeições de Deus,

1 Estudo do ser. 2 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 356. 3 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo: Folha

de São Paulo, 2010, p. 144. 4 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo: Folha

de São Paulo, 2010, p. 144.

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16

considerando-as nas obras criadas”5. Não por outro motivo, refuta os filósofos gregos que

pensavam serem corporais6 os princípios da natureza no Livro VIII, Capítulo V, da “Cidade

de Deus”:

Assim, Tales os recolocou na água; Anaxímenes, no ar; os estóicos, no fogo; os

epicuristas, nos átomos, isto é, em certos corpúsculos infinitamente pequenos que

não podem dividir-se nem sentir-se, e outros inúmeros filósofos cuja numeração

seria inútil e longa. Uns e outros disseram que a causa e o princípio dos seres são os

corpos, querem simples, quer compostos, quer careçam de vida, quer a tenham, mas

sempre corpos. Alguns deles, por exemplo, os epicuristas, acreditam poderem as

coisas vivas originar-se das não vivas. Outros atribuem exclusivamente a seres

vivos, mas corpóreos, corpos geradores de corpos, o poder de produzir coisas vivas e

sem vida. Os estóicos pensaram que o fogo, ou seja, um corpo dos quatro elementos

de que se compõe o mundo visível, tem vida, é sábio, criador do próprio mundo e de

tudo quanto nele existe e, ademais, que o fogo é deus. Esses e os demais filósofos

que se parecem com ele puderam pensar apenas o que seus corações, sujeitos aos

sentidos da carne, lhes pintaram. 7

A partir desse fato, a Verdade pode ser encontrada no homem que a tem dentro de si.

O pensamento agostiniano nos mostra que Deus é um Deus que fala ao homem interiormente

que

tudo quanto começa a existir ou deixa de existir só principia ou acaba quando se

conhece, na Vossa Razão eterna, que tudo isso deve ter começado ou terminado,

ainda que nela nada comece e nada desapareça.

O Vosso Verbo é esta mesma Razão e Princípio de todas as coisas, o qual também

nos fala interiormente. Assim falou-nos no evangelho por meio do seu c orpo.

Ressoou essa voz exteriormente aos ouvidos dos homens para que acreditassem.

Nele, o buscassem dentro de si mesmos e o encontrassem na eterna Verdade, onde

o bom e único Mestre ensina a todos os discípulos.8

A Criação expressa que “Deus é Deus por natureza (metafísica), mas a natureza como

tal não é Deus”9. Deus é a causa eficiente do mundo

10. Deus é o princípio vivo, a significar a

existência autônoma em relação ao mundo criado. Na obra “A Trindade”, Agostinho afirma

5 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo: Folha

de São Paulo, 2010, p. 144. 6 Anaximandro, da mesma forma, coloca em um princípio corporal o início das coisas. Henri Bergson afirma que

“Segundo Anaximandro, o princípio das coisas não é mais a água, como sustentava Tales, é o infinito [...] uma

certa matéria que tem por característica própria não ser limitada [...] muito provavelmente uma mistura

indeterminada mas homogênea, que não é tal ou qual elemento em particular, mas que possui vagamente, na

condição de tendência, as características da maior parte deles [...] Consequentemente, procura uma matéria que

não tenha nada de determinado para que seja possível representar-se mais facilmente a transformação universal”.

BERGSON, Henri. Curso sobre a Filosofia Grega. Tradução Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes,

2005, p. 192-195. 7 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 307. 8 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo: Folha

de São Paulo, 2010, p. 175. 9 RATZINGER, Joseph; D’ARCAIS, Paolo Flores. Deus existe?. Tradução de Sandra Martha Dolinsky. 1. ed.

São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2009, p. 15. 10 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 404-405.

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17

que “o cosmo está grávido de causas germinais (...) Tais causas são criadas pela essência

divina na qual nada nasce, nada morre, nada começa, nada deixa de existir”11

.

Todas as coisas animadas ou inanimadas, racionais ou irracionais, foram criadas pelo

Criador que, por sua vez, não tem causa criadora. Nesse sentido, Agostinho compara o

pensamento de Plotino12

à filosofia cristã ao partir da beleza da criação presente nos objetos

mais ínfimos e nas mais frágeis das criaturas, que, por sua vez, tendem para Deus13

.

Essa harmonia da criação mostra que as coisas existem de modo a se adaptarem

perfeitamente no tempo e no espaço14

. Deus é o Criador do tempo e tem a história em suas

mãos. O tempo como elemento criado e pertencente ao mundo e o conhecimento de todos os

tempos passados, presentes e futuros como presciência estabelecem a separação entre Deus e

o mundo sem desprezar a liberdade dos homens.

O problema do tempo leva Agostinho a responder à objeção “Que fazia Deus antes de

criar o céu e a terra?”15

. Em um primeiro momento não responde em razão da dificuldade do

problema para, em seguida, colocar o tempo como categoria do mundo criado e, assim, afastar

o questionamento impróprio na medida em que Deus não está submetido ao tempo16

. O tempo

é elemento do mundo medido pelo homem, apesar de não medirmos tempo algum17

. Por

conseguinte, Deus e a natureza (coisas criadas) são categorias distintas. A primeira precede a

segunda e esta só tem razão de existir na primeira.

A Criação é, pois, a ligação necessária para uma ontologia agostiniana de certeza e

verdade acima das opiniões do mundo.

1.1.1 Ontologia agostiniana

11

AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e

notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4 ed. Livro II. Capítulo 9. São Paulo: Paulus, 2008, p. 128. 12 Neoplatônico. 13 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 387. 14 Cf. AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 103. 15 Cf. AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 176. 16 Cf. AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 176-177 e 187. 17 “Com efeito, medimos os tempos mas não os que ainda não existem ou já passaram, nem os que não têm

relação alguma, nem os que não têm limites. Não medimos, por conseguinte, os tempos futuros nem passados,

nem os presentes, nem os que estão passando. Contudo, medimos os tempos!”. AGOSTINHO, Santo.

Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010, p.

185.

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18

No Livro VI, capítulo VIII, da obra “Cidade de Deus”, Santo Agostinho afirma a

separação entre Deus e a natureza para refutar a chamada teologia mítica e civil18

e, por

conseguinte, a ideia que os pagãos tinham de venerar vários deuses para alcançarem a vida

eterna. Diz que Deus é Deus por natureza, mas nem toda natureza é Deus. Assim expõe:

Embora aquele que é verdadeiro Deus seja Deus, não por opinião, mas por natureza,

nem toda natureza é Deus, porque indubitável que a natureza do homem, a do

animal, a da árvore ou a da pedra é natureza, mas nenhuma delas é Deus.19

A expressão “não por opinião” tirada do texto acima indica a existência autônoma de

Deus. Deus independe do homem20

e do mundo para existir. Deus não necessita do homem21

.

Por outro lado o homem depende de Deus para alcançar a Verdade. Deus é identificado como

Verdade22

. A Verdade nesses termos é independente do pensamento humano na concepção

filosófica agostiniana.

A genialidade do bispo de Hipona está em afirmar a existência autônoma de um Deus

Uno como razão criadora fonte de conhecimento humano, que, por sua vez, é dependente

d’Aquele para chegar à Verdade (identidade), o que nos leva à conclusão de que o

conhecimento é verdadeiro em Deus. O conhecimento é, pois, logocêntrico, isto é, centrado

no “logos”. Nisso reside a ontologia de Agostinho.

Aqui pensamos ser necessário tecermos algumas considerações sobre a filosofia de

Descartes, Kant e Hume para nos ajudar a raciocinar com a lógica agostiniana de maneira que

possamos nos despir de nossas noções de conhecimento e natureza influenciados por estes e,

assim, deixar-nos levar pela filosofia do Estado que nos propusemos no começo do trabalho.

A distinção é, pois, indispensável para identificarmos o que se entende por realidade e a

repercussão nas esferas científica, ética e jurídica.

18 Marco Varrão é mencionado na obra “Cidade de Deus” como o sintetizador do pensamento pagão acerca dos

deuses. Para ele, existem três tipos de teologia: a mítica, a natural e a civil. A primeira, própria do teatro, usada

para descrever as fábulas – mythos em grego – usadas por poetas e filósofos para expressar os deuses; a segunda,

própria do mundo, se fala sobre a essência, lugar, espécie e qualidades dos deuses e o terceiro gênero, próprio

das cidades, diz que as pessoas e os sacerdotes devem pôr em prática na urbes o culto, o rito e os sacrifícios aos

deuses. Posteriormente, reconhece se deva tributar culto ao único Deus, alma do mundo como razão e

movimento, apesar de não o defender publicamente e ainda longe do Deus cristão. AGOSTINHO, Santo. Cidade

de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco,

2007, p. 241-243 e 181. 19

AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 247-248. 20 Santo Agostinho observa que Deus é o criador da própria alma, e não a alma que governa o mundo. Faz isso

para elogiar Varrão, pensador dos gentios, ao concluir pela existência de um único Deus, mas corrigi-lo para

afirmar que Deus é o criador da alma. Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme.

v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 182 e 267. 21 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 374 e 388. 22 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão

e notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 263.

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19

O raciocínio ontológico parece antever uma crítica posterior no tempo, mas atual no

âmbito do entendimento humano, da filosofia iluminada a partir do pensamento de Descartes,

Kant e Hume sobre os limites do conhecimento humano, na qual Agostinho, à época, viveu

intensamente ao discutir com os céticos acadêmicos23

e filósofos24

sobre a existência da

Verdade e o limite da razão humana em conhecer o que é verossímil e sensível. O problema

do conhecimento repercute diretamente sobre o modo como pensamos e vivemos, inclusive,

na esfera ética, em uma tensão contínua entre o existir e o pensar.

Descartes afirma a existência de Deus como princípio para garantir a harmonia25

entre

o objeto cognoscível e o sujeito cognoscente apenas. Em seu entendimento, Deus é o

princípio hipotético que garante a verdade do método cartesiano em busca do conhecimento

exato das coisas. Descartes, na quarta parte na obra “Discurso do Método e Princípios da

Filosofia”, elege o “penso, logo existo” como sendo o primeiro princípio da filosofia. O

filósofo francês constrói o seu raciocínio da seguinte forma:

Percebi então, que a verdade “penso logo existo” era tão sólida e tão exata (...)

concluí que não deveria ter escrúpulo em aceitá-la como sendo o primeiro princípio

da filosofia (...) de modo que eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é totalmente

diversa do corpo e mesmo mais fácil de ser reconhecida do que este e, ainda que o

corpo não existisse, ela não deixaria de ser tudo que é.

Depois, considerei, em geral, sobre o que é necessário a uma proposição para ser

verdadeira e exata (...) Após isso, meditando sobre o fato de que eu estava

duvidando e, por conseqüência, o meu ser não era inteiramente perfeito, pois era

para mim claro que perfeição maior do que duvidar era conhecer, veio-me à mente a

ideia de descobrir de onde aprendera a pensar em alguma coisa mais perfeita do que

eu, e encontrei a evidência de que devia existir algo de natureza mais perfeita (...)

Desse modo, chegava à conclusão que em mim fora inculcada por uma natureza

realmente mais perfeita do que eu e enfeixando em si todas as perfeições das quais

eu pudesse fazer uma ideia, isto é, para que eu me explique em uma só palavra:

Deus.26

23 Cf. AGUSTIN, San. Obras completas de San Agustín: Cartas (1ª).Tradução de Lope Cilleruelo. v. VIII. 3.

ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1986, p. 31. 24 Cf. AGUSTIN, San. Obras completas de San Agustín: Escritos varios (2º). v. XL. Madrid: Biblioteca de

Autores Cristianos, 1995, p. 618-619. 25 Cf. FOULCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução: Roberto Cabral de Melo Machado e

Eduardo Jardim Morais, supervisão final do texto Léa Porto de Abreu Novaes...et al. J. Rio de Janeiro: NAU

Editora, 2003, p. 19. 26 No original: “Et remarquant que cette vérité: je pense, donc je suis était si ferme et si assurée, que (...) je jugeai

que je puvais la recevoir, sans scrupule, pur le premier principe de la philosophie (...) En sorte que ce moi, c’est-

à-dire l’âme par laquelle je suis ce que je suis, est entièrement distincte du corps, et même qu’elle est plus aisée à

connaître que lui, et qu’encore qu’il ne fût point, elle ne laisserait pás d’être tout ce qu’elle est.

Après cela, je considerai em general ce qui est requis à une proposition pour être vraie et certaine (...) En suíte de

quoi, faisant réflexion sur ce que je doutais, et que, par conséquent, mon être n’était pás tout parfait, car je

voyaus clairement que c’était une plus grande perfection de connaître que de douter, je m’avisai de chercher

d’où j’avais appris à penser à quelque chose de plus parfait que je n’étais; et je connus évidemment que ce devait

être de quelque nature qui fût em effet plus parfait (...) De façon qu’il restait qu’elle eût été mise em moi par une

nature qui fût véritablement plus parfaite que je n’étais, et même qui êut en soi toutes les perfections dont je

puvais avoir quelque idée, c’est-à-dire, pour m’expliquer em um mot, qui fût Dieu”. DESCARTES, René.

Discours de la méthode. 1. ed. Paris: Editora Garnier Flammarion, 2003, p. 60-61.

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20

Se dissermos que a nossa existência depende do nosso pensar, Deus é reduzido a uma

categoria do pensamento humano27

. O homem ganha autonomia intelectual e,

consequentemente, o conhecimento passa a ser antropocêntrico. O antropocentrismo será o

primeiro passo para a indiferença de Deus na construção do mundo pelos homens. Isso indica

que Deus perde o patamar de Ser autônomo, divino, para ser colocado como categoria do

pensamento humano, pressuposto do conhecimento exato. Deus se torna o fundamento de

certeza da ciência simplesmente.

Deus de princípio vivo no pensamento agostiniano passa a ser princípio teórico no

cartesiano para garantir a firmeza dos fundamentos do conhecimento humano. O

conhecimento fundado em uma verdade objetiva no pensamento agostiniano (metafísico28

)

está no limiar para se tornar subjetivo a partir do pensamento de Descartes (imanentismo29

)

com sua prova ontológica. O conhecimento da realidade, outrora também de viés metafísico

(Deus), passa a tender ao subjetivismo e encontrar seus fundamentos na ciência como

entendemos hoje (física)30

simplesmente. Em outras palavras, põe em evidência a teoria do

conhecimento em detrimento da filosofia da existência31

.

Kant será o maior expoente do subjetivismo: a) primeiro ao afirmar que a intuição se

refere ao conhecimento a priori de toda experiência possível, ou seja, de todo conhecimento

científico do mundo na obra “Crítica da Razão Pura”32

e b) segundo ao afirmar que a

27 Na meditação Sexta da obra “Meditações”, Descartes reduz a essência ao pensamento da seguinte forma: “[...]

E, portanto, pelo próprio fato de que conheço com certeza que existo, e que, no entanto, noto que não pertence

necessariamente, nenhuma outra coisa à minha natureza ou à minha essência, a não ser uma coisa que pensa,

concluo efetivamente que minha essência consiste somente em que sou uma coisa que pensa ou uma substância

da qual toda essência ou natureza consiste apenas em pensar. E, embora talvez (ou, antes, certamente, como direi

logo mais) eu tenha um corpo ao qual estou muito estreitamente conjugado, todavia, já que, de um lado, tenho

uma idéia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que,

de outro, tenho uma idéia distinta do corpo, na medida em que é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é

certo que este eu, isto é, minha alma, pela qual sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo e

que ela pode ser ou existir sem ele.”. GUINSBURG, J., ROMANO, Roberto, CUNHA, Newton. Descartes:

obras escolhidas. Tradução: J. Guinsburg, Bento Prado Jr., Newton Cunha e Gita K. Guinsburg. São Paulo:

Perspectiva, 2010, p. 193. 28 A palavra metafísico indica aqui o conhecimento ontológico, ou seja, da existência do ser em sua integralidade

no sentido de descobrir a essência das coisas com o pensamento voltado para o Ser supremo. 29 A palavra imanentismo indica aqui o conhecimento adquirido pelo sujeito cognoscente a partir das coisas em

si mesmas a partir do puro conhecimento ou de experiências sensíveis. 30 O termo física aqui significa matéria, visível ou invisível, e não o significado mais abrangente de ordem

natural, física e moral, do mundo. 31 Santo Agostinho, teologicamente, afirma o perigo da ciência se unir à caridade ao refutar a ideia de que

existem demônios bons da seguinte forma: “Se consultarmos os Livros Sagrados, a própria origem do nome de

demônio apresenta particularidade digna de ser conhecida. Chamam-se daimones (demônios), por causa da

ciência, pois a palavra é grega. Mas o Apóstolo, inspirado pelo Espírito Santo, disse: A ciência infla e a caridade

edifica. Quer dizer que a ciência não é útil senão quando acompanhada pela caridade e, sem a caridade, a ciência

infla o coração e o enche de vento da vanglória”. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar

Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 362. 32 Duas condições unicamente sob as quais o conhecimento de um objeto é possível: primeiro intuição, pela qual

é dado o objeto, mas só como fenômeno; segundo conceito, pelo qual é pensado um objeto correspondente com

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existência de Deus é um postulado33

da razão prática, ou, mais claramente, Deus é uma

hipótese não verificável. Essa passagem está na obra “A crítica da razão prática”, primeira

parte, Livro II, Capítulo II:

Não se quer dizer que é necessário admitir a existência de Deus como fundamento de

toda obrigação geral, pois tal fundamento repousa unicamente sobre a autonomia da

própria razão. O que interessa aqui à ideia de dever é trabalhar para produzir e para

promover o soberano Bem no mundo, Soberano Bem cuja possibilidade pode ser

postulada, mas que nossa razão não considera pensável a não ser supondo uma

inteligência suprema; admitir a existência desta está, pois, ligado a consciência do

nosso dever, se bem que este fato mesmo de admiti-lo seja assunto da razão teórica,

conforme a qual somente ele pode, considerado como fundamento da explicação, ser

chamado de uma hipótese, enquanto que relativamente à inteligibilidade de um

objeto que nos é seguramente imposto como função da lei moral (o Soberano Bem),

portanto de uma necessidade na intenção prática que pode ser chamado uma crença

e, mais precisamente, uma pura crença racional, porque a razão pura unicamente é a

fonte donde ele brota.34

essa intuição. Do que se disse acima, no entanto, resulta claro que a primeira condição, unicamente sob a qual

podem ser intuídos objetos, de fato subjaz aos objetos, segundo a forma, a priori na mente. Todos os fenômenos

concordam, portanto, necessariamente com esta condição formal da sensibilidade, pois somente mediante esta

aparecem, isto é, podem ser intuídos e dados empiricamente. Ora pergunta-se se conceitos a priori não são

também antecedentes como condições unicamente sob as quais algo, embora não intuído, é todavia pensado

como objeto geral; com efeito, então todo conhecimento empírico dos objetos é necessariamente conforme tais

conceitos porque, sem a sua pressuposição, nada é possível como objeto da experiência. Ora, além da intuição

dos sentidos pela qual algo é dado toda a experiência ainda contém um conceito de um objeto que é dado na

intuição ou aparece; logo, conceitos de objetos em geral subjazem a todo conhecimento de experiência como

condições a priori. Por isso, a validade objetiva das categorias enquanto conceitos a priori repousa sobre o fato

de que a experiência (segundo a forma do pensamento) é possível unicamente por seu intermédio. Com efeito,

então as categorias se referem necessariamente e a priori a objetos da experiência, porque só mediante elas

podem chegar a ser pensado um objeto qualquer da experiência.

A dedução transcendental de todos os conceitos a priori possui, portanto, um princípio ao qual tem que se dirigir

toda investigação, a saber, que eles precisam ser conhecidos como condições a priori da possibilidade da

experiência (seja da intuição, que é encontrada nela, seja do pensamento). Conceitos que fornecem o fundamento

objetivo da possibilidade da experiência na qual são encontrados não é a sua dedução (mas sim ilustração)

porque nela os conceitos seriam apenas casuais. Sem esta referência originária da experiência possível, na qual

ocorrem todos os objetos do conhecimento, absolutamente não poderia ser concebida a referência de tais

conceitos a um objeto qualquer. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Valério Rohden e Udo

Baldur Moosburger. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, p. 118-119. 33 Miguel Reale define postulado: “(...) uma verdade se põe como um postulado quando ela se impõe pela força

imperiosa de suas consequências e, notadamente ante o absurdo a que levaria a tese oposta”. REALE, Miguel.

Lições Preliminares de Direito. 24. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1999, p. 196. 34 No original: “On ne veut pas dire non plus par là qu’il est nécessaire d’admettre l’exitence de Dieu comme um

fondement de toute obligation em général (car ce fondement, comme cela a été suffisamment prouve, repose

uniquement sur [V, 126] l’autonomie de La raison elle-même). Ce qui seul releve ici du devoir, c’est de travailler

à produire et à promouvoir le souverain Bien dans Le monde, souverain Bien dont la possibilite peut done être

postulée, mais que notre raison ne trouve pas pensable autrement qu’en supposant une intelligence suprême:

admettre l’existence de celle-ci est donc lié à la conscience de notre devoir, bien que ce fait même de l’admettre

soit du ressort de la raison théorique, au regard de laquelle seule Il peut, considere comme fondement de

l’explication, être appelé une hypothèse, alors que relativement à l’intelligibilité d’um objet qui nous est

assurément imposé comme tache par la loi morale (le souverain Bien), partant, d’um besoin dans une intention

pratique, il peut être appelé une croyance et, plus précisément, une purê croyance rationnelle,parce que la raison

purê seule (aussi bien suivant son usage théorique que suivant son usage partique) est la source d’où il jailit”.

KANT, Immanuel. Critique de la raison pratique. Tradução de Jean-Pierre Fussler. 1. ed. Paris: Editora

Garnier Flammarion, 2003, p. 251.

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22

Mas é, a nosso ver, na obra “Metafísica35

dos Costumes” que Kant afasta Deus da vida

pública, da ética e do direito, definitivamente. As leis éticas e as leis jurídicas são espécies das

leis morais, ambas procedentes da razão humana. As primeiras são “dirigidas meramente a

ações externas e à sua conformidade à lei” e as segundas “requerem que elas próprias (as leis)

sejam os fundamentos determinantes das ações (...) tanto no uso externo como interno de

escolha”36

. A visão kantiana não se contenta apenas em suportar um Deus fora do mundo;

com mais força pretende afastá-la da esfera pública – o que para Agostinho é inadmissível na

medida em que a Cidade de Deus é peregrina neste mundo através dos tempos e da

impiedade37

. Para o bispo de Hipona tirar Deus do debate significaria tirar o amor (perfeição

da lei identificada na lei natural), presente na História, deste mundo.

Kant tira a religião do espaço público ao restringi-la à experiência individual do

sujeito e ao situá-la fora “de uma moral puramente filosófica”38

caracterizada por relações

entre as pessoas (dever objetivo e racional) “compreensíveis por nós”39

, muito embora a

considere como “uma parte integral da doutrina geral dos deveres”40

. Diz Kant que do ponto

de vista formal a religião opera um conjunto de deveres somente para o sujeito (obrigação

subjetiva e transcendente), pois a relação com a vontade de Deus é “um dever para consigo

mesmo (...) a favor do fortalecimento do incentivo moral na nossa própria razão

legisladora”41

; enquanto do aspecto material, os deveres seriam conhecidos empiricamente

por meio da religião revelada na História (aplicada), “a qual não é derivada exclusivamente da

razão”42

.

35 Kant utiliza a expressão metafísica para se referir ao sistema de princípios da ciência natural, seja adquiridos

a priori ou a partir experiências particulares, seja juízos morais a priori.Em resumo, todo conhecimento a priori.

Cf. KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São Paulo,

2010, p. 37-45. 36 Cf. KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São

Paulo, 2010, p. 45. 37 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 27. 38 KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São Paulo,

2010, p. 222. 39 KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São Paulo,

2010, p. 223. 40 KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São Paulo,

2010, p. 221. 41 KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São Paulo,

2010, p. 221. 42 KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São Paulo,

2010, p. 222.

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Se para Kant podemos falar de uma “religião nos limites da simples razão”43

por ter

seus ensinamentos na História; no pensamento agostiniano poderíamos arriscar e dizer a razão

para além do mundo, por ter seus conhecimentos na Razão e não somente no espaço-tempo.

Sem embargo, podemos considerar duas observações em relação ao pensamento de

Kant: a) ter o mérito de considerar o homem como um ser ético capaz de agir de acordo com

princípios (imperativos categóricos)44

, e não somente em critérios utilitaristas (de

necessidade) como Hume45

e b) a capacidade do homem de entrar em contato com a religião e

um Ser Supremo pela experiência individual.

O subjetivismo do pensamento kantiano repercute não só na esfera da ciência, mas

também nas esferas pessoal e estatal. Deus é uma hipótese não verificável - pois Deus não é

um objeto empírico -, o qual o pensamento humano pode dispensar para a construção da

ciência, da ética e do direito apesar do homem ser capaz de conhecer a realidade invisível pela

experiência.

Todo esse subjetivismo-imanentista inverte a lógica da criação de que só pensamos

porque existimos e só existimos porque Deus é existência autônoma criador de todas as

coisas. Sem o existir não podemos viver nem pensar. A Criação é, pois, elementar no

pensamento agostiniano ao permitir o encontro do Ser (Deus) com o ser (homem) e abrir as

categorias humanas, quaisquer que sejam – ética, política ou jurídica –, à Verdade e ao Amor.

A filosofia de Agostinho é ontológica na medida em que o conhecimento (visão) de Deus “é

43 KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São Paulo,

2010, p. 222. 44 “Nesse conceito de liberdade, que é positivo (de um ponto de vista prático), estão baseadas leis práticas

incondicionais, denominadas morais (...) as leis morais são imperativos (comandos ou proibições) e realmente

imperativos (incondicionais) categóricos (...) Obrigação é a necessidade de uma ação livre sob um imperativo

categórico da razão. Um imperativo é uma regra prática pela qual uma ação em si mesma contingente é tornada

necessária (...) Um imperativo categórico (incondicional) é aquele que representa uma ação como objetivamente

necessária e a torna necessária não indiretamente através da representação de algum fim que pode ser atingido

pela ação, mas através da mera representação dessa própria ação (sua forma) e, por conseguinte, diretamente (...)

O imperativo categórico, que como tal se limita a afirmar o que é a obrigação, pode ser assim formulado: age

com base em uma máxima que também possa ter validade como uma lei universal. Tens, portanto, que

primeiramente considerar tuas ações em termos dos princípios subjetivos delas; porém, só podes saber se esses

princípios têm também validade objetiva da seguinte maneira: quando tua razão os submete à prova, que consiste

em conceber a ti mesmo como também produtor de lei universal através deles, e ela qualifica esta produção

como lei universal”. KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 45-48. 45 Para Hume a moral é um conjunto de condutas aprovadas pelas pessoas em geral e se conformam à ao prazer

que proporcionam, a encontrar sua origem nos sentimentos. É, pois, um sentimento de aprovação ou reprovação.

Parece-nos que Hume incide no mesmo erro que quer combater, ou seja, tira do ser o dever-ser.

Cf. HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. Tradução de Anoar Aiex. 1. ed. São Paulo:

Editora Nova Cultural, 1996, p. 88-10.

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um ato intelectual que se verifica na alma como resultado da união do entendimento e do

objeto conhecido” 46

.

Parece-nos, então, ser de meridiana clareza que a filosofia metafísica implica uma

concepção de realidade mais abrangente, mas não excludente, do que a filosofia imanentista.

De igual modo, Agostinho reconhece a importância do conhecimento humano (gnosiologia)

na filosofia. Podemos identificar a realidade como a soma da natureza criadora e criada para

Agostinho, enquanto para a vertente imanentista a realidade se resume à natureza criada,

logicamente, não nesses termos linguísticos.

1.1.2 A ontologia agostiniana e a integralidade do homem

Agostinho pretende elevar o mundo, o homem e o Estado, ao conhecimento de todas

as realidades, inclusive metafísicas, a partir de fundamentos racionais filosóficos que

garantem a existência de uma natureza diversa do mundo e, por isso, o conhecimento humano

se torna um processo de harmonia entre o sujeito e o objeto. Não sem razão, na obra “O livre-

arbítrio” conclui-se haver três realidades presentes no mundo a partir do diálogo com o amigo

Evódio47

: o existir, o viver e o entender. Somente o homem possui as três como elementos da

sua natureza, sendo que a inteligência supõe o existir e o viver48

.

Nesse sentido, o pensador cristão consegue manter a metafísica ao raciocinar o homem

e Deus sempre juntos de modo que o conhecimento humano não fique reduzido às coisas do

mundo e à lógica subjetiva do pensamento humano. João Paulo II49

, por ocasião do

aniversário do XVI centenário da conversão de Santo Agostinho, aponta o binômio 46 No original: “es um acto intelectual que se verifica en el alma como resultado de la unión del entendimento y

del objeto conocido”. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de

Autores Cristianos, 1994, p. 451-452. 47 Evódio foi amigo e discípulo de Agostinho. Ajudou a fundar o monastério de Uzalis (Tunísia) e se tornou

bispo de 395/397. Esforçou-se para combater o donatismo. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine:

political writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 235. 48 AGOSTINHO, Santo. O livre-arítrio.Tradução, organização, introdução e notas Nair de Assis Oliveira;

revisão Honório Dalbosco. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 81. 49

“El otro gran binomio que Agustín estudió sin descanso es el de Dios y el hombre. Liberado, como dije arriba,

de materialismo que le impedia tener uma noción justa de Dios – y por lo tanto también uma veradera noción del

hombre – fijó este binômio los grandes temas de su invertigación y los estúdio siempre conjuntamente: el

hombre pensando em Dios y Dios pensando em el hombre, cuya imagen es”.

Tradução nossa: “O outro grande binomio que Agostinho estudou sem descanso é o de Deus e o homem.

Libertado, como disse acima, do materialismo que o impedia de ter um conceito adequado de Deus – e, portanto,

também um verdadeiro conceito do homem –, fixou neste binomio os grandes temas da sua pesquisa e os

estudou sempre em conjunto: o homem a pensar em Deus e Deus ao pensar no homem, que é a sua imagem”. BRASIL. PAULO II, João. Augustinum Hipponensem. In: Carta Apostólica En el centenário de La conversión

de San Augustín, agosto de 1986, p. 7-8. Disponível em

http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_letters/documents/hf_jpii_apl_26081986_augustinum-

hipponensem_sp.html. Acesso em 05 de out. 2011.

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Deus/homem como uma resposta ao materialismo que lhe impedia de ter a verdadeira noção

de si e do próprio Deus, isto é, não encerra o conhecimento para a metafísica, ao esclarecer a

noção tríplice de Deus:

É o Ser de quem procede, pela criação do nada, todo o ser; a Verdade que ilumina a

mente humana para que esta possa conhecer com certeza a verdade; o Amor do qual

procede e para o qual se dirige todo o verdadeiro amor. Com efeito, Deus, como ele

repete tantas vezes, é “a causa do ser, a razão do pensar e a norma do viver”; ou,

para citar outra fórmula sua, “a causa do universo criado, a luz da verdade que

percebemos e a fonte da felicidade que saboreamos. 50

O homem tem algo de grande e excelente em sua natureza: a razão. Acima da razão

somente Deus como Ser superior a qualquer outro ser51

. A vida e a razão humana estão

sujeitas a mutações enquanto Deus é uma realidade eterna e imutável. O existir, o viver e o

pensar humano estão intimamente ligados com Deus, a causa da existência, a norma do viver

e a razão do pensar. Em outras palavras, Agostinho consegue, filosoficamente, atribuir

unidade ao conhecimento ao direcionar todas as formas – existir, pensar e viver – para Deus.

Isso significa que o conhecimento humano – racional, experimental ou moral – implica o

conhecimento de Deus para ser verdadeiro.

Apesar da separação entre Deus e o universo, o homem é capaz de entender ao ouvir

“a voz vinda de fora com a verdade interior”52

, a qual se inclui a lei natural. Aqui

constatamos dois aspectos importantes do pensamento: a capacidade do homem em conhecer

o mundo por meio da verdade na medida em que é parte da criação e é capaz de ter

conhecimento de si mesmo.

O filósofo cristão afirma o “penso, logo existo”, contudo, sem restringir a existência

da realidade ao puro conhecimento do homem de modo que só existe e só é verdadeiro o que

a inteligência é capaz de compreender. Na extraordinária obra Solilóquios, Livro II, Capítulo

1, item 1, em que a razão dialoga com o próprio Agostinho em busca da Verdade, coloca-se o

problema do entendimento da seguinte forma:

Pois como penso que ninguém é desprezado por sua sabedoria, provavelmente se

conclui que no entendimento é que se manifesta a bem-aventurança. Mas somente é

50 No original: “Ser de quien procede, por creación de la nada, todo ser; Verdad que ilumina la mente humana

para que pueda conocer la verdad com certidumbre; Amor del cual procede y hacia em cual se dirige todo

veradero amor. Dios, em efecto, como el repite tantas veces, es ‘la causa del subsistir, la razón del pensar y la

norma del vivir’, o, por citar outra célebre fórmula suya, ‘la causa del universo creado, La luz de La verad que

percibimos, y la fuente de la felicidad que gustamos”. BRASIL. PAULO II, João. Augustinum Hipponensem.

In: Carta Apostólica En el centenário de La conversión de San Augustín, agosto de 1986, p. 7-8. Disponível

emhttp://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_letters/documents/hf_jpii_apl_26081986_augustinum-

hipponensem_sp.html. Acesso em 05 de out. 2011. 51 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio.Tradução, organização, introdução e notas Nair de Assis Oliveira;

revisão Honório Dalbosco. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 92-93. 52 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo: Folha

de São Paulo, 2010, p. 144.

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bem-aventurado aquele que vive, e ninguém vive se não existe; tu queres ser, viver,

entender, e existir para viver, e viver para entender. Depois, sabes que existes, sabes

que vives, sabes que entendes. E ainda queres dilatar o teu saber e averiguar se estas

coisas hão de sobreviver sempre, ou se hão de fenecer, ou se alguma delas ficará

para sempre e alguma outra não, ou se admitem aumento e diminuição, supondo que

sejam eternas.53

A obra “Solilóquios” desenvolve-se em ritmo de diálogo do começo ao fim em torno

do problema do entendimento humano em conhecer a Verdade54

. Um dos últimos diálogos do

Livro I de Solilóquios discute se os termos “verdadeiro” e “verdade” são uma coisa só ou

significam duas55

diferentes. Chegam à conclusão que são coisas diferentes a partir de um

exemplo prático: a castidade é uma coisa e o casto é outra. O verdadeiro existe pela verdade,

como no exemplo retro em que o casto pode deixar de sê-lo, mas a castidade permanece. O

verdadeiro pode deixar de existir, a verdade não. Porém, onde se encontra a verdade, uma vez

que o que existe, existe em algum lugar?

A razão de Agostinho percebe que a verdade, por subsistir ao verdadeiro, não pode

estar nas coisas mortais, pois, do contrário, desapareceria; assim como, não pode ser corpórea

e estar em algum lugar pelo mesmo motivo. A verdade existe e não está em nenhum lugar56

.

O que nos leva à conclusão da ontologia, no Livro II, Capítulo II, item 2, da obra

“Solilóquios”, de que existem coisas imortais e o verdadeiro não pode existir sem a verdade57

.

A verdade parece assim ser uma necessidade da ontologia cristã.

1.1.2.1 O conhecimento: verdade e falsidade

53 No original: “Pues como pienso que nadie es desdichado por la sabiduría, probablemente se concluye que em

el entendimiento se constituye la bienaventuranza. Pero solo es bienaventurado el que vive, y nadie vive si no

existe; tú quieres ser, vivir, entender, y existe para vivir, y vivir para entender. Luego sabes que existes, sabes

que vives, sabes que entiendes. Y aún quieres ensanchar tu saber y averiguar si estas cosas han de sobrevivir

siempre, o si han de fenecer, o si quedará alguna de ellas para siempre y alguna outra no, o si aditen aumento y

disminución, suponiendo que sean eternas”. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed.

Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1994, p. 475. 54 Cf. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores

Cristianos, 1994, p. 490. 55 Cf. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores

Cristianos, 1994, p. 469. 56 Cf. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores

Cristianos, 1994, p. 471. 57 Cf. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores

Cristianos, 1994, p. 476.

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Agostinho define o verdadeiro como “aquilo que é em si tal como parece ao sujeito

cognoscente, se quer e pode conhecê-lo”58

e verdade como “é o que é”59

. A razão o alerta que,

se assim for, nada é falso, pois tudo o que é, verdadeiro é. Para dissolver este problema

indagam sobre a natureza do falso e do verdadeiro e, a princípio, afirmam estar na semelhança

ou verossimilhança que as coisas falsas têm com as verdadeiras a partir do reflexo da face no

espelho, nas quais se enganam os sentidos60

; mas logo abandonam esta ideia ao tomarem

como exemplo a imagem de um homem no sonho que tanto mais é verdadeiro quanto mais for

semelhante ao homem real. Assim, semelhança não serve como critério. Posteriormente,

negam que o falso esteja na semelhança ou dessemelhança a partir do exemplo prático de uma

cesta de ovos em que todos são verdadeiros (semelhança), mas não exatamente iguais

(dessemelhantes)61

.

Isso leva, temporariamente, Agostinho a reconhecer que a verdade é o que parece e o

falso não está em nenhuma parte. O falso, pois, finge o que não é (falaz, aquele que tem a

vontade de enganar) ou tende a ser o que não é (reflexo). Em ambos os casos, há uma certa

imitação do verdadeiro no plano do objeto, e não, no da linguagem, que, por sua vez, se

tornou mais importante do que as coisas reguladas pelas leis até a identificação completa

daquela com o direito a partir da filosofia analítica a partir do século XX. Existe, pois, uma

diferença entre o que dizemos e das coisas que dizemos, a significar que o falso e o

verdadeiro ocorrem no plano ontológico. Agostinho se expressa com um exemplo:

sem embargo, se alguém assegura que a pedra é prata, respondemos que profere uma

falsa proposição. No mercado, com alguma razão, segundo opino, chamamos prata

falsa o estanho e o chumbo, porque de algum modo imitam, e então não é falsa

nossa proposição, senão o objeto mesmo.62

Agostinho tenta, então, encontrar a verdade na própria disciplina na medida em que

“vem de discere, aprender, e nada pode dizer que ignora o que aprendeu e conserva na

58 No original: “aquello que es en si tal como parece al sujeto conocedor, si quiere y puede conocerlo”

AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos,

1994, p. 484. 59 Tradução nossa: “es lo que es”. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid:

Biblioteca de Autores Cristianos, 1994, p. 484. 60 Cf. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores

Cristianos, 1994, p. 489. 61 Cf. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores

Cristianos, 1994, p. 492. 62 No original: “sin embargo, si alguien asegura que la piedra es plata, le respondemos que profiere uma falsa

proposición. En cambio, com alguna razón, según opino, llamamos plata falsa al estaño y al plomo, porque de

algún modo la imitan, y entonces no es falsa nuestra proposición, sino el objeto mismo”. Cf. AGUSTIN, San.

Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1994, p. 510.

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memória, nem que sabe coisas falsas. Toda disciplina é, pois, verdadeira” 63

. Os exemplos de

disciplinas são a dialética e a geometria. As figuras geométricas ora estariam na verdade, ora a

verdade estaria nelas, sem duvidar que elas se encontram na nossa alma ou inteligência sem

imitar nenhuma coisa estranha para ser verdadeira, como, por exemplo, a verdade de que um

círculo tem pontos equidistantes do centro64

. É, pois, na razão (percepção inteligível) que o

homem encontra a verdade.

Na obra “A Trindade” refuta-se a ideia do saber (scientia) restrita exclusivamente à

realidade dos objetos que chegam à nossa razão pelos sentidos de maneira que “sabemos que

estamos vivos por um conhecimento íntimo”65

, a ampliar o campo da ciência humana para o

conhecimento metafísico.

A participação nesse conhecimento torna-se a medida de nossa inteligência e nos

assegura a “retidão de nossos juízos”6667

, o que leva o cristão a afirmar que o espírito e a razão

têm conhecimento certo das coisas que conhece, embora limitado68

.

No Livro XV, Capítulo 12, da obra “A Trindade”, ao narrar sobre o conhecimento da

alma, divide-o em dois: “um, das coisas que a alma capta pelos sentidos corporais; outro, das

coisas que percebe por si mesma69

. A dupla finalidade da ciência – espiritual e corporal – é

descrita no Livro IX, Capítulo 3, da mesma obra, com a conclusão de que a “mente adquire

noções sobre coisas corpóreas servindo-se dos sentidos corporais, do mesmo modo, em

relação às realidades incorpóreas, ela as adquire por si mesma”70

. Em “Cidade de Deus”,

Livro XI, Capítulo XXVI, Santo Agostinho afirma que “estamos certíssimos de sermos, de

63 No original: “viene de discere, aprender, y nadie puede decirse que ignora lo que prendió y conserva em la

memória, ni que sabe cosas falsas. Toda disciplina es, pues, verdadera”. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos

(1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1994, p. 498. 64 Cf. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed. Madrid: Biblioteca de Autores

Cristianos, 1994, p. 516. 65 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e

notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 510. 66

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos. Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 46. 67 A virtude é a reta e perfeita razão. Cf. AGUSTIN, San. Escritos filosóficos (1º): Solilóquios. v. I. 6. ed.

Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1994, p. 451. 68 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos. Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 403. 69 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e

notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 512. 70 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e

notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 290.

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conhecermos e de amarmos nosso ser”71

e “como conheço que existo, assim conheço que

conheço”72

.

É interessante o reconhecimento do pensador cristão do conhecimento partir do

próprio homem, limitado em inteligência, mas com possibilidade de alcançar a Verdade pela

graça de Deus (veremos este ponto em capítulo próprio) sem duvidar das verdades que nos

vêm pelos sentidos corporais”73

, embora reconheça a limitação e a mutação da razão

humana74

; diferentemente de Kant que limita o conhecimento humano ao próprio homem sem

possibilidade do conhecimento racional metafísico, seja no plano científico, seja na esfera

ética, a admiti-lo no campo individual da experiência tão somente. Enquanto Agostinho

considera o conhecimento intuitivo por autorreflexão voltado para os aspectos material e

espiritual, Kant o centra no homem enquanto sujeito cognoscente. O bispo de Hipona refere-

se ao termo arte “não ao que se obtém pela experiência, mas ao que se descobre pela

intelecção (raciocinando)”75

com o intuito de dizer que a Verdade é superior à razão

puramente humana, seja intelectiva ou sensitiva.

Por esse motivo Kant interpretou o amor76

simplesmente como a afirmação da pessoa

em si mesma e não de acordo com a filosofia cristã no sentido do amor como doação ao

próximo. A lei do amor é a perfeição da justiça para Santo Agostinho na medida em que se

ama a Deus e por este ao próximo. No Livro I, Capítulo XXVI, da obra “A doutrina cristã”, o

pensador cristão trabalha com o amor a Deus e ao próximo. Por amar a Deus ama-se ao

próximo, sem se omitir o amor de si próprio77

.

O significado desse raciocínio, para a teoria dos valores, está em aceitar a ideia de que

os valores são construção simplesmente humana através da história, a torná-los relativos,

71

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 45. 72 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 45. 73 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e

notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 512. 74 “(...) E até a própria razão, por seu lado, que por vezes se esforça por chegar à verdade, por vês, não – mostra-

se seguramente estar sujeita a mutações”. AGOSTINHO, Santo. O livre-arítrio.Tradução, organização,

introdução e notas Nair de Assis Oliveira; revisão Honório Dalbosco. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 93. 75 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião.O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis

Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 79. 76 Para Kant “as relações morais de seres racionais que envolvem um princípio da harmonia da vontade de um

com a de outro são reduzíveis a amor e respeito; e, na medida em que este princípio seja prático, no caso do

amor, a base para determinar a vontade de um é reduzível ao fim do outro, e no caso do respeito, ao direito do

outro”. O amor é reduzido como a afirmação da pessoa em si mesma capaz de determinar os valores a partir e

conforme sua percepção de mundo, bem como o respeito é visualizado como a obrigação jurídica de não violar o

direito do outro entendido nos mesmos termos de sujeito legislador de si mesmo. KANT, Immanuel. A

Metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010, p. 222. 77 Cf. AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,

2002, p. 64-65.

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embora possam se tornar máximas universais em determinados tempos e lugares. Se a

verdade do conhecimento humano depende exclusivamente do raciocínio humano, o homem

centrará sua vida e seus valores de acordo com a própria percepção. A relatividade dos

valores indica que um determinado valor pode ser considerado bom ou útil para determinados

povos ou pessoas em determinadas épocas e outras vezes não.

De outro modo, se o pensamento humano se baliza por uma verdade fora do homem

(Deus, existência autônoma), mas presente em seu íntimo ao mesmo tempo, o conhecimento

deixa de ser subjetivo exclusivamente para se tornar objetivo. Em outras palavras, os valores,

como parte do conhecimento humano, deixam de ser subjetivos e se tornam objetivos. As

diferentes culturas mostram a diversidade da criação, as quais devem estar em unidade com a

ordem desta. Por esse motivo, nem todo o comportamento humano se legitima, pois

determinados povos localizados no tempo-espaço podem ir de encontro com as verdades

racionais.

1.1.2.2 O homem e a lei natural racional

Existe um motivo maior para que o bispo de Hipona não limite o conhecimento

humano em si mesmo: o amor imutável. Somente em Deus é possível amar e pela ordem da

criação – boa e bela78

- é possível ver o amor de Deus pelos homens. Nas palavras dele “o

céu, a terra e tudo o que neles existe, dizem por toda a parte que Vos ame”79

. Esse ponto é de

extrema importância na medida em que afirmará a justiça como a lei do amor80

, o primado

máximo para a sociedade justa (Cidade de Deus) que alcança a paz por meio da concórdia

bem ordenada81

(elemento do conceito de Estado). A lei eterna (lei do amor) é estendida como

lei natural presente na consciência de cada homem de que não façamos ao outro o que não

queremos que nos seja feito82

e de retribuirmos o mal com o bem (Cartas 136 e 10483

). Esses

primados éticos estão na natureza humana como parte da Criação. A natureza guarda, então,

78 Cf. AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião.O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis

Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 58-59. 79 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo: Folha

de São Paulo, 2010, p. 144. 80 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 398-399. 81 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 399. 82 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002,

p. 171. 83 ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 28-30 e 16.

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uma lei que está na natureza humana, notadamente, inscrita na consciência e alcançada pela

razão. A lei natural é, pois, um reflexo da Criação na medida em que – como esta – tem a

natureza e o entendimento como fundamentos. A lei está na natureza e pode ser conhecida.

A reflexão agostiniana da realidade é forte o bastante para desmistificar a ideia de que

o homem basta a si próprio para compreender tudo o que existe pela razão ou experiência

sensível. Para demonstrar esse aspecto, traz a ideia da defectibilidade. A defectibilidade do

homem, da cultura e do Estado está na ausência de integridade, pois, apesar de serem bons,

não são plenamente bons e, por isso, não são Deus e “podem se deteriorar por si mesmos,

porque por sua própria procedência nada são”84

e conclui de forma genial que “pelo mesmo

Deus, que alguns bens, em parte, não se deterioram e que outros, deteriorados, podem

recobrar sua integridade”85

.

Assim como o homem, o Estado é um bem em si mesmo (autônomo), pois melhor do

que a ausência dele (nada), embora a integridade, oposto da deterioração, seja possível em

Deus.

A própria religião, parte do Estado e reconhecida ao menos como experiência

histórica, é um conhecimento com fundamento na razão (“logos”) de acordo com o

cristianismo. Daí dizermos que a religião cristã é uma “teologia física do racionalismo

filosófico”86

. A religião está fundada no conhecimento. “A fé busca, o entendimento

encontra”87

. Chega a afirmar que a verdadeira religião é aquela que funda a Cidade Celeste88

.

Conhecer o mundo significa conhecer a ordem natural da criação e, consequentemente, a

inteligência de Deus refletida no mundo. A lei natural é o reflexo da inteligência de Deus na

história (natureza). Nesse sentido, o conhecimento não está limitado ao plano do sujeito

(subjetivo), mas centralizado na existência com base na ciência das realidades corpóreas e

incorpóreas. Isso afirma o pensador cristão ao dizer que “mais facilmente duvidaria da minha

vida do que da existência da Verdade, cujo conhecimento se apreende por meio das coisas

criadas”89

.

84 Cf. AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis

Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 58-59. 85 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis

Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 60. 86 RATZINGER, Joseph; D’ARCAIS, Paolo Flores. Deus existe?. Tradução de Sandra Martha Dolinsky. 1. ed.

São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2009, p. 12. 87 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e

notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 481. 88 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 239. 89 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo: Folha

de São Paulo, 2010, p. 101.

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1.1.3 A filosofia agostiniana e o platonismo

Pelos motivos antecedentes, o filósofo Agostinho afirma que a filosofia (ciência)

platônica90

é a que mais se aproxima da verdade da fé cristã. Platão, discípulo de Sócrates,

divide a filosofia em três partes: a natural, a racional e a moral. Com a filosofia natural ou

física os platônicos compreendem que Deus é o princípio de todos os seres e que nenhum

corpo é Deus. Em busca de Deus levam o conhecimento acima dos corpos e concluem pela

imutabilidade de Deus de onde provém todo ser mutável. “O que para Ele é viver, entender e

ser feliz é para Ele ser”91

.

A semelhança entre a filosofia cristã e a filosofia de Platão é visível na medida em

que o existir, o pensar e o entender estão unidos em direção à Verdade. Para os platônicos

tudo o que existe é corpo ou é vida, o primeiro sensível pelos sentidos e a segunda inteligível

pela inteligência. Como o corpo e a inteligência são mutáveis, continuaram a buscar algo que

pudesse ser incomparável e concluíram ser Deus a causa eficiente (imutável e incomparável).

Desde a criação do mundo, os homens podem sentir e ver com a inteligência as realidades

visíveis a perfeição invisível de Deus. Por isso, diz-se natural, pois é o que se pode conceber

naturalmente de Deus92

.

A segunda parte da filosofia, chamada racional ou lógica, distingue entre o que o

“espírito descobre e o que o sentido aprende, sem que aos sentidos nada tirassem do que

podem, nem lhes atribuíssem poder que não têm”93

, e não coloca o conhecimento somente no

que pode ser apreendido pelos sentidos como regra única e exclusiva da percepção da

verdade. O sentido da palavra “descobrir” (inventio) significa “chegar até onde se deseja” (in-

venire) para afirmar que a alma procura as realidades que conhece antes dos sentidos as

encontrar94

.

90 Interessante é a investigação de Agostinho a respeito de que meios se serviu Platão para adquirir uma visão

próxima à cristã. Chega à conclusão de que Platão – aprendiz da língua egípcia por meio de intérprete - pode ter

adquirido esses conhecimento da tradução das Escrituras proféticas quando esteve no Egito em razão do rei

egípcio Ptolomeu ter as pedido à Judéia, as quais foram traduzidas por setenta hebreus à custa de pagamento. Cf.

AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 313-314. 91 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 308. 92 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 308-309. 93 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 310. 94 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e

notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 323-324.

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Agostinho remonta a Platão para refutar as ideias epicuristas de que a inteligência

(espírito) concebe noções (ennóias) das coisas que explicam por definições, a unir por

conexão o aprender e o ensinar. Essa filosofia platônica assevera que existe certa inteligência

capaz de nos ensinar todas as coisas, sendo o próprio Deus, criador de todas as coisas. Ou

seja, a filosofia lógica ou racional reconhece a importância do conhecimento que nos vem

pelos sentidos e aquela que nos chega pela inteligência na descoberta de todas as coisas em

Deus, afirmado como medida de todas as coisas, na obra “As Leis”: “Aos nossos olhos a

divindade será ‘a medida de todas as coisas’ no mais alto grau – um grau muito mais alto do

que aquele em que está qualquer ‘ser humano’ do qual eles falam”95

.

É interessante observar que Hume no século XVIII – compartilhando do pensamento

epicurista – afirme que

os únicos objetos da ciência abstrata ou da demonstração, são a quantidade e o

número, e que todo esforço para estender este gênero mais perfeito do

conhecimento além daquelas fronteiras é mero sofisma ou ilusão.

(...) Todas as outras investigações humanas dizem respeito unicamente às questões

de fato e de existência; e estas não são, evidentemente, suscetíveis de

demonstração. Tudo o que é pode não ser.

(...) Portanto, a existência de qualquer ser somente pode ser provada mediante

argumentos derivados de sua causa ou de seu efeito, e estes argumentos se fundam

inteiramente na experiência.

(...) As ciências religiosas (...) fundam-se sobre a razão, na medida em que se

apóiam na experiência. Mas seu melhor e mais sólido fundamento é a fé e a

revelação divina.96

O que Hume proporciona é a divisão da filosofia e da ciência, pois não têm base

comum, ou, ao menos, tenta reduzir o significado do termo “filosofia” para o que chamou de

“filosofia moral ou da natureza humana” e ter como ponto central a experiência, a excluir

qualquer entendimento abstrato não verificável na prática. Não há, assim, possibilidade de um

juízo moral97

(dever-ser) advir dos fatos (ser); assim como só entendemos o mundo por uma

associação de ideias vindas da experiência sensível.

Não obstante, os argumentos das filosofias platônica e cristã continuam a repousar em

bases racionais para além do conhecimento intuitivo kantiano ou o experimental de Hume, a

aceitar um fundamento racional para o juízo moral. Tanto Kant quanto Hume não retiram a

religiosidade da experiência humana e isso, a nosso ver, pode reforçar a ideia de que o existir,

o pensar e o viver são categorias presentes no universo criado (natureza), notadamente, no

homem capaz de transcender todos os corpos (realidade sensível) para chegar a algo

95 PLATÃO. As Leis. Tradução Edson Bini. 2. ed. Livro IV. 716 c. São Paulo: Edipro, 2010, p. 189. 96 HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. Tradução de Anoar Aiex. 1. ed. São Paulo:

Editora Nova Cultural, 1996, p. 153-154. 97 Apesar disso, o juízo moral adviria de um sentimento de aprovação ou reprovação social.

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incomparável (Deus, transcendente) na medida em que sua inteligência pode ser guiada ao Ser

Supremo por Este como experiência humana.

A separação entre as naturezas divina e humana não põe obstáculo ao homem em

conhecer uma realidade, por assim dizer, transempírica, pois nem mesmo Kant e Hume ousam

afirmar que a religião não tenha um aspecto racional de acordo com a experiência. Em termos

cristãos, ao abordarmos uma experiência humana racional, queremos nos reportar ao

pensamento segundo o qual a própria religião se funda sob bases racionais e, se se estabelece

nisso, é apta, pois, a se fazer ouvir no mundo, particularmente, no Estado. Essa mesma

experiência é reconhecida como resgate divino da humanidade realizado na história; por isso,

o pensador cristão afirma que “o fundamento para seguir esta religião é a história e a

profecia”98

. Nesse sentido, a busca pelo conhecimento verdadeiro é mais do que o puramente

subjetivo ou empírico, embora se reconheça o seu devido valor. O modelo de Estado pode ser

fabricado com base em elementos exclusivamente humanos em razão de ser autônomo, mas,

para ser justo verdadeiramente, deve buscar o conhecimento verdadeiro.

A prosseguir, a terceira parte da filosofia, denominada moral, é chamada pelos gregos

de ethiké e trata do bem supremo99

para alcançarmos a felicidade e só a alcança quem vive de

acordo com a virtude por meio do conhecimento e imitação de Deus, fonte única da

felicidade100

. A felicidade vai para além do mundo e do ser (corpo e alma) para se situar no

fruir de Deus. Veremos que Santo Agostinho embasa a justiça justamente na ideia do fruir de

Deus.

Apesar dessas considerações a respeito da filosofia platônica, Agostinho aponta que os

platônicos não foram capazes de reconhecer Cristo como o Verbo encarnado por não

acreditarem que o homem pudesse alcançar a perfeição da sabedoria enquanto não evitasse e

se liberasse do corpo para ser feliz101

. Isso porque o corpo é um bem na visão cristã e a

encarnação de Cristo não lhe afetou a divindade.

Outro ponto que o pensador cristão refuta é a reminiscência de Platão segundo a qual o

homem não adquire novos conhecimentos na medida em que as almas que viviam neste

mundo antes dos corpos apenas se lembram do que já conhecem. Na verdade, Agostinho

refuta essa idéia ao aceitar que a intelecção humana é capaz de conhecer as realidades eternas 98 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis

Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 39. 99 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 310. 100 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 311. 101 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 405-406.

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enquanto a razão humana é capaz de conhecer e aprender as coisas temporais de forma

originária. Por isso, divide o conhecimento em intelectivo (sabedoria) e racional (ciência). “A

sabedoria é o conhecimento intelectivo das realidades eternas e a ciência o conhecimento

racional das coisas temporais”102

.

1.1.4 A influência da ontologia agostiniana na ideia de Estado

Existe a separação entre as naturezas divina e humana e autonomia de ambas, mas a

segunda é dependente da primeira para alcançar a Verdade. Veremos em capítulo próprio que

a verdadeira justiça é aquela participante da Verdade, a consistir no fruir103

de Deus, presente

no mundo por meio da lei natural. Podemos afirmar que a independência do Estado está na

ideia de criação e, consequentemente, na separação entre Deus e o mundo. O Estado é

autônomo em relação a Deus, mas necessita Deste para encontrar a verdadeira justiça. A

Verdade é o ponto de referência da conduta dos cidadãos na condução do Estado, nos vícios e

nas virtudes; assim como a lei natural o é para a lei civil. Onde não há Verdade, não há

felicidade em âmbito pessoal ou coletivo. Onde não há conformidade à lei natural, não há

verdadeira lei civil.

Por isso, a filosofia verdadeira é aquela que se aproxima do conhecimento de Deus.

Assim, afirma-se que a filosofia é “o amor da sabedoria”104

. As categorias metafísicas se

fazem presente já neste mundo (natureza). Deus e a natureza são autônomos e, ao mesmo

tempo, estão imbricados um no outro, não por natureza, mas por amor. Amor como lei natural

estendida aos homens pela lei divina. Por isso, Agostinho afirma que a Cidade de Deus é uma

realidade presente no mundo misturada com a Cidade terrena enquanto peregrina neste mundo

e feliz ao encontrar a verdadeira filosofia. Esse raciocínio leva à conclusão de que “o

cristianismo convenceu pela união da fé com a razão e pela orientação da atuação para a

caritas (...) acima de todo limite de condição”105

.

102 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e

notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 390-392. 103 Santo Agostinho faz uma diferença entre fruir e usar: o primeiro é “aderir a alguma coisa por amor a ela

própria” e usar “é orientar o objeto de que se faz uso para obter o objeto ao qual se ama, caso tal objeto mereça

ser amado”. Essa diferença tem importância também em relação às virtudes. O homem usa das virtudes para fruir

de Deus. AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo:

Paulus, 2002, p. 44. 104 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 75. 105 RATZINGER, Joseph; D’ARCAIS, Paolo Flores. Deus existe?. Tradução de Sandra Martha Dolinsky. 1. ed.

São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2009, p. 16.

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1.2 Ordem como vontade

Vimos no subtítulo antecedente que a criação é a categoria agostiniana que permite

ligar a Cidade Celeste e a Cidade terrena pelo conhecimento. O conhecimento é o encontro da

verdade por meio da sabedoria e da ciência. O homem conhece as realidades imanentes e

metafísicas pelos sentidos e pela razão. O conhecimento permite a aproximação entre Deus e

a natureza, realidades autônomas. A construção do Estado depende desse conhecimento

verdadeiro para ser justo. A Justiça é uma virtude sintetizada no amor a Deus e ao próximo,

lei natural como projeção da lei divina comum a todos os homens, os quais já têm presentes

na razão a centelha106

da inteligência divina para encontrar a verdade.

A Criação implica a observância de certa ordem. Todas as coisas obedecem à ordem

natural da criação. Por isso, dizemos que conhecer o mundo significa conhecer a ordem

natural da Criação. A ordem é física e moral. Isso significa que o próprio homem deve

procurar a ordem dentro de si.

A ordem é uma categoria importante para a harmonia da Criação, pois a existência de

ordem traz em si a ideia da existência de uma inteligência que permite orientar todas as coisas

para si. Essa inteligência é Deus para Santo Agostinho. Deus “é a própria verdade

(veritas)”107

. Por meio da ordem das coisas, a divina Providência governa e rege todas as

coisas.

A ordem é a harmonia da diversidade das coisas criadas que, por sua vez, devem se

orientar em direção ao Criador na medida em que “o espírito, a partir de sua interioridade,

entende o que seja a beleza do universo, que certamente assim se denomina a partir do termo

uno.”108

O homem, como parte da Criação, está sujeito a essa ordem também, particularmente,

à ordem moral. Vive justamente quem ama ordenadamente: a Deus e ao próximo109

.A ordem

moral permite trazer à discussão as virtudes e os vícios humanos e, pois, como o Estado deve

tomar a lei para atender às exigências da moral.

106 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 568. 107 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 170. 108 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 162. 109 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002, p. 65-

66.

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Caso não aceitemos a ideia de criação e da ordem criada, o mundo se torna obra do

acaso. O conhecimento se tornaria uma luta constante com a natureza na medida em que esta

não deseja ser conhecida. A natureza só se deseja conhecer caso a inteligência encontre a

beleza e a bondade, ou seja, uma harmonia presente desde a criação do cosmos. Do contrário,

se a natureza for obra do acaso que não guarda em si uma ordem e, consequentemente, a

beleza e a bondade, o conhecimento não buscará a Verdade, mas, sim, modos de viver

conforme a necessidade e utilidade em um mundo sem início nem fim. Os homens estão,

desse modo, abandonados no universo e, com isso, não estão sujeitos à lei natural como

decorrência da lei eterna. Não haveria uma lei natural universal comum a todos os homens,

mas somente leis fabricadas pelo homem em busca de regular o Estado em determinadas

épocas e lugares.

1.2.1 A ordem e a causa

Agostinho procura essa idéia de ordem a partir do método dialético entre ele e seus

amigos Licêncio e Trigécio em resposta às dúvidas do amigo Zenóbio. Nesse diálogo da obra

denominada “A ordem”, Agostinho e os amigos procuram responder como justificar a

evidência do mal nas ações humanas se todas as coisas sucedem de Deus pela ordem da

criação.

A resposta a que se dê ao problema permite refutar as afirmações ímpias de que ou

Deus negligenciou a ordem nessa parte ou todas as coisas más acontecem por causa da

vontade de Deus. Ao dar prosseguimento ao diálogo, Agostinho incita seus amigos a

responder a razão pela qual a água da chuva que cai no canal durante a noite provoca um

ruído irregular.

Isso leva Licêncio e Trigécio a dialogarem a respeito das causas110

das coisas. Se todas

as coisas têm uma causa e o efeito de uma causa é a subsequente de outra coisa, então, a

ordem se estabelece de maneira linear. Esse raciocínio leva à conclusão de que o próprio erro

tem uma causa e, em última análise, o erro seria atribuído a Deus: causa eficiente de todas as

coisas.

110 David Hume procurou refutar a teoria das causas (princípio da causalidade) no sentido metafísico

(transcendental) com a teoria da associação de idéias em que habituamos relacionar necessariamente o anterior e

o posterior. Ou seja, o raciocínio se baseia no hábito que causa na imaginação uma certa regularidade das ideias

fundadas em fatos sensíveis (princípio da conexão). Cf. HUME, David. Investigação acerca do entendimento

humano. Tradução de Anoar Aiex. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 1996, p. 39-59.

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Para tanto iniciam com a pergunta: “É possível que alguma coisa aconteça sem uma

causa?”111

. Interrogam-se a respeito das folhas que caem nos aquedutos de madeira e

provocam o som irregular da água se ocorrem pelo acaso (casualidade) ou por alguma razão

subjacente (ordem das coisas). A razão pela qual as folhas caem das árvores foge ao

entendimento de Licêncio ao afirmar que “estas coisas escapam aos nossos sentidos”112

. Santo

Agostinho, sabedor de que as árvores são a causa antecedente das folhas, questiona se as

árvores nasceram ali por acaso. Como em um ato de fé, Licêncio crê que nada se faz sem uma

“ordem de certas causas”113

. Sem se conformar com a resposta, Agostinho questiona Licêncio

ao indagá-lo da seguinte forma: “Esta natureza, que você acha tão ordenada, para que

utilidade (...) ela gerou estas árvores que não produzem frutos?”114

. Trigécio rompe o silêncio

e responde que a utilidade das árvores não está em somente dar frutos. Agostinho não

responde à questão a respeito da ordem, mas oferece uma luz à inteligência de Licêncio e

Trigécio ao indagar se as folhas que são levadas pelo vento e boiam na corrente ao resistirem

um pouco ao curso das águas que se precipitam necessariamente, não faz lembrar exatamente

certa ordem das coisas. Licêncio maravilhado exclama que nada se faz sem uma causa. Em

outras palavras, a questão sobre a causa (princípio da causalidade) não é respondida.

O pensador cristão complica o problema e coloca a questão sobre se a ordem das

coisas é boa ou ruim para tentar refletir sobre se existe alguma coisa no universo que contraria

essa mesma ordem. De fato, Agostinho se preocupa aqui com o problema do livre-arbítrio do

homem e com a desordem que pode advir da conduta humana, a abalar a existência de Deus e

tudo o que isso implica, como, por exemplo, a criação, a perfeição, a verdade, a beleza e a

bondade. Como pode existir a desordem se Deus estabeleceu a ordem? Como pode existir o

mal se tudo foi criado por Deus que é bom?

Licêncio sem titubear diz que nada pode ser contrário “àquilo que ocupa o todo e se

mantém no todo”115

. O raciocínio é simples e, por isso, incita Trigécio a questionar Licêncio

sobre o erro: “Logo, o erro não é contrário à ordem?”116

.

111 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 170. 112 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 170. 113 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 170. 114 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 170. 115 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 174. 116 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 175.

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Sem perdermos a linha da discussão, o erro é a base da preocupação dos filósofos na

época moderna. Descartes elabora o método de descobrir a verdade, a duvidar a princípio de

tudo, a pretender transformar a verdade em certeza científica. O erro é uma preocupação de

Santo Agostinho também, muito embora faça uma análise a respeito do erro em âmbito mais

em relação ao mal presente no mundo – o que seria uma contradição com o Deus Uno - do

que sob a perspectiva científica de conhecer as realidades a partir do pensamento humano.

Podemos dizer que a visão agostiniana é logocêntrica enquanto a cartesiana em diante é mais

antropocêntrica.

De qualquer forma, a questão do erro é uma preocupação do pensador cristão tendo

em vista a existência do mal presente no mundo, o que o leva junto aos demais colegas a

discutir a questão a partir da justiça.

Licêncio, por sua vez, diz que até mesmo o erro provém de uma causa do qual é efeito

e conclui que os “bens e os males estão no âmbito da ordem”117

. Santo Agostinho permanece

calado e deixa Trigécio se indignar e a dizer que o amigo Licêncio afirmou algo ímpio na

medida em que a ordem procede de Deus e, por isso, os males não poderiam provir d’Ele. Isso

permitiu Licêncio a afirmar que “Por esta ordem e disposição ele conserva a coerência da

universalidade das coisas pela própria distinção, resultando que seja necessário que também

os males existam”.118

Disso resulta que a beleza da ordem de Deus está nos contrários. Nessa espécie de

antítese se encontraria a ordem de Deus. Desta vez é Licêncio que coloca uma questão de

grande importância e que serve perfeitamente para o nosso estudo: “Deus é justo?”119

. Na

verdade, Licêncio coloca a questão para reforçar o argumento de que na ordem de Deus se

encontram as distinções de modo a permitir a aplicação da justiça. A justiça é entendida em

termos platônicos, no sentido de se dar a cada um o que lhe compete120

. Se não houvesse

distinção, não haveria distribuição em razão de todos serem bons e, então, a justiça seria

desnecessária. E como todos afirmam que Deus é justo, então a oposição dos contrários seria

aceitável na ideia de ordem.

117 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 175. 118 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 177. 119 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 177. 120 Na República de Platão e na discussão sobre o conceito de Justiça, Polemarco ao lembrar do poeta grego

Simônides afirma que “justo é dar a cada um aquilo que lhe é devido”. (PLATÃO. República, 331 e.).

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1.2.1.1 A lei natural como vontade de conservar a ordem

A ordem, uma das bases filosóficas de Agostinho, remete-nos à justiça. Isso significa

que a ordem não ocorre somente nos aspectos físicos da natureza, como a água caindo do

aqueduto de madeira, mas, principalmente, interfere na ordem moral do homem. A justiça é

vista como uma virtude. Agostinho define o direito natural como a “la ley eterna es lá razón o

voluntad divina que manda conservar el orden natural y prohibe alterarlo”121

.

São Tomás de Aquino afirmará no século XIII que a justiça é “dar a cada um o que lhe

pertence”122

na questão 58, alínea 11 da parte IIa-IIæ. O “o que” é o justo concreto que

permite conservar a ordem na sociedade.

O bispo de Hipona não responde imediatamente à questão sobre o erro, mas somente

menciona que a conversão a Deus nos tira do erro presente no corpo123

. Esse caminho –

afastamento do erro - é alcançado com a prática das virtudes que une o homem ao

“Intelecto”124

para gozar de uma “vida felicíssima”125

. Nesse ponto, a questão da existência da

ordem é deslocada para a utilidade da ordem. Passa-se de uma investigação ontológica (o que

é) para uma teleológica (qual a finalidade). A definição de ordem se centra, assim, neste plano

com a afirmação de que

a ordem é aquilo que, se a conservarmos em nossa vida, nos leva a Deus e, se não a

conservamos em nossa vida, não chegaremos a Deus (...) Esta questão deve,

portanto, ser discutida com toda a diligência (...). 126

Aqui é ligada a ideia de ordem e a de conservação. Para conservar a ordem precisamos

nos conduzir pelas virtudes, sendo a justiça uma delas. O Estado justo é aquele que se funda

sobre as virtudes de modo a conservar a concórdia entre as pessoas. Um dos elementos do

Estado é a concórdia bem ordenada127

. A expressão “bem ordenada” indica a fundação do

121 Tradução nossa: “lei eterna que, enquanto razão ou vontade divina, prescreve a conservação da ordem natural

e proíbe a sua perturbação”. AGUSTIN, San. Obras completas de San Agustín: Escritos antimaniqueos (2º).

Contra Fausto. Tradução de Pio de Luis. v. XXXI. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1993, p. 540. 122 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica: do direito, da justiça e das suas partes integrantes. Tradução de

Alexandre Correia. v. XIV. 1. ed. São Paulo: Editora Odeon, 1937, p. 43. 123 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 181. 124 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 182. 125 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 182. 126 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 185. 127 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 399.

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Estado sobre as virtudes. O que nos leva à conclusão de que o Estado para Santo Agostinho é

um Estado ético. A função da lei é ordenar os apetites desordenados dos homens128

.

A ideia de ordem é tão importante para o pensamento ocidental que levou até mesmo

Dante Alighieri, citado por Miguel Reale, a afirmar que o direito é “uma proporção real e

pessoal, de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida,

corrompe-a”129

. Para o que nos interessa, Miguel Reale explica que a definição de Dante foi

tomada dos ensinamentos aristotélico-tomistas e das lições de Cícero – diga-se de passagem,

que Santo Agostinho o apreciava130

– em que devemos conhecer a natureza humana para

conhecer o Direito na medida em que este é “uma expressão ou dimensão da vida humana,

como intersubjetividade e convivência ordenada”131

.

1.2.2 A ordem: razão e sentido

Santo Agostinho diz que toda a Verdade, a Suma Harmonia, habita no coração do

homem apesar de ser mutável. A Verdade é a referência das virtudes e dos vícios. O homem

encontra esta ordem dentro si, voltando-se para si e deixando a multiplicidade de coisas que o

poderia desviar das virtudes. Diz o mestre cristão:

Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração do

homem. E se não encontras senão a tua natureza sujeita a mudanças, vai além de ti

mesmo. Em te ultrapassando, porém, não te esqueças que transcendes tua alma que

raciocina. Portanto, dirige-te à fonte da própria luz da razão.132

A ordem é alcançada com a harmonia entre a razão humana e a Verdade. Reforçamos

aqui o binômio Deus e o homem que Santo Agostinho trabalha em toda sua obra. O homem

para além de si mesmo em busca de Deus. Se considerarmos exclusivamente a pura razão

humana, o homem não é capaz de ultrapassar os próprios limites. Na obra “A ordem”, o

pensador cristão menciona que o homem (a alma) só vê a beleza da harmonia (unidade) pelo

“desapego da multiplicidade”133

.

128 AGUSTIN, San. Obras completas de San Agustín: Escritos antimaniqueos (2º). Contra Fausto. v. XXXI.

Tradução de Pio de Luis. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1993, p. 611. 129 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 60. 130 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 47. 131 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 61. 132 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis

Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 98. 133 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 162.

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Isso fica claro na sequência do diálogo. Santo Agostinho provoca Licêncio a definir o

que sabe sobre a ordem. Este, então, define a ordem como “aquilo pelo qual são feitas todas

as coisas que Deus estabeleceu”134

. Para Licêncio, a noção de ordem abrange os bens e os

males, os quais são governados por ela. Antevendo o erro para o qual Licêncio se dirige, o

mestre Agostinho o indaga, anteriormente, se até mesmo Deus se rege pela ordem ou está fora

dela. Pois, se em Deus tudo é bom não haveria ordem a administrar e, portanto, estaria fora

dela135

(essa questão de Deus estar ou não fora da ordem repercutirá no conceito de justiça

que veremos mais abaixo).

Dessa maneira, Agostinho insere a variável do movimento no debate, o que obriga o

condiscípulo a admitir que as coisas governadas pela ordem neste mundo são mutáveis e as

em Deus são imutáveis. Logo, se as coisas mutáveis não estão em Deus; elas existiriam sem

Deus?136

Esta provocação de Agostinho leva-os a determinar o sentido exato da expressão

“estar-com-Deus” como “tudo o que entende a Deus”137

. Se o sábio entende a Deus e se

move, estaria ele com Deus? Essa pergunta de Agostinho faz Licêncio responder que nem

tudo o que o sábio conhece está com Deus, mas aquela parte que está com Deus o sábio a

conhece. Fala desse jeito para negar que o conhecimento adquirido pelos sentidos está com

Deus e afirmar que a percepção pela mente está com Deus. Vai mais longe e afirma que o

homem que só conhece as realidades pelos sentidos não conhece a si mesmo. Trigécio se

manifesta para dizer que a compreensão se adquire pelo conhecimento intelectual apenas na

medida em que sentir não é conhecer138

.

Santo Agostinho retifica e diz que o homem é feito de alma e corpo. A alma também

conhece por meio dos sentidos. O que o mestre faz é unir alma e corpo da maneira que a

criação de Deus – o homem – não esteja só neste mundo. A divisão entre alma e corpo

permite o raciocínio de que o corpo, por pertencer a uma parte inferior do homem (mutável),

deve buscar algo melhor (imutável) do que ele para que possa alcançar a verdade. O corpo

deve se submeter à inteligência que, por sua vez, possui a centelha da inteligência divina.

Submeter o corpo à inteligência significa atribuir a esta uma parte melhor e superior que o

134 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 186. 135 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 196. 136 Ao inserirmos a discussão sob a perspectiva do modelo de Estado, poderíamos dizer que este se faz sem

Deus? 137 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 199. 138 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 199-200.

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corpo, o qual pertence a uma parte inferior do homem. Pelo diálogo acima, a alma que já

entende a Deus e está com Ele se torna imutável neste ponto e já experimenta da realidade

invisível. Aqui não queremos afirmar que o corpo seja algo mau em si mesmo – ao contrário,

é bom – mas apenas reconhecer a limitação do corpo para “entender a Deus” (conceito de

ordem).

Agostinho acredita que devemos olhar a harmonia da criação em seu todo139

. Não

devemos tomar cada parte separadamente, pois isso prejudica ver a beleza da ordem da

criação. Se tomarmos todas as coisas em seu conjunto, veremos que tudo tem uma causa e

está em certa ordem140

(ordem física). Todas as coisas têm sentido e tendem para Deus.

Essa passagem do diálogo é importante pelo fato de atribuir ao homem a possibilidade

de encontrar a Verdade imutável. O homem é parte do mundo e este foi criado por Deus com

natureza distinta de si. Voltando-se para si mesmo é possível encontrar a beleza da ordem. O

homem não está abandonado; ao contrário, a existência da Verdade se faz presente neste

mundo, particularmente, na inteligência humana capaz de conhecer a si mesma.

No Livro X da obra “Confissões”, Agostinho nos apresenta o ser diante Deus. O

homem se desnuda frente ao Criador onisciente e se reconhece em sua integralidade humana

com todas as fraquezas e, ao mesmo tempo, consola-se no Senhor. A consciência humana não

resiste quando comete erros e se confessa a partir do eu para o Tu para, sendo perdoado na

misericórdia divina e na doçura da graça, tornar o homem feliz e afastá-lo do desespero do

“não posso”141

.

Os erros (males) fazem o homem atrasar o cumprimento da virtude e, assim, a

confissão do eu serve para Deus mostrar quem é o homem, e não, o que ele foi. Agostinho diz

que as ações boas são obras e dons de Deus; as más são delitos do homem e juízo de Deus142

.

A ordem divina é servir o outro como concidadãos e peregrinos neste mundo143

de modo que

os erros criam uma desordem no próprio homem. Por isso, Agostinho afirma que “enquanto

peregrino longe de Vós, estou mais presente a mim do que a Vós”144

, a significar o ser no

139 Cf. AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 102. 140 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 208-210. 141 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 142. 142 Cf. AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 142. 143 Cf. AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 143. 144 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 143.

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mundo longe da Verdade e sujeito às tentações. Na visão agostiniana, o homem está no

mundo com todas as circunstâncias respectivas, mas não abandonado.

A ontologia (estudo do ser) é significante no pensamento agostiniano quando discorre

sobre memória, onde se guardam “as percepções de toda espécie”145

e se “conservam

distintas e classificadas todas as sensações”146

. As imagens ficam armazenadas na memória,

não os objetos segundo Agostinho. E acrescenta que a memória retém as noções – no sentido

de realidades – do conhecimento intelectual (arte, dialética, etc.) de modo a reter na memória

os próprios objetos. Agostinho se expressa do seguinte modo:

Quando ouço dizer que há três espécies de questões, a saber: “se uma coisa existe

(na sif)? qual a sua natureza (quid sit)? e qual a sua qualidade (quale sit)!”, retenho

as imagens dos sons de que se formaram essas palavras, e vejo que eles passaram

com ruído através do ar e já não existem. Não foi por nenhum dos sentidos do corpo

que atingi essas coisas significadas nestes sons, nem as vi em parte nenhuma a não

ser no meu espírito. Escondi na memória não as suas imagens mas os próprios

objetos.147

Em outras palavras, a memória retém as imagens de objetos sensíveis, mas, também,

objetos de maneira que “sem imagens vemos no nosso interior tais como são em si

mesmas”148

. A memória seria responsável por fazer emergir na inteligência humana

conhecimentos que lá estão (reminiscência) como ideias inatas, que, se não recordados, ficam

dispersos novamente

E assim como se fossem novos, é necessário pensar segunda vez nesses

conhecimentos existentes na memória – pois não têm outra habitação – e juntá-los

(cogenda) novamente, para que se possam saber. Quer dizer, precisamos de os

coligir (colligenda), subtraindo-os a uma espécie de dispersão. E daqui (cogenda,

cogo) é que vem cogitare; pois cogo e cogito são como ago e agito, facio e facitio.

Porém a inteligência reivindicou como próprio este verbo (cogito), de tal maneira

que só ao ato de coligir (colligere), isto é, ao ato de juntar (cogere) no espírito e não

em qualquer parte, é que propriamente se chama “pensar” (cogitare).149

No homem se desenvolve o conhecimento. O homem é capaz de aqui tornar presente

o objeto que antes estava disperso, como, por exemplo, as regras matemáticas dos números, a

tal ponto que “a memória lembra-se de se lembrar”150

, inclusive do conhecimento que

discerne as verdades das falsidades, o qual conservo (a noção de ordem traz consigo a ideia de

145 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 145. 146 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 145. 147 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 147. 148 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 147. 149

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 148. 150 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 148.

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conservação) “na memória para depois me lembrar que agora entendi”151

. Isso quer dizer que

é na memória que o homem encontra-se a si mesmo e se recorda de todas as ações, bem como

é a memória a responsável por conservar objetos ‘inatos’ e as imagens dos objetos sensíveis.

Toda essa teoria da reminiscência de Agostinho é para que o homem se lembre de

encontrar a felicidade e, mais, de como procurar a vida feliz. A felicidade é uma noção que

habita a memória, a significar que já fomos felizes na medida em que esta se recorda da noção

– realidade – de modo que essa verdade seja auto-evidente para a nossa conduta de vida, sem

a contestarmos, pois, de outro modo, não a perceberíamos. Ninguém diria que não quer ser ou

estar feliz, pois todos a desejam.

Agostinho parece querer unir intelecto e conduta como elementos para entendermos o

homem globalmente. A força dos objetos é tão forte que são auto-evidentes na nossa conduta

de vida (felicidade por exemplo) e, ao mesmo tempo, nossa memória os fazem emergir.

Agostinho verifica que todos querem a felicidade no mundo e, por esse motivo, tentar

encontrar a razão de tudo isso. No Livro X, Capítulo XXI, das Confissões expõe que “Todos,

absolutamente todos, querem ser felizes. Se não conhecêssemos a vida feliz por uma noção

certa, não a desejaríamos com tão firme vontade”152

. O filósofo cristão parece querer

encontrar um fundamento racional para certos tipos de juízos tirados da memória com a teoria

da reminiscência e, ao mesmo tempo, explicar os motivos que fazem os homens terem

vontade de tê-los.

Para Agostinho a realidade desses bens é conhecida pelo intelecto, mas, também,

sentida na prática de modo que devemos buscar a felicidade na verdade153

. Por outro lado, não

é possível a felicidade na falsidade, como, por exemplo, ninguém quer ser enganado apesar de

ter o desejo de fazê-lo. Por isso Agostinho questiona “qual será o termo médio onde a vida

humana não seja tentação?”154

. Chega à conclusão de que deve se afastar da concupiscência

da carne, da concupiscência dos olhos e da ambição do mundo. A concupiscência da carne

está em se deleitar nos prazeres de modo a não usá-los bem. A maior tentação dos olhos é a

curiosidade ou o desejo de conhecer tudo por meio da carne e que se disfarça sobre o nome de

“ciência”. A ambição do mundo contempla ainda o orgulho, a tentação do louvor humano, a

vanglória, o amor-próprio que faz que os bens de Deus parecerem pertencer aos homens

151 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 148. 152 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 154. 153 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 154. 154 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 156.

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exclusivamente ou invejam o outro para não tê-los. Por outro lado, a maior felicidade é o

encontro com Deus.

Por essa razão se diz que o intelecto é apto a “estar-com-Deus”, a memória, por sua

vez, é útil para a lembrança das coisas mutáveis em razão de serem passageiras (sensíveis) e

para o conhecimento racional de ideias inatas ao torná-las presentes, como, por exemplo, as

virtudes, o conhecimento e a verdade. A utilidade da memória está em fazer com que nosso

corpo (sensível) obedeça à lei155

, ou seja, lembra-nos da Verdade e torna nossas ações

condizentes com as virtudes (bens superiores) com o auxílio da graça divina segundo a ordem.

1.2.2.1 A justiça como ordem das virtudes

A ordem traz a ideia de lei que deve ser observada. Essa lei deve submeter todas as

coisas para si, a qual é alcançada com o homem voltando para si por meio da razão, centelha

da inteligência divina, para estabelecer a ordem em todas as coisas. A síntese do pensamento

pode ser descrita na seguinte passagem do Livro “Confissões”: “Dai-me o que me ordenais e

ordenai-me o que quiserdes”156

. Dita de forma expressa na obra Cidade de Deus com o intuito

de afastar da república os vícios do povo que idolatravam os deuses: “a lei é a vontade de

Deus”157

.

Para os platônicos, a virtude é a prática habitual da justiça e a arte (tradução dos

latinos para a palavra grega arete) de bem viver para os estóicos. Ambos estão de acordo de

em que a razão deve resistir às partes inferiores do corpo para que, dominando-as, possa

governar a virtude158

. A virtude conserva a ordem das coisas e põe em prática a vontade de

Deus (lei).

Deus é bom e imutável e em tem natureza diversa da do universo. A natureza é

mutável e boa em si mesma, muito embora tenda a se deteriorar. O homem por estar no

mundo é mutável e bom em si mesmo, mas pela sua conduta tende aos vícios. Também o

Estado é mutável e bom em si mesmo, pois melhor existir do que não existir nada. A natureza,

o homem e o Estado são realidades autônomas em razão de terem natureza distinta da de

155 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 199-204. 156 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 157. 157

AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 88. 158 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 169 e 344-346.

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Deus. Por esse motivo e para que não se deteriore (natureza), não se paute pelos vícios ou

erros (homem) e não haja dominação (Estado) devem estar com a Verdade imutável. Essa

Verdade é chamada de “Ordenador”159

por Santo Agostinho. A corrupção do homem e a

dominação do Estado estão em desordem por não procurarem bens superiores e melhores. No

Livro “Confissões”, Santo Agostinho reconhece a beleza das coisas e afirma que

quando se indaga a razão por que se praticou um crime, esta ordinariamente não é

digna de crédito, se não se descobre que a sua causa pode ter sido ou o desejo de

alcançar alguns dos bens a que chamamos ínfimos, ou o medo de os perder. Esses

bens são, sem dúvida, belos e atraentes, ainda que, comparados com os superiores e

celestes, não passem de desprezíveis e abjetos.160

O homem tem dentro de si essa lei eterna para proferir um juízo sobre quais bens deve

almejar em detrimento de quais deve rejeitar. A verdadeira justiça é aquela que se pauta pela

“lei retíssima de Deus Onipotente”161

. Essa lei é igual em todos os tempos e lugares para

todos os homens. Agostinho faz uma crítica veemente aos que julgam conforme a sabedoria

humana e, portanto, a relatividade dos tempos passados e futuros.

O que queremos dizer é que o direito conserva (ordem) em si uma parte que está fora

da cultura (costumes) ou, ao menos não é redutível à ciência como nós a conhecemos hoje,

muito embora seja alcançado pela experiência. Nem todo o direito é cultural e, assim,

mutável. Existe uma parte que se conserva imutável, a qual Santo Agostinho chama de amor,

a elevar o próprio conceito de justiça. A implicação dessa lei é lançar a justiça para além da

justiça humana e as leis para além das leis humanas. As leis e a justiça humana devem se

conformar às exigências desta lei que podemos chamar de natural na medida em que a ordem

se encontra na natureza que, por sua vez, foi criada por Deus, o Ordenador.

Se isso é certo, os cidadãos deverão se conformar a essa “lei retíssima” pelo caminho

das virtudes, as quais conduzem o homem aos bens superiores. O exemplo histórico a que

Agostinho faz menção é o crescimento de Roma na época em que as pessoas se conduziam

pelas virtudes por meio da lei inscrita na consciência humana tiradas das palavras de Salústio

segundo o qual “o honesto e o justo reinavam tanto na consciência como na lei”162

.

Assim também o Estado terreno deve procurar os bens superiores para se tornar a

Cidade Celeste desde já. Em outros termos, o Estado deve ser ético e a ética não deve ser

159 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis

Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 85. 160 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 40. 161 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 50. 162 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 84.

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construída em bases exclusivamente humanas. Fabricá-la sobre fundamentos puramente

humanos significa fundar o Estado sobre “uma falsa liberdade”163

que nos faz amar mais a nós

do que a Deus. Significa antepormos164

as coisas terrestres às coisas divinas, a inverter a

ordem natural das coisas.

Santo Agostinho critica os filósofos que pretendem colocar os prazeres como medida

das virtudes. A Volúpia seria uma rainha sentada no trono em que a Prudência lhe asseguraria

a tranquilidade e a paz; a Justiça distribuísse todas as graças para conciliar a todos para a

manutenção do bem-estar corporal e afastar as leis que atrapalhassem a segurança dos

prazeres; a Fortaleza serviria para aliviar a dor ao lembrar os prazeres passados e a

Temperança deveria controlar a quantidade de alimentos para que não houvesse excesso que

perturbasse os prazeres alterando a saúde do homem165

; “como se o supremo bem do homem

fosse ter boas todas as suas coisas, menos a si mesmo”166

. Novamente, o bispo de Hipona

trabalha com o binômio Deus e o homem ao afirmar a integralidade do ser humano

globalmente. A unidade do ser humano é alcançada ao deixarmos a concupiscência seguindo

a Deus único167

.

Da mesma forma, o Estado que regula os cidadãos para garantir paz e segurança em

nome dos prazeres humanos não está com Deus em razão de não procurar bens superiores aos

que o Estado pode oferecer. A autossuficiência torna o homem e o Estado soberbos para

menosprezar as virtudes e enaltecerem a si mesmos. Essa liberdade implica nos vícios

humanos e na corrupção do Estado, pois não se pauta pela verdade, e sim pela vaidade.

Agostinho denuncia essa falsa liberdade que não permite dizer a verdade:

Porque, se não existe, em absoluto, a liberdade de dizer a verdade, mas a licença de

maldizer o que eles esperam, o céu os preserve da prosperidade daquele homem

que a liberdade de prejudicar faria passar por feliz: Infeliz, exclama Cícero, quem é

livre para pecar!168

Para o pensamento agostiniano, Deus é o autor de todas as coisas, as quais obedecem à

ordem natural. Deus é bom. Logo, o mal é definido como “a privação do bem, privação cujo

163 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 52. 164

Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 359. 165 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 221. 166 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis

Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 107. 167

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 187. 168 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 230.

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último termo é o nada”169

na medida em que tudo é bom ao provir de Deus. O homem e o

Estado são bons, mas devem se submeter à vontade de Deus, lei, para não serem privados dos

bens superiores. Aproximar-se e estar com Deus não priva o homem de nada do que é bom. A

ordem submete o mal a si para que também se curve à vontade de Deus.

Existe menção ao poder como categoria construtiva (positiva) na obra “Cidade de

Deus”, Livro V, Capítulo XIX, em que Santo Agostinho faz apologia aos homens unidos à

vida moral para que governem os povos170

. A filosofia agostiniana não é apenas um conjunto

de idéias sem aplicação prática. Ao contrário, a doutrina agostiniana é uma experiência da

razão que se faz perceber desde já. Podemos dizer que existe uma razão prática na ação do

homem e do Estado ao lado de um conhecimento especulativo. No prólogo da obra “Cidade

de Deus”, Agostinho diz que “A gloriosa Cidade de Deus prossegue em seu peregrinar através

da impiedade e dos tempos (...)”171

.

O bispo de Hipona tem uma posição definida em relação ao pensamento cristão no

governo do Estado. As causas são o encadeamento lógico da ordem natural. Todos os Estados

têm uma formação a partir de uma causa. Logo, a constituição do Estado se faz perante a

ordem das coisas. O Estado não é originado de um fortuito ou de uma necessidade inevitável

(fatalidade)172

, mas sim da vontade de Deus e dos homens. Deus permite e o homem constrói

o Estado.

A presença do cristianismo durante império romano serviu para afastar a adoração a

vários deuses e centralizar a fé em um só Deus. A filosofia racional de Agostinho permite que

a religião cristã se torne portadora da Verdade dentro do Estado (verdadeira religião). A noção

de ordem ligada à de Verdade autoriza o Estado a tomar os valores cristãos como parâmetro

para a moralidade pública. Não se trata de uma visão única de mundo, mas sim o

reconhecimento da Cidade terrestre em aceitar a liberdade na verdade para alcançar bens

superiores pelo caminho da virtude. A Verdade não se impõe na medida em que a ninguém se

obriga a tomar para si uma verdade na qual não se acredita, muito embora esteja disponível

para bons e maus. A ordem criada por Deus está aberta para conhecimento a todos os homens

e a todos os Estados em todas as épocas e lugares.

169 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 50. 170 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 221. 171 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 27. 172 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 183 e 190.

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Sabemos que, para Santo Agostinho, a razão se encontra com a fé. Ambas levam o

homem e o Estado para Deus. Se unirmos as ideias de criação e ordem, a justiça deve

encontrar ali seu refúgio. Esse lugar é a fé. Nesse sentido, Santo Agostinho diz que “a fé

participa da justiça e ocupa entre nós o lugar mais destacado, porque sabemos o que é, pois o

justo vive da fé”173

. As virtudes são dons de Deus. A prudência, a temperança e a fortaleza

constituem a base das virtudes para Santo Agostinho ao lado da justiça.

Santo Agostinho e os condiscípulos na obra “A ordem” questionam se o bem e o mal

existiram sempre em razão de a justiça ser a expressão de dar a cada um o que é seu, já que só

há justiça se há uma distinção entre bem e mal. Logo, Deus é justo onde existe o mal que

permite diferenciá-lo do bem. Mas atribuir o mal na ordem da criação serviria para justificar

as virtudes e os vícios em uma mesma ordem, a atribuir a Deus os males. Por isso, santa

Mônica, mãe de Santo Agostinho, não afirma que o mal sempre existiu. Ocorre que o mal é

submetido à ideia de ordem também. A justiça não permite que algo fique desordenado174

.

A ideia de criação está vinculada inteiramente à idéia de ordem de maneira que a

constatação desta assente com o bom e o belo que provêm de Deus. Se não constatamos a

ordem, a ideia de criação e do Deus único se desfaz, o que repercute na ideia de justiça como

o estabelecimento da ordem. Não teria sentido restaurarmos uma ordem anterior ao mal para

que todas as coisas se façam belas e boas de acordo com a justiça se Deus não fosse o

Supremo Bem e todo bem procedesse dele. Não haveria justiça como conceito divino se não

tivesse havido a criação de onde procedera a ordem de todo bem. A justiça seria um conceito

puramente humano sujeita à mudança dos tempos e dos lugares se não tivesse havido a

criação e a ordem de onde todo bem provém. Assim, a justiça depende da fé para ser

conceituada como virtude para o estabelecimento da ordem criada por Deus.

1.2.3 Aspecto prático da ordem: contemplação e conduta

Santo Agostinho explica o aspecto prático da doutrina da ordem. A ordem é a própria

lei de Deus. O conhecimento dela implica duas ordens: a contemplativa (erudição) e a conduta

(vida)175

. A contemplativa ocorre pela autoridade e pela razão. A alma deseja conhecer

173 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 168. 174 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 218-221. 175 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 222-224.

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(cognição) e apreende primeiro pela autoridade (admoestação) e depois pela inteligência

(intelecto), a compreender o princípio de todas as coisas, inclusive a própria razão176

. A

autoridade (fé) que nos leva ao entendimento é a divina, e não a humana, de modo a orientar o

homem para além das coisas sensíveis. O intelecto (razão) tem a potencialidade de entender as

virtudes. Seja pela autoridade, seja pelo entendimento, o homem deve se conduzir pelas

virtudes.

Dessa forma, o outro aspecto da ordem é a conduta. Santo Agostinho diz que o modo

de vida das pessoas deve se dar conforme as virtudes. Sem raciocínios abstratos, discorre

sobre as condutas concretamente

de tal modo que se abstenham de assuntos eróticos; dos prazeres da glutonaria; do

desregrado cuidado e adorno do corpo; das fúteis ocupações com os espetáculos; da

indolência de tanto dormir e da preguiça; da rivalidade; da difamação e da inveja;

das ambições de honras e poderes (...) o apego ao dinheiro é um veneno certíssimo

para toda a sua esperança (...) Não façam a ninguém o que não queiram que lhes

façam. Não aspirem a administrar a coisa pública se não forem perfeitos (...).177

O aspecto prático da ordem, notadamente no que se refere à conduta, orienta não só a

vida privada das pessoas, mas, inclusive, a conduta dos homens públicos. Parece que a

sabedoria tem um viés de razão prática direcionada para as ações a partir dos bens, sem

desprezar a força da razão para ‘sintetizar’ os juízos. No trecho acima, observamos com toda

eloquência a censura às ambições de poder e honras na administração da coisa pública (res-

publica). As virtudes entram como elementos constitutivos do Estado na percepção

agostiniana. Mais que isso: os homens virtuosos devem guiar o Estado.

1.2.3.1 A conduta e o Estado

Um Estado que não aceite essas virtudes se deteriora por meio da corrupção, causa de

cobiça dos bens terrestres em detrimento dos bens superiores. Santo Agostinho descreve que a

segurança e a prosperidade da república romana foram as causas da corrupção dos costumes

entre a segunda e a terceira guerras púnicas, período em que se promulgou a Lei Vocônia, que

proibia as mulheres a se tornarem herdeiras, embora filhas únicas. Santo Agostinho cita essa

176 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 224-225. 177

AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 222-223.

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lei como exemplo de lei injusta178

. Na obra “Cidade de Deus”, Livro II, Capítulo XVIII, é

descrita a corrupção da república romana da seguinte forma:

Eis que a república romana (...) mudando pouco a pouco, de ótima e formosíssima se

transformou em dissolutíssima e péssima. Eis que, ante do advento de Cristo e após

o desaparecimento de Cartago, os costumes dos antepassados não iam

desempenhando-se lentamente, mas de modo torrentoso, ao extremo de o luxo e a

cobiça corromperem a mocidade.179

A lição é de que nem toda lei humana é justa (boa ou má) mesmo que promulgada em

épocas de segurança e paz. Mesmo Norberto Bobbio, defensor do positivismo jurídico, é

contrário à versão forte do positivismo jurídico e favorável à versão fraca como ideologia180

em tempos normais. O positivismo ético extremista é a obediência à lei sem limites, enquanto

o moderado não outorga poder sem limites em épocas de normalidade e, por isso, não leva ao

abuso da lei. O que leva à conclusão de que a lei é a forma mais perfeita de direito para

estabelecer a ordem181

.

A justiça é uma virtude, dom de Deus, de modo a poder o homem praticá-la ou não,

caso se aceite a verdade ou não. A justiça está ligada à verdade em última análise, sendo

necessária para o Estado. O Estado que alijar a fé de seu povo é um Estado dominador por não

permitir o encontro com a verdade. A verdade liberta o homem do mal, pois não o priva de

nada do que é bom na medida em que a verdade é Deus e Ele é bom.

As leis do Estado terrestre, que não conservam as virtudes, são injustas porque não

alicerçadas na verdade. Da mesma forma que a verdade não se impõe no sentido de obrigar

alguém a alguma conduta sem sua vontade, o Estado não pode se impor por meio das leis para

silenciar quem denuncia os vícios, sob pena de privar os cidadãos do bem. E privar do bem

significa fazer o mal. Caso o Estado acolha esse caminho, estará ele a impor uma visão única

de mundo em detrimento da própria ideia de liberdade que defende182

. Quem acusa os cristãos

de terem uma visão única de mundo tenta, na verdade, impor sua própria visão única de

mundo por meio das leis ao acusar os cristãos dos males presentes ou mesmo o enfraquecendo

ao induzir os que creem a um juízo equivocado.

178 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 135-136. 179 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 87. 180

A ideologia procura interferir na realidade, e não descrevê-la (teoria). Assim, crítica de funda num juízo de

valor de boa ou má, e não de verdade ou falsidade. 181 Cf. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução de Márcio

Pugliese, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo, Ícone, 1995, p. 235-238. 182 A ideia de verdade afasta a incerteza da doutrina do provável ou do verossímil. Em uma democracia, a

pluralidade é elemento constitutivo, mas a fé não pode ser posta à margem das questões do Estado, sob pena de a

própria pluralidade e liberdade se esvaírem.

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Mais uma vez, a lei que distribuía o nome de cidadão na república romana após a

segunda guerra púnica é usada como exemplo da decadência dos costumes romanos. Era

considerado bom cidadão pelos senadores aquele que defendia o presente segundo seu

poderio econômico e a capacidade de prejudicar183

. Agostinho indaga diante desse quadro:

“Por conseguinte, se esses historiadores opinavam que era dever da liberdade justa

não silenciar os males da própria cidade (...) que obrigação pesa sobre nós, que,

quanto melhor e mais certa nossa esperança em Deus, tanto maior deve ser nossa

liberdade, ao vermos imputarem ao Cristo os males presentes, com o propósito de

desviarem da única cidade em que se serve alegre e felizmente as inteligências mais

fracas e crédulas?184

A inversão dos valores é um perigo do juízo sobre as imagens. Santo Agostinho prega

que concedamos aos valores inferiores “o quanto a sua forma de ser o merece – o da última

ordem”185

. Significa que não devemos antepor os bens terrestres aos bens celestes. Lembra-

nos que a ordem da criação é para todos e mesmo “a sorte do injusto está ordenada com

justiça”186

. É importante observar que colocar na frente dos bens superiores os bens inferiores

significa priorizar o presente e menosprezar a o tempo futuro que leva, segundo a ordem,

todas as coisas para Deus, uma vez que é o princípio e o fim de todas as coisas. A inversão

dos valores significa a inversão da ordem estabelecida na criação, a qual sujeita à sorte dos

justos e injustos à ordem da justiça.

Apesar disso, o Estado pode ser constituído e formado em bases jurídicas sólidas e não

acolher as virtudes ao mesmo tempo na medida em que é de natureza diversa da divina. Se o

Estado não se pauta pelas virtudes, os bens inferiores serão postos à frente dos bens

superiores, de modo a ocasionar a deterioração do Estado. Os exemplos mencionados acima,

ocorridos durante a república romana, isentam os cristãos da responsabilidade da queda do

poderia de Roma. Roma caiu ao se degradar moralmente, ao preferir os vícios às virtudes.

A virtude é a prática da justiça. Um Estado sem as virtudes é um Estado sem justiça.

Logo, um Estado sem justiça, é um Estado desordenado. Se o Estado é desordenado, os bens

inferiores são antepostos aos bens superiores. Um Estado assim está sujeito à deterioração até

o nada. O nada é a privação total do bem. Deus é o Sumo Bem, criador de todos os bens

(criação) e do qual a ordem é um bem ou procede do bem. Portanto, um Estado que se priva

183 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 126-127. 184 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 127. 185 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis

Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 88. 186 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis

Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 88.

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do bem, é um Estado sem Deus. Como Deus é a subsistência de todas as coisas (criação)187

, o

Estado tende a desaparecer sem Ele. Um Estado sem virtudes é um Estado sem bens e,

consequentemente, um Estado corrupto, muito embora possa obedecer às leis humanas.

Uma das críticas mais contundentes ao Estado corrupto é aquela feita pelo filósofo

cristão na obra “Cidade de Deus”, Livro IV, Capítulo IV, para comparar o Estado legalmente

constituído a um conjunto de salteadores. Eis as palavras do pensador cristão:

Desterrada a justiça, que é todo reino, senão grande pirataria? E a pirataria que é,

senão pequeno reino? Também é punhado de homens, rege-se pelo poderio do

príncipe, liga-se por meio de pacto de sociedade, reparte a presa de acordo com

certas convenções. Se esse mal cresce, porque se lhe acrescentam homens perdidos,

que se assenhoreiam de lugares, estabelecem esconderijos, ocupam cidades,

subjugam povos, toma o nome mais autêntico de reino. Esse nome dá-lhe

abertamente, não a perdida cobiça, mas a impunidade acrescentada. Em tom de

brincadeira, porém a sério, certo pirata respondeu a Alexandre Magno, que lhe

perguntou o que lhe parecia o sobressalto em que mantinha o mar. Com arrogante

liberdade, respondeu-lhe: “O mesmo que te parece o manteres perturbada a Terra

toda, com a diferença apenas de que a mim, por fazê-lo com navio de pequeno porte,

me chamam ladrão e a ti, que o fazes com enorme esquadra, imperador”.188

De fato, a justiça é necessária para estabelecer a ordem quando a desordem é

verificada. Se as pessoas se portam pelos vícios, a justiça é útil para colocá-las no caminho

das virtudes. As virtudes estão ligadas à ideia de ordem que, por sua vez, remete à criação e,

consequentemente, à verdade. A força exercida pelo Estado não é um problema para

Agostinho, desde que utilizada para assegurar a retidão de conduta dos cidadãos.

1.2.3.1.1 A Carta 134 de Agostinho a Apringius189

Nesta carta, Agostinho busca a responsabilidade de quem exerce o poder ao aplicar a

força como punição para manter a segurança somente quando necessária190

. A violência é

uma questão política com a qual o pensador se preocupou na prática como capaz de abalar a

paz da comunidade, ao recomendar moderação da pena a alguns donatistas acusados de matar

um clérigo.

187 Cf. AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 207. 188 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 153. 189 Apingius foi procônsul da África em 411 d.C e um cristão. Ele governou a província da África Proconsular

com a capital em Cartago, mais tarde se tornou vigário da África e prefieto pretoriano. Agostinho escreveu a ele

pedindo moderação na punição dos donatistas condenados por matar um clérigo. Ele era irmão de Marcelino.

Ambos foram executados em 413 d. C acusados de conspiração contra o imperador Honório. Cf. ATKINS, E.M.,

DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 228. 190 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 65.

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Para que a moral católica que usa da mansidão para não retribuir o mal com o mal,

Agostinho busca a legitimidade da força em época de guerra para se defender e na justiça

punitiva institucional. Isso porque, costumes e regras locais das províncias eram feitos e

aplicados para punir desmedidamente por meio de um julgamento presidido pelo governador

pretoriano. Assim, governadores, juízes, bispos e soldados estão legitimados a se valer da

força no exercício das funções públicas para assegurar a paz e conter a violência de modo que

respondam a Deus pela usurpação do poder. Deus dá esse poder de julgamento aos homens,

os quais devem responder por seus próprios julgamentos perante Deus (primeiro parágrafo da

Carta 134).

Agostinho considera o lado humano da punição que serve para corrigir, e, não, como

instrumento de vingança. Desse modo, aconselha Apringius a não infligir com igual

tratamento aqueles que mataram o clérigo católico em sinal de retribuição ao mal cometido,

como, por exemplo, impondo males físicos de cortar os dedos ou arrancar os olhos. Agostinho

apela à razão de que os sofrimentos cristãos não sejam manchados com o sangue dos seus

inimigos191

.

Por fim, pede e aconselha Apringius a proferir uma sentença moderada de acordo

com a bondade cristã de não retribuir o mal com o mal192

.

1.2.3.1.2 Carta 153 de Agostinho a Macedonius193

Na Carta 153 Agostinho responde a Macedônio a seguinte dúvida: é dever de um

padre interceder por uma pena menor ou mais benevolente em favor de um criminoso que

pratica e poderá continuar a praticar crimes de forma persistente? Esse dever deriva da

religião?

O filósofo cristão começa a responder que se deve ter compaixão da pessoa do

criminoso e odiar o crime praticado (“nós devemos ter compaixão da pessoa, mas odiar as

ofensas ou transgressões”194

) de maneira que possa ser considerado um ser humano ligado aos

191 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 64. 192 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 66. 193 Macedônio vigário da África (413-14), encarregado da administração da diocese civil da África. Como

católico cristão, era um devoto de Agostinho como um filho espiritual. Agostinho o enviou o primeiro dos três

livros da Cidade de Deus. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York:

Cambridge University Press, 2011, p. 240. 194 No original: “we pity the person, but hate the offence or transgression”. ATKINS, E.M., DODARO, R.J.

Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 72.

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outros pela natureza da raça humana. Por esse motivo, é dever de um religioso interceder em

favor de um criminoso, uma vez que Deus fez nascer o sol sobre bons e maus igualmente. A

impiedade (maldade) é o verdadeiro inimigo a ser combatido, assim como atos desumanos de

força estatal.

A solução proposta é intervir por um julgamento mais brando195

, isto é, a força deve

ser controlada. Agostinho diz que não vai começar um estudo a respeito dos deveres legais

dos acusadores, defensores, intercessores e julgadores, os quais são diferentes, muito embora

considere que não devam ser inspirados pela raiva pessoal, antes devem considerar que são

executores da lei, nomeados para investigar e punir as injustiças cometidas contra os outros196

.

Em outras palavras, a lei e a impessoalidade devem ser a marca de um julgamento justo. Com

efeito, a punição é reconhecida com propósitos legítimos para deter futuros transgressores e

mover a pessoa do condenado para o arrependimento.

De igual modo, a moral religiosa impõe o dever de fazer com que o criminoso

devolva o bem subtraído caso tenha condições de fazê-lo, sob pena de ser acusado,

repreendido e amaldiçoado. O objetivo de Agostinho é que a propriedade subtraída

injustamente retorne ao proprietário ou seja devolvida outra propriedade se não mais tiver a

subtraída, a fim de que a injustiça seja perdoada. Esse é um dever religioso, mesmo que

“existe tolerância para a injustiça daqueles em iníquas posses, e certas leis estabelecidas entre

eles, conhecidas como leis civis”197

.

Por isso, a intervenção para o uso moderado da força institucional em favor do

criminoso é uma obrigação advinda da razão que exige o reconhecimento de que todos são de

igual modo seres humanos e, consequentemente, nenhuma pena deve ser desumana.

1.2.3.1.3 A conduta ordenada é razoável

Já explicamos acima as vias de acesso para a verdade: contemplação e conduta,

necessárias para buscarmos a ordem. Agora Santo Agostinho nos apresenta a diferença entre o

195 ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 74. 196 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 75. 197 No original: “there is toleration for the injustice of those in wrongful possession, and certain laws have been

established among them, known as ‘civil laws’”. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political

writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 87.

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que é racional e o que é razoável198

para nos dizer que este está ligado àquele, ou seja, a nossa

vida prática deve refletir nossa racionalidade para afastar a ideia de verossímil da vida prática

das pessoas. A verossimilhança ou o provável é o que pode mover o homem sem a verdade199

.

O problema para o bispo de Hipona não está, por assim dizer, no verossímil ou provável em

si, mas na conduta humana de ignorar ou obstaculizar a verdade. Assim como homem não

pode obstaculizar a busca da verdade, o Estado não o pode também.

Isso significa que as pessoas devem praticar a verdade, uma vez que em nossa razão

existe a centelha da inteligência divina. O racional está ligado à noção de razão. O homem

usa da razão e, assim, é racional. Razoável é “aquilo que se faz ou se diz conforme à

razão”200

. Significa também que o homem pela razão e pela conduta de vida pode procurar a

verdade (“deificar-se”) já neste mundo presente. O bispo de Hipona reconhece a realidade

presente com todas as vicissitudes (visão realista do mundo) e, ao mesmo tempo, expõe uma

perspectiva divina da via humana (visão divina).

1.2.4 A ordem como elemento constitutivo da unidade no Estado

No plano estatal, razoável (racional) é a concórdia que não pode subsistir sem a

justiça. A virtude é a prática da justiça, dom de Deus para estabelecer a concórdia (o estreito

vínculo entre os cidadãos e oferecer consistência para a República201

). A concórdia verdadeira

é aquela que reflete a ordem natural; daí a expressão “bem ordenada”. A ordem natural é

vontade de Deus e esta é a lei. A lei está inscrita na consciência do homem, por isso se diz

natural ao homem. A consciência do homem é a razão. Assim, o homem usa da razão para

descobrir e compreender esta lei inscrita. Aquilo que se faz ou se diz conforme a lei é dito

razoável. Razoável é a concórdia e a ordem é a lei. O Estado é a concórdia bem ordenada.

Esses dois elementos constitutivos do Estado – concórdia e ordem – caracterizam a

unidade do pensamento agostiniano no plano público, na medida em que dá consistência

(integridade) àquele. A unidade é o princípio de todas as coisas (números, pessoas, animais,

198 Curioso observar que este diálogo acontece entre Agostinho e Alípio na obra “A ordem”. Alípio que estudou

direito em Roma que se tornaria bispo de Tagaste mais tarde (ano 394-395). Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra

os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre.Tradução de Agustinho Belmonte. São Paulo:

Paulus, 2008, p. 34. 199 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 94-95. 200 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 230. 201 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 90.

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amizade) e reflete a beleza da criação. O bispo de Hipona identifica a razão com a força de

separar as coisas que devem ser apreendidas e estabelecer conexão entre elas. Só se pode

separar o que se pensa ser uno, assim como se une para se estabelecer uma unidade. Seja ao

separar, seja ao unir, busca-se a unidade perfeita202

. Por isso, a razão é apta a buscar a

unidade. Santo Agostinho questiona: “Um conjunto de habitantes constitui uma unidade para

a qual a dissensão é perigosa: pois o que significa dissentir senão não sentir em unidade?”203

O Estado é belo se reflete a unidade e enquanto se mantém a ordem natural das coisas de

modo a “passar do inferior ao superior”204

. Devemos usar da razão para alcançarmos os bens

superiores.

Poderíamos imaginar que a disciplina do conhecimento em busca da unidade, da

ordem e da lei é exclusivamente teológica ao depender da fé. Agostinho, ao contrário, não

considera a fé como inimiga da razão, a torná-las uma só unidade para o afastamento dos

vícios e o encontro da Verdade. Diz que “a alma se eleva gradativamente à perfeição de

costumes e de vida não apenas só pela fé, mas também com certa razão”205

. A unidade do ser

– alma e corpo – se condensa na unidade da fé e da razão.

1.2.4.1 A lei eterna e a justiça

Dessa forma a prática dos bons costumes no Estado é necessária para a unidade

perfeita. Isso nos torna bons e felizes. Então, poderíamos perguntar: qual é esta lei inscrita no

coração do homem que precisa ser conhecida, compreendida, guardada, praticada; que guarda

a ordem perfeita; que nos afasta dos vícios e nos faz praticas as virtudes; une razão e fé, a

Cidade Celeste e a Cidade terrena; que une Deus e o homem; que une as naturezas divina e

humana; que curva às exigências dela as leis humanas; que é justa em qualquer tempo e lugar;

que deve ser obedecida para conservar a unidade do Estado, bem como conserva a unidade

(integridade) do ser humano e de todas as coisas?

Santo Agostinho responde na obra “Confissões”:

Em que tempo ou lugar será injusto que “amemos a Deus com todo o nosso coração,

com toda a nossa alma e com toda a nossa mente, e que amemos o próximo como a

202 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 246. 203 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 247. 204 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 249. 205

AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 249.

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nós mesmos? Por isso as devassidões contrárias à natureza, sempre e em toda parte

se devem detestar e punir (...) Ainda que todos os povos os cometessem, cairiam na

mesma culpabilidade de pecado, segundo a lei de Deus que não fez os homens para

assim usarem dele.

Efetivamente, viola-se a própria união que deve existir entre Deus e nós, quando a

natureza, de quem Ele é autor, se mancha pelas paixões depravadas. Porém as

torpezas luxuriosas, contrárias aos costumes humanos, devem-se repelir, em razão

da diversidade de costumes, a fim de que, por nenhuma desvergonha de cidadão ou

de estrangeiro, se quebre o pacto estabelecido pelo costume ou lei de uma cidade ou

nação.

É, pois, indecorosa qualquer parte que não condiz com o seu todo. Contudo, quando

Deus ordena alguma coisa contra os costumes ou contra quaisquer convenções,

ainda mesmo que esse preceito jamais aí seja observado, deve restaurar-se. Se é

lícito ao rei da cidade a que preside dar uma ordem que antes dele jamais alguém,

nem sequer ele mesmo, prescreveu, e se obedecer-lhe não vai contra os princípios

sociais da cidade, ante é contrário a eles o desobedecer-lhe – pois a obediência aos

reis é um pacto geral da sociedade humana – com quanto maior razão se deve

obedecer, sem hesitações, às ordens de Deus, Rei efetivo de toda a criação?206

A lei suprema para Agostinho é a lei do amor, a Deus e ao próximo. Lei universal

inscrita no ser humano e, assim natural. Esta lei é válida para todos em qualquer época ou

lugar ao ser natural ao homem. Ela existe para que o homem se uma a Deus, a Cidade terrena

se torne a Cidade Celeste, os vícios sejam punidos e a ordem restaurada, a vontade de Deus

seja superior à vontade humana e esta corresponda àquela. A lei é a vontade de Deus. A

vontade de Deus é o amor. Por amor fomos criados; por amor se mantém a ordem; por amor

devemos obediência a Deus; por amor se conservam todas as coisas, inclusive, o direito.

Santo Agostinho não separa o amor da justiça. Pode haver justiça e pode haver amor.

O amor não exclui a justiça e a justiça não exclui o amor. No Estado, sem justiça não se

punem os vícios para estabelecer a ordem perdida; sem o amor não existe lei universal para

obedecermos nem bens superiores a procurar. Sem justiça a impunidade prolifera e sem o

amor (verdade) os interesses (verossímil) prevalecem. A ordem não necessita do mal para

existir em razão de tudo o que procede de Deus é bom, mas sendo praticado desordena o

homem e a sociedade e, por isso, deve ser punido pela via da justiça. O amor e a justiça dão

unidade ao Estado.

1.3 Livre-arbítrio207

206 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 51. 207 O Papa Leão XIII discorrendo sobre a liberdade e o liberalismo afirma que a liberdade, própria e exclusiva

dos seres rcionais, confere dignidade ao ser humano, podendo, daí, surgir boas ou más ações, mas, certamente,

citando Santo Agostinho, tudo o que há de justo e legítimo na lei temporal foi tirado pelos homens da lei eterna.

BRASIL. Leão XIII. In: Carta Encíclica: Libertas Praestantissimum, 20 de junho de 1888. Disponível em

http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_20061888_libertas_sp.html

Acesso em 23 de mai.. 2012.

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Vimos no subtítulo anterior que a ordem foi criada por Deus para que todos amem a

Deus e em Deus ao próximo. Deus é o fundamento da Verdade que garante a ordem. A ordem

é a vontade de Deus. A vontade é a lei e esta o amor. Os vícios e a injustiça estão submetidos

a essa mesma ordem. As condutas corruptas devem ser punidas pela justiça. A unidade entre o

amor e a justiça oferece consistência para o Estado.

O Estado que se conduz pelas impunidades e pelos vícios é corrupto. As vaidades

(vains) da conduta humana corrompem o homem de modo a lançá-lo no vazio (in vain) em

razão de antepor os bens mutáveis aos imutáveis, preferir as coisas passageiras às eternas, os

vícios às virtudes, os interesses à verdade; por fim, o homem a Deus. Faz do Estado um

conjunto de salteadores aptos a se assenhorearem dos bens do povo (res publica) de maneira a

distribuir bens pela conveniência, manter a paz e a segurança para assegurar os prazeres e

ceder diante dos interesses dos poderosos e influentes.

Desse modo, a ordem que procede do Sumo Bem e é um bem também faz com que o

mal seja submetido a si para que todas os bens sejam resgatados ao amor por justiça. A

prática das virtudes é a constância da ordem e a consistência do Estado. O Estado deve ser

ético e ser conduzido por homens justos e honestos. Podemos dizer que o mal não é

necessário para a ordem, pois não é necessário o mal para haver a ordem. A ordem antecede

ao mal. Mas, uma vez constatado o mal, este se submete à ordem por meio da justiça. No

Estado, a escolha errada de bens por dirigentes imbuídos de vaidades e vícios inverte a ordem

de valores ao antepor os interesses próprios ao bem comum. O mau uso do Estado - um bem

em si mesmo – deve ter a devida correção pela via da verdadeira justiça.

A questão do mal, um problema que angustiou Santo Agostinho, está intimamente

ligado com a ideia de livre-arbítrio do homem. Esta terceira categoria da filosofia agostiniana

repercutirá na problemática do mal ontológico-metafísico e também nos males moral e físico

que assolam a humanidade e, por via de consequência, o Estado. O homem é livre. O arbítrio

se torna livre se encontra a Verdade, referência dos vícios e das virtudes. Veremos no

subtítulo posterior a função da graça para libertar o homem. Por ora, centraremos nossa

análise neste terceiro fundamento da filosofia agostiniana.

Para o doutor de Hipona, o mal é resultado da má conduta humana. O homem pratica

de modo voluntário determinada ação. Se esta for má, será punida pela justiça. Deus não

pratica o mal porque a ninguém se pune injustamente. A inteligência humana é um bem em si

mesmo e capaz (idoneus) de aprender o que é bom. Podemos procurar o autor de nossas boas

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ações de modo a usarmos nossa inteligência – boa – para aprender e, assim, procedermos

bem208

. Nosso juízo é livre na medida em que pode escolher determinado bem.

Deus é o criador de todas as coisas e tirou tudo do nada. Do nada criou todos os bens.

Se os pecados são atribuídos aos seres criados por Deus, como não atribuir a Deus os

pecados?209

Agostinho diz que a ordem atuou de tal maneira que o libertou dessa questão ao

procurar a verdade210

. A verdade liberta o homem por meio da ordem criada. Só podemos crer

se entendermos e entender se crermos211

. Aqui está o axioma da doutrina agostiniana: crer

para entender e entender para crer.

O ser humano deve entender as razões de sua fé, isto é, dar razões suficientes para que

se conduza de determinada forma exigida pela fé. Se a boa conduta tem sua razão de ser – não

somente lastreada na fé -, torna-se um bem passível de ser entendido e praticado no Estado,

pois racional (fundado na razão). Essa aptidão moral de praticar as virtudes é verificável em

todo ser humano. A prática da virtude pela fé não é sem razão. O fundamentalismo religioso

no Estado é afastado de modo que a fé não é empecilho para refletirmos sobre as razões da

mesma fé. A fé e a razão devem refletir a unidade da criação no homem.

O mal não é a violação da lei, já que acreditar na lei é um ato de fé também.

Precisamos perquirir as razões pelas quais a lei posta está ou não conforme a razão. Assim

como a fé precisa de suas razões, a lei precisa de suas razões para ser justificada. As paixões,

atos de amor desordenados, são a razão para o mal. As más condutas vêm das paixões

humanas.

A maldade é uma “perversão da vontade desviada da substância suprema – de Vós, ó

Deus – e tendendo para as coisas baixas: vontade que derrama as suas entranhas e se levanta

com intumescência”212

. O pensador cristão vê a maldade na vontade humana. Para ele a lei do

pecado “é a violência do hábito”213

que se transforma em necessidade se o homem não resiste.

A lei é útil para garantir as virtudes e extirpar os vícios.

208 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 25-28. 209 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 28. 210 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 28. 211 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira.5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 30. 212 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 104. 213 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 114.

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1.3.1 A lei divina e a lei civil autônomas por natureza e dirigidas para o bem

comum na esfera estatal

Agostinho separa entre as leis humanas e as divinas. As leis civis são temporais e

relativas ao se referirem a bens mutáveis. A lei divina é atemporal e absoluta ao se referir à

verdade e ao amor. As leis humanas podem deixar impunes – e o faz frequentemente –

determinadas más ações que só “serão punidas pela Providência divina, com razão”214

. Essas

más ações são as paixões que devem ceder diante a prática da moralidade. A lei civil pune os

crimes, por exemplo, homicídio, para manter a paz e segurança, mas deixa impune quem age

em legítima defesa. Mesmo que a lei civil não puna determinada conduta considerada imoral,

ela estará sujeita de qualquer forma à lei divina.

De qualquer sorte, a lei civil é considerada de modo salutar por Agostinho ao punir

más condutas. Isso significa que a força e o poder são atributos positivos caso reprimam más

condutas. As leis civis são necessárias ao terem em vista a virtude da comunidade, seja

punindo ou premiando as condutas, seja complementando a lei natural ou criando obrigações

e direitos que venham em auxílio do cumprimento do fundamento ético. Se a lei civil não

pune todas as paixões, nem por isso será motivo de reprovação215

. De outro modo, não

considera lei aquelas leis civis injustas (“Porque a mim me parece que uma lei que não seja

justa não é lei”216

).

O raciocínio do doutor da Igreja pode ser disposto da seguinte forma: a) a lei civil e a

lei divina são distintas, b) a lei civil pune más condutas, c) se a lei civil não pune

determinadas paixões, nem por isso deve ser motivo de reprovação, d) a lei divina se

encarregará de punir as más paixões não punidas pela lei civil, com razão e e) a lei civil que

não for justa, não é considerada lei e, assim não é obrigatória.

Em outras palavras, a justiça é a base da lei civil. Essa é verdadeira se estiver

conforme a justiça. A lei civil não pode afrontar a lei divina. A lei civil não será legítima, só

por só, por ser editada em um sistema de governo específico, por exemplo, o democrático.

Parece-nos que a visão agostiniana é ditar um padrão para as leis serem consideradas boas: a)

214 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira.5. ed.. São Paulo: Paulus,

2008, p. 39. 215 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 39. 216 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 36.

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serem constituídas válida e juridicamente pelo Estado, vez que este é um bem (a ausência é

considerado um mal) e b) serem materialmente justas. Para o doutor hiponense, a lei civil

está sujeita à mutabilidade e sujeita ao tempo em razão de ser editada por homens

pertencentes à determinada cidade. A lei civil é útil na medida em que proteja o bem comum.

O bem comum, por sua vez, é decorrência das virtudes que perfazem os “costumes moderados

e dignos”217

dos cidadãos de modo as leis civis permitam os governantes a administrar a coisa

pública218

.

O bem comum ocorre quando cada cidadão o preferir ao seu próprio interesse. Essa

noção de consenso é chamada de concórdia na visão agostiniana. Veremos em outro capítulo

que não se trata de qualquer concórdia, mas lastreada na verdadeira amizade entre os

cidadãos, e não em disputas sujeitas ao primado dos próprios interesses.

Isso quer dizer que o bem comum não é um jogo entre maioria e minoria, de seguir

determinado procedimento, bem como em aprovar no parlamento ou no judiciário

determinada medida. A questão não é de legitimidade a partir das instituições humanas, mas

de legitimidade conforme a justiça. A legitimidade de um governo humano está intimamente

ligada à noção de verdade. A verdade implica a ordem, a lei e a virtude.

1.3.1.1 A lei civil (temporal) e a justiça (atemporal)

Não existe justiça em qualquer governo se o próprio povo, corrompido pelos

costumes, nomeia para a administração dos negócios públicos homens criminosos. O

pensamento de Santo Agostinho procura cortar os vícios que originam a corrupção no Estado

onde quer que esteja a ponto de cogitar em tirar o poder do povo para colocá-lo na atribuição

de um ou poucos homens honestos. Poderíamos, por exemplo, migrar de uma democracia na

sua forma deformada pela corrupção para uma monarquia pautada nas virtudes de modo a

preservar a justiça. Nos dizeres do doutor cristão:

Contudo, no caso de esse mesmo povo ir caindo aos poucos, depravando-se, e caso

ponha o seu interesse particular acima do interesse público, e vier a vender o seu

sufrágio livre, por dinheiro? Além do mais, corrompido por aqueles que ambicionam

as honras, confiar o governo a homens malvados e criminosos, não seria justo – caso

ainda se encontrasse um só homem de bem, revestido de influência excepcional –

que esse homem tirasse do povo a faculdade de poder distribuir as honras, para

217 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 40. 218 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 40.

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depositar a decisão nas mãos de alguns poucos cidadãos honestos ou mesmo de um

só que fosse?219

O exemplo acima em forma de questionamento é útil não pelo caso cogitado da

compra de votos e de antepor os bens inferiores (interesses particulares) aos bens superiores

(bem comum), mas sim para afirmar que a lei civil está sujeita ao tempo, a poder variar sem

perder como base de sustentação a justiça.

A lei civil é justa se for editada por cidadãos de costumes moderados e dignos capazes

de nomear administradores públicos que visem ao bem comum, assim como se for editada

para tirar o poder do povo corrompido pelas ambições desmedidas de modo a atribuí-lo a

poucos ou até mesmo a um só homem honesto. Em um ou outro caso a lei civil está conforme

a justiça e pode ter a alcunha de lei, pois conserva (ordem) o bem supremo do Estado (bem

comum). Do contrário, não poderá ser chamada de lei. A lei civil deve manter a unidade entre

os homens de uma cidade.

A mutabilidade da lei civil é considerada um bem conforme o tempo e as

circunstâncias caso seja necessária sua modificação para que as virtudes possam imperar na

sociedade. Agostinho diz que devemos ser submissos à vontade de Deus. Vemos, assim, que a

lei civil se dirige a determinadas situações temporais e aos homens de modo a ser modificada

não conforme as conveniências ou interesses puramente pessoais, mas em razão da justiça. O

parâmetro é a justiça.

A lei civil deve atender as exigências da lei eterna - chamada “Razão suprema de

tudo”220

– passando pela lei natural, fundamento das virtudes e da qual procede a vida beata

(feliz) para os bons. Essa lei eterna é inscrita na razão humana e “da qual é justo que todas as

coisas estejam perfeitamente ordenadas”221

. É interessante observar que a lei eterna é ligada

ao conceito de ordem. A ordem perfeita confere validade universal e imutável à lei eterna. A

justiça está, pois, na ordem da criação. Por isso, a lei eterna é superior à lei civil que, por sua

vez, é mutável e sujeita a conveniências.

A lei eterna está presente na razão humana, assim como as paixões se servem do

corpo. As paixões dominam a vontade humana pela força do hábito e, se não sofrem

resistência, tornam-se uma necessidade. A pura necessidade retira a razão humana, atributo

que diferencia o homem dos animais. O ser humano perde sua integralidade.

219 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 40. 220 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 41. 221 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 41.

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A alma humana conhece justiça mesmo sem exercê-la ou aprender. O homem ao se

voltar para si é capaz de aprender o que é justo. A justiça na visão agostiniana é uma noção

(modelo) transcendente e, por isso, é relacionada não só com a ideia de distribuir o que

compete a cada um, mas também com a de inserir o elemento de amor mútuo (amor doação:

em relação ao outro). Assim se diz que a alma justa é

aquela que, segundo os ditames da ciência e da razão, dá a cada um o que a cada um

pertence, na vida e nos costumes, mas também esforça-se por viver eles mesmos

conforme a justiça, distribuindo a cada um o seu, não devendo nada a ninguém, a

não ser o amor mútuo.222

Uma justiça que não se fundamenta em distribuir a cada um o que é seu e na doação

por meio do amor não pode ser considerada justa. O homem é tanto mais livre quanto mais se

aproxima dessa forma (modelo) de justiça. O arbítrio (decisão) da pessoa humana é injusto em

escolher determinados bens em detrimento de outros para alimentar o prazer pessoal (amor

egoístico) de maneira a originar um mau hábito (vício) até a degradação da necessidade

(paixão desordenada) não necessária à ordem.

É necessário ascendermos à lei imutável que está acima de nossa razão. O ser humano

não é capaz de, per si, conquistar a verdade. Essa é alcançada com a ascendência da alma. Do

mundo sensível vamos ao mundo inteligível e deste a uma Verdade imutável. Para Santo

Agostinho, o espírito (intelecção) está sujeito ao erro e para fundamentar uma justiça

transcendente diz que “existe acima de nossa mente uma lei imutável chamada Verdade”223

. O

homem pode conhecê-la, mas não julgá-la, pois o ato de julgar a modificaria, o que

significaria dizer que poderia ser de outro modo224

.

Acontece que, a lei eterna é e nada pode lhe ser acrescentado na medida em que

imutável e perfeita. Questionar a existência ou o conteúdo da lei eterna seria questionar a

verdade, a criação e a ordem estabelecida por Deus. A liberdade é um bem como diz o

pensador cristão ao ter origem em Deus, o Sumo Bem. Caso essa liberdade questione sua

origem de bem ao dizer que pode tudo, inclusive, ignorar a verdade que a alicerça, está a se

privar de um bem considerado superior e se tornar escrava do pensamento humano

exclusivamente, a significar que o homem se torna senhor de si próprio (soberba).

1.3.2 O arbítrio só é livre na verdadeira justiça

222 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e

notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 276. 223 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis

Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 82. 224 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis

Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 84.

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O desvirtuamento da noção de liberdade pode ocasionar a privação de bem, ou seja o

mal. Esse mal deve ser evitado pelos homens e pelo Estado. Pelos homens para que não haja a

limitação do homem ao próprio homem, a excluir a ascendência dos sentidos à inteligência e

desta à lei imutável. Pelo Estado para que a justiça não só distribua a cada um o que é seu

(justo concreto), mas também legitime as leis civis conforme o amor mútuo. Categoricamente

Agostinho resume esse mal da liberdade sem verdade que origina a soberba no homem e a

falta de justiça verdadeira ao Estado nos seguintes termos: “(...) o mal reduz-se na

emancipação em relação à justiça, e na servidão em relação ao pecado”225

.

O homem será livre quando estiver liberto do erro e isso só é possível se nos

socorrermos de uma realidade objetiva transcendente ao homem. Não é possível professarmos

uma liberdade (falsa) que se baseie nas circunstâncias, interesses, conveniências,

verossimilhanças e probabilidades. Não deveríamos utilizar o termo justiça para expressar

uma situação que não se paute pela verdade. A liberdade não sobrevive sem a verdade na

medida em que a verdade nos garante o bem supremo – no Estado, o bem comum por meio da

vida beata (feliz) – enquanto a concupiscência do corpo nos priva dos bens superiores até o

nada.

O doutor de Hipona diz claramente que a perfeita justiça é aquela que “nos leva a amar

mais o que mais vale e amar menos o que vale menos”226

. A liberdade humana implica, então,

no autodomínio. O autodomínio significa a capacidade de resistir às paixões para buscarmos a

totalidade do bem, isto é, a Verdade. Se não somos aptos a resistir às paixões – causa da

deformidade da ordem -, não somos livres. A vontade desordenada (paixão) causa a

deformidade da beleza da criação e, no homem, molestação227

do próprio corpo.

As paixões nos privam do amor. As paixões são vontades egoísticas (de si para si)

enquanto o amor é doação (de si para outro). Assim se confirma que “não há nenhuma outra

realidade que torne a mente cúmplice da paixão a não ser a própria vontade e o livre-

arbítrio”228

.O domínio das paixões é necessário para que o homem saiba amar ao outro de

modo a consubstanciar a concórdia no Estado, amizade perfeita, entre os homens, a qual tem

por resultado a paz. A justiça nos moldes agostinianos só é justiça se se cumpre o elemento do

225 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis

Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 103. 226 AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis

Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 119. 227 Cf. AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis

Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 112. 228 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 52.

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amor mútuo. Dar a cada um o que é seu não é suficiente. Só há justiça no Estado se há

liberdade na Verdade que, por sua vez, é a lei imutável consistente no amor (justiça perfeita).

Com esses atributos da justiça teremos a ordem justa. O homem é apto a buscar e conseguir

essa justa ordem pessoal e socialmente ao ter o autodomínio sobre as paixões com a força do

espírito (mente)229

.

O filósofo afirma que existe uma ordem dos seres e o faz para distinguir as plantas, os

animais e o homem e, com isso, dizer que o mal procede da má escolha da liberdade humana.

As plantas, os animais e os homens têm vida. Os animais e os homens têm em comum a

capacidade de ver e sentir os objetos corporais. O que diferencia os homens dos animais é a

razão, bem como algumas tendências de vontade, como, por exemplo, o riso, o amor aos

elogios e à glória. O homem é livre se a razão submete as paixões.

Dessa forma expressa Agostinho:

Então, quando a razão, a mente ou o espírito governa os movimentos irracionais da

alma, é que está a dominar na verdade no homem aquilo que precisamente deve

dominar, em virtude daquela lei que reconhecemos como sendo a lei eterna.230

A liberdade humana deve escolher entre os vícios ou as virtudes. Se por um lado o mal

surge da má vontade que ocasiona as paixões desordenadas até o nada pela via do hábito e da

necessidade, por outro temos a opção de “viver com retidão e honestidade, para atingirmos o

cume da sabedoria”231

. Podemos dizer que aquele que se deixa governar pelas virtudes é um

homem de boa vontade.

A boa vontade é uma característica da ordem no próprio homem. O homem foi criado

para ser livre de modo a buscar o encontro com Deus. A alma deseja buscar seu repouso na

sabedoria. A razão humana deseja assim conhecer a lei eterna. A vontade humana reconhece

que precisa de um bem que não pode alcançar em si e por si mesma. Ela é necessária para

mover o homem para o bem na medida em que o homem tem o livre-arbítrio, mas é limitada

para encontrar o bem supremo. A ideia de que o homem pode alcançar o bem por si e em si

próprio é considerada uma falsa liberdade e, pois, uma má vontade.

1.3.2.1 A liberdade e as virtudes

229 A alma é a parte do homem que pensa (razão). A parte superior da alma é o espírito ou a mente, sede de

sabedoria. A inteligência (intelecto) é a razão superior do homem capaz de intuir e compreender as razões

eternas. 230 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 47. 231 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 56.

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Dessa maneira, o homem é livre para usar das virtudes para fruir de Deus. Se as

pratica, verifica-se a boa vontade e o bem viver. A doutrina cristã ensina os homens a

seguirem as virtudes a serem seguidas pelos homens de boa vontade e as divide em teologais

e cardeais. As primeiras são a fé, a esperança e a caridade232

. Com a fé se crê no que não se vê

(Deus), com a esperança se tem certeza dos bens superiores (eternos) e com a caridade se ama

a Deus e em Deus ao próximo. A fé serve para crermos em Deus criador, ordenador e sumo

bem, a esperança para confiarmos nos bens superiores e a caridade para amar a Deus e ao

próximo. Nas palavras de Santo Agostinho:

A honestidade e os costumes têm por fim o amor de Deus próximo; a verdade da fé

visa ao conhecimento de Deus e do próximo. Quanto à esperança, cada um a tem

diversamente, em sua própria consciência, conforme sente que avança em direção ao

amor e ao conhecimento de Deus e do próximo.233

A par dessas virtudes, existem as chamadas cardeais: prudência, fortaleza, temperança

e justiça. A prudência é “o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das

que devem ser evitadas”234

. A fortaleza é “a disposição da alma pela qual nós desprezamos

todos os dissabores e a perda das coisas que não estão sob nosso poder”235

. A temperança é “a

disposição que reprime e retém o nosso apetite longe daquelas coisas que constituem uma

vergonha o ser desejadas”236

. A justiça é “a virtude pela qual damos a cada um o que é

seu”237

.

Essas virtudes cardeais constituem a síntese das virtudes morais na visão agostiniana.

A importância delas está em afetar diretamente os costumes das diferentes culturas. A própria

religião cristã constitui uma cultura viva. As virtudes são uma escolha dos homens por

estarem ligadas à Verdade. Assim como a verdade, as virtudes não se impõem. Isso não quer

dizer que o Estado não possa punir condutas criminosas para estabelecer a ordem novamente.

Como já visto e da mesma forma, nem toda conduta baseada em atos imorais (vícios) é

punida, mas nem por isso a lei civil perde sua força e importância ao punir outros atos

igualmente delituosos. O Estado não pode obrigar as pessoas a aceitarem as virtudes, mas

232

Cf. AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,

2002, p. 80. 233

AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002,

p. 165. 234 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 57. 235 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 58. 236 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira.5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 58. 237 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 58.

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pode punir os atos delituosos para manter a paz. No mesmo sentido, o Estado não pode

obstaculizar a prática das virtudes nem obstaculizar a busca da verdade.

1.3.3 A justiça objetiva (divina) não prejudica o Estado e leva o homem a

uma vida feliz

Poder-se-ia pensar que o Estado seria teocrático ao se pautar na forma acima na

medida em que não pode privilegiar uma visão única de mundo a partir da fé cristã. Acontece

que, aceitar a verdade e as virtudes baseadas nesta não significa impor posições cristãs aos

cidadãos não crentes, agnósticos ou de outra profissão religiosa pelo braço secular do Estado.

Significa apenas reconhecer os valores cristãos como parte da cultura, os quais estão

lastreados na razão. Igualmente se poderia se pensar que o Estado, ao tomar outra visão de

mundo, estaria igualmente impondo aos cristãos uma visão única de mundo, a qual poderia

ser até mesmo ateia.

Agostinho combate essa visão ao afirmar ser um erro pensar que não exista uma

justiça subsistente. Para ele, retirar a justiça (objetiva) da base das leis civis, a qual transcende

aos povos e às culturas - seria tirar a verdade e o amor do Estado. Para conseguir que a justiça

seja objetiva e as virtudes sejam válidas para todos e em todos os tempos, o doutor da Igreja

busca apoio na lei do amor e afirma ser essa a força da religião (religio vera) que em nada

prejudica o Estado em diferentes lugares e tempo. Ao contrário, chega a fazer apologia para

que o convício dos homens neste mundo “seja regrado por homens de alta virtude em vista da

utilidade e do proveito do povo”238

.

Diz que essa visão da validade dos atos das diferentes culturas conforme os costumes

advém da relatividade do julgamento humano, o qual “o espírito já possui preconceitos e

opiniões errôneas”239

de modo que “qualquer outra opinião afirmada pela Escritura é

considerada pelos homens como expressão figurada”240

. Afirma que o ensino das categorias

cristãs só pretende “fortalecer a caridade e extinguir a cupidez”241

.

238 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,

2002, p. 170. 239 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,

2002, p. 165. 240 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,

2002, p. 165. 241 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,

2002, p. 165.

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O critério de julgamento das coisas pela caridade é universal242

. Para o pensador

cristão, a única forma de combater os males que afligem o homem e o Estado é a lei eterna

(do amor). A concupiscência gera a ignomínia e o delito e a caridade gera a utilidade e a

benevolência. A ignomínia causa dano à pessoa e o delito ao próximo. A utilidade causa

benefício próprio e a benevolência benefício de outrem. Assim define os conceitos:

Chamo caridade ao movimento da alma cujo fim é a fruição de Deus por ele próprio,

e a fruição de si próprio e do próximo por amor de Deus. Chamo, ao contrário,

concupiscência ao movimento da alma cujo fim é fruir de si próprio, do próximo e

de qualquer objeto sensível, sem referência a Deus. O que a concupiscência

desordenada executa para corromper a alma e o corpo chama-se ignomínia. E o que

executa para causar dano ao próximo chama-se delito. E aí estão as duas fontes de

todos os pecados. Mas a ignomínia é anterior aos delitos, na ordem do tempo. É

quando a ignomínia ou vícios debilitam a alma e a reduzem a certo grau de

indigência que a alma comete delitos. E comete-os para eliminar os impedimentos

que se opõem aos próprios vícios ou para conseguir comparsas em suas satisfações.

De modo semelhante, o que a caridade executa em benefício próprio chama-se

utilidade. O que se faz pelo bem do próximo chama-se benevolência. Aqui precede a

utilidade, porque ninguém pode beneficiar outrem se não possuir algum bem.

Quanto mais for destruído o reino da concupiscência, tanto mais aumentará o da

caridade.243

Santo Agostinho cita ainda uma máxima para reforçar o argumento da verdade da

doutrina cristã da invariabilidade da justiça diante da variedade dos costumes das diferentes

nações conforme as Escrituras: “Não faças a outro o que não queres que te façam (Tb 4, 16;

Mt 6, 12)”244

. Assim todos os males – ignomínias e delitos – desaparecem diante da lei do

amor. Essa máxima se torna a lei natural evidente para todos os povos em todos os tempos e

lugares.

Isso significa que a relatividade não está nos princípios, mas nos juízos humanos

diante da variedade das situações. O princípio se mantém o mesmo ontem, hoje e sempre. O

que muda são as situações e os juízos humanos, os quais devem se submeter à lei eterna em

todos os tempos e lugares. Dizer que em determinada cultura é permitido roubar e se louvado

por essa mesma cultura, não exclui os homens de responderem diante a justiça divina. Esses

atos são dignos de punição também. A justiça de dar a cada um o que é seu existe para

ordenar os bens. O complemento dessa justiça é o amor (doação) para ser perfeita.

A boa vontade consiste na posse de todas as virtudes de modo que o homem possa

viver justa e honestamente. Agostinho chama isso de vida feliz (vida beata). Assim como a lei

242 Cf. AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,

2002, p. 68-70. 243 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,

2002, p. 166. 244 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,

2002, p. 171.

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do amor, o desejo de ser feliz é universal e abrange todos os homens. Alguns homens não

conseguem ser felizes apesar de quererem, pois não querem ter uma vida reta (vida beata).

A vontade humana faz surgir dois tipos de homens: o da boa vontade e o da má

vontade. O primeiro busca os bens eternos e imutáveis, o segundo procura os bens passageiros

como as honras, as riquezas, os prazeres e a beleza do corpo. O primeiro se torna feliz, o

segundo infeliz embora deseje a felicidade. O primeiro está sujeito à lei eterna, sendo que não

têm necessidade da lei temporal (civil); enquanto o segundo está sujeito à lei civil (temporal),

mas não está isento da lei eterna245

. Tudo isso conforme a justa razão e em virtude de o mal

não estar em amar ordenadamente os bens passageiros, mas sim em amá-los

demasiadamente246

. As leis civis (temporais) podem se modificar por ter como destino os

bens terrestres. A variabilidade das leis civis não algo ruim em si mesmo, mas elas devem

variar para manter a justiça como fundamento de validade. Mantida essa, a lei temporal pode

variar.

O mal está justamente em se apegar aos bens inferiores de modo a tornar submisso a

eles. Esse apego advém da vontade humana. Logo, “o mal moral tem sua origem no livre

arbítrio de nossa vontade”247

. A visão agostiniana procura refutar a alegação de que o mal

estaria na matéria ou na alma. Todos os bens criados procedem do Sumo Bem e, por isso,

atribuir à matéria ou à alma o mal seria se referir a Deus como autor do mal em última

instância.

O filósofo cristão mantém a separação entre a lei eterna e a lei temporal, assim como a

separação entre a Cidade Celeste e a Cidade terrena. A separação é quanto à natureza, muito

embora uma esteja imiscuída na outra. Em outras palavras, a separação é de natureza, e a

unidade é questão da ordem criada, que, por sua vez, é um bem também. Apesar da separação,

as realidades de uma e de outra se comunicam. Não por outra razão a lei civil deve ter por

fundamento a justiça, as virtudes ligadas à correta escolha dos bens superiores e inferiores e o

livre-arbítrio ligado à Verdade.

Isso não significa que se estabelece uma cruzada de força para impor a doutrina cristã

na Cidade terrena. Pelo contrário, a Verdade não se impõe, embora o mal (ignomínias e

delitos) esteja submetido à mesma ordem criada. Significa, sim, que a ordem não precisa do

mal e o livre-arbítrio é um bem em si mesmo ao proceder da mesma ordem também. Como

245 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 63-64. 246 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 66-67. 247 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 69.

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diz Santo Agostinho: “fortalecer a caridade”248

é o que pretende a doutrina cristã. O

reconhecimento do cristianismo pelas instituições humanas é um fator importante para o

crescimento do Estado no caminho do amor por meio das virtudes, inclusive, da justiça.

O pensamento cristão tem duas máximas que estão em consonância com o arbítrio

livre do homem: a sabedoria e o amor. A sabedoria indica o encontro com Deus de forma que

não existe inteligência (conhecimento perfeito) fora da daquela. Isso implica dizer que o

pensamento humano não pode ficar em si mesmo nem se louvar por conseguir fazer o bem

por si mesmo. Afirmar a autossuficiência humana em desprezo a Deus indica a vaidade por

meio da soberba da qual todo o mal se origina. Por sua vez, o amor ultrapassa o amor de si

próprio em direção a Deus e ao outro. Isso não quer dizer que a lei temporal (civil) pode

obrigar alguém a amar ou deixar de amar, buscar a sabedoria ou não, mas pode regular as

condutas para punir as más (vícios) e recompensar as boas (virtudes).

Ignorar ou obstaculizar esses elementos é inverter a ordem da criação de modo a

procurar os bens passageiros somente de maneira que a lei civil encontra a validade nos

interesses e conveniência sem uma base objetiva fundada na justiça, transcendente e adquirida

pela experiência249

ao mesmo tempo. Desse modo, a construção de um Estado a partir de

categorias exclusivamente humanas – força e inteligência - pode privar os cidadãos daqueles

bens capitais para a formação do bem comum (sumo bem do Estado), a saber: sabedoria e

amor. Sem a sabedoria e sem o amor o livre-arbítrio fica prejudicado e deficiente pelo fato de

não encontrar um fundamento de validade transcendente (Verdade), assim como o Estado não

encontra seu fundamento na justiça e na lei eterna. Devemos dizer que a verdade é uma

categoria comum (base comum) a todos os homens, a qual se pode conhecer por meio da

certeza da razão. Em outras palavras, a verdade é uma garantia da comunidade pensante para

uma ação comum no Estado.

1.3.4 O livre-arbítrio é um bem

Concomitantemente com o problema da origem do mal – vontade - surge o problema

filosófico da razão pela qual Deus nos concedeu a liberdade para pecar (mal). Seria o livre-

248 AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,

2002, p. 165. 249 Voltar-se a si mesmo para descobrir a verdade. É a chamada teoria da iluminação, na qual o homem pela

graça divina é capaz de alcançar a verdade ao utilizar a inteligência (interior da mente). Fé e Razão são os elementos necessários para o encontro com a sabedoria (verdade). Crer para entender, entender para crer. A fé

precede o entendimento

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arbítrio um bem? A conclusão é a necessidade da liberdade como um bem para se agir

retamente ou não, pois, do contrário, não haveria pecado nem boa ação caso o homem não

agisse voluntariamente250

. Logo, se não existisse liberdade não haveria justiça para punir os

males e recompensar as boas condutas. A justiça, que é um bem, não existiria. A isenção da

responsabilidade do mal sobre Deus está no fato de que não concedeu esse dom para o

homem com a intenção de vê-lo pecar, mas sim para vê-lo praticar de boa vontade a retidão

de vida.

Agostinho, então, procura mostrar pela argumentação racional a prova da existência de

Deus para afirmar a liberdade como um bem que provém de Deus. A verdadeira religião se

funde com a filosofia e pretende ser a voz da verdade no mundo. Provar a existência de Deus

equivale a provar a verdade. A liberdade do homem é posta como um bem em si mesmo que

tem sua expressão mais profunda na união com a verdade. A argumentação inédita está nesta

prova racional da verdade. O resultado é a justiça com que Deus nos concedeu a liberdade.

Como, então, Agostinho demonstra a ligação da liberdade com a verdade e a objetividade

desta?

1.3.4.1 A liberdade e a verdade: princípio da subordinação

O doutor cristão diz que o espírito humano é constituído de três intuições: o existir, o

viver e o entender. O mundo é constituído delas. A pedra existe, o animal existe e vive e o

homem existe, vive e entende. Dessas três a melhor é o entendimento na medida em que

supõe o viver e o existir251

. O entendimento é visto como o modo racional pelo qual o homem

tem certeza das realidades visíveis e invisíveis por meio da razão. Não é apenas uma

convicção que se sustenta pelo pensamento humano, mas, sim, a razão em moldes de verdade.

O pensador cristão procede à verificação dos sentidos externos, sentidos internos e da

razão. Os sentidos externos se referem aos cinco sentidos: visão, audição, olfato, tato e

paladar; cada um com sua função própria e alguns com percepção semelhante em relação ao

objeto, por exemplo, a visão e o tato percebem que a determinado objeto é liso. O sentido

interno é a faculdade de perceber e governar os sentidos externos como, por exemplo, a visão

250 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 73.75. 251 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 80-81.

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informa que há uma ameaça e, consequentemente, essa faculdade faz o corpo se mover. Todos

os animais possuem sentidos externos e internos252

.

A razão (ciência) é a aptidão de conhecer e distinguir os sentidos e os objetos, bem

como a capacidade de compreender a si mesma253

. Ou seja, o ser humano possui a capacidade

julgar (decidir). A razão afirma sua preeminência sobre os sentidos em razão de ser a única

faculdade capaz de conhecer a si mesma. Estabelece-se, assim, o princípio da subordinação

(ordem) em hierarquia de governança, respectivamente: a razão governa os sentidos; o sentido

interior governa o sentido exterior e este aceita ou rejeita o contato com os objetos.

A faculdade da razão de compreender a si mesma informa que tudo o que conhece -

inclusive ela - é passível de mutação (corpo e razão) na medida em que a vida é sujeita a esse

estado. A par disso, pensa e compreende que pode existir uma realidade imutável de forma a

ser superior a essa realidade mutável, notadamente, à razão. A própria razão a identifica como

superior a si mesma. O que seria essa realidade? Para Santo Agostinho Deus. Para ele, a prova

da existência de Deus está em a razão perceber que existe algo superior a si mesma de modo

que esse algo pode ter outro superior a si, mas tendo ou não, essa figura é Deus. A passagem

do raciocínio agostiniano – preâmbulo da prova - é importante para expressar a força da razão

(entendimento) de perceber a verdade (binômio Deus e o homem) autônoma (outra realidade),

ou seja, prova a existência de Deus (verdade e sabedoria) por argumentos racionais:

Está entendido. Pois bastar-me-á, então, mostrar a existência de tal realidade que, ou

bem aceitarás como Deus; ou bem, caso haja outro ser acima dela, concordarás que

esse mesmo ser é verdadeiramente Deus. Assim, haja ou não algum ser superior a

essa realidade, será evidente que Deus existe, desde que, com a ajuda desse mesmo

Deus, eu tiver conseguido demonstrar, como o prometi, a existência de uma

realidade superior à razão.254

Em outras palavras, não podemos ignorar a Deus, assim como o Estado255

não o pode

na medida em que é ínsito à natureza humana reconhecer algo como superior a si mesma. Isso

é um ponto comum que pode oferecer uma base para uma ação comum entre os homens,

notadamente, na ação comunal (comunidade política). Apesar da liberdade de cada qual para

conhecer e compreender o que quiser, a verdade é racional de maneira que pode ser conhecida

por cada um. Se Deus é superior à razão humana, mutável e relativa (cada um tem a sua), a

verdade é transcendente ao homem e, pois, objetiva (realidade objetiva).

252 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 82-83. 253 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 86. 254 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995, p. 93. 255 O Estado “não passa de sociedade de homens que vivem unidos”. AGOSTINHO, Santo. Cidade de

Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007,

p. 45.

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De fato, a prova da existência de Deus está intimamente ligada à da existência da

verdade. O realismo objetivo agostiniano significa a existência autônoma de Deus, a

existência autônoma dos homens (de cada um) e a existência autônoma dos objetos. Vimos no

subtítulo em que discorremos sobre a criação a autonomia de Deus em relação à criação.

Agora, o filósofo cristão prova a autonomia dos homens entre si e a independência dos

objetos a serem conhecidos.

A autonomia de cada pessoa está no fato de que cada um dos sentidos externo e

interno, pertence unicamente a esta na medida em que os sentidos interiores de cada um

percebem as próprias sensações por meio dos sentidos exteriores. Ninguém percebe a

sensação do outro. Da mesma forma acontece com a razão que compreende as realidades,

inclusive a sensorial, de forma própria e pode compreender algo que outro não tenha

compreendido (“cada um de nós também possui a sua própria”256

). A razão é capaz de

conhecer diversos objetos – distintos entre si – por si e pelos sentidos.

Acontece que, duas pessoas podem perceber um objeto único ao mesmo tempo e

constatar que seja o mesmo, apesar de cada qual sentir e conhecê-lo com seus sentidos e sua

razão. Assim, um único objeto pode ser percebido igualmente por duas pessoas com sentidos

próprios e razão distinta257

. Como os sentidos pertencem a cada pessoa (individual) e o objeto

é distinto deles e comum a ambos, os objetos conhecidos têm realidade própria distinta da

razão humana. O diálogo entre Santo Agostinho e seu amigo e condiscípulo Evódio é

marcante quanto à realidade das coisas:

Ag. Está, pois, claro que os objetos percebidos por nossos sentidos corporais, sem

entretanto os transformamos, ficam, entretanto, estranhos à natureza de nossos

sentidos. E assim são eles um bem comum, porque não são convertidos nem

transformados em algo próprio nosso, e por assim dizer, naquilo que é de nosso uso

privativo.

Ev. Concordo perfeitamente.

Ag. Portanto, é preciso entender como sendo coisa própria e de ordem privada o que

pertence a cada um de nós em particular, e assim somente cada um percebe em si

mesmo, como pertencente propriamente à sua natureza. E, por sua vez, é preciso

entender como coisa comum e de ordem pública o que, sem nenhuma alteração nem

mudança, é percebido por todos.

Ev. Assim acontece.258

O pensador cristão atribui a devida importância à razão no sentido de entender o

mundo e conhecer a si mesma sem descartar seus limites diante da objetividade das coisas. A

256 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 94-95. 257 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 95. 258 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira.5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 99.

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razão nos limites da realidade significa reconhecer o objeto como independente daquela de

maneira a poder ser conhecido como comum a qualquer pessoa.

1.3.4.1.1 A verdade e as formas: os números e a linguagem desvelam a força

ontológica agostiniana

O caso dos números e suas leis que informam a verdade inalterável, por exemplo, 3 +

7 = 10. A soma de 3 + 7 é sempre igual a 10. Essa universalidade é entendida por todo homem

dotado de razão. É uma verdade comum a todos os homens e, por isso, objeto de consenso.

Poderíamos dizer que são verdades que se tornam compreensíveis pela razão e passam a ser

autoevidentes no agir. O doutor da Igreja para provar a verdade dos números ainda questiona

se esses números estariam em nossa razão como imagens dos objetos sensíveis ou antes como

uma propriedade particular do espírito. Evódio conclui que não, pois se percebemos os

números pela realidade sensível, o mesmo não ocorre com as leis da adição e divisão, nas

quais percebo o erro pela razão259

.

De fato, Agostinho procura nos números uma forma de provar a verdade imutável. Faz

isso para afirmar a verdade acima da razão humana. É a razão humana nos limites da verdade.

O raciocínio é tão minucioso e detalhista que o filósofo afirma a realidade dos números como

independentes em relação à realidade sensível de modo que são percebidos exclusivamente

pela razão.

Chega a afirmar que na realidade sensível um corpo pode ser dividido em duas partes

sempre, isto é, sabemos que procuramos uma unidade num corpo material mas nunca a

encontraremos na medida em que sempre é possível dividir uma das duas partes em duas

novamente. Assim, a unidade pura e verdadeira está ausente na realidade sensível (material).

A unidade pura só a percebemos pelos números de maneira que o número um é a unidade

procurada, a qual é encontrada pela razão260

. Podemos entender que 1 é igual a 1 no plano

metafísico, mas não no plano imanente da realidade. A unidade é o reflexo da simplicidade

para Agostinho, a significar que o número 1 simplesmente é (equação 1=1). A razão, por sua

vez, percebe uma ordem imutável nos números, como, por exemplo, um mais um é igual a

259 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 101. 260 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 103.

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dois, dois mais dois é igual a quatro e três mais três é igual a seis, ou seja, “acrescentando a

um número qualquer a série de unidades que ele conta, a totalidade obtida é o seu dobro”261

.

Assim como Agostinho encontra pela razão uma verdade transcendente nos números,

a inteligência é capaz de aprender a falar (linguagem falada) ao reter pouco a pouco as

palavras na memória como sinais de objetos, ao qual é designado por um nome, a partir dos

“movimentos do corpo que são como que a linguagem natural a todos os povos e consiste na

expressão da fisionomia, no movimento dos olhos, nos gestos, no tom de voz que indica a

afeição da alma quando pede ou possui e quando rejeita ou evita”262

, de modo que a

linguagem é a expressão de sinais de objetos – não os próprios – que exteriorizam a vontade

humana.

O que Agostinho quer mostrar é a transcendência da aprendizagem da linguagem na

natureza e, ao mesmo tempo, a linguagem como instrumento do conhecimento, e não como o

próprio conhecimento, como, por exemplo, a palavra ‘liberdade’ é o sinal que designa o bem

liberdade (objeto). Não há no pensamento agostiniano uma linguagem imanente a si mesma

com poder de estabelecer o próprio significado do objeto, pois só sinal. Se o homem

considerar a linguagem imanente, a ela é oferecida mais atenção do que ao objeto que designa

de maneira a excluir a metafísica do conhecimento. A linguagem como instrumento e sinal de

objetos não permite que o homem exclua a lei natural do mundo. Em vez disso, a conduta de

vida (existência) do homem se modifica ao tomar a linguagem como um fim em si mesma.

Agostinho percebe isso e revela seu pensamento da seguinte forma:

Se alguém, ao aprender ou ensinar as regras tradicionais dos sons, pronunciar sem

aspiração da primeira sílaba a palavra “homo” (homem), desagrada mais aos

homens do que se odiar, contra os Vossos mandamentos, outro homem, apesar de

este ser o “homem”. Como se na realidade se persuadisse haver um inimigo mais

molesto que o próprio ódio com que se irrita contra si mesmo; ou como se alguém

prejudicasse mais gravemente, com perseguições, a outrem do que ao próprio

coração, com essa inimizade! Com certeza a ciência gramatical não é mais interior

do que a lei da consciência – de não fazer a outrem o que não queremos que nos

façam a nós mesmos.263

A questão sobre a linguagem é tratada com acuidade e detalhamento por Agostinho no

diálogo com Adeodato na obra “O Mestre”, em que abordam o ato de falar com o objetivo de

ensinar e recordar – e, não aprender264

, o qual está ligado a quem ouve265

-, pois perguntamos

261 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 104. 262 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 28. 263 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina. 1. Ed. São Paulo:

Folha de São Paulo, 2010, p. 34. 264 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 359.

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para ensinar o que desejamos de modo que aprendemos as palavras com as coisas, não as

coisas com as palavras266

. Vê-se, assim, a linguagem como instrumento para o ensinamento,

e, não, para a redução dos objetos a ela. Para Agostinho as palavras são signos (sinais) que

significam alguma coisa, mesmo quando explicamos os sinais com outros sinais (explicar a

preposição ex com a partícula de). Podemos mostrar também sem sinais as coisas significadas

(coisas que podem ser significáveis) por eles (o comer e o beber mostrados com o próprio ato,

salvo o falar que se demonstra por si mesmo)267

.

Quando dizemos um nome, estamos querendo significar alguma coisa, como, por

exemplo, Roma (coisa visível) e virtude (coisa inteligível), sem que confundamos a coisa com

o próprio sinal. O nome significa algo que, quando dito, é um sinal audível de outro sinal

audível e, portanto, é palavra (algo com algum significado que se profere pela articulação da

voz); assim como a palavra pode ser sinal de um nome. O nome é um sinal de um sinal falado,

que, por sua vez, é um sinal de uma coisa. O sinal falado é um sinal não de outro sinal, mas de

uma coisa. O próprio termo “nome” é palavra ao ser pronunciado pela articulação da voz;

assim como a palavra de duas sílabas “verbum” (palavra) é sinal de um nome. Toda palavra é

nome e todo nome é palavra, muito embora não sejam idênticos como veremos abaixo. Do

mesmo modo, nem todo sinal é palavra, como, por exemplo, o ato de gesticular.

Além do nome e da palavra, existem os signos (sinais) que significam a si mesmos

(por exemplo, o termo “nome” que significa nome de todos os gêneros – masculino, feminino

e neutro – e ele mesmo é do gênero neutro), bem como signos (sinais) que são nomes, muito

embora signifiquem outras coisas que não são nomes (por exemplo, o termo conjunção, que é

nome, se refere a se, ou, pois, senão, portanto, etc.)268

e os quais não podem ser incluídos

entre as coisas que significam (isto é, entre as conjunções)269

. Há ainda palavras como “se” e

265 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 385. 266 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 402. 267 “Portanto, quando se pergunta a respeito de alguns sinais, os sinais podem ser mostrados por meio de outros

sinais. Mas quando se trata de coisas que são sinais, podem ser demonstradas ou representando-as após a

pergunta, se for possível representá-las, ou dando alguns sinais pelos quais se possam ser compreendidas”.

AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 362-368. 268 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 368-374. 269 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 383.

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“porque” que são nomes e palavras reciprocamente270

, pois o nome “é aquilo com que se

denomina uma coisa”271

(por exemplo, “o se agrada e o porque desagrada”).

A importância prática da distinção entre palavra e nome é sintetizada da seguinte

forma por Agostinho:

Acredito que notas tudo o que com algum significado provém da voz articulada

repercute no ouvido para que seja sentido, e é transmitido à memória para que possa

ser conhecido.

[...]

Dessas duas coisas, por um lado uma se denomina palavra (verbum) e, por outro

lado, outra se denomina nome (nomen). Não é, realmente, por que verbum (palavra)

vem de verbeare (ferir, repercutir) e nomen (nome) vem de noscere (conhecer), visto

que a primeira (palavra) repercute nos ouvidos e o segundo (nome) é percebido pelo

espírito?272

Agostinho coloca os nomes como sinais (signos) de alguma coisa que pode ter

significado (significáveis) e, então, atribui à linguagem um ato de intermediário para o

conhecimento, apesar de não excluir dela um sentido e um valor intrínseco, como, por

exemplo, se perguntamos o que é homem, a resposta pode ser animal, mas se perguntamos

que parte da oração é homem, dizemos que é o nome273

. Aqui se coloca claramente a

diferença entre o signo e a coisa significada de maneira que se atribui à lei da razão o ato do

homem dar mais atenção à coisa significa que ao próprio signo na medida em que o sinal

existe em função da coisa e a ele se dá menor valor de conhecimento (a ideia de ordem força

esta conclusão), ou seja, “o conhecimento das coisas significadas é melhor que os próprios

sinais, embora não seja superior ao conhecimento dos sinais”274

. Em outras palavras, a

linguagem significa outras coisas e se significa a si mesma.

Toda essa concepção da linguagem resulta em uma abordagem ontológica da ciência,

tendo em vista que se refere a objetos tais como são. A linguagem é um meio universal para o

conhecimento, ou seja, tem um valor de nos indicar os objetos. Nas palavras de Agostinho

“até aqui as palavras contribuíram com sua força, as quais, apesar de lhes atribuirmos muito

valor, apenas nos incitam a procurar os objetos, porém não os mostram para que os

270 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 374-382. 271 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 379. 272 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 376. 273 Cf. AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 392-393. 274 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 398.

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conheçamos”275

. É o conhecimento das coisas mesmas que faz a linguagem ser completa, e,

não, a palavra que completa o objeto. Por isso, o pensador afirma que os sensíveis se

aprendem com a sensação direta e os inteligíveis se completam interiormente.

Em outras palavras, a razão intui uma verdade ordenada (pode ser conhecida por

todos) acima das realidades sensíveis e de si mesma (sujeita à mutabilidade e percepção

própria). Essas realidades percebidas pelos números e pela linguagem por meio da razão

refletem um bem comum, pois podem ser conhecidas por todos. Esse conhecimento constitui

uma verdade para todos como um bem comum da humanidade.

1.3.4.1.2 A verdade e a felicidade

Agostinho diz que a verdade está acima da razão humana (a razão nos limites da

verdade) e a define como a sabedoria em desejar o bem e se afastar do mal276

, de maneira a

consistir nesta expressão mesmo se a tomamos nas mais diferentes acepções que refletem as

diversas opiniões que se têm do bem. A sabedoria é a verdade, “na qual se contempla e se

possui o sumo Bem”277

. Assim, o conhecimento dessas realidades imutáveis está em estrita

conexão com a verdade. A posse da sabedoria, a qual todos desejam, é o sumo Bem que torna

o homem feliz.

Certas verdades estão impressas, como os números, em nossa razão de maneira que as

desejamos mesmo sem possuí-las ou senti-las. É o caso da noção da felicidade em que todos

afirmam o desejo de serem felizes antes de sê-lo na medida em que por ela sabemos o que

queremos278

, muito embora a variedade de desejos acerca da mesma felicidade é múltipla em

razão de o homem ainda não conhecê-la279

de modo que uns a depositam nos prazeres

corporais, outros na força da alma e ainda alguns em ambos. A felicidade não consiste em

viver segundo as vontades próprias (prazeres), ou seja, ao bel-prazer. Agostinho, em

conformidade Cícero, combate esse erro ao afirmar que feliz é aquele que “possui tudo o que

275 AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. Tradução de

Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008, p. 405. 276 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 107. 277 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 106. 278 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 107. 279 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão

e notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 402-404.

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quer e nada quer que seja mal”280

. Em outras palavras, a felicidade consiste em desejar tudo o

que é justo. Viver segundo a natureza decaída em razão da corrupção é um mal (privação do

bem). A vontade viciada torna o homem infeliz. As virtudes dão a certeza da felicidade

mesmo em meio aos males transitórios281

. Nesse sentido, a felicidade completa só em Deus se

realiza. Na obra “Cidade de Deus”, o pensador afirma que a “verdadeira justiça existe apenas

na república cujo fundador e governo é Cristo, se nos agrada chamá-la república, porque não

podemos negar que seja também coisa do povo”282

.

Esse raciocínio é de grande relevância para a filosofia agostiniana, na medida em que

o Estado poderá punir más condutas – ignomínias e delitos – de particulares mesmo que estes

as considerem como um caminho para a felicidade pessoal. É necessário observar que a

relação entre as noções de liberdade e verdade (aqui a felicidade) começa a se aproximar em

razão de aquela alcançar esta desde que se paute pelo caminho correto (virtudes). Só assim o

Estado será justo ao propiciar aos cidadãos a satisfação das vontades desde que justas. O

exercício das virtudes é o caminho para o Estado justo. Essas noções são imutáveis no homem

que se lembra delas mesmo sem conhecê-las ou possuí-las, pois “a alma certamente não põe

em dúvida (...) o fato de desejar ser feliz”283

. Assim como o homem não põe em dúvida o

pensamento unânime da felicidade, o Estado também não o põe em questionamento.

O doutor cristão deposita a felicidade nos bens superiores de modo que Deus é o único

a poder ofertá-los. Na obra “Cidade de Deus” existem várias passagens a respeito da

felicidade que revelam o pensamento de que a felicidade está em Deus único, a afastar

quaisquer interferências dos deuses pagãos nesta questão dentro do império romano284

.

Critica, até mesmo, os filósofos platônicos que, apesar de reconhecer que somente Deus dá a

felicidade, “cederam à vaidade dos erros populares (...) da necessidade de altares para a

pluralidade de deuses”285

. Diz, assim, que a felicidade vem de Deus, na qual superabundam os

bons286

na república. Aliás, a felicidade é dada somente aos bons, muito embora distribua “a

280 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e

notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 405. 281 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão

e notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 408-409. 282 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 92. 283 AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e

notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 468. 284 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 173 e 189. 285 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 369. 286 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 95.

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bons e maus os reinos terrestres”287

. Entre Estados a felicidade maior está em “viver em paz

com o bom vizinho que subjugar pelas armas o mau”288

. Apesar da separação entre a Cidade

celeste e a terrena, esta já pode alcançar a felicidade – não a completa – e se dirigir para o

encontro da sabedoria289

.

As verdades não estão sujeitas, pois, a determinada cultura ou tempo, antes são

realidades objetivas que constituem um patrimônio universal, mesmo que a razão humana,

mutável, possa não percebê-las. Sendo percebidas ou não pelos homens elas existem. A razão

humana é capaz de conhecê-las pela mens, de forma a constituir em um patrimônio comum do

pensamento humano. A verdade é superior à razão humana, pois se fosse igual, seria mutável

como ela. Sendo imutável, a verdade apenas é (essência). Essa é a realidade que Agostinho

procura demonstrar.

1.3.4.2 A liberdade e a verdade: princípio da participação

O cume da união entre liberdade e verdade é dito pelo doutor cristão expressamente:

“Eis no que consiste nossa liberdade: estarmos submetidos a esta Verdade”290

. Só temos

liberdade quando fruímos dos bens com segurança. Se corrermos o risco de perdê-los contra a

nossa vontade, não temos liberdade. Não perdemos a verdade contra a nossa vontade, ao

contrário, perdemos a verdade se amamos mais aos bens inferiores do que aos superiores –

inclusive, o sumo Bem – por vontade291

. Já os bens inferiores, como o louvor, a honra, a

riqueza e a luxúria, podemos perdê-los contra nossa vontade. Essa é a verdadeira liberdade, a

qual é uma noção transcendente como a felicidade o é.

O pensamento cristão da liberdade avança para asseverar que os bens mutáveis são

aqueles sujeitos à mudança e à perfeição. Nenhum bem pode se dar a perfeição, na medida em

que não a possui292

. A noção de perfeição é uma técnica de que Santo Agostinho se utiliza

para demonstrar que o ser humano (corpo e alma) não pode por si mesmo se aperfeiçoar em

287 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p.183. 288 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 164. 289 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 355. 290 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 121. 291 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 122. 292 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 132.

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direção aos bens superiores. É necessário que haja algo transcendente ao ser humano capaz de

oferecer a perfeição. Sendo assim, o ser humano não pode construir um Estado perfeito e justo

totalmente sem um ponto comum transcendente a eles próprios. Mesmo porque, todas as

coisas provêm de Deus e obedecem à ordem estabelecida. Por outro ângulo de análise, todos

os bens mutáveis podem mudar e se aperfeiçoarem. Isso indica que o Estado, como o ser

humano, pode se aperfeiçoar em direção à justiça verdadeira.

A participação em Deus é a aderência à sabedoria imutável, a tornar as coisas

perfeitas, as quais, por sua vez, estão subordinadas à ordem e ao próprio Deus. Participação e

subordinação são os princípios que regem a argumentação agostiniana na prova da existência

de Deus. Os dois princípios estão intimamente conexos, os quais permitem que o homem não

obedeça por obedecer, mas participe, por sua livre escolha, da Verdade. O princípio da

subordinação sem o princípio da participação se tornaria um meio de dominação, pois imporia

uma atitude ao ser humano sem que este adira por seu livre-arbítrio ao Bem. Por sua vez, o

princípio da participação só tem sentido em uma Verdade imutável e independente e superior

à razão humana. No âmbito estatal, os dois princípios têm a função das leis temporais se

conformarem às exigências da lei natural pelo consentimento. De fato, trata-se de um

reconhecimento primeiramente das verdades e a consequente aderência a essas verdades.

1.3.5 A liberdade e a ordem dos bens

Como vimos Santo Agostinho considera as categorias existir, viver e pensar a partir

da ordem (grau e hierarquia) dos seres e suas funções (sentidos exteriores, sentido interior e

razão) para, então, afirmar a sujeição da razão à Sabedoria. O ser mais perfeito é o espírito

(mens) que participa da inteligência divina, que lhe é superior, assim como a Cidade Celeste é

superior à Cidade terrena.

As bases em que o filósofo cristão se sustenta são, pois, a existência de Deus e a

procedência de todos os bens d’Ele. Para refutar a última objeção posta por Evódio de que “o

livre-arbítrio da vontade não devia nos ter sido dado, visto que as pessoas servem-se dele para

pecar”293

. Agostinho prova que mesmo o livre-arbítrio é um bem em si mesmo.

Com efeito, Agostinho procede a uma comparação entre o corpo e a alma. Um rosto

precisa dos olhos para ser íntegro e ver para distinguir as coisas corpóreas. É um bem por isso

e constitui beleza para o corpo. Apesar disso, o homem pode usar dos olhos para satisfazer

293 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 135.

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suas paixões e praticar ações reprováveis. Assim é com a alma, o livre-arbítrio é um bem em

si mesmo, “sem a qual ninguém pode viver com retidão”294

. Se há o abuso da liberdade, isso

não significa que o livre-arbítrio não nos deveria ter sido dado como dom. Por isso, é preciso

condenar quem deles abusa. Agostinho faz uma pergunta decisiva para Evódio que o coloca

sem saída argumentativa ao pensar que o livre-arbítrio não nos deveria ter sido dado: “o que

te parece melhor em nós: aquilo sem o que se pode viver com retidão ou alguma coisa sem a

qual não se pode viver retamente”295

.

Da mesma forma, a justiça é um dos maiores bens que existe no homem. Ao lado

dessa a fortaleza, a temperança e prudência subsistem na reta razão de modo que nenhuma

virtude existiria sem esta. Da reta razão ninguém pode abusar. Assim, as virtudes são

consideradas grandes bens. O homem, ao fazer bom uso das coisas, pratica precisamente a

virtude. Isso é um bem e, por isso, não pode ser considerado abuso296

. Pelos grandes bens, o

homem vive honestamente. A divisão entre os bens grandes, médios e mínimos é referida da

seguinte forma:

Portanto, as virtudes pelas quais as pessoas vivem honestamente pertencem à

categoria de grandes bens. As diversas espécies de corpos sem os quais pode-se

viver com honestidade, contam-se entre os bens mínimos. E por sua vez, as forças

do espírito, sem as quais não se pode viver de modo honesto, são bens médios.297

O livre-arbítrio é considerado um bem médio298

em razão de podermos utilizá-lo mal

ou bem. Se o usa bem, a vontade do ser humano “adere ao Sumo Bem”299

e, então possui a

vida feliz. Cada pessoa adquire a felicidade, que, por sua vez, pode ser encontrada por cada

um bem em razão de ser comum a todos. As pessoas a adquirem se se conformam às regras

das virtudes aceitas de própria vontade em adquirir a verdade imutável.

Ao contrário, o homem que pretende por si mesmo conquistar os bens, volta-se só para

os bens inferiores – bons em si – por vontade própria de modo a originar uma deficiência no

livre-arbítrio ao não procurar a verdade imutável. O mal não existiria se o homem não o

quisesse.

294 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 136. 295 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 137. 296 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira.5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 138-139. 297 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 138. 298 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 140. 299 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 140.

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1.3.5.1 A ordem dos bens e os sistemas políticos

O Estado que se dirige pelos bens inferiores e ignora ou cria obstáculos para o

conhecimento da verdade imutável é um Estado infeliz. O excesso dos bens inferiores

(luxúria, ambição, avareza, louvor, honras) no Estado é uma privação de bem (mal) porque

desconsidera os bens superiores estampados, principalmente, nas virtudes. Em relação a estas,

não a perdemos contra a nossa vontade e, por isso, são bens superiores. As virtudes são o

caminho para a Sabedoria que, por sua vez, é a única que pode oferecer a felicidade. As

virtudes, a felicidade e a Sabedoria são realidades objetivas que independem da opinião

humana para existirem.

O que o doutor da Igreja propõe não é uma redução das coisas do mundo, inclusive do

Estado, à Igreja, mas, sim, uma aderência aos bens que podem ser conhecidos pela razão a

partir da ordem dos bens. Nessa medida, Agostinho abre a acepção de Estado para as

dimensões da escatologia, muito embora não tire nada do conteúdo temporal. Ao contrário, os

elementos presentes na humanidade como o livre-arbítrio e o mal são levados em conta a todo

o momento.

A escatologia afirma que a vida humana tem um sentido. O homem tem um destino

certo de comparecer ao juízo de Deus (Verdade). Como na visão agostiniana o Estado é um

conjunto de homens que vivem unidos por um vínculo comum por meio das leis temporais, a

escatologia reflete na história dos Estados, embora tenham um significado exclusivamente

histórico por ser realidade separada e autônoma em relação à natureza de Deus. Logo, o

Estado também tem um sentido.

Com efeito, tanto o homem quanto o Estado devem se orientar pela Verdade. Os

homens que conhecem a Verdade e deixam se guiar por ela devem modelar o mundo visível

segundo essa mesma Verdade, particularmente, o Estado. A formação de um Estado com base

nos bens superiores tem a capacidade de induzir uma cultura do bem, isto é, cultivar laços

humanos segundo valores lastreados na Verdade aptos a fomentar e educar a sociedade em

bases comuns. O filósofo da antiguidade defende uma ontologia das coisas que serve de base

comum para a sociedade. Sem uma base comum, não há uma unidade no Estado e,

consequentemente, a finalidade – o bem comum – fica prejudicada.

Assim, podemos dizer que os sistemas políticos quaisquer que sejam – embora a

democracia pareça atender mais os objetos da justiça social na medida em que cada homem é

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um ser social detentor de uma parcela do poder (princípio da participação) de acordo com as

leis civis (princípio da subordinação) – é uma atitude de conduta humana. E se é uma atitude

de conduta, os bens devem se pautar pela busca dos bens superiores e pelo encontro com a

Verdade, assim como as leis civis não devem entrar em contradição com a lei natural.

Qualquer sistema político deve atender as exigências da Verdade. Isso significa que a

moral agostiniana sobrepaira quaisquer sistemas políticos de poder. Isso quer dizer que a

conduta das pessoas não será moralmente legítima somente por ser produto de um sistema

político, mesmo considerando as nuances de tomada de decisões dentro do Estado, como, por

exemplo, aquelas tomadas institucionalmente pelo parlamento ou pelo judiciário. Acima das

políticas seculares – muitas vezes sórdidas – está a Verdade. Vimos que as leis civis quando

não visam o bem-comum tendem a servir como instrumento de dominação em contraposição

à liberdade, que, por sua vez, é um bem.

Essa Verdade traz consigo uma nova ética de um pensamento cujo conteúdo está no

transcendente. O Estado agostiniano é marcadamente ético, na medida em que as leis

temporais não podem estar em contradição com a lei natural comum a todos os homens, antes

deve atender às exigências desta. Isso também não quer dizer que se está a querer influir na

realidade por meio de imposição de ideias (ideologia). A ideologia carrega consigo um certo

ar de dominação. Como dissemos, a ética agostiniana é transcendente e fundada num

princípio vivo (Deus) como realidade autônoma e distinta da natureza humana, a não

depender da vontade humana para conformação. O homem, por vontade própria, pode se

conduzir para esta ética de acordo com os princípios da subordinação (submissão à ordem) e

da participação (o homem participa da inteligência divina – Verdade – pelo entendimento).

Não se trata de ideias no sentido de “verdades” sujeitas à mutabilidade conforme as

circunstâncias, pois não atendem a nenhum interesse de momento. A ética agostiniana é uma

realidade objetiva, não própria e exclusiva da inteligência humana, que, por sua vez, está

sujeita ao erro. Nem é uma ideologia como protótipo de conduta300

que não deixa margem de

300 Pensamos aqui em Estados totalitários como o nazismo ou o comunismo. O primeiro desprezou a verdade

transcendente e procurou fundar um Estado como base em conceitos puramente humanos, como, por exemplo, a

eugenia. O segundo procurou obstaculizar a verdade transcendente ao não permitir o culto da religião verdadeira.

Pensamos também na democracia que em nome de uma ética da tolerância acaba impondo a ditadura do

relativismo, pois toma os bens inferiores, por exemplo, o prazer e a utilidade, como critérios últimos da decisão

humana, a estabelecer uma falsa ideia de liberdade sem lastro na verdade. Enquanto o nazismo e o comunismo

tolheram a liberdade humana, a democracia pode falseá-la. Talvez o maior erro da democracia seja expressar a

liberdade como bem unicamente fabricado pelo consenso comunal ou concordância institucional em bases

unicamente humanas de modo que seria um instituto criado a partir do direito posto pelo legislador ou construído

pelo judiciário com influência do meio social (consenso), a definir o que é a liberdade. Portanto, exclui-se a base

natural da criação e da ordem em que a liberdade está inserida e sujeita. É um bem definido e delimitado pelo

homem, sem base natural ou pré-jurídica, ou seja, sem estar subordinada à ordem da criação.

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escolha (dominação), de uma forma ou de outra, para a decisão segundo a liberdade, antes é

uma verdade que liberta o arbítrio do homem em direção aos bens superiores.

Na visão agostiniana, a liberdade é um dom de Deus, ou seja, um bem que procede de

Deus. Como Deus é a Verdade, a liberdade procede desta e, por isso, está ligada àquela.

Agostinho sabe que as leis temporais são relativas na medida em que são dirigidas para os

bens temporais, os quais são mutáveis, assim como a razão. Por isso, não existe definição

definitiva a priori do conteúdo da liberdade com base exclusivamente na força da razão

humana, muito embora sua essência (conteúdo) seja imutável (eterna). A definição conclusiva

da liberdade ocorre somente pela participação na Verdade e subordinação dela aos bens

superiores (prudência, fortaleza, justiça e prudência). Não se nega a possibilidade do ser

humano entender a liberdade conforme sua razão (mutável) – e, assim, sujeita ao erro -, assim

como não se nega a possibilidade da liberdade ser entendida de acordo com a Verdade. A

própria liberdade é um bem inserido na criação e que obedece à ordem natural (é um bem

médio), a qual pode ou não utilizar desse bem para alcançar outros bens superiores (virtudes),

ou, simplesmente, se voltar aos bens inferiores (por exemplo, o prazer). Para ele, a liberdade

como um bem que procede de Deus é condição para a existência do homem livre, inclusive a

capacidade do homem em pensar a liberdade só é possível graças a essa mesma liberdade. A

integridade do homem comporta a liberdade como um bem que procede de Deus. Se se faz

mau uso desse bem, a responsabilidade é do próprio homem (vontade), inclusive ao

conceituá-lo unicamente da sua maneira para atender a vontade corrompida e justificar a

busca exclusiva dos bens inferiores. Seria ficção, por não haver lastro na realidade, imaginar

que a liberdade não seria um bem natural por ter sua fonte na construção na e a partir da razão

humana (produto da razão) na medida em que não seria menos verdadeiro partir do

pressuposto de que o homem é um ser natural e, por via de conseqüência, sujeito igualmente à

ordem natural do mundo. Se o homem está sujeito à natureza, a liberdade como criação sua

está também. Cairíamos no mesmo erro se afirmássemos que a vida não é anterior ao direito,

mas, simplesmente, definida originariamente por este. Também não seria menos correto

afirmar a verdade da natureza do próprio homem de que sempre foi homem. Da mesma

forma, não se nega que a liberdade é um bem apto a ir ao encontro de realidades invisíveis

(metafísicas), isto é, em busca de bens superiores por meio da razão e pela graça de Deus. Se

por um lado, reconhecemos as limitações para encontrar a liberdade verdadeira em virtude da

mutabilidade da razão; por outro reconhecemos que a liberdade é um meio apto a alcançar

bens superiores imutáveis com o respaldo da Verdade. Enfim, podemos dizer que a liberdade

só é completa (una) na busca dos bens superiores.

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Por isso, essas verdades, constitutivas da ética, são aceitas (princípio da participação),

e não simplesmente impostas aos homens (princípio da subordinação). Não se modificam

segundo a realidade mutável, antes são as realidades que se submetem às verdades da criação

pela justa ordem natural. Consequentemente, não se trata de impor uma visão única de

mundo, antes é a aceitação dos homens das verdades imutáveis pela força da razão

(entendimento). Essas verdades implicam os bens superiores, as quais os homens não podem

ignorar, pois a razão indaga o próprio homem das razões de seu entendimento.

O fato de o Estado ético agostiniano estar fundado sob a liberdade humana e a verdade

inabalável coloca perguntas cruciais na história da humanidade: se Deus sabia dos horrores

que um Estado pode causar, como deixou que milhões de pessoas morressem injustamente?

Deus compactua com os horrores da guerra? Como conciliar a presciência de Deus com a

liberdade do homem durante a história? Se Deus sabe de antemão dos nossos pecados, este

ocorre necessariamente, e, não, por vontade própria? Ou não existe a presciência em Deus e,

assim, existe um limite para Deus? Enfim, Deus não interfere na história para evitar os males?

É desnecessário? Agostinho questiona o co-discípulo Evódio da seguinte maneira: “Então,

tudo o que Deus prevê acontece, ao teu parecer, necessariamente, e não de modo voluntário

ao homem?”301

.

A resposta de Agostinho para o problema entre presciência e liberdade será a

conciliação de ambos302

, e não a exclusão de um deles. Apesar de Deus saber o que vai

acontecer, é necessário que o homem queira (vontade) que aconteça, pois ninguém deseja algo

sem o querer. Em outras palavras, a situação objetiva verificada posteriormente não

desqualifica a vontade determinante do sujeito anteriormente. A situação futura acontece não

por necessidade (causa), mas por vontade livre.

O diálogo entre Agostinho e Evódio gira em torno da questão da felicidade

Pois se Deus prevê tua felicidade futura, e nada pode te acontecer senão o que ele

previu, visto que, caso contrário, não haveria presciência. Todavia, não estamos

obrigados a admitir a opinião, totalmente absurda e muito afastada da verdade, que

tu poderás ser feliz sem o querer.

Ora, a vontade de ser feliz que terás, quando começares a sê-lo, certamente, não te é

tirada pela presciência de Deus, que já desde hoje volta-se com certeza sobre tua

felicidade futura. Assim também, a vontade culpável se acaso estiver em ti, não

deixará de ser vontade livre, pelo fato de ter Deus previsto a existência futura

dela.303

301 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 155. 302 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 200-205. 303 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p.

157.

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Além disso, a presciência supõe a vontade livre do homem, pois o objeto daquela é

esta304

, que, por sua vez, está em nosso poder. Deus sabe os fatos futuros e os prevê

necessariamente. Deus prevê os bens e os males sem forçar ninguém a cometê-los e, por isso,

a justiça é devida ao autor do mal305

. Deus não é causa do mal.

Não haveria mal se não tivéssemos a vontade livre, assim como não haveria retidão de

vida se não procedêssemos a nosso juízo (decisão). Sem escolha entre bens, não haveria

justiça como medida da ordem criada. Sem livre-arbítrio não haveria a possibilidade de amar

a Deus livremente, por vontade. Haveria apenas dominação, pois a vontade não existiria.

Onde existe dominação a verdade não prevalece, uma vez que esta se aceita (adere) por

vontade própria. Se liberdade não houvesse, Deus nos teria privado de um bem e,

consequentemente, isso seria um mal. Como Deus é bom, o livre-arbítrio é necessário, assim

como a justiça o é. Se os males existem pela vontade humana, não pensemos que “seria

melhor que essas coisas não existissem”, mas, sim, que “elas poderiam ter sido constituídas de

outro modo”306

.

O filósofo traz um dado importante com a ideia de livre-arbítrio e o problema do mal.

Diz que todas as coisas são boas ao procederem de Deus, o Sumo Bem. Não podemos negar

que a liberdade seja um bem em si mesmo e o mal fruto de nossa má vontade. O mal é a

privação do bem até o nada, ou seja, o “não-ser”. O bem é a posse dos bens até os superiores

até a fruição do Sumo Bem, isto é, o “querer-ser”307

. Essa norma do “querer-ser” significa

amor pela vida, mesmo a infeliz (melhor do que o nada), e aspiração pelos bens superiores

(eternos).

Podemos traduzir a vontade humana pelo “querer-ser” e, mutatis mutandis, a estatal

pelo binômio “dever-ser”. Assim como o “querer-ser” é a boa vontade do ser humano em

encontrar a Deus, o “dever-ser” é a boa vontade da Cidade terrena encontrar a Cidade Celeste.

Por isso, o “dever-ser” deve refletir o mesmo encontro com o bem (Verdade) tal como o

“querer-ser”.

Logo, todos os seres lhe devem primeiramente tudo o que são, enquanto natureza

existente. Em seguida, aqueles seres que receberam a capacidade de querer, devem-

lhe tudo o que lhes é possível para progredir, se o quiserem. Devem assim tudo o

que têm a obrigação de ser.

304 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 159. 305 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 160-161. 306 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 163. 307 Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 172.

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(...)

Contudo, é culpado, com justiça, se não fizer o que devia. Ora, é dever fazê-lo quem

recebeu uma vontade livre e uma capacidade suficientemente grande para isso.308

A passagem acima liga o “querer” com o “dever” de forma que o homem por sua

vontade deve proceder de maneira a progredir como forma de retribuir (dever) a Deus a

beleza da criação. O vínculo da concórdia (querer) entre os cidadãos faz com que o Estado

edite leis (dever) para a existência deste. Assim, o Estado deve tudo o que tem à capacidade e

à obrigação de ser. O Estado deve a felicidade e a paz aos cidadãos. Ao editar leis que

guardem as virtudes, está agindo com a devida justiça para a felicidade. As virtudes são os

princípios comuns para uma ação comum, independentemente de opiniões pessoais focadas

nos bens inferiores (por exemplo, a cobiça como vontade desregrada pelo dinheiro). A

liberdade de um se torna a liberdade de todos no Estado, na medida em que centrada na

Verdade.

Um Estado tem a capacidade e a obrigação de cuidar dos cidadãos de modo a fomentar

as virtudes. Assim como o homem pode evitar o mal com o bem, o Estado pode vencer o mal

pelo bem. A pergunta não é se Deus pode evitar os males humanos, mas se o ser humano é

capaz de evitar os males de sua vontade praticando o bem. Na obra “Cidade de Deus” (Livro

II, Capítulo XXI), Santo Agostinho menciona a opinião de Cícero sobre a república romana

na iminência da decadência dos costumes em que existia o aforismo de que seria impossível

governar sem injustiça para dizer, ao contrário, que é impossível governar sem muitíssima

justiça309

segundo as palavras tomadas de Cipião.

O livre-arbítrio é um bem que procede de Deus para que os homens tenham uma vida

reta. O ser humano pode decidir entre permanecer na imanência dos bens inferiores – bens em

si mesmos - ou seguir em direção aos bens superiores. As virtudes são o caminho necessário

para o entendimento e o encontro com a Verdade, que, por sua vez, é o fundamento daquelas.

A liberdade só tem sentido na Verdade na medida em que o homem só se torna livre se não

fica preso aos bens inferiores a partir de maus hábitos que geram uma necessidade

(desregramento da vontade = paixão). Esses bens inferiores são mutáveis e passageiros

(temporais), os quais o homem pode perder contra a vontade própria. Quanto aos bens

superiores, diferentemente, os homens não os perdem contra a vontade própria, mas, somente,

se não os quiserem. O livre-arbítrio é um dom de Deus para que o homem ascenda em direção

aos bens superiores até o Sumo Bem (Verdade). O homem tem a capacidade de progredir em

308 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 202. 309 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 90.

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razão da vontade. Por querer progredir, o homem deve tudo o que tem a obrigação de ser

(integridade). A felicidade consiste, justamente, em levar uma vida reta de acordo com os

bens superiores (virtudes).

Assim acontece com o Estado também. Aquele Estado que se orienta pelas virtudes é

um Estado melhor do que aquele que foca a esperança nos bens inferiores. O Estado ético é

aquele que conforma as leis temporais – relativas por serem dirigidas aos bens mutáveis – à

lei eterna ou, ao menos, não entra em contradição com esta. A lei eterna consiste no amor a

Deus e ao próximo. A lei natural de evitar o mal, não retribuir o mal com o mal e não fazer ao

outro o que não queremos que nos seja feito. Por isso, a ética agostiniana sobrepaira quaisquer

sistemas políticos ao se fundar em bens imutáveis, os quais são válidos para todos em todos os

tempos. Essa ética é obtida pelas leis civis se tiverem as bases na justiça. A justiça imutável é

uma virtude cardeal que retribui a cada um o que é seu como afirmação da ordem natural, a

qual os bons e os maus estão sujeitos. Para bons e maus Deus distribui os bens terrestres, mas

a felicidade dispensa somente aos bons por justiça. Como a lei eterna traduzida pelo amor só

se completa plenamente no fruir de Deus (justiça perfeita), as leis civis devem buscar o

caminho das virtudes e se afastar dos vícios que são o desregramento da vontade (paixão) e do

apego demasiado dos bens inferiores, o que gera a soberba no homem de pensar que pode

construir um mundo fora da ordem da criação a fim de justificar suas más condutas. O Estado

não pode obrigar ninguém a amar ou aceitar a verdade, mas pode retribuir as condutas

humana com justiça, premiando as boas condutas e punindo as más. O livre-arbítrio é um bem

em si, mas como todos os bens da criação, está sujeito à ordem natural e, portanto, à justiça.

Os homens podem construir um Estado nos bens inferiores ou se voltar demasiadamente aos

bens inferiores e, conseqüentemente, desprezar os bens superiores. Um Estado que se pauta

pelos bens superiores é ético porque usa da liberdade para a retidão dos costumes consoante

as virtudes, por isso, chamada de virtuoso. Já um Estado que despreza os bens superiores ama

desregradamente os bens inferiores de modo a se deixar levar por eles de maneira a corromper

a forma ética de Estado, por isso, chamado de corrupto.

O livre-arbítrio do homem pode constituir as formas boas ou más de governo. Na obra

“Cidade de Deus” (Livro II, Capítulo XXI), Agostinho narra a questão dos costumes da

república romana que estavam decaídos para lembrar a repercussão das más condutas nas

formas de governo segundo as definições de Cipião nos seguintes termos:

Como lhes parecesse estar a questão suficientemente discutida, Cipião retorna ao

interrompido discurso, recorda e encarece uma vez mais a breve definição que der a

de república, que se reduzia a dizer que é coisa do povo. E determina o que é o povo,

dizendo não ser toda concorrência multitudinária, mas associação baseada no

consenso do direito e na comunidade de interesses. Fincou-se, depois, na utilidade

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da definição para os debates. Além disso, infere, das definições que dá, existir

república, quer dizer, coisa do povo, quando bem e justamente administrada, por um

rei, alguns magnatas ou pela totalidade do povo. Por conseguinte, quando injusto o

rei, a quem, à moda dos gregos, chamou tirano, ou injustos os magnatas, cuja

conjura disse ser facção, ou injusto o povo, para o qual não encontrou nome

apropriado, salvo também se chamá-lo de tirano, a república não era viciosa, como

se elucidara no dia anterior. Segundo os ensinamentos que lhe decorriam das

definições, era em absoluto nula ou inexistente a república. Isso pelo simples motivo

de já não tratar-se de coisa do povo, pois dela o tirano ou a facção se apoderara.

Mesmo o povo, se injusto, já não seria povo, porque não seria multidão associada

pelo consenso do direito e pela comunidade do bem comum, segundo a definição

que se dera de povo.310

A ética agostiniana é transcendente ao homem e está à disposição deste, o qual pode se

voltar para ela segundo sua vontade. Em outras palavras, a ética é ao mesmo tempo

transcendente e natural ao homem, a indicar que a sabedoria é racional e prática

concomitantemente, ou seja, conhecida pela razão e pela experiência percebida. Os juízos

morais são passíveis de serem aderidos pela razão humana como bens, mas, também,

verificados historicamente como essenciais para a continuidade da civilização (veremos em

outro capítulo a genealogia da Cidade de Deus e a dos homens narrada por Agostinho através

dos tempos). A felicidade para o Estado está no fato de encontrar o sumo bem: a paz. Essa paz

é obtida com a unidade (síntese) dos elementos do amor, da justiça, da liberdade e da verdade,

seja qual for o sistema político vigente.

1.4 Graça

Vimos no subtítulo anterior que o livre-arbítrio o ser humano é apto a praticar boas ou

más condutas a partir da utilização dos bens, as quais originaram as respectivas formas de

governo. Vimos que a origem do mal está na vontade livre do homem em amar

desregradamente os bens inferiores em detrimento dos bens superiores. O homem faz parte da

ordem da criação (subordinação) e, por isso, está submetido a esta. Nessa medida, a justiça

consiste em dar a cada um o que é seu de modo a recompensar as boas condutas e punir as

más. A justiça deve ser o fundamento das leis civis. Essas não podem ser contrárias à lei

natural. A lei natural é o amor entre os homens, o qual propicia a consciência de que não

façamos ao outro o que não queremos que nos façam, e por meio do qual todas as coisas se

orientam em direção ao transcendente. O cumprimento da lei natural é a justiça perfeita

alcançada pela prática das virtudes (bens superiores). A felicidade é uma verdade imutável, a

310 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 91.

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qual só é dispensada aos bons, isto é, àqueles que se orientam pelas virtudes (boas condutas).

Como as virtudes são bens imutáveis, o Estado agostiniano é eticamente dirigido para e

orientado pelo transcendente. O pensamento agostiniano é uma filosofia racional do

cristianismo, o qual comporta a razão e a fé. É preciso crer para compreender, e compreender

para crer. Assim, é preciso dar as razões da fé, como é necessário abrir a razão humana para a

fé. O arbítrio humano só é livre na verdade. Verdade alcançada pela fé e pela razão.

Veremos neste subtítulo que não basta a vontade para o homem viver sem o pecado

(mal moral). Santo Agostinho pretende refutar os argumentos pelagianos311

de que a justiça

perfeita é alcançada só com as forças humanas. As ideias pelagianas parecem fundir a graça

divina na existência da lei (aqui identificada com os mandamentos), ou seja, a vontade de

Deus foi revelada e cabe ao homem – moralmente neutro ao nascer - simplesmente cumpri-la

ou não segundo a vontade própria. Para os pelagianos, o auxílio divino é preciso somente para

afastar a ignorância pelo ensinamento (mandamentos) “a fim de o ser humano saber o que

deve evitar em suas ações e o que deve desejar”312

. Para Agostinho, diferentemente, a prática

da justiça e das virtudes para o devido cumprimento da lei depende da vontade humana e da

graça divina313

. Viver na justiça é um dom divino. Um Estado justo não é fruto exclusivo dos

esforços humanos, muito embora dependa da vontade humana (livre-arbítrio).

A graça divina é, assim, a quarta categoria filosófica agostiniana que sustenta toda sua

ideia de sociedade justa. Não basta a lei, por isso, é necessária a graça para a salvação do

homem teologicamente. Já filosoficamente, a função da graça parece ser um questionamento

do cumprimento da lei pela lei na medida em que a existência desta mais instiga a

infringência do que o cumprimento. Uma lei não deve ser somente obedecida, deve ser

compreendida, ou seja, dar as razões de sua existência. Vale dizer, a lei civil deve ser justa

(boa), isto é, ética. Caso contrário, impõe o medo e impede a aderência racional. A ética

agostiniana é, pois, transcendente. O pensamento agostiniano parece não suportar uma ética

fundada exclusivamente em construções humanas (autossuficiência) na medida em que estaria

sujeita ao erro de excluir Deus do debate. Deus é a Verdade, a qual é a referências das

virtudes e dos vícios. Outro aspecto filosófico da graça divina é incutir no homem a lei natural

em razão da debilidade da natureza após o primeiro erro.

311 As ideias pelagianas consistem basicamente em afirmar que as forças humanas são capazes, só por só, de

alcançar a justiça perfeita, cuja salvação não depende da graça de Deus. O pecado original atingiu somente a

Adão de modo a não ser herdado por toda a humanidade. O ser humano nasce neutro e, por isso, pode por sua

vontade própria se salvar. 312 AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p. 20. 313

Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 512.

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1.4.1 A justiça

A graça divina é um elemento teológico enquanto se refere à escatologia, mas, é,

também, um argumento filosófico que permite introduzir a ideia de perfeição à justiça

humana – por isso, chamada de justiça divina – para elevá-la a um nível ontológico de

existência autônoma em relação ao mero poder ou influências político-sociais (circunstâncias

de momento). O que se pretende é afirmar que a verdadeira justiça é a justiça perfeita (divina)

sob o manto filosófico da graça. Veremos, assim, que a graça, mais que um elemento etéreo,

repercute na concretização da justiça punitiva ao não permitir que se use da pena como mera

vingança ao infrator, mas, tão-somente, para punir o crime na justa medida.

O caminho para a verdade passa, obrigatoriamente, pela graça divina, na qual

A vontade humana é de tal modo ajudada por Deus para praticar a justiça, que, além

de o homem ser criado com o dom da liberdade e apesar da doutrina que o orienta

sobre o modo de viver, receba o Espírito Santo, que infunde em sua alma a

complacência e o amor do Bem incomunicável, que é Deus, mesmo agora quando

ainda caminha pela fé, e não pela visão.314

A graça divina é o auxílio de Deus para que o homem possa realizar a justiça humana

de acordo com a justiça divina. A vontade humana mais a graça podem levar o homem a

realizar neste mundo a justiça conforme os ditames da lei natural que, em última análise, é a

lei eterna que consiste em amar a Deus e ao próximo. A justiça não é algo etéreo, sobre a qual

o homem elucubra, a respeito, antes é uma virtude que deve ser realizada já neste mundo315

.

A liberdade humana em cumprir a lei não autoriza o homem a estabelecer a sua

própria justiça, segundo os moldes agostinianos de justiça perfeita. A justiça perfeita não é

alcançada pelo uso da liberdade humana, mas é manifestada por Deus. A lei leva ao temor,

enquanto o amor à justiça perfeita. A fé leva ao aperfeiçoamento do amor e, por isso, a graça é

necessária para a prática da justiça perfeita. Em outras palavras, a justiça divina só é possível

com a graça divina. O homem que pensa ser a justiça obra exclusivamente sua comete o erro

da soberba ao se vangloriar das obras humanas como se fossem definitivas316

.

A visão agostiniana da justiça é escatalógica ao atribuir a ela um sentido de

aperfeiçoamento do amor segundo a graça. A graça serve para libertar o homem da opressão

314 AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p. 20. 315 Cf. AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p.

24. 316 Cf. AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p.

36.

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da lei a fim de viver a justiça perfeita. Por isso, quem vive a própria justiça não vive segundo

a justiça divina. Não basta agir conforme a lei por temor, na medida em que significaria

opressão de um lado e despertaria a intenção de transgredi-la de outro. Os seres humanos

devem viver os preceitos com o auxílio de Deus. O espírito da soberba faz com que o gênero

humano estabeleça a própria justiça para ameaçar, enquanto o Espírito divino faz com que os

homens vivam a constância da justiça com a consciência de que precisam da graça.

A justiça perfeita é a lei eterna, ou seja, a lei do amor presente na consciência do

homem e, por isso, natural a todos os homens na medida em que o homem é homem por

natureza. Por um lado, a justiça divina é o amor à justiça e, por isso, o homem a cumpre com

liberdade. De outro modo, a justiça humana causa o temor da punição e, por isso, o homem

não a cumpre com liberdade. Enquanto a justiça humana se cumpre contra a vontade própria

(dominação), a justiça divina se cumpre com vontade própria (obediência). A justiça divina

liberta porque nos permite participar dos bens superiores até o Sumo Bem, e a justiça humana

oprime porque nos mantém nos bens inferiores até o apego desmedido destas, a se tornar um

mau hábito (vício) apto a gerar uma necessidade fora da ordem da criação.

Assim, a justiça divina é considerada superior, imutável, à humana. O amor é a lei

eterna fundada na verdade (sabedoria), enquanto a sanção é preceito da lei civil fundada na

verossimilhança ou no provável (inteligência exclusivamente humana). Em síntese,

poderíamos afirmar que a justiça divina é o amor e a justiça humana a dominação no sentido

de que a primeira nos abre para um novo conhecimento enquanto a segunda nos prende ao

conhecimento humano. A lei civil, enquanto abrigo da lei natural, imprime o poder da força

somente em razão de obrigar a pessoa a agir de acordo com o bem comum. A força é, então,

elemento que oprime quando visa à mera dominação ou elemento que liberta quando visa ao

alcance do bem comum.

1.4.2 Os fins do Estado e da Sociedade: a paz e a felicidade

O que Agostinho pretende é conformar as leis temporais (civis) às exigências da lei

eterna pela graça de Deus, a qual é dispensada a todos os homens gratuitamente. A justiça

humana não pode prescindir da justiça divina em razão da possibilidade de cair em erro,

sendo o primeiro o do orgulho do homem em pensar que pode por si mesmo construir um

mundo justo. A lei civil, autônoma, deve servir de complemento para o cumprimento da lei

natural. E isso por um motivo simples: o amor é a lei eterna, o qual procede de Deus. Como a

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justiça perfeita é a prática do amor que só pode ser alcançada pela graça de Deus, o mundo

construído em bases unicamente humanas é um mundo sem amor e, portanto, sem justiça.

Esse mundo sem amor é um mundo opressor; ao contrário, o mundo construído na caridade é

um mundo livre. Essa é a verdade da liberdade: a excelência da liberdade é a prática da

caridade, sendo a justiça divina o fundamento comum das leis civis para a prática de uma ação

comum dentro do Estado. A liberdade equivale ao livre-arbítrio de modo a existir onde houver

a graça divina. Onde existir o pecado (mal moral) não existe a liberdade e, portanto, não se

ama livremente a justiça317

.

Os bens inferiores, passageiros, como o dinheiro, o prazer e as honras devem se

orientar em direção à caridade de modo que sejam meios para alcançá-la. O apego desmedido

aos bens inferiores pode afastar o ser humano da caridade. Se os homens unidos por um

vínculo comum editarem leis civis que coloquem no devido lugar (ordem) os bens inferiores e

busquem os bens superiores (virtudes) por meio do bom uso da liberdade (bem médio), o

Estado é justo. O bom uso da liberdade faz com que a liberdade de um seja a liberdade de

todos em razão da busca dos bens superiores (imutáveis) serem aptos para constituir uma ação

unitária em vista do bem comum. O bem comum do Estado é a paz. Não se tem paz se o

homem se inclinar demasiadamente para os bens inferiores, os quais ocasionam uma

necessidade pessoal em detrimento da coletividade. A paz é o sumo bem a se buscar no

Estado.

E por qual razão os homens buscariam uma justiça divina traduzida pela lei do amor se

podem construir uma sociedade tranquila e segura com base na inteligência humana

exclusivamente? O filósofo Agostinho apresenta uma resposta simples: a vida eterna que

consiste no conhecimento do Deus único e verdadeiro318

. Isso porque, a felicidade só se

aperfeiçoa em Deus. A felicidade, pessoal ou de um povo, nunca é completa sem conhecer o

Sumo Bem. Os bens excelentes só são alcançados com a graça de Deus. O mais excelente é a

caridade. Se esse raciocínio de Santo Agostinho for verdadeiro, o homem só é capaz de

praticar a caridade com a graça de Deus. Onde está a caridade está Deus. O Estado só é justo

onde está a caridade, a qual só se perfaz com a cooperação da graça. Um Estado que rejeita a

Deus prescinde do amor e, por isso, é menos justo. Isso significa a privação do bem mais

excelente para a felicidade do homem, muito embora possamos constatar certa tranquilidade e

317 Cf. AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p.

79. 318

Cf. AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p.

58.

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segurança oferecida pelo Estado. Em outras palavras, um Estado tranqüilo e seguro não é um

Estado feliz necessariamente.

O cumprimento da lei retém as paixões humanas que podem ser incitadas pela própria

lei por provocar a má cobiça de transgredi-la319320

, a ocasionar uma estabilidade momentânea

(paz humana) de acordo com ajustes feitos pela inteligência humana (inteligência mais força).

Despertadas as paixões rompe-se o vínculo da concórdia e se perpetua a força como meio apto

a satisfazer a necessidade gerada por maus hábitos (vícios). Por outro lado, a aderência à lei

por amor conquistado pela vontade com a graça de Deus gera a paz definitiva (paz divina). A

paz definitiva é o conhecimento de Deus.

No pensamento do filósofo, a felicidade é o amor em termos cristãos no sentido de

doação ao outro pelo conhecimento de Deus (sabedoria mais caridade). Diferentemente, a

felicidade exclusivamente terrena parece consistir no amor de si próprio com um viés

egoístico. A felicidade é a conquista dos bens superiores até o Sumo Bem com a graça de

Deus, ou seja, ao Tudo. A falta da caridade (bem mais excelente) com o afastamento dos bens

superiores e o apego desmedido dos bens inferiores leva o ser humano ao nada (privação

absoluta de Deus).

Uma sociedade boa e justa não deve prescindir de uma verdade racional comum entre

os homens. Assim, o sistema político que afasta Deus está fadado a desaparecer; já aquele que

não O exclui tende a propiciar a felicidade aos cidadãos. Parece, assim, que quaisquer

sistemas políticos que visem ao bem comum (felicidade e paz) não podem prescindir da lei

natural. Como a prática dessa é a lei eterna comum a todos os homens que só é entendida pelo

conhecimento de Deus. Nesse sentido, Deus não pode ser esquecido ou rejeitado quaisquer

que forem os sistemas políticos por que significaria impor leis civis injustas capazes de

dominar os cidadãos na medida em que dirigidas unicamente aos bens inferiores sob a ótica

do interesse do mais forte, e, não, em razão um fundamento natural capaz de libertar o

homem. Um Estado fundado sob os bens inferiores – mesmo que haja tranquilidade e

segurança – não é livre em razão de o homem poder perdê-los contra a sua vontade. Caso as

leis civis tenham a justiça objetiva (divina) como lastro, o Estado é livre na medida em que

fundado em bens superiores, os quais os cidadãos não podem perdê-los contra sua vontade.

1.4.3 A lei civil: o bem e o bom

319 Cf. AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p.

24. 320 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 502.

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O filósofo faz uma crítica até mesmo à obediência aos preceitos (mandamentos) de

Deus como medida de justiça. A vontade humana em obedecer aos mandamentos divinos não

é suficiente para tornar o homem justo (justificado). O verdadeiro cumprimento da lei ocorre

pela fé, a qual inscreve na consciência humana a lei do amor. Só assim o homem pratica a

justiça. Agostinho cita o apóstolo São Paulo ao dizer que “A letra mata, mas o Espírito

comunica a vida”321

.

Agostinho assevera que o homem cumpre naturalmente o que é prescrito pela Lei

(mandamentos) por força da graça que restaurou a natureza de forma a inscrevê-la no coração

humano novamente322

.

Assim, a abundância de sua doçura, ou seja, a lei da fé, a caridade gravada e

infundida nos corações se aperfeiçoem nos que nele esperam e, desse modo, a alma

pratique o bem uma vez curada não pelo temor do castigo, mas pelo amor da

justiça.323

Sendo assim, a liberdade é um bem e o bom uso dela é um bem também. O bem em si

e a boa prática que se faz da liberdade procedem de Deus: o bem por existir a partir de Deus e

o bom uso por refletir a graça divina no homem. O bom uso dos bens faz o aperfeiçoamento

da justiça humana em direção à justiça divina. Se, por um lado, a perfeição humana é inviável

por causa do corpo corruptível, por outro lado, a pratica do ilícito pode ser evitada com um

mínimo de justiça.

A noção de pecado original permite a Agostinho a ter uma visão mais realista do

homem de que é capaz de evitar o mal, mesmo que não consiga praticar o bem totalmente.

Aqui o pensador procura se afastar do código binário de bem e mal (maniqueísmo), a inventar

um terceiro tipo: o médio. Essa noção permite uma visão otimista do mundo na medida em

que suprime a divisão entre justiça divina e humana como algo estanque. A Cidade terrena

(Estado) pode ser boa, e, não, necessariamente má, de tal modo que afirma ser a lei boa por

proibir o pecado, muito embora os maus façam mau uso da lei324

. O raciocínio agostiniano é

aguçado, pois outorga à lei civil a qualidade de moralmente boa ao evitar e punir o mal,

apesar de reconhecer a insuficiência legal para evitar o mau uso da própria lei civil

considerada um bem necessário para o Estado (elemento de união).

321 AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p. 13. 322 Cf. AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p.

70. 323 AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p. 78. 324 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 97.

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Podemos não concordar com a visão de justiça agostiniana que busca suas bases em

Deus, mas também não podemos prescindir do realismo com que monta sua teoria. Essa nada

mais é do que fazer com que a justiça seja o fundamento das leis civis. Nada mais intuitivo e

visível do que o homem se indignar com leis consideradas más. Devemos ressaltar, uma vez

mais, que o mal está na vontade humana, e não na natureza humana, embora esta tenha sido

atingida com o primeiro pecado e se encontra debilitada. Com isso, chega-se à conclusão de

que o mundo e o homem não estão condenados ao mal, pois este não é proveniente da

natureza. É possível reagirmos às injustiças em busca de um mundo mais justo com o auxílio

da graça divina. E nada há de condenável em partir de uma categoria como o pecado original

para tecer considerações sobre o Estado. Rousseau partiu da categoria do bem selvagem para

fundar sua teoria de Estado.

O problema da justiça agostiniana parece estar, essencialmente, na disposição dos bens

(inferiores, médios e superiores) e no bom uso que deles se faz para disciplinar o Estado em

bases éticas em direção ao bem mais excelente chamado de caridade. Isso não impede, antes

auxilia, na tese de que é possível a justiça perfeita neste mundo. A prática das virtudes – boas

condutas – é o modo pelo qual Agostinho encontra uma forma da justiça divina aperfeiçoar a

justiça terrestre. Por isso, a noção de graça divina é tão importante no pensamento cristão na

medida em que se reconhece a necessidade da lei como bem, mas, ao mesmo tempo, conclui

pela sua insuficiência para conformar uma sociedade, que, por sua vez, pode manipular uma

lei moralmente boa.

Em palavras claras, o Estado agostiniano não pode prescindir de Deus. Em termos

práticos, a graça divina não deixa espaço para que o Estado seja construído pelo homem

exclusivamente, bem como não identifica contraposição desta com a natureza. A par desse

argumento mais teórico, existe um argumento prático de respeitar e considerar as razões ético-

religiosas dentro do Estado.

À época, Agostinho procurava combater a tese pelagiana de que “está em poder do

homem a eficácia da virtude”325

. Isso porque, a graça divina é identificada com a natureza

pelos pelagianos de modo que a liberdade do homem não foi afetada pelo pecado original e,

assim, o homem já tem tudo o que é preciso para a prática da justiça. Não podemos responder

questões atuais com base em conclusões passadas que abarcavam questões históricas de

momento, mas, também, não podemos deixar de indagar: se os direitos fundamentais são

considerados algo de virtuoso para a sociedade contemporânea, seria possível construí-los em

325 AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p.

106.

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bases exclusivamente humanas? Ou os direitos fundamentais como vida e liberdade

guardariam algo de simbólico em seus significados que não poderia ser descartado?

Essas perguntas não fazem parte do objeto desta tese – o Estado ético-político em

Agostinho – e, por isso, não vamos aprofundar nesta dissertação a essência dos direitos

fundamentais e suas aplicações, no entanto, não podemos deixar de mencionar o fato de que a

tese cristã de Estado necessita da categoria “graça” para se pautar pelas virtudes na medida

em que a natureza encontra-se debilitada.

1.4.4 A lei natural como fruto da graça

A ideia da graça é dirigida não só para a prática da Lei (Escrituras), mas, notadamente,

para a lei natural que também só se cumpria pela graça326

. A liberdade e a graça é o ponto do

debate que refletem duas visões de ver o homem. Pela primeira com a exclusão da segunda,

um homem íntegro capaz de caminhar sozinho na construção do mundo e, consequentemente,

do Estado; pela segunda com a inclusão da primeira, um homem que reconhece sua fraqueza

para, então, construir com o auxílio de Deus.

Agostinho preferiu optar pela segunda categoria (graça divina mis liberdade) como

elemento para fugir da insensatez humana. Na visão dele, não aceitar a graça divina seria um

modo de tentar justificar os erros humanos. A insensatez estaria em admitir que o homem

tentou construir um Estado justo apesar de fracassar. O fracasso estaria justificado desse

modo. Por fracasso se quer dizer pecado, vício ou injustiça. Assim, é inadmissível tentar

justificar o mal se podemos ter gratuitamente o auxílio de Deus para não errar.

É interessante observar que ambas as formas de ver o homem não exclui Deus, embora

exista uma diferença crucial: Pelágio defendia a capacidade humana, por si só, de pôr em

prática as virtudes após o advento da Lei e de Cristo, exemplo a ser seguido; Agostinho refuta

essa tese para afirmar a necessidade da graça para o homem agir justamente. Se para o

primeiro a intervenção de Deus não era mais precisa, para o segundo era indispensável. Por

isso, o Estado ético-político de Agostinho não pode prescindir de Deus mesmo depois da Lei

(Escrituras).

Da mesma forma a categoria de “lei natural” é indispensável no pensamento

agostiniano por trazer à tese de que esta foi inscrita na natureza humana pelo Espírito

gratuitamente (graça), a qual serve para o homem ter uma vida reta por meio da graça. A lei

326

Cf. AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p.

113.

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natural é um modo de o pensador dispensar a todos os homens a presença inevitável de Deus.

A frase “A volta para a justiça exige um médico”327

indica, claramente, a presença de Deus

para a justiça. Podemos dizer o seguinte: a justiça divina é tão necessária para a lei civil

quanto Deus para a justiça perfeita.

A justiça de Deus é a lei da liberdade e do amor. A prática da caridade é a grandeza da

justiça divina. O progresso na justiça só é possível mediante a graça. Esta resgata o homem da

natureza decaída e o faz viver retamente.

1.4.5 A Carta 155 de Agostinho a Macedonius328

O tema central na carta 155 de Agostinho a Macedônio é o contraste entre o

ensinamento cristão da graça e a autossuficiência do homem prudente (virtuoso) defendida

pelos filósofos pagãos. A questão que se coloca é a necessidade ou não de transformar as

virtudes cívicas a partir da lei eterna, incutida no homem como lei natural, de amor a Deus e

ao próximo.

Para Agostinho as obrigações de uma vida reta devem ser derivadas e ter como fonte o

verdadeiro Deus. Os que vivem segundo a corrupção da carne pretendem ser os fundadores e

autores das próprias virtudes. A vida bem-aventurada (vida beata) deve ser, assim, evitada

segundo os filósofos pagãos que não consideram a graça divina.

Mas se isso é certo, os males do corpo (sofrimentos físicos, surdez, cegueira) tornam

a vida infeliz e fazem o homem pensar a autossuficiência como atributo incerto. O filósofo

cristão afirma que somente Deus pode nos livrar ou fazer suportar a miséria da vida mortal e

passageira. As virtudes cristãs têm a mesma fonte das virtudes cívicas, as quais constituem

parte da natureza humana. Para Agostinho é um erro, tolice, loucura e decepção pensar que o

homem pode obter a virtude por si mesmo. O homem que tende por este caminho sobrevive

horrivelmente nesta vida, está sujeito a variadas tentações e as mais variadas formas de

corrupção, bem como destinado para a mais justa punição. Assim diz:

Que tolice, que loucura, que decepção, para o homem mortal confiar em si mesmo

para obter a bem-aventurança! Depois de tudo, ele está sobrevivendo uma vida

horrível aqui, sua carne e seu espírito sujeitos a mudança, sobrecarregado por

muitos pecados, sujeito a muitas tentações, exposto a tamanha variedade de

327 AGOSTINHO, Santo. A graça. Tradução de Agustinho Belmonte. v. I. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p.

135. 328 Macedônio vigário da África (413-14), encarregado da administração da diocese civil da África. Como

católico cristão, era um devoto de Agostinho como um filho espiritual. Agostinho o enviou o primeiro dos três

livros da Cidade de Deus. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York:

Cambridge University Press, 2011, p. 240.

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corrupção, e destinado for a mais justa punição [...] Agora, eu sei que você está

voltado para os assuntos públicos, veja então como as sagradas escrituras declaram

claramente que a fonte da bem-aventurança humana é a mesma das civis 329

A vida bem-aventurada não pode ser confundida com o bem-estar terreno330

como

defendem os pensadores pagãos que confiam na própria virtude e na abundância das riquezas.

A verdadeira virtude deve ser buscada em Deus, fonte de todo bem. Politicamente, Agostinho

afirma que a mesma sorte atinge o cidadão e a cidade, vez que esta é uma associação de

homens. Com isso, as virtudes cívicas devem ser as verdadeiras virtudes. Agostinho se dirige

a Macedônio da seguinte forma:

Aquilo é o que nós queremos para nós mesmos e para a cidade da qual somos

cidadãos. A fonte da bem-aventurança não é uma coisa para o ser humano e outra

para a cidade: uma cidade é de fato não outra coisa do que uma associação

consensual de seres humanos.331

A prudência, a temperança, a fortaleza e a justiça são virtudes entendidas como úteis

para a vida reta neste mundo. A prudência consiste em saber escolher, a fortaleza em suportar

o sofrimento, a temperança em resistir à tentação e a justiça em não ser soberba.

No mesmo sentido, o filósofo cristão afirma uma regra ética de considerar o outro não

como um estranho, mas como parte da mesma natureza humana e participante da mesma

razão332

. Esse argumento é de capital importância para o pensamento da civilização ocidental

na medida em que os homens devem se comportar não como indiferentes ou inimigos uns dos

outros, antes devem de unir para o bem-comum. Segundo Agostinho, essa lei natural é

proveniente da lei divina de amor a Deus e ao próximo, a se tornar uma exigência moral para

a convivência humana, notadamente, no Estado.

O amor a si em desprezo a Deus e ao próximo torna o homem injusto em suas ações.

Ao contrário, as virtudes nos permitem cumprir a lei natural e tornar a vida humana boa,

mesmo que o sofrimento e a tortura aflijam o homem virtuoso de modo a torná-los mais

suaves com a esperança da recompensa futura.

329 No original: “What folly, what madness, what self-deception, for a mortal man to trust himself to win

blessedness! After all, he is living out a grim life here, his flesh and spirit subject to change, burdened by so

many sins, subject to so many temptations, exposed to such a variety of corruption, and destined for the justest

punishement.[...] Now I know that you are devoted to public affairs; see then how clearly the sacred writings

declare that the source of human blessedness is the same as that of civic blessedness”. Cf. ATKINS, E.M.,

DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 93. 330

Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 94. 331 No original: “That is what we want for ourselves and for the city of wich we are citzens. The source of

blessedness is not one thing for a human being and another for a city: a city is indeed nothing other than a like-

minded mass of human beings”. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York:

Cambridge University Press, 2011, p. 94. 332 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 98.

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1.4.6 As Cartas 91 e 104 a Nectarius333

e a Carta 138 a Marcellinus334

Agostinho não despreza as virtudes cívicas, as quais são consideradas boas para as

questões temporais. Cristãos e pagãos são beneficiados pela justiça, paz e ordem da

sociedade. O Cristianismo é a religião que, de fato, está ligada e protege as virtudes cívicas,

segundo Agostinho. O paganismo, ao contrário, causa muitos prejuízos, inclusive, com

comportamentos depravados a partir da adoração de falsos ídolos, como ao deus Júpiter ou a

deusa Flora335

. Com base em Cícero, Agostinho aposta nas virtudes como elementos

necessários para o bem-estar. O Cristianismo é, assim, fonte de defesa das virtudes, as quais

são pronunciadas e escutadas nos templos católicos.

As virtudes são bens que educam o espírito humano e tornam o homem bom no

serviço da cidade, sem limite ou término. Quando a cidade está cheia de virtudes há o

florescimento dela. Isso é dito de forma clara na Carta 91 a Nectário:

Realmente, tais virtudes estão sendo ensinadas e aprendidas nas igrejas que estão se

espalhando por todo o globo, como galerias das leituras sagradas para os povos do

mundo [...] e o povo deve ser convertido para uma adoração do verdadeiro Deus e

para a castidade e hábitos piedosos. 336

Assim, Agostinho pretende evitar os exemplos destrutivos da cidade capazes de serem

imitados. A graça de Deus permite que a bondade seja preservada e a correção (justiça

punitiva) seja aplicada com moderação (“the correction that we struggle to aplly with

moderation”337

).

A misericórdia de Deus, na visão agostiniana, impede que alguém seja punido com

severidade pelos cristãos ou por outros, impede também que a paz (ordem) seja conseguida

333 Necatário foi um pagão que nasceu em Calama, que cresceu em direção a uma alta posição a serviço do

império romano. Ele suplicou a Agostinho por suavidade aos não-cristãos, cidadãos de Calam, que eram

acusados de cometer atos de violência contra a igreja por oito dias em razão da ilicitude de uma cerimônia pagã

em frente a esta. 334 Flavius Marcellinus foi um tribuno (comandante militar) e notário (mantenedor da ordem). Ele foi um

católico e amigo de Agostinho. Foi indicado pelo imperador Honório a presidir a conferência de Cartago.

Suspeito de conluio com Heráclito contra Honório, foi preso e executado em 13 de setembro de 413 d.C. Cf.

ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press, 2011,

p. 240. 335 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 4. 336 No original: “In fact, though, such behavior is being taught and learnt in the churches thar are springing up all

over the globe, like sacred lecture halls for the peoples of the world.[...] and people must be converted to a true

worship of God and to chaste and pious habits”. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political

writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 3. 337 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 5.

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corretamente (legalmente) de modo a punir os culpados a distingui-los dos inocentes338

.

Agostinho afirma não só a moderação da pena, mas também a imputação da pena ao crime

após identificar os infratores legalmente. Em outras palavras, a moderação da pena, a

imputação da pena ao crime (fala-se que nem todos os pecados são iguais339

) e a identificação

do criminoso constituem a justiça punitiva de acordo com um julgamento verdadeiro e

prudente340

.

No caso específico, alguns pagãos se comportaram de forma ilegal em frente a uma

igreja, onde o clérigo tentou evitar que a situação ocorresse de forma inútil. Ao contrário, a

igreja foi apedrejada; o que reflete a intolerância dos pagãos frente aos cristãos, que

aprisionaram, torturaram e mataram alguns cristãos. É o famoso episódio em que parte da

biblioteca de Alexandria foi destruída.

A graça de Deus infunde a lei natural no homem de não retribuir o mal com o mal,

antes retribui o mal com o bem. O final da Carta 91 de Agostinho a Nectário dispõe que

nós devemos (enquanto preservando a mansidão e a moderação cristã) fazer um

esforço neste acontecimento para impedir que outros imitem os culpados, as

maldades, ou mesmo rezar para impedir que outros os copiem uma vez eles sejam

corrigidos [...] nós estamos tão ansiosos para protegê-los que estamos prontos para

nos expor derramando do nosso próprio sangue.341

Já na Carta 104 a Nectário, Agostinho o chama a atenção de que a pena de morte não

é melhor do que despojar os criminosos dos bens materiais. A morte, na visão dos epicuristas,

põe fim ao mal na medida em que a alma é mortal, ao contrário de Cícero que diz que a alma

não é destruída mas parte ao deixar o corpo342

. Agostinho completa e diz que a morte é o fim

dos males

somente para aqueles que eram castos, devotos, fiel e inocente; não para aqueles que

estavam inflamados por desejos de mesquinharias e vaidades nesta vida passageira,

que apesar de pensarem que são felizes aqui dão a prova de serem infelizes pelo fato

de que suas vontades são corruptos.343

338 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 5. 339 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 19. 340 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 5-6. 341 No original: “we must (while preserving gentleness and Cristhian moderation) make na effort in this affair to

deter others form imitating the culprits, wickedness, or even to pray that others will imitate them once they are

reformed [...] we are so eager to secure them that we are ready to risk shedding our own blood [...]”.. Cf.

ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press, 2011,

p. 8. 342 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 12. 343 No original: “but for those only whose lives were chaste, devout, faithful and innocent; not for those who are

inflamed by desire for the trifles and vanieties of this temporary life, who although they think they are happy

here are proved to be miserable by the fact that their wills are corrupt”. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J.

Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 12.

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E acrescenta que nenhum cidadão que agride os cristãos deve ter uma pena que lhe

retire bens de forma a suprimir as necessidades naturais344

ou que lhe inflija males

corporais345

ou que lhe impute a pena de morte ou que sirva como sede de vingança346

. A lei

natural de não retribuir o mal com o mal, antes o mal com o bem, é capaz de evitar que a pena

seja dirigida como vingança à pessoa do condenado mesmo se isso for um dever legal. Ao

contrário

agora você poderia alcançar isso por meio da verdade e amor devoto [...]mostrando

verdadeira preocupação por seus cidadãos, trazendo a eles não vazias e temporárias

alegrias, nem imunizar da punição pelos crimes [...] mas para a graça da felicidade

eterna.347

Na Carta 138 a Marcelino, Agostinho tenta refutar a educação liberal348

,

notadamente, do círculo do senador Volusiano e, posteriormente, prefeito de Roma em 421

d.C, de que os ensinamentos cristãos são incompatíveis com a ética da cidade de forma a

conciliar o perdão e a mansidão (por obra da graça) com a punição para o bem-estar da

comunidade. O preceito (comando divino) de não retribuir o mal com o mal, antes com o

bem, é benéfico e proclamado nas igrejas de forma que não procedem as acusações dos

pagãos de que o Cristianismo é hostil ao Estado. De fato, esse preceito proporciona a

estabilidade, força e crescimento da comunidade, ou seja, a paz.. Uma comunidade

(estado/cidade) nada mais é do que “um grupo de homens unidos pelo vínculo específico da

paz”349

. A paz é o fim do Estado que se torna frágil com a guerra civil, precisamente, quando

a moral do povo está depravada e corrupta, especificamente, quando se rende culto a falsos

deuses350

.

Prefere-se criticar o comando de não retribuir o mal com o mal do que aprender com

ele de que o inimigo maior do homem é interior, mais do qualquer outro inimigo externo. Por

isso, vencer o mal a partir da bondade é obra da fé e da justiça, a qual é mais eficaz do que

344 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 13. 345 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 13. 346 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 16. 347 No original: “now you could reach it through a true and devote love [...] by shouwing true concern for your

citizens, bringing them not to empty and temporary enjoyment, nor to immunity from punishment for the outrage

[...] but to the grace of everlasting happiness” . Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political

writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 17. 348 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 34. 349 No original: “a group of men united by a specif bond of peace”. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J.

Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 35. 350 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 35.

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garantir a segurança pela força e violência. Assim, o homem deve ser paciente e estar

preparado para suportar a hostilidade de outros cidadãos. Acrescenta Agostinho que

Se a comunidade terrena observasse os preceitos cristãos, então até mesmo as

guerras seriam empreendidas em espírito de benevolência, de modo que se proveria

mais failmente aos vencidos em vista de uma sociedade pacificada na piedade e na

justiça351

Agostinho critica os que atacam o Cristianismo para lhe imputar um malefício que

não possui, antes é responsável por elevar as virtudes cívicas em detrimento da corrupção

política e dos vícios pessoais. O filósofo cristão chega a intimar os que assim acusam os

cristãos para mostrar a insensatez do que se afirma a respeito da cristandade. As falsas

acusações são consideradas um escândalo e uma perseguição sem motivo na medida em que

ter governantes, juízes, esposos, esposas, filhos patrões e servos cristãos são um benefício ao

Estado. Como um hino em defesa do Cristianismo, Agostinho proclama:

Então aqueles que dizem que o ensinamento de Cristo é inimigo do Estado

(comunidade), nos dêem um exército de soldados tais quais o ensinamento de Cristo

exigiria. Dêem-nos províncias, maridos e esposas, pais e filhos, patrões e

empregados, reis, juízes, e finalmente contribuintes e fiscais que a doutrina cristã

exige. Então ousem chamá-la de inimiga da comunidade política! De fato, deixem

que eles hesitem em admitir que, se a doutrina cristã fosse observada, contribuiria

para a ordem do Estado.352

Na perspectiva agostiniana, a depravação dos costumes sociais aumentou com a

imitação gradual da licenciosidade dos cultos pagãos em todos os setores, como, por exemplo,

arte, esculturas, teatro e festas. A decadência de Roma é consequência direta da riqueza que

gerou a depravação que não veio de fora, mas invadiu as mentes dos cidadãos em direção à

corrupção. A afirmação que melhor resume os acontecimentos está, justamente, na Carta 138

a Marcelino: “Quando eles eram pobres, os romanos preservaram seus costumes incorruptos,

mas uma vez que ficaram ricos, permitiram uma terrível depravação, alguma coisa pior do

que qualquer inimigo, que não rompeu os muros da cidade, mas sim os pensamentos e

vontades dos cidadãos”353

. No Livro I, Capítulo XXI, da obra “Cidade de Deus”, Agostinho já

351 No original: “If the earthly commonwealth observes Cristian precepts in this way, then even wars will be

waged in a spirit of benevolence; their aim will be to serve the defeated more easily by securing a peaceful

society that is pious and just”. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York:

Cambridge University Press, 2011, p. 38. 352 No original: “So let those who say that the teaching of Christ is opposed to the commonwealth give us an

army composed of the sort of soldiers that the teaching of Christ would require. Let them give us provincials,

husbands and wives, parents and children, masters and servants, kings, judges, and finally even tax-payers and

tax-collectors, of the sort that this teaching of Christ demands. Then let them dare to say that this teaching is

opposed to the commonwealth! Indeed let them even hesitate to admit that, if it were observed, it would

contribute greatly to the security of the commonewealth”. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine:

political writings. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 39. 353 No original: “[...] For when they were poor, the Romans preserved their characters uncorrupted; but once they

were wealthy, they allowed a terribe depravity, something worse than any enemy, to breach not the city walls,

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aponta a gradação dos vícios com que foi crescendo nos romanos a paixão de reinar de modo

que o Senado voltou a atenção para a avareza e libertinagem para frear os vícios em direção às

virtudes e liberdade necessárias para o crescimento do Império354

.

Para Agostinho, somente Deus nos concede o auxílio (Grace) para evitar o mal355

. Às

antigas virtudes cívicas romanas como a frugalidade, a continência, a fidelidade conjugal, a

pobreza, a mansidão, a clemência e a concórdia são acrescentadas a verdadeira piedade para

Deus, pela qual a graça divina faz florescer uma sociedade justa, partícipe da Cidade de Deus

e mantenedora da perfeita concórdia entre os cidadãos (Carta 138, parágrafos 10, 11 14 e

17356

). Essa piedade cristã faz com que os cristãos possam suportar os males que não são

punidos com mansidão357

. O Cristianismo não é uma religião de violência, mas, sim, capaz de

resistir ao mal com mansidão pela graça de Deus.

but the very minds of the citizens”. Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New

York: Cambridge University Press, 2011, p. 40. 354 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 61. 355 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 40. 356 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 35-41. 357 Cf. ATKINS, E.M., DODARO, R.J. Augustine: political writings. New York: Cambridge University Press,

2011, p. 40.

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2. DELINEAMENTOS JURÍDICO-POLÍTICOS DE ESTADO

NA OBRA “CIDADE DE DEUS”

2.1 Origem das Cidades celeste e terrena

A montagem da teoria agostiniana de Estado remonta a duas Cidades, as quais “andam

ambas misturadas e confundidas uma com a outra”358

. A intersecção entre o divino e o

terrestre e os respectivos bens ocorre neste mundo desde já como condição necessária para a

formação do Estado com base em uma justiça subsistente à origem do mundo.

A Criação é elemento primordial na origem da Cidade Santa que Deus fundou para

que todos tivessem uma vida feliz e sábia. Percebe-se que a felicidade e a sapiência estão na

origem do mundo como bens provenientes da criação. São esses bens que o Estado terreno

precisa buscar e, que, não raras vezes, entra em confronto.

Agostinho define a Cidade celeste como aquela que “rendeu à sua obediência (...) por

disposição da soberana Providência, todos os engenhos humanos”. A existência de uma

sociedade justa é admitida a partir das Escrituras, que atestam sua veracidade como realidade

presente. Por certo, cuida-se de uma alegoria admitida para fins de construção de uma

doutrina de Estado, na qual o homem com a razão e a inteligência pode unir-se a ela neste

mundo.

Agostinho tem a ambição de construir o Estado utópico cristão em direção à

felicidade, assim como o homem contemporâneo o pretende. A diferença está no caminho a

ser percorrido. O Estado agostiniano é eminentemente caracterizado por uma ética

transcendente enquanto o Estado moderno plural se forma por uma ética imanente ao homem.

A Criação é a categoria de que se serve para fundamentar esta ética transcendente. Desde já,

fazemos a ressalva de que Agostinho não pretende construir um Estado teocrático, antes pensa

a sociedade de acordo com o momento em que vivia no governo romano, onde o poder

temporal e o eclesiástico se entrelaçavam a todo o momento. O filósofo cristão não pretende

usurpar o poder temporal, antes direcioná-lo ao caminho das verdadeiras virtudes, bem como

afastar a idéia de que os cristãos seriam os responsáveis pela ruína do Estado. É nesse

ambiente que Agostinho encontra respostas a favor de um Estado ético e de afastar a ideia de

que o Cristianismo é prejudicial ao Estado.

358 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 17.

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Por óbvio o caminho pressupõe um destino. O objetivo é Deus, origem da felicidade.

Filosoficamente, isso traz uma razão exterior à totalidade dos objetos capaz de fundamentá-

los. O Estado só é justo se pratica a justiça, que, por sua vez, tem uma razão em si. Tanto

Deus como a Justiça (divina) são controversos ou insuficientes para fundamentar um Estado

democrático contemporâneo pluralista em que nem todas as pessoas aceitam a tese da criação,

quiçá de Deus.

Isso não desmerece a tese de Agostinho da forma pela qual o Estado pode alcançar a

felicidade, na medida em que o percurso propicia ao homem viver retamente, ponto comum

entre crentes e não crentes.

A Criação permite o raciocínio de que ambas as cidades tiverem origem a partir de

Deus de modo perfeito, sendo que a terrena deve à celeste obediência após a natureza ficar

debilitada pelo pecado original. Agostinho encontra uma maneira inteligente de construir um

modelo de sociedade perfeita a partir da Criação que exige um ato de fé, sem descartar uma

experiência da teologia neste mundo como forma de fundamentar racionalmente sua doutrina

de que a felicidade e a sabedoria podem ser o fim do Estado desde que se unam a uma

realidade superior àquela experimentada neste mundo ainda debilitado.

Por obra da criação, o “logos” dispôs todas as coisas em certa ordem, as quais as

inferiores estão submetidas às superiores de modo que a conformação de toda construção

humana, particularmente, do Estado, está ligada à Cidade Celeste inevitavelmente. A

aspiração humana de felicidade reflete, de igual modo, no desejo de chegarmos a um Estado

justo em que todos possam ser felizes. A razão pela qual se admite obediência ao Estado não

pode ser outra que não a mesma pela qual o Estado se submete à Cidade Celeste, ou seja, o

encontro com a Sabedoria e a felicidade.

Para o pensador, as Cidades remontam a distinção entre os anjos. Por qual razão é

necessária essa distinção, que, a princípio, parece etérea? Na realidade, os anjos são elementos

alegóricos para pensar a origem do mal, especialmente, as formas corruptas de Estado. O mal

não tem natureza (substância), pois é a ausência de ser. Os anjos não são luzes em si mesmos,

mas em Deus somente. Essa ideia de iluminação infere que o mundo - como os anjos - só a

adquire em Deus. Em termos mais claros, o mundo não é autossuficiente. A Cidade terrena

perde substância tanto mais quanto se afasta da Cidade celeste na medida em que ela é a

forma perfeita. A Cidade Celeste, assim como os anjos, foi criada não para viverem

simplesmente, mas para participarem da felicidade e da sabedoria.

Agostinho, último filósofo do mundo antigo, e o homem do mundo atual estampam

um objetivo comum: a felicidade. Parece que o primado da razão impõe ao homem, de ontem

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e de hoje, esta verdade comum ao intelecto humano. A Cidade Celeste é o reflexo deste

desejo humano desde épocas antigas. É bom dizermos que o modelo não é vazio em

significado para o homem de hoje, uma vez que o filósofo cristão procura explicar a

decadência de Roma por meio dos vícios que atingiam os governantes e o povo. A corrupção

das pessoas precedia a destruição do Estado romano. Agostinho propõe a volta dos homens a

um estado perdido em resposta àqueles que acusavam os cristãos pela desconfiguração do que

havia sido um dia um grande Estado. Esse estado perdido, após o pecado original, é a Cidade

celeste. Assim, o retorno a um Estado virtuoso é possível.

A felicidade é definida “pelos dois elementos seguintes: gozar sem dor do bem

imutável, Deus, e permanecer eternamente nesse gozo, sem temor à dúvida e sem engano

algum”359

. A Criação fez com que os seres fossem criados de modo que a natureza inferisse

não somente uma ordem física, mas, também moral. A ordem física pode ser percebida

Entre os seres que têm algo de ser e não são o que é Deus, seu autor, os viventes são

superiores aos não viventes, como os que têm força generativa ou apetitiva aos que

carecem de tal faculdade. E, entre os viventes, os sencientes são superiores aos não

sacientes, como às árvores aos animais. Entre os sacientes, os inteligentes são

superiores aos que não têm, como aos animais os homens. E, ainda, entre os que têm

inteligência, os imortais são superiores aos mortais, como aos homens os anjos.360

Mas, o mais definidor para a doutrina de Estado se encontra na ordem moral da

Criação, a qual propõe uma gradação entre a razão, a necessidade e o prazer de maneira que

A razão atém-se ao que o ser vale por si mesmo na gradação cósmica; a necessidade,

ao que vale para o fim pretendido. A razão busca o que parece verdadeiro à luz da

mente; o prazer, o que é agradável e deleitoso para os sentidos do corpo. Mas o peso

da vontade e do amor é de tal maneira poderoso nas naturezas racionais, que,

embora, de acordo com a ordem natural, os anjos sejam preferidos aos homens, os

homens bons são preferidos, segundo a lei da justiça, aos anjos maus.361

Fica claro, pois, que existe uma ordem moral natural aos homens. Essa ordem é

considerada boa ao ser proveniente de Deus. Toda a natureza é boa, assim como a República é

boa, que, por sua vez, nos traz utilidade se a usamos com moderação. A Cidade Celeste é

superior à Cidade terrena pelo fato de pertencer àquela bens celestiais invisíveis dignos de

serem conhecidos pela razão humana. Se o Estado conserva a ordem de sua própria natureza,

equipara-se ao Estado perfeito. Deve assim usar do que deve ser usado e desfrutar do que

deve ser desfrutado. O homem não pode usar de Deus e gozar do dinheiro, antes deve usar do

dinheiro e gozar de Deus. Se houver desordem, a justiça se encarregará de ordená-la.

359 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 31. 360 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 34. 361 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 34.

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O homem, pela razão, é o único ser capaz de conhecer a lei natural que nos assegura a

retidão dos juízos. Da mesma forma, o homem tem um sentido interior capaz de identificar o

justo e repelir o injusto. Por isso, diz-se que “de um modo se conhece a justiça na verdade

imutável e, doutro, na alma do justo”362

.

Para Agostinho a Cidade celeste é boa por natureza e reta por vontade, enquanto a

terrena é boa por natureza e má por vontade. A primeira se rege pela justiça. A segunda pela

paixão de dominar e prejudicar. A primeira iluminada, a segunda envolta em trevas. Cada

qual com sua sociedade de anjos, bons e maus. Essa é a origem das duas cidades compostas

de homens e anjos bons e homens e anjos maus. Ambas surgem com a criação do homem

segundo Agostinho363

, a indicar que o homem aspira uma sociedade melhor desde o princípio.

A tese de que os anjos bons são aqueles felizes por não se afastarem de Deus e os

maus são os que se afastaram de Deus por soberba reflete na formação da Cidade celeste e na

Cidade terrena. É aqui que o filósofo cristão insere Deus na República. Deus é necessário para

a felicidade.

Diz que os anjos maus – leia-se Cidade terrena –

“embriagados por seu próprio poder, como se fossem seu próprio bem, declinaram

do bem beatífico, superior e comum a todos, aos seus particulares e, tendo por muito

sublime eternidade o fausto de sua altivez, por verdade certíssima os artifícios da

vaidade e por caridade mútua suas rivalidades repletas de ódio, tornaram-se

soberbos, enganadores e invejosos”364

.

Se pudermos considerar fictícia a origem das duas cidades, não podemos afirmar o

mesmo do diagnóstico preciso que Agostinho faz do Estado, especificamente, da República

romana. Sabemos que o Estado fruindo de seu poder, ao invés de usá-lo, experimentou o

provável para refutar a verdade com o intuito de justificar seus erros e legitimar as más

condutas.

A tentativa de construir um modelo de Estado perfeito fez com que o pensador cristão

se voltasse para Deus, pois o homem, só por só, não seria capaz de atingir a felicidade. A

felicidade, como vimos, está em gozar e permanecer em Deus. O que se quer asseverar com

essas palavras são os fundamentos necessários para a formação do Estado. A pensar nos

anjos, o filósofo afirma que os bons permanecem na verdade e na caridade. Essa é a razão

pela qual são felizes. É oportuno anotar a ligação que se traça entre a razão, a verdade e a

362 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 49. 363 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 57. 364 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 57.

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caridade. Pela razão se conhece a verdade, pela verdade se ama e pelo amor se vive. Pensar,

viver e amar parecem constituir o cume da filosofia agostiniana da felicidade.

O ser humano é livre para alcançar a felicidade. Em Deus, Agostinho encontra a

felicidade em termos racionais na medida em que é o Sumo Ser (essência). O mal consiste na

ausência do ser (esse). Quanto mais nos afastamos do ser nos aproximamos do não ser. Em

termos práticos, a ordem moral natural está repleta de disposições ontológicas (seres)

provenientes do Ser Absoluto, como, por exemplo, as virtudes. O afastamento dessas

substâncias (mau uso da liberdade) faz com que o homem se prive do que é bom. O mau uso

da vontade (liberdade) se volta para o próprio homem na medida em que nada pode fazer de

mal à realidade imutável. Por isso, o ódio, a soberba e a inveja são predicados que afastam o

homem dessas realidades invisíveis imutáveis de modo que se goza do poder para prejudicar

em contraposição ao desejo de felicidade comum aos homens.

Os vícios supramencionados são os inimigos verdadeiros do Estado. Agostinho tem

uma expressão única para definir as pessoas que se afastam da realidade eterna como aquelas

que “por sua vontade de resistência (...) corromper-lhes o bem de sua natureza”365

. Os vícios

são a corrupção do Estado e a causa da distância entre a Cidade de Deus e a terrestre. A

felicidade depende da união com Deus e, assim, da vontade humana. Se o homem se antepõe

a Deus e a tudo o que representa, então, prefere ao bem menor ao maior. A ausência de bens

(valores) na constituição do Estado ou o mau uso deles podem levar às más condutas e formas

de governo corrompidas. Toda a natureza é um bem em si mesmo, assim como a existência do

Estado é melhor do que sua ausência. O mal está na vontade desordenada do homem que

prejudica a ordem natural.

Em termos práticos, qualquer sistema político deve se orientar por valores (bens) e

fazer bom uso deles. O mal não está em determinado sistema político – se bem que a

democracia parece atender mais ao princípio da participação ao bem chamado Estado -, mas

na vontade do homem em subverter os bens ou deles fazer mau uso. A vontade do homem se

concretiza na edição das leis. Se as leis não guardam a justiça subsistente à ordem natural

moral, consequentemente, prejudicam os cidadãos ao privá-los de algo positivo. A ordem

moral natural exige a consideração da disposição de todos os bens (superiores, médios e

inferiores) e o bom uso deles.

Em outras palavras, o poder do Estado se constitui por meio das leis civis, que, por sua

vez, são o meio mais concreto da vontade. Se o poder for bem utilizado, teremos o bem

365 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 59.

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comum no Estado. Caso contrário, servirá como forma de dominação. O elemento poder na

visão agostiniana não é, necessariamente, mau. O poder deve ser usado para alcançar bens

superiores, como, por exemplo, a paz. Assim,

a soberba não é vício de quem dá o poder ou do poder mesmo, mas da alma que ama

desordenadamente seu próprio poder, desprezando o poder mais justo e poderoso.

Por isso, quem ama desordenadamente o bem, seja de que natureza for, mesmo

conseguindo-o, se torna miserável e mau no bem, ao privar-se do melhor.366

Isso significa que qualquer sistema político – inclusive, o democrático – pode abrigar

formas de dominação que afastem os cidadãos dos bens superiores ou fazem mau uso dos

bens, quaisquer que sejam e de que natureza forem (físico ou moral). As formas de dominação

privam o homem de bens melhores ao antepor os inferiores aos superiores até criarem a

necessidade de más condutas pelo hábito justificadas, ao fim e ao cabo, pela força da lei civil.

Agostinho chama de “defecção” o abandono de Deus367

. O Estado perfeito precede o

terreno na sociedade dos anjos formada antes da dos homens368

. Nessa Cidade o bem consiste

em permanecer unido a Deus. Inteligentemente, remonta-se à criação para defender realidades

invisíveis (metafísicas) acima das visíveis (materiais) de maneira a legitimar, por meio da

doutrina, ideias que seriam inatas e, por assim dizer, puras na forma e na substância. A ideia

dos anjos é a metáfora mais presente à realidade humana para reforçar a doutrina dos bens

eternos e imutáveis desde a origem do mundo.

Agostinho insiste na teoria sobre a criação (capítulos X e XI, Livro XII, Cidade de

Deus) para refutar as idéias de que o homem sempre existiu369

e o mundo seria eterno ou se

gerasse de sua própria matéria para reforçar o que está escrito nas sagradas escrituras dos

hebreus de que se passaram cerca de seis mil anos desde a criação do homem ao trazer o dado

histórico da carta de Alexandre, o Grande, a sua mãe Olímpia:

Nela dá a relação de certo sacerdote egípcio, que foi por ele extraída de seus escritos

sagrados, e fala também das monarquias mencionadas também pela história grega. O

reinado dos assírios, segundo a carta de Alexandre, durou mais de cinco mil anos e,

segundo a história grega, dura pouco mais ou menos mil e trezentos desde o reinado

de Belo, rei também nomeado pelo egípcio no princípio dessa monarquia. Fixa mais

de oito mil anos ao império dos persas e dos macedônios até Alexandre, a quem se

dirigia, enquanto que os gregos calculam em quatrocentos e oitenta e cinco anos a

duração do império dos macedônios até a morte de Alexandre e em duzentos e trinta

e três a do império dos persas até a vitória de Alexandre.

366 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 65-66. 367 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 66. 368 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 67. 369 Alguns platônicos, como Apuleio, tinham essa idéia sobre o mundo. O próprio Platão professava essa idéia.

Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 70.

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Tais números são, como se vê, muito inferiores aos egípcios e não os igualaria,

embora se multiplicassem por três, pois os egípcios contam que houve tempo em

que seus anos eram tão curtos, que duravam apenas quatro meses. Portanto, o ano

verdadeiro e pleno, agora comum a nós e a eles, consta de três dos antigos anos

egípcios. Nem mesmo assim, porém, como já dissemos, a cronologia egípcia

concorda com a história grega, Deve-se, por conseguinte, acreditar nesta última, por

não exceder o número de anos anotados por nossas Letras, verdadeiramente,

sagradas. Em conseqüência, se na celebrada carta de Alexandre se vê frustrada nossa

esperança sobre os tempos, quão menos crédito se deve dar àqueles escritos que,

saturados de antigalhas e fábulas, pretendem opor-se à autoridade dos livros, mais

celebrados e divinos, que predisseram que todo mundo haveria de crê-los, predição

que na realidade se realizou!370

De fato, o que se pretende é demonstrar que a história da criação do homem tem bases

históricas que indicam a correção dos escritos hebraicos. Aqui a fé e a razão vão ao encontro

da criação para afirmá-la como um fato que deu origem ao mundo que, por sua vez, remete à

origem do homem. A todo o momento, procura-se rebater na obra “Cidade de Deus” as teorias

correntes à época que contrariavam a história da criação para, assim, pôr em prática uma

doutrina da Verdade no lugar de filosofias, sistemas políticos e religiosos que não tinham

bases racionais ou que eram consideradas não verdadeiras (por exemplo, epicuristas) segundo

a visão agostiniana.

De igual sorte, Agostinho combate a ideia de alguns platônicos - considerados os

melhores pelo pensador – de que os homens e os animais são obras dos deuses inferiores, ou

seja, dos anjos371

. Platão tem a opinião de que os deuses receberam o poder de criar os corpos

dos animais372

. Os corpos seriam uma forma de punir os homens que viveram sem controle

moral. Assim as almas retornariam a corpos mortais de seres irracionais para Platão ou de

homem segundo Porfírio. Isso é falso para Agostinho na medida em que “nem as almas

expiam suas penas, retornando a esta vida, nem é outro o Criador dos viventes do céu e da

terra senão o Autor do céu e da terra”373

. O corpo é um bem e, por isso, não pode ser castigo.

O raciocínio acima prepara a tese agostiniana de que o mal não pertence à natureza,

mas à vontade humana. Esse é o mote para justificar o Estado ético-político baseado nas

virtudes humanas. Estas são indispensáveis para a formação do Estado justo.

A criação do modelo agostiniano de Estado justo ou Estado perfeito ou Estado

“utópico” tem a intenção concreta e histórica de defender os cristãos que eram acusados de

370 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 68-69. 371 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 86. 372 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 88. 373 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 88.

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terem contribuído para a queda de Roma, mas, também, estender para o mundo futuro uma

mensagem racional (entender) e teológica (crer) de que seria possível construir uma sociedade

justa à semelhança da “Cidade de Deus” com base na Verdade válida para todos os homens

em todos as épocas à margem de tendências humanas de destruição, corrupção e vícios (mal).

Essa Verdade é possuidora dos atributos da justiça e da caridade. Agostinho funde

esses dois elementos para afirmar que a justiça perfeita consiste na prática da caridade e no

fruir de Deus em última instância. É essa a lei inscrita na razão comum a todas as pessoas de

acordo com a ordem natural do mundo (física e moral), a qual o Estado deve conservar para o

bem comum. A essa lei se dá o nome de lei natural. Justificado está, pois, a titulação de “lei

natural” como um bem moral que remete a uma verdade presente em cada ser humano.

Na visão agostiniana, não há um rol exaustivo de direitos ditos naturais. O objetivo da

lei natural parece não ter esta pretensão. O que existe é uma razão na natureza nomeada de lei

porque identificada em cada ser humano da mesma forma. Por ser comum é universal.

Agostinho a define com o amor essencialmente constitutivo em si mesmo e como objetivo das

leis civis. Isso não quer dizer disciplinar o amor, mas, sim, o amor servir de substrato para a

justiça divina, desta para lei natural e esta para as leis civis.

Em outras palavras, a razão explicita uma verdade consistente em demonstrar que há

certa ordem entre bens inferiores e superiores, o homem e Deus e o Estado e a “Cidade de

Deus”. Como os bens superiores, Deus e a “Cidade de Deus” são categorias transcendentes,

Agostinho só teve uma maneira para inseri-las no mundo como algo aceitável do ponto de

vista racional: defender a Criação como um fato histórico, e, não, simplesmente, como

hipótese não demonstrável. Para tanto, justifica a fé como elemento que contribui para o

entendimento, assim como a razão contribui para a fé. A verdadeira religião não é inimiga do

Estado e este não é inimigo daquela.

Não por outro motivo, a obra “Cidade de Deus” tem a explicação insistente da criação

do mundo e da origem das duas cidades - a de Deus e a dos homens - a partir de noções

teológicas, filosóficas e históricas que caso não coincidam com o pensamento cristão são

rebatidas por Agostinho veementemente, como se demonstrou acima no caso do exemplo da

carta de Alexandre a sua mãe.

Admite-se, até mesmo, a narrativa do paraíso – estado perfeito da criação – como algo

figurado para a correta interpretação espiritualista, sem, no entanto, deixar de crer que existiu

historicamente para, assim,

entender-se por paraíso a vida dos bem-aventurados; por seus quatro rios, as quatro

virtudes cardeais, prudência, fortaleza, temperança e justiça; por suas árvores, todas

as ciências úteis; pelos frutos de tais árvores, os costumes dos piedosos; pela árvore

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da vida, a sabedoria, mãe de todos os bens, e pela árvore da ciência do bem e do

mal, a experiência do mandamento transgredido.374

O filósofo interpreta a passagem do paraíso em termos proféticos ao continuar o

raciocínio para afirmar que “o paraíso seria a própria Igreja (...) a árvore da ciência e do mal,

o livre-arbítrio da vontade humana”375

.

Da mesma forma, Agostinho rebate a crítica filosófica de alguns que se perguntavam o

que Deus fazia antes da criação ou por qual razão tardou criar o homem ao dizer que o tempo

e o espaço são elementos do mundo e, por isso, não podem servir de critério para medir a

Deus. Assevera que o “espaço de tempo, que parte do começo e tem termo, seja qual for a

extensão do seu curso, não sei se, comparado com o que carece de princípio, é infinitamente

pequeno ou antes nada”376

e acrescenta que gerações passadas e futuras terão a mesma

“idêntica curiosidade”377

sobre as questões mencionadas.

Com isso, o pensador do mundo antigo mostra que Deus é uma realidade com

existência autônoma que criou o mundo e o gênero humano no tempo por vontade única e

imutável de acordo com uma ordem física e moral (natural). Essa existência autônoma

significa que Deus não precisa das criaturas para a felicidade, tendo-as criado por puro ato de

bondade de modo que “em virtude de uma só e mesma vontade, eterna e imutável, fez com

que as coisas criadas primeiro, enquanto não eram, não fossem e depois, quando começaram a

ser fossem”378

.

Outro questionamento filosófico para destruir o que se pretende construir é a

provocação de que Deus não é capaz de compreender a infinidade dos números na medida em

que não é possível número possível para números infinitos. Novamente, Agostinho identifica

a questão do ponto de vista divino para afirmar que a “infinidade é de maneira inefável finita

em Deus, pois, não há, em absoluto, infinidade incompreensível à sua sabedoria”379

.

Em outras palavras, todas essas questões são colocadas do ponto de vista humano, o

qual é limitado no tempo e em inteligência. Por outro lado, Agostinho tenta as compreender

do ponto de vista de Deus. Esse deslocamento de eixo faz com que o que seja mutável se

374 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 115. 375 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 115. 376 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 70. 377 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 71. 378 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 78-79. 379 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p 79.

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submeta ao que é imutável de modo que o modelo filosófico agostiniano se torne referência

racional de um pensamento que sirva de base comum para o modo de agir. Isso porque, a

existência autônoma de um Ser imutável e eterno significa o mesmo que a existência de uma

Verdade capaz de estabelecer uma ordem física e moral do universo.

Essa ordem moral é identificada com o homem e o Estado. Os vícios dos seres

humanos ocasionam formas corruptas de Estado. O Estado vale o que vale seus cidadãos.

Agostinho logo percebe pela razão e pela fé que a verdade não pode ser outra senão aquela

superior e imutável em desprezo às filosofias que dizem o que pensam, não o que sabem, a

respeito do mundo, especialmente, dos que acreditam que há o eterno retorno do mundo em

alternância entre a felicidade e a miséria. A ilusão dessa filosofia resulta em estabelecer a

infelicidade como conhecimento de vida, pois o homem da infelicidade, passado o tempo, se

tornaria feliz para, logo após, retornar à miséria. Essa maneira de ver o mundo é errada

segundo o pensador cristão. Segundo ele, o homem teve princípio de tempo e espaço e se

encaminha para uma felicidade que liberta o homem e que nunca se repete.

E por qual razão Deus fez um só homem do gênero humano posto entre os anjos e os

seres irracionais? Qual a utilidade da criação do homem para a construção de um modelo de

Estado?

Diz que se o homem se sujeitasse a Deus e fosse obediente aos preceitos seria imortal

como os anjos com felicidade eterna; do contrário, se o homem “usando soberba e

desobedientemente do livre-arbítrio”380

seria infeliz e escravizado pela libido. Continua o

raciocínio para dizer que a origem do gênero humano a partir de um só homem teria o sentido

de

encarecer-lhe sempre mais a unidade social e o vínculo da concórdia, que

aumentaria, se os homens não se unissem apenas pela semelhança de natureza, mas

também pelos laços de parentesco. Tanto é verdade, não quis, como fez com o

homem, criar a mulher que lhe serviria de companheira, mas formou-a dele, para

todo o gênero humano propagar-se a partir de um homem apenas.381

O filósofo cristão vislumbra na origem do gênero humano a partir de um só homem

um elemento constitutivo do Estado: o vínculo da concórdia. No pensamento agostiniano, a

concórdia aparece como bem dado por Deus ao homem e a partir deste como elemento da

ordem natural, ou seja, o vínculo da concórdia pertence à ordem definida desde a criação.

380 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p 84. 381 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 84.

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Logo, se a concórdia é um bem procedente de Deus e sendo esta parte da definição de Estado,

a existência do Estado é, pois, um bem em si mesmo.

O motivo da existência da concórdia tem a utilidade de unir os homens em sociedade.

Os homens enquanto em sociedade refletem a união capaz de tirá-los da ignorância e da

bestialidade382

de modo a tornar agradável a vida em sociedade. A recordação da criação do

primeiro homem é professada pela verdadeira religião para que se conserve a unidade. É

necessário observar que, na verdadeira religião, o fundamento esta posto na razão.

A origem das duas cidades é, portanto, explicada em termos racionais desde a criação

do mundo e do homem. No primeiro homem “tiveram origem duas sociedades de homens ou

duas espécies de cidades”383

, do qual procederiam os demais homens que seriam

“companheiros de suplícios de anjos maus; outros companheiros dos bons na glória”384

.

2.2 As qualidades das duas Cidades indicam o Estado ético-político

agostiniano

No subtítulo anterior vimos que Deus criou o gênero humano de um só homem para

que pudesse ligar os homens em unidade com o vínculo da paz em unidade concorde. O

primeiro pecado (mal) foi consequência da desobediência, a qual ocasionou a necessidade da

morte. Todos os povos da terra com os mais variados costumes, ritos e línguas formam dois

gêneros de sociedades humanas, que podem ser chamadas de cidades385

.

Nas palavras de Agostinho

Uma delas é a dos homens que querem viver segundo a carne, a outra, a dos que

querem viver segundo o espírito, cada qual em sua própria paz. E a paz de cada uma

delas consiste em ver realizados todos os seus desejos.386

Essas duas cidades são constituídas por homens. Esse dado é importante para

entendermos que ambas as cidades estão presentes no mundo desde já, por vezes de modo

382 Bestialidade significa falta de entendimento. Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os

pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 95. 383 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 89. 384 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 89-90. 385 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 127. 386 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 127.

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contrário387

. Com isso, há a humanização das sociedades dos anjos no momento em que se

referem aos homens. Assim como a origem das duas cidades está descrita entre a formação

das sociedades de anjos bons e maus, a humanização delas ocorre entre aqueles que vivem

segundo o espírito e carne. Outro dado importante é imputar à palavra “paz” qualidade

pertencente às duas cidades de modo diferente, isto é, cada qual com a sua. Do mesmo modo

usa a palavra “desejo” como qualidade pertencente às duas cidades. Em outras palavras, a paz

e o desejo têm significados distintos em cada cidade apesar de serem utilizadas

indistintamente para caracterizar cada qual. Esses são os elementos com que Agostinho

qualifica os dois tipos de sociedades humanas.

As qualidades principais das duas cidades se centram nas expressões “viver segundo a

carne” e “viver segundo o espírito”. Viver segundo a carne não significa centrar o bem

supremo do homem no prazer corporal e sensível como fizeram os epicuristas, bem como

viver segundo o espírito não significa centrar o bem supremo no ânimo (espírito) como

opinaram os estóicos. Agostino, partindo das escrituras, assevera que ambos os modos de

pensar constituem viver segundo a carne388

.

Isso porque, viver segundo a carne significa viver segundo os vícios da carne e do

espírito, “pois tudo o que é mau o é por vício”389

. As fornicações, desonestidades, luxúrias,

embriaguezes e glutonarias são exemplos de prazeres carnais, como idolatria, emulações,

dissensões, heresias e invejas são vícios do ânimo390391

. O importante é definir a qualidade das

duas cidades a partir das virtudes e dos vícios, de modo a deixar à vontade humana a opção

por escolher viver segundo a carne ou o espírito. Agostinho menciona que viver segundo a

carne é viver segundo o homem e viver segundo o espírito é viver segundo Deus.

As virtudes e os vícios são opções de escolha do livre-arbítrio da vontade humana.

Para Agostinho, o mal não está na natureza humana e, consequentemente, não está no corpo a

causa da corrupção, mas, sim, na má vontade originada pelo primeiro pecado, sendo a

corrupção conseqüência deste. A carne é considerada boa, pois criada por Deus.

387 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 131. 388 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 127-128. 389 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 134. 390 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 128-129. 391 No Livro XXII da obra Cidade de Deus, Agostinho enumera vários vícios derivados do primeiro erro. Cf.

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 563.

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A pretensão agostiniana é isentar a natureza do mal de modo a permitir ao homem

aperfeiçoar-se enquanto tal, bem como as instituições por ele constituídas, desde que viva

segundo as virtudes. As virtudes são qualidades que lembram o homem de que não pode viver

por si só, ou seja, autossuficiente. O vínculo da concórdia que une os homens foi incutido por

Deus na criação do gênero humano, o qual só se mantém se os homens vivem segundo as

virtudes. O caminho para a felicidade é a virtude.

Se falarmos em virtudes e em vícios como qualidades das cidades, queremos dizer que

o vínculo da concórdia que une os homens é um elemento ético. O Estado agostiniano é, pois,

eminentemente ético. A ética das virtudes e dos vícios está posta no querer do homem. Se o

querer é ordenador é virtuoso; se desordenado, é vicioso. Por isso, Agostinho explica que “o

arbítrio da vontade é verdadeiramente livre, quando não é escravo de vícios”392

. A vontade do

homem em querer, acolhendo ou recusando, determinado bem chama-se afeição.

O objetivo de amar a Deus e ao próximo, essência da ética agostiniana, inclina a

vontade humana para o afeto denominado caridade. A caridade é identificada com o amor por

Agostinho de modo que o importante é usá-las na mesma acepção (significado) quando

dirigidas para o mesmo objeto, que, por sua vez, deve ser bom. A palavra “amor” pode ser

usada em mau sentido quando dirigida a um objeto perverso. Por isso, Agostinho diz

Em conclusão, o reto querer é o amor bom e o perverso querer, o amor mau. E

assim, o amor ávido de possuir o objeto amado é o desejo; a posse e o desfrute de tal

objeto é a alegria; a fuga ao que é adverso é o temor e sentir o adverso, se acontecer,

é a tristeza. Semelhantes paixões, por conseguinte, são más, se mau o amor, e boas,

se é bom.393

O uso da linguagem é observado atentamente pelo filósofo cristão para estabelecer

bases seguras de discussão com os filósofos da época antiga de modo a refutar as alegações

desses de acordo com o significado que se dê a determinado objeto a partir da vontade

humana em bem ou mal querer.

Está, claro, então, que o filósofo cria a ciência da significação para definir o

significado por signos de acordo com os objetos referidos. A semiótica na obra “Cidade de

Deus” (livro XIV) está presente como meio para defender o cristianismo e refutar os

pensamentos contrários a este na antiguidade. As palavras são símbolos que representam

determinados bens para adquirirem exata significação. Assim, por exemplo, Agostinho aponta

a significado de viver segundo a carne como o vício surgido do mal querer da vontade em

392 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 145. 393 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 135.

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usar de determinado bem. A luxúria é o vício do mau uso da sexualidade. O mau uso da

linguagem faz com que a questão seja mais de palavras do que de realidades. Ao proceder de

acordo com a semiótica, Agostinho tem a pretensão de buscar a verdade, a afastar as

contendas desnecessárias. O que se pretende afirmar é a existência embrionária da semiótica

nos escritos agostinianos.

Agostinho diz que o desenvolvimento da linguagem estabeleceu para o termo “apetite”

ou “concupiscência” um mau sentido, para o termo “alegria” um bom significado assim como

para a palavra “temor”. Já a palavra “tristeza” existe a dúvida se se pode usá-la para significar

algo bom394

.

A importância da semiótica agostiniana surge a partir da definição das qualidades dos

dois tipos de sociedades personificadas em duas sociedades de homens que se aproximam das

virtudes ou se afastam delas de acordo com a vontade humana em bem ou mal querer

determinado bem. As palavras são símbolos que servem de meio para que o filósofo cristão

afirme a força das verdades cristãs sem ambiguidades. Mesmo quando uma mesma palavra,

como, por exemplo, “amor”, é utilizada em uma mesma sentença, entendemos o significado

de cada qual com a definição do objeto a que se refere. O esforço de Agostinho em defender a

doutrina cristã surpreende o leitor no campo da linguagem também.

Agostinho exemplifica com a afirmação dos estóicos de que

somente o sábio é susceptível de vontade, de gozo e de precaução e somente o

néscio é capaz de desejo e de alegria, de temor e de tristeza. As três primeiras são as

constâncias, as outras quatro, segundo Cícero, as perturbações, as paixões, segundo

outros muitos. Em grego, como fica dito, as três chamam-se eupatheiai e as quatro,

páthe.395

Ao investigar esses termos utilizados nas sagradas escrituras, chega à conclusão de

que “desejam, temem e alegram-se os bons e os maus (...) segundo sua vontade seja reta ou

não”396

. Menciona, ainda, que nas sagradas escrituras o termo tristeza é usado em bom sentido

ao indicar arrependimento dos pecados. A retidão da vontade dirigida aos bens (afeto) faz

com que os justos, homens pertencentes à Cidade de Deus, temam e desejem, sofram e

gozem, enquanto peregrinos neste mundo. Temem e desejam a vida eterna, bem como sofrem

394 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 136. 395 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 136. 396

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 138.

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porque limitados em si mesmos e gozam em esperança a redenção futura do corpo. O amor

reto faz as afeições serem retas397

.

Em síntese, a vida reta faz as afeições serem retas e nos leva à felicidade por estar

segundo a vontade de Deus, enquanto se desordenada, torna as afeições desordenadas. A vida

reta pertence à Cidade de Deus e a vida desordenada se refere à Cidade dos ensinamentos do

diabo398

. A primeira vive segundo o espírito, a segunda de acordo com a carne. A primeira

cultua o verdadeiro Deus, a segunda cultiva falsas divindades em desprezo à verdade.

A visão das duas cidades traz à tona dois aspectos da doutrina agostiniana: a) um

pessimista, do pecado original que corrompeu o homem e tornou a natureza debilitada e b)

outro otimista, a natureza é boa em si mesma e o homem pode fazer o bem. Por essa razão,

Agostinho afirma que “Deus em sua presencialidade previu (...) o mau que havia de ser o

homem, por Ele criado bom, e o bem que Ele havia de operar com o homem”399

.

A visão pessimista faz com que os males possam ser explicados no sentido de

ausência de ser que necessita do bem para existirem “porque as naturezas em que subsistem,

como naturezas, são boas”400

. O mal não existe como realidade autônoma. O primeiro pecado,

segundo Agostinho, procedeu da má vontade humana, cujo princípio é a soberba. A soberba

“consiste em abandonar o princípio a que o ânimo deve estar unido e fazer-se de certa

maneira princípio para si e sê-lo”401

. Agostino é incisivo ao afirmar que o primeiro pecado

não reduziu o homem ao nada absoluto, mas voltou o homem a si mesmo como princípio a se

afastar de Deus e, com isso, aproximando-se do nada402

.

A corrupção do homem tornou o vício uma necessidade após o hábito da vontade

desordenado de maneira que o mau uso dos bens opera a carência do que é superior e melhor.

Em última análise, essa visão impede que os homens conheçam a Deus, o Ser Absoluto. Isso

significa dizer que, a caridade, o bem mais excelente, não embasará as condutas humanas.

Como a caridade é a justiça perfeita, esta não se torna subsistente às leis civis. Logo, sua

ausência opera a carência de bens considerados superiores e imutáveis como conteúdo das leis

397 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 139. 398 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 1 42. 399 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 1 44. 400

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 1 45. 401 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 1 47. 402 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 1 47.

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temporais. Esses bens podem ser identificados com as virtudes de modo que a falta delas

equivale à falta de ser, ou seja, aos vícios. Um Estado que se paute pelos vícios é, pois,

injusto. Sendo assim, o Estado injusto pode ser explicado em termos de ausência de Deus e,

ao mesmo tempo, fabricado em termos humanos exclusivamente.

Por outro lado, a visão otimista da Cidade é explicada em termos de plenitude dos

bens, os quais não necessitam da ausência de bens na medida em que o ser significa a

realidade ontológica do bem, o qual é criado com liberdade para amar. Por isso, todos os bens

criados, inclusive o homem, têm a natureza boa em si mesma. Como o homem foi criado com

liberdade, tem a capacidade de amar. Chega a dizer que “os males são superados pelos bens, a

ponto de os bens poderem existir sem os males, embora se lhes permita a existência, para

ressaltar o bom uso que deles pode fazer (...) a justiça do Criador”403

.

Isso significa dizer que, o homem pode construir um Estado justo a partir da liberdade

que tem de viver a caridade. Como a caridade é a justiça perfeita, o Estado que a tem como

substrato das leis civis é justo. Assim, se a razão do ser pressupõe um ato de vontade de amor

do Ordenador, a chamada lei natural só pode ser o amor na medida em que o sentido da

natureza é este. A lei natural chega a ser uma proposição autoevidente na medida em que

ninguém contestaria a asserção de não fazermos ao outro o que não queremos que nos façam.

Por isso, as leis civis que se orientam pela lei natural tendem a ver a justiça como parte da

ordem natural da criação e, então, como realidade dada por Deus, e, não, fabricada pelo

homem. O Estado agostiniano não despreza a Deus antes o acolhe.

De qualquer sorte, podemos afirmar que a visão agostiniana do mundo, notadamente,

do Estado e do poder não é somente pessimista, mas, também, otimista. Agostinho tem

certeza de que o Estado pode operar em bases éticas cristãs (objetivas). E, se pela vontade

desordenada do homem o mal se dissemina nas sociedades, é pelo homem que o bem ocorre

também. É bem verdade que pelo homem segundo a graça divina.

A ética de Agostinho é centrada em Deus que, segundo ele, é Verdade e Caridade. O

filósofo, então, assevera que o homem “enquanto apetece, menos é e, enquanto ama ser

autossuficiente, perde Aquele que na verdade lhe basta”404

. Em termos práticos, o arbítrio da

vontade humana é livre quando não se submete aos vícios. A liberdade deve, pois, ser

destinada para o bem, notadamente, para a prática das virtudes. A vontade do arbítrio não será

livre caso acolha os vícios.

403 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 1 44. 404 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 1 48.

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A liberdade, um bem tão caro ao mundo contemporâneo, pode, em termos práticos, vir

entendida como um direito qualificado na lei civil em termos não absolutos e irrestritos no

sentido de evitar o mal que pode advir da conduta humana que prejudique o Estado, embora

seja um bem dado, desde que seja para otimizar as virtudes e minimizar os vícios. Caso seja

definida pela lei civil para excluir as virtudes e potencializar os vícios deve ser entendida em

termos de justificativa dos males do homem (vícios) e do Estado (corrupção). A lei civil pode

positivar o significado que tem de liberdade desde que seja entendida como um bem voltado

para a virtude, e, não, para o vício. A responsabilidade em termos de assegurar (garantir) as

virtudes como qualificativos da liberdade é possível.

Nesse sentido, a significação como explicitação do significado do bem “liberdade” é

de suma importância no Estado para o contrastarmos com a utilidade subjacente a este mesmo

bem de se dirigir às virtudes ou aos vícios segundo uma razão prática dos juízos morais.

Essa cautela é necessária porque vimos que a razão está sujeita ao erro por ser

mutável. Nem sempre ela corresponde à verdade que o bem abriga. E a verdade da liberdade é

que foi criada para amar. As virtudes são o caminho para o amor em termos cristãos de

doação.

Agostinho vai mais longe para resgatar a soberba como pecado maior que a

transgressão em si dos homens de quererem ser deuses em si mesmos já que poderiam ser

deuses por participação à Verdade (Deus) de maneira a torná-los infelizes. Em termos

práticos, isso significa que esse mal chamado soberba “busca o recurso da escusa para os

pecados mais evidentes”405

de modo a atribuir a outro “a responsabilidade de suas más

obras”406

.

O filósofo nos conta que a justiça em resposta ao primeiro erro foi entregar o homem

a si mesmo de maneira que ficou sob a servidão do poder a que consentiu. A partir desse

momento, o homem ficou vulnerável à libido da ira, avareza, glória e à voluptuosidade a

ponto de nem a lei civil que autorize essas condutas ter a capacidade de atentar contra a

consciência dos homens. O caso da prostituição é o exemplo mencionado de vergonha em

mostrar a intenção luxuriosa, apesar de permitida pela lei civil407

.

Outro exemplo histórico lembrado por Agostinho é o caso dos filósofos cínicos que

não imitaram a conduta de Diógenes que uma vez teve união carnal em público para tentar

405 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 1 49. 406 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 1 49. 407 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 153-154.

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provar que isso não deveria ser causa de vergonha entre as pessoas. O que moveu Diógenes

foi a vontade de tornar mais célebre sua escola, muito embora o resultado tenha sido a vitória

do pudor natural sobre o erro408

.

É, por isso, que a lei natural ou lei da sabedoria entra no contexto para permitir ao

homem que se afaste dessas intenções com o apoio da razão. Como a libido é parte viciosa da

alma que conduz a vontade do homem para as paixões, a razão passa a ser o freio da vontade.

O controle das paixões pela razão é necessário para que a pessoa chegue a um estado

que a deixe feliz vivendo como quer. Esse é o primeiro passo para o homem buscar a

felicidade de vida. Assim, o homem vive segundo o espírito e integra a Cidade eterna onde a

graça do Ordenador o eleva a patamares vistos antes do primeiro erro. A presunção humana

cede à graça de Deus para voltar ao estado perdido de modo que nenhuma criatura racional,

angélica ou humana, é capaz de interferir na vontade de Deus. Isso quer dizer que, o retorno

do homem ao estado original, em que a libido não dominava os homens, é possível graças à

vontade de provar de quanto bem é capaz independentemente do que faz a má conduta das

criaturas racionais. Filosoficamente, a não interferência do mal na divina Providência equivale

a apresentar uma verdade imutável com existência autônoma apta a resgatar os homens a

viverem segundo o espírito.

As qualidades das duas Cidades, a terrena e a celeste, podem ser expressas nos

seguintes termos: a) a primeira vive da glória humana, a segunda procura a divina como

testemunha de sua consciência (morada da lei natural), b) a terrena vive sob o domínio das

paixões e dos governantes, na celeste se vive a mútua caridade entre os governantes que

servem os súditos obedientes à lei, c) a do diabo se serve da força, enquanto a de Deus do

amor, d) a primeira busca os prazeres do corpo ou da alma e desprezam a Deus ofuscando o

entendimento (razão) de modo a viver segundo na inteligência pensamento humano

exclusivamente de acordo com a soberba capaz de inventar escusas para o mal praticado com

a criação de ídolos; a segunda vive pela piedade que funda o culto legítimo ao verdadeiro

Deus, fonte de felicidade.

Em outras palavras, o Estado ético-político agostiniano parece, por uma via

interpretativa, ser tendente à verdadeira religião de modo a ter a pretensão de estabelecer uma

ética vinculada a verdades cristãs em que a fé exige o entendimento e a crença da razão na

existência de bens ontologicamente existentes independentemente da vontade humana, vale

dizer, sejam percebidos e aceitos a partir da experiência dos bens criados, sejam alcançados

408 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 155.

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pela pura razão. O Estado justo agostiniano é, pois, essencialmente, cristão no sentido de

apostar na caridade e na sabedoria divinas como capazes de transformar os homens e as

nações. Poderíamos, até mesmo, chegar à conclusão de que esse Estado não é passível de ser

admitido no atual Estado Democrático de Direito cuja qualidade é a neutralidade da atuação

estatal como promotora de uma cultura fundada na ética da tolerância para abrigar a

pluralidade de pensamentos individuais e respectivos direitos individuais que permeiam a

sociedade contemporânea sem estabelecer uma visão de mundo apenas.

Ainda que o pensamento do Estado justo de Agostinho não se amolde à atual evolução

da sociedade, que é plural, devemos observar a sofisticação dos argumentos do pensador na

medida em que: a) respeita a separação entre o Estado e a religião, pois a caricatura das duas

cidades, a de Deus e a dos homens, tem naturezas diversas com autonomias próprias, bem

como o Estado utópico não equivale à Igreja católica enquanto instituição presente no mundo,

antes significa todas aquelas pessoas que vivem segundo o espírito, ou seja, sem nenhuma

agressão aos outros cidadãos, vez que primam pela caridade, b) a alegoria da Cidade de Deus

(protótipo de sociedade justa) não tem a pretensão de se servir do Estado para impor uma

verdade unilateral de mundo pela força, antes apenas defende uma justiça subsistente às leis

civis de acordo com a ordem moral natural de maneira a pôr em prática a caridade cristã neste

mundo, c) as verdades cristãs não são impostas, antes são aceitas ou não pelas pessoas e

podem ou não ser explicitadas pelas leis civis que são relativas por se dirigem a bens

mutáveis, bem como não há contraposição entre a lei natural e as leis civis visto que essas

complementam a primeira e a ela se conformam, d) a ética cristã significa a retidão de vida

baseada nas virtudes, inclusive dos governantes, para que não haja vícios e corrupções, isto é,

não prejudiquem o bem comum, de modo a se sirvam do poder para se assenhorearem do bem

público como se fossem próprios e, nisto, crentes e não-crentes estão de acordo de maneira

que não agride nenhum cidadão de boa vontade, e) as verdades cristãs não devem ser

comparadas ao fundamentalismo religioso que despreza a razão como meio para a construção

da sociedade, antes exigem a presença do entendimento para a compreensão da fé, muito

embora alerte que a razão precise da fé também, f) as verdades cristãs – ética – estão abertas

para pessoas que não professam a mesma fé ou não comungam da existência de Deus, assim

como outros valores sociais, g) a lei natural não apresenta um rol exaustivo e acabado de

direitos fundamentais nem toma para si a autoridade de todos estes, interessantemente,

proclama uma verdade traduzida pela caridade cristã consistente em uma razão natural à

ordem moral da criação comum aos homens e independente da vontade humana que nos

orienta em direção aos chamados bens imutáveis e superiores – dente eles, as virtudes -, aos

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quais o homem não pode dispor pelo arbítrio da vontade livre com o mal praticado por não ter

poder sobre eles, muito embora seja livre para deles se afastar, h) o denominado direito

natural, assim, deve ser entendido nos exatos termos do pensador (item retro), e não, como

justificativa para defender certos direitos como se fossem naturais, i) a lei natural não é

passível de ser apreendida pela lei civil, visto que é um bem eterno disponível para o homem

mediante o uso da razão (consciência) do qual há a participação segundo a ordem estabelecida

de acordo com a livre adesão; ao contrário, a lei civil tem como característica se impor,

inclusive pela força, para fazer valer o direito vigente, ou seja, a lei civil não tem o poder de

obrigar ninguém a amar, muito embora deva ser moralmente válida, j) a justiça humana

equivale a dar a cada um o que é seu, a divina é um bem superior na medida em que consiste

na prática da caridade, l) por tudo isso, a Cidade terrena oferece o que pode segundo as

limitações próprias e a de Deus o que a primeira não é capaz, sendo o principal bem oferecido

o amor.

É bem verdade que, Agostinho encontra na Verdade os fundamentos da ética, pois a

falta dela pode levar o homem a ter o entendimento obscurecido – consequência do primeiro

erro – e, assim, justificar condutas que seriam más por utilizarem o livre-arbítrio apenas para

os bens mutáveis em desprezo aos bens considerados melhores aptos a oferecem uma vida

feliz.

De qualquer maneira, Agostinho apresenta um caminho para estabelecer um vínculo

da concórdia ordenada no Estado. Não vislumbramos nas obras de Agostinho a pretensão de

estabelecer institucionalmente um Estado cristão, somente tem como doutrina o entendimento

que o Cristianismo não é a causa de ruína do Estado – no caso, o romano -; ao contrário, a

doutrina cristã apresenta elementos para que os homens sejam virtuosos de forma a contribuir

para a construção do Estado. As chamadas verdades cristãs não privam o Estado de nada do

que é bom segundo a visão de Agostinho, bem como considera o Estado um bem antevisto na

criação do segundo homem pelo primeiro representativo do vínculo da união entre os homens.

Eva surge da costela de Adão e, por isso, estão unidos.

Terminamos este subtítulo com a transcrição da passagem escrita por Santo Agostinho

no final do Livro XIV da obra “Cidade de Deus” que traduz de forma mais categórica a

representação das duas cidades com lapidar argúcia nos seguintes termos: “Dois amores

fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor-próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o

amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial.”409

409 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 165.

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2.3 Os Estados terrenos e a Cidade de Deus: genealogia histórico-alegórica

do poder

As duas cidades agostinianas sinalizam sociedades de homens que vivem segundo o

homem ou de acordo com Deus. A sociedade de homens na cidade terrena que vive segundo

Deus é a imagem da Cidade Santa, sendo esta uma realidade autônoma. A sociedade de

homens na cidade terrena que vive para si é a expressão da dominação. Ambas as sociedades

de homens são parte da cidade terrena, com a observação de que aqueles que vivem em Deus

são a imagem da Cidade de Deus. Assim, diz-se que a Cidade celeste se faz peregrina já neste

mundo como presença da sociedade ética agostiniana é parte desta realidade.

O que pretende o filósofo cristão é demonstrar o elo escatológico entre os primeiros

homens e as gerações futuras até a manifestação da Cidade celeste. As Escrituras revelam,

então, quais foram os homens importantes para a formação dos dois tipos de sociedades para a

montagem do poder, sucessão de pai para filho nos reinados, a partir da narração da

genealogia dos hebreus.

Historicamente, Agostinho descreve o desenvolvimento das duas Cidades com os

descendentes dos dois primeiros homens. Caim e Abel representam o início das cidades

terrena e celeste, assim como Isaac e Ismael filhos de Abraão (o nome significa pai de muitas

nações410

). Caim construiu uma cidade; Abel nenhuma por ter ciência de ser peregrino e a

verdadeira Cidade se encontrar no céu411

. Essa passagem é decisiva para demonstrar que não

se pretende construir um Estado teocrático segundo a filosofia agostiniana. Isaac (o nome

quer dizer sorriso412

) nasceu de Sarra (o nome significa virtude413

), a livre, e Ismael de Agar, a

escrava. Abel e Isaac simbolizam a liberdade, a paz e a caridade capazes de constituírem a

perfeita concórdia.

Caim e Ismael são expressões da escravidão, da guerra e da dominação que podem

levar os homens a amar mais os bens terrenos do que os superiores. A palavra Caim significa

410 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 248. 411 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 170. 412 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 250. 413 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 248.

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posse e o nome Enoc, filho de Caim, significa dedicação414

. A posse remete à dominação e a

dedicação à predileção aos bens e fins próprios do mundo – paz e felicidade temporais - em

contraposição à caridade da Cidade de Deus. Com a morte de Abel, as gerações pertencentes à

Cidade Celeste vieram de Set, cujo nome significa ressurreição, bem como Enós, filho de Set,

significa homem415

. Mais tarde, haveria um outro Enoc da sétima geração, contando-se de

Adão, que representa o arquétipo da dedicação a Deus.

O filósofo Agostinho vê na linhagem hereditária um significado importante para

distinguir as duas cidades, a ponto de entender que de Adão, por meio de Set, até Noé

passaram-se dez gerações que indicam a obediência ao Decálogo em contraposição ao número

onze que significa infringência da lei advinda da sétima geração da descendência de Caim até

Lamec, que, por sua vez, teve três filhos e uma filha chamada Noema que significa

voluptuosidade416

.

Ambas as linhagens se misturaram pela relação dos filhos da sociedade de homens

pertencentes à cidade celeste que se deixaram seduzir pelas belas mulheres da linhagem de

Caim e, assim, o dilúvio, atingiu a terra inteira. A figura de Nóe representa a imagem futura

da Igreja, cujo mediador é Jesus Cristo. A arca tem as medidas do corpo humano, o que indica

o corpo de Cristo417

. Dos filhos de Noé, Sem e Jafé significam respectivamente nomeado e

multidão. Cristo, o nomeado, nasceu da estirpe de Sem e tem uma multidão de fiéis a partir de

Jafé. Sem e Jafé representam os judeus e os gregos justificados, apesar da morte de Cristo vir

pelo povo israelita418

. A partir das Escrituras que narram a descendência dos filhos de Sem até

Abraão e deste até Jesus Cristo, Agostinho quer demonstrar pelo argumento de autoridade

religiosa a existência histórica das cidades celeste e terrestre. Do mesmo modo, as promessas

feitas por Deus a Abraão de que sua descendência possuiria a terra de Canaã e Deus

abençoaria todos os povos que nele cressem419

denotam a eternidade da Cidade de Deus sobre

a cidade terrestre e, ao mesmo tempo, a bondade de Deus em acolher todos que Nele vivem na

Cidade Santa.

414 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 194. 415 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 194. 416 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 200. 417 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 208. 418 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 2 17. 419 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 236.

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O filho do meio chamado Cam significa astuto que se tornam escravos da própria

inteligência, como os hereges ou os que vivem uma vida licenciosa. Por isso, Canaã , filho de

Cam, representa os movimentos de Cam no mundo. Dos filhos de Noé serão geradas setenta e

duas nações que povoaram a terra420

. Babilônia (confusão das línguas) fundada pelo gigante

Nemrod, descendente de Cam, contra o Senhor é o sinal da cidade terrena que vive segundo a

soberba em contraposição à humildade para se chegar a Deus, que, por sua vez, faz os anjos e

os homens partícipes da Verdade. Além do império dos assírios (Babilônia), os impérios

egípcios e siciônios (origem dos romanos) são considerados expressões da sociedade de

homens que vivem segundo a carne421

, os quais são da estirpe de Caim.

O que é interessante observar é a interpretação das Escrituras para situá-las

historicamente na sociedade de homens reais. Toda a genealogia significa a humanidade com

todas as características das duas sociedades de homens através da história. Parece-nos que o

filósofo defende o Cristianismo como continuidade dos valores essenciais para a construção

da Cidade de Deus, e não, como o responsável pela degradação dos povos. No caso, o bispo

de Hipona defendia os cristãos contra as acusações de que seriam responsáveis pela ruína de

Roma.

A continuidade dos povos de Adão até Jesus Cristo confirma os arquétipos de

sociedades que existem no mundo, bem como as qualidades do amor e da dominação que as

caracterizam. Agostinho quer nos mostrar não só a existência desses dois tipos de sociedades,

mas, também, justificar a razão pela qual o Cristianismo, ápice da plenitude de Deus no

mundo por meio de Jesus Cristo, não é um mal a ser combatido pelo Estado, antes deve ser

aceito e reconhecido como motivador de virtudes para a convivência entre os homens.

O elemento definidor da verdadeira concórdia que une os homens sob a égide do

mesmo vínculo deve buscar nas virtudes sua legitimidade. A prova disso é a genealogia dos

povos durante a história capaz de formar civilizações que não desapareceram. Aliás, a religião

parece ser a força capaz de constituir essas civilizações. Não por outro motivo, a religião

cristã foi capaz de formar e conformar nações, povos e países segundo a lei do amor, geradora

das virtudes. Agostinho chega a concluir que os gêmeos que lutavam entre si no ventre de

Rebeca, mulher de Isaac (representa a lei e os profetas), e a profecia de que os dois (Esaú e

420 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 220. 421 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 237.

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Jacó) gerariam dois povos distintos, em que “o maior servirá ao menor”422

significa a

continuidade das promessas de Deus feitas aos judeus e passadas aos cristãos como forma de

perpetuar a Cidade de Deus através dos tempos. Ou ainda, Esaú representa os israelitas (um

povo) e Jacó (muitos povos)423

. Jacó teve doze filhos, sendo José vendido pelos irmãos por

inveja e tornado poderoso no Egito mais tarde. Jacó também era chamado de Israel (visão de

Deus) em virtude da luta que travou e ganhou com o anjo na volta da Mesopotâmia que o

abençoou ao impor o nome de Israel424

.

Com a morte de Jacó e José, a nação judaica se multiplicou em enorme escala, a ponto

de o faraó egípcio mandar matar as crianças tão logo nascidas. Uma dessas crianças, Moisés,

foi adotado pela filha do faraó e foi o homem que libertou os hebreus da escravidão no Egito

após as pragas e o sepultamento dos soldados egípcios no mar Vermelho. Moisés recebeu o

Decálogo cinquenta dias após a Páscoa (passagem) no deserto, assim como o Espírito Santo

veio aos discípulos cinquenta dias após a paixão de Cristo. O Espírito é denominado dedo de

Deus como prefiguração do dedo de Deus que escreveu as leis divinas ao povo hebreu nas

tábuas425

. Moisés morrera antes de chegar à terra prometida (Canaã) e, então a missão de levar

os hebreus para a terra prometida coube a Jesus Nave que a repartiu entre as pessoas. Daí

advieram os reis Saul e, posteriormente, Davi e o filho Salomão. Davi foi ungido por Samuel,

sacerdote e juiz, cuja mãe era Ana que significa graça. Os Salmos escritos por Davi

prefiguram Cristo no mundo segundo Agostinho. O Salmo 44 representa Cristo e a Igreja, o

Salmo 109 o sacerdócio de Cristo, o Salmo 21 a paixão, os Salmos 3, 40, 15 e 67 a morte e

ressurreição de Cristo, o Salmo 68 a infidelidade dos judeus426

.

O nascimento de Jesus Cristo é a benção definitiva de Deus aos homens que nele

creem. Jesus nasceu de Judá, tribo da descendência de Israel, e, por isso, os cristãos são a

imagem da Cidade de Deus, passando de Abraaão, Isaac, Jacó427

, Davi e Salomão. Com o

desprezo de Salomão – após o período inicial de culto ao verdadeiro Deus com a construção

do templo - a Deus, foi imputada ao povo israelita a dispersão sobre a terra a começar pelo

422 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 256. 423 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 264. 424 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 260. 425 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 264-267. 426 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 296-302. 427 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 262.

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cativeiro pela conquista dos caldeus sobre a região e a queda de Israel de modo que assim

permanecerão até o fim do mundo, sendo que alguns se converterão para Cristo428

.

Assim, “dividido o reino, em Jerusalém reinou Roboão, primeiro rei de Judá, filho de

Salomão; em Samaria, Jeroboão, rei de Israel, escravo de Salomão”429

, embora a divisão fosse

de reino, não de religião. Para não perder o poder, Jeroboão não permitiu que o povo fosse

prestar culto a Deus em Jerusalém (sede do reino de Judá), pois isso significaria a voltar à

estirpe de Davi, e, então, estabeleceu o culto a vários deuses em seu território, dentre eles,

Baal430

. Isso sem perder de vista que os homens se alternavam entre boas e más condutas no

reino de Judá. O que levou os caldeus a dominarem o povo de Deus e a levá-lo para o

cativeiro na Assíria, primeiro Israel e depois Judá com a queda do templo construído por

Salomão. Após a libertação, restauraram o templo e foi estabelecido um só reino até a

conquista dos romanos e o nascimento de Cristo.

Agostinho diz que a Cidade de Deus peregrina neste mundo é a Igreja431

. Na verdade,

o que Santo Agostinho quer dizer por Igreja é o povo que tem como mediador Jesus Cristo.

Esta é a promessa feita ao rei Davi de que o templo de Deus seriam os homens432

. Não se

cuida, pois, da instituição Igreja embora esta deva coincidir com aquele. De igual modo,

Agostinho propaga a menção de profecias nas Escrituras relativas à Jerusalém celeste, à

Jerusalém terrestre e a ambas433

. De fato, as sociedades de homens que vivem em Deus ou

segundo a carne andam misturadas neste mundo. Tanto que ao lado dos inimigos de Deus

pertencentes à Babilônia, “cidade do diabo”434

, juntam-se os

os israelitas carnais, cidadãos terrígenas da Jerusalém terrestre, que, como diz o

apóstolo, não conhecendo a justiça de Deus, quer dizer, que Deus, único justo e

justificador, dá ao homem, e afanados em estabelecera sua própria, isto é, aquela

que julgam alcançada para si e por si mesmos, não dada por Deus, não se sujeitaram

à justiça de Deus.435

428 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 286. 429

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 306. 430 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 306. 431 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 208. 432 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 288. 433 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 272. 434 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 298. 435 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 275.

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A Cidade de Deus tem como elemento primordial o amor. No Livro XV, capítulo

XXII, da obra “Cidade de Deus”, Agostinho identifica o Estado cristão (Cidade Santa) com o

amor ao afirmar que

O amor, que faz com que a gente ame bem o que deve amar, deve ser amado

também com ordem; assim, existirá em nós a virtude, que traz consigo o viver bem.

Por isso, parece-me ser a seguinte a definição mais acertada e curta de virtude: A

virtude é a ordem do amor.436

A definição da virtude como a ordem do amor tem um sentido de buscar a virtude em

Deus, mas, também, ter uma função útil de aperfeiçoar o bem viver. As virtudes são parte da

ordem da natureza moral do mundo que procede do amor criador de Deus. Por isso, diz que o

vínculo da concórdia é o mais suave e estreito que ordena e dá harmonia por meio da

justiça437

, sendo o povo uma “associação baseada no consenso do direito e na comunidade de

interesses”438

(Livro II, Capítulo XXI, “Cidade de Deus”). O Estado deve ser governado, pois,

com virtudes para que haja uma “sociedade de homens que vivem unidos”439

. Segundo

Agostinho, “pratica o direito e a justiça quem vive retamente”440

, a começar pela prática dos

mandamentos segundo o amor durante o tempo em que nosso espírito está ligado ao nosso

corpo.

A cidade terrena, que vive por e para si, tem como característica a ambição por

domínio para o estabelecimento da paz terrestre441

. A origem é o primeiro pecado em que toda

a natureza humana “caiu da verdade na vaidade”442

. Parece-nos que o pensamento de

Agostinho neste ponto é certamente voltado para a república romana que dominava os povos

por meio de regras e, inteligentemente, absorvia as diversas culturas no que fosse possível

para a estabilização das regiões conquistadas e, ao mesmo tempo, apoderava-se dos bens

materiais, inclusive, com a constituição de vínculos jurídicos.

O raciocínio agostiniano é linear ao antever na cidade terrena fundada por Caim a

definição de “uma multidão de homens unidos entre si por algum laço social” no Livro XV da

436 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 202. 437 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 90. 438 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 91. 439 AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2007, p. 45. 440 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 277. 441 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 176. 442 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 291.

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obra Cidade de Deus. Os laços sociais entre Roma e as regiões conquistadas eram constituídos

pelas autoridades da república por meio jurídico. A dominação pela norma era fundamental

para Roma. Agostinho diz que

Roma foi fundada como outra Babilônia, como filha da primeira, e que aprouve a

Deus servir-se dela para humilhar o universo todo e pacificá-lo, reduzindo-o à

unidade da mesma república com as mesmas leis.443

Por isso, o mesmo – genealogia hebraica das duas cidades - não aconteceu entre

Rômulo e Remo em Roma. Os fundadores de Roma visavam à glória e ao poder integral da

Cidade e, então, Rômulo matou Remo para a conquista única do poder. A luta entre Rômulo e

Remo é o arquétipo entre as lutas que pode haver na cidade terrena e, com a depravação moral

de Roma, veio a enfraquecer os fundamentos do Estado.

Apesar disso, Agostinho lembra a história do comandante do exército do povo

romano, Marco Atílio Régulo, que ficou cativo voluntariamente em Cartago por causa de

religião como exemplo de homem com certa virtude que renunciara os bens corporais para

cumprir o juramento feito aos cartagineses de que voltaria de Roma caso não conseguisse

fazer a troca de soldados romanos e cartagineses444

.

De qualquer maneira, a genealogia traçada com elementos históricos e alegóricos

serve para mostrar o desenvolvimento das cidades terrena e celeste e o que cada uma delas

tem de peculiaridade: a celeste o amor a Deus e a terrena o desprezo d’Ele, desde a origem do

homem. A terrena usa o livre-arbítrio para praticar o mal enquanto a celeste o utiliza para o

bem, sendo a liberdade mesma um bem.

2.4 O paralelismo histórico-temporal das duas Cidades

No subtítulo anterior vimos a genealogia da Cidade de Deus confundida com o povo

hebreu e a continuidade dela nos cristãos, tendo por característica o amor. Por sua vez, a

cidade terrena caracteriza-se pela dominação, o que gera divisão na própria cidade e

dominação de alguns sobre outros de modo que “cada qual busca a própria utilidade e a

443 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 331. 444 Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 44-45.

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própria cupidez e a que o bem que apetecem não é suficiente para ninguém nem para todos,

por não ser o bem autêntico.”445

Agostinho considera que dois grandes impérios são a expressão máxima da cidade

terrena: os assírios no oriente e os romanos no ocidente, sendo que este surgiu depois do fim

do primeiro temporalmente. Ao analisar os acontecimentos, o pensador conta que os povos

dominados por esses impérios preferiam ter certa segurança e paz à própria liberdade446

. A

liberdade é sacrificada pela segurança legal e social.

Visivelmente, o filósofo cristão quer provar a realidade neste mundo das cidades

terrena e celeste. Para ele, a formação e ação dos Estados, a favor ou contra Deus,

desenvolvem-se ao longo da história da humanidade em maior ou menor grau. Tanto que para

descrever a Cidade de Deus utiliza a genealogia dos homens que viveram sem desprezar a

Deus e, ao final, foram representantes da liberdade e do amor de forma continuada na história.

Já para descrever a cidade terrena, Agostinho cita os impérios como sinais da

constituição dos Estados com o objetivo de subjugar os outros povos como política de ação

externa e, internamente, preferirem os bens inferiores aos superiores e usá-los

desordenadamente a tal ponto de transformar o hábito em vício de maneira a criarem uma

necessidade que afasta o homem dos bens superiores (virtudes) em prejuízo do bem comum

até a queda e ruína de si.

Por essa razão, a passagem mencionada acima fala em “própria utilidade”, “própria

cupidez” e “o bem que apetecem não é suficiente para ninguém nem para todos” para, na

prática, dominar no âmbito externo desmedidamente e para serem dominados pela escravidão

dos vícios no interno. Dominação e licenciosidade (desordem da liberdade) são a marca do

Estado terreno.

Agostinho cita447

a História do povo romano escrita por Marco Varrão para traçar a

linhagem dos romanos do reino dos siciônios, passando aos atenienses e destes aos latinos,

bem como o historiador romano Salústio que reconhece a contribuição da produção cultural

ateniense para o mundo que se desenvolvia política e filosoficamente, inclusive com a

fundação de Atenas. Este nome vem da deusa Minerva, que, em grego, se diz Athéna,

vencedora da eleição (as mulheres votavam à época) contra Netuno (água) por um voto (de

uma mulher). Não se conformando, Atenas foi castigada pelas águas (dilúvio de Deucalião) e

445 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 311. 446 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 312. 447 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 312.

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impôs às mulheres a pena de nenhum filho ter o nome da mãe, aboliu o voto feminino e lhes

retiraram o nome de atenéias448

.

Já Roma é considerada a segunda Babilônia no ocidente. A primeira Babilônia foi a

capital dos Assírios, o maior império já visto. Ambos dominaram os povos pela força com a

sucessão de vários governantes. A par disso, a Cidade de Deus caminhava com o nascimento

de Abraaão, sucedido pelo filho Isaac e este por Jacó que teve um filho chamado José. Tempo

depois, nasceu Moisés no Egito que libertara o povo da escravidão, sucedido por Jesus Nave.

Deste até a monarquia de Israel governada por Saul, o povo hebreu foi governado por juízes.

Na fase monárquica, Davi sucedeu a Saul, que fora sucedido por Salomão até a divisão do

reino no governo de Roboão.

Na época em que o povo hebreu foi governado por juízes, a Grécia instituiu

solenidades a vários deuses, como, por exemplo, festas (orgias e bacanais) em homenagem à

morte de Líber e das mulheres que o acompanhavam chamadas de bacantes ou mesmo da

fábula de Liceu que transformava homens (os árcades) em lobos (lykos)449

. Já à época do

reinado de Davi em Israel, a Grécia passou da monarquia ao governo dos magistrados para

governar a república.

Em relação ao povo latino, formou-se a dominação dos denominados silvanos. Esse

nome tem origem no nome Sílvio, primogênito de Enéias, no período em que Saul governava

em Israel . A eles são atribuídos a criação de acrescentarem ao próprio nome a alcunha de

“César” e “César Augusto”450

. No tempo de Salomão em Israel, os latinos fundaram Alba.

Posteriormente, na região do Lácio foi fundada Roma pelo avô de Rômulo (Numitor) que

governaram juntos a região451

impondo aos povos conquistados a mesma lei. A lei civil passa

a ser instrumento de dominação para que as regiões conquistadas sejam pacificadas. Nesse

sentido, a lei é o meio necessário para que a paz nos territórios seja equivalente à segurança.

No mesmo período da fundação de Roma, o rei de Judá era Ezequias e o de Israel Oseias. Este

prediz que Israel (gentios) e Judá se unirão sob o mesmo chefe como promessa da vinda de

448 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 318. 449 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 323 e 326. 450 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 329. 451 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 330.

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Cristo, bem como profetiza a ressurreição de Cristo no terceiro dia da mesma forma que o

profeta Amós452

.

Agostinho, para demonstrar a manifestação de Deus na história, narra o contato que

teve com o Procônsul Flaciano que lhe mostrara escritos da profetisa grega Eritréia, no tempo

de Rômulo em Roma, os quais “as letras iniciais dos versos compunham, por ordem, as

seguintes palavras: Iesoús Kreistós Theóu Hyiós Sotér, quer dizer, Jesus Cristo, Filho de

Deus, Salvador”453

, a indicar que a Cidade de Deus estava presente mesmo entre os gregos.

Durante o reinado de Rômulo em Roma e dos sete sábios (filósofos) gregos como

Tales de Mileto e Pítaco de Mitilene na Grécia (deram resumidos alguns preceitos morais para

o povo), as dez tribos de Israel foram dominadas pelos caldeus e as duas tribos de Judá

ficaram na Judéia, até serem dominadas no reinado de Sedecias entre os judeus e de Tarquínio

Prisco entre os romanos. Naquela época, surgiram físicos como Anaximandro, Anaxímenes,

Xenófanes e Pitágoras454

.

O paralelo histórico entre a Cidade de Deus e a dos homens, a primeira representada

pelos hebreus e a segunda pelos impérios romano e assírio, é tão evidente, que Agostinho

anota com vigor o mesmo marco temporal da libertação dos judeus do cativeiro na época de

Ciro e Dario, governantes dos persas, assírios e caldeus, e da queda do domínio dos reis em

Roma com o desterro de Tarquínio. O Estado romano floresce e o império assírio tem seu fim.

Roma, a segunda Babilônia, é o centro do mundo de onde Cristo nascerá na Judéia sob o julgo

da dominação do povo hebreu pelos romanos.

Podemos notar que Agostinho descreve o nascimento e morte de pessoas e Estados

como sinal da presença da Cidade de Deus e da terrena nos acontecimentos históricos. Não

por outro motivo, o legado que Agostinho deixa para a cultura do mundo é a junção entre a

filosofia grega, o direito romano e tradição cristã.

A narração histórica e teológica do povo hebreu e o desenvolvimento dos impérios

humanos (egípcio, assírio e romano) repercutem no conhecimento sobre o que é verdade

sobre Deus. Manifestar-se (apparuit) significa tornar presente entre os homens a luz da

Verdade. Aqui também aparece o filósofo cristão, a misturar filosofia e teologia novamente,

para dizer que Cristo mostrou que é pura bondade. Essa visão repercute na filosofia sobre os

bens criados, os quais são bons por natureza, na doutrina sobre o livre-arbítrio, na verdade

452 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 337. 453 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 332. 454 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 335.

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sobre o conhecimento intelectivo e de conduta, na teoria da iluminação, na graça como auxílio

para a prática da lei, a lei natural como caridade e restauração da ordem e no Estado ético-

político.

A manifestação de Deus na história, segundo Agostinho, acontece com o nascimento,

morte e ressurreição de Cristo e salvação das pessoas. Os profetas Oseias, Amós, Isaias,

Miquéias, Jonas, Joel, Abdias, Naum, Habacuc, Jeremias, Sofonias, Daniel, Ezequiel, Ageu,

Zacarias e Malaquias455

já assim profetizavam entre o povo hebreu. Após a vida desses

profetas surgiram na Grécia os grandes filósofos (este nome teve origem em Pitágoras de

Samos segundo Agostinho) como Pitágoras, Sócrates e Platão. Agostinho coloca esse fato

pela localização temporal para dizer que a filosofia pagã surgiu após as profecias mais antigas

do povo hebreu456

. Da mesma forma critica o conhecimento egípcio de modo a enaltecer o do

povo hebreu ao asseverar que tinham conhecimento de astrologia após Ísis ter introduzido o

ensinamento das letras por volta de dois mil anos, e, não, há cem mil anos como diziam na

época457

.

O pensador cristão chega a mencionar que as filosofias existentes à época (se o mundo

teve princípio ou seria eterno ou se há vários mundos, se a alma era mortal ou imortal, se a

alma voltaria para corpos terrestres ou não, se o supremo bem estava no corpo ou na alma ou

em ambos) formam a confusão da cidade terrena (diabólica) de modo a perturbar os

governantes nas escolhas de tão variáveis correntes que professam o meio para encontrar a

vida feliz, a ponto de levar os homens a combate458

. Já entre o povo israelita os profetas não

divergem. A mensagem é a mesma. Para confirmar esse fato, Agostinho lembra o caso em

que as Escrituras foram traduzidas do hebraico para o grego por setenta e dois tradutores (seis

de cada tribo) hebreus, a pedido do rei egípcio Ptolomeu Filadelfo que queria dar destaque

para os textos na sua biblioteca, a provar a fidelidade dos textos pela coincidência entre as

palavras e os sentidos que os tradutores a atribuíram mesmo ao fazerem a tradução de modo

separado um do outro459

. Essa versão das Escrituras é conhecida como a versão dos Setenta.

Mais tarde Jerônimo traduziria as Escrituras do hebraico para o latim. Isso indica como a

455 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 335-348. 456 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 349-350. 457 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 352. 458 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 353-354. 459 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 355-356.

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cidade terrestre se dividia em meio à confusão e como a de Deus era concorde com base no

valor da fé.

Quando reinava o primeiro rei estrangeiro na Judéia, Herodes, o Imperador César

Augusto decretou um período de paz no mundo após a mudança do regime constitucional

romano na mesma época em que nascera Cristo460

. Para Agostinho os cidadãos da Cidade de

Deus são aqueles que aceitam Cristo, desde nações estrangeiras até os israelitas. A Cidade

celeste e a terrena estão misturadas, afligidas pelos mesmos males e usando por igual os bens

temporais, até o fim dos tempos461

e isso a história demonstra.

2.5 Os objetivos das cidades terrena e celeste: paz e felicidade

Nos subtítulos 3.3 e 3.4 mostramos que a intenção de Agostinho era demonstrar a

existência e o desenvolvimento das duas cidades do ponto de vista alegórico e temporal

através da narração do povo hebreu e dos impérios surgidos no mundo, que se pautaram pela

prática do bem ou do mal, em busca de determinados bens (objetos) na história da

humanidade segundo a tensão dialética entre dominação e liberdade. A prática do bem nos

leva à perfeição e a do mal à nocividade e destruição nas esferas pessoal e estatal.

Já o Livro XIX da obra “Cidade de Deus” é o ponto filosófico central da teoria

agostiniana do Estado ético-político. Esse livro é o mais significativo em termos de doutrina

sobre um Estado justo (paz e felicidade). A Cidade de Deus enquanto peregrina neste mundo

deve refletir a imagem de um Estado fundado na ética. Para argumentar em favor da doutrina

cristã de paz e felicidade, o pensador refuta as filosofias consideradas errôneas ou incompletas

por ele. A busca pela felicidade está em alcançar o bem e se afastar do mal. De uma forma ou

de outra, as filosofias buscam o bem e evitam o mal para chegarem à felicidade, a depositá-la

no corpo, na alma ou em ambos, muito embora estejam incompletas e, frequentemente,

incorram em erros.

Agostinho classifica os fins de bem e mal em: o soberano bem e o soberano mal.

Assim conceitua os fins:

O fim de nosso bem é aquele objeto pelo qual se devem apetecer os demais e

apetecê-lo por si mesmo. E o fim do mal, aquele pelo qual se devem evitar os

demais e evitá-lo por si mesmo. Desse modo, por fim do bem não entendemos fim

460 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 360. 461 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 372.

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consuntível até o não ser, mas perfectível até a plenitude, e por fim do mal, não o

que o destrua, mas o que o leve ao mais alto grau de nocividade.462

Agostinho pretende provar o erro de certas filosofias no âmbito da autoridade divina e

da razão. A razão serve para convencer os não-crentes. O pensador cristão tem a certeza de

que o entendimento de felicidade das falsas filosofias se funda na infelicidade desta vida, cujo

número chegava em mais de duzentos e oitenta e oito entendimentos segundo Marco Varrão.

Todas essas correntes partem da combinação de quatro coisas que o homem busca

naturalmente: o prazer (movimento agradável do corpo), o descanso (exclusão do sofrimento),

ambos juntos (denominado simplesmente prazer por Epicuro) e os princípios da natureza

identificados no corpo (integridade, sanidade e incolumidade) e na alma (sentido e

intelecto)463

.

As filosofias buscam alcançar a felicidade a partir desses quatro elementos. Esses não

são ensinados, não precisam de conhecimento e não precisam sofrer qualquer juízo ético, a

indicar que são bens que antecedem qualquer conhecimento ou ensinamento, pois naturais ao

homem. Esses elementos seriam propriedades humanas. O prazer pode estar sujeito, anteposto

ou unido à virtude; assim como também o descanso, o prazer e o descanso e os princípios

naturais. Cada uma dessas possibilidades representa as opiniões existentes. A partir de quatro

elementos associados à virtude, surgem doze combinações ou doze filosofias diferentes. O

número doze duplica se inserirmos a variável social, segundo a qual cada corrente deve

filosofar por si mesma ou também pelas outras, a somar vinte e quatro. Ao inserirmos a

variável verdade (estóicos) ou verossimilhança (neoacadêmicos) do que afirma cada uma das

correntes, chegaremos ao número quarenta e oito. Novamente, ao adicionarmos a variável

segundo o modo de aderir a essas correntes, ao modo de outros filósofos ou dos cínicos, o

número de correntes filosóficas chega a noventa e seis. Os homens podem pertencer a

quaisquer destas correntes levando vida ociosa (estudo), de negócios (estudo mais governo da

república) ou de forma mista (ora estudando, ora governando). Com essa tríade, o número de

correntes filosóficas chega a duzentos e oitenta e oito464

.

Agostinho descreve que Marco Varrão reduziu essas correntes nas doze primeiras,

pois nestas se procura o soberano bem. Posteriormente, considerou apenas o elemento inicial

princípios da natureza, visto que implicam prazer e descanso. Isso contabiliza três

462 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 375. 463 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 375. 464 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 376-377.

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possibilidades: “apetecer os princípios da natureza pela virtude, a virtude pelos princípios da

natureza ou ambos, a virtude e os princípios da natureza por si mesmos”465

. Marco Varrão,

cujo mestre foi Antíoco, opta pela última alternativa e afirma que a felicidade está no homem,

nem em Deus nem nos seres irracionais. Como o homem é corpo e alma, deve buscar os bens

da alma e do corpo. O ponto central desta filosofia é a virtude surgir dos princípios da

natureza – os quais incluem o prazer e o descanso – de modo que o homem a constitui como

“fruto de aprendizagem”466

a partir de si. A virtude subsiste no homem e se encontra nesta

vida.

O bispo de Hipona é categórico em afirmar que as filosofias se referem à opinião dos

homens. Segundo ele, as metas (fins) dos bens e dos males do pensamento cristão são

respectivamente a vida e a morte eternas. Para conseguirmos o soberano bem, devemos bem

viver. Vemos, então, que a vida eterna está ligada com o bem viver. O bem viver não deve ser

a virtude entendida pelos homens por estar sujeita à mutabilidade do tempo e a uma felicidade

apenas terrena. O corpo pode sofrer deformidade, enfermidade, o peso e outros males. Já a

alma possui como bens primários o sentido e o intelecto capazes de perceberem e

compreenderem a verdade, mas sujeitos igualmente à defectibilidade, por exemplo, na surdez

e na loucura467

.

A virtude é o “bem mais útil”468

para o homem viver retamente (bem viver) e, assim,

“reclama para si o primeiro posto entre os bens humanos”469

, muito embora chega a

reconhecer que se trata de “fruto tardio da ciência”470

ao não entrar no rol dos princípios da

natureza.

Parece haver uma contradição lógica de entendimento de Agostinho em relação à

virtude, a qual estaria entre os bens superiores conforme certa ordem da criação a princípio,

mas, ao mesmo tempo, seria fabricada a partir da ciência humana. Em capítulo anterior

mencionamos as autênticas virtudes para Agostinho como a prudência, a fortaleza, a

temperança e a justiça. A prudência é “o conhecimento daquelas coisas que precisam ser

465 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 379. 466 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 380-381. 467 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 382. 468 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 385, 469 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 383. 470 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 383.

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desejadas e das que devem ser evitadas”471

. A fortaleza é “a disposição da alma pela qual nós

desprezamos todos os dissabores e a perda das coisas que não estão sob nosso poder”472

. A

temperança é “a disposição que reprime e retém o nosso apetite longe daquelas coisas que

constituem uma vergonha o ser desejadas”473

. A justiça é “a virtude pela qual damos a cada

um o que é seu”474

.

No Livro XIX, Capítulo IV, da obra “Cidade de Deus”, Agostinho diz que as virtudes

servem para dar testemunho da infelicidade humana de maneira que a temperança põe limite à

libido para que a razão não consinta na prática de crimes; a prudência é útil para discernir o

bem do mal e, então, indica o próprio mal no mundo; a justiça para dar a cada um o que é seu,

a indicar a desordem estabelecida e a fortaleza é útil para dar paciência ao homem diante dos

males.

Na verdade, o pensamento agostiniano considera a virtude como a ciência de viver

retamente, pois é capaz de encontrar a ordem justa e procedente da natureza a partir do

próprio homem que tem na razão475

a possibilidade de conhecer a Verdade. Enquanto essa

ciência estiver presa no homem – como o fez Varrão e Epicuro –, as virtudes são enganosas e

soberbas ao terem por fim a felicidade terrena. As virtudes – a arte de viver retamente – são

autênticas quando tiverem por fundamento racional a Verdade, isto é, quando estiverem além

do corpo e da alma do homem. Para tanto, as virtudes são bens dispostos com certa ordem

para serem utilizados para o homem viver retamente de modo a constituírem em meios aptos

para a verdadeira felicidade. Com efeito, o soberano bem é aquele “perfectível até a

plenitude”476

. As palavras tiradas do Livro XIX, Capítulo X, da obra “Cidade de Deus” são:

Quando nós, mortais, entre a enfermidade das coisas, possuímos a paz que pode

existir no mundo, se vivemos retamente, a virtude usa com retidão de seus bens;

mas, quando não a possuímos, a virtude faz bom uso até mesmo dos males de nossa

condição humana. A verdadeira virtude consiste, portanto, em fazer bom uso dos

bens e dos males e em referir tudo ao fim último, que nos porá na posse de perfeita e

incomparável paz.477

471 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira.5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 57. 472 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 58. 473 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 58. 474 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 58. 475 Já vimos o papel que a graça exerce no homem. O auxílio divino é essencial para o homem. Vimos também

como Agostinho trabalha com o binômio Deus/homem. 476 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 375. 477 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 392.

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É significativo o pensamento agostiniano a respeito da virtude como bem útil no

mundo para que possamos atingir a paz. A Cidade de Deus, peregrina neste mundo,

experimenta dessa paz por meio das virtudes que são o caminho para a perfeição até a

plenitude da Cidade de Deus, felicidade completa.

O que o filósofo pretende é elevar a felicidade a patamares em que nenhum mal é

capaz de desviar esse objetivo. O bem viver é o meio para se chegar a essa felicidade. Por

isso, as virtudes consideradas como bens, que advêm dos princípios naturais, são capazes de

alcançar a felicidade terrena; tão passageira como eles. Na cidade terrena, somos chamados

felizes quando gozamos de paz tal qual podemos gozar nesta vida478

.

Da mesma maneira em que observa a incompletude das virtudes meramente humanas

(dos princípios naturais) para a conquista da felicidade verdadeira, reconhece a dificuldade

existente na vida social para alcançá-la. Como vimos, Agostinho considera o Estado uma

associação de homens unidos por um vínculo comum. Essa união é antevista simbolicamente

com a criação do segundo homem (Eva) a partir do primeiro (Adão). Esse elemento da união

entre os homens é considerado um bem de modo que todos os homens devem viver de acordo

com o vínculo da concórdia ordenada. Mesmo assim, Agostinho, sabendo que “a vida do

sábio é vida de sociedade”479

, sabe que os laços sociais são permeados de injúrias, suspeitas,

inimizades, guerras, de modo que a paz é transitória e, consequentemente, a felicidade terrena

é passageira. Isso se passa no âmbito dos três graus de sociedade humana: casa, cidade e o

mundo480

. Vimos como houve guerras externas e civis dominaram o mundo e as cidades a

partir da diversidade de línguas. A infelicidade é verificada neste mundo de forma inconteste

mesmo nas guerras declaradas justas em que uma sociedade se protege contra a injustiça de

outro. Igualmente, a amizade em casa, na cidade ou entre os Estados é insegura a ponto de

confundir o amigo com o inimigo481

.

A infelicidade é tal que pessoas inocentes são vítimas de erros dos juízos humanos que

se fazem frequentemente na cidade terrena na medida em que a sociedade humana força e

obriga o juiz a julgar, mesmo que em ignorância. Nesse caso, não há maldade do juiz que

pratica a justiça com ignorância invencível. De qualquer modo, a justiça humana é falha ao

permitir que pessoas inocentes, que não provam suas declarações, sejam condenadas por

478 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 392. 479 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 385. 480

Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 389. 481 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 390.

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juízos alheios que testemunham a mentira para o crime não ficar impune. Nesse aspecto, a

justiça humana é miserável ao não conseguir saber a verdade482

.

Já a felicidade verdadeira é a eterna que independe das vicissitudes dos males, mas,

dependem das virtudes autênticas fazer bom uso dos males do mundo em direção a ela. A

plenitude da felicidade só é alcançada na Cidade de Deus na vida eterna. Agostinho rechaça,

então, as filosofias sobre o entendimento da virtude que não sejam compatíveis com esse

objetivo de perfeição e plenitude na medida em que a felicidade terrena se funda na

infelicidade desta vida (terrena). Neste mundo as virtudes dão testemunho dos vícios e dos

males; na Cidade de Deus as virtudes terão a eterna paz. A ética agostiniana é, nesse sentido,

dirigida para os fins últimos do homem (salvação) e do Estado (Cidade de Deus) e, por isso,

se diz escatológica.

Agostinho diz que a Cidade de Deus encontrará o soberano bem (paz) na vida eterna.

Neste mundo, todos os seres aspiram à paz. Mesmo os que guerreiam querem vencer para

estabelecer a paz. Podemos dizer que a paz é o fim da guerra. O pensador constata o erro em

constituir a paz segundo sua vontade humana, o que equivale a dizer a imposição de

condições dos vencedores aos vencidos conforme o entendimento próprio. Os vencidos, por

sua vez, submetem-se ao vencedor por medo ou por amor para estar em paz com ele de modo

que “todos desejam, pois, ter paz com aqueles a que desejam governar com seu arbítrio”483

A paz humana não é considera paz para o filósofo cristão, pois perverte a ordem das

coisas arbitrariamente. Do conceito de paz, como fim do Estado, constitui-se o elemento

primordial de formação do Estado: a concórdia ordenada, que é o vínculo de união que une os

homens no Estado de maneira a permitir a paz. Essa concórdia é ordenada por seguir a lei da

ordem que é “a disposição que às coisas diferentes e às iguais determina o lugar que lhes

corresponde”484

. A paz é a consequência da ordem. Assim,

a paz do corpo é a ordenada complexão de suas partes; a da alma irracional, a

ordenada calma de suas apetências. A paz da alma racional é a ordenada harmonia

entre o conhecimento e a ação, a paz do corpo e da alma, a vida bem ordenada e a

saúde do animal. A paz entre o homem mortal e Deus é a obediência ordenada pela

fé sob a lei eterna.485

482 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 387-388. 483 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 394. 484 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 396. 485 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 396.

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No trecho acima se observa que a sabedoria consiste na harmonia entre o

conhecimento e a ação para o correto agir. Parece haver uma estreita relação entre essa ética e

a lei eterna na medida em que aquela tem seu ponto de referência na verdade. A Verdade

ordenou os bens para que sempre exista algum bem na natureza. De fato, a ordem espelha a

bondade no ato da criação, isto é, a lei natural. Se há a desordem criada pela vontade – no

estabelecimento da paz ao talante humano -, o poder da justiça não lhe é subtraído. Os bens

dispostos devem ser bem utilizados pelos homens (a paz temporal, a paz na conservação e

união das espécies, os sentidos, etc.) para serem dignos de receberem bens melhores. O

conhecimento é parte essencial para a vida e os costumes. Sem ele, a ação torna-se

desordenada.

Nessa medida, o bispo de Hipona esclarece que “o uso das coisas temporais relaciona-

se, na terra, com a obtenção da paz terrena e, na Cidade de Deus, com a obtenção da paz

celeste”486

para exprimir a diferença de natureza entre as duas cidades – dois tipos de

sociedades de homem – refletidas nos fins últimos do Estado: a paz terrena e a paz celestial.

A paz terrena o homem é capaz de alcançar por si próprio; a paz eterna necessita da

autoridade e do auxílio divino para agir com liberdade sem errar. Neste ponto, a teologia

física de Agostinho relaciona fé e razão. A fé implica obediência a Deus como forma de obter

o auxílio divino para que o entendimento não se desfaleça em erros que torne o arbítrio

submisso aos males, e, não, obediente à ordem. A obediência do homem a Deus, ou seja, do

ser à Verdade, ensina a lei eterna ao homem: o amor a Deus, ao próximo e a si mesmo de

modo que a ordem a ser seguida é não fazer mal a ninguém em primeiro lugar e fazer o bem

quem se possa. A paz, a ordenada concórdia, é obtida dessa forma de modo que não se deve

ordenar com desejo de dominação, mas por dever de caridade487

. A lei terrena é aquela que

domina; e a celeste, aquela que ama.

A liberdade segundo a ordem natural serve para que o homem domine os seres

irracionais. A dominação do homem pelo homem não faz parte da ordem natural. Deus não

criou o homem escravo de outro homem nem de si mesmo pela força do pecado. Nenhum tipo

de domínio, seja dos servos em relação aos seus senhores, seja do homem em relação às

paixões, vêm da ordem natural. Contra a lei da dominação, Agostinho apresenta a caridade

como instrumento para aniquilar o poder humano e conceder a liberdade. Algumas críticas

referentes a uma passagem bíblica do apóstolo São Paulo que aconselha os escravos a

486 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 398. 487 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 399.

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servirem os senhores de coração e de bom grado tem tido uma interpretação em direção à

aceitação da escravidão pelo Cristianismo. Agostinho, à época, rebatia essas acusações contra

os cristãos e explicava que o sentido preciso era o de libertar o homem enquanto homem até

que a injustiça se desfizesse. O pensador resume o raciocínio nos seguintes termos:

Quer dizer, se os donos não lhe dão liberdade, tornem eles, de certa maneira, livre

sua servidão, não servindo com temor falso, mas com amor fiel, até que passe a

iniqüidade e se aniquilem o principado e o poder humano e Deus seja todo em todas

as coisas.488

A igualdade de tratamento em questões temporais existia, mas em relação às

espirituais não havia distinção entre os escravos e os filhos de maneira a repreender quem

desobedecesse e quebrasse a ordem estabelecida. A concórdia ordenada na casa deveria

implicar na paz cívica entre os governantes e cidadãos489

segundo a visão antiga. O que se

quer demonstrar é a justiça espiritual que havia no domínio humano.

Da constituição do Estado, composto dos dois tipos de sociedade de homens, emanam

leis civis que regulam a vida em sociedade para que haja um mínimo de “concerto das

vontades humanas”490

de acordo com os interesses dos bens necessários de tal modo que se

forme a concórdia entre os cidadãos e, assim, advenha a paz terrena. É muito salutar que

Agostinho reconheça a obediência dos cidadãos às leis civis, pois o Estado é apto a satisfazer

a paz terrestre. A Cidade de Deus, enquanto peregrina, “protege e deseja o acordo de vontades

entre os homens (...) deixando a salvo a piedade e a religião, e ministra a paz terrena à paz

celeste, única digna de ser e de dizer-se paz da criatura racional”491

. Esse é um ponto comum

em que os cidadãos que professam a fé e os que não a aceitam estão de acordo. Não há na

percepção agostiniana de Estado um fundamentalismo religioso centrado numa teocracia; o

que há é uma tentativa de se chegar a uma ética apoiada em um fundamento racional que

embase as leis civis. Para o pensador, a lei natural como predicado da lei eterna é o

fundamento verificado na ordem da natureza.

A discordância entre os dois tipos de sociedades reside na acepção que carregam

quanto ao papel da religião no Estado. Agostinho percebe que a cidade terrena tende a eleger

certos bens como fins últimos do Estado, como, por exemplo, o dinheiro, a ciência, o vinho,

488 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 400. 489 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 401. 490 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 402. 491 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 402.

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entre outros, como verdadeiras leis religiosas Por sua vez, a cidade celeste parece não se

importar com a diversidade de leis, costumes e instituições para o estabelecimento da paz

terrena, desde que o Estado não proíba o culto da verdadeira religião. Aqui existe uma

dialética de implicação necessária entre o Estado e os dois tipos de sociedades de homens que

perfazem os cidadãos. Essa dialética de implicação consiste nos dois tipos de sociedades

respeitarem as leis que regulamentam a concórdia entre os cidadãos, a sociedade que vive

segundo a fé suportar as violências e perseguições dos que têm opinião contrária e o Estado

não impedir o culto da religião cristã.

Observa-se que, o elemento fé na doutrina de Agostinho antes de prejudicar o homem

contribui para sua formação na medida em que: (i) reconhece a possibilidade da razão e do

espírito terem um conhecimento certo, embora limitado pela corrupção do primeiro pecado,

(ii) não afasta a importância dos sentidos que manifestam as realidades evidentes para o

conhecimento do espírito e (iii) coloca em dúvida certas afirmações que não decorrem nem

dos sentidos nem da razão nem das Escrituras492

. Assim, a fé cristã é racional ao trabalhar

com elementos que possam ser aptos ao conhecimento da verdade que nos trazem a certeza.

Segundo o filósofo, os elementos retro mencionados afastam-nos das falsas doutrinas que nos

trazem incertezas.

A fé cristã significa o amor à verdade e o dever de caridade ao próximo493

. Por isso,

não é um elemento prejudicial para a sociedade. A verdade e o amor são a tônica da Cidade de

Deus. Agostinho nos ensina a aplicá-la aos gêneros de vida que o homem pode seguir

segundo os costumes. No ócio se deve buscar o conhecimento da verdade, não a inação; na

ação a honra e o poder são instrumentos úteis para o trabalho que propõe a justiça e

incolumidade dos subordinados, não a vaidade do poder e da honra.

Com todo esse entendimento de Estado justo cristão baseado na paz eterna e na prática

das virtudes autênticas, Agostinho transportará seu raciocínio filosófico para o Estado a partir

da definição de república romana extraída do livro “Sobre a República” de Cícero em que se

discute sobre governar com ou sem justiça com o intuito de dizer que nunca houve república

em Roma.

O que Agostinho pretende é desqualificar de justo o Estado que não se funda sobre

bases da verdadeira justiça de modo que a fé e a virtude cristã sirvam de parâmetro para julgar

492 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 403. 493 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 404.

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as instituições humanas e afirmar se estão ou não conforme a lei natural, consequência da lei

eterna.

A definição de Cícero é a de que a república “é coisa do povo”494

, considerado a

“sociedade fundada sobre direitos reconhecidos e sobre a comunidade de interesses”495

governada com justiça. Agostinho observa que a república romana nunca foi do povo, pelo

fato de que o direito se fazia sem justiça e a concepção de direito como o que é útil ao mais

forte tornava as instituições iníquas. Para ele, o direito emana da justiça e onde não há

verdadeira justiça não há direito reconhecido e, assim, não existe sociedade de homens com

direitos reconhecidos, sendo as pessoas apensas “um conjunto de seres”496

. Nas palavras do

pensador: “Se, por conseguinte, a república é a coisa do povo e não existe povo que não esteja

fundado sobre direitos reconhecidos e não há direito onde não há justiça, segue-se que onde

não há justiça não há república”497

.

O raciocínio acima de Estado a partir da verdadeira justiça permite termos um juízo de

justo e injusto aplicado a qualquer Estado na história, uma vez que se funda racionalmente em

um conceito objetivo de justiça. A fórmula da justiça que dá a cada um o que é seu tem a

violação máxima quando o homem se afasta de Deus e, assim, não lhe rende obediência, de

modo a ocasionar a desordem da relação em que “quando a alma está submetida a Deus,

impera com justiça sobre o corpo e, na alma, a razão submetida a Deus, manda com justiça a

libido e as demais paixões”498

. A ocorrer a desordem no homem, a justiça desaparece nele e

na sociedade que é uma associação de homens semelhantes.

Para Agostinho a desordem no Estado é refletida diretamente na desordem do Estado.

Não há ordem no homem se não está submetido a Deus e, por isso, o Estado não deve impedir

o verdadeiro culto a Deus, sob pena de causar uma desordem na própria sociedade.

O pensamento agostiniano é centrado em Deus ao modo cristão como a forma mais

eloqüente de entendimento capaz de ser verdadeiro do ponto de vista da razão e da fé. Tenta

comprovar esse fato por meio de personagens que refletem correntes diversas e, ao mesmo

tempo, chegam em um ponto comum, a começar por Abraão que recebeu a promessa de

494 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 405. 495 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 405. 496 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 406. 497 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 406. 498 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 406.

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serem abençoadas as suas descendências; seguido por Varrão, sábio romano, que via em

Júpiter o deus dos deuses e, ainda, o filósofo Porfírio que mencionava o Grande Deus a partir

do oráculo dos deuses, inclusive Apolo, que afirmava499

a grandeza do Deus dos judeus. O

argumento de Agostinho é histórico e de autoridade ao mesmo tempo, a pensar que a

concretização de todos as expressões das correntes retro mencionadas realizou-se com a

pessoa de Cristo no mundo. O que antes era percebido pela fé e pela razão se unirão em uma

só pessoa, condenada injustamente embora fosse o próprio Deus.

Diante disso, o contorno que Agostinho imprime à fé cristã é o de contribuir para a

justiça no Estado por meio do homem que é obediente a Deus de modo que “a alma imperará

fielmente e com ordem legítima sobre o corpo e a razão sobre as paixões”500

e,

consequentemente, espalhará a lei divina, de amor a Deus e ao próximo, e da lei natural, de

não fazer ao outro o que não queremos que nos seja feito, na sociedade de homens para que

esteja fundada sobre direitos reconhecidos e comunidade de interesses com o desiderato de

formar uma república em que haja um povo realmente que a constitua e, que, por fim, possa

denominar a república de coisa do povo.

Da mesma forma, Agostinho analisa o conceito de povo como sendo “‘o conjunto de

seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos amados’”501

para afirmar que

quando se amam os vícios, como a guerra, a concórdia tende a romper e a se corromper na

sociedade de modo a sobrepô-los à razão, morada da lei natural, como aconteceu em Roma,

Atenas, Babilônia e Egito. Em outras palavras, a prática dos vícios despreza a lei natural e

ocasiona o rompimento do elemento que dá unidade social, a concórdia.

Não obstante, Agostinho aconselha a Cidade de Deus, peregrina neste mundo, a querer

e a desfrutar da paz terrestre. A paz terrestre é comum a todos os homens. Ao lado desta,

existe a paz privativa do povo da Cidade de Deus que é a eterna. Mesmo essa paz é

conseguida com muitas lutas por haver uma constante tensão entre a razão e as paixões de

maneira que não a torna perfeita neste mundo. O soberano bem da felicidade na paz só será

atingido na plenitude da Cidade de Deus na vida eterna, onde as paixões não existirão. A paz,

por fim, atingida é ordenada e “traz a estabilidade e a submissão do inferior ao superior”502

.

O final da cidade terrena será a dor e o tormento da guerra entre a paixão e a vontade. Esses

499 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 404. 500 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 412. 501 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 413. 502 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 501.

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dois fins diferentes para cada uma das cidades com descrições do juízo final são expressos por

Agostinho de forma teológica exclusivamente nos Livros XX, XXI e XXII da obra “Cidade

de Deus”, o que escapa à abordagem que pretendemos neste trabalho de delinear o formato do

Estado ético e, por isso, não teceremos maiores considerações a respeito.

Reservamo-nos a dizer que Agostinho submete as duas cidades – terrena e celeste – ao

mesmo julgamento final. Os homens dos dois tipos de sociedades serão julgados pela mesma

Verdade. Isso indica que não seremos julgados por aquilo que fomos capazes de conhecer por

nossa razão, limitada e finita, mas se fomos partícipes da lei eterna por meio da lei natural,

comum a todos os homens, capaz de trazer a felicidade como a paz ordenada entre o inferior e

o superior, seja pela contemplação, pela autoridade, pelo intelecto ou pela conduta.

A sociedade de homens que viveu segundo a carne terá a condenação eterna503

, não

terá oportunidade de buscar o que não procurou nesta vida504

, não encontrará a unidade com

Deus se não a encontrou neste mundo505

, não importará se se disseram cristãos católicos506

nesta vida, e não lhe servirá o oferecimento de esmolas se andava em erro507

. Esse é o

resultado por ter o homem utilizado o livre-arbítrio, atributo natural do intelecto, para violar a

lei divina e abandonar a Deus e incidir em erro de modo a trazer a infelicidade. Essa

sociedade de homens reconhece o Estado bem organizado como um fim em si mesmo capaz

de conservar e garantir a subsistência de modo que tenha duração eterna neste mundo508

,

mesmo que tenha que se utilizar da guerra para preservar a fidelidade ou a incolumidade.

A Cidade de Deus, de outro modo, reconhece que foi criada para possuir e contemplar

a Deus, fonte de felicidade de modo a viver em meio aos males como testemunha de que a

natureza foi criada boa e poderia desses advir algum bem pelo bom uso do livre-arbítrio com

o a graça divina enquanto peregrina nesta terra, não lutando pela “subsistência temporal, mas,

ao contrário (...) para lograr a vida eterna”509

com a esperança no amor, a instrução e a lei510

,

503

Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 509. 504 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 513, 505 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 514. 506 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 516. 507 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 520. 508 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 535. 509 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos: .Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 534. 510 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 563.

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sendo esta conhecida pela razão e inteligência “para a percepção da verdade e amor ao

bem”511

e, então, capaz de adquirir as virtudes para combater os erros, para, por fim, ter a paz

eterna pela visão de Deus (Verdade e Amor) após a ressurreição.

511 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 569.

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CONCLUSÃO

Não elaboraremos uma lista de conclusões tiradas de cada um dos capítulos em que os

argumentos foram expostos, mas, sim, apresentar a obra “A Cidade de Deus” como fonte de

pressupostos filosóficos da noção de Estado inserida em uma realidade, mas, ao mesmo

tempo, transcendente a ela. Percebemos o esquema mental da obra “A Cidade de Deus” a

partir de categorias teóricas e fáticas. Assim, pretendemos apresentar o Estado ético-jurídico

agostiniano como a construção de um pensamento para entendermos a importância de um

sistema filosófico a partir de uma ontologia posta, de um lado, como argumento de defesa

para os que acusavam os cristãos de prejudicarem a comunidade política e de lhes atribuírem

a responsabilidade pela ruína de Roma (Império romano do Ocidente) e, de outro, como ideia

de uma sociedade justa através dos tempos.

Esse trabalho, como se expôs no início, se fundamenta nos pressupostos filosóficos do

Estado ético-jurídico agostiniano: (1) criação, (2) ordem, (3) livre-arbítrio e (4) graça. Foi a

partir desses pressupostos que Agostinho defendeu o cristianismo contra a acusação de ser o

responsável de prejudicar a comunidade política.

A partir desses quatro fundamentos filosóficos, operou-se uma síntese do pensamento

de uma sociedade justa que em nada prejudica o Estado, antes é apta a tornar as virtudes

cívicas em instrumentos úteis para a concretização do bem comum. As circunstâncias

históricas e pessoais que envolveram Agostinho permitiram-lhe refletir a partir do estudo do

ser com reflexos, notadamente, nos campos do Estado e das leis considerados bens (em

contraposição à noção de mal agostiniano) que proporcionam a união dos cidadãos, de forma

a entender o poder como meio positivo para o bem comum.

A segurança (paz), que o Estado proporciona, é algo desejado pelos cidadãos,

inclusive pelos cristãos que devem cumprir as leis civis. A lei civil, mutável e temporal, é um

bem para organizar a sociedade, muito embora não seja capaz de per si garantir uma

sociedade justa na medida em que pode ser editada pelas influências de poderosos influentes

que objetivam justificar os próprios males (sentido amplo) ou, apesar de moralmente boa,

servir como estímulo à própria violação ou ser mal usada. Tanto que as leis civis não foram

capazes de manter o Império romano do Ocidente. Roma vivia uma decadência dos costumes

e, por isso, se dizia que isso era um inimigo muito maior por estar dentro do cidadão do que

qualquer outro externo que pudesse romper os muros da cidade romana. A visão realista de

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Agostinho permitiu verificarmos o Estado e as leis civis como projetos humanos marcados

pelo transitório e pelo mutável.

A par do Estado ético-jurídico e das leis civis, existem a “Cidade de Deus” e a lei

natural que atravessa os tempos em um convívio contínuo com aqueles na visão agostiniana.

O filósofo demonstrou que certas verdades, constitutivas de sua ontologia, permanecem de

forma contínua e imutável. A cidade celeste é uma alegoria de sociedade justa e feliz

misturada com a sociedade terrestre – por isso, real - que se dirige linearmente para um fim de

plena justiça e felicidade (escatologia). Da mesma forma, existe uma lei natural racional na

consciência de cada cidadão através dos tempos e em diversos lugares que está acima do

poder humano em alterá-la apesar de poder ser rejeitada por vontade de cada qual de maneira

a ocasionar um agir contrário à natureza em diversos tempos e lugares. Não há, também, nas

obras agostinianas um rol exaustivo de direitos fundamentais aos moldes modernos e nem

pareceu ser essa a intenção de Agostinho.

Agostinho enxergou a lei natural racional como expressão da lei divina (lei do amor a

Deus e ao próximo), um verdadeiro postulado ético de que não façamos ao outro o que nós

não queremos que nos seja feito, de não retribuirmos o mal com o mal e como elemento para

conservação da ordem. Antes de serem apenas categorias teóricas, o filósofo cristão as põe

como primados da conduta dos cidadãos, a partir de problemas reais, especialmente, da justiça

punitiva e das relações externas de guerra e paz, capazes de fortalecer a concórdia bem

ordenada - elemento constitutivo de Estado – e a paz – objetivo do Estado -, como exigências

de uma transformação cristã das virtudes cívicas a patamares de decência política maiores das

que havia na época de Cícero, as quais são elogiadas por Agostinho.

É por esse percurso que o pensador defendeu os cristãos acusados de prejudicarem o

Estado na medida em que em nenhum templo sagrado cristão havia a incitação à violência

para romper o vínculo de união dos cidadãos, antes existiam palavras que trouxeram

dignidade ao homem de considerar o outro como igual por natureza e, assim, não permitir que

a maldade humana (vícios) – por vezes, permitida pela lei civil – se estendesse ao Estado

(corrupção), o qual deveria ser o fator de união entre os cidadãos, e, não, de vingança ou

punição desnecessária, nem mesmo para provocar ou justificar guerras injustas.

Roma, como alegoria da cidade terrestre, caiu pelos seus próprios erros ao antepor os

bens inferiores aos superiores e de usar mal o livre-arbítrio para tentar justificar os vícios

humanos, por vezes, com o respaldo da lei civil, que, por sua vez, é imposta pela vontade do

governante com o intuito de dominar e de utilizar o poder pelo poder. A sociedade justa e

feliz, alegoria da “Cidade de Deus”, caminha através dos tempos, mas já neste mundo, em

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direção aos bens superiores, a aderir por vontade própria à lei natural, presente na consciência

humana entendida como elemento de união subsistente às leis civis, apta, pois, a trazer

liberdade às pessoas e a formar civilizações perenes através da história, sem ter a pretensão de

construir um Estado teocrático.

O pensamento agostiniano pareceu ter a pretensão de ver na cristandade a força

necessária para afastar tudo o que escravizava o homem e corrompia o Estado, de tal modo

que a tradição judaica, a filosofia grega e o sistema jurídico romano fossem absorvidos e

fundidos em torno de uma verdade para além de si mesmos para a concretização de um

projeto de sociedade justa e feliz, assim como a fé e a razão uniram-se para convencer, pela

prática do amor, um mundo que se encontrava em confusões filosóficas, turbulências

religiosas, decadências políticas, desordens morais e mudanças históricas.

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