nelson saldanha - filosofia do direito

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Nelson Saldanha

FILOSOFIA DO DIREITO

2a edição Revista e ampliada

R6NOVRR Rio de Janeiro • São Paulo • Recife

2005

AwWacir. Br-u&na puta a PTOK^IO do* Oi «tus

EiÜl-iitjU u Amurai» RLSHCITI; oAvroH NAO I - H A COPIA

Todos os direitos reservados à LIVRARIA E EDITORA RENOVAR LTDA.

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© 2005 by Livraria Editora Renovar Ltda.

Conselho Editorial:

Arnaldo Lopes Süssekind — Presidente Carlos Alberto Menezes Direito Caio Tácito Luiz Emygdio F. da Rosa Jr. Celso de Albuquerque Mello (in memoriam) Ricardo Pereira Lira Ricardo Lobo Torres Vicente de Paulo Barretto

Revisão Tipográfica: Luis Fernando Guedes

Capa: PH Designer

Foto da capa: cratera proveniente da Apúlia, da era cretense.

Editoração Eletrônica: TopTextos Edições Gráficas Ltda.

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

S340f Saldanha, Nelson

Filosofia do direito - 2a ed. revista e ampliada / Nelson Saldanha. — Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

242p. ; 21 cm.

ISBN 85-7147-518-0

1. Filosofia do direito — Brasil. I. Título.

CDD 346.81052

Proibida a reprodução (Lei 9.610/98) Impresso no Brasil Printed in Brazil

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À Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde ç * lecionei entre 1997 e 2001 e onde encontrei um ambiente intelectual do mais alto nível.

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O E também à memória do meu irmão Anibal. )

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Ao meu mestre Gláucio Veiga.

A memória de Celso Mello.

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Prefácio

Prefaciar livro de autor consagrado como Nelson Sal­danha é tarefa desnecessária. Mas pode servir para concla­mar a atenção do leitor para algumas características de uma nova obra.

A "Filosofia do Direito" que ora publica a Editora Renovar está longe de ser um livro apenas didático, dirigido a estudantes, embora se estruture de modo claro e siste­mático, abrangendo, em cada qual de suas partes, as questões epistemológicas, com a análise do conceito de direito e de seus aspectos científicos, a problemática dos valores, com o exame das relações entre ética, direito e política, e os temas hermenêuticos, com o sugestivo ba­lanço entre jusnaturalismo e juspositivismo.

O novo livro de Nelson Saldanha, a par de suas quali­dades didáticas, exibe o pensamento do autor em sua totalidade. Nele se sintetizam e se aprofundam as idéias expostas em obras sobre questões específicas de filosofia do direito, como são, entre outras, Ordem e Hermenêutica. Sobre as relações entre as formas de organização e o pensamento interpretativo, principalmente no direito. (Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1992), Da Teologia à Metodolo­gia. Secularização e Crise no Pensamento Jurídico. (Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 1993) e trabalhos esparsos publi-

cados em revistas especializadas, principalmente na Revis­ta Brasileira de Filosofia. De certa forma penetram no livro também idéias provenientes do exame de matérias não estritamente filosóficas, designadamente as relacionadas com os temas de história do pensamento político e de formação da teoria constitucional.

Nelson Saldanha aprofunda a reflexão sobre a questão dos valores em seu equilíbrio com a cultura, as relações entre ética e direito e entre hermenêutica e ordem, cul­minando com a crítica ao positivismo jurídico, máxime em sua versão normativista, sem que isso signifique a adesão a um jusnaturalismo ingênuo.

De feito, os valores são vistos em seu contacto com a cultura, que em parte os relativiza, retirando-lhes o aspecto dogmático. "Os valores não ocorrem em si e por si mesmos, sem vinculação aos setores institucionais: eles provêm da experiência institucional e nela se realizam. Definem-se como entidades metafísicas, mas não se encontram senão dentro daquela experiência". E, logo adiante: "São as ordens jurídicas in concreto que, dentro de uma realidade onde se incluem condicionamentos e decisões, definem a inserção de determinados valores dentro de seus disposi­tivos. Um ordenamento politicamente liberal incorporará valores diferentes dos de um socialista; também o direito dos países árabes apresenta obviamente valores de tipo outro, que não os chamados cristãos" (pp. 133-34 e 136).

Outro ponto relevante do livro é o da busca de um novo relacionamento entre ética e direito. Não incumbe ao direito "moralizar" a sociedade, adverte Nelson Salda­nha (p. 91). Mas não se pode continuar a admitir a estrita separação entre os dois campos, como pretende o norma-tivismo. A reaproximação entre ética e direito ocorre pela politicidade dos valores. No plano da politicidade "radicam

os valores, e é através dele, ou seja, da dimensão pública do existir, que os valores jurídicos se comunicam com os morais e com os especificamente políticos". A reflexão sobre a justiça volta a se fazer sob a perspectiva do relacionamento entre ética e direito.

O tema da hermenêutica filosófica é examinado com muita profundidade. Infelizmente a hermenêutica não obteve no Brasil a repercussão que merecia. Mas Nelson Saldanha vem lhe dando o destaque necessário, como-fez no grande livro que é "Ordem e Hermenêutica", já refe­rido. Agora, na "Filosofia do Direito", ressalta a importân­cia do relacionamento entre hermenêutica e ordem, ao afirmar que o direito é um "corpo de conceitos que implicam ou carregam consigo valores e princípios, e que aparecem no próprio processo de realização social das normas ou da ordem. Neste corpo de conceitos e valores acha-se a hermenêutica; na relação dinâmica entre ele e a ordem, ou entre a ordem (através dele) e sua aplicação aos problemas concretos, acha-se a interpretação. Não se en­tenderá nenhuma ordem sem a inteligibilidade que a her­menêutica lhe confere; não se concebe uma hermenêutica que não se tenha elaborado em função de uma ordem", (p. 196). A discutidíssima questão dos princípios jurídicos resolve-a Nelson Saldanha deslocando-os para o campo da hermenêutica, onde ganham a estatura de "princípios her­menêuticos".

Magistral a análise das controvérsias entre o jusnatura­lismo e o juspositivismo. Após proceder a amplo retros­pecto histórico do debate, anota que hoje está superada a polêmica, ao menos em termos de radical exclusão recí­proca, posto que tudo aquilo que se venha a admitir "como direito, para além do estritamente legal, abrirá caminho para a consideração de um direito não puramente norma;

e todo relativismo histórico que se sobreponha a um jus naturale do tipo clássico colocará em dúvida a sua ôntica universalidade" (p. 181). Contundente é a crítica ao posi­tivismo normativista, principalmente pela entrada têmpora do pensamento de Kelsen no Brasil. Aliás os autores alemães já haviam observado, na década de 60, com per­plexidade, que só no Japão e na América Latina ainda gozava de prestígio o pensamento de Kelsen (cf. FECH-NER, Erich. "Ideologic und Rechtspositivismus". In: MAI-HOFER, W. (Coord.). Ideologie und Rechts. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 1969, p. 110; VIEHWEG, Theo-dor. "Que veut-on dire par positivisme juridique" Archives de Philosophie du Droit 10:183, 1965). Nelson Saldanha traz a explicação para o fenômeno:

"No Brasil, apesar de ter sido editada em 1934 a obra mais característica de Kelsen, e de a partir da década de 60 seu influxo ter decaído em todo o mundo, a presença do kelsenismo acentuou-se depois do golpe de 1964, provavelmente porque o formalismo meto­dológico eximia os professores de pronunciamentos politicamente comprometedores", (p. 8).

Uma observação final de ordem metodológica. O pró­prio autor se atém à questão das notas de rodapé, que não constituem apenas referências ou citações, mas que rep­resentam complementações que transbordam do texto. Esse problema é sempre difícil na elaboração de obras jurídicas, diante da própria natureza da ciência do direito, solidamente amparada em argumentos de autoridade. A ausência total de citações, como se pretendeu fazer no Brasil na época da substituição das importações, inclusive das idéias, de que foi exemplo maior o livro de Álvaro

Vieira Pinto (Ciência e Existência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969), já está superada como atitude intelectual, eis que ou encobre a falta da leitura do autor ou a intenção de ocultar o seu referencial teórico. Também o excesso de citações e a falta de pertinência com o texto demonstram a imaturidade ou o exibicionismo do escritor e se tornam criticáveis, como tem acontecido aqui e no estrangeiro (cf. LASSON, Kenneth. Scholarship Amok: Excesses in the Pursuit of Truth and Tenure". Harvard Law Review 103: 926-950, 1990). O ilustre professor da Universidade Fe­deral de Pernambuco consegue o justo equilíbrio, vincula­do com mestria as notas ao conteúdo do trabalho.

O livro "Filosofia do Direito", de Nelson Saldanha, em síntese, enriquece a produção filosófico-jurídica nacional e, pela clareza e elegância do texto, oferecerá ao leitor brasileiro momentos de deleite intelectual.

Rio de Janeiro, junho de 1997.

Ricardo Lobo Torres Professor Titular na Faculdade de Direito da UERJ

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( Introdução 1 /

Parte I: A FILOSOFIA DO DIREITO

Capítulo I — Sondagens iniciais 25 Capítulo II — As áreas do "conhecimento jurídico" (

e a Filosofia do Direito 39

Parte II: O CHAMADO FENÔMENO JURÍDICO

Capítulo I — O problema do conceito 55 Capítulo II — Aspectos, componentes, estruturas . . 79 ( Capítulo III — O problema das "relações" 95

Parte III: DIREITO E VALORES (

Capítulo I — Valores: ética, política, direito. . . . '121 Capítulo II — Em torno dos valores jurídicos. . . 145 /

Parte IV: HISTÓRIA, DIREITO NATURAL, HERMENÊUTICA

Capítulo I — História, razão e linguagem 169 Capítulo II — Direito Natural, jusnaturalismo

e juspositivismo 183 Capítulo III — Sobre hermenêutica e princípios. . . 207 Capítulo IV — Fontes, princípios e hermenêutica. . 237

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Introdução

Sumário: A filosofia, seus caracteres, suas transformações. Objetos a que se refere a filosofia. O Direito e a cultura jurídica. A cultura jurídica brasileira na segunda parte do século vinte. O Direito no mundo de hoje. Sobre teorias e modos de teorizar. Sobre o presente livro.

"No que concerne ao indivíduo, cada um é filho de seu tempo; do mesmo modo a filoso­fia. Seria loucura imaginar uma filosofia que ultrapasse o mundo contemporâneo, tanto quanto crer que um indivíduo salte por cima de seu tempo" (Hegel, Prefácio da Filosofia do Direito de 1821).

Constante histórica ou manifestação situada, "ativida­de permanente" do espírito humano ou disciplina acadêmi­ca específica, a filosofia aparece sempre como expressão do pensar mais genérico e mais abstrato, mas ao mesmo tempo como reflexão vinculada a vivências reais e provocações

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concretas. Montes e montes de livros têm sido escritos so­bre a filosofia e sobre os seus temas — sobretudo a partir da criação da imprensa e dentro do Ocidente, que Oswald Spengler chamou "uma cultura de leitores". Livros e teo­rias, terminologias, questões dos mais diversos tipos, que a filosofia vem acumulando através dos séculos, dos milênios aliás.

Dir-se-á, acrescentando mais um dado para uma possí­vel conceituação, que a filosofia é em essência uma tentati­va de compreensão do humano. Mas isto também o é a sociologia, e também a teologia, também a história e a psi­cologia. O que cabe procurar, na filosofia, é então um siste­ma de problemas próprio, historicamente elaborado, bem como uma espécie de "rigor" que não se confunde com o da lógica, este basicamente um rigor de formulações1. A filo­sofia se desdobra continuamente, incorpora temas e pro­blemas, adapta-se aos tempos. Concomitantemente retor­na às raízes, recupera pontos de partida, desadapta-se. Ora tem o sentido de uma compreensão flexível, que se amolda aos períodos e aos contextos, seja o de Agostinho de Hipo-na, seja o de Descartes; ora tem o de um arrepio crítico, denunciando alguma coisa, aguçando nas mentes a exigên­cia questionante. Ora penetra nos problemas "do conheci­mento", margeando a ciência e recolocando conceituações, distinguindo e classificando; ora se volta para a vida e para o humano, aludindo à praxis e aos valores, à história e à convivência. E sempre a sobrevivência de certas idéias, mais talvez por conta das perguntas do que das respostas.

1 Para o tema, Alejandro Rossi, "Lenguaje y Filosofia en Ortega", em F. Salmeron, org., José Ortega y Gasset (FCE, México, 1996), passim. Para um paralelo, Martin Heidegger, Qu'est-ce qu'une chose? (trad. J. Reboul e J. Tamimaux, ed. Gallimard, 1971), págs. 13 e segs.

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Certamente que as transformações históricas afetam as perguntas tanto quanto as respostas, mas estas são sempre mais precárias: as respostas duram menos do que as per­guntas, e geralmente atingem nível menos fundo.

Transformações históricas: de certo modo o próprio surgimento da filosofia, no mundo antigo, teve relação com a crise das crenças, e o desenvolvimento dos temas (com as primeiras gerações de sofoi posteriores a Pitágoras) veio crescendo à medida em que cada pensador percebia em seus antecessores algo que tinha ficado por responder. Nis­to se achava a permanência das perguntas. Mas com o ad­vento do mundo chamado moderno as próprias alterações históricas começaram a ser objeto de um entendimento específico, quando os intelectuais do Ocidente se deram conta das diferenças que os distinguiam dos "antigos", dos "medievais" e também dos sábios do "Oriente".Com aque­le dar-se conta, ainda insuficiente, se esboçaria a perspecti­va histórica, que se tornou viável a partir da grande crise européia, vinda inclusive da Revolução Francesa e de Na­poleão. A partir dela e do romantismo, depois do qual se tornou impossível fazer filosofia sem aludir, de alguma for­ma, ao passado filosófico e às indagações anteriores.

O passar do tempo histórico não se refere apenas — como muitos pensaram no século dezenove — às mudanças singulares e aos "fatos irrepetíveis"; mas também às lentas transformações (correspondentes aos modos ou graus de "duração" percebidos por Braudel) e às próprias alterações dos cenários. No mesmo sentido, não se tem de pensar na história apenas com alusão ao suceder-se das coisas, que se substituem umas às outras, mas igualmente ao fato de que as coisas em geral se acumulam, mesmo transformadas, e coexistem, inclusive contraditoriamente. Isto tem relação com uma das mais válidas observações de Hegel, e é difícil

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pensar nas grandes modificações históricas sem ter em con­ta esta idéia.

A presença de Hegel se tornou muito importante nas formulações que perfazem o pensamento social, jurídico e político contemporâneo: presença implícita ou explícita. Dialética, consciência, Aufhebung, eticidade: as transições, a acumulação, o Estado, o Direito, a liberdade. De Hegel procede em grande medida o historicismo contemporâneo, com relevante antecipação em Viço (Croce não perdoou a Meinecke a exclusão do autor da Scienza Nuava no livro sobre O historicismo e sua gênese). De Hegel, mas também de Wihelm Dilthey e de Benedetto Croce, cujas conceitua-ções se refletiram por todo o século vinte; e também de Mannheim e de Ortega.

O "culturalismo", elaborado com base em contribui­ções do neokantismo de Baden (e em outras contribuições) nunca se combinou devidamente com o historicismo, am­bos aliás comprometidos, em parte, com a sociologia do conhecimento e com a teoria dos valores. Croce, no livro La storia come pensiero e come azione, designou a filosofia como uma "metodologia do conhecimento histórico", o que pode ser aceito com alguns reparos, e se concilia com o fato de que a compreensão filosófica do homem e dos valo­res deve completar-se com a apreensão de seus perfis his­tóricos. Dilthey havia falado em "filosofia da filosofia", e José Gaos, em curso de 1965, relacionando o caráter histó­rico da filosofia com o do próprio homem, reelaborou o problema2. A filosofia, dissera já Hegel, é sua própria his­tória.

2 José Gaos, Del Hombre, ed. FCE/UNAM (Publicaciones de Dia-noia), 1970.

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Vale acentuar que a filosofia não é serva da ciência nem da religião, embora seja vizinha de ambas. Com isso, ela não tem de se amoldar a modelos científicos de pensar: o rela­cionamento do pensar filosófico com a religião (e a teolo­gia), ou com a ciência e mesmo a literatura, assume dife­rentes modos conforme épocas e correntes. Querer que os cientistas — sobretudo no caso dos cultores das "ciências naturais" — comandem ou corrijam o pensar filosófico, é pura impertinência3.

* * *

Quanto ao direito, não nos parece muito importante a procura de uma definição sistemática. Os juristas às vezes se preocupam em excesso (e com eles os filósofos-do-direi-to) com o conceito e com a definição do direito. A frase de Kant, ao dizer que os juristas "ainda procuram" o conceito do direito, foi um registro eventual, não uma cobrança. Mas realmente há, na mente dos juristas, um peculiar ape­go às definições (e às distinções), herança das numerosas definições romanas e também do método escolástico: uma herança que preparou o terreno, por séculos de repetição didática, para os formalismos contemporâneos.

3 "La fuerza de la filosofia, a diferencia de los otros conocimientos, por ejemplo las ciências particulares, no está en ei acierto de sus solu­ciones, como em la inevitabilidad de sus problemas" (Ortega y Gasset, sobre la Kazan Histórica, Rev. de Occidente en Alianza Editorial, Ma­drid 1996, págs. 211 e 225). —A pretensão de colocar a filosofia sob a tutela das ciências positivas (velho afã positivista) se acha no livro de Alan Sokal e J. Bricmont, Imposturas Intelectuais (ed. Record, Rio de Janeiro-são Paulo, 1999), cuja crítica fizemos na Revista Brasileira de Filosofia, Vol. L, fase. 199, set. 2000, págs. 399 e 400.

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O direito ocorre nas sociedades como uma estrutura­ção de base ético-política, destinada a resolver problemas que quase sempre se caracterizam como "conflitos". Uma estruturação que se pretende estável, mas que freqüente­mente muda, altera-se, reconstrói-se. Provavelmente o di­reito não existiria em uma sociedade de santos (aliás nunca foi vista uma "sociedade" de santos): mas como os homens comuns não são santos, o direito tem de impor-se sobre eles. Neste ponto podemos-aludir à relação, historicamente expressiva, entre direito e religião (voltaremos ao ponto um pouco adiante). O direito se relaciona com a própria finitude humana, com a precariedade e com a fragilidade das coisas humanas: ora ele radica em valores que se pre­tendem eternos, ora expressa ostensivamente padrões lai­cizados: haveria talvez, no direito, uma vocação para servir de elo entre o sagrado e o profano. Digo talvez, pois, sobre­tudo no mundo moderno, o direito está quase sempre do lado profano.

O direito declara, cobra, obriga, tolhe e reprime, embo­ra também proteja. Justiça e liberdade sempre figuram, ao menos verbalmente, como valores jurídicos centrais. Mes­mo que as pessoas nem sempre o percebam, um grande número de atos e de situações, diariamente vividas, são reguladas pelo direito e em função dele se desenvolvem. Não por acaso Kafka descreveu na figura de um réu envol­vido em processo judicial a perplexidade do homem diante dos labirintos e dos medos da vida.

As disputas forenses não são como as comédias (no sen­tido clássico do termo), que terminam de modo feliz para todos, mas nem sempre a aplicação da ordem jurídica se assemelha aos pesadelos de Kafka. Em todo o caso, seria talvez de dizer-se que as relações entre os homens, dentro

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da regulação que lhes dá o direito, podem ser comparadas a uma "desarmonia preestabelecida".

O direito, onde e quando chega a organizar-se como ordem, existe como um produto, dir-se-ia um artefato: produto de pressões e de circunstâncias, com o peso do poder e com as exigências éticas, com um tanto de casuís­mo e uma série de conceitos e de ritos. No século dezeno­ve, Cogliolo dizia que a sentença foi a primeira fonte do direito: primeiro ela, depois a regra. A decisão, no caso, gerando a norma. Este tipo de opinião, porém, é sempre algo arbitrário: uma sentença não surge do nada, sem valo­res sociais como base, sem alguém que reconhecidamente possua poder para formulá-la. O "mundo jurídico", tal como o concebemos desde certa época (e assim o projeta­mos sobre o passado), inclui estruturas especiais, termino­logia, normas, e também um aparato "judicial" onde atuam partes, registros, interpretação, eficácia. O direito um arte­fato institucional, posto à prova dentro dos grupos e dos comportamentos, dentro dos níveis e dos planos em que, diferenciadamente, ocorrem os chamados fatos sociais.

Uma diferença entre as ciências chamadas sociais (ou culturais) e as chamadas naturais, é que nas primeiras as expressões passadas sempre seguem tendo alguma valida­de. Na biologia, como na física, o cientista encara as obras de dois séculos antes — ou mesmo de vinte anos — como coisas inteiramente descartáveis, interessando quando muito como curiosidade. Mesmo na matemática, o que se preserva ao guardar as obras mais antigas é a garantia de que houve um "progresso", de par com uma continuidade. Mas os sociólogos sempre podem voltar a Marx ou a Weber (e

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sempre o fazem), senão mesmo aproveitar, se lhes ajuda a criatividade, idéias de Montesquieu ou de Adam Smith.

Isto nos leva, desde logo, a anotar o caráter historiográ­fico do saber social. Sociologia, economia, ciência política, sempre guardam um sentido de historicidade, que faz com que conhecimentos de um século possam vincular-se a es­tudos do século seguinte. Diríamos, por outro lado, que quanto mais próximo do filosófico estiver o trabalho do cientista social, mais isto se confirma: o sociólogo encontra algo válido em Durkheim, o politólogo revê o pensamento de Locke ou de Cícero4. Estas observações, obviamente, pressupõem de nossa parte uma determinada visão do cará­ter das ciências sociais, e não poderão ser compreendidas pelos que desejam um saber social organizado em axiomas matemáticos, ou uma filosofia atrelada aos modelos da fí­sica.

* * *

Parece-nos interessante esboçar, a esta altura, um bre­ve repasse do pensamento jurídico do século vinte, sobre­tudo aquele de depois da Segunda Guerra (1939-45): pes­soalmente nos reportamos ao clima de idéias da década 50, época de nossos dois bacharelados e de nosso doutorado na Faculdade de Direito do Recife. Entre 1950 e 1960 — ano de início de nossa docência na então futura UFPE —, os usos acadêmicos incluíam livros com reminiscências do sé­culo dezenove (o de Vanni por exemplo); certos professo­res não enxergavam as diferenças entre Vanni e Del Vec-chio, este penetrado de neo-kantismo e representando em seu tempo um sguardo mais "moderno". Raras Faculdades

4 Veja-se Ortega, Sobre la Razón Histórica, cit., Cap. I.

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no Brasil apresentavam a Filosofia do Direito como disci­plina autônoma, mas em todo o país as faculdades existen­tes — não as havia em todos os Estados -— colocavam na bibliografia de Introdução ao Direito as obras de Radbruch, de Gaston May e de Jean Brethe de la Gressaye. Depois surgiram os excelentes manuais argentinos, entre os quais o vasto livro de Aftalión, Olano e José Vilanova: o México e a Argentina desde a década de 30 elaborando uma tradição universitária, inclusive com pioneirismos em matéria de traduções.

Na mesma década 50, consolidou-se a influência de certas correntes, como o tomismo — este em correlação com o crescimento das universidades católicas no país (nas quais o marxismo se tornaria muito presente durante os anos do governo militar, e sobretudo após ele). Consoli­dou-se o prestígio de Jaspers e de Heidegger, aquele poste­riormente eclipsado por este. E também o dos franceses, inclusive Gabriel Marcel, hoje quase esquecido, e Sartre, influência crescente até os anos 70 ou 80. E ainda o fascínio de Ortega y Gasset, em torno do qual vinha um relevante grupo de espanhóis, pensadores e tradutores: José Gaos, Garcia Bacca, Xavier Zubiri, Garcia Morente, Eugênio Imaz. Para o campo do direito, Recaséns siches (hoje injus­tamente esquecido) e Legaz y Lacambra. Logo depois, o mexicano Garcia Maynez.

Mas a estas alturas ganhava relevo definitivo o pensa­mento de Miguel Reale, cuja Filosofia do Direito foi lança­da em 1953 e que atuava com livros e ensaios desde as décadas 30 e 40: Reale com sua teoria tridimensional do direito, posteriormente desdobrada com a idéia dos mode­los e a da experiência jurídica.

Entrementes chegava ao Brasil a obra de Hans Kelsen, sobretudo a partir da década 40. As doutrinas de Kelsen,

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construídas com pertinência e coerência em torno da noção de norma (norma, ordenamento, puridade, normativismo), se tornaram marcantes após a edição, em 1934, de sua Rei­ne Rechtslehre. Em 1960 Kelsen alterou e ampliou alguns itens da obra, sempre estudada no Brasil. Como um contra­ponto ao pensamento de Kelsen, surgiu na Argentina a teo­ria egológica do direi to, criada por Carlos Cossio como uma "correção" ao normativismo, obtida através de acura­da meditação sobre a conduta (em 1944 seu grande livro La teoria egológica dei derecho y ei concepto jurídico de libertad). Outro contraponto ao pensamento de Kelsen constituiu-o a obra polêmica e assimétrica de Carl Schmitt, com influência em nosso país desde o tempo do "Estado Novo": Schmitt, crítico do liberalismo e ligado ao nazismo, trouxe para o estudo do direito público algumas contribui­ções muito perturbadoras e muito importantes.

E como uma espécie de versão mitigada do formalismo, tivemos no Brasil — sobretudo após a década de 60 — a presença conspícua de Norberto Bobbio, teorizador do di­reito mas principalmente cientista político, bem como his­toriador de idéias e expositor eminentemente claro.

Regressando ao tema da filosofia no século vinte, cum­pre referir, aludindo a um território vizinho, a breve atua­ção da chamada "Escola de Frankfurt", integrada central­mente por Adorno e Horkheimer, com Erich Fromm e ou­tros, e da qual sairia Jürgen Habermas, com constante in­fluência até nossos dias e com uma trajetória um tanto si­nuosa: de um marxismo "reformulado" (livro sobre a "Re­construção do materialismo histórico") e de tematizações muito marcantes (livros sobre o espaço público e sobre a

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ação comunicacional) até aproximações ao pensamento li­beral, inclusive diálogos com autores como Rawls e Dwor-kinD. Sempre se associa ao nome de Habermas o de Niklas Luhmann, este com uma obra mais árdua, presente no Bra­sil desde mais ou menos a década 70. Valeria aludir ainda, no contexto do segundo pósguerra, ao nome de Hannah Arendt, ligada de inicio ao pensamento de Jaspers e ao de Heidegger, e dedicada fundamentalmente aos problemas da violência, do poder e da legitimidade.

Da Escola de Frankfurt, enx sua vertente que menos se afastou do marxismo, proveio Ernst Bloch, grande pensa­dor, sobretudo com sua obra sobre a utopia (Das Prinzip Hoffnung), paradoxalmente reabilitada como conceito po­sitivo.

Os nomes de Max Weber e de Georg Simmel, autores com obras traduzidas ao espanhol desde a década de 40, ganharam mais presença no Brasil após 1945: vale citar a difusão, desde então, da tipologia weberiana das formas de autoridade e de legitimidade. Após 1970, circa, penetra no pais a obra provocativa e brilhante de Michel Foucault, trazendo em suas bases algo de Marx, de Nietzsche e de Freud, mais a metódica negação deles; e com ela os livros de Deleuze e de Derrida, marcadamente franceses mas es­critos em constante referência ao pensamento alemão.

* * *

Diríamos que a axiologia se formou, em fins do século dezenove e começos do vinte, como um desvio e ao mesmo

5 Jüngen Habermas — John Rawls, Debate sobre ei liberalismo polí­tico. Introdução de Fernando Vallespín. Ed. Paidós (Barcelona, B. Ai­res, México), 1998.

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tempo uma reafirmação da ontologia. O valor, que não "é" o ser, mas que autonomamente é, e constitui objeto de reflexão, provocou perplexidades e estímulos. Assim tam­bém a hermenêutica terá surgido como uma negação e si­multaneamente uma reformulação da epistemologia: ao ra-cionalismo-metodologismo, fruto do iluminismo e do car-tesianismo, substituiu-se a reflexão historicamente alimen­tada (vitória tardia e situada de Viço), com um novo rela­cionamento entre a filosofia e o corpus das ciências cultu­rais. Rtfenmo-noskTierrneneutik trazida à baila por Hans-Georg Gadamer com o livro Verdade e método (Wahrheit und Methode, 1960) e outros, e desenvolvida por uns pou­cos autores, inclusive Paul Ricoeur na França. Cremos que no Brasil a filosofia hermenêutica não teve a ressonância merecida, talvez por não trazer consigo, como filosofia, in­teresse ideológico-político direto. Nem teve a ressonância devida em outros países, sem embargo de várias obras es­critas nos anos 70 e 80 em diversos lugares; o século vinte, tão apegado a outras coisas, não deu àquela filosofia o me­recido aprofundamento, que teria incluído uma revisão das relações entre o historicismo de Dilthey e o de outros pen­sadores, bem como entre o filosofar existencial e as ques­tões "gerais" contidas no pensamento social pós-durkhei-miano. Preferiu em grande parte, o século vinte, emara­nhar-se nos jogos analíticos e nas securas normativas. Na verdade as sugestões contidas nos enfoques básicos da obra de Gadamer permitem integrar alguma coisa da filosofia de Heidegger com uma perspectiva histórico-sociológica e com uma epistemologia que reencontre Hegel e reavalie o neokantismo. O homem com seus horizontes, com suas trajetórias e suas constantes: nas instituições, nas condutas e no pensar. Vale porém registrar que, mais ou menos ao tempo em que apareceu a obra maior de Gadamer, surgia

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na Alemanha o pequeno e influente livro de Theodor Vieh-weg sobre a Tópica (1955), na Bélgica o de Chaim Perel-mann sobre a nova retórica (1958) e na Itália a Teoria Ge­ral da Interpretação de Emílio Betti de 19556.

* * *

Tentemos reconsiderar o suceder-se (e relacionar-se) das teorias e das conceituações.

Em quase lodas_as divergências doutrinárias podem dis­tinguir-se duas partes: uma mais genérica, posta em um plano onde é possível tentar uma conciliação, tomando-se como referência um denominador comum; outra em que ocorrem realmente as diferenças, que aparecem em termos irredutíveis. Destarte a teoria egológica, que foi construída como uma retificação da teoria pura, e que levou seu cria­dor a uma polêmica pessoal com Kelsen, sempre conservou a referência à norma como um dado essencial, alterando embora o seu perfil doutrinário com a ênfase concedida à conduta como componente decisivo do fenômeno jurídico. Também a idéia do direito como ordem, que se encontra em diversos autores da primeira metade do século vinte e que é modificada por Schmitt com as idéias de decisão e de ordem concreta. Rever as posições e repassar a seqüência das teorias inclui, portanto, um resgate de núcleos comuns e um entendimento das diferenciações mais caracterís­ticas.

Por outro lado, será válido aludir a dois modos básicos de encarar o que se chama "direito", e de teorizar a respeito dele.

6 No item 4 do capítulo I da parte II mencionaremos novamente o pensamento jurídico-teórico e jurídico-filosófico mais recente, embora sempre de modo panorâmico.

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Primeiro, o enfoque que procura ver e mostrar o direito "por dentro", mencionando a estruturado ordenamento (e a da norma), a relação jurídica, a atividade judiciária. Cos-sio, mas só em parte, estaria no caso, ao começar sua exten­sa e obstinada reflexão egológica com uma "fenomenologia da sentença". Do mesmo modo Kelsen, e também a Teoria Geral do Direito de Francesco Carnelutti, bem como ou­tras "teorias gerais" um pouco mais recentes, de timbre formalista, inclusive o admirável livro de Roberto Vernen-go. Ainda certos livros de língua inglesa, assim o de Hart [The concept of law) ou o de Dworkin (Taking Rights Se­riously) . Nestes casos vê-se o direito como uma forma, cuja compreensão requer um tratamento analítico, com a ocor­rência de certos equívocos, como a nosso ver a comparação da dinâmica jurídica a um jogo (no começo do século vinte se falava na "engenharia" jurídica e em seus "mecanis­mos")7. Há também, aliás, alguma coisa de pseudo-proble-ma na pergunta sobre se o direito é constituído pela norma ou pela ordem, pela conduta ou pela decisão: este modo de questionar parte do discutível pressuposto de que o direito há de "encontrar-se" em uma (e não outra) dessas coisas.

Segundo, o enfoque correspondente à visão do direito como realidade complexa, ou aos caracteres dos diferentes

7 Sobre direito e jogo, ver P. Lascoumes (org.), Actualité de Max Weber pour la Sociologie du Droit, ed. LCDJ, Paris 1995, págs. 149 e segs. — Sobre a teoria dos jogos, v. verbete "Teoria/Prática", na Enci­clopédia Einaudi (Imp. Nacional-Casa da Moeda, Lisboa 1988), volu­me 10, págs. 329, 337; idem, volume 5, págs 51 e segs. —V. também Hans-Georg Gadamer, Verité et methode. Les grandes lignes d'une her-meneutique philosophique, trad. P. Fruchon, J. Grondin e G. Medio, Ed. du Seuil (integral), 1996, Parte I, cap. II, item 1 (págs. 119 e segs.). — Também R. Dworkin, em correlação com Hart, encontrou no direito uma similitude com o jogo: cf. artigo de F. Michaut em Droits (PUF:, Paris) n. 11, 1990, págs. 107 e segs.

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sistemas jurídicos, bem como aos valores que neles se en­contram e à evolução histórica do direito. Aparentemente tem-se ai uma imagem puramente externa do direito: mas o que torna consistente este tipo de enfoque é a busca das conexões entre os aspectos "externos" (externos em rela­ção a quê?) e a "interioridade" funcional ou estrutural, que abriga mais do que elementos formais, incluindo relações, valores, condutas, princípios.

A necessidade de uma perspectiva histórica, no caso do pensamento filosófico "geral", faz-se obviamente presente, também, no caso da filosofia do direito. E sempre relevante ter em conta os dados históricos, não em termos pobre­mente esquemáticos (ou cronológicos), mas no sentido de corresponderem a um modo de ver os problemas. Contra o que ainda parecem supor certos professores, uma concep­ção histórica das instituições não consiste no conhecimento narrativo de fatos, mas sim em considerar como algo cen­tral a historicidade das realizações e das carências humanas. Consiste em procurar as ressonâncias mais profundas dos conceitos no plano de seus compromissos temporais — com alusão ao tempo, ou aos tempos, que marcam e condu­zem.

Temos chamado de "crítica histórica" a uma tentativa de compreensão dos problemas — sejam formas ou proces­sos — que busca a visão genérica sem descurar dos valores e de sua contextualidade. Desligada da perspectiva históri­ca, a visão dos valores se torna esquemática e sem contacto com o humano. Aqui, na alusão ao genérico, nos aproxima­mos um pouco da idéia hegeliana de totalidade. Por outro lado, a compreensão histórica é sempre relativizada: ela afasta o espírito das ortodoxias e valoriza os condiciona­mentos, que são o preço pago pela mente humana ao tentar o domínio do que se chama "verdade" e ao aceitar as reali-

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dades que a cercam. A hi:tória não se encaixa no desenho simplório e programático que alguns lhe pretendem impor: ao contrário, os próprios desenhos são historicamente si­tuados. O relativismo, de que falamos, não é o mesmo que o ceticismo, embora muitas pessoas tenham dificuldade em ver as coisas assim; o relativismo, ao contrário, é um remédio contra o ceticismo (do mesmo modo que o é em relação ao dogmatismo).

Com a relativização, os valores readquirem sua dimen­são e sua face normais. Aqui nos aproximamos da idéia do homem (ou do humano) como medida das coisas. A visão compreensiva, apreendedora de significados, ajuda a evitar as ênfases ingênuas, e com elas os maniqueísmos e as glori­ficações gratuitas. A história nos mostra as coisas em sua concreta razão-de-ser e em seus limites, estes aclarados pela visão das trajetórias. Não se "perenizam" filosofias, nem se admitem doutrinas como instâncias supremas e in-condicionadas.

Pretendi, em certa época, escrever um livro de Introdu­ção aos Estudos Jurídicos (ou à Filosofia do Direito) como a Introdução aos Estudos Literários de Erich Auerbach (na verdade — ou de certa forma — uma introdução à filologia românica): uma sequenciada apresentação crítica dos pro­blemas e dos materiais. Depois achei a empresa difícil, en­quanto me atraíam outras tarefas.

Entretanto mantenho-me atento ao trabalho com os da­dos históricos, não tanto ou não apenas os referentes às obras mas sobretudo os concernentes aos problemas, que estão nas obras mas que vão além delas, e afinal lhes dão sentido.

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Quanto ao presente livro, pensei em tentar fazê-lo pa­recido ao de James Boon, Other Tribes, Other Scribes, onde o material de história de idéias se acha distribuído de modo insólito mas muito eficiente. Fascina-me a visão da continuidade dos temas, que em parte corresponde à cons­tância das realidades humanas, mas que depende também (sempre dentro de determinadas condições culturais) de uma série de operações acadêmicas. Com isto menciono a ação dos que, durante séculos, preservaram textos, e men­ciono também as formas assumidas por tal preservação. Na filosofia e nas ciências sociais este assunto tem sido fre­qüentemente colocado, mas na literatura jurídica poucos o abordam. O jurista, de fato, parece ter sempre mantido uma espécie de distância com relação aos (demais) cientis­tas sociais; e daí o insuficiente tratamento, dentro do pen­samento jurídico, de temas deste tipo.

Em um país como o Brasil, um problema com que se defronta aquele que escreve sobre filosofia é o horror à teoria, tão difundido em nossos hábitos culturais. Há um utilitarismo imediatista que cobra de pronto a todo autor soluções práticas para problemas concretos. Inclusive no âmbito universitário. Claro que há setores em que se valo­riza a teoria, e com ela o saber desinteressadamente "erudi­to" — mas não em escala suficiente.

* * #

Filosofia: a referência a esta coisa deve ser entendida sem excesso de rigorismo. Todo filosofar é uma teorização, uma teoria na acepção original do termo. A montagem de um ângulo "filosófico" para visualizar o direito corresponde sempre, deste modo, a um trato conceituai. A filosofia não é, como querem os cientificistas, uma análise "rigorosa",

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formal e descontextualizada; também não é um pensamen­to vago e disperso, que acompanha determinados temas sem qualquer compromisso sistemático.

Voltando à referência à teoria, vale apontar as leves diferenças (às vezes não tão leves) que existem entre teoria e filosofia — esta uma espécie daquela — e entre filosofia e ciência: esta, no tocante ao direito (como no tocante à política), uma diferença bastante óbvia e sempre relevante. A palavra latina scientia, até certo ponto correlata do grego epistème, enrijeeeu-se no mundo^moderno, passando a de­signar um saber academicamente delimitado e sem maior flexibilidade. O termo português ciência não cobre ade­quadamente o alemão Wissenschaft, que tem mais ampli­tude.

A organização temática de uma filosofia do direito, par­tindo-se de que se trata de uma visão não propriamente "científica", deverá abranger questões genéricas e histori­camente constantes, mas também problemas que a cultura moderna levantou e nem sempre resolveu: problemas que oscilam, renovam-se, mudam de terminologia. O "ponto de partida", em cuja adoção sempre penetra um certo traço de arbítrio — ou algum viés ideológico, com freqüência asso­ciado às opções metodológicas —, parece-nos deva ser epistemológico, servido por (ou fundamentado em) uma perspectiva histórica. Depois as questões ontológicas, às quais se enlaçam as axiológicas, implícitas em muitos itens do pensamento jurídico. Como se nota, não nos afastamos muito do habitual e convencional roteiro tripartite. Ocor­reria comparar este roteiro com a milenar visão trifuncional que se tornou arquetípica nos povos de origem indoeuro-péia. E se não fosse demais compararíamos a voga destas tripartições com o prestígio, na música ocidental, da "for-

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ma sonata", com três movimentos devidamente sequencia­dos.

Entretanto insisto sobre a presença, em muitas obras surgidas após 1960, da tendência a substituir a reflexão filosófica sobre o direito — como sobre a ética e outros "objetos" — por análises formais, que, ou entronizam a banalidade e a tautologia, ou entram em excessivos tecni-cismos, sutilezas e verbalismos; arrebitadas sutilezas que também têm invadido a teoria da literatura e que se rela­cionam com os verbalismos pós-Heidegger e pós-Foucault. Ocorre, às vezes, no caso do direito, uma confusão (ou interfusão) entre filosofia e teoria geral: muito bem que se cultive uma teoria geral, reduzindo-se à visão lógica ou en-tendendo-a em sua originária abrangência, mas não que se ponha esta teoria no lugar da filosofia*. Na teoria geral das ciências sociais (e na "sociologia geral") o grande trabalho, quando da transição ao séculos vinte, coube a sociólogos e pensadores e teóricos da história que, com uma visão abrangente e "compreensiva" dos processos e estruturas sociais (refiro-me a Weber, Simmel, Mannheim, Troeltsch, Meinecke, Croce, Ortega), evitaram os unilateralismos. Enquanto eles trabalhavam, a fenomenologia se transfor­mava em formalismo e em visão analítica, tendendo a um pensamento axiomatizante e cientificista, pretensamente "neutro".

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8 Não é propriamente filosófico, portanto, o pensamento de tipo "analítico". — O artigo de F. Wahl, "Que seria la filosofia sin su histo­ria?" (em Gianni Vattimo, org., La secularization de la filosofia, ed. Gedisa, Barcelona, 1998), não corresponde ao que o título faz esperar.

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O presente livro abriga vários pontos de proximidade ( em relação a Ordem e Hermenêutica: pontos e pressupos­

tos que coincidem com algumas das idéias deste, inclusive a tentativa de ver no Direito uma ordem institucional cuja conceituação inclui e requer uma alusão à hermenêutica.

Mencionamos acima o "roteiro do livro", e aqui trata­mos do problema das notas. Estas são um problema por sua extensão — às vezes inevitável —, mas também por seu "papel" em cada capítulo. Em outros trabalhos temos já colocado o assunto. Em princípio, cada capítulo (em qual­quer livro) consta de um texto, que é o principal, vendo-se nas notas o "acessório". Elas porém são mais do que isto, inclusive por não serem somente "referências", nem cita­ções. As notas são às vezes um outro texto, dependente embora, e fragmentado, e as citações são algo que se retira do texto mas não do livro: várias obras clássicas seriam exemplo de como às vezes não se pode evitar o acúmulo de notas.

Outro tema seria o dos modismos. Temos hoje, no Brasil (tivemo-la sempre), uma preocu­

pação fundamental em relação ao que dizem certos autores mais recentes: preocupação com o que diz o novo livro de Fulano, ou o de Sicrano. O importante, porém, são os auto­res que realmente digam alguma coisa, e sirvam para repen­sar determinado tema.

De qualquer sorte recusamo-nos a reduzir a Filosofia do Direito a um debate metodológico, a uma análise do conceito de norma, ou a um reexame da parte geral deste ou daquele ramo do direito. Estes temas podem sem dúvi­da aparecer em uma filosofia do direito, mas como momen­tos ocorrentes dentro de uma reflexão de caráter geral.

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* * *

Resta aludir à situação do direito, em seu sentido mais genérico — o "mundo do direito" dentro do plano institu­cional das sociedades —, sua situação no meio das coisas humanas. Os homens forçados à planetarização e à padro­nização/globalização — das técnicas e dos hábitos mas ao mesmo tempo a persistência de algumas etnias milenares. O acintoso predomínio do fator econômico dentro de um capitalismo mundializado, paradoxal confirmação do dog­ma marxista da "infraestrutura"; a consolidação da hege­monia norte-americana, inclusive por cima das comunida­des econômicas plurinacionais; o mundo em sua maior par­te dessacralizado, esvaziado de seus valores religiosos. As nações em reforma: regiões e cidades outrora importantes, transformadas em resto e periferia.

Dentro deste quadro o pensamento filosófico tenta man­ter-se, renovando seus problemas e revendo suas fontes. A filosofia do direito oscila entre o reexame das grandes teorias do século vinte e a busca de novas reflexões. Até que ponto a mutabilidade histórica do direito diminui sua importância como ordem institucional? Como tirar de dentro dos marcos históricos algo que ajude a designar o fenômeno jurídico como uma constante das sociedades humanas?

Recife, janeiro 1997 e janeiro 2002

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Parte I

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Capítulo I

Sondagens iniciais

Sumário: 1. A construção histórica da Fi­losofia do Direito. 2. A Filosofia do Direi­to como um produto do pensamento oci­dental. 3. Filosofia do Direito e saber ju­rídico.

1. A construção histórica da Filosofia do Direito

Comecemos com uma referência à construção histórica do pensamento jurídico-filosófico. É necessário colocar de lado umas tantas distorções e uns tantos pseudoproblemas: inclusive aquele que consiste em discutir em qual determi­nado momento, ou em que determinada obra, se deve si­tuar o "começo" da Filosofia Jurídica.

Os problemas referentes à reflexão sobre o Direito — e objetos correlatos — são evidentemente muito antigos, embora o nome da "disciplina" hoje denominada Filosofia do Direito tenha surgido em tempo relativamente recente. Ao dizer antigos não aludimos (repita-se) a inícios defini-

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dos. Por outro lado, ao mencionar as origens devemos es­quecer provisoriamente o enorme movimento doutrinário moderno, com vasta literatura didática, publicações perió­dicas, cursos, livros, congressos e debates onde se fala de filosofia, teoria e coisas afins: temos de nos reportar a um mundo onde as coisas eram outras, um mundo em que os homens levavam uma existência muito diversa (e, para nos­sos padrões, bem mais simples), e onde falar sobre concei­tos gerais era ocupação de muito poucos.

Mas todas as referências ao passado esbarram em difi­culdades, inclusive no caso da idéia de que nos começos as coisas eram "mais simples". Provavelmente o eram, mas sempre vale prevenir quanto a esta idéia, inclusive por cau­sa da concepção, corrente no século dezenove, de que as coisas eram então "elementares" (o que não é propriamen­te um "erro") e também seriam, com isto, "menos evoluí­das" — o que envolve de fato um problema. A teoria unili­near da cultura, que descendia do mito do progresso, colo­cava todos os passados em uma linha genérica (e eurocên-trica), uniforme, em função da qual o "passado" da huma­nidade aparecia como uma série de estágios crescentemen­te "evoluídos", que seguiam até um presente tecnicamente admirável. Foi necessário que a moderna teoria das cultu­ras viesse demonstrar que os tempos, de cinco mil anos até hoje, foram ocupados por culturas, no plural, cada qual com suas fases e sua trajetória histórica, sendo a "evolução" algo relativo9.

9 O século vinte refutou a crença oitocentista na "evolução" unili­near e genérica. Parece-nos válido, porém, acreditar em evoluções, como a da física na primeira metade do século vinte, ou a de certas profissões, como medicina e engenharia, no ocidente contemporâneo: basicamente, em áreas "técnicas" ou tecnicamente estimáveis. Mas

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O mundo greco-romano legou reflexões e terminolo­gias de decisiva importância sobre justiça, governo, ordem social, lei, etc. Após o Cristianismo tais conceitos se refor­mularam, inclusive através do pensamento patrístico e do escolástico. O Renascimento ocasionou revisões relevan­tes, com o estudo erudito dos textos antigos e com a teori­zação sobre o Estado — o Estado moderno pensado, sobre­tudo desde Maquiavel, como um fenômeno peculiar.

O pensamento social seiscentista (Hobbes, Locke) e setecentista (Montesquieu, Rousseau) sobre leis e governo deixou um importante feixe de questões, cujo desdobra­mento pressupôs, significativamente, o processo de secula-rização cultural do ocidente, esboçado desde o século quin­ze. Daquele pensamento e de sua temática passou-se, com os inícios do século dezenove (e do Romantismo) à teoriza­ção específica sobre o Direito e o Estado. Essa teorização correspondeu principalmente, naqueles inícios, a Hegel e a Savigny; com Hegel e com Gustav Hugo teve-se a voga do termo Philosophie des Rechts, Filosofia do Direito. Durante o século dezenove se desenvolveriam duas coisas díspares mas historicamente complementares: por um lado a pers­pectiva evolucionista (e sociológica) sobre o direito, por outro o apuramento técnico dos conceitos jurídicos, cres­centemente reelaborados.

A rigor o emprego de uma expressão como "Filosofia do Direito" não seria indispensável. O mesmo aliás acontece com termos como filosofia da arte, filosofia (da) política e outros. As nomenclaturas acadêmicas e os usos didáticos é que consolidaram aquele emprego. Os temas que corres-

também, a depender da perspectiva, no caso da mudança social ocorri­da em determinados contextos.

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pondem ao conteúdo de uma "filosofia do direito" podem achar-se em livros com outros nomes. Cossio por exemplo não escreveu nenhuma obra intitulada Filosofia do Direito, e como ele outros pensadores de destaque10.

* * *

Na Idade Média e nos séculos iniciais dos tempos cha­mados modernos, muitos dos problemas que hoje se atri­buem ao "Direito Público" estavam afetos à filosofia políti­ca; os problemas propriamente jurídicos se encontravam principalmente no Direito civil e no canónico. Os juristas eram canonistas ou civilistas. Daí a velha imagem segundo a qual o Direito propriamente dito era o privado:ainda ao tempo de Savigny muitos pensavam assim, inclusive ele próprio11. A filosofia tratava de leis (sempre o recurso aos

10 Jorge Vanossi assinala, com certa ênfase, a referência de Cari Schmitt (na terceira fase de seu pensamento) à necessidade de salvar a consciência jurídica do ocidente, salvando-se com a ciência o próprio cerne do direito, entendido em função de alguns traços fundamentais [Teoria constitucional, vol. I, Ed. Depalma, Buenos Aires, 1975, págs. 4 6 e 4 7 ) .

11 Sobre as relações entre os juristas e a filosofia na Idade média, Biagio Brugi, Per la storia delia giurisprudenza e delle università italia-ne. Saggi (Turim, UTET, 1915): cf. o cap. IV sobre as doutrinas políti­cas dos glosadores. — V. também, dentre as incontáveis fontes a citar, Walter Ullmann, Law and politics in the middle ages (The Sources of History, Londres, 1975), passim. — Sobre a identificação entre "direi­to" e direito privado, vale recordar a frase de San Tiago Dantas: "o maior legado do mundo antigo à técnica da vida social foi, sem dúvida possível, o Direito privado. Chamemo-lo Direito Romano" (Palavras de um professor, ed. Forense, Rio de janeiro, 1975, pág. 127). — Para dados históricos, uma das obras clássicas ficou sendo o livro de R. Stint-zing, Geschichte der deutsche Rechtswissenschaft, ed. Oldenburg, pri­meira parte, Munique e Leipzig, 1880. Mais recente, o monumental

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clássicos como Platão e Cícero); falava-se do Direito Natu­ral como tema corrente, que foi corrente em Hobbes e Locke, como em Rousseau e Kant. Com as revoluções libe­rais — ditas "burguesas" —, que expressaram entre outras coisas a secularização da política, ocorreu a ascensão jurídi­ca e também política do "Direito Público"; e com elas, exemplarmente a Francesa, deu-se a retomada da milenar dicotomia Direito Público-Direito Privado. Por outro lado a antiga noção de ius naturale veio a converter-se, ou des­dobrar-se, na idéia de direitos naturais, entendidos princi­palmente como liberdades e defendidos como direitos do homem, inerentes e inalienáveis.

Junto com estes processos, ocorreu a formação do con­ceito moderno de constituição. A criação do Estado moder­no (Estado propriamente dito para a teoria política que o acompanhou) seguiu-se a da constituição, a constituição em sentido moderno como constituição propriamente dita: lei maior, organizadora do Estado (e de seus "poderes"), mas especialmente garantidora dos direitos12.

Uma nova visão do Direito, e de seus correlatos, reque­reria uma nova (e propriamente dita) filosofia do direito. E também uma filosofia do poder, da política, do homem (e do cidadão) e das leis.

É importante salientar que tudo isso correspondeu ao surgir de uma concepção dessacralizada — mencionamo-la acima — do mundo e do homem, isto é, da sociedade e das instituições. O grande fenômeno, na virada para o mundo dito moderno, foi a queda do feudalismo e das aristocracias

Grosse Rechtsdenker der deutscher Geistesgeschichte de Erik wolf (3a

edição, J.C.B. Mohr, Tubingen 1951).

12 Cf. nosso Formação da Teoria constitucional (2a edição, Renovar, Rio de Janeiro, 2000), especialmente capítulos VI e VII.

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(logo a das monarquias também), ao lado da crise da visão teológica anteriormente dominante. O saber "moderno", basicamente racionalista e crescentemente crítico, tornou-se um saber de condicionamentos: as condições a priori do conhecimento em Kant; as condições sociais (e econômi­cas) da vida institucional e do pensar, em Comte e em Marx. Depois as condições orgânicas, desde a formulação mais elementar em Helmholtz e outros até os estudos mais sofisticados em Freud. Mas a ênfase sobre o caráter históri­co de todo condicionamentoviria a partir deiDílthey e de Croce em fins do oitocentos: no caso, uma ênfase sobre a relação do homem, e de seu pensar, com as condições e os "contextos" que tornam inteligíveis ambas as coisas.

Este voltar-se para as condições, para o que subjaz ao homem e à sociedade, levaria no século vinte à sociologia do conhecimento, à arqueolingüística e também à "arqueo­logia do saber" de Foucault13. Levaria ainda à idéia de um paralelo entre diferentes planos institucionais (Panofski mencionou a analogia entre o gótico e as Sumas); e da cor­relação, não dependência, entre o andamento do saber e o da experiência. Levaria igualmente à noção de "conexão-de-sentido". No caso do direito, permitiu que se relativi­zasse o problema da conceituação, com a compreensão dos diversos ângulos que fazem ver o fenômeno jurídico como norma, como conduta, como ordem, ou o que seja. Permi-

13 De fato a busca das condições, inclusive das "interiores", relacio­na-se historicamente com o processo de secularização: cf. nosso Secula-rização e Democracia. Sobre a relação entre formas de governo e contex­tos culturais (Rio de Janeiro, Renovar, 2002). — No sentido da teoria do direito o assunto nos conduziria ao tema da experiência jurídica: vale indicar a respeito as páginas de Léon Husson, Nouvelles études sur la pensée juridique (Dalloz, Paris, 1974), Estudo segundo, págs. 121 e segs. E também Miguel Reale, o Direito como Experiência, 2a edição, S. Paulo, Saraiva, 1992.

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timo-nos insistir, contudo, sobre a validade de uma visão da história das instituições pensada em correlação com a do pensamento, inclusive da epistemologia (como fez, de cer­to modo, Carlos Moya em seu livro De la ciudad y de su razón). Este entendimento de correlações, que é um enten­dimento compreensivo, se assemelha ao que propusemos em nosso livro sobre Ordem e Hermenêutica: as formas da ordem institucional esclarecidas pelas do pensamento in­terpretativo, e as do pensamento compreendidas em fun­ção da ordem.

* * *

Enfim, a expressão Filosofia do Direito, vinda dos dias de Kant e de Hegel, atravessou como dissemos o século dezenove, no meio dos empirismos e dos positivismos, e no século vinte entrou (como quase tudo) em crise14. Os posi­tivistas, no século dezenove, confundiram a temática da Filosofia do Direito com a doutrina jusnaturalista (a "Esco­la Filosófica" como oposta ao juspositivismo), e tentaram retirar a Filosofia dos currículos, substituindo-a, como dis­ciplina acadêmica, pelo que denominaram "Teoria Geral do Direito".

Esta teoria, concebida na segunda metade do século dezenove como uma visão abrangente e empírica do direi­to, incluía, integrados, diversos ângulos como o histórico, o sociológico, o comparativo (assemelhava-se ao que na Itá­lia, ao tempo de Filomusi-Guelfi, se chamava Enciclopédia

14 Para a relação entre o saber jurídico atual, e a "crise" generalizada, Enrique Zuleta Puceiro, Paradigma dogmático y ciência dei derecho (ed. Revista de Derecho Privado, Madrid, 1981), Introdução. Cf. tam­bém Luís Luisi, Filosofia do Direito (Fabris, Porto Alegre, 1993), págs. 63 e segs.

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Jurídica). Mas no século vinte, por influência da teoria kel-seriana, travaram-se debates conceituais que levaram à concepção de uma nova "Teoria Geral do Direito" com sentido basicamente formal. Kelsen, inclusive na Teoria Pura publicada em 1934, sempre falou em teoria e não em filosofia: daí que a teoria geral, construída pelos formalistas que em parte o seguiam, tenha sido (e venha sendo) uma análise em que toda metafísica é evitada. Com o que se gerou um certo comodismo reducionista e também um certo equívoco: a teoria geral do Estado não se transmudou em teoria formal do Estado, embora o próprio Kelsen tenha escrito sobre o Estado, sempre no sentido de reduzi-lo ao ângulo jurídico15.

Na Itália de começos do novecentos, Benedetto Croce havia repudiado a expressão "Filosofia da História", e tam­bém o termo "Filosofia do Direito". Mas a sua crítica se prendia a certas implicações conceituais; não constituía um rechaço ao modo filosófico (nem metafísico) de pensar so­bre a história ou o direito.

Nos adeptos da teoria pura o apego à expressão "Teoria do Direito" — chamada por eles enfaticamente geral — traduzia, ou traduz, uma espécie de crença metodológica, a crença na delimitação do "objeto" Direito e na configura­ção formalística de uma teoria que, sendo do Direito, deixa por isso de incluir qualquer referência sociológica, política ou filosófica. Vão esforço de ascese16.

15 Nosso Da Teologia à metodologia. Secularização e crise no pensa­mento jurídico (ed. Del Rey, Belo Horizonte 1993), passim. 16 Confira-se Josef Esser, Princípio y norma en la elaboración juris­prudencial del derecho privado (trad. E. V. Fiol, ed. Bosch, Barcelona 1961), págs. 399 e 400. — Em verdade o neopositivismo, e em parte a fenomenologia, foram para as ciências sociais um retorno à tendência ao "fechamento" metodológico, que ocorrera, com outro perfil, no po-

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Na verdade pode-se registrar o grande contraste entre a riqueza de sugestões e de formulações epistemológicas e axiológicas produzidas no século vinte (em sua primeira parte sobretudo) e a redução operada pelos "puristas", em­penhados em isolar os temas ditos jurídicos de toda pers­pectiva que não a jurídica (o que no fundo implica uma petitio principii, mas não vamos discutir isto agora). Kel­sen, por exemplo, ocupou-se sempre de temas não jurídi­cos, mas tendo o cuidado de fazê-lo fora de seus livros jurídicos: assim suas reflexões sobre democracia e concep­ção do mundo, que não entrararnem sua teoria do Estado; assim sua larga meditação sobre a justiça, aliás admirável, colocada fora dos livros de Teoria do Direito e do Estado. Bobbio sempre fez o mesmo. Ainda, de certa forma, in­fluência da fenomenologia17.

A redução normativa, e depois dela a tendência analíti­ca, deram as costas a uma série de obras e de contribuições ao estudo das coisas humanas que poderiam, e podem, en-

sitivismo empirista do século XIX, ao tempo da Teoria Geral do Direi­to de Korkounov. O debate epistemológico, na transição para o nove­centos (cf. Pietro Rossi, "Max Weber, Dilthey e le 'Logische Untersu-chungen' di Husserl" em Rivista di Filosofia, II Mulino, Bolonha, vol. 84, n. 2, agosto, 1993), transformou-se aos poucos em uma grande voga dos problemas metodológicos. Cf. nosso Da teologia, op. cit. — V. ainda, para o caso da Itália, Carla Faralli, Diritto e Scienze Sociali. As-petti delia cultura giuridica italiana nelVetà dei Positivismo (Bolonha, Cluebl993).

17 A fenomenologia como "volta às coisas". E contudo sua combina­ção com o olhar predominantemente epistemológico do neokantismo, em Kelsen especialmente. Enlace, nas teorias das primeiras décadas do novecentos, do recuo ontológico husserliano, incentivador de distin­ções (a delimitação agora como "não negação"), com a busca de realida­des (o sociologismo, o psicologismo) e de objetividades não metafísi­cas. A revista Magazin Litéraire dedicou o n. 403, novembro 2001, aos ecos mais recentes da fenomenologia.

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riquecer a meditação filosófico-jurídica. Assim as obras de Weber, de Ortega e de outros, mencionados mais atrás; bem como as obras de Bachelard, que tentou superar o fechamento dado no racionalismo puro com um "raciona­lismo aplicado" e "cortes epistemológicos" sempre persua­sivos. Ou os trabalhos de Foucault, terrivelmente sutis (às vezes tendenciosos, embora) inclusive sua análise, em Les Mots et les Choses, da formação dos saberes "humanos" durante os séculos dezessete a dezenove. Mais a teoria dos valores desenvolvida sobretudo desde ScheLer-, e toda uma série de teorias e de estudos dirigidos a revelar o humano através de reconstituições históricas, reinterpretações e reelaborações; alem da forte tendência à concreteza, conti­da no existencialismo. Tudo isto o formalismo veio igno­rando ou pondo de lado, em favor da supervalorização das análises formais, logicistas ou semióticas.

2. A filosofia do direito como produto do pensamento ocidental

Adotamos a concepção — exposta por Spengler e por Toynbee entre outros, antevista por Fustel — segundo a qual o orbe greco-romano formou uma cultura específica (Spengler a denomina "antiga"), enquanto o ocidente pro­priamente dito surgiu no começo da chamada "idade mé­dia". Surgiu mais ou menos ao final do Império bizantino, com a confluência de três elementos básicos: o mundo ger­mânico, a religião cristã e o legado romano. É porém inegá­vel que o mundo "antigo", também chamado clássico, dei­xou, independente das formas romanas (inclusive as jurídi­cas), largos pedaços de saber e de arte aproveitados pelo Ocidente.

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A construção histórica de um campo de conhecimentos e de problemas, que se chamaria de Filosofia do Direito, correspondeu a um processo cultural situado no desdobra­mento de certos componentes do pensamento ocidental. Os gregos, criadores de uma filosofia política muito rica e importante, pouco deixaram, relativamente, no que tange à terminologia jurídica. Os romanos criaram essa termino­logia (não ignoramos a relevância das legislações mesopotâ-micas e helénicas), criaram conceitos por assim dizer defi­nitivos, mas no plano filosófico pouco acrescentaram à re­flexão grega. O saber medieval, quase sempre preso a mo­delos teológicos, reuniu a linguagem romana com os precei­tos bíblicos, mas — como já vimos — deixou os temas do chamado direito público para a filosofia (e para a teologia), construindo porém, com o direito canónico e o civil, um padrão extremamente duradouro18 A "filosofia do direito", entretanto, tardaria — vimo-lo atrás — a constituir-se.

Considerar a Filosofia do Direito como um produto do pensamento ocidental significa, portanto, distinguir entre suas fontes clássicas e sua elaboração acadêmica a partir do século dezoito. Significa, paralelamente, pensar no com­pacto trabalho de preservação dos legados, desempenhado, desde a antiguidade tardia e o medievo, por estudiosos de diferentes talhes, pensadores de peso e escribas modestos.

O tema merece um destaque especial. Importa avaliar e compreender adequadamente a devoção com que se de­dicaram a guardar e a repensar os textos antigos aqueles que os receberam e copiaram. Não por acaso Jacob Burk-hardt referiu-se à filologia como algo ligado a uma "força de

18 Veja-se o vasto livro de Harold Berman, Law and Revolution. The formation of the western legal tradition, Harvard Univ. Press, 8 a im­pressão, 1995.

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venerar" (verehrende Kraft). E é fascinante ter em vista a continuidade dos esforços dos sábios medievais e dos scho­lars modernos, no sentido de reler o textos, discernir suas partes, completar cópias: enorme seqüência dcacrescenta-ções e de confirmações em torno de obras antigas, na lite­ratura, na filosofia e no direito: mais ou menos as áreas a que, na época do Romantismo, época de Schleirmacher e de Schlegel, se aplicaria a renascente hermenêutica19.

Falamos há pouco da elaboração acadêmica do elenco de temas que viria a ser enfeixado sob o rótulo de "Filosofia do Direito". De certa maneira tal elaboração implicou (e implica sempre) um padrão disciplinar que inclui e assume um vocabulário e uma temática: além, obviamente, de fon­tes que são referências necessárias, fontes entre as quais se achavam e se acham aquelas tidas como "autoridades". Por mais que certos autores, como Nietzsche por exemplo, te-

19 A alusão de Buckhardt à filologia está citada no estudo "Humanis­mo y política. La aportación de W. Jaeger", de O. Siqueiros, em Moe-nia. Las murallas interiores de la Republica (Buenos Aires, n. 1, março 1980). — O processo de preservação e exegese dos legados antigos representa um aspecto extremamente importante da história da cultu­ra: desde logo vale lembrar a famosa obra de Ernst R. Curtius sobre a literatura medieval (European literature and the latin middle ages, trad. W. Trask, Pantheon Books, N. York 1953). V. também L.D. Rei-nolds e N.G. Wilson, Scribes and Scholars. A guide to the transmission of greek and latin literature (2a ed., Oxford 1984, reimpressão). Com­plicado mas sutil o livro de Conal Condren, The status and appraisal of classic texts. An essay on political theory, its inheritance, and the history of ideas (Princeton Univ. Press., N. Jersey, 1985): em especial o cap. 3, concernente à relação entre a teoria política e a fé em uma tradição de textos clássicos. — Para o referente ao direito não podemos omitir a monumental Introduzione alio studio storico del diritto romano, de Ric-cardo Orestano (2a edição, Giappichelli, Turim 1963). Vale aludir também a Franca de Marini Avonzo, Critica testuale e studio storico dei diritto (2a edição, Giappichelli, Turim, 1973).

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nham tentado quebrar os padrões acadêmicos, a aproxima­ção aos problemas envolve um mínimo de contacto com aquelas duas coisas, o vocabulário e a temática. Bem como de umas tantas citações, que valem mesmo quando evi­tadas.

3. Filosofia do direito e saber jurídico

A-proximidade — relação, distinção — entre a fiíosofia do direito e a ciência jurídica (esta com seus ramos e suas necessidades técnicas) pode ser considerada em dois sen­tidos.

Por um lado fica patente que o saber jurídico, mesmo entendido dentro de seus caracteres formais, não pode dis­pensar o contacto com a filosofia, ao menos no plano dos fundamentos e dos pressupostos. Mencionaríamos a cons­tante presença dos debates filosóficos na área do direito penal, inclusive com relevantes figuras de penalistas-filóso-fos, sobretudo na Alemanha (Welzel, Eberhard Schmidt). Bem como o Direito constitucional do século dezenove, sempre bordejando o plano filosófico, já com os românticos já com a geração que passa ao século vinte, neste caso com Hauriou e Duguit. No século vinte as questões metodoló­gicas levantadas em torno de obras tão díspares e tão exem­plares como a de Schmitt e a de Kelsen.

Por outro lado, porém, é inteiramente óbvio que a filo­sofia jurídica propriamente dita não se confunde com a ciência do direito stricto sensu. Vez por outra aconteceu, sobretudo na segunda metade do novecentos, que certos autores (e professores) influenciados pela pregação forma­lista, buscaram uma filosofia jurídica "rigorosa", isenta de conotações metafísicas e de ressonâncias históricas. Hus-

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serl, em 1911, falara da filosofia "como ciência de rigor", strenge Wissenschaft, e dessa pretensão, na realidade um equívoco, retiraram aqueles autores (e professores) mais uma dose de ânimo para seu credo metodológico. Observe­mos ainda o seguinte: do ponto de vista da ciência jurídica, faz (ou fez) mais sentido tomar como um dado a definição do direito como norma (as normas tradicionalmente cons­tituem o próprio direito positivo). Somente uma perspec­tiva filosófica permitiria, e foi o que ocorreu com Cossio, encontrar o jurídico na conduta, a conduta como expressão da liberdade, e portanto, do homem.

Na verdade, o "modelo" epistemológico sobre o qual se estruturou (e se vem renovando) a ciência jurídica, é um modelo empírico, embora com marca formalista: não pre­cisamente um saber "rigoroso", mas conceitualmente exi­gente e preso a dados definidos — principalmente os que constam do direito positivo.

A filosofia do direito precisa certamente manter con­tacto com o saber dos juristas, assim como a filosofia da história e a filosofia política em relação às ciências respec­tivas. Esse contacto corresponde aos temas e problemas fundamentais, aqueles que concernem aos valores, ou aos princípios (e às fontes); ou ainda a debates sobre justiça, direitos, unidade ou pluralidade do ordenamento.

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Capítulo II

As áreas do " CQnhecwmntG~pirMicGf' e a Filosofia do Direito

Sumário: 1. Alusão a alguns equívocos. 2. Sobre as negações da ciência jurídica. 3. Ciência jurídica e Filosofia do Direito 4. Mais sobre a Filosofia do Direito. Notas.

1. Alusão a alguns equívocos

Há sempre a permanência de equívocos e de pseudo-problemas no que tange ao traçado das relações recíprocas entre as áreas ou "campos" do conhecimento jurídico.

Um equívoco freqüente é o que se acha na referência à distinção entre a Filosofia do Direito e as "outras" ciências jurídicas. Na verdade a Filosofia do Direito não constitui uma das ciências jurídicas, nem se enfileira "entre" os sabe­res concernentes ao Direito20; ela possui um sentido espe-

20 Para uma discussão (não mui to envelhecida) sobre a existência de "filosofias particulares", A. Groppali, Philosophia do Direito, trad. S.

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ciai, que corresponde ao fato de ser uma projeção da pró­pria filosofia sobre uma temática localizada, mais ou menos como a sociologia jurídica é um debruçar-se da sociologia "geral" sobre certos aspectos do direito.

Filosofia e sociologia são no fundo modos de ver, são pontos de vista enfocados sobre as coisas. Não se subme­tem a espartilhos metodológicos nem necessitam de reco­mendações didáticas; não se amoldam inteiramente aos es­caninhos acadêmicos.

Há na verdade duas coisas distintas: uma o saber •jurídi­co em sentido restrito, que corresponde em princípio a cada um dos "ramos" do direito positivo — o direito que vale como aplicável —; outra os pontos de vista que, corres­pondendo a outras áreas, ou outros saberes, se dirigem ao direito. Assim temos a visão histórica do direito, que ras­treia permanências e alterações na experiência jurídica; te­mos a visão sociológica e a antropológica, e temos a psico­logia jurídica. Óbvio, portanto, que a perspectiva filosófica incide sobre o direito com o caráter abrangente, fundamen­tal e crítico que toda filosofia que se preze possui. Óbvio, também, que uma reflexão filosófica referida ao direito, isto é, ao "mundo do direito" (e aí se inclui o direito "como objeto" mas também a ciência específica que o acompa­nha), implica alguma familiaridade com as coisas daquele "mundo".

Com isso se pode colocar de lado a polêmica banal e inglória que alguns levantaram em torno de saber se a his­tória do direito é ou não uma ciência jurídica; outro tanto

Costa, 2a edição, Livraria Clássica, Lisboa, 1926, cap. III. Em Paulo Ferreira da cunha, Lições Preliminares de Filosofia do Direito (Almedi­na, Coimbra, 1998], Lição 5, uma análise minudente dos diversos as­pectos do tema.

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em torno da sociologia jurídica. Não são ciências jurídicas stricto sensu, mas a compreensão plena da realidade, ou das realidades (empíricas) do direito supõe que se vá (ou se esteja) além do estrito saber jurídico21.

A linguagem das ciências sociais, como a das ciências em geral, está sempre cheia de conceitos provindos de ima­gens imprecisas, o que às vezes leva a certas confusões. Este é um registro fácil de verificar, independentemente da aná­lise da linguagem científica. Confusões, diga-se, e mal-en­tendidos, como aquele que se tem quando, com intenção didática, se atribui às "disciplinas" que tratam de matéria jurídica — inclusive a filosofia, cabe ressaltar — determi­nados cometidos: assim diz-se que à sociologia cabe cuidar disto, à dogmática cabe cuidar daquilo.22. Há aí uma espé­cie de autoridade epistemológica, que confere existência a cada uma das disciplinas ao entregar-lhe esta ou aquela ta­refa, este ou aquele campo; tarefa e campo delimitados, já se vê, e definidos, dentro daquela preocupação com ter, toda ciência (ou disciplina), um objeto e um método incon­fundíveis e infungíveis como condição de existir.

21 A diferença entre o saber jurídico stricto sensu e o plano (ou o nível) dos saberes não dogmáticos que "aprofundam" ou enriquecem o conhecimento do direito, torna difícil o cultivo de uma "teoria (geral) do direito", sobretudo se a expressão for tomada no sentido formal estabelecido pelo normativismo e pelos analíticos. Ou tal teoria repre­sentará apenas uma ampliação do estudo de cada "ramo" do saber jurí­dico, ou será uma renovação de reflexões metodológicas, que termina­rão por contradizer os intuitos "positivos" da teoria.

22 Em trabalho de juventude, detectamos o esquematismo que ocor­re ao pensar-se muito literalmente nos "prismas" que se dão no estudo da realidade jurídica, como se esta fosse passível de se partir em gomos ("Ciência do direito e conhecimento histórico", de 1969, inserido de­pois em Velha e Nova Ciência do Direito, ed. UFPE, Recife, 1974 pág 34).

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Este artificialismo ocorre também, a nosso ver, nas teo­rias que adotam — ou que adotaram, desde meados do século vinte — o conceito formal (lógico-formal) de "Teo­ria Geral do Direito". Tocamos no tema acima. Na verdade uma teoria geral do direito não tem porque deixar de in­cluir uma perspectiva sociológica (ou sociológico-política), bem como algo de história e de filosofia. Uma teoria, refe­rente a qualquer das áreas institucionais — economia, polí­tica, etc — é "geral" na medida em que abrange os diversos aspectos de-seu objeto: o sociológico, o histórico, possivel­mente o filosófico. Chamar de "geral" a uma visão da polí­tica ou do direito que se entenda apenas com um de seus aspectos é transformar tal aspecto em um universo artifi­cialmente unitário: no caso do direito, a teoria "geral" que lida somente com o mundo das formas lógicas correspon­dente a certos conceitos tidos por fundamentais. Neste ponto a teoria geral praticada ao tempo de Korkunov e de Bergbohm estava mais correta.

2. Sobre as negações da ciência jurídica

A referência às "negações" do saber jurídico, ou de seu "valor" epistemológico, cabe na alusão geral aos legados e à permanência de problemas (e pseudoproblemas) dentro da cultura jurídica.

Desde logo deve-se distinguir entre a negação do direi­to, isto é, a concepção do direito como coisa "provisória" ou "derivada" (como no caso de Marx a consideração do jurí­dico, do político e do estatal como epifenômenos, estrutu­ralmente dependentes do econômico) e a negação da ciên­cia do direito como tal. No século XIX o direito foi negado pelo anarquismo, cuja condenação a todas as formas de

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poder incluía a ordem jurídica. Também se pode encontrar negações específicas da profissão dos juristas, por ines­sential23.

A negação da ciência do direito assume necessariamen­te um sentido epistemológico: trata-se de um pronuncia­mento sobre as bases daquela ciência. Como se sabe, unia prolixa conferência de Julius von Kirchmann, pronunciada na Alemanha em 1847, tornou-se célebre e influenciou todo o debate ulterior a respeito, várias gerações revisaram e repisaram o tema a partir dos termos de Kirchmann, ape­sar de sua argumentação ser totalmente equivocada, além de superada pela teoria das ciências nascida com o neokan-tismo24.

Motivos históricos têm contribuído para a permanên­cia, dentro do pensamento jurídico, de uma constante, ob­sessiva e sempre realimentada preocupação epistemo-me-

23 Cabe distinguir entre a crítica do saber jurídico feita por Kirch­mann, adiante mencionada, e a negação do próprio direito produzida por Marx, cuja visão economicista reduziu o direito e o Estado a meros entes "supraestruturais" em face da realidade social. Também o positi­vismo de Comte diminuiu o papel do direito, atribuindo à ordem jurí­dica (e à linguagem dos juristas) um caráter "metafísico". — Para enfo­ques especiais cf. Daniel Boorstin, The mysterious science of law (Har­vard Univ. Press, 1941). 24 Julius von Kirchmann, "El carácter a-cientifico de la ciência del derecho", em La ciência del derecho (Savigny, Kirchmann, Zittelmann, Kantorowicz), ed. Losada, Buenos Aires, 1949. Para uma crítica bastan­te pertinente, António Hernández-Gil, Problemas epistemológicos dela ciência jurídica, Cuadernos Civitas, madrid 1976, cap. I. Este autor afirma, aludindo de logo ao título da obra, que "la frase de Kirchmann es una trivialización seudopolítica de um problema no captado", pág. 18. — Sobre a negação da própria Filosofia do Direito, vejam-se as referências de Flávio Lopez de Onate, Compendio di Filosofia dei dirit-to (Giuffrè, Milão, 1955, § 8), com alusão principalmente às críticas expendidas por Miceli em sua Filosofia do Direito.

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todológica. Certo que nas ciências culturais sempre ocorre a auto-referência (a sociologia reexamina suas origens, a ciência política indaga de seus "limites"), mas na teoria do direito encontramos um verdadeiro narcisismo. Um misto de insegurança, inclusive em face da presumida solidez das ciências ditas positivas, e de modismo temático (o tema da pergunta pela "validade" e o das fronteiras metodológicas), vem levando, em certos casos, o saber jurídico a um inces­sante questionar-se.

Mas retenhamos que a filosofia jurídica é em substância uma filosofia: não pode reduzir-se à ênfase sobre o óbvio, nem comprazer-se em um jogo de paradoxos. A redução do direito ao seu "lado" social converte toda visão do jurídico em um capitulo da sociologia. O mesmo para o caso de sua redução ao político (o direito como função do poder, o que aliás é em parte verdadeiro). Mas no outro lado se acham os demorados e intrincados solilóquios formalísticos, que com freqüência transformam a preocupação com o rigor conceituai, em princípio procedente, em um excessivo es-miuçamento verbal.

Obviamente a epistemologia é sempre necessária, e o método é um componente relevante para todo pensar; mas nem o método pode ser visto como um fim (em vez de tomado como um meio) nem a epistemologia pode ocupar todo o espaço da filosofia. De certo modo a questão do método é comparável à da técnica: a técnica, qual dizia Heidegger, consiste basicamente em um dispositivo — isto é, em algo cuja valia repousa na instrumentalidade25. E a

25 Ortega delineou a diferença entre instrumento e máquina, esta um desdobramento daquele: Meditation de la técnica, em um volume com Ensimismamiento y alteration (Espasa-Calpe, Buenos Aires-México, 1939), pág. 138.

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mesma rotinização, que ronda o domínio da técnica (e que nasce dela), ameaça também o método, desde que tratado como um fetiche.

Estes são problemas que ocorrem no Ocidente moder­no: no mundo antigo a maneira de ver a "ciência" e o exer­cício da filosofia tenham outro sentido. Na Grécia clássica o termo epistème significou, em Platão, um saber seguro e válido, contraposto à doxa, conhecimento vulgar e instável. Usa-se também epistème para designar a dimensão da cul­tura que consta de-conhecimentos científicos e de idéias em geral. A partir do Renascimento a noção de ciência res­surgiu com caráter quase emblemático, vinculado ao saber matematizante de Newton e de Galileu, mas também aos afazeres da filologia e das nascentes disciplinas empíricas, como biologia e física. Com Kant a presença de um "fac­tum" científico, posto como referência para a análise dos processos gnosiológicos, revalorizou o saber físico e mate­mático oriundo dos séculos XVI e XVII. Com o neokantis-mo é que veio a renovar-se a reflexão sobre espécies de ciências, admitindo-se a dualidade entre ciências naturais e ciências culturais.

3. Ciência jurídica e filosofia do direito

Como sempre o desdobramento desses temas envolveu alguns equívocos. Assim o mau costume — por sinal já mencionado — de falar-se no "direito" abrangendo a acep­ção de realidade jurídica (ordem, experiência) e também a de ciência, como quando se diz, indevidamente, que "o direito é uma ciência social".

O advento da filosofia hermenêutica, elaborada em meados do século XX em torno do pensamento de Gada-

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mer, fez veicular-se a idéia segundo a qual as ciências so­ciais, ciências do homem e da cultura, são constitutivamen-te interpretativas. Então pensamos na ciência jurídica como ciência social e portanto basicamente interpretativa. Mas o saber jurídico se refere a um objeto, o direito como realidade, dentro do qual se encontra uma hermenêutica, que integra como "momento" específico a experiência jurí­dica. A este "momento" temos chamado de "componente hermenêutico". É, portanto, em doiS-pLanos que se pode falar em hermenêutica (aqui, evidentemente, sem distin­guí-la da interpretação) a propósito da ciência do direito.

Como já foi visto, pensar sobre a Filosofia do Direito supõe (ou inclui) pensar sobre a Filosofia em si mesma: teorização abrangente e crítica, centrada sobre determina­dos núcleos de problemas. Tal como vem sendo entendida e cultivada através dos séculos (através de umas tantas constantes e de uma série de alterações), a filosofia aparece na história como um modo de pensar que em princípio pode projetar-se sobre qualquer tema. Ela retira de si mes­ma seu estatuto epistemológico, seu repertório temático e suas relações com o sujeito humano. Ao desdobrar-se nas "filosofias especiais", o pensar filosófico se mantém ligado à sua auto-imagem epistemológica, subsistindo como filo­sofia em qualquer extensão temática a que se volte.

Sempre vale recordar, contudo, a observação, feita já por algum critico, segundo a qual existem Filosofias Jurídi­cas produzidas por filósofos e Filosofias Jurídicas produzi­das por juristas. Obras como as de Kant e de Hegel ilustram o primeiro caso. No último século predominaram talvez as filosofias do Direito escritas por juristas: constitucionalis­tas que aprofundam a reflexão sobre o Estado ou sobre as normas constitucionais, penalistas que buscam bases mais

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largas para sua ciência (relevante a relação, principalmente na Alemanha como já mencionamos, entre direito penal e filosofia26. Ou mesmo tributaristas que tratam da igualda­de e recorrem à homonoia grega para repensar o tema. Uma coisa, porém, é um filosofar que procura o sentido do direi­to dentro da existência humana e que se desdobra por con­ta de questões de axiologia e ontologia; outra, a visão do direito que se move em torno de problemas internos da ciência jurídica, só que ampliados com a menção a certos itens "gerais". A filosofia do direito cumpre, mesmo deten-do-se aqui e ali sobre temas próprios da "teoria geral" (tais como fontes, princípios etc), compreender as conexões do chamado mundo jurídico com o humano e com os demais setores institucionais que ladeiam o direito27.

Neste passo, a propósito das relações entre filosofia ju­rídica e ciência do direito, cabe aludir a um curioso precon­ceito existente no Brasil de hoje. Autores e professores que se apresentam como filósofos "aceitam" que se possa ser a um tempo sociólogo e filósofo, ou economista, ou psiquia­tra e filósofo: não jurista e filósofo. A coisa, ao que parece, refoge porém ao questionamento epistemológico e possui implicações acadêmicas, quando não pessoais e ideológicas.

26 Observações um tanto distintas de nosso tema no texto de Alain Renaut e Michel Troper, "Droit des juristes ou droit des philosophes", em Pierre Bouretz (org.), La force du droit. Panorama des débats con-temporains (Ed. Esprit., Paris, 1991), págs. 229 e segs. 27 Hernández-Gil anotou a tendência recente da filosofia do direito no sentido de ser, "em lugar de uma contemplação deste (o direito) desde a filosofia geral, uma demasiado literal filosofia do direito, na qual a especulação filosófica se acomoda ao seu objeto": —Problemas epistemológicos, cit., pág. 30.

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4. Mais sobre a filosofia do direito

Referimo-nos, pouco acima, ao fato de a reflexão jurí-dico-filosófica abordar eventualmente —ou mesmo "subs­tancialmente" — temas que em verdade são próprios da teoria jurídica geral: no caso, problemas como o das fontes, o dos princípios, o da aplicação do direito. Sob certo prisma cabe dizer que esta "interpenetração" temática provém do prestígio que, de qualquer modo, têm adquirido —perante a filosofia — obras de Teoria Geral do Direito ("geral" ou não) onde se discutem de modo competente e persuasivo aqueles temas, cujo entendimento se torna relevante para a reflexão sobre o direito como tal, e portanto interessante, também, para o deslinde especificamente filosófico dos as­pectos peculiares ao direito. Ao direito, à ordem jurídica, à experiência jurídica.

Quando se pensa em uns tantos temas que aparecem nos livros de "teoria do Direito" (bem como nos de "intro­dução"), mas também nos de Filosofia Jurídica, temas como fontes, ordenamento, relação entre norma e concre­ção, podemos pensar em como distinguir a sua pertinência a cada um dos dois "espaços" epistemológicos. Ou pergun­tar com qual dos dois devem ficar. Uma resposta consistirá em dizer que tanto a filosofia como a chamada teoria (ge­ral) podem "legitimamente" tratar daqueles temas,, e no caso a diferença deverá provir do ângulo ou da perspectiva correspondente. Outra resposta, talvez mais próxima do certo, atribuirá aqueles temas a uma teoria ou uma visão não propriamente filosófica do direito. Eles podem ser "tratados" filosoficamente, se são relacionados ao próprio conceito de direito, ou se pensados em relação com uma ontologia ou uma axiologia: o direito como ordem institu-

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cional, como configuração de condutas, como algo necessá­rio dentro das convivências humanas.

A referência a ângulos e perspectivas nos leva de novo ao problema do método. As opções metodológicas sempre carregam implicações em termos de Weltanschauung; por outro lado, tais implicações devem fazer parte do conheci­mento de si mesma que a filosofia possui. Uma filosofia do direito dirigida pelo método do "materialismo histórico" exibe ostensivamente uma visão-do-mundo; uma filosofia centrada sobre o método analítico reflete outra.

Daí a relevância da reflexão epistemológica como lugar teórico em que se reconhece o terreno, com suas frontei­ras. Mas há filosofias, como dissemos, em que tal reflexão tende a dominar todo o campo; em outras, aparece com mais destaque a abordagem concernente a instituições e a valores.

No terreno da filosofia política — vizinha e por assim dizer sócia da jurídica — é sempre preferível, ao tratamen­to convencional (e "didático-sistemático") das questões, uma combinação da história das idéias com a visão crítica da experiência institucional.

Do mesmo modf) uma filosofia do direito se enriquece­rá com a convergência entre a história das idéias (ou dos problemas) e a compreensão do "papel" do direito no mun­do humano. O direito e seus itinerários existenciais, como diria Sérgio Cotta28. Uma filosofia do direito que tenha abrangência e calado deverá ser, entre outras coisas, uma reflexão sobre as situações históricas em que ocorre a expe­riência jurídica: situações históricas e, o que é quase o mes­mo, contextos culturais. A partir daí se tornam compreen-

28 Sérgio Cotta, Itinerari esistenziali dei diritto, ed. Morano, Nápo­les, 1972.

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síveis os valores e as normas, as condutas e a ordem, os princípios e a hermenêutica.

Mencionar o "papel" do Direito dentro do mundo dos homens — o mundo são os homens — significa incluir, na reflexão a respeito, o problema do fundamento. Nas gran­des filosofias a relação entre metafísica e ética, ou entre ontologia e epistemologia, tem a ver com a busca de um apoio: o valor se apoia no ser, o conhecer e o ser se interli­gam, o crescimento interno da reflexão geral (como "siste­ma" ou não) revela a necessidade de uma fundamentação. Logos, substantia, Sein, sempre ocorre um termo em torno do qual, em certa época, se estruturam os outros. Obvia­mente as filosofias especiais recorrem aos dados da filoso­fia "geral" para fundamentar-se: nesses dados buscam a confirmação de conceitos centrais (o do direito, o do po­der, ou outros).

* * *

Aplica-se às filosofias do direito aquilo que alguém já escreveu sobre as teorias filosóficas em geral: umas dão destaque maior à epistemologia (e à metodologia), outras enfatizam a praxis e os valores. Certamente há ai um es-quematismo exagerante e simplificador. Mas de qualquer sorte é verdade que algumas teorias tendem a reduzir a visão do jurídico à análise da linguagem, ou ao estudo do "conhecimento jurídico"; outras se voltam para a com­preensão dos contextos e para a problemática dos valores29. Já tocamos no assunto.

29 Para um exemplo deste segundo tipo de perspectiva, cf. J. Esser, Princípio y Norma, op. cit, cap. V, págs. 104-105.

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De tudo isso decorre uma conclusão aparentemente ba­nal: a filosofia do direito deve elaborar-se como uma refle­xão fundamentada e diversificada. Deve estar referida a um certo conjunto de informações e de questões, que de­vem ser levadas em conta e que incluem categorias filosófi­cas; e deve desenvolver-se por distintas áreas, não se redu­zindo a uma "filosofia social" nem permanecendo nas inda­gações epistemológicas. O direito como realidade humana ocorre obviamente na convivência e se situa no plano insti­tucional das sociedades: pensar filosoficamente sobre seu significado é pensar sobre estruturas, valores, preceitos, conceitos.

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Parte II

O CHAMADO FENÔMENO JURÍDICO

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Capítulo I

O problema do conceito

Sumário: 1. Problemas gerais. Compreen­der e conceituar. 2. Em torno do objeto "direito". 3. Reducionismos. 4. Direito e forma. A "juridicidade". 5. Breve alusão a nomes e correntes. Notas.

1. Problemas gerais. Compreender e conceituar

Pensar sobre o direito significa tomá-lo como um obje­to. Isto é evidente, e é uma concessão que cabe fazer aos formalistas e à fenomenologia. Pensar sobre um objeto im­plica distinguí-lo dos demais — outra obviedade e outra concessão análoga.

No caso do direito, o que importa é acentuar que os outros objetos, dos quais ele se distingue (e queremos que se distinga), são os outros "setores" (ou as outras áreas) da vida social, que são estudadas por ciências específicas, como a economia, a educação etc. Distinguem-se do direi­to justamente por serem, como ele, partes do viver social, porções institucionalizadas da ordem social geral. Esta dife-

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renciação não é a mesma coisa que a distinção entre as ciências que, respectivamente, tratam daquelas porções: a do direito, a sociologia, a ciência econômica e via dicendo.

Pensar no direito envolve uma "noção" do fenômeno jurídico, mas a referência a esta noção supõe por sua vez uma distinção (pelo menos implícita) entre o direito e cada um dos setores da vida social — mencionamo-los acima —, os setores que preenchem a ordem social geral. Evidente­mente esta ordem geral é um denominador comum para a conceituação daqueles setores: nela se situam a organização econômica, o sistema educacional, a religião, a estrutura familiar. Ao entender o direito dentro desse denominador comum, compreendem-se as relações entre a ordem jurídi­ca e os outros setores que "ocupam" (e movimentam) o sistema social. Daí que se possa falar no direito como resul­tante da economia, como produto do poder político ou

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como coisa autônoma30.

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No problema da conceituação do direito (como em todo problema de conceituação nas ciências sociais), cabe­rá distinguir dois aspectos, o lógico e o ontológico. Toda lógica tem sentido basicamente instrumental: o que ela de­lineia, ou articula, com o fim de tornar inteligível ou mes­mo convincente o que se formula, é realmente algo já pen­sado por um pensamento que sabe, antes de expressá-lo, o que vem a ser o objeto conceituado. Na medida, porém, em que se confere à lógica um sentido ontológico, atribuin­do ao "ser" contido nas proposições uma ressonância relati-

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( 30 V. nosso "Conceituações do direito: tendência privatizante e ten­dência publicizante", ora em Estudos de teoria do direito (Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 1994), cap. III. — Para alusão aos aspectos mais gené­ricos, Niklas Luhmann, Soziale Systeme. Grundriss einer allgemeinen Theorie, ed. Suhrkamp, Frankfurt 1991.

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va ao real (os homens que habitam o silogismo clássico equivalem aos que moram aqui ao lado), o conceito concer­nente a tal ou qual objeto alude de alguma forma à substân­cia deste objeto. Sua substância ou (no caso dos objetos sociais) sua condição existencial.

Digressão com referência a Hegel. Quando pensamos na diferença/relação entre a parte de lógica nas definições e a parte de ontologia, valerá falar da relação/diferença en­tre o ser e o pensar.

Um tema milenar (vindo de Parmênides) retomado por alguns pensadores modernos, principalmente por Hegel, que em sua teoria da essência buscou reunir o ser e o con­ceito, vinculados por um movimento interno do ser31. Ao tratar do direito, teremos o seu ser na sua própria realidade empírica (decisões, conduta, etc) e também em sua estru­tura, onde entram conteúdos verbais, portanto formas de pensar. Um pensar que expressa um ser, e que ao mesmo tempo o altera e conduz: doutrinas, conceitos, argumenta­ção. O direito envolvendo uma autoconsciência, a dos con­ceitos que são críticos de si mesmos32, e também um cons-

31 G. W. F. Hegel, Science de la logique. Premier tome. Deuxième livre, La doctrine de l'essence (trad, e apresentação por P. J. Labarrière e G. Jarczyk, ed. Aubi er- Montaigne, Paris 1976), pag. 1: "la verité de l'etre est son essence"; pág. 6: "L'Essence se tient entre Etre et Con­cept, et constitue leur 'moyen-terme, et son mouvement le passage de l'Etre dans le concept". — Cf. também J. Biard, D. Buvat e outros, introduction à la lecture de la Science de la Logique de Hegel. I, L'Etre (Aubier, Paris 1981).

32 G. W. F. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, ed. Re-clam, Stuttgart 1976.

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tante reexame que é uma das tarefas da hermenêutica. Na verdade a hermenêutica, ao refazer constantemente o en­tendimento dos núcleos normativos da ordem jurídica, ins­taura um nexo entre ser e pensar. Julgar-se-á, aí, que a hermenêutica se acha no "lado" do pensar, não no do ser; mas a idéia de "lados" empobrece a relação entre pensar e ser, representando uma separação didática que pode desfi­gurar o problema (o pensar, "onticamente", inclui a refe­rência ao ser, e por seu turno a hermenêutica tem de estar referida a um objeto). Termina a digressão.

* * *

A importância da tarefa de conceituar o direito não pro­vém, propriamente, da obtenção de um produto verbal a traçar com rigor o "perfil" do objeto conceituado. Mas sim no fato de permitir situar o direito, dar-lhe as devidas di­mensões e indicar sua inserção no mundo dos homens. En-tendendo-se o direito como ordem, como conduta ou como norma, ele será de qualquer sorte visto como parte da vida social, e ao mesmo tempo como realidade, setor ou dimensão específica dentro dessa vida.

Com isto temos que um dos momentos mais relevan­tes, dentro da indagação sobre o direito, é a questão da sua universalidade. Tal questão corresponderia, a utilizarmos a antropologia cultural da primeira parte do século vinte, a uma pergunta sobre se o direito constitui um dos "univer­sais da cultura", tal como o poder, as crenças, a linguagem, a ordem econômica, o forma de parentesco.

Por um lado, diante do problema, caberia dizer que ao direito cabe, em cada sociedade, regular a solução de ques­tões relativas àquelas coisas, as que aparecem como "uni­versais": sem o direito, o poder não seria convincente, as

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crenças não se administrariam, o parentesco também não. Mas neste caso vale pensar também que o direito — aqui tomado obviamente em sentido muito amplo — "pressu­põe" o poder e o parentesco, e também a linguagem e as crenças (que em termos de século vinte podem tomar-se no sentido de valores).

No fundo a idéia de uma "universalidade" do direito é um produto do racionalismo moderno, que passa pelo ilu­minismo e pelo néo-kantismo. O afã conceituador do racio­nalismo pedia (ou pede) uma imagem do direito capaz de transcender as fronteiras culturais e também as cronológi­cas: o direito, como o Estado, como a liberdade, como o homem, todas estas coisas vistas como entidades incondi-cionadas, independentes de contextos. Como se fossem figuras geométricas — como na ética more geométrico —, como se fossem atemporais.

No âmbito das ciências sociais, as conceituaçÕes pos­suem — o que é consabido — um sentido diferente daque­le que apresentam nas ciências naturais. Ou nas "positivas". Naquelas não prevalece a referência aristotélica ao gênero ("próximo") e à diferença (específica), que pressupõe um objeto imutável ou pelo menos colocado em mudanças len­tas cuja estrutura corresponde a regularidades (como as "leis" da física ou da biologia). Nas ciências sociais sempre se insinua a particularidade de cada caso — as classes nesta ou naquela sociedade, o feudalismo na Itália ou na Rússia —, bem como a variabilidade histórica (as classes no século XVIII ou no XX, os feudos no séculos XII ou no XV): creio que é de Nietzsche a frase segundo a qual "o que tem his­tória não se define"..

Além disso as coisas que se dão na experiência social pedem (e disso se sabe desde Weber, desde Gadamer) um entendimento por compreensão. A distinção néokantiana

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entre explicar e compreender traz para a conceituação nas ciências sociais, ciências do humano, a necessidade de lidar com isto. Dinastias, castas, ritos, migrações não se definem como se fossem triângulos ou retângulos, mas têm seu sig­nificado apreendido de modo específico. A imagem das formas sociais, e dos processos, podem inclusive ser vistas como exemplaridades. As coisas que integram o conheci­mento da vida das sociedades vão-se fixando como imagens cuja compreensão sempre envolve comparação e estima­ção.

Poderíamos distinguir entre a mera descrição (datas, nomes,lugares), a descrição que pode aproximar-se do res­peito às coisas contido (com algo de positivismo) no méto­do fenomenológico, e a referências às causas, tão convin­cente perante o senso comum e consagrada desde pelo me­nos Francis Bacon: vere scire est per causas scire. A idéia de causas, porém, pode-se, desde os neokantianos, acrescen­tar a de compreensão; ou substituí-la por esta. A compreen­são, que é um modo de ver concernente a significações, pode por sua vez enriquecer-se com a busca das "conexões de sentido" (que estavam ou estão em Weber, nos histori-cistas e na sociologia-do-conhecimento).

2. Em torno do objeto "direito"

Destarte o Direito, enquanto ordem e enquanto her­menêutica, se situa desde logo como realidade histórica — tanto quanto a política e a religião. O que existe (ou vem existindo) são os direitos, ordenamentos jurídicos, assim como as formas políticas concretas (polis, reinos, repúbli­cas) e as religiões efetivas. A compreensão dessas realida­des implica uma hermenêutica, e dentro de cada uma delas

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ocorrem formas de hermenêutica (a visão ortodoxa dentro do império moscovita, a conceituação racional e sistemati-zante dentro do direito ocidental moderno).

Daí, como apontamos, a validade da comparação: o en­tendimento maior de cada setor institucional, sobretudo se dirigido à obtenção de um conceito genérico, tende ao com­parativo. A historicidade e a diversidade da experiência, no caso do direito como no da política ou no da religião, se dimensionam como indicadores de um sentido geral: o hu­mano, como ação ou como crença, se biparte e se desdobra, como imagem, entre a generalidade e a particularidade33.

Tais considerações se revelam válidas diante do sempre renovado problema de dizer "o que é" o direito. Em certas épocas multiplicam-se as tentativas a respeito, como na primeira metade do século vinte, inclusive por influência da fenomenologia e de sua característica alusão aos objetos: a idéia de isolar objetos, como o sagrado (e o profano), o político, o social, e de fazer distinções, como entre magia e religião, poder e autoridade. Distinções por sinal úteis e motivadoras para o pensar e para a teorização, mas às vezes inibidoras no tocante à compreensão da relação entre as instituições e o viver dos homens34.

33 Como temos dito, houve uma teoria iluminista da lei e uma teoria do direito com o romantismo. A primeira produziu entre outras coisas a advertência de Beccaria sobre crimes sine lege. A segunda englobou os racionalismos (inclusive o hegeliano) e a antropologia empírica, junto da qual vinham teorizações como a de Baçhofen ou a de Sumner Maine.

34 Ao cuidado com a separação dos objetos entre si, derivado da feno­menologia, somou-se, no caso do direito, a idéia neokantiana referente à criação do objeto pelo entendimento. Esta idéia, que aparece desde logo em Stammler, terá sido um dos ingredientes do cerrado pensa­mento de Kelsen, cuja cimentação correspondeu ao cientificismo neo-positivista. — Sobre o problema da forma em Kant e nos primeiros juristas de inspiração kantiana, Antonio Negri, Alie origini del formalis-

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Mencionamos acima o afã conceituador vigente na pri­meira parte do século vinte. Dele surgiu com especial rele­vo a concepção do direito como norma, ligada principal­mente ao nome de Hans Kelsen. Surgiram também dife­rentes versões da idéia (sempre válida) do direito como ordem, entre elas a de Cari Schmitt, que mencionava o direito como "ordem concreta". Surgiu a teoria institucio-nalista (com uma variante francesa, vinculada à obra de Hauriou, e outra italiana, concernente ao pensamento de Santi Romano). Apareceram: concepções trialistas, entre elas a de Wilhelm Sauer e a de Jerome Hall; e também a famosa teoria de Werner Goldschmidt, na Argentina. No Brasil, Miguel Reale formulou uma elaborada variante do tridimensionalismo, alimentada interiormente pela "dialé­tica de implicação e polaridade". Enquanto as teorias tria­listas e tridimensionais provieram da necessidade de evitar os reducionismos ou unilateralismos — a teoria de Kelsen seria um deles —, a reflexão de Carlos Cossio tentou ser uma retificação da doutrina kelseniana, deslocando o cen­tro para a noção de conduta e aludindo à norma como ins­trumento para o conhecimento da conduta.

Às vezes a "resposta" à pergunta pela definição do direi­to se torna menos relevante, dentro de certas teorias, do

mo giuridico (Cedam, Pádua, 1962). — Em contraste com a disciplina­da crença na conceituação racional, encontramos a crítica que aponta, no pensamento jurídico, metáforas e conotações comprometidas com interesses concretos. Por exemplo, o livro de R. Wiethõlter prosaica­mente intitulado Rechtswissenschaft (Frankfurt 1968) e editado em italiano com o título Le formule magiche delia scienza giuridica (ed. Laterza, Bari 1975). V. também J.l. Martinez Garcia La imaginación Jurídica (Ed. Debate, Madrid, 1992) que inclusive trata da "invenção jurídica da realidade"; e ainda Peter Fitzpatrick, La mitologia dei dere-cho moderno (trad, esp., Ed. SigloXXI, México 1998).

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que o desenvolvimento de questões complementares. De fato o que importa em certos casos são os problemas que levam à definição, ou que estão "implicados" nela: proble­mas genéricos, ligados a propósitos metodológicos e poten­cialmente hermenêuticos.

3. Reducionismos

O esforço conceituador, conrfreqüência, ao envolver o intento de evitar confundir o direito com outras coisas (se­tores da vida social, como foi visto), leva a enfatizar com demasiado empenho a distinção entre o fenômeno jurídico e a política, a ordem social, a economia. Com isso ocorre a tendência a reduzir o direito a um determinado componen­te. Isto havia ocorrido nas teorias chamadas sociologistas (Ehrlich por exemplo), no começo do século vinte, e se tornou ostensivo com os formalismos; com o normativismo de Kelsen sobretudo35(6). Foi intenção das teorias triádicas superar os dois tipos de redução, buscando descrever o direito como integração de elementos36.

Os reducionismos revelam em geral visíveis pendores ideológicos, como no caso do marxismo que põe na alusão ao "social" (o social dominado pelo econômico) a marca definidora do direito. As teorias formalistas, com seu redu-cionismo sofisticado e drástico, terminaram por tentar os

35 Vale recordar as observações de Hermann Kantorowicz, no senti­do de definir o direito como algo que vem sendo objeto do saber dos juristas: La definición dei der echo, trad. J. de la Vega, Rev. de Occiden­ts, Madrid 1964, princ. Cap. II. 36 Sobre "direções metodológicas" e sobre abranger ou não o objeto como um todo: cf. Ortega y Gasset, Orígen y epílogo de la filosofia (FCE, México 1998), cap. II: "Los aspectos y la cosa entera".

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juristas práticos com uma comodidade terminológica: uma simplificação que serve à linguagem da prática e favorece a dogmática. Na realidade o direito é um fenômeno comple­xo, como o é a política, na qual se encontram também dife­rentes elementos. O reducionismo consiste na necessidade de eleger um deles, como exclusivo definidor do fenô­meno.

A conceituação do direito como (puramente) norma parte de um suposto negativo, o de que ele não é o poder, nem a ordem, nem está nos valores. A ênfase sobre a norma pode-se contudo antepor a indagação: qual norma? A res­posta kelseniana seria singelamente esta: a jurídica.

Normas religiosas, éticas e jurídicas incidem sobre con­dutas, é claro; e carregam conteúdos éticos, econômicos, sociais. A norma se coloca entre pressupostos materiais (que o formalismo não considera jurídicos) e objetivos ou finalidades, que têm o que ver com a vida humana em al­gum de seus aspectos. Isolar a norma, separando-a dos pressupostos e dos objetivos, supõe um método que se diz jurídico: um método para descrever a norma jurídica37.

Para certos autores, o direito seria mais ou menos isto: um sistema de normas que se realizam com base em uma interpretação. Mas o mesmo cabe dizer da religião, senão também da educação. O que ocorre no direito é a presença de um poder oficial (o Estado), que impõe a ordem, indo da norma à sentença. Não significa um "estatalismo" no sentido do positivismo doutrinário: significa que a parte da interpretação, que é indispensável (e que inclui o plano dos

37 Valioso o artigo de Wagdi Sabete, "La théorie du droit et le problè-me de la scientificité. Reflexions sur le mythe de 1'objectivité de la théorie posítiviste", em Riv. Internazionale di filosofia dei diritto (Giuffrè, Milão), série IV, LXXXV, 1998.

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valores e o dos princípios) completa a do Estado e da res­pectiva ordem38.

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Poderia dizer-se que a conceituação do direito como conduta (que o próprio Cossio, não sem certa razão, cha­mou revolução copernicana) envolve um reducionismo. Mas ela o compensa, teorizando a norma como "organon" por meio do qual se pode compreender a conduta, com­preendendo o direito como algo vinculado à vida humana. De qualquer sorte foi e é uma teoria ainda presa à imagem da norma: a conduta se entende como jurídica em relação com uma conjunção de sentidos onde se inclui a norma39.

Mais sobre conduta. Também na política, na educação ou na economia ocorre a conduta, fenomenologicamente detectável, como elemento relevante. Algo a caracteriza

38 Voltando às teorias integradoras. Compete mencionar Wilhelm Sauer (Filosofia Jurídica v Social, trad. Legaz, Ed. Labor, Barcelona 1933); Jerome Hall [Kazan y realidad en el derecho, ed. Depalma, Buenos Aires 1959); Werner Goldschmidt, La ciência de la Justicia (dikelogía), ed. Aguilar, Madrid 1958; Miguel Reale, Filosofia do Di­reito, 14a edição, Saraiva, São Paulo 1991. — Sobre Reale, v. os traba­lhos coligidos em Direito Política Filosofia Poesia, São Paulo, Saraiva 1992. — Sobre Goldschmidt vários estudos de M.A. Ciuro Caldani, inclusive "Notas sobre ei lugar histórico-cultural dei derecho y ei tria-lismo", em Estúdios jusfilosóficos, Rosário 1986. — Sobre as teorias integracionistas no direito constitucional da primeira metade do século XX, nomeadamente as de Rudolf Smend e de Dietrich Schindier, nossa Formação da Teoria constitucional, op. cit., cap. IX, n. 79, págs. 200 e 214. 39 Carlos Cossio, La teoria egológica dei derecho y ei concepto jurídico de libertad, ed. Abeledo-Perrot, Buenos Aires 1964, 2a edição; El dere­cho en ei derecho judicial, 3a edição, AbeledoPerrot, Buenos Aires 1967; Teoria de la ver dad jurídica, Ed. Losada, Buenos Aires 1954.

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como conduta política, pedagógica ou econômica: prova­velmente sua referência a uma ordem (política, econômica, pedagógica), referência que termina por situar valores e preceitos. A inteligibilidade da conduta corresponde à sua inserção em determinada ordem, ou sua relação com ela: essa inteligibilidade se desdobra em uma hermenêutica, porquanto a própria relação entre ordem e conduta envolve um plano de conceitos que permitem interpretar a ordem. Tudo isto se aplica obviamente à conduta jurídica.

Por outro lado, se considerarmos a idéia de conduta como um correlato da de ação (inclusive no sentido que a esta dá Arendt), ela aparecerá como uma projeção criado­ra, a partir das virtualidades do ser humano: a ação como conceito político conotando o tema do poder e também aludindo à relação (que estudamos acima) entre a politici-dade e os valores. A conduta como ação se acha na decisão, se acha na escolha e nas tomadas de consciência.

No fundo, a questão de saber se o direito é norma ou ordem ou conduta, enfim se é isto ou aquilo e qual o seu componente decisivo, era (ou é) ainda um resíduo do tema oitocentista do "fator principal".

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Digressão sobre proporção e divisão. Já se fez referên­cia ao fato de que o direito tem sido visto, também, como medida, como divisão ou como proporção: a própria idéia de ordem se concilia com a de proporção, um termo aliás usado já por Dante em sua famosa definição do direito40.

40 "Jus est realis et personalis hominis ad hominem proportio, quae servata hominum servat societatem, et corrupta corrumpit": De ma­nar chia (ed. latina org. por A. Meozzi, ed. Vallardi, Milão 1938), Livro

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Michel Villey, em suas pesquisas para sua tese da inexis­tência de um direito subjetivo entre os romanos, menciona o objetivismo contido nas expressões usadas por Dante para encontrar em droit (com que traduz jus] uma "confor­midade a uma linha preestabelecida" e uma equivalência tanto em face de jus como de justum4^. Proporção implica igualmente divisão, que nos recorda a noção de "reparto", utilizada por Werner Goldschmidt como base para uma "axiosofia da justiça" e como referencial para todas as dife­renças e conexões ocorrentes entre indivíduos ou entre grupos42.

4. Direito e forma. A "juridicidade"

No interior do problema do conceito do direito se en­contra a questão do direito "positivo". Toda definição do

II, § IV. — Cari Schmitt, no livro O Nomos da Terra, aludiu à idéia de "medição" de lugares e solos, e com isso à origem "espacial" de certos conceitos jurídicos (Der Nomos der Erde, ed. Greven, Colônia 1950; trad. esp. El nomos de la tierra, CEC, Madrid 1979). — Michel Fou-cault levou a noção de espacialidade à imagem das distinções epistemo­lógicas, falando em três "regiões" epistemológicas (a psicológica, a so­ciológica e a concernente à linguagem com suas leis): Les mots et les choses, ed. Gallimard, Paris 1966, págs. 89, 356, 366 e segs. Interessan­te mas confuso. 41 M. Villey, Leçons d'Histoire de la Philosophie du Droit, Dalloz, Paris 1957, pág. 260. 42 Vale aludir também à teoria de Georges Dumézil sobre a presença, nos estágios mais antigos das línguas indo-iranianas e ítalo-célticas, de termos atinentes a três classes sociais: Dumézil destaca a tríade indu (brâmanes, guerreiros, agricultores) e a romana (religiosos, militares, agricultores): Idées Romaines, 2 a edição, Gallimard, Paris, 1980, págs. 155 e segs.

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direito, mesmo moldada em termos genéricos, tem em mira o fenômeno jurídico como algo real, algo que se realiza nos marcos de um determinado ordenamento. O que signi­fica a presença do Estado, com sua soberania (pelo menos formal e entre aspas) e com os seus órgãos, relacionados à produção e à aplicação do direito. Daí a tendência a reduzir ao direito dito positivo o que se afirma do "direito" como tal. Toda referência a um ordenamento alude de fato à sua "positividade": o direito alemão, o direito português são mencionados como ordens positivas.

A reflexão sobre o assunto poderá incluir uma referên­cia à diferença entre o direito e os ordenamentos jurídicos, que são "direitos" no sentido de serem estruturas em que se realiza o direito com as características que seu conceito abrange. O tema é análogo ao da distinção entre a religiosi­dade, traço peculiar aos seres humanos, e as religiões posi­tivas, situadas e concretas, institucionalizadas. Cada reli­gião (positiva) pode estar dividida em "ramos", como o cristianismo diferenciado no catolicismo, no protestantis­mo e na Igreja ortodoxa, o que não impede de pensar-se na religiosidade e conceituar a "religião" em termos genéricos. Do mesmo modo distinguimos entre apolítica (ou a politi-cidade) e as ordens políticas efetivamente existentes no mundo.

Destarte a "juridicidade" pode entender-se como ca­racterística de um ato ou de um preceito, ou como nota que distingue uma ordem ou um poder. A noção de juridi­cidade se relaciona com a forma. Embora fazendo a crítica dos formalismos na teoria do direito, temos de reconhecer que o direito é, em grande medida, forma. Ainda quando conceituado como medida (adiante voltaremos ao ponto), o direito (o "objetivo", já se vê) consiste em uma forma: o que mede, neste caso; ou então o que delimita, o que for-

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mula negações ou imposições: formula-as por meio de re­gras. "Dentro" da forma se acham os conteúdos, e desde Stammler se discute a relação entre forma e conteúdo; mas sempre entendido que há uma forma. O formalismo, que se dá no plano epistemológico (como exclusão de compo­nentes empíricos na conceituação do direito), aparece como exageração, como redução, apertando a noção do ju­rídico no componente norma.

O componente forma é indescartável, embora sem que serecuse que a compreensão integral da experiência jurídi­ca requer a referência a elementos não formais, como valo­res, e a dimensões empíricas como a historicidade. Na di­mensão histórica reconhecemos a inserção real da ordem, a ordem que, como um todo, confere sentido à norma. Na história encontram-se os dados e as referências para a com­preensão — portanto para a hermenêutica —,e a própria epistemologia ocorre na história dentro de um processo cultural43.

A propósito de historicidade e de dimensão histórica, vale mencionar a diferença entre o direito (e sua função) no mundo "estável" que parece ter sido o das sociedades oci­dentais até mais ou menos o século XIX, e o direito no mundo instável e crescentemente complexo de hoje: isto é, o das décadas mais recentes. O problema corresponde, em

43 Sobre a relação entre a norma e a ordem, nosso Ordem e Herme­nêutica (ed. Renovar, Rio de Janeiro 1992). — Desde 1917, Santi Ro­mano havia trabalhado o tema: cf. nosso artigo "Santi Romano: para um reexame de sua obra e de seu pensamento", em Rev. Brasileira de Estudos Políticos, n. 81, julho de 1995. — E a propósito de epistemolo­gia: Carlos Moya alude ao direito como fundamento da própria cidada­nia romana e também como "último limite epsitemológico da razão romana" (De la ciudad y de su razón, ed. Cupsa, Madrid 1977, pág. 83).

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parte, à crise do racionalismo e da democracia, que vinha das revoluções burguesas, e também à crise do legalismo e da idéia de sistema: alguns aludem, para o tema, à decodi-ficação, termo posto em voga com o pequeno e instigante livro de Natalino Irti, para o qual o direito vem deixando de dispor sobre fins e passando a dispor sobre meios. É como se no mundo burguês — ao qual alude Irti — voltasse a valer o a-historicismo próprio dos escolásticos: a visão do direito como forma e como meio se encontra ligada ao tec­nicismo, ao racionalismo (este em crise mas arraia domi­nante na modernidade) e à prevalência da lei44. Falamos disso acima.

* * *

Regressemos à idéia de ordem. Quando se alude ao di­reito — já o vimos —, trata-se do direito ordem: o direito medieval, o moderno, o direito francês ou o argentino, vis­tos como vigências (direito "objetivo"), ordenamentos vi­gentes. A ordem, no caso, é integrada por normas e possui coercitividade; a crença em um direito sem coercitividade, além de ser contraditória, é um pium desiderium, utopia ou fantasia de juristas irritados com leis injustas ou decisões

44 Natalino Irti, L'età delia decodificazione, ed. Giuffrè, Milão 1979. -— Com respeito à crise do racionalismo e das coisas que o acompa­nham historicamente, inclusive a dos formalismos, convirá referir que Hegel já havia indicado no formalismo kantiano uma produção de tau-tologias (cf. Umberto Cerroni, Kant e la fondazione delia categoria giuridica, ed. Guifrè, Milão 1972). Para o tema, nosso Da teologia à metodologia, op. cit., pág. 113. — O professor Enrique P. Haba, em sua crítica ao formalismo, menciona o "platonismo das regras" (cf. "Qui­meras en perfil" em Rev. de ciências jurídicas, Univ. Costa Rica, Fac. deDerecho, n. 79, 1994).

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questionáveis. Mais, a ordem jurídica, que corresponde a uma soberania estatal, tem no vinculo com o Estado a sua "oficialização" (soberania, aqui, em um sentido pelo menos formal).

Santi Romano, em seu livro de 1917, estabeleceu que as normas se entendem em função do ordenamento, não ao inverso. Mas são as normas que perfazem formalmente o ordenamento: sem alusão a elas não se tem uma imagem inteligível da ordem, embora esta imagem necessite tam­bém dos princípios, dos valores e da noticia sobre interpre­tação e decisões.

A propósito do Estado, cabe lembrar as relevantes ob­servações de Hermann Heller sobre Direito e Poder. E também a sempre citada afirmação de Max Weber segundo a qual o Estão possui (ou reivindica) o monopólio do uso legitimo da violência. Em certas teorias do direito, algumas bastante destacadas, a omissão do problema do Estado cria uma lacuna, senão uma distorção, e foi o que ocorreu com uma teoria tão notável como a egológica. Na próprio teoria "pura", a junção dos conceitos de Direito e Estado consti­tuiu de certo modo a absorção deste por aquele (Hegel também reuniu os dois conceitos, dentro da noção de espí­rito objetivo, mas a importância do Estado na filosofia he-geliana — inclusive na filosofia da história — permaneceu incólume: Hegel mais teorizador do Estado do que do Di­reito) .

De qualquer sorte, é indubitável que o direito enquan­to realidade se organiza com fundamento na ordem políti­ca. Dentro das vigências estabelecidas — institucionaliza­das — na sociedade, o político e o jurídico formam um conjunto, e o direito corresponde à necessidade de certeza normativa. A importância (ou legitimidade) jurídica da or-

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dem política tem a ver com o fato de o direito não ser apenas forma, nem, obviamente, mera abstração: necessa­riamente forma, mas em conjunção com outros "compo­nentes".

Ficou registrado que as referências ao conceito de Di­reito têm em mira, geralmente, o direito-coisa (não os ideais jurídicos nem a ciência jurídica); além disso apontam para o que depois de certo tempo ficou-se chamando"direi-to objetivo", isto é, o direito aplicável como ordem — não o chamado direito subjetivo. Entretanto, uma noção sufi­cientemente ampla do direito deve incluir seu sentido de experiência (além do seu sentido de ordem) e também sua acepção "subjetiva". O direito não tem de ser reduzido (já o vimos) a uma ou outra das notas que integram seu concei­to. Nem tampouco a um dos aspectos pelos quais pode ser considerado: norma, ordem, medida, pretensão4^. Tal como a religião ou a educação, o direito aparece sob deter­minado aspecto conforme o enfoque recebido: a religião como crença ou como culto, a educação como influência ou como exercício. O fato de o direito aparecer em geral como norma não impede que sua compreensão como experiência humana precise estar referida a conotações diversas, que

45 O tema do ser do direito se apresenta obviamente correlato do de sua "origem". Assim temos diversas teorias a respeito, inclusive a que se refere a uma origem gráfica: uma alusão, en passant, em Cario Ginz-burg, Mitos, emblemas, sinais (Cia. das Letras, são Paulo 1986), pág. 154. V. também Jack Goody A lógica da escrita e a organização da sociedade (Edições 70, Lisboa 1987), passim. Atinamos com o tema, antes de conhecer estes livros, em Ordem e Hermenêutica, cit., cap. IV.

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estão "na" norma ou existem concretamente com ela, den­tro de variáveis e de contextos. O direito ocorre nas socie­dades históricas como uma ordem que é feita de normas e que oferece medidas (de mensurar) e que implica preten­sões e condutas. Quando pensamos em o que "é" o Direito, pensamos no que vem sendo a experiência jurídica dos ho­mens, e com isso ocorre a imagem das normas vigentes nas antigas monarquias, e também a dos códigos modernos, bem como de lugares, atos, instalações, opiniões, reações pessoais. Por dentro destas imagens, porém, precisamos enxergar o que, nesta ou naquela sociedade, se entendia (ou se entende) em face das normas vigentes: o direito como ordem e como hermenêutica.

Aos inícios do mundo moderno, no orbe ocidental, o advento das monarquias "absolutas", ou seja, do Estado moderno, veio impedir que com o capitalismo emergente o poder econômico viesse a ser a única instância a dominar as sociedades. As estruturas do Estado impuseram sobre o conjunto uma normatividade eficiente46. Com a queda das monarquias, a democracia — instaurada aos poucos nos países proscênicos — trouxe uma ambivalência, ao procla­mar a reforma da sociedade mas mantendo a organização administrativa proveniente do Ancien Regime47. Com isso gerou-se de pronto uma contradição, e também alguns va-

46 Cf. Hermann Heller, Teoria del Estado, trad. L. Tobío, FCE, Mé­xico 1955. V. também nosso O Estado moderno e a separação de pode­res, Ed. Saraiva, S. Paulo 1987. 47 Ver F. Garrison, Histoire du droit et des institucions. Le pouvoir des temps féodaux à la Revolution (Ed. Montchrestien, Paris 1977), cap. Ill: "L affirmation du pouvoir étatique, XVI-XVII siècle" — Cf. ainda Ricardo Lobo Torres, A idéia de liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal (ed. Renovar, Rio de Janeiro, 1991), passim.

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zios nas crenças sociais, que a teorização democrática vem tentando preencher.48

No século XIX, com o apogeu do racionalismo, a con-ceituação do direito lhe atribuía uma unidade interna e também um sentido universal: para ambas as coisas servia a noção de sistema. No século XX (como na atual transição ao XXI), o "direito" se fragmenta, com a decodificação, com formas novas de entender a aplicação do ordenamen­to, com o surgimento de novos "ramos": o direito se trans-forma_por dentro e por fora. Hi uma esmagadora unifica­ção, trazida pela globalização, e ao mesmo tempo um pleito pelo pluralismo e pelas alterações intra-ordenamentais. Do mesmo modo, aliás, que ocorre na filosofia, reinventada no século XX sob diversas formas, e fragmentada de vários modos no seu final.

Após tudo isto poderemos, em caráter aproximativo e esquemático, distinguir três tipos históricos de concepção do direito: a ontológica, a formalista e a hermenêutica. A primeira, que reponta na noção de direito entre os antigos, aparece no pensamento pré-crítico que vai de Aristóteles à escolástica e ao racionalismo pré-kantiano. Sobrevive em Kant, quand même. A segunda surge definidamente com o neo-kantismo e com as epistemologias do século vinte: com isso aludimos inclusive a Stammler e a Kelsen. A terceira, que temos tentado acompanhar, teve uma antecipação em Viço, uma base no historicismo vindo de Dilthey e uma

48 Como se sabe, a permanência de elementos e formas administrati­vas (vindas do absolutismo)," dentro" das estruturas revolucionárias foi percebida em primeira mão por Tocqueville. Seria de certo modo um exemplo de Aufhebung no sentido hegeliano. Sê-lo-ia também a per­manência do Senado Romano, que se instituiu após a queda da realeza e atravessou com dignidade e com auctoritas a transição da República para o Império.

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preparação na hermenêutica filosófica desenvolvida no sé­culo vinte a partir de Gadamer49.

5. Breve menção a nomes e correntes

Não se trata de "apresentar" o pensamento jurídico-fi-losófico, com uma notícia de suas principais correntes, as contemporâneas no caso. Pretendemos aqui aludir a algu­mas das figuras e questões que ~têm-aparecido nas-décadas mais recentes, as que correspondem ao declínio dos nomes e dos temas que dominaram a cena durante a primeira par­te do século vinte ("realismos", normativismos, egologia, tridimensionalismos).

Até 1960, circa, o interesse pelo normativismo kelse-niano se manteve em alta. Começam aí, porém, alguns des­membramentos, em lógica sobretudo. Persiste em parte a presença da egologia, sobretudo na Argentina; o tridimen-sionalismo, no Brasil, pervive em novas obras de Reale e na influência difusa e assimétrica de seus textos. Na Itália o existencialismo jurídico-cristão de Cotta divide espaço com o "formalismo mitigado" de Bobbio. Outras teorias crescem, decrescem, reformam-se. Transferido para o Mé­xico, Recaséns Siches sistematiza com marca pessoal o his­toricismo raciovitalista de Ortega.

49 Há outro sentido na conhecida tipologia de Cari Schmitt, que menciona o pensamento jurídico referido à norma, o referido à decisão e o referido à ordem concreta (Les trois types de pensée Juridigue, op. cit.). Esta classificação, que concerne basicamente às teorias do século XX, envolve pontos de contacto com idéias de Max Weber e de Santi Romano. Schmitt, sempre lançando mão de etimologias eruditas, recua até a frase nomos basileus, de Pindaro, habitualmente citado como "a lei [dever ser] reinante", e altera sua tradução para "o direito [como] reinante" (págs. 72 e 73).

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Mais ou menos a partir da década setenta, o avanço da influência do neo-liberalismo, concomitante ao fortaleci­mento das posições norteamericanas no mundo, favoreceu a presença ostensivamente crescente de autores de língua inglesa. Desde logo John Rawls, de Harvard, com seu livro A Theory of Justice (1971) e com uma visão liberal, néo-contratualista, do problema da sociedade justa. Também Ronald Dworkin, de Oxford, a partir de sua obra sobre os direitos (inteiramente presa às formas processuais do direi­to norteamericano-e do inglês), e Roberto Nozzick (Har­vard) com um livro sobre a anarquia, estabelecendo um antiestatismo radical. E ainda Michael Walzer, com ligeira divergência no sentido de um liberalismo mais atenuado e autointitulado comunitarista50.

Obras que dão ao traste com a historicidade dos proble­mas e com a tradição filosófica do Ocidente; que omitem o pensamento moderno em seus momentos mais relevantes, inclusive Hegel. Teorias que entretanto retomam, sem ex­plicar porquê, o contratualismo e o kantismo, supondo a possibilidade de uma convivência imaginária feita de inte­resses "iguais"51.

50 Sobre estes autores, temos de selecionar algumas indicações. Para um excelente panorama, A. Braz Teixeira, "La justicia en ei pensamien-to contemporâneo" en Anuário de Filosofia jurídica y social (Perrot, Buenos Aires), n. 19, 1999. Para Dworkin, as duras críticas de Enrique Haba, "Du manque de réalisme dans 1'actuelle théorie du droit", em Archives de Philosophie du Droit (Sirey, Paris}, T. 42, 1998, págs. 241 e segs.

51 No caso, especialmente Rawls (A Theory of Justice, Oxford Univ. Press, reimpressão 1976): veja-se E. Barbarosch, "La teoria de la justi­cia de John Rawls y su relevância ai finalizar ei milênio", em Anuário de Fil. jurídicay social, cit., n. 19, 1999. V. também Ubiratan de Macedo, "A crítica de Walzer a Rawls", em Rev. Brasileira de Filosofia, fase. 187, setembro 1997; e Brian Barry, La teoria liberale delia giustizia.

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E contudo vale registrar certas renovações na teoria ju­rídica, com alcance sobre a conceituação do direito. Assim as alterações no pensamento de Jurgen Habermas e a rele­vância do de Niklas Luhmann, este sempre mais árduo; assim a teoria da "autopoiesis", elaborada na Alemanha com base em sugestões contidas em estudos de biólogos — como Maturana e Varela —, teoria representada principal­mente por Teubner, com contribuições do próprio Luh­mann32.

A partir de certo tempo surgiu também o conceito de "pós-moderno", termo adotado pressurosamente por auto­res amantes do dernier cri: o pós-moderno, como "clima" histórico ou como repertório de temas, emergindo em meio a vários malentendidos53.

O panorama internacional das duas últimas décadas se mostra fragmentado e sem "teorias dominantes". Os con-

Analisi delle dottrine di John Rawls, ed. Giufrè 1994. — Cf. ainda as críticas de Ch. Perelman, Ética e direito. Trad. M. E. Pereira, ed. Mar­tins Fontes, São Paulo 1996, págs. 168 e segs. — Comparar R. Dwor­kin, Império do Direito, ed. Martins Fontes, são Paulo 1999.

52 Cf. J. M. Aroso Linhares, Habermas e a universalidade do Direito (ed. Boletim da Faculdade de Direito Coimbra 1989). A "virada" de Habermas para a teoria do direito ocorreu principalmente com Faktizi-tãt und Geltung, Beítraege zur Diskurstheoríe des Rechts und des de-mokratischen Rechtstaates, 3 a edição, Suhrkamp, Frankfurt 1993. Para a referência a Gunther Teubner, cf. O Direito como sistema antopoiéti-co, ed. Gulbenkian, Lisboa 1993 (o direito visto como um "subsistema social autopoético de comunicação". Sem comentários). — Cf. ainda Marcelo Neves, "Da autopoiese à alopoiese no direito", Anuário do Mestrado em Direito, UFPE, Recife, n. 5, 1992.

53 Muita coisa a respeito. Inclusive Arthur Kaufmann, La filosofia dei derecho en la pos-modernidad, trad. L.V. Borda, Ed. Temis, Bogotá, 2a

edição, 1998. E o sempre citado David Harvey, Condição Pós-Moder-na, Ed. Loyola, São Paulo, 1993. Mas, sob outro prisma, A A W , Direi­to e Neo-liberalismo, ed. EDIBEJ, Curitiba, 1996.

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gressos internacionais programam debates sobre direitos (incluindo-se aí a questão do ambiente e a da migra­ção),bem como sobre lógica e sobre o insistente tema do raciocínio jurídico, proposto em relação com a teoria dos sistemas. Anota-se a repetitiva presença dos analíticos, sempre aliados dos neoliberais e sempre remoendo suas prolixas disquisições54. Pouco se tem esclarecido sobre o que é o direito — tema, na verdade, justificador de todas as teorizações.

54 V. por exemplo Roberto Alexy, Teoria de la argumentacián jurídi­ca, trad. M. Atienza e Izabel Espejo, CEC, Madrid 1997. Visão geral em Manuel Atienza, As Razões do Direito. Teorias da Argumentação jurídica (ed. Landy, São Paulo 2000).

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Capítulo II

Aspectos, componentesyestruturas

Sumário: 1. Referência a forma e conteú­do. 2. Problemática da norma. 3. Breve menção ao chamado "dever-ser". 4. O ho­mem, o dever-ser e as coisas. 5. Divisões do direito, partes e "ramos". Notas.

1. Referência a forma e conteúdo

Sempre convém uma certa cautela ao tratar do binômio forma/conteúdo. No capítulo anterior mencionamos o pro­blema de o direito ser (até certo ponto) uma forma: ficou visto que o fato de o direito ser sob dado aspecto uma forma é algo distinto de se adotar o "formalismo" no tocan­te ao seu conhecimento.

Para Aristóteles, em um dos pontos mais importantes de sua metafísica, matéria e forma se distinguem como componentes complementares de todo ser. Os neokantia-nos utilizaram o binômio com um alcance gnosio-epistemo-lógico: Stammler, partindo da idéia de que no plano do

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conhecimento a forma "constitui" a matéria, contraditou o materialismo de Marx, ao concluir que o direito — que é forma — determina a economia55. O mesmo Stammler, buscando uma conceituação universal do direito, tentou uma abordagem apriorística, com base no entendimento da forma e dispensando os dados empíricos. Em linha parale­la, mas com outros resultados, o método fenomenológico inspiraria o apriorismo de Fritz Schreier no livro Conceito e formas fundamentais do direito, bem como, em posição mais específica, os trabalhos de Adolf Reinach e de Vvu-helm Schapp.

Também proveio do neokantismo a voga do termo es­trutura, aos poucos distinguindo-se da noção de forma, e quase sempre associado à idéia de uma "relação entre o todo e as partes". Mencionar a estrutura do direito, então, corresponderá a destacar as "articulações" que dão sentido aos componentes do direito (objetivo); outros termos afins ou análogos seriam ordem — ordenamento —, organização, sistema. Tais termos, em realidade, designam de preferên­cia um sentido estático, que entretanto é pressuposto de toda "dinâmica" jurídica: a "função" do direito (ou suas funções) ocorre como um desempenho de estruturas que o configuram.

Mas o inverso é também dizível, pois as estruturas são igualmente processos, ou nascem de processos: o poder e as condutas, as decisões e o ordenamento, existem como correlato de atos, ou são atos, e não tem sentido imaginá-los como formas inertes a não ser como um momento da elaboração da imagem do direito. O direito, repitamos, é

55 Cf. Nelson Saldanha, "Economia e Direito. Uma revisão do pro­blema", incluído em Velha e Nova Ciência do Direito [e outros estudos de teoria jurídica], ed. UFPE, Recife, 1974.

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um conjunto de elementos, formais ou dinâmicos, e daí que a noção de processo não indique apenas um conjunto de "procedimentos" forenses, mas sim todo o sistema de atos que criam o direito e que o aplicam. A utilizarmos uma terminologia equivalente à de Spinoza (que na Ética falava em natura naturans e em natura naturata), poderemos pensar em um jus ordinans e um jus ordinatus, o direito em seu movimento constante, que vai da legislação com seus diversos graus até os efeitos da sentença (passando por vá­rios pontos de desvio), e em seu arcabouço de enunciados, de valores e de standards, que entretanto também se move, inclusive por sofrer alterações históricas.

É possível que o século vinte tenha dado excessiva aten­ção aos problemas formais da imagem do direito e da teoria jurídica, deixando de lado questões histórico-axiológicas muito relevantes. De qualquer sorte vale reconhecer que é através de suas formas que o direito aparece (a forma como aquilo através do qual se conhece o objeto, como no neo­kantismo): da mesma maneira que a vida política, que não é meramente forma, se expressa e se caracteriza, em parte, através de formas. As realidades sociais se revelam pelas formas que assumem, e daí ter sido possível ao pensamento social do tempo de Max Weber construir o conceito de "tipo ideal" —• uma imagem formal em que determinado objeto histórico ou social se despoja de umas tantas notas variáveis e se desenha por suas notas constantes para tor­nar-se mais inteligível (assim o capitalismo, o feudalismo etc).

Algo de semelhante ocorre em todas as grandes "forma­ções" da vida sociaP6. Há em cada uma delas uma forma

56 Sílvio Romero utilizou a expressão "criações fundamentais da hu­manidade" para designar "ciência, religião, arte, política, moral, direito,

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abrangente que parece moldar e caracterizar os "conteúdos". Na economia os interesses materiais, que são "necessidades" (no sentido de Hegel), e as atividades respectivas. Na educa­ção os padrões que se elegem, ou se mantém, os valores e hábitos que se recebem e se transmitem. Nestes casos, cum­pre repetir, não cabe uma "redução" à forma: o próprio da economia ou da educação é a relação entre a forma, que pre­side os processos, e os conteúdos, que se ligam à vida.

A ordem jurídica se estabiliza dentro de uma sociedade ao assumir caráter "oficiai", ou institucional, isto é, ao ser aceita como ordem, com suas sanções e sua legitimidade.

2. Problemática da norma

Apenas um dado: ditame, preceito, regra. Ou por ou­tra, o próprio direito enquanto ordem e enquanto forma: eis a "norma". O século vinte levou, através da tentação formalística (integrante, ao menos em parte, da própria tradição racionalista de raiz cartesiana), à insistente teori­zação sobre a norma. Teorização, em certos casos, consis­tente em reduzir o direito à norma. Ou, o que é talvez um pouco distinto, a um sistema-de-normas; um sistema cuja configuração é definida pelas normas, tal como vê, ou quer ver, determinado tipo de pensar. Sequer entrou na cabeça dos normativistas a evidente diferença entre lei e direito, pois viam (ou vêem) a lei como algo que adquire sentido apenas em função do conceito de norma, e o direito como uma estrutura que se distingue (e se faz conceituar) por ser

indústria" (Ensaio de Philosophia do Direito, 2a edição, Francisco Al­ves, Rio de Janeiro, 1909, cap. VIII). Antes de se falar em "subsiste­mas".

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normativo. Não entrou, também, a preocupação com o problema de saber porque uma norma é jurídica.

Em verdade o conceito de norma tem uma história, ou antes: aparece em função de coordenadas históricas. Há épocas em que certas realidades, que já existiam (ou já haviam existido), auferem relevo maior em face de uma conceituação: assim a soberania, que obviamente existiu no tempo de Dário ou no de Augusto, adquiriu sentido mais específico (e mais "teorizável") a partir da conceituação oferecida por Jean Bodin no século XVII.

Destarte, e como é óbvio, sempre se conheceram regras jurídicas, desde os povos préhelênicos, passando depois pe­las formas designadas com o grego nomoi e com o latim regulae (no século dezenove, no Ocidente, se usou predo­minantemente o termo "regra", isto é, regra-de-direito)D7. No latim formou-se uma diferença entre o uso de regula, mais genérico, e o de lex, mais restrito. Em certa época, jus e lex designaram duas coisas distintas, tendo jus acepções diferenciadas e tendo lex seu significado vinculado ao de nomos (nomos entendido, já se vê, na acepção de regra es­pecífica). Na Idade Média, entretanto, as citações alusivas ao direito positivo se referiam frequentemente a textos já assumidos pela doutrina e pelas "autoridades" doutriná­rias58. A idéia de uma lei fundamental começou a configu­rar-se durante o século XVII59.

57 Nelson Saldanha, Ordem e Hermenêutica, op. cit, cap. VII, item 6. — Sobre jus e norma na experiência mais antiga, cf. Riccardo Ores-tano, I fatti di normazione nell'esperienza romana arcaica (Ed. Giappi-chelli, Turim 1967), n° 23, págs. 102 e segs. Sobre lex, idem págs. 181 e segs.

58 Para o vocabulário grego e romano, Paolo Frezza, "Lex e nomos", em Bulletino deli 'Instituto di Diritto Romano Vittorio Scialoja (Milão, Giuffrè, 1968), série III, vol. X; J. Gaudemet "Jus et leges", em Rivis-

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O interesse do século XVIII pela lei (particularmente em Rousseau) e pelas leis (como em Montesquieu) cedeu lugar, como se sabe, à teorização sobre o direito, em espe­cial na Alemanha, por mão de Kant, de Hegel e dos con­temporâneos de Savigny. Mas a lei, que na mente radical e linear de Rousseau era um símbolo e um instrumento, si­tuou-se como componente do direito positivo a partir da Revolução Francesa e de suas principais constituições. Du­rante o século XIX a experiência constitucional, como dis--semos, consagrou ao lado do termo lei o uso do termo re­gra: Dugüit, ao final do oitocentos, veicularia a expressão "règle-de-droit"60.

Nomos, regula, lex, loi, regie, são portanto, referências históricas exemplares. A lei, que no direito chamado conti-

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ta Internazionale di diritto romano e antico (Jovane, Nápoles), nu 1, 1950. Sobre nomos, v. ainda Eric Havelock, Prefácio a Platão, trad. E. Dobranzsky, ed. Papirus, Campinas 1996, pág. 81. — Para o período medieval Ennio Cortese, La norma giuridica. Spunti teorici nel diritto comune clássico, 2 volumes, (Milão, Giuffrè, 1962 e 1964); e também o tomo VII, Vage classique 1140-1378. Sources et théorie du droit, da monumental Histoire du Droit et des institutions de 1'Eglise en Occi­dent, por Gabriel Le Bras, Ch. Lefebvre e J. Rambaud, ed. Sirey, Paris 1965. 59 Para o caso inglês, específico mas exemplar, J. W. Gough, Funda­mental Law in english constitucional history, ed. Oxford, Clarendon Press, 1961. —V. também P. Bastid, Uidée de constitution (Ed. Eco­nômica, Paris 1985), cap. XIII, pp. 135 ss. — Em 1586, na França, o presidente do parlamento, De Harlay, afirmou ao Rei que acima das "leis do Rei", que podem mudar com relativa freqüência, se acham as leis do reino, les ordonnances du royaume, que embasam a permanência da própria coroa: cf. Jules Simon, La liberte politique, Hachette, Paris, 4a edição, 1871, cap. II.

60 A concepção que vê na lei ("enquanto norma") o próprio direito ("como objeto") seria, para Carlos Cossio, um expediente conceptualis­ta, a ressucitar o "racionalismo metafísico" [Teoria de la verdad jurídi­ca, Buenos Aires, Losada, 1954, cap. 1, pág. 25).

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nental-europeu assumiu predomínio como "fonte" {loi, Gesetz, legge), no direito inglês dividiu com o costume a condição de elemento formador do direito positivo: law and custom, customary law, com o termo "law" na acepção de lei na primeira expressão, na segunda em acepção de direito.

Ao final do oitocentos, ao tempo da voga do termo regie na língua francesa, começava na Alemanha a vigência da palavra Norm, norma, inclusive nas obras de Thon e de Binding. O grande prestígio da obra de Kelsen, mormente a partir de 1911 com o surgimento dos Hauptprobleme, fortaleceu a difusão do termo norma, e com isto o ânimo dos normativistas no sentido de pensar o direito como for­ma, sem recurso aos fatos61.

O que se pretende, ao afirmar que a conceituação do direito não deve reduzi-lo à norma, é indicar a sua conexão existencial com a vida social. Tomado o direito como mera norma, sua realidade se restringe à de umas tantas palavras e de uns tantos preceitos. Mas as palavras e os preceitos são dizeres, que envolvem pessoas reais que exercem determi­nadas funções: pessoas que explicitam decisões, que afir­mam aquilo que corresponde ao direito. É a presença de funções reconhecidas, e de uma autoridade capaz de dar efetividade ao direito, que faz com que ele se sobreponha aos comportamentos particulares62.

61 Aqui entraria o tema das origens das normas explícitas. Observa G. Dumézil que "un jus est cequi commande la conduite de 1'interessé à 1'égard des autres", e que "en consequence (...) 1'énonciation explicite de chaque jus, la formule qui en dit les limites, et, dans ces limites, le garantit, sont essentielles": Idées Romaines, cit., parte I, item III, pág. 41.

62 A complexidade de elementos que integram o fenômeno jurídico torna inteiramente inúteis metáforas como aquela que compara a inci-

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3. Breve menção ao chamado dever-ser

Uma ordem ética não poderia existir, em uma socieda­de — uma ordem ética como conjunto real de padrões de ação e de julgamento —, sem correlação com um sistema de valores e com uma série de representações relativas à v isáo-do-mundo dominan te . O que é óbvio. Repre­sentações e valores dão sentido às normas e fundamentam os julgamentos. Toda referência ao "sentido" das normas e à sua interpretação tem de relacionar-se com pautas cultu­rais e com os dados de um determinado contexto.

A tentativa de confinar em um entendimento pura­mente lógico-formal a temática das normas esquece que o mais importante é a relação que elas têm com a vida dos homens. Sem que se negue que todo conjunto de normas tem um aspecto lógico, inteligível como coerência e estru­turação.

Em certo sentido o direito integra a ordem ética geral existente em cada sociedade, dentro das mesmas pautas culturais presentes nesta: a ética como um sistema de exi­gências incidindo sobre consciências e condutas.

Com o néo-kantismo — décadas finais do século deze­nove —, a referência de Kant à diferença entre fenômeno e nômeno (o homem como porção da natureza e como ser livre) levou à idéia da distinção entre natureza e cultura (que Hegel havia percebido) e também à distinção entre juízos de realidade e juízos de valor. A idéia de valor veio daí, em parte. Em Kant, a alusão a uma razão prática, razão legisladora, posicionava a noção de um "lado" normativo existente na razão humana (algo comparável, ainda que cronologicamente distante, à concepção estóica da correla-

dência das normas ao ato de "carimbar" (1) atos e fatos dentro das relações sociais.

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ção entre racionalidade e liberdade, e da conexão de ambas com o logos universal que a um tempo ordena o mundo e anima as consciências).

4. O homem, o dever-ser e as coisas

Durante o século XX, a alusão a normas ficou propi­ciando uma aproximação ao problema do dever-ser. Kel-sen, com sua forte tendência lógica e sea entono autoritá­rio, entendeu que o ponto de partida para o pensamento jurídico e para a conceituação do direito se acha na distin­ção entre ser (Sein) e dever ser (Sollen): uma distinção, para ele, absoluta e inafastável63.

A teoria normativista-kelseniana contém em seu forma­lismo um entendimento intelectualista da norma. Entre­tanto o pensamento ocidental abrigou em vários momentos o entendimento voluntarista (inclusive com Hobbes: vo­luntas non ratio facit legem). Kelsen e seus discípulos — nisto acompanhados por Carlos Cossio — acentuaram a visão lógico-intelectualista da norma, condenando como "primitiva" a concepção da norma como imperativo: con­denação em verdade muito questionável, e que carrega consigo um conceito não-político do direito64.

63 Cf. as observações de Kurt Sontheimer, Ciência política y teoria jurídica dei Estado, ed. Eudeba, Buenos Aires 1971, cap. II; nosso Da teologia à metodologia, op. cit., caps. IV e V. — Em 1926 Hans Triepel, em discurso reitoral, rechaçava o formalismo kelseniano e afirmava a essencial ligação do direito público com a teoria política (Derecho pú­blico y política, trad. J. Carro, ed. Civitas, Madrid 1974, passim). 64 O problema da "politicidade do direito" que interessou a vários autores na primeira metade do novecentos, tem um de seus pontos de partida na concepção hobbesiana da lei "feita pela vontade" mais do que pela razão (voluntas, non ratio, facit legem).

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A referência à distinção, no caso separação, entre ser e dever ser, tinha sido feita por David Hume, no século XVIII, ao aludir à incomunicabilidade entre is e ought: é e deve ser55. A discussão sobre o tema, no século vinte, envol­veu diversas questões, inclusive levando muitos autores a repisar a idéia da separação total entre o saber jurídico e os "outros" saberes sociais: Kelsen chegou a publicar, em 1916, um artigo sobre a ciência jurídica como "ciência nor­mativa"66.

Chegou-se a afirmar também, e. em correlação com a visão das ciências humanas como ciências da cultura, que o homem não tem propriamente um ser; seu ser seria, em verdade, o seu dever ser. Ortega dissera algo comparável, isto é, que o homem não possui natureza, mas sim história. A frase remonta à mesma distinção, de fundo kantiano, entre natureza e cultura (ou história). Mas o mestre de Madrid exagerava: o fato de que o homem "vem sendo" significa que é o homem que tem história, não outro ser. Dir-se-ia, então, e para não perder de todo a afirmação orteguiana, que a natureza do homem consiste em ser um ente histórico.

65 Ver A. J. Ayer, Hume, Oxford 1980. — Distinção paralela, provin­da do neokantismo, aludiria, desde fins do século XIX, a juízos de valor e juízos de realidade (v. por exemplo Emile Durkheim, "Jugements de valeur et jugements de realité", em Sociologie et philosophie, PUF, Paris 1951). Sobre "deve" e "é", continua fundamental o vasto livro de Gae-tano Carcaterra, II problema delia falaccia naturalística (ed. Giuffrè, Milão 1969). — Sobre as expressões do imperativo, cf. José Gaos, Del Hombre, cit, cap. XXXIII. Ver também Hans Jonas, Le príncipe res-ponsabilité (trad. J. Greisch, ed. Flammarion, 1990), princ. caps. Ill e IV.

66 Cf. os textos reunidos por A. Carrino, Metodologia delia scienza giuridica, Ed. Scientifiche Italiane, Nápoles 1989, págs. 103 e segs.

Quanto à idéia de que o ser do homem é o seu dever ser, é também um esforço retórico. O dever ser se entende em função do ser, salvo dentro da crença normativista. O homem, como ente real, inclui em si elementos que ocor­rem de fato em sua experiência empírica (além, se se quer, das idéias e ideais que alimentam e iluminam essa expe­riência). A própria historicidade do homem, conteúdo da frase de Ortega, é a antítese da imagem de um ser reduzido a uma normatividade desenhada em termos formais67.

Os romanos, ao expressarem na tríade pessoas-coisas-ações as áreas fundamentais do direito, incluíram as coisas, que são res, isto é., são reais, e incluíram as pessoas, mani­festações da pessoa, que concentra o humano; na alusão ás ações é que entrariam normas, procedimentos e preten­sões, que perfazem o direito.

É óbvio que o "dever ser" não pode ser pensado como algo fora do viver: alguém, algum ser humano, é alcançado pelo dever-ser, que o atinge dentro de contextos vários. Isto significa que a existência de um dever-ser (basta talvez falar no "dever") deve ser entendida historicamente: sua existência, bem como sua relação com as mentalidades e os padrões de julgamento.

Certamente que o tema mereceria um desenvolvimen­to maior. Aqui nos limitaremos a registrar que o "ser", con­tido na expressão latinizada "dever ser" (e ausente no ale­mão Sollen), entra nesse binômio um tanto modificado, despojado da grave puridade metafísica que possuiu entre os gregos: on, contraposto ao mê on (não ser) e distinto dos onta, seres. No século XX, quando da formulação do nor-mativismo, o neokantismo e a fenomenologia haviam dado tratamentos distintos à noção de ser, ocorrendo porém em

67 Cf. José Gaos, Del Hombre, op. cit., passim.

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ambos os casos um afastamento em relação a Hegel e à tremenda concepção hegeliana do Sein e de suas relações com o Denken, pensar68.

A idéia de ser, sempre retomada dentro do pensar oci­dental, se entende como última das generalizações, que ampliam e "esvaziam" a representação. Mas os existencia­listas renovaram a imagem da relação entre essência e exis­tência, presente "dentro" do ser: Sartre, por exemplo, em­bora reduzindo ao nada a realidade do homem desnudada pelaanálise do "para si", reconhece, naspáginas finais de L' Etre et le Néant, que a ontologia deixa "entrever" uma ética relacionada à "realidade humana em situação"69.

Contudo o poder "é", a tradição "é", a conduta "é". Sob o prisma existencial, as coisas que perfazem o direito são. De qualquer sorte, uma ontologia do direito, em sentido metafísico, tornou-se menos viável no mundo de hoje: crise do pensar ontológico, crise do filosofar tradicional, senão de todo filosofar.

5. Divisões, partes e "ramos" do direito

Na medida em que o pensamento jurídico moderno passou a representar o direito como uma estrutura, como uma ordem, fixou-se de algum modo uma imagem do direi­to ("positivo"), e sobre tal imagem incidiu, vindo dos roma-

68 Sobre Hegel, destacamos aqui a quase entusiástica exposição de Nicolai Hartmann, em A Filosofia do Idealismo Alemão (trad. J. C. Belo, 2a edição, Gulbenkian, Lisboa 1983, parte II). 69 E mais: "précisement parce qu'il n'y a aucune commune mesure entre la realité humaine et la cause de soi qu'elle veut être, on peut dire que l'homme se perd pour que la cause de soi existe": L'Etre le Néant, Gallimard, Paris 1948, pág. 720.

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nos, o desejo de repartir, dividir, distinguir. Algumas dis­tinções se consolidaram com os séculos: por exemplo a di­visão do direito em público e privado, que se baseava — consoante os termos vetustos e exemplares de Ulpiano — na referência ao status rei romanae e à singulorum utili-tas70. Na realidade a noção de "dividir" implica na existên­cia de um objeto divisível: no caso do direito, uma estrutu­ra que pode ser representada como algo tópico, algo provi­do de espaços passíveis de diferenciação.

Deste modo vê-se que a imagem do direito pode ser encarada segundo distintos modos e distintos ângulos. Daí a alusão aos ramos do direito, posta sobre um quadro básico que é a diferença entre público e privado e correlata da própria idéia de direito "positivo". Os ramos são do direito positivo, obviamente. São integrantes daquilo que no sécu­lo XX se chamou de "ordenamento", mas são também de­limitações das partes do conhecimento do direito. Este co­nhecimento distribuído por diversos ramos é o que se cha­ma "dogmática jurídica". Realmente a alusão aramos é uma metáfora, que nos recorda as metáforas medievais concer­nentes à árvore do conhecimento e coisas afins.

Os manuais, até certo tempo, aludiam a diferentes "di­visões do direito", incluindo-se ali a separação entre direito natural e positivo, direito objetivo e subjetivo, público e privado, como se fossem distinções do mesmo tipo. Hoje o problema do direito natural vem sendo colocado com outro sentido; a diferença entre direito público e direito privado, como já foi visto, tem uma índole totalmente distinta da separação entre direito objetivo e subjetivo. Os autores do

70 Para os dados históricos, nosso estudo "Direito público e direito privado", em Velha e Nova Ciência do Direito, op. cit.

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final do oitocentos já percebiam isto, mas depois de Kelsen o debate a respeito teve de ser reformulado.

Vale mencionar novamente a distinção entre direito pú­blico e direito privado. Ela corresponde, desde logo, a uma dualidade peculiar à vida humana, pelo menos a partir da criação das cidades. O dualismo público-privado apresenta, com isso, significativas implicações históricas. Para certos autores, o predomínio do direito privado (sobretudo o do século dezenove) seria um correlato do conservadorismo:. neste sentido a sua relação com a propriedade, com o mun­do dos negócios e com uma série de formalismos burocra­tizantes.

Por outra parte, durante muito tempo o direito civil foi visto como o "direito" propriamente dito; sua ciência, como a ciência jurídica por excelência. Toda a brilhante sistemática de categorias e de institutos do direito civil moderno, iniciada sobretudo com os textos de Savigny e os de Puchta, foi tida como realização científica inultrapassá­vel. O direito público parecia, sob a mesma perspectiva e durante o mesmo tempo (até meados do século XIX, cir­ca], algo como um pedaço da política, daí que menos "cien­tífico" e menos "jurídico" do que o privado. O direito pri­vado avalizado por milenar trabalho sistemático e por res­peitável continuidade na terminologia e nos problemas.

Mas o direito público moderno, mormente o posterior às revoluções ditas burguesas, se apresenta como portador de "conquistas" importantes, realizações do ocidente libe­ral, e daí qüe mui tos vejam nele a parte mais relevante do direito nos últimos dois séculos. O crescimento do consti­tucionalismo e do Estado-de-Direito, difundindo e "uni­versalizando" seus modelos e seus valores, levou à constru­ção do conceito de ordenamento, produzido com base na ordem jurídico-estatal. No classicismo pré-napoleônico fa-

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lava-se de leis (e da lei) e do Direito Natural; depois de Savigny falou-se de códigos e do direito tout court; durante o oitocentos os franceses veicularam a distinção entre leis constitucionais e leis ordinárias. Dessa distinção (de que os norte-americanos tinham consciência desde um pouco an­tes), nasceria o tema da hierarquia das leis. Deste proviria, de certo modo e com outros componentes, o problema do ordenamento71.

71 Cf. nosso Formação da teoria constitucional, op. cit.

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Capítulo III

O Problema das "Relações"

Sumário: 1. Direito, instituições, socieda­de. 2. Direito e ética. 3. Relações com a politicidade e a política. 4. Digressão so­bre o Estado-de-Direito. 5. Novamente ética e política. 6. Relações com a religião. Notas.

1. Direito, instituições, sociedade

A tematização filosófica do direito como experiência humana deve incluir uma referência à sua relação com a política e a ética. Tal tematização equivale ao traçado de um quadro onde se cruzam a perspectiva histórico-socioló-gica e a propriamente filosófica, além da teológica: na pers­pectiva filosófica se acha obviamente incluída a axiológica. O Direito como algo situado entre o poder e a ética, algo dentro do qual ocorrem realidades e ideais, efetividades e pretensões, conceitos e processos; como "resultado", como estrutura, como um conjunto de afazeres. É por dentro de

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tudo isso, e com abrangência epistemológica, que se levan­ta a pergunta sobre por que o direito.

Ao pensar nas "relações" entre o direito e as outras áreas (ou planos) da vida social, cabe assinalar de pronto duas coisas. Primeiro, distinguir entre direito e ciência do direito: distinção evidente mas vez por outra esquecida por certos autores, que dão ao termo direito estas duas acepçõ­es. Segundo: a distinção que se faz entre o direito e os "outros" setores da ordem social, não tem (o que também é óbvio) o mesmo sentido que a que_ eabe-fazer-entre o "saber jurídico" e os saberes concernentes àqueles setores. A estes temas já aludimos, de passagem, em algum lugar dos capítulos anteriores.

São problemas que permanentemente ressurgem, tanto ao se tratar do direito como pura forma (aí a tendência a usar com dois sentidos o vocábulo direito), quanto ao tra­tar-se dele como realidade complexa (aí a tendência a exa­gerar na interrelação entre saber jurídico e saberes sociais outros). Permanentemente ressurgem, também, uns tantos truísmos e pseudoproblemas: os truísmos peculiares ao lo­gicismo, e os pseudoproblemas oriundos da repetitividade acrítica. Na verdade, a própria expressão relação com abri­ga e propicia certa polissemia: o relacionar-se de uma área institucional com outra (o direito com a política ou com a economia) pode significar uma conexão de caráter cultural, uma co-incidência histórica, uma influência definida ou algo como um "condicionamento".

Cada uma das áreas ou setores da vida social se apresen­ta dotada de historicidade — outra coisa óbvia —, mas com peculiaridades no conteúdo e na estrutura. Cada uma é preenchida ou alimentada por determinados valores (e foi com base em uma idéia semelhante que Spranger escreveu

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sobre as "Formas de Vida", estudando o valor que corres­ponde a cada tipo humano, como predominância).

Assim a economia se considera provida de uma dinâmi­ca conduzida por referências "materiais" e pelo que Hegel havida chamado "necessidades," (o sistema-das-necessida-des que lastreia a bürgerliche Gesellschaft ou sociedade ci­vil)72. A educação, correspondendo a valores de outro tipo, aparece como interação, como processo real e como um sistema de projetos e métodos. A ética, no sentido menos "ideal" do termo, permeia na verdade a todos os setores, não constituindo uma área "à parte", mas sim uma espécie de dimensão (ou plano) do viver social.

A alusão, vinda de Marx, a superestruturas sociais, e a uma "infra-estrutura", que estaria no econômico (ou no "socioeconómico") envolve em verdade uma boa parte de evidência e outra de expressões indemonstráveis. No mar­xismo, o nível infra exerce uma função de causalidade so­bre o supra: trata-se de um modo de ver (ao qual já deno­minamos "preconceito verticalista") que se insere nas ge­neralizações do século dezenove, de amplas visões e de "quadros" evolucionistas73. Por mais que certas revisões tentem afastar as idéias de determinação e de economicis-

72 Para a referência a Hegel, La societé civile bourgeoise, trad. J. P. Lefebvre, Maspero, Paris, 1975 (trata-se de três textos distintos, in­cluindo-se os célebres parágrafos 181 — 256 da Filosofia do Direito de 1820-1821). Cf. os comentários de G. Marini, "Struttura e significati delia societá civile hegeliana", em II pensiero político di Hegel, org. C. Cesa, Bari, Laterza, 1979, págs. 57 e segs. 73 Para o tema Roger Picard, El romanticismo social, trad. Bianca Chacel, FCE, México 1947; Stefan Collini, D. Winch e J. Burrow, That noble science of politics. A study in nineteenth century intellectual histo­ry (trad. esp. FCE, México, 1987); George Mead, Movements of thought in the nineteenth century (ed. M. Moore), Chicago 1972.

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mo, elas fazem parte do marxismo, que sem elas não se distinguiria bem de outras teorias. Sem aquelas idéias, tam­bém, não estaria completo o apoio a que Marx e Engels recorreram para embasar a imagem de uma especial "dialé­tica" e de um socialismo "científico". Ao aludir a um tipo de fenômenos sociais mais "profundos", e a expressões "menos profundas" (entre as quais o direito), dependentes das primeiras, o marxismo — o de Marx e Engels, não o de reelaborações posteriores — reduzia todo o "superestrutu-ral" a-epifenômeno, essencialmente ideológico, em face do cerne encontradono modo-de-produção econômica74.

O problema é evidentemente mais complexo e não pode reduzir-se à imagem do "em baixo" e do "em cima". A vida social é uma experiência abrangente, e no caso do direito o seu lugar é a dimensão institucional da sociedade. Com este termo, que recorda a definição de certos autores da primeira metade do novecentos ("toda coisa socialmen­te estabelecida"), mencionamos o estabelecido e aceito, o consagrado e legitimado — de certo modo o "oficializado", o ligado ao Estado, ou ao que Hegel chamou de espírito objetivo.

Mas, a propósito de instituição, vale acrescentar algo. As "áreas" do viver social são em verdade "formas institu­cionais" no sentido do que escreveram (acertadamente) certos pensadores do século dezenove, Spencer exemplar­mente, e também Sílvio Romero, que se referia às "grandes

74 Mencionaremos dois textos alemães sobre a "posição" do direito dentro da vida social: o do filósofo Werner Maihofer, "Recht ais Mas-stab fuer oekonomisches, soziales, politisches und kulturelles Leben in unserer Zeit", em Memoria del X Congreso Mundial de Filosofia dei Derecho (ed. UNAM, México, vol. X, 1984), e o de Ulrich Lohmann, "Recht ais Masstab fuer oeknomisches, politisches und kulturelles Le­ben in unserer Zeit", idem.

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criações da humanidade, isto é: arte, religião, economia, política etc. Nesse conjunto há de procurar-se o direito: ordem que atua dentro do contexto das instituições.

A referência às instituições não toma o termo no senti­do da (aliás muito importante) teoria da instituição, que na versão francesa, capitaneada por Maurice Hauriou, era às vezes chamada "da instituição e da fundação". Na Itália, Santi Romano lançou mão da palavra instituição para con­ceituar o direito como ordem objetiva, isto é, como orde­namento. Aqui falamos de instituições para aludir ao con­junto de funções e de setores existentes na sociedade, per-fazendo-a. Religião e Igreja, educação e escola, economia e empresa —• ou forma de produção — ocorrem em cada sociedade como um conjunto; ocorrem como partes inter­ligadas, caracterizadas pelo mesmo fundamento cultural.

Talvez caiba, entretanto, destacar de dentro desse con­junto as instituições que mais diretamente aparecem no âmbito do poder, isto é, o campo da politicidade em senti­do restrito. Neste caso mencionamos a política e o direito. Com isto se evita a artificiosa ou exagerada separação entre política e direito, e se permite que a visão da "politicidade" como um todo — equivalente ao próprio plano institucio­nal da sociedade — seja completada ou enriquecida com a compreensão histórico-cultural do poder e do direito.

Isto significa dizer que a dimensão institucional de cada sociedade é basicamente política, no sentido amplo e clás­sico do termo. A politicidade, abrangendo como um con­junto as diversas áreas ou setores do social, como que se concentra no setor "político", onde se acha o poder, e desse setor saem os órgãos de governo, os focos de decisão, as fontes normativas, o direito. Podemos neste ponto, e nes­tes termos, referir a necessidade social do direito: há na sociedade um lastro de referências que permitem julgar e

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decidir., e ao mesmo tempo um sistema de indicações ins­titucionais que medem e distribuem a validade das preten­sões dos sujeitos75.

2. Direito e ética

Referimo-nos à ética por possuir um significado mais amplo e mais informal do que a moral, Em forma precária e aproximativa, pode-se dizer que a ética tem um sentido mais "concreto" e mais social, ou cultural: acervo de valo­res e de hábitos que se ligam a juízos e comportamentos. A moral teria, no caso, uma acepção mais formal: sistema de deveres, definidos em cada consciência (como na teoria de Kant) ou vigentes para certos atos ou grupos. A precarieda­de da distinção provém da relativa paridade das respectivas raízes: ethos como expressão do modo grego de entender o humano na convivência e na praxis, mos (moris) como refe­rência latina aos usos pessoais e comportamentos76. De qualquer sorte podemos fixar dois planos temáticos: o das relações entre direito e ética, entendidas na dimensão geral e histórica dos sistemas e dos ordenamentos, e o das rela-

75 Remetemos ao sempre importante livro de L. Recaséns Siches Vida humana, sociedad y derecho (op. cit). Sobre direito e poder, seguem fundamentais os densos textos de Hermann Heller, na Teoria dei Estado (op. cít.), págs. 199 e segs., 256 e segs. 76 Sobre o ethos, Henrique C. de Lima Vaz, "Fenomenologia do et­hos", em Escritos de Filosofia II. Ética e cutura (Ed. Loyola, São Paulo 1993), págs. 11 e segs. — Mais sobre ethos em W. Jaeger, Paideia. Los ídeales de la culturagriega (trad. J. Xirau e W. Roces, México 1957, Livro III). Cf. nosso Ética e história, ed. Renovar, Rio de Janeiro 1998, cap. I, pág. 29.

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ções entre direito e moral situadas peculiarmente no con­teúdo das normas, dos institutos e dos princípios77.

Em certas épocas receberam especial ênfase as questõ­es referentes à diferença entre moral e direito. No ilumi­nismo surgiu a famosa distinção que atribuía ao direito o forum externum e à moral o forum internum. Esta distinção, que veio de G rocio e teve em Tomásio seu expositor mais citado, correspondeu ao contexto criado pela secularização cultural: em lugar de uma ética e um direito fundados so­bre alicerces teológicos, surgiu a idéia de que ao menos o direito (como também o Estado) escapava à teologia e se estruturava em termos "externos", isto é, seculares, so­ciais. No pensamento de Kant encontra-se uma distinção semelhante, porquanto o filósofo das Críticas mencionava uma legislação interna e outra externa, vinculando àquela a ética e a esta o direito (em Hegel, entretanto a noção domi­nante é a de ética: o "sistema da eticidade" como dimensão da sociedade)78.

Em outros momentos presta-se mais atenção ao tema das relações entre o moral e o jurídico. Depois da criação da axiologia, veio a compreensível tendência a considerar o direito como parcialmente feito de valores, com o que a imagem das relações entre a ética e o direito se reformulou.

77 Vejam-se as substanciosas considerações de Martin Laclau, em "La relación entre moral y derecho en su perspectiva histórica", em La historicidad dei derecho (Abeledo-Perrot, Buenos Aires 1994), cap. II. — Cf. ainda o ensaio de Arthur Kaufmann, Derecho, moral e historici­dad. Derecho y moral, Marcial Pons, Madrid Barcelona, 2000.

78 Em termos menos rigorosos, este item remete à idéia do direito como "mínimo ético", vinculada ao nome de Jellinek, e também à teo­ria de William G. Summer sobre a diferença entre folkways e mores (estes destacando-se, dentre aqueles, como concernentes aos preceitos indispensáveis à defesa da vida do grupo).

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Ao tempo de Del Vecchio, a alusão às "regras sociais" era uma das referências básicas para situar o lugar do direito como ordem específica: com a menção aos valores se deli­neia um "conteúdo" para as regras jurídicas e se garante uma referência metafísica para a compreensão do papel do direito no viver dos homens79.

No século vinte, após os debates trazidos pelo neoposi­tivismo, pelo formalismo normativista e dor outras posi­ções adversas à metafísica, desenhou-se uma antítese bas­tante ciara entre os adeptos da axiologia (bem como do historicismo e da metafísica em geral) e seus negadores. Para o normativismo, por exemplo, bem como para os cha­mados "realismos" (inclusive o escandinavo) e para a teoria analítica, a referência a valores não faz parte de uma pro­blemática jurídica. Nas teorias deste tipo a questão das relações entre ética e direito é atirada para uma faixa exter­na, como acontece na teoria pura, de Kelsen, que chega, a propósito, a considerar o tema da Justiça como "irracio­nal", como algo incompatível com a objetividade da teoria do direito. Anote-se, contudo, que Kelsen não se propu­nha, sobretudo de início, a fazer filosofia do direito, e sim a elaborar uma "teoria do direito positivo"80.

79 Depois da axiologia começou a perder vigência a imagem iluminis­ta de uma legislação interna e outra externa, aquela correspondendo à moral e esta ao direito. Podemos remeter a Mario Cattaneo, Iluminis­mo e legislazione (Milão 1966), e, para a figura de Tomasius, ao sempre relevante estudo de Gioele Solari, incluído em Studi Storici ái Filosofia dei Diritto (Giappicheili, turim 1949). Sobre moral e direito ainda será válido lembrar o clássico Leon Petrazicki (trad. Hugh Babb, Law and Morality, Harvard Univ. Press, 1955), assim como os bem mais recen­tes estudos de Chaim Perelman: Ética e Direito, M. Fontes, São Paulo 1996.

80 Cf. Hans Kelsen, Teoria Fura do Direito, trad. João B. Machado, ed. Armênio Amado, 2 volumes 1962; idem, Qué es la justicia, ed.

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A nosso ver a análise do problema envolve a considera­ção de diversos prismas. As relações entre o direito (or­dem, experiência, estrutura institucional) e a moral, ou a ética — não faremos distinção aqui — depende dos contex­tos. Isto é evidente. Nas antigas monarquias, regidas por teocracias, o direito era uma coisa distinta do que passou a ser (após o processo de secularização) em cada uma das repúblicas democráticas "burguesas" do Ocidente moder­no. O mesmo se diga da ética81. Nas teorizações ocideatais modernas, tanto a visão do direito como a concepção da ética envolvem a presença do legado cristão, bem como da herança romana e de outros legados: aí entram questões teológicas vindas do medievo, doutrinas "absolutistas" oriundas dos séculos XVI e XVII, debates críticos elabora­dos durante as revoluções liberais82.

Por outro lado o tema se empobrece se se reduz a um mero confronto entre o conceito de direito e o de ética. Na verdade as relações e as diferenças entre ambas as coisas se entende dentro de um conjunto (de relações e de diferen­ças): relações da ética e do direito com a economia, com a política e com a religião. Nesta rede de contactos e de "condicionamentos" se situam e se entrecruzam vários pla­nos, onde ocorrem intercâmbios diversos, sempre envol-

Univ. de Córdoba, 1956; idem, A ilusão da justiça (trad. S. Tellaroli, ed. Martins Fontes, São Paulo 1995). —V. também Antônio Villani, Diritto e morale nella giurisprudenza tedesca contemporânea, Nápoles, Ed. Morano, 1964, e, com outro sentido, W. Enderlein, Abwaegung in Recht undMoral (K. Alber, Friburgo, 1992). 81 Cf. nosso Ética e História, op. cit. 82 Todos estes legados são ignorados pelas disquisições éticas dos formalistas e analíticos neoliberais da segunda metade do século XX, como se vê por exemplo em Carlos S. Nino, El construtivismo ético, CEC, Madrid 1989.

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( vendo valores distintos: normas religiosas que se tornam éticas, ou que se fazem políticas, valores (ou interesses) econômicos que se ligam a valores morais, valores culturais e ideológicos que permeiam o contexto.

A relação entre direito e ética é algo evidente, posto que leis e decisões envolvem valores: há opções éticas nos atos governamentais, nos programas e nas políticas (que hoje se chamam redundantemente "públicas"). Deslocan­do o tema para um nível mais genérico e mais fundo, caberá mencionar o que temos chamado poiiticidade dos valores. Ou seja: em um sentido largo, que retoma a significação de "política" na linguagem clássica, a poiiticidade corresponde ao próprio plano institucional da sociedade, enquanto orga­nização do espaço público, das coisas do populus —como se indica no ilustre e sempre retomado étimo latino83. É no plano da poiiticidade, entendida como dimensão institu­cional do humano, que radicam os valores (bem e mal, for­te e fraco, justo e injusto), inclusive os valores jurídicos, que se comunicam com os éticos e com os estritamente "políticos": políticos, agora, em acepção ligada ao poder, à autoridade e à condução das coisas "popúlicas".

Não significa, entretanto, dizer que o direito tenha como escopo específico "moralizar" a sociedade. O direito envolve e expressa valores éticos (estava certa a idéia do "mínimo ético"), mas não "infunde" padrões morais nos homens — senão indiretamente. Nesta ressalva se coloca o outro lado do tema, que é o das diferenças entre ética e direito. Não há direito sem ética, e a ética está nos funda­mentos de cada sistema (pode estar também em cada nor­ma vigente); mas as condutas, que são livres, podem cum-

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83 Cf. nosso estudo sobre a poiiticidade do direito no cap. 8 de Estu­dos de teoria do direito (ed. Del Rey, Belo Horizonte 1994).

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prir ou não os componentes éticos. Daí não se imaginar (é o que pensamos) um direito sem estrutura e sem sanções; sem o Estado. De certo modo o direito é precisamente uma parte do Estado, que se incumbe de tornar efetiva uma parte da ética.

3. Relações com a poiiticidade e com a política

Coloquemos agora o tema específico das relações entre o direito e a política. Do ponto de vista filosófico, a política não pode ser entendida (como ocorre em certas conceitua-ções da "ciência política") apenas como domínio do poder. Também a justiça (e isto desde pelo menos Platão e Aristó­teles) deve entrar em uma concepção do que seja a política. Talvez a política seja (ou deva ser) uma junção das duas coisas: kratos e ethos como lados igualmente relevantes da experiência histórica.

Obviamente nos referimos à política como poiiticida­de, segundo ficou esclarecido (algo diferente seria a cha­mada "política em nível elevado", na qual reponta algo do que a tradição escolástica menciona como "bem comum").

A correlação entre direito e política — que não se limita à conexão entre direito e Estado — pode ser considerada em sentido funcional, inclusive dada a existência de funções e de órgãos estatais, juridicamente definidos. Mas pode também, e deve, entender-se em sentido material, já que com o direi­to se tem a institucionalização, em forma de ordem, da etici-dade politicamente viável. Dentro dessa eticidade se encon­tra o valor Justiça, como os demais valores éticos, que dão à concreteza do ethos uma dimensão ideal84.

84 Sobre a relação entre direito e política, correlata da que existe entre direito e ética, ver M. A. Ciuro Caldani, Derecho y politica, ed,

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Sob certo prisma, e em sentido bastante esquemático, poderíamos caracterizar três posições distintas no concer­nente às relações entre direito e política. Em primeiro lugar o entendimento da política (ou da politicidade) como esta-talidade: o Estado como esfera do poder organizado e sobe­rano, "elaborando" o direito. Em segundo lugar a noção, esforçadamente construída, de um direito separado da po­lítica, noção difundida, como se sabe, pelo normativismo kelseniano, com a figura de uma ordem jurídica entendida como só forma; e presente, de certomodo,ma teoria egoló-gica. Finalmente a idéia de uma politicidade em senso am­plo, pensada, segundo dissemos, conforme a imagem clás­sica da política: isto é, o âmbito da polis com seu feixe de crenças, enlaces familiares, autonomia econômica e mili­tar, e com seu núcleo de valores (inclusive estéticos). Nes­te terceiro caso, as instituições se acham abrangidas como uma dimensão inteira do viver social, dentro da qual o con­texto cultural produz os valores85.

Concerne anotar que Santi Romano, nos decênios ini­ciais do século vinte, tomava a instituição como um concei­to jurídico (em sentido próximo ao de Hauriou, vimo-lo acima), afirmando expressamente a equivalência das no­ções de "instituição" e de "ordenamento jurídico"86. Trata-

Depalma, Buenos Aires 1976. — Porções do tema ocorrem no clássico ensaio de Frederick Pollock, "The history of english law as a branch of politics", em Jurisprudence and legal essays, ed. Goodhart, Macmillan, Londres 1961, pp. 185 e segs.

85 Cf. acima, nota 83. — Anote-se que Cossio, mau grado a grande importância de sua teoria, não tratou do problema do condicionamento cultural dos valores: o acento lógico e epistemológico pesou mais na con­cepção egológica do que a perspectiva histórica dos temas. Cf. La valora-ción jurídica y la ciência dei derecho, ed. Arayu, Buenos Aires 1954. 86 Cf. nosso artigo "Santi Romano. Para um reexame de sua obra e de seu pensamento", op. cit.

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se aí, entretanto, de um entendimento específico. Parece-nos preferível, como noção fundamental, a da politicidade, que implica a existência da sociedade com suas estruturas, e que abrange as formas de ordem existentes no viver so­cial87. Instituem-se em um plano genérico práticas e valo­res, organizando-se juridicamente como vigências efetivas. O direito, como ordem., coexiste com outras instituições — mencionamos acima as "áreas" ocorrentes na sociedade —, e com elas permuta ou partilha formas, valores, lingua­gens, mudanças.

* * *

O tema das relações entre direito e política conduz, todavia, à problemática das chamadas formas de governo. E óbvio que o direito produzido e aplicado numa democracia diferirá do direito vigente em uma monarquia (falo das monarquias préburguesas, as verdadeiras monarquias). Uma coisa o direito que deriva, direta ou indiretamente, do poder absoluto do monarca., que oferta códigos ao seu povo (códigos ditados por uma divindade) e que distribui Justiça. Outra coisa o direito elaborado por assembléias populares, ou por "representantes" do povo, com a interfe­rência dos oradores ou da imprensa (e também do dinhei­ro), direito aplicado por juizes e tribunais cujo trabalho se acha definido e delimitado por uma constituição.

Ao mencionar a relação da experiência jurídica com as formas de governo, vale aludir igualmente à sua relação com as ideologias sociais que a elas correspondem. Ou seja, concepções econômicas, psico-sociais, religiosas. Se se tra­ta de "regimes" político-sociais, a referência irá para o so-

87 Cf. supra, notas 83 e 85.

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cialismo ou o liberalismo, o anarquismo ou o autoritarismo, o comunismo, o socialismo (não para a democracia, que não é propriamente um ismo). Tais concepções são ideoló­gicas na medida em que se vinculam a ensinamentos parti­dários, a "interesses de classes" ou a credos de fundo extra-político: credos religiosos por exemplo. Na verdade as dou­trinas sócio-políticas sempre existiram, ao menos desde que o poder precisou ser justificado: mas é no Ocidente moderno e contemporâneo (isto é, secularizado) que me­lhor se revelam as conotações ideológicas das estruturas jurídico-políticas: a legislação no parlamentarismo, a orga­nização Judicial no Estado federal, as competências consti­tucionais em um regime comunista88.

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4. Digressão sobre o Estado-de-Direito

Os problemas do chamado Estado-de-Direito (Rechts-staat, termo veiculado por Von Mohl nos inícios do século XIX) envolvem de forma direta o direito e o Estado, ou a política. Na formulação do conceito de Estado de Direito se encontram vários elementos, tais como a permanência do modelo administrativo absolutista, que as revoluções liberais mantiveram, o ideal liberal da redução do Estado a uma presença mínima, a crença jusnaturalista na necessida­de de um fundamento Jurídico para todo poder. O Estado-de-Direito., ainda que implicitamente, foi o que se preten­deu nos Estados Unidos norte-americanos com a suprema­cia constitucional, e na França com as declarações-de-direi-tos, concebidos como anteriores a toda positividade e legi-

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88 Cf. Nelson Saldanha, Secularização e democracia. Sobre a relação entre formas de governo e contextos culturais, cit.

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timadores de toda ordem. Nisto tudo entra o liberalismo de Locke, a geometria política de Sieyès e a ordem social projetada no Code de 1804.

No século vinte, o normativismo dos seguidores de Kel-sen considerou inócua a expressão, dado que o direito, en­tendido em sentido formal, existe em todo Estado. Cari Schmitt se contrapôs à idéia do Estado de Direito, vendo nele uma ôca criação liberal, causadora da "despolitização" do Estado e da idealização da legalidade89.

De fato a idéia de legalidade (formulada desde o me­dievo inglês com o due process of law e consagrado para o direito penal por Beccaria no século XVIII) aparece histo­ricamente como uma antecipação, ou antes uma pré-confi-guração da idéia do Estado de Direito. A validade da ex­pressão "Estado de Direito" corresponde ao fato de que ela é caracteristicamente moderna, embasada em uma visão secularizada do homem e da política. O Estado-de-Direito recolhe e confirma as estruturas construídas pelo constitu­cionalismo "burguês" (daí ser às vezes identificado como Estado constitucional): estruturas como a constituição es­crita, a separação de poderes, as garantias de direitos. Con­sagra, de certo modo, a concepção kantiana do direito (coe­xistência de liberdades pessoais dentro de um sistema de limitações recíprocas), bem como, em outro plano, a reto­mada da clássica divisão do direito em público e privado.

O Estado-de-Direito, como solução juridicizante para o Estado moderno, surgiu como um ideal de equilíbrio, en­tendido como um modelo formal (funcional) e ao mesmo tempo como expressão de valores. A redução do direito a

89 Cari Schmitt, Legalidad y legitimidad (trad. Diaz Garcia, Aguilar 1968), passim. Sobre Schmitt, nosso Formação da teoria constitucio­nal, op. cit., cap. IX, págs. 199 e segs.

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mera forma, e mais, a mera norma, veio tornar inócuo o termo, o que pôde permitir que a qualquer forma política se denomine "Estado de Direito". Durante o século XIX, o crescimento do pendor formalizante dos publicistas alemães, paralelo ao dos privatistas, impediu a consideração do Rechts-staat como sendo, também, uma construção ética90.

5. Novamente ética e política

De certa maneira o Direito constitui um espaço onde se encontram a ética e a política (mencionamos, no item 3, o encontro entre ethos e kratos dentro da própria política). Dir-se-ia que à ética correspondem (obviamente) os valo­res, as exigências morais, as pautas "de opinião". A política o poder, as estruturas de dominação, a efetividade e cosi-via.

Um dos vínculos dentro de cujos contornos melhor se encontra o direito é talvez aquele existente entre política e economia. Isto se torna mais visível no caso do direito pri­vado: a milenar vigência do direito comercial, a presença do capitalismo dentro de tantos institutos comerciais e civis. Na verdade, porém, esta perspectiva não leva muito longe,

90 "Ética", aí, no sentido de algo vinculado ao ethos, valendo a ressalva de que na Itália fascista se empregou o termo stato ético em sentido específico. A respeito cf. Franco Cusimano, Stato ético e estato demo­crático (Milão, Giuffrè, 1953), princ. introdução e cap. II. Para uma explanação abrangente, ver Antônio José Brandão, " Estado Ético con­tra Estado Jurídico?", em Vigência e Temporalidade do Direito e outros ensaios de Filosofia Jurídica (organização de A. Braz Teixeira, Impren­sa Nacional, Lisboa 2001), princ. págs. 62 e segs. — Com alusão ao formalismo contemporâneo, A. Negri, Alie origini dei formalismo giu-ridico, op. cit. — Para os pandectistas, Paolo Capellini, Systema Juris, 2 volumes, Giuffrè, Milão 1985.

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como "medição" de relações. Aí estão o direito tributário e o próprio "direito econômico" como áreas de estreita con­vivência entre dados econômicos e formas jurídicas. A co­nexão com a política se refere ao direito como um todo, a partir das normas maiores que estruturam o ordenamento; e a presença da ética nasce da própria inserção do direito na sociedade: aludimos, pouco acima, ao sentido da ética como eticidade.

É possível, entretanto, pensar que a experiência do jus mercatorum não tenha conduzido os juristas medievais a pensar na ordem jurídica como algo inteiriço e específico. Faltavam categorias relativas à unidade do direito dito "ob­jetivo", e o vocabulário jusnaturalista não ajudava para a questão. A alusão a um "direito público" foi necessária para que se pudesse ver o direito como algo vinculado à política; a ligação do direito com a ética permaneceu, até pelo me­nos o renascimento, dominada pela visão teológica e jusna­turalista. No direito romano ocorreu o termo publicum jus, mas havia também a expressão lex publica, que significava algo diferente.

Somente com a secularização, a partir dos séculos XVII e XVIII, e com a burguesia (em realidade protagonista do processo de secularização), pôde ocorrer, no Ocidente mo­derno, uma visão do direito capaz de ser pensada no senti­do de uma relação com a ética e com a política. E com o constitucionalismo moderno tornou-se possível reconside­rar a distinção entre o direito público e o privado91.

91 Para Bernard Groethuysen a Revolução Francesa teria reconstruí­do a ordem social, política e jurídica refazendo o direito privado com base no direito romano e na propriedade, e o direito público com base no direito natural: Philosophie de la Revolution Française, ed. Galli-mard, Paris 1956, caps. VII e VIII. — Para outros aspectos, M. Fiora-vanti, Giuristi e costituzionepolitica neWottocento tedesco, ed. Giuffrè,

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A referência às relações do "campo" do direito com a ética e a política (o que vai dito aliás com um pouco de metáfora) nos recoloca., evidentemente., diante do austero problema do Estado. Para que se visualize a presença social do direito, não basta ter em conta os genéricos dados insti­tucionais, que relacionamos com a genérica "politicidade". Alguma coisa deve fazer atuar o direito: se as normas e as decisões que integram o direito não puderem ser impostas — para tanto existe o Estado —, e também se as imposi­ções provindas do Estado não forem passíveis de transgres­são92, normas e decisões se perderão como palavras., ou se diluirão na massa dos fatos. Sem o Estado (tomando-se Estado e Direito como coisas distintas mas indissociáveis), o sentido de "controle social" que se atribui à ordem jurídi­ca não teria sentido. Na verdade, a própria idéia de uma unidade do ordenamento jurídico, ou por outra, do "direi­to" entendido como ordem objetiva, carece de um correla­to político, que qualifica a positividade das normas e que avaliza sua existência como vigência e como efetividade. Todos estes aspectos nos fazem compreender porque He­gel, tomando a Grécia antiga como referência fundamen­tal, encontrou no estágio inicial, o das grandes famílias, o momento do espírito subjetivo, e no estágio seguinte, o da polis, o momento do espírito objetivo: a polis, a cidade-Es-tado, com sua ordem jurídica conjugada à ordem política.

Milão 1979.- Nos últimos decênios, o tema se vem reformulando den­tro dos estudos sobre as novas relações entre direito civil e direito constitucional: cf. entre outros J. Arce y Flórez-Valdês, El derecho civil constitucional, ed. Civitas, Madrid, reimpressão, 1991. 92 Hans Kelsen admitiu que o ilícito não é bem uma negação, mas "condição" do direito: Teoria Pura do Direito, op. cit., vol. I, cap. IV (pig. 218).

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Vale repetir que as alusões ao caráter "institucional" do direito correspondem perceptivelmente à idéia de algo "oficial". O institucional, na sociedade, se encontra na ex­terioridade dos atos, na estrutura das situações, como sis­tema de formas — embora seu entendimento integral re­queira a consideração de conteúdos e valores (valores que, pelo menos no caso, são objetivos). É a junção com o Esta­do que "oficializa" as formas jurídicas, embora se possa também inverter a frase, justo por causa da complementa­ridade das duas coisas. A legitimidade do direito, como toda legitimidade ocorrente no mundo histórico, é política: tornar eficaz a legitimidade é função essencial da ordem estatal, que nisto e para isto se conjuga à ordem jurídica.

Conviria, neste passo, lembrar a etimologia: do latim officium, vindo de facere (fazer), as línguas européias ad­quiriram o termo "ofício", que em francês por exemplo designaria desde o século XII a idéia de "função", e desde o século XIX "órgão" administrativo. Sem deixar de haver também, em officium, a menção ao serviço, à obrigação e ao dever93.

Registremos, em redor disso, que a relação entre direi­to e Estado foi alterada quando da passagem do direito costumeiro ao legislado. O direito costumeiro equivaleu à institucionalização social de normas criadas sem a partici­pação (pelo menos direta) do Estado; o legalismo moderno, paralelo ao Estado moderno (sobretudo o Estado constitu­cional posterior a 1787 e 1791), é que trouxe a ligação entre a presença do Estado e a institucionalização das nor­mas.

93 Cf. A. Dauzat e outros, Nouveau Dictionnaire êtymologigue et his-torique (Larousse, Paris 1964), 4a Edição, pág. 507.

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* * *

Após estas referências históricas, podemos aludir à cri­se do Estado liberal, que foi (ou vem sendo) uma crise do racionalismo "burguês" e do próprio Ocidente seculariza-do. Crise, também., do capitalismo, correlato econômico dos ideais liberais.

Geralmente se diz que o Estado moderno passou por três fases (o Estado absoluto, o liberal e o social); por outro lado, como se sabe, estes estágios são também estágios da constituição e dos "direitos" que cada modelo constitucio­nal consagra. Uma terminologia que pessoalmente conside­ramos questionável fala de "gerações" a respeito da formu­lação dos direitos, indo desde os que apareceram nas pri­meiras declarações norte-americanas e francesas, aos mais recentes. Evidentemente a crise do Estado liberal (e do direito liberal também) faz parte de um contexto cultural e envolve componentes ético-políticos. Também o cresci­mento da exigência constitucional em torno dos direitos (pouco se fala em deveres) tem um fundamento cultural e envolve implicações ético-políticas.

O processo histórico da idéia dos direitos, reivindica­ção do homem moderno diante do Estado, foi registrado por Gino Gorla em seu livro sobre Tocqueville. Gorla des­tacou a paradoxal correlação entre o jusnaturalismo (com sua imagem abstrata do homem) e a consolidação do Esta­do como criação do mesmo homem moderno94. A criação

94 Cf. Gino Goria, Commento a Tocqueville. L'idea dei diritti (Mi­lão, Giuffrè, 1948). — Em um estudo sobre os direitos subjetivos, Riccardo Orestano retomou as observações de Gorla, acentuando tam­bém o contraste entre o homem que cria o Estado moderno e o homem que se defende dele, inclusive através do lado jusnaturalístico presente nos "direitos subjetivos" ("Teoria e storia del diritti soggetivi", em Ste-

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do Estado liberal teve relações com o jusnaturalismo, mar­cadamente com Locke e com Altúsio, o que incluía uma concepção do povo como origem do poder, e do contrato como forma essencial dos compromissos fundantes. A crise do Jusnaturalismo estaria vinculada à do Estado liberal, ata­cado pelos socialistas por um lado e pelos anarquistas por outro.

O Estado liberal legou, entretanto, o modelo da consti­tuição escrita, que se universalizou, e com ela a divisão dos poderes e as garantias de direitos. Mas as crises sociais, o aumento das populações e o igualitarismo vieram multipli­car e banalizar o problema dos direitos (no fundo um pro­blema sério), complicando-se a relação entre as vigências constitucionais e a democratização do poder, dentro das crescentes instabilidades do mundo moderno95.

6. Relações com a religião

Assumem importância, mormente na perspectiva histó­rica, as relações entre o direito e a religião (vale anotar, de logo, que o mesmo ocorre no que concerne à ética e à políti­ca). Sabe-se que nas grandes monarquias do oriente antigo a

fano Rodotà, org., 11 diritto privato nella società moderna, ed. II Muli-no, Bolonha, 1971, pp.89 esegs.). — Cf. ainda Ricardo Lobo Torres, A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal, op. cit., bem como Ignacio Ara Prinilla, Las transformaciones de los derechos humanos, ed. Tecnos, Madrid 1994. 95 Ainda a propósito do Estado: em Hegel ocorreu a conciliação entre a autoridade estatal e o valor da pessoa humana: cf. Guy Planty-Bon­jour "Majesté de 1'État et dignité de la personne selon Hegel", em G. Planty-Bonjour e R. Lageais, L'evolution de la phüosophie du droit en Allemagne et en France depuis la séconde guerre mondiale, PUF, Paris 1991, págs. 7 esegs.

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religião desempenhava papel fundamental; o poder e a justi­ça eram consideradas como de origem divina. Os antigos có­digos Mesopotâmicos eram redigidos em nome dos deuses, e em Roma o direito começa com o jus sacrum96.

Na verdade o tema corresponde à diferença histórica entre a fase teológica e a dessacralizada, ou secularizada, uma mudança que ocorreu em várias das grandes culturas. Augusto Comte havia mencionado um estágio teológico que seria inicial para toda a humanidade (equívoco na idéia de uma evolução igual e linear, acerto quanto aos caracte­res do estágio): podemos confirmar, não para uma "evolu­ção da humanidade" mas para o caso de algumas socieda­des, situações iniciais caracterizadas pelo inegável predo­mínio da religião, Aliás Wilhelm Nestle, aludindo à Grécia antiga, resumiu o problema com a afortunada frase "do mito ao logos"; e Max Weber, pensando sobretudo no Oci­dente mas com alcance genérico, falou de uma "desmagici-zação" (Entzaeuberung), perda gradual de caracteres teoló­gicos dentro das estruturas sociais e políticas97.

Nos anos iniciais do século vinte, Carl Schmitt recolo­cou a questão ao tratar da "teologia política", retomando de algum modo (mas em termos muito diversos) a temática hegeliana do sentido teológico do Estado98.

96 Ver Francesco D'Agostino, II diritto come problema teológico, e altri saggi di filosofia e teologia dei diritto, ed. Giappichelli, Turim 1997 (passim). 97 Marcel Gauchet, Le désenchantement du monde (Gallimard, Paris 1985); Catherine Colliot-Thélène, Le désenchantement de VEtat. De Hegel à Max Weber (ed. Minuit, Paris 1992). — A fórmula famosa de Nestle, "Vom Mythos zum Logos", foi parafraseada no pequeno e bri­lhante livro de Harald Holz, Vom Mythos zur Reflexion (ed. Alber, Friburgo — Munique, 1975). 98 Cari Schmitt, Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre von der Souveranitaet (Dunker & Humblot, Munique — Leipzig 1934); idem,

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Mas a indagação sobre os compromissos teológicos da experiência jurídica (e da teoria do direito) não há de con­sistir apenas na referência às teocracias antigas e à idéia de uma "teologia política". A persistência de certas noções, dentro de determinados ramos do direito, confirma a con­tinuidade daqueles compromissos. Assim o conceito de "culpa", que como se sabe tem raízes na idéia de pecado como transgressão de uma norma religiosa. É possível que a crença em direitos "invioláveis" (e sagrados) tenha um fundo teológico; talvez também a referência à irretroativi-dade das leis, apesar do revestimento racionai que adqui­riu. Também seu correlato, a referência aos "direitos ad­quiridos", tidos como sagrados em um sentido que de certa forma não depende das explicitações do direito positivo. Será o caso, ainda, de noções como a de "obrigação natural" ou a de "boa fé", esta consolidada como referência ética em forma de princípio99.

Os autores que pensaram em uma fundamental passa­gem do status ao contrato (a fórmula famosa devida a Sum­ner Maine), dentro das sociedades ou dentro do que nos séculos XVIII e XIX se tinha como a evolução geral da humanidade, estavam bastante próximos da imagem da se-cularização. A secularização leva do teológico ao laico, ou ao racional, mas carrega vestígios que fazem cumulativa a

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experiência .

Teologia política II, La leggenda delia liquidazione di ogni teologia polí­tica, trad. A. Caracciolo, Giuffrè, Milão 1992. 99 Cf. Judith H. Martins Costa, A boa-fé no direito privado, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999. 100 Nosso Secularização e democracia, op. cit., passim.

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Parte III

DIREITO E VALORES

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Capítulo I

Valores: ética, política, direito

Sumário: 1. Politicida.de, eticidade e valo­res. 2. Instituições, ordem e valores. 3. Di­reito e valores. 4. Valor, "fundamento" e poder. 5. Em torno da idéia de legitimida­de. Notas.

1. Politicidade, eticidade e valores

Entramos agora em um outro tipo de problemas, distin­tos dos da epistemologia, com suas indagações sobre a inte­ligibilidade das coisas (e da própria inteligibilidade); distin­tos também das referências básicas, que beiram ou apoiam a ontologia.

Neste livro, conforme afirmamos., não conseguimos abandonar inteiramente o consagrado esquema que põe em seqüência os três grandes temas: as perquirições espitemo-lógicas (por alguns transformada em simples metodologia), a reflexão sobre o ser, e a questão — ou as questões, da

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prática. Nem é propriamente um mal seguir tal esquema: talvez não seja possível evitá-lo inteiramente. O que impor­ta é entender a fundamental conexão que une filosofica­mente as três ordens de problemas, que são enfoques de um mesmo olhar especulativo, o qual se refere ao conhecimen­to mas também ao ser (ou às realidades), e com idêntico alcance se refere ao agir, o agir humano, teste e contrapon­to de toda teorização.

* * *

Usemos o termo experiência. O que se chama com esta palavra tem a ver com a relação dos sujeitos entre si e com as coisas. Vá lá que se afirme — o que é óbvio — que as relações jurídicas ocorrem sempre entre sujeitos; mas a ex­periência, ou com outro termo as vivências que preenchem condutas e põem à prova a consciência, podem envolver "o outro" e também as coisas — estas com sua opacidade às vezes aparente (que as coisas são produtos do viver humano e carregam consigo traços humanos).

No século vinte a expressiva linguagem de Heidegger deu enorme ênfase ao fato evidente de que os homens es­tão no mundo, ligando a noção geral de ser à de Dasein, e intitulando o homem (protagonista daquele "estar no mun­do") de pastor do ser. Frases à parte, o que ficaria como aspecto válido na obra de Heidegger foi principalmente seu modo de filosofar, com tematizações desligadas (ao menos aparentemente) dos esquemas tradicionais. Mas a expe­riência, dizíamos, seria impensável sem o ser humano e sem suas vivências. Certamente Deus não tem — nem faz — experiências: nem tampouco os animais, exceção talvez para os primatas e com outro sentido.

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Como se sabe, vivência é a tradução encontrada pelos espanhóis do tempo de Ortega para o alemão Erlebnis, de­signando algo como a interiorização do acontecer, que enri­quece ou altera o sujeito dentro de seus "afazeres" (los quéhaceres como dizia Ortega); enfim, de sua praxis. Como ficou dito, as coisas, que como res não se situam tão "fora" da realidade dos sujeitos — contra o que pensam certos autores —, as coisas, que "como tais" se considera­riam objetos indiferentes, na verdade entram no mundo humano (e portanto, na interioridade dos sujeitos) na me­dida em que são adotadas ou apreendidas pelos homens como instrumentos ou meios, ornamentos ou símbolos. As­sim, pedras e rios, mas também aquilo que o homem inven­ta ou fabrica: armas e casas, palavras, números, bem como relações", significados, medidas. Deste modo a presença das coisas integra o mundo humano e interfere naquele "estar no mundo", que em verdade é o estar dos homens uns com os outros possibilitado e qualificado pelas coi­sas101.

Assim cabe entender o célebre dito de Protágoras, de que "o homem é a medida de todas as coisas", em um sentido de integração dele com elas: pouca coisa seria o homem se não tivesse o que medir.

Tudo isso levará a repensar-se a relação entre essência e existência: o homem, como pensou Sartre, "escolhendo" sua essência dentro da existência. E também a noção de cultura, vinculada ao modo de estar-no-mundo desenvolvi­do pelos homens. A chamada Filosofia da Vida, elaborada

101 Gadamer, em pequeno livro oriundo de conferências feitas em Louvain em 1957, relacionou com o conceito alemão de "estar no mun­do" a autoimagem das ciências humanas (O problema da consciência histórica, texto org. por P. Fruchon, ed. FGV, Rio de Janeiro 1998).

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por Dilthey e por Simmel entre outros, não deixou de ter certa proximidade em relação ao discutivelmente denomi­nado existencialismo: em ambos., o desdobramento de te­mas ao mesmo tempo sedutores e ambíguos. O homem como ser situado, na terminologia de Sartre, é outra versão, talvez menos vazia, do homem colocado no mundo, da lin­guagem de Heidegger: é o mesmo homem que falha, na visão de Jaspers. Mas a vida, como pensou Dilthey, e com ele Ortega, aparece em ambos como realidade radical; e possui uma estrutura (esta uma observação essencial do autor da Rebelião das Massas). Ter uma estrutura significa, entre outras coisas, que a vida é um projeto. Não nos é "dada". Isto equivale de certo modo ao choix de {'essence de Sartre; Ortega deduz, daí, que o homem não é um ser "aca­bado" e sim algo que se vai fazendo. O homem como um ser feito do que é e do que (ainda) não é. Daí a fundamen­tal crença na liberdade, como indubitável atributo do ho­mem. Da liberdade nascem as opções: viver é optar (esta mesma liberdade, como se sabe, surge também na teoria egológica da conduta)102.

Ao mencionar a idéia de optar, podemos convocar a noção de valor. Fala-se de valor e de valores, no pensamen­to ocidental contemporâneo, desde Lotze e sobretudo des­de Nietzsche103. No século vinte Nicolai Hartmann e Max Scheler sistematizaram, sob diferentes formas (mas ambos em ligação com a fenomenologia), a teoria dos valores, ou axiologia; ambos levando-a para o campo da ética. O con­ceito de valor impôs-se aos poucos ao pensar filosófico,

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102 Estas observações completam as do item 04 do cap. II da parte II. 103 Cf. Mário Caimí, "Heinrich Rickert y la Filosofia de los valores", em Anuário de Filosofia Jurídica y Social (Abeledo Perrot, Buenos Aires], n° 19, 1999, págs. 61 e segs.

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desbordando da metafísica para as temáticas especiais. Heidegger, que recusava a metafísica, desdenhou da teoria dos valores: mas foi larga a discussão, nas primeiras décadas do novecentos, sobre a "natureza" dos valores, inclusive sua subjetividade ou objetividade104. O aparecimento, no Oci­dente, de uma teoria dos valores corresponde ao surgimen­to de uma época de crise (senão de declínio) e de interpre­tação: mais do que a substância, as qualificações. Tal época, iniciada com a secularização, afasta os espíritos das certezas absolutas e das transcendências primigênias. A axiologia é também correlata de um compromisso entre a metafísica racional-dessacralizada e certos resíduos da teologia, entre os quais subsistem fragmentos das antigas noções de bem e de mal.

Os valores se revelam nos atos humanos, nas preferên­cias e na linguagem, nas instituições, nas crenças e nos pro­jetos individuais ou coletivos. Revelam-se de modo espe­cial no plano ético-político, entendendo-se o político (ou a politicidade), como já o vimos, como dimensão do existir que corresponde às estruturas com as quais se ordenam e se diferenciam os setores da ordem social. Estruturas se "preenchem" com valores, ou se explicam por eles: não que os valores conduzam ou determinem as coisas, mas estão ínsitos nelas. Evidentemente o caráter metafísico dos valo­res "como tais" repugna a todos os positivismos: e daí que no pensamento jurídico os autores materialistas ou neopo-

104 Em trabalho de juventude e ainda em fase de objetivismo polêmi­co, Ortega escreveu um estudo sobre valores, no qual se reportou aos textos de Meinong e de Enrenfels, ambos subjetivistas: para o filósofo madrilenho, os valores seriam passíveis de um conhecimento "absoluto e quase matemático" ("Qué son los valores?", em Revista de Occidente, anol, nulV, 1923).

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sitivistas rejeitem a axiologia, às vezes até por uma questão de método105.

Generalizar a noção de valor levará a afirmar que tudo tem valor. Tanto no sentido de que os desvalores são tam­bém valores (são-nos porquanto dependem da noção de valor), como também no sentido de que o espírito humano projeta valorações sobre todas as coisas., ou quase todas. A quase todos os tipos de objetos se atribuem valores. Neste ponto podemos recordar as palavras do antropólogo James Boom, que, aludindo ao variado alcance das interpretações ocorrentes dentro dos contextos culturais, escreveu que "tudo ameaça significar"106.

Dentro dos contextos culturais, e isto vem a propósito de "significar", os valores se relacionam com as projeções simbólicas e com a faculdade de criar símbolos. Nos símbo­los latejam valores. Carlos Cossio, mencionando a conver­são de objetos naturais em objetos culturais, ofereceu o exemplo de uma árvore, ou uma pedra, que dois grupos adotam como fronteira para delimitar seus territórios: ao adquirir um novo significado tal objeto passa a ter um valor específico.

A idéia de valor, utilizada por Nietzsche sem maiores preocupações epistemológicas nem metafísicas, transfor­mou-se em um problema ontológico depois das disputas (na transição para o século vinte) sobre sua objetividade. A partir de Scheler e de Hartmann, ela ora aparece como

105 Cari Schmitt, retomando como tema a recusa de Heidegger em relação à axiologia, vinculou o êxito da teoria dos valores entre teólogos e juristas com o fato de que nessa teoria eles encontram apoio para a legitimidade de suas respectivas disciplinas. Cf. C. Colliot-Thélene, Le désenchantement de L'Etat, op. cit.; págs. 131 e segs.

106 Other tribes, other scribes, trad. esp. Otras tribus, otros escribas, trad. Stella Mastrangelo, FCE, México 1982, pág. 201.

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uma idéia platônica — paradigma inalterável — ora surge como um "modo" do ser, e então se discute (como ocorreu na geração de Ortega) se os valores realmente são, ou se apenas valem.

Na verdade não se pode "separar" o valor do ser: note-se, inclusive, que toda classificação de valores vem sempre apoiada em (ou completada por) uma alusão a tipos de ser ou de realidades: a Justiça nos atos, a beleza nas obras, a verdade nos pensamentos ou nas palavras. Entendem-se também os valores como construção- do pensar, isto é, da experiência humana, historicamente situada. O ideal da Justiça, por exemplo, pode dar-se como referente a algo válido por si mesmo (e em si): um paradigma, no sentido platônico, que se revela na inteligibilidade de diversas rea­lidades do viver, como se sofresse "refrações"107.

A referência a contextos históricos, que são o locus de toda experiência humana, põe o problema da antítese entre a unidade metafísica da noção de valor, e da imagem de cada valor, e a variabilidade que tal noção e tais imagens assumem. Ou seja, trata-se do problema (ei-lo de novo) de serem, os valores, objetivos ou subjetivos: qualidades ideais inalteráveis, ou atributos dependentes de condicionamen­tos. A distinção que se pode fazer, a respeito, é entre o valor propriamente dito (ou seja, o bem, a verdade, a bele­za) e a valoração: o valor em si paira, imutável e imperecí-

107 Sobre a idéia (eidos) em Platão, F. Peters, Termos filosóficos gre­gos. Um léxico histórico (trad. B. Barbosa, 2a ed., Gulbenkian, 1983) págs. 62 e segs. — Ver ainda o esclarecedor conteúdo da lição VI ("El realismo de las ideas en Platón") em M. Garcia Morente, Lecciones preliminares de Filosofia, Losada, Buenos Aires 1952. — Não passou despercebido a Platão, de resto, que a fala e o discurso são de qualquer sorte espécies do ente: Cf. Cari Weizsãcker, Ein Blick auf Platon. Ideenlehre, Logik und Physik, ed. Reclam, Stuttgart 1981, págs. 95 e segs.

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vel, como idéia genérica, enquanto as valorações variam conforme épocas e contextos, etnias, ideologias, tempera­mentos. Mas, confirme visto acima, a própria idéia de valo­res é historicamente situada. Platão falou em idéias, mas Aristóteles não o acompanharia no entendimento metafísi­co das mesmas. A noção de "universais", defendida por muitos na Idade Média, cresceu em um meio cultural espe­cial. Com Hartman, já no século vinte, houve uma reelabo­ração metafísica, que pressupôs Platão e pressupôs Kant, e que pôde acolher a idéia de valor com toda a sua força ontológica108.

A distinção entre valoração e valor, portanto, não "re­solve" nem esgota o problema da objetividade do valor. O caminho para compreender essa objetividade deve passar pela alusão à cultura, que é um conceito objetivo mas en­volve variáveis históricas e antropológicas, sempre vincula­das às vivências dos grupos, suas alterações e estimações109.

108 Nicolai Hartmann, Ontologia. I, Fundamentos, (trad. J. Gaos, FCE, México 1986),

109 Para a relação entre cultura e valores, desde logo Miguel Reale, Filosofia do Direito, op. cit., volume I, cap. XIII, págs. 204 e segs. — Cf. também A. Stern, La filosofia de la historia y ei problema de los valores. Ed. Eudeba, Buenos Aires 1963. — Há entretanto um prisma sob o qual a noção de valor se articula com a de juízo, de onde seu contato com a idéia de uma "avaliação" ou "estimação" das condutas. A junção entre o tema do juízo {Urteil) e os problemas da beleza e do gosto foi tentada, embora ainda sem dispor do conceito de valor, por Kant na primeira parte (crítica do juízo estético) da Crítica do Juízo: Crítica delJuicio, trad. Garcia Morente, Madrid 1914, vol. I, págs. 57 e segs. — Cf. G. Deleuze, La philosophie critique de Kant, PUF, Paris 1971, cap. III. — Cf. ainda Martin Laclau, Conducta, norma y valor. Ideas para una nueva comprensión dei derecho (Abeledo-Perrot, Bue­nos Aires 1999), princ. caps. IV, V e VIII. — Para a relação entre os valores e a parelha ser-dever ser, Hans Jonas, Le príncipe responsabilité (trad. J. Greisch, Flammarion, Paris 1995), cap. 3, págs. 157 e segs.

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2. Instituições, ordem e valores

Quando, tirando-o da sociologia e da filosofia social, empregamos o termo instituições para designar estruturas que representam funções sociais, funções ocorrentes na so­ciedade, temos de evitar confundi-las com essas funções. Ou seja: religião, parentesco, educação, economia são fun­ções, são fenômenos (ou processos) que se dão dentro da vida social. Mas a Igreja, a família, a escola, a empresa são estruturas: são instituições, que configuram e realizam aquelas funções: ou melhor, desincumbem-se das ativida­des concernentes ao comportamento religioso, aos atos pe­dagógicos, à produção econômica (ou à circulação e ao con­sumo). Como ficou dito, não temos em mira, aqui, a teoria da instituição construída no campo da teoria do direito aos inícios do novecentos, sobretudo por obra do grande pensa­dor francês Maurice Hauriou110.

A posição das instituições dentro do todo que se deno­mina "a sociedade" — sua posição e suas relações recípro­cas — é algo que varia conforme as culturas. Ou mesmo., dentro de cada cultura, conforme as épocas. Conhecem-se contextos em que a religião define as outras funções: isto

110 Aludimos ao sentido sociológico ("clássico"?) do termo instituição, tendo em conta certos autores de língua inglesa da primeira metade do século vinte, inclusive Mac Iver. Cf. o verbete de W. Hamilton, "Insti­tution", na Enciclopaedia of social sciences, de 1935 (Mac Millan, N. York, vol. VIII). — Hauriou (cf. Teoria deWistituzione e delia fondazio-ne, trad, it., Milão, Giuffrè 1967) preocupou-se com a idéia de algo que se implanta, e/ou que se funda. Vale recordar que Schmitt, a propósito de sua teoria da "ordem concreta", invocou o texto de Hegel (Filosofia do Direito, § 75) que contrapõe ao ato individual de casar, ou de plan­tar, a instituição do casamento, ou a da agricultura, vinculadas direta­mente ao Estado (C. Schmitt, Les trois types de pensée juridique, cit., pág. 97).

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ocorre geralmente nas fases iniciais, como no caso de Roma, em cujos começos o Rex era a um tempo chefe polí­tico, religioso e militar. Em outros contextos o poder mili­tar chega a definir chefias, normas e decisões.

O conjunto das instituições (que incluem relações e valores) forma uma ordem. A sociedade é sempre uma or­dem, no sentido de se apresentar como um conjunto de elementos articulados segundo um plano genérico. A or­dem "resulta" da organização e da estabilidade, mas sem­pre é possível dizer o inverso: organização e estabilidades nascem da ordem, expressam-na. Provêm do fato de haver uma "ordenação" que enlaça (e conduz) as formas vigentes. Entretanto a ordem é, sob certo aspecto, um dado, uma referência formal: a ordem se dá na sociedade e a sociedade se dá como ordem1". Daí a ambigüidade do velho tema da "origem da sociedade", correlato da questão da "gênese da ordem", já que em ambos os casos se encontra uma petição de princípio na qual tropeçaram ou resvalaram os filósofos dos séculos XVIII e XIX, desde Rousseau a Proudhon. A ordem "deve" ter-se gerado a partir de certos fatos, mas tais fatos só podem ser definidos em função da idéia de ordem112. O mesmo, acrescente-se, acontece obviamente com a indagação sobre a origem do direito.

Os valores, entendidos como componentes do viver, ou da existência humana, compreendem-se também como componentes das instituições. Mencionamos, já, a presen­ça dos valores na estruturação da sociedade, bem como nas opções individuais: a ordem social organizada segundo di-

111 Mais desdobramentos em nosso Ordem e Hermenêutica, op. cit., passim. 112 Para algo sobre as origens da "normatividade", R. Orestano, I fatti di normazione, op. cit., princ. cap. I, número 5.

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retrizes peculiares, as condutas pessoais orientadas por es­timações. Mesmo encarados como abstrações, ou como idéias (eventualmente arquetípicas ou "paradigmáticas"), os valores se acham conectados a instituições — vale dizer., como ficou sugerido acima, à politicidade.

Acham-se ligados, na verdade, a determinados setores do viver. Assim, a beleza não se relaciona propriamente (senão por analogia) aos comportamentos intersubjetivos. Dizemos que uma amizade é bela/ em sentido analógico. Do mesmo modo a bondade e-a justiça não se encontram em uma pintura ou uma paisagem. O uso das analogias é perfeitamente lícito na linguagem comum, ou na literária, e daí mencionarmos a beleza (ou a elegância) de um gesto — beau geste —, bem como a "verdade" que se encerra em um poema. Mas o que possibilita tais analogias é o fato, percebido já por Platão, de que as idéias mais genéricas, ou mais "altas", se intercomunicam e tendem a identificar-se através de um plano homogêneo. A escolástica medieval falava, a propósito disto, nos "universais", cuja realidade foi longadamente discutida.

Com referência, ainda, às relações entre instituições e valores, valerá observar que a presença dos valores está como que "dentro" das instituições, mas seu sentido se revela especialmente quando se considera a dinâmica das funções. Os valores estão nas funções como uma dimensão qualitativa (e não técnica): assim a "santidade" na religião, assim a "disciplina" ou o "interesse" no aprendizado esco­lar. No direito — o direito como ordem institucional — os valores se fazem perceptíveis diante da sua dinâmica, e en­tão teremos a segurança e a certeza em certos aspectos processuais, teremos a justiça no conteúdo da norma ou da decisão.

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Na realidade, a justiça em seu sentido genérico pode ser entendida como um projeto: no direito, na política, na vida social. Um projeto que se molda conforme ideários dominantes (solidarista, socialista, individualista). Um projeto e uma utopia: estendendo a idéia podemos conce­ber os valores mesmos como Utopias. A ética é de certo modo uma utopia. E todas as Utopias se constróem em torno de valores: preferências e rejeições que valem e des­valem na elaboração de cidades ideais e de regimes perfei­tos. Seria talvez o direito uma oficialização de projetos (e de utopias) referentes a um eficaz controle de condutas.

No plano do viver efetivo dos homens, viver concreto e situado, é a partir de conexões reais que os valores se for­mulam. Fenômenos como o parentesco, o mando, a crença, as decisões, implicam em opções que revelam valores; ou então (o que é o inverso mas só formalmente) geram situa­ções e juízos que se estabilizam como valores: a importân­cia da família, a legitimidade do poder, o conforto da cren­ça, a adequação (vista como "Justiça") das decisões113. Em certos tempos um povo (ou um grupo ou uma cultura) consolida determinados modelos de família ou de governo: pode alterá-los conforme a experiência ou as necessidades. Certas formulações éticas se alteram, assim, conforme os contextos, e com elas os valores respectivos114.

113 Sobre a relação entre os valores e o "conhecimento axiológico", Johannes Hessen, Teoria de los Valores {Tratado de Filosofia, volume II), trad. I. Vazquez, ed. Sudamericana, Buenos Aires 1962, págs. 106 e segs. 114 Como se sabe, o pensamento de Platão teve conexão com as carac­terísticas da polis. Percebeu-o claramente Hegel (Leçons sur Platon, ed. bilingüe, trad. J. Vieillard-Baron, Aubíer-Montaigne, Paris 1976, pas­sim e princ. pág. 125).

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Dentro da movimentação dos contextos históricos, os conflitos e as confluências fazem a acumulação dos padrões de valores. Religiões impostas pela força, ou estendidas pela persuasão, difusão de gostos e técnicas: os contactos em geral atingem aqueles padrões (convenhamos em que aqui se resgata um pouco a velha idéia da imitação). A consciência histórica, tão peculiar no orbe ocidental, vem tentando deslindar e interpretar esse mosaico, essa super­posição/fragmentação de valores, para formar uma ima­gem, que pode ser em alguns casos um relativismo ou um ecletismo, em outros um linearismo cêntrico, de todos os modos uma montagem hermenêutica115. E de todos os mo­dos, também, as metamorfoses do poder e da ética {kratos e ethos] estarão sempre presentes nessa montagem.

3. Direito e valores

Entendemos o direito como ordem e como estrutura dinâmica situada no plano institucional das sociedades. O direito se encontra no chamado espaço público, na "esfera da publicidade"1'6. Ordem sempre refeita e sempre rein­terpretada, ele se articula e se relaciona de diferentes ma­neiras — já o vimos — com os demais setores institucio­nais. Destarte os valores vigentes em tais setores (valores políticos, éticos, econômicos) "aparecem" como valores ju­rídicos ao serem assumidos por uma ordenação específica. É um problema de tênue delimitação conceituai entender como sendo "ainda" éticos ou econômicos os valores que a

115 Cf. nosso "Filosofias, crises, hermenêutica", ora em Filosofia, po­vos, ruínas, Rio de Janeiro, 2002. 116 N. Saldanha, O jardim e a praça, op. cit., princ. caps. 7, 9 e 11.

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ordem jurídica assume e regula, ou sendo, "agora", valores jurídicos. Assim os valores que correspondem à problemá­tica da bioética, que são atinentes à vida e à ética, antes ou depois de ingressarem na ordem jurídica propriamente dita117.

Por influência das teorias tridimensionais, mormente a que se desenvolveu no Brasil por mão de Miguel Reale, costuma-se mencionar, ao tratar dos valores, o tema de sua relação com os "fatos". O tridimensionalismo, ao ser cons­truído mais ou menos na década 40 do século vinte, neces­sitava evitar o façtualismo "sociologista", bem como o nor-mativismo redücente e formal: para isto tomou a noção de valor como complemento para uma visão tríplice e integra­da. Mas foi preciso definir externamente a idéia de "fato" e com ela a de "valor", deixando de lado as imprecisões que ocorrem com o uso habitual destes termos. Fatos podem ser as condutas (como pensou, refazendo o esquema, o pro­fessor colombiano Mantilla Pineda), bem como as situa­ções (objetivas) e os quadros sócio-políticos vigentes. Valo­res se encontram nos princípios, e também — em outro sentido — nas próprias condutas118.

Retomemos porém o tema da relação entre valores e politicidade. Temos atribuído aos valores uma raiz política,

117 V. Bioética y bioderecho (Fac. de Direito da Universidade de Rosá­rio), n° 5, 2000; Heloísa Helena Barboza e Vicente Barreto (orgs.), Temas de Biodireito e Bioética, op. cit. Cf. ainda Stefano Rodotà, Tec-nologie e diritti, ed. II Mulino, Bolonha 1995, princ. Apêndices II e III. 118 Novamente Martin Laclau, Conducia, norma y valor, op. cit., pas­sim.

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recorrendo a um alargamento da noção de política; aludin­do à sua acepção clássica, correspondente à polis com seu específico sentido de publicidade. Com a convivência, a que corresponde a filia, os homens vão elaborando um vi­ver feito de conexões sociais que se desenvolvem como relações; feito de convicções, socialmente condicionadas, e de estruturas historicamente reais.

Mesmo que se atribua aos valores um caráter ideal (como entidades metafísicas), temos de reconhecer que são componentes do viver humano, e que não se compreen­dem fora de contextos culturais. Beleza e verdade são cate­gorias ideais, mas somente na concreteza existencial se fa­zem perceptíveis.

Desde o neokantismo se sabe que a noção de cultura envolve, para usar uma expressão de Rickert, "referência a valores". Será banal deduzir que toda configuração cultural implica em valores, e que todo valor se entende em função da cultura. E tão improfícuo perguntar qual resulta de qual, quanto insistir na velha e inócua questão — do tempo de Marx — sobre se o homem faz a história ou a histó ria faz o homem.

Os valores entram na existência humana como "valora­ções" — vimo-lo antes —, e no caso do direito é evidente que em cada sistema jurídico (e em cada ordenamento) ocorrem opções que o comprovam: voto universal, divór­cio, pena de morte, tudo são institutos cuja discussão en­volve valores119.

119 Obviamente a conexão entre os valores e a praxis corresponde à correlação entre viver e valorar. O reexame de tudo isto envolveria uma referência a Viço, Marx e Nietzsche: Viço, em inícios do setecentos, enxergando a vinculação entre a verdade e a ação, entre o conhecer e o fazer (cf. Giorgio Tagliacozzo, org., Viçoy Marx, op. cit.).

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4. Valor, "fundamento" e poder

Por vezes a alusão a valores se completa com o qualifi­cativo "fundantes". Entendemos que a expressão resulta

( redundante, porquanto a presença de um valor consiste realmente em fundar. Valores morais fundam atos e juí­zos., dão-lhes base e conteúdo. Valores estéticos dão fun-damento ao gosto e às "estimações", inclusive as que se referem a obras de arte. É como se as idéias (no sentido platônico) que se referem ao belo ou ao justo, ou ao verda­deiro, emergissem de um fundo arquetípico, e se revelas­sem na consciência das pessoas para aparecer como refe­rência nos julgamentos.

Sob certo prisma os valores são fins, que expressam uma cosmovisão, um entendimento do sentido da vida e de seus ingredientes. Os fins, entretanto, são algo diferente; mas um valor pode ser um fim (a beleza como "objetivo" de um esforço), se tomado como ideal visado por normas ou por atos.

É comum as referências a valores colocarem uma vincu­lação entre os valores e o "dever ser". Falamos no tema algo acima. Isto proveio, em parte, da alusão dos neokantianos ao dualismo nômeno-fenômeno (na essencialidade do nô-meno o fundamento do Sollen). Mas entre valor e dever ser não há identidade. O valor indica uma preferência: a beleza é preferível à fealdade, como o bem é preferível ao mal, sempre na esteira da unidade das idéias maiores, como em Platão, e sempre em um dualismo que beira o maniqueís-mo. Mas o dever-ser, como formulação específica, tem uma estrutura lógica que não se identifica com o cunho "material" dos valores.

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Assim como a cultura implica em valores, também, e obviamente, toda cosmovisão (em alemão se diz elegante­mente Weltanschauung) envolve valores. De resto toda cultura envolve uma cosmovisão, e também uma visão do homem, com reflexos na arte, nos mitos, nas pautas de conduta. A ênfase que se põe sobre certos valores como "fundantes" corresponde ao fato de que a eles se concede um maior peso, uma posição mais essencial ou mais "pro­funda", dentro de determinadas relações120. Assim se pen­sa da justiça, ou mesmo da ordem. São fundantes, com uma qualificação que torna mais "ponderável" (de peso) e mais inteligível sua presença em um processo ou uma situação. Dependerá portanto das pautas culturais, ou da perspecti­va adotada, considerar tal ou qual valor como fundante, em relação a um sistema político, um regime econômico ou uma ordem jurídica.

Parece, porém, que a alusão a um fundamento tem sido mais usual e mais generalizada dentro da teorização concer­nente ao político e ao jurídico, do que a outros setores121. É possível que a passagem de estruturas sociais religiosamen­te condicionadas para outras mais puramente "políticas" tenha levado à tendência a buscar fundamentos: permanên­cia das "fundamentalidades" sagradas e emergência do po-

120 Heidegger, a propósito de "fundar", aludiu às implicações do prin­cípio da razão suficiente, formulado por Leibniz, mencionando a trans­cendência e a liberdade como componentes essenciais do fundamento (cf. DeWessenza dei fondamento, trad. P. Chiodi, ed. Fratelli Bocca, Milão 1952).

121 Também Jacques Derrida debruçou-se sobre o problema do fun­damento, estudando a justiça, a violência e o "fundamento místico" da autoridade. Cf. "Force de loi: le fondement mystique de 1'autorité", em Cardozo Law Review, vol. XI, nn. 5-6, agosto 1990).

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lítico como tal. Sabe-se que em Roma o Rex, que começou como um chefe principalmente religioso, foi substituído por uma res publica com os cônsules e com o Senado. No Ocidente moderno a queda das monarquias "absolutas", com as revoluções ditas liberais ou burguesas, coincidiu com o advento das democracias e de um amplo e intermi­nável debate sobre formas de governo, sobre o poder e os poderes do Estado. A necessidade de questionar a respeito de um fundamento para a política e para-o direito parece, portanto, ter relação com a secularização cultural, que ocorreu (como já vimos), em várias sociedades históricas, designadamente a greco-romana e a ocidental122.

Podemos, todavia, insistir sobre a questão. Por quê o tema do fundamento? Note-se que ele não é proposto com alusão à economia; com efeito, o pensamento concernente à economia (e com ele a ciência econômica) vem a ocorrer em época secularizada: a economia é talvez a menos teoló­gica das ciências sociais. O tema do fundamento surge no pensamento político, e no jurídico, por conta da necessida­de de atribuir-se uma justificação ao poder: o plano institu­cional da sociedade, no qual existe o poder, comporta (e precisa de) uma justificação. O poder — salvo no caso do poder primigênio e no do realmente "absoluto" — busca legitimar-se. Busca-se coonestar o mando (e com ele a obe­diência), e sua justificação tem de achar-se na própria ins-titucionalidade, ou seja, no caráter "oficial" do poder.

No mundo moderno o advento da axiologia, já dentro da fase secularizada, atirou para o plano dos valores todos

122 Parece que somente com os estóicos, dentro da filosofia antiga, afirmou-se uma physis entendida como logos, um logos imanente ao mundo e valendo como fundamento do nomos (cf. F.E. Peters, Termos filosóficos gregos, op. cit., pág. 159).

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os problemas de legitimação, inclusive os político-jurídi-cos. Tanto a tradição, como a referência ao sagrado, ou o consenso popular (estamos mais ou menos dentro da tipo­logia da dominação de Weber) se entendem como esteio, como base ou justificativa para o fato — indubitavelmente um fato — de uns mandarem e outros obedecerem.

O fundar pode ser motivação ou apoio, mas também "instauração". As monarquias se fundam (fundavam-se) em dinastias, em continuidades, em origens. Na verdade, compreender um fato em função de um fundamento impli­ca em uma visão dual, e portanto virtualmente metafísica, da realidade: uma visão que envolve diferentes planos (se­não mesmo níveis) das coisas. Tal visão contempla urna relação entre o plano do que funda e o do que é fundado, algo como o "sobre" e o "sob". O fato em causa depende de algo que o condiciona e que é seu fundamento. Assim, na visão social marxista, o plano "infraestrutural" fundando o "supraestrutural"; na visão teológica (todo poder vem de Deus, omnis potestas a Deo) a autoridade vem da outorga divina. Assim uma ação se funda em um motivo ou um interesse, que sob o prisma ético será bom ou mau123.

Alude-se também a um fundamento quando se enten­de, ao menos implicitamente., que determinado objeto (ato, estrutura, processo) poderia não existir, ou ao menos ter outra forma: ter outra entitas ou outra qualitas. No caso de uma instituição, funda-se sobre algo o fato de ela ser o que é e não outra. Raramente se indaga do fundamento da história (a não ser na visão teológica, isto é, providencialis-ta), no sentido de que ela poderia não existir. Mas pensar

123 Para algumas referências genéricas, Josef Pieper, Justice, trad. P. Lynch, Londres 1957.

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no fundamento do direito é pensar procedentemente em porque ele existe — ele e suas implicações institucionais.

Em uma geração que incluiu pensadores jurídicos de grande vulto, Max Weber elaborou uma tipologia das for­mas de autoridade, e, correlatamente, de legitimidade. Como se sabe, Weber aludiu à dominação (ou autoridade) tradicional, à racional e à carismática; paralelamente, for­mas correlatas de legitimidade. Na legitimação tradicional, a "inveterada prática" da relação mando-obediência seria a justificação da mesma. Na carismática, a validade se funda­ria sobre a ascendência do líder em face do grupo. Mas na racional, a legitimação nasceria da forma revelada dentro da própria ordem vigente. Anote-se que em tudo isto se acha o suposto de que a legitimidade é que fundamenta o poder. E também, por outro lado, que na dominação cha­mada racional substituem-se as referências transcedentes pela qualificação formal (e sistemática) da ordem.

Realmente, com o processo de desenvolvimento do le-galismo124, alei se consolidou como "expressão" da vontade geral e do direito positivo. E nos inícios do século vinte o formalismo divulgou a imagem do ordenamento como es­trutura lógica, cuja inteligibilidade dispensa a referência a componentes não-formais ou a fundamentos transcen­dentes125.

124 Cf. Nelson Saldanha, Legalismo e Ciência do Direito, cit. 125 Para Cari Schmitt, teria ocorrido uma "transformação do direito em legalidade" com o reconhecimento de que "o direito é posto por quem de fato se impõe": Legalidad y legimidad, ed. Aguilar, Madrid 1971, pág. 168. Para Schmitt o positivismo jurídico "não quer dizer outra coisa senão a transformação do direito em uma imposição de imposições".

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5. Em torno da idéia de legitimidade

Detenhamo-nos, porém, diante da idéia de legitimida­de. Ela tem evidente conexão com a noção de valores; poderia dizer-se, de certo modo, que ela constitui um valor político. A legitimidade é um atributo do poder: ao poder reconhece-se o caráter de legítimo se ele atende a certas exigências éticas, mas não puramente éticas. A tra­dição, que nas monarquias conferia legitimidade ao titular da coroa (a legitimidade como oposto da "usurpação"), tem um aspecto ético, mas em um sentido peculiar: a tradição deve estar inserida nas crenças da comunidade e no ethos social vigente. Não em uma "moral" formalmente entendida.

Em geral, o poder necessita de justificação quando suas bases entram em crise. O poder realmente "absoluto" não carece de justificação.

Na verdade o processo de secularização coincide, geral­mente, com uma certa crise do poder: crise de transforma­ção (das bases) ou de enfraquecimento. No poder absoluto — em fases pré-secularizadas — podem encontrar-se for­mas de justificação, que expressam sua legitimidade essen­cial. Mas no mundo moderno, posterior às revoluções bur­guesas, já não há, como no mundo pré-secularizado, uma identidade substancial e incindível entre as estruturas polí-tico-jurídicas e a dimensão teológica da cultura.

Nos ordenamentos político-jurídicos contemporâneos, a tendência do liberalismo foi no sentido de tornar dispen­sável (já o vimos) a legitimação pelas referências teológicas, e de "despolitizar" (este é o termo usado por Cari Schmitt) as estruturas. Só com o romantismo, com a nostalgia do passado e da religiosidade, houve um parcial retorno a uma

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noção menos restringentemente formal da legitimidade. A secularização, no Ocidente moderno — em modo seme­lhante ao ocorrido na Grécia dos séculos V e IV antes de Cristo —, envolveu em vários sentidos uma crítica da teo­logia: revisão de crenças, valorização do racional, cientifi-cismo. Isto vai de Rousseau a Comte.

A teoria democrática, e também sua prática (ambas sempre significando mais do que uma mera questão de "forma de governo" em seu sentido restrito) carreou,-com sua propagação, alguns equívocos entre os quais o pensar-se a legitimação como um processo empiricamente ligado à escolha popular: um processo orientado "de baixo para cima"126.

Quando Max Weber pensou em uma legitimação dis­tinta da carismática e também da tradicional (na verdade, posterior a esta), mencionou a racionalidade, um traço cul­tural que geralmente se atribui ao mundo moderno. Não aludiu à democracia, problema de que tratou fora do tema específico da legitimidade. A legitimidade, de fato, se refe­re às relações entre o mandar e o obedecer, mas não no concernente aos "mecanismos" de exercício do poder e sim no tocante à necessidade de um fundamento: Moderna­mente se alude à sociedade como fundamento., ou ao "con­senso" que dela deriva. Neste ponto Hegel, com seus con­ceitos ainda algo metafísicos de "sociedade civil" e de "Es-

126 A questão pediria uma reflexão sobre as diferenças entre demos e populus, e entre ambos e o "povo" contemporâneo: somos, desde o século dezenove, sociedades onde se diluem as hierarquias, com suas correlativas diferenciações axiológicas. Algo em Claude Nicolet, "Du populus romanus au peuple souverain", em Histoire (Hachette, Paris), n° 8, junho 1981. — V. também nosso Secularização e democracia, op. cit., passim e princ. cap. V.

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tado", talvez estivesse mais próximo de Rousseau, do que | ( Marx de Hegel127. t

Ainda: diante do componente político (ou ético-políti-co) que aparece no problema da legitimidade, pode-se per­guntar sobre como vincular ao direito aquele componente. Não se trata propriamente de "estender" ao direito o com- ( ponente ético-político como se estende um compromisso ou um benefício. Na verdade o direito não se entende sem seus vínculos com a política (vimo-lo acima), e com a ética, isto é: com a politicidade no sentido amplo do termo. Den­tro desta, como dissemos, nascem os valores; dentro dela lateja a legitimidade. A legitimidade, enquanto atributo do poder, possui necessária conexão com valores. Legitimar é valorar, é validar e convalidar. Validade, aqui, não obvia­mente no sentido que assumiu na "teoria pura", mas no que possuía antes desta, e que repousa sobre a própria raiz da palavra128. /

O problema da legitimidade, no que tange ao direito dito "positivo", pode ser posto, ainda •— mas sempre por meio da noção de valor —, em relação com os princípios. Os princípios, enquanto archè, enquanto ponto de partida,

( ] 27 Sobre Rousseau e Hegel, Harold Laski, Liberty in the modern state ( (9a ed., Pelican Books, 1937). Ver também Bernard Bourgeois, Philo-sophie et droits de 1 'homme, de Kant à Marx (PUF, Questions, 1990), e Joaquim Salgado, A idéia de Justiça em Hegel (ed. Loyola, São Paulo 1996), princ. caps. XI e XII. 128 Válido e validade são enviados a valable no Lalande (Vocabulaire technique et critique de la philosophie, 6a edição, PUF 1951). No Dizio-nario di Filosofia de N. Abbagnano (TEA, UTET, Turim 1971), o ter­mo é tratado em sentido meramente lógico. — Os logicistas, ao reduzir a noção de validade a um dado puramente formal, chegam a curiosas ( tautologias, como no caso de Amedeo Conte ao dizer que a validade de uma norma "é apenas a sua validade" (cf. nosso Da teologia à metodolo­gia, op. cit., pág. 113, nota). |

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permitem situar a dimensão axiológica (e também herme­nêutica) das normas, e entender as decisões como expres­sões "devidamente fundadas" do direito positivo129.

129 Durante o oitocentos, a idéia de legitimidade, originalmente ligada à experiência monárquica, converteu-se em um problema de "aceitação popular" do poder: um testemunho contemporâneo encontramo-lo no verbete "Legitimité", de A. Petetin, no Dictionnaire Politique. Encyclo­pedic du langage et la science politiques, de Garnier-Pagès (5a ed., Pag-nerre, Paris 1857).

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Capítulo II

Em torno dos valores jurídicos

Sumário: 1. Sobre a exisitência de valores jurídicos. 2. Variabilidade histórica dos valores jurídicos. 3. Alusão à verdade. 4. Novamente sobre politicidade e valores. 5. Mais sobre a justiça. 6. Valores e "prin­cípios". Notas.

1. Sobre a existência de valores jurídicos

Ao tema dos valores jurídicos se estendem, obviamente (ou podem estender-se), as reflexões filosóficas referentes aos valores em cieral. Análoga extensão ocorre no caso de cada um dos setores institucionais: política, religião, edu­cação.

. Como foi visto, os valores não ocorrem na vida humana como meras configurações conceituais. Nascem da expe­riência institucional e nela se realizam. Definem-se como entidades metafísicas, mas não se encontram senão dentro das realidades humanas. O que importa, ao pensar-se nos valores e nos setores institucionais, é discernir o que é co-

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mum e o que é peculiar: há valores que são do direito, e também da política (a justiça por exemplo): há valores que são próprios da pedagogia ou da religião. Dentro de um ordenamento jurídico podem achar-se valores (ou "indica­tivos") econômicos, ou religiosos; além. evidentemente, dos valores éticos130.

A existência de valores jurídicos, isto é, peculiares ao conteúdo da chamada experiência jurídica, é algo que se afirmará a partir do modo de entender essa experiência. O direito, como realidade institucional, se acha, como ficou visto, ligado à ética e à política. Entendido como "ordena­mento", o direito abriga (ou assume) e realiza valores eco­nômicos, religiosos, culturais: vimo-lo também. E vimos que há valores que são a um tempo jurídicos e políticos, ou jurídicos e éticos. O que ocorre, no caso destes valores — como a justiça ou a segurança —, é que sob certo aspecto, ou em determinado "momento", eles têm sentido jurídico: em outro, sentido político. Assim a justiça, reivindicada em um movimento político, ou postulada por tal ou qual dou­trina como fundamento do poder, aparece nas normas jurí­dicas (ou nas decisões judiciais) em um ponto mais "práti­co", ou mais próximo do cotidiano dos sujeitos.

A ordem jurídica "oficializa" os valores que as ideolo­gias ou as opiniões apregoam. Geralmente se mencionam como valores jurídicos a justiça e a segurança, bem como, às vezes, a liberdade. Ou ainda a ordem; segundo certos autores, a paz. O cunho político do valor liberdade é algo evidente, tanto em seu sentido amplo e filosófico, como na acepção restrita, como se dá com as "liberdades" especifi-

130 Cf. supra, parte II, capítulo III. — Sobre valores jurídicos, Carlos Cossio, La Teoria egológica dei derecho y ei concepto jurídico de liber-tad, cit., págs. 562 e segs. — Sob outro ângulo, Miguel Reale, Filosofia do Direito, cit., passim.

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cadas na lei, inclusive a de "ir e vir", presente no espírito moderno e bastante distinta da libertas clássica vista como atributo do homem livre, ou seja, do não-escravo131. A Jus­tiça, concebida por muitos como valor jurídico axial, ou como verdadeiro telos de todo ordenamento jurídico, é, como se sabe, um valor igualmente político; já Aristóteles o havia percebido. Na verdade todo o percurso histórico da cultura grega revela uma constante preocupação com o tema da justiça, paralela à reflexão sobre a política: de Ho­mero a Platão, de Aristóteles aos estóicos132

Adquiriu sentido a teorização de López de Onate se­gundo a qual a certeza seria o valor próprio do direito — ou seja, sua "específica eticidade". A certeza constituiria "algo não abstrato, geral e esquemático, e sim concreto, específi­co, correlativo às experiências singulares"133. De fato a cer­

n i Ver Max Pohlenz, La liberte grecque, trad. J. Goffinet, Payot, Pa­ris 1956. Para o caso romano, C. Wirzubski, Libertas as apolitical idea at Rome during the late Republic and early Frincipate, Cambridge Univ. Press, 1968. — Para a correlação entre o liberalismo e a "liberda­de de contratar" no século XIX, Franz Wieaker, História do Direito Privado Moderno, cit., págs. 551 e segs., 628 e segs. — Interessantes aspectos históricos em Quentin Skinner, Liberty before liberalism, Cambridge Univ. Press, 1998.

132 Aristóteles, Moral a Nicômano (trad. P. Azcárate, Espasa-Calpe, Buenos Aires 1952), livro V. Em geral o Estagirita oscila entre a análise da justiça como conceito moral e sua visão como problema da polis. — Cf. ainda P. Guérin, L'idee de justice dans la conception de I'univers chez les premiers philosophes grecs (Alcan, Paris 1934), bem como Eric Havelock, The greek concept of justice (trad. it. Dike. La nascita della coscienza, ed. Laterza, Bari, 1983). 133 Flávio Lopez de Onate, La certeza del derecho, trad. S. Sentis Melendo e Marino Redin, EJEA, Buenos Aires 1953, Prefácio, p. 16. — Entretanto Jerome Frank, em livro anterior, e sob diferente prisma, vinculado à prática judicial norteamericana, valorizou a incerteza: Dere­cho e incertidumbre, trad. Bidegain, Buenos Aires 1968. — Uma reva-

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teza corresponde ao sentido de previsibilidade e de coerên­cia que o direito apresenta. Isto tem a ver, conforme subli­nha Ofíate, com a luta contra o arbítrio (recorde-se o elogio da forma feito no século dezenove por Ihering).

A certeza, acrescente-se, não tem apenas relação com a clareza da norma, ou com o seu poder coercitivo. Na idéia de certeza se acha também uma relação de fundo com o próprio direito: à ordem jurídica cabe conferir certezas dentro de um quadro genérico (embora concreto), em cu­jos dispositivos se:£rLContramcaminhos e garantias. A cer­teza confirma inclusive a relevância da lei, embora se saiba que o relevante mesmo é o direito, do qual a lei é uma das expressões.

Sob certo prisma, pode-se relacionar a idéia de certeza com a de medida, que certos autores consideram central no direito. Dante, no século quatorze, definiu o direito como uma "proporção" [proportio), uma proporção "real e pes­soa" necessária à subsistência da própria sociedade. Geor­ges Dumézil, vasculhando os mais longínquos parentescos lingüísticos do ius latino, nas origens dos povos indoeuro-peus, detectou naquele termo um significado de me­dida134.

lorização da certeza em G. Lumia, Controlio Sociale, Giurisdizione e liberta (Giuffrè, Milão 1971), cap. X. — Sobre os modelos históricos de certeza, correlatos de contextos e de concepções do homem, Wil-helm Dilthey, Théorie des conceptions du monde, trad. L. Sauzin, PUF, Paris 1946, pág. 95.

134 Georges Dumézil, Idées Romaines, loc. cit. — Também, sobre a noção de medida na ética antiga, H. C. Lima Vaz, Escritos de Filosofia, II, op. cit., pág. 38. — Em Hegel a medida aparece ligada ao conceito do ser e à relação entre qualidade e quantidade: cf. J. Biard, D. Buvat e outros, Introduction à la lecture de la Science de la Logigue de Hegel. I, L'Etre, op. cit., secção III.

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Poderíamos então destacar, no direito (como forma e como experiência), a presença de dois componentes essen­ciais: justiça e medida. Em ambas a relação com a ética, e com a política. Pois também na medida o reflexo da ética, reguladora de atos e juízos. A justiça como um fundamento (do poder, das competências, dos atos), a medida como forma adequada: a adequação, que inclui o equo, a retidão e a eqüidade.

Mais duas anotações. A idéia de um direito desligado do poder, e portanto do Estado, envolve uma espécie de idealismo mais idealista do que o jusnaturalismo metafísi­co. Mas pensar, por outro lado, em um direito totalmente preso ao Estado, exclusivamente dependente dele, envolve um tipo de positivismo que bloqueia ou mutila todo o sen­tido da axiologia jurídica.

Outra coisa. Recentemente, mas nem sempre com consciência das implicações axiológicas do conceito, vem-se falando em "bens jurídicos", com alusão a cada um dos objetos para os quais convergem os diversos tópicos do or­denamento, nos diversos "ramos" do direito positivo. Ocorreria indagar se a condição de bens, atribuída a deter­minadas coisas ou situações, decorre do ordenamento, ou se se trata de uma qualidade que o direito reconhece naque­les "bens".

2.Variabilidade histórica dos valores jurídicos

A imagem de cada um dos valores jurídicos aparece como alguma coisa que muda historicamente. No tempo de Hamurabi, pareceu importante aplicar o talião no caso

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de certos delitos. Em Atenas, no tempo de Lísias, permitia-se que o marido matasse a mulher adúltera135.

Mas a imagem dos diversos valores, postos em correla­ção, pode ensejar problemas difíceis, e até aporias. Assim, fala-se às vezes da justiça e da segurança como valores con­trastantes (como às vezes se entende, no plano social e político, a liberdade e a igualdade como inconciliáveis). Por outro lado, certos clichês revolucionários, tocados de um tom romântico e radical, apresentam a justiça como incom­patível com a ordem: ordem e segurança associam-se, no caso, a uma idéia de "autoritarismo" (como se fosse possí­vel a vigência da justiça sem definições institucionais e sem um mínimo de organização)136.

A nosso ver a certeza e a segurança têm certa afinidade enquanto valores. E ambas se aproximam da ordem. A cer­teza assegura determinadas perspectivas; mas é dentro de determinada ordem que a segurança e a certeza adquirem sentido.

A justiça não pode permanecer — enquanto valor liga­do à eperiência dos homens vivendo em grupo — no plano ideal, nem no emocional: ela necessita definír-se e estrutu­rar-se em uma determinada ordem. E tanto o "sentimento" de Justiça como sua representação como "idéia" são afeta­dos pela contextualidade histórica. Quando Pascal aludia à plaisante justice ou'une rivière borne, seu racionalismo

135 Cf. Olsen Ghirardi, El razonamiento forense (Instituto de Filosofia do Direito, Cordoba, Biblioteca Jurídica, 1998), pág. 73. — O texto de Lísias, "Defesa da morte de Eratóstenes", se acha em Lísias, Discursos, I-XII, ed. bilingüe, trad. M. Fernández-Galiano, vol. I (Barcelona, ed. Alma Mater, 1953], págs. 5 e segs. 136 Para aspectos laterais, nosso Ordem e Hermenêutica (op. cit.), princ. caps. V e VI.

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(cartesiano e matematizante) desejava um modelo univer­sal para substituir a variabilidade. O século das formas clás­sicas não dispunha, ainda, das ciências sociais.

A antropologia e a sociologia vieram mostrar aue os va­lores, no momento da valoração, são contextuais, do mesmo modo que a linguagem e os mitos. São portanto as ordens jurídicas in concreto que, dentro de realidades nas quais se incluem condicionamentos diversos, definem a inserção de tais ou quais valores no interior de seus dispositivos. E ób­vio que um ordenamento liberai integrarávalores diferen­tes dos de um socialista., e que o direito dos países islâmi­cos incorporará valores de um tipo distinto dos que se en­contram no sistema "continental-europeu".

A variação histórica dos valores, que é correlata da transformação das concepções-de-mundo e das épocas ocorrentes dentro de cada sociedade, não acontece apenas, portanto, no nível das conceituações gerais. Manifesta-se, também, na própria estimação política das formas de go­verno, na preferência por tal ou qual forma de legislar, na discussão sobre normas e nas decisões judiciais.

3. Alusão à verdade

Façamos, entretanto, uma breve parada diante do pro­blema da verdade. A verdade como idéia, no sentido platô­nico (o bem, o vero, o belo) ou no sentido de Viço, menos metafísico: factum et verum convertuntur. A verdade como valor no sentido moderno do termo: diferença entre a ade-quatio rei et intellectus. de Santo Tomás, e a imagem hei-deggeriana de um "descobrir" a verdade.

A milenar junção entre as idéias de verdade e de justiça sempre conduziu os espíritos a uma correlação entre a "ver-

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dade processual" e o julgamento justo. A tendência a rela­tivizar a imagem da verdade, ao colocar sobre ela as neces­sidades práticas do processo judicial, não chega a compro­meter o sentido sociológico da "crença" em um acesso à verdade, e em tese todo sistema recursal, em cada tipo de organização, reflete a intenção de oferecer algumas chan­ces a mais aos que têm a incumbência de buscar em cada caso a solução mais justa. Em outros tempos, formas mági­cas de confirmação (ou infirmação) das alegações vigora­ram na prática judicial137.

É certo que a pressão das ideologias pode alcançar a busca da verdade processual — ou, mais amplamente, da jurídica —, mas cabe aceitar qüe os conceitos mais genéri­cos, inclusive aqueles sedimentados pelo tempo, ou os que alicerçam os ordenamentos, devem ter um sentido estável e uma validade que é uma pretensão à verdade. No plano epistemológico — melhor, no gnosiológico —, a verdade pode estar misturada aos "fatos", mas a própria precarieda­de do conceito de fato deve ser tomada como uma ressalva: a verdade, mesmo achando-se envolvida com os fatos (como a epistème que pode estar no meio das doxai), tem sempre um sentido especial. Outra questão estará na pre­sença da argumentação, cujo poder pode realçar a verdade ou escondê-la, tal como., hoje, as coisas virtuais do mundo informatizado podem mascarar o mundo real138.

137 Aludindo à justiça grega primitiva, Marcel Detienne se refere a uma "justiça do mar, de caráter ordálico, que pertence ao passado mais remoto das civilizações mediterrâneas" (Ler maítres de verité dans la Grèce archaique, op. cit, pág. 34). — Sobre as vissicitudes da adminis­tração da justiça na transição ocorrida durante o chamado "fim do mun­do antigo", A. Hajje, Hístoire de la justice seigneuriale en France. Les origines romaines, Paris, Boccard 1927.

138 Desde logo Hans Barth, Verdad e ideologia, trad. J. Bazant e E.

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4. Novamente sobre politicidade e valores

A propósito da conexão entre direito e política — evi­dente para o homem comum e problema conceituai para os teóricos —, podemos retomar a afirmação de que alguns dos valores presentes na ordem jurídica são, concomitante­mente, valores políticos.

A referência às relações entre política e direito (das quais a vinculação entre direito e Estado é apenas um as­pecto) não exclui, porém, que se possa considerar a noção do direito como tal, algo que não se reduz à forma legal nem tampouco às "condições sociais" do ordenamento. O jurídico, compreendido como forma e como conteúdo, su­põe evidentes correlatos que devem ser tidos em conta na compreensão da experiência jurídica.

Mas a conexão entre direito e política implica, ainda, na pulsação de ideologias que refletem valores e que alimen­tam argumentações e decisões. Os "ismos", que se multi­plicaram no Ocidente contemporâneo — o Ocidente secu-larizado —, são doutrinas com marca ideológica definida. Com elas se introduzem na vida do direito concepções e estratégias concernentes às próprias bases da ordem, ou a normas e princípios que continuamente se refazem139.

Imaz, FCE, México 1951. — Para aspectos específicos, Carlos Cossio, Teoria de la Verdad Jurídica, (Losada, Buenos Aires 1954), uma das obras mais importantes do pensador argentino. — Para a alusão ao mun­do informatizado, Alexandre F. Pimentel, O Direito Cibernético, ed. Renovar, 2000. 139 Sirvam de exemplo as questões atinentes à propriedade, com suas implicações. Ver a respeito Stefano Rodotà, El terrible derecho. Estú­dios sobre a propriedad privada (trad. L. Díez-Pivazo, Ed. Civitas, Ma­drid 1986).

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Cabe ainda repetir que as posições teóricas referentes ao direito dito positivo abrigam geralmente conotações po­líticas. Ou seja: os valores, presentes nas ideologias que penetram na ordem jurídica, são valores políticos — sobre­tudo se se tem em vista a politicidade de que tratamos anteriormente.

Questionamentos como os relativos à coercitividade da ordem jurídica, à relação entre normas e princípios, ou ain­da à existência de um direito natural, são, de certo modo e implicitamente, remissíveis a posições políticas: posições sobre o mundo e o homem, sobre o poder e a vida social. Os jusnaturalistas ora são revolucionários, como no caso de Antígona ao opor-se bravamente às normas ditadas pelo irmão investido do poder real; ora são conservadores, como nos autores aue viam no Code de 1804 a própria razão posta por escrito. Na dramaticidade dos jusnaturalismos revolu­cionários, sublinhada inclusive pelas estampas da Revolu­ção Francesa, parece concentrar-se a axiologia política no momento da busca de uma ordem nova140.

5. Mais sobre a justiça

Retomemos com mais um pouco de atenção o tema da justiça. Jung escreveu que as idéias mais gerais, em particu­lar as arquetípicas, costumam ser a um tempo repre-

140 Entre os autores que associam as revoluções ao jusnaturalismo, L. Recaséns Siches, Vida Humana, Sociedad y Derecho (cit.), pág. 322. Cf. nosso artigo "Sobre a evolução do problema do direito natural", em Velha e Nova Ciência do Direito (op. cit.), págs. 50 e segs. — Cf. Francesco D'Agostino, II diritto come problema teológico, cit., págs. 43 e segs.

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sentações e sentimentos. A frase pode ser aplicada aos va­lores fundamentais, e portanto à justiça: entende-se e con­ceitua-se a justiça em conexão com determinado critério, e "sente-se" a justiça dentro de específicas condições ou si­tuações. Poderíamos, a partir disto, evocar de novo a que­rela sobre subjetividade ou objetividade dos valores desen­volvida há mais ou menos um século por Meinong e Ehren-fels, ou a diferença entre valor e valoração, já mencionada.

É_v-álido e-um tanto_óbvio dizer- que em todo sistema jurídico existe um substrato de valores, entre os quais se inclui uma concepção referente à justiça. Qualquer siste­ma, ou melhor: qualquer ordem positiva, ao elaborar-se em determinado contexto histórico, envolve opções concretas que tocam o problema da justiça. Entram nisso decisões fundamentais — Schmitt estava certo quando aludia a de­cisões fundamentais sobre fundo e forma — que têm a ver com a estrutura de classes e com as influências culturais maiores: a elaboração de uma ordem jurídica supõe um sistema de relações políticas onde latejam diretrizes axioló­gicas.

Mas o sentir concernente à justiça, que jamais exclui sua representação ou sua imagem, refere-se geralmente à sua "aplicação", isto é, à sua realização nas concretezas da vida. Ou seja, aos atos (ou situações) que aparecem como justos. E no plano do real o justo está mais nas condutas das pessoas do que no dizer das normas. O que há de justo nas normas (e aqui concedemos algo à egologia) provém da intenção dos que as emitem; ou se acha, de certa forma, em potência, em relação ao que vão fazer aqueles que as cum­prem ou descumprem.

Ser justo, ou agir justo, implica em uma liberte de choix que no fundo é necessária para a qualificação ética dos atos.

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A norma, por seu turno, poderá ser tida como justa ou como injusta, em função de critérios que são os da justiça vivida, da justiça que se acha nas intenções e aparece nos atos.

De certo modo, a atribuição, a uma norma, de um cará­ter justo ou de um "conteúdo" justo, ocorre por analogia. Considera-se a norma como justa se atende (o que é óbvio) a critérios relativos à justiça: às vezes não se trata de um ideal moral abstrato, mas de concepções sobre o que con­vém, ou o que "interessa" à sociedade. Ser ou não ser justo, porém, envolve uma consciência na qual se cumpre uma escolha (ou uma opção) entre duas ou mais soluções: nessa consciência se acha a imputabilidade141.

Dir-s-e-á, contudo, que dificilmente uma decisão justa será tomada com base em uma norma injusta. A frase, na verdade, supõe a idéia de que na norma se acha a presença da justiça. Pode-se atribuir a uma norma o qualificativo de justa (ou injusta) na acepção formal, mas sempre no senti­do de que seus dispositivos permitam ao aplicador um pro­nunciamento justo, ou injusto. Não quer isto dizer que a norma como tal não necessite ser justa, ou de que não exis­tem normas justas nem injustas "em si": a norma configura a medida — a que nos referimos há pouco —- e enseja com sua aplicação a atualização do justo.

Como dissemos, aproximamo-nos, nestes tópicos, da visão egológica segundo a qual o direito se encontra na con­duta e não na norma. Mas aqui nos referimos à justiça

141 Ao lado (ou no interior) da racionalidade atribuída aos ideais jurí­dicos, perpassa às vezes a imagem de um "sentimento jurídico", ligado à consciência do justo e a itens semelhantes. Permanece clássico, a respeito, o livro de Max Rümelin, Rechtsgefühl und Rechtsbewusstsein, ed. Mohr-Siebeck, Tubingen 1925.

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(como valor e como valoração), não propriamente ao direi­to: a justiça que "aparece" nas condutas, dentro da expe­riência jurídica. No caso a norma e a hermenêutica — ou os "esquemas de interpretação" — servem para dar uma refe­rência objetiva à justiça dos atos142.

Através da história, a construção de uma idéia de justi­ça se baseou certamente sobre padrões e parâmetros cor­respondentes a imagens reais, imagens sacadas do real: as­sim, e sobretudo nas culturas antigas (e na "Idade Média"), a imagem do rei justo, a do homem santo, a do sábio com sua retidão143.

Valerá anotar que, diante de outros valores jurídicos, a justiça apresenta uma peculiaridade por assim dizer tópica. Quando se menciona a segurança, ou a liberdade, mencio­na-se algo que a ordem jurídica pode proporcionar ou pro­mover. Em geral não se imagina uma liberdade (ou uma segurança) que se encontra nas normas, ou mesmo no di­reito: elas podem depender do direito e estar previstas nas normas, mas se entendem e se realizam fora dele. Quando, porém, se alude à justiça como valor jurídico, pensa-se em algo que se encontra no Direito. Mesmo com as ressalvas

142 Da justiça "em geral e no processo", trata o cap. Ill do livro de Peter Stein e John Shamed, Legal values in western society (trad. it. / valori giuridici nella civiltá occidentale, ed. Giuffrè, Milão 1981). — Para alguns aspectos em torno do privatismo e do publicismo na histó­ria do processo, L. Cabral de Moncada, "O processo civil perante a filosofia do direito", em Estudos filosóficos e históricos, ed. Univ. de Coimbra 1959, vol. II. 143 Destarte Goethe, no ato I da segunda parte do Fausto menciona (pela boca do Chanceler) a justiça como suprema virtude do Impera­dor, e descreve o tropel dos querelantes que acorrem à sala de justiça, em meio a um tumulto que ameaça "aniquilar tudo o que é justo e razoável".

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que colocamos acima, no sentido de que é menos na norma do que nos atos que se acha a justiça — a justiça como valoração sobretudo — é certo que como valor jurídico a justiça "deve" ser reconhecida na ordem jurídica. Do mes­mo modo que, como Platão dizia, existem a cidade iusta e a injusta (a cidade como ordem social), embora caiba aos homens ser justos ou injustos144. A presença da justiça no direito se entende, qual dissemos, como extensão da ima­gem do justo, cuja realidade radica na consciência humana: desde os estóicos até pelo menos Kant, pensou-se em uma correlação entre ser justo (e livre) e ser racional, tudo o mais resultando dessa correlação.

Do ponto de vista antropológico, caberia observar que com o passar dos tempos a evolução cultural, dentro de cada uma das sociedades históricas, colocou a referência à justiça em determinados órgãos (ou funções) incluídos na estrutura governamental. Isto equivale, mais ou menos, a um certo item da teoria do processo em que se diz que o Estado teria avocado a si (superando o estágio pré-político da justiça privada) a chamada "função jurisdicional"145.

144 G. dei Vecchio, La justicia (ed. Centro Editorial de Góngora, Madrid 1925), passim, bem como o reexame histórico de R. Stammler, "Die Gerechtigkeit in der Geschíchte" de 1915, em Rechtsphilosophis-che Abhandlungen und Vortraege, ed. Heise, Charlottenburg 1925, vol. II. — Para algo mais recente, Paul Ricoeur, Le Juste, Ed. Esprit, Paris 1995.

145 Dentro da "grande teoria", R. Carré de Malberg, Contribution à la Theórie generate de 1'Etat, ed. CNRS (Paris, Sirey 1922), passim. —• Em livro clássico, J. Declareuil mencionou o processo judicial como "bienfait de la cite" dentro da evolução da estrutura urbana: Rome et Vorganisation du droit (col. L'evolution de 1'humanité, Renaissance du livre, Paris 1924), livro I, cap.II. — Algo no livro de J. Rogério Tucci, Jurisdição e Poder (Saraiva, São Paulo 1987). — Algo também em P. Faraco de Azevedo, Justiça Distributiva e aplicação do direito, pág. 65.

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Corresponde a tal estágio, em termos histórios, a formação de uma incipiente burocracia, que crescerá depois e se tor­nará marcante.

Sempre é possível pensar que o direito como tal — isto é. como ordem institucional específica — terá surgido quando os atos pessoais, nos quais se expressava concreta­mente a justiça, foram substituídos por alguma forma de organização, com "titularidade" (ou com competência) para conduzir a previsibilidade das sanções e para dar um cará­ter (mesmo que apenas aparente em alguns casos) de "obje­tividade à medição do justo. E possível que a "origem do direito" (um problema que sempre raia pelo conjectural) tenha tido também, correlativamente, relação com o au­mento do número de regras aplicáveis, aumento do qual decorreria a necessidade de seleção, registro e comparti­mentação das mesmas146. Com estas coisas terá surgido a duplicação de acepções da palavra justiça, que, além de aludir a um valor, passou a designar também o sistema de funções e de órgãos encarregado de aplicar regras, resolver conflitos, julgar e decidir147.

* * *

Ainda uma questão. Sabemos que à "idéia" de justiça corresponde um "sentimento" respectivo, mais ou menos

146 Volto a mencionar a possível conexão das origens do direito com a contabilidade mais antiga e com os registros administrativos que datam de Creta e da Babilônia. Cf. nosso Ordem e Hermenêutica, cit., págs. 32, 181 e 276. 147 Sobre a "função jurisdicional", ou seja, a justiça "no Estado", vale consultar os estudos enfeixados no volume La justice, editado pelo Centro de Ciências Políticas do Instituto de Estudos Jurídicos de Nice (PUF, Paris 1961).

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como, no caso de outros valores, ocorrem uma repre­sentação teórica e uma vivência que é de certo modo emo­cional. Os homens pensam algo sobre os valores e paralela­mente os experimentam — tanto os valores como os "des-valores", o belo e o feio, o bem e o mal.

Recuando um pouco podemos colocar uma indagação sobre o fundamento das preferências valorativas. Isto é, sobre o como e o porquê das exigências éticas, e no caso as que aludem à justiça. Por que os homens devem ser justos? P o r q u e um rei (apelando para o arquétipo monárquico) tem de ser bom? E mais, o que é ser justo, como distinguir dentro da conduta de um ser humano o justo e o não-justo? A resposta poderia mencionar referências religiosas, costu­mes, padrões, mas permanece a pergunta pelo porquê: na formação de tais padrões terá atuado, já, a exigêcencia ética original (desnecessário advertir que não estamos falando em algo parecido com o tema da distinção entre ser e dever ser). A sociologia, em certos momentos, tem colocado na própria imagem da sociedade (assim em Durkheim) o fun­damento das normas iniciais: também se poderia aludir ao instinto de preservação dos grupos (isto nos levaria à teo­ria de William Sumner sobre os mores) como base de imposição das regras mais consentâneas com a segurança de todos.

Mas o problema aqui é outro. Os grupos, as civilizações, sempre chegam a distinções que têm um sentido de valor: o certo e o errado, o bem e o mal. Estas distinções indicam na mente humana, e nas crenças das sociedades, a necessi­dade de indicativos duais. Esses indicativos passam, geral­mente, a corresponder a tendências concretas e profundas: não se prefere o feio, nem o falso, nem o injusto. Em certos casos é a presença do poder que desperta em certos espíri-

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tos a exigência ética. Como se a própria ética nascesse do julgamento que se coloca diante do poder. Mas só em cer­tos casos148.

Anda sobre a justiça. Fala-se, às vezes, na necessidade de uma efetiva racionalização do direito, com o sentido, indicado sin más, de que as decisões judiciais sejam justas. Como se "ser justo" fosse algo preciso, como "pesar cem quilos ou "durar vinte dias". Também o racionalismo dos séculos XVII e XVIII entendeu que a razão em política depende de se fazerem convergir as vontades, ou partir da convergência delas: daí o contrato social, daí depois a teoria do contrato em direito Civil. Na verdade, a maioria das razões reais ignora esta convergência. Quanto ao justo, a idéia de tomá-lo como referência para a racionalidade das instituições é algo que esbarra nas dissimetrias da realidade empírica.

E também nas da realidade histórica: a razão dos senho­res, ao tempo dos grandes reis ou dos condes poderosos, era também uma razão. Não o era, se pomos como critério para "razão" o modelo democrático em sua versão igualita­rista, que se acha, implícito e "universalizado", por trás da noção do julgamento justo. Admitamos que seja correto adotá-lo, e adotar a noção milenar de "bem comum" como base para conceituar como justa uma decisão. Vez por ou­tra, contudo, aparece a opinião que não vê o justo na lei, nem no julgamento fundado na lei: e aí uma noção impreci-

148 Voltamos a remeter ao nosso breve ensaio "O Poder e a Ética" (cit.). Também ao nosso Ética e história, cit.

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sa, a de justiça, se acopla a um projeto perigoso, o da apli­cação do direito sem apelo à lei ou a contrapelo dela.

Vale recordar que o pensamento que relaciona a justiça com a racionalidade (um bom pensamento) descende do antigo racionalismo grego: para Sócrates, o pensar correto seria condição para o correto agir. Um pensamento, porém, exposto às ferroadas analíticas (o que é "pensar certo", o que é agir certo?) e também ao relativismo da crítica histó­rica (relação do pensar socrático com as pautas éticas gre­gas de seu tempo). Um pensamento, por outro lado, bas­tante fecundo, inclusive ao inspirar o programa utópico de Platão, segundo o qual somente na cidade corretamente ordenada pode encontrar-se o homem corretamente edu­cado. Paremos aqui por enquanto.

6. Valores e princípios

A presença de valores dentro do que se chama expe­riência jurídica corresponde, por suposto, às implicações éticas do direito. Por outro lado a referência aos valores, ou sua conceituação como um componente daquilo que se en­tende como direito, leva às questões colocadas pelo uso da expressão "direito positivo". Uma expressão ambígua, ori­ginada do termo jus positum]A9, distinto do jus naturale, que não é "posto".

149 Cf. Pietro Piovani, Linee di una filosofia dei díritto (3a edição, Pádua, Cedam, 1968), cap. X, pág. 139. Piovani atribui o termo jus positum a Abelardo e aos canonistas franceses e italianos dos séculos XII e XIII, aludindo a uma fonte mais distante (e questionável) que seria Calcídio, no século IV, que inclusive cita Platão.

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Durante certo tempo os compêndios aludiram ao direi­to natural e ao positivo, bem como ao público e ao privado, ao objetivo e ao subjetivo, como "divisões" do direito. Na verdade trata-se de dualismos inteiramente diversos uns dos outros: a menção a um direito público e a um privado se funda sobre um aspecto diferente daquele que baseia a distinção entre direito objetivo e direito subjetivo. Entra nisto o penchant dos juristas, sempre meio escolásticos, pe­las divisões e pelas simetrias conceituais.

A referência a um direito natural ocorreu durante vá­rias épocas sem maiores problemas epistemo-metodológi-cos. Em Roma o conceito de ius naturale veio acrescentar-se ao de jus civile ao de ius gentium dentro de uma progres­são doutrinária pacífica: no medievo a alusão de Santo To­más à lex naturalis, complementada com a aeterna e a hu­mana, conviveu com o trabalho profissional dos juristas e com suas positividades. Mas os positivismos modernos e contemporâneos trouxeram um teimoso e rançoso repúdio à metafísica: e com ele a rejeição da idéia de um direito não positivo, não empírico, e daí "natural" no sentido filosófi-co-metafísico do termo natureza. No século vinte o juspo-sitivismo inominado (e talvez "ingênuo") do tempo de Bergbohm foi substituído pelo juspositivismo dos normati-vistas, mais sofisticado em suas bases neopositivistas, feno-menológicas e formalizantes.

Os positivismos jurídicos do século vinte mantiveram a noção tradicional de "direito positivo", mas nem sempre discutiram devidamente a persistência dessa noção, que em realidade permanece mal definida. Dizer que o direito natural não existe, e que o direito consta só de normas emitidas pelo Estado, não define a "positividade" do direi­to (que poderia ser contraposta a algum tipo de "negativi­dade"). Tampouco as posições jusnaturalistas dão ao direi -

163

to positivo uma conceituação suficiente: ora mencionavam-no como "conjunto de normas jurídicas", ora destacam que se trata de normas produzidas pelo Estado. A esfera da positividade resta imprecisa: sempre cabe a pergunta sobre se além da lei e das decisões emitidas pelos órgãos estatais o direito dito positivo não incluiria coisas como princípios e standards, senão mesmo valores — já que cada um dos grandes "sistemas" de direito entroniza valores pecualiares. Mais: em todos os momentos do processo interpretativo surge a questão de haver componentes-axiologicos dentro do arcabouço de normas "positivas"130.

Talvez o empenho de definir (e delimitar) o chamado direito positivo ocorra principalmente nas teorias não-posi-tivistas. Crer em um direito natural significa reconhecer um direito vigente e aplicável (estatal ou costumeiro) que entretanto não esgota a noção de direito. Crer em valores, e na presença de valores "dentro" do mundo jurídico, leva porém a algo distinto: não apenas, ou não exatamente, se rechaça a idéia de o direito caber por inteiro na positivida­de da norma, mas busca-se na própria esfera do direito positivo algo mais do que a expressão normativa de origem estatal. É um sério problema, posto que o jusnaturalismo clássico, tranquilamente, sobrepunha o direito natural ao positivo; mas a crença em valores, que emergiu no século vinte, tenta encontrar componentes axiológicos dentro do direito positivo, mesmo sem "sobrepor" a este uma outra espécie de direito.

] 50 Vale aludir ao livro sempre notável e atual de Josef Esser, Princípio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado (cit.) Para uma interessante recensão deste livro, por M. Pedamon, cf. Archi­ves de Philosophie du droit (Sirey, Paris), n. 6, 1961, págs. 250 e segs.

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Compete dizer o mesmo, com respeito à reflexão sobre princípios (às vezes chamados "gerais").

A referência a princípios se entende, sempre, em rela­ção com o direito positivo (não se falou em princípios nos sistemas de direito "natural"). Um problema básico está em saber se os princípios integram o direito positivo, como um elemento por assim dizer não-formal, ou se apenas se vinculam a ele; se são "implicados" no (ou pelo) direito positivo. Às vezes a doutrina menciona os princípios como fundamento da norma, isto é, como aigo que o legislador adota •— quando nada impliciter — como ponto de partida; outras vezes, como um significado que é "retirado" da nor­ma através da exegese. Sempre, contudo, ocorre um traba­lho hermenêutico. Uma hermenêutica abrangente poderia reunir os dois sentidos, inteligíveis como momentos de um processo que envolve a elaboração da norma e sua aplica­ção: mas a natureza dos princípios continuaria por definir. E portanto, também, sua relação com o chamado "direito positivo".

Não podemos, porém, deixar de registrar que a noção de princípio (tal como a de valor, ou como a de norma) não é privativa do direito. Ela se aplica, de algum modo, a todas as ordens institucionais. Um sistema econômico envolve princípios, que no caso são gerais; o mesmo ocorre com qualquer sistema político. Vimos que, dos valores ditos ju­rídicos, vários são também políticos, como a liberdade e a justiça. A dimensão institucional da sociedade implica por­tanto em princípios, que aparecem na organização política, na econômica, na pedagógica: tais princípios são obviamen­te expressão de valores e de crenças vigentes na ordem social, ou em seus extratos dominantes. Dir-se-á, com refe­rência ao direito, que a ordem econômica e a política ne­cessitam — dentro do modelo institucional generalizado no

165

Ocidente moderno — de uma modelagem normativa ofi­cial, que cabe ao ordenamento jurídico oferecer,

Voltaremos mais adiante ao tema dos princípios.

166

Parte IV

HISTÓRIA, DIREITO NATURAL, HERMENÊUTICA

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Capítulo I

História^ Razão e Linguagem

Sumário: 1. O Direito como fenômeno his­tórico. 2. O Direito como (e em relação com) a razão. 3. Racionalidade e histori­cidade. 4. História, razão e linguagem. 5. Outras referências e observações comple­mentares. Notas.

1. O Direito como fenômeno histórico

Com certa insistência temos aludido à inclusão do di­reito entre as instituições sociais. E temos mencionado a historicidade própria das instituições como um dado fun­damental, inclusive para o entendimento do direito. Das formas de organização das coisas humanas não apenas cabe dizer que "evoluem", mas — com outro sentido na expres­são — que se dão na história e possuem um significado essencialmente histórico: seu "evoluir" ocorre dentro de determinados contextos e corresponde a um especial sen­tido do mudar que se dá na história.

169

O professor Martin Laclau, buscando retraçar o itinerá­rio das relações entre moral e direito, repassou, como em uma perspectiva correlata, a evolução das formas culturais antigas, mencionando a relação entre o direito, a política e a religião entre os povos do Oriente, anteriores aos gre­gos151.

A historicidade do direito é, evidentemente, algo que ele partilha com os fenômenos econômicos e com os políti­cos. Importa pensar na vida dos institutos que integram o direito com um longo processo cheio de mutações e de recomeços: assim a experiência constitucional, que ocorre em ritmo variável, dependendo de fatores reais. Assim o direito de família, que muda conforme as pautas ético-so-ciais. A historicidade está nas alterações e também na du­ração de certos institutos; está no fato de eles se alterarem ou permanecerem em função das pressões políticas, dos valores ou das necessidades.

O próprio conceito de sistema, que nos séculos XIX e XX assumiu especial relevância, tem uma história: foi ela­borado durante a construção da dogmática jurídica, a partir da Escola Histórica e do crescimento do positivismo jurídi­co152. É um outro lado do conceito aquele que, dentro do trabalho dos comparatistas (sobretudo na segunda metade do oitocentos e início do novecentos), veio a designar gru­pos ou tipos de organização jurídica — René David falaria em "famílias" —, tipos históricos como o anglo-saxão, o continental-europeu etc153.

151 "La relación entre moral y derecho en su perspectiva histórica", em La historicidad del derecho, op. cit. 152 Sobre a Escola Histórica, Franz Wieacker, História do Direito Pri­vado Moderno (op. cit.), Parte Quinta, págs, 397 e segs. 153 R. David, Les grands systèmes de droit contemporains, 2a edição,

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A história nos revela, inclusive, as relações sempre ins­táveis entre as condições e as expressões. Relações e dife­renças entre o substancial e o funcional, entre aparências e realidades. De permeio, a variável relação entre a ordem jurídica como um todo e as formas de normatividade vigen­tes em cada época154.

2. O direito como (e em relação com a) razão

As referências ao direito, tanto as que se dirigem ao sentido interno de "pretensão" (ou de faculdade) quanto as que aludem ao sentido de prescritividade, isto é, ao seu caráter normativo (ou ainda à sua acepção de "medida" e proporção) designam comumente algo que o direito é, ou seja, aquilo que constitui sua quidditas permanente. Trata-se de aspectos distintos da historicidade (mas não contra­postos a ela, nem dela "separados").

Dalloz, Paris, 1966; Mario G. Losano, Os grandes sistemas jurídicos, op. cit. cap. I. — Em Paul Vinogradoff, Príncipes historiques du droit (trad. J. de Longrais, Paris, Payot 1924), um largo plano abordando largos temas introdutórios. 154 Em livro que teve repercussão em seu tempo, Siegfried Marck acentuou os aspectos negativos do formalismo kelseniano — então sen­do ainda elaborado — falando inclusive de uma "Teoria do Estado sem Estado": Substanz-und Funktionsbegriff in der Rechtsphilosophie, ed. J.C.B Mohr — Siebeck, Tubingen 1925, caps. I e II. — Sobre a noção de normatividade, Gaetano Carcaterra, 11 principio di normativitá. Ri-flessioni sul normativismo, ed. Bulzoni, Roma 1984. — Para a menção ao direito "na história", Ralf Dreier, Recht-Staat-Vernunft. Studien zur Rechtstheorie (Suhrkamp, Frankfurt 1991), cap. 9. — Um tanto confu­so e pretensamente inovador o artigo de N. Intzessiloglpu, "L'espace-temps du système jurídique", em Archives de Philosophie du droit, tomo 42, ed. Sirey, Paris 1998.

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São referências que correspondem ao ser e à estrutura daquilo que se chama direito: correspondem ao que se pode considerar sua racionalidade. O direito "como razão", como ratio geralmente scripta (o costume como menos ra­tio), equivalendo à milenar identificação entre razão e na­tureza, uma das identificações aderidas ao logos clássico155.

Quase sempre se considera que a existência de uma razão (ou racionalidade) no direito não se confunde com a validade da razão genérica ou abstrata, com a qual traba­lham as lógicas e as matemáticas. Temos, no primeiro caso, uma nacionalidade situada e vivente, e precária, embora inteligível como válida156. Nada impede, porém, de enca­rarmos o conceito de razão em acepção abrangente, na qual se acham dimensões metafísicas — senão que ontoteológi-cas —, bem como o significado racional dos mais diversos processos reais.

155 Em Cícero, com sua retórica de estóico "esclarecido", encontra­mos a ratio como domina omnium, e como regina, que docet et explanai quid faciendum fugiendumve sit (em L. de Mauri, Regulae juris, Hoe-pli, 11 a ed., Milão 1936, p. 191).

156 Martin Laclau preconiza o abandono da razão abstrata, inadequada para a compreensão dos comportamentos humanos, por uma razão "concreta", quanto ao entendimento da historicidade e da singularida­de (La razón en el derecho, Abeledo-Perrot, Buenos Aires 1985, pág-38). — Recaséns Siches, por sua vez, buscando uma razão mais adequa­da ao jurídico, chegou à noção de uma lógica (ou um logos) do "razoá­vel", diferente da "tradicional", e deste modo válida para a captação do humano, isto é, do sentido humano das normas e dos comportamentos: Nueva filosofia de la interpretación dei derecho, 2a ed., Porrua, México 1973 (cf. também sua autoexposição em Panorama dei pensamiento jurídico en elsiglo XX, ed. Porrua, México 1963, vol. I, pp 488 e segs). — Anote-se que os analíticos só posteriormente falariam, e com outro prisma, no "razoável".

172

A racionalidade do que se chama direito (basicamente no sentido "objetivo"), corresponde, de certo modo, à pró­pria possibilidade de ele ser "definido". Os juristas, à tort ou à droit, sempre prestigiaram as definições, e com elas a articulação conceituai (ocorreria lembrar novamente o pa­radoxo, creio que nietzchiano, segundo o qual "o que tem história não se define").

Mas não é apenas no esforço de definir o direito, e pensá-lo, que se encontra a racionalidade; sempre é neces­sário buscá-la no próprio direito como objeto. Aqui nos acercamos do paralelo hegeliano entre o racional e o real. Apenas nos acercamos, porque não nos encontramos ainda dentro da substancialidade do real, nem do racional: mas de qualquer sorte, pensar o real como racional faz parte (inclusive histórica e culturalmente) da racionalidade do pensar157.

E aqui duas breves digressões. A correlação entre direito e razão, fortalecida no mun­

do moderno pelo racionalismo que é um de seus itens, en­tra em crise quando entram em crise os correlatos daquele racionalismo: as premissas liberais, o contratualismo, o jus-naturalismo "clássico" e o modo cartesiano de pensar, que embasou e nutriu estas coisas todas. A crise do "mundo moderno" (já desde muito contemporâneo) tem vínculos, obviamente, com as crises das coisas modernas: ela envolve inclusive as dificuldades específicas do racionalismo jurídi-

157 Como se sabe, uma antecipação a Hegel estava na frase de Spinoza: ordo et connexio rerum idem est ac ordo et connexio idearum {Ética, Parte Segunda, Proposição VII).

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co. Vem ocorrendo (a nosso ver não há como negar] uma decadência que é do Ocidente, como diagnosticou Spen-gler desde inícios do século XX; e esta decadência, eviden­temente paralela às crises modernas, torna especialmente válidas as posições relativistas (inclusive o historicismo), que alimentam uma visão não propriamente irracional mas também não puramente racional do homem e das institui-çoes .

Como pontos basilares do pensamento jurídico moder­no citam-se, geralmente, "o íegalismo, o dedutivismo, a dogmática como ciência do direito (e) o formalismo"'^'. A crise destes pontos desencadeia uma série de interrogações sobre a validade da crença na razão, transformada em cren­ça na ciência; são estas interrogações que alimentam o cli­ma cultural que muitos vêm denominando, a nosso ver com expressão questionável, "pós-modernidade".

Segunda digressão. A secular ligação entre razão e justi­ça se relaciona com certas afirmações sobre a relação (com­plementação/contraposição] entre o poder e a ética, sobre a "correção" do poder pelo direito, ou sobre a racionalidade — possivelmente utópica — dos valores maiores160. Este tema alcança o direito como razão, como justiça, como es­trutura animada por valores. A esse propósito vale mencio-

158 Cf. nosso Filosofia, povos, ruínas (Calibán, Rio de Janeiro 2002), passim.

159 Cf. Carlos Ignacio Massini, La desintegración dei pensar jurídico en la Edad Moderna, Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1980, pág. 13. 160 Alguma coisa no texto de Chaim Perelmann, "Raison éternelle, raison historique", em seu Justice et raison (Presses Univ., Bruxelas 1963). — Para o sentido genérico-racional da justiça nos autores do século XVII, Leibniz inclusive, v. Wolfgang Roed, Geometrischer Geist und Naturrecht, Munique, Bayerische Akad. der Wissenschaften, 1970.

174

nar as observações de Friedrich Meinecke a respeito de kratos e de ethos, que "conjuntamente edificam o Estado e fazem a história". Tal dualidade seria o equivalente do clás­sico binômio natureza-espírito, que está presente na elabo­ração da Razão-de-Estado: kratos e ethos significando res­pectivamente o afã de poder e a responsabilidade ética, ambas as coisas necessárias como componentes do mundo histórico-político161.

3 . Racionalidade e historicidade

Uma das formas simbólico-conceituais com que se pode expressar a paridade (diferença/relação) entre a razão e a história, será a alusão às noções de sistema e processo. Sistema como ordem (racional) ou como totalidade (orde­nada); recordemos que o romantismo adotou a idéia no sentido da construção das doutrinas a partir de um princí­pio fundante, o que provinha de Kant (sem embargo de outra tendência romântica com caráter oposto, a tendência ao "fragmento"). Processo como conceito às vezes aproxi­mado ao de método, mas ao mesmo tempo com aspecto finalístico162.

161 F. Meinecke, La idea de la razón de Estado en la Edad Moderna (Trad. F. G. Vicén, IEP, Madrid 1959), Introdução, págs. 6 e segs. — Para Meinecke, toda a história do Ocidente Moderno se acha perpassa­da por um conflito entre a idéia do Direito Natural e as realidades histórico-políticas. — Sobre kratos, a propósito de Platão, cf. Hans Kelsen, A Ilusão da Justiça, op. cit., Livro I, parte II. 162 Para o referente a sistema, Stig Strõmholm, "Lo sviluppo storico dell'idea di sistema", ern Riv. Internazionale di Filosofia dei diritto, série IV, LII, 3, set. 1975. — Cf. Mário Losano, Sistema e struttura nel diritto, Giappichelli, Turim 1968 (nova edição em três volumes, Giuf-frè, Milão 2002).

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Também seria paralela a essa paridade aquela referente ao estático e ao dinâmico. Estes termos/porém, tornam-se pouco claros quando (oriundos da física) se aplicam ao di­reito. O direito tem formalmente um sentido de sistema, mas os sistemas jurídicos, na acepção concreta — e no di­reito comparado —, são entidades históricas e portanto ja­mais estáticas.

Cabe lembrar o titânico esforço de Hegel buscando um enlace entre a historicidade e a razão. Na idéia de que o real e o racional se identificam, o histórico se encontra no real, ou é o próprio real como mundo humano. Todo o histori­cismo contemporâneo vem tentando dar à historicidade um sentido de caracterização básica do humano, e em Or­tega a "razão vital" representa a conjunção da vida, que é histórica, com a racionalidade que se localiza como nível superior da inteligibilidade das coisas.

No fundo, a racionalidade das coisas (das coisas huma­nas, entre elas o direito) é uma categoria histórica163. As referências que se fazem, nas diversas épocas, à ordenação vigente, foram criando a imagem de um direito necessaria­mente racional, incluindo-se nessa criação a racionalização do saber jurídico que se processou dentro do ocidente mo­derno.

Mas acentuemos, embora óbvio, que a referência ao caráter histórico das "racionalidades" (que ocorrem em de­terminados contextos) não nega a existência de coisas que são por si mesmas "mais" e "menos" racionais. Coisas e também atos. A historicidade pode ser entendida como um sentido fundamental das coisas humanas, enquanto a racio­nalidade se situa — dentro dos limites da própria historici-

163 Cf. nosso artigo "History, reason and law", em ARSP —Archiv fuer Rechts — und Sozialphilosophie (Wiesbaden), 1975, LXI — 1.

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dade — como um atributo que pode apresentar diferenças de grau.

4. História, razão e linguagem

A consideração histórica das instituições e do direito — nos sistemas ou nos ordenamentos — nos revela sempre que, além de ser norma, ordem, medida, o direito se apre­senta como algo que se diz164. Diz-se qual a norma ou con­forme a norma. Diz-se qual a parte, ou a medida devida; diz-se a solução em cada caso. Regras e decisões são geral­mente dizeres, com os quais se prevêem ou se estabelecem situações; inclusive, no direito costumeiro, as sentenças a que se chega. O poder, "ordenado" nas formas jurídicas, se pronuncia: o poder se associa ao direito, e em certos pontos ele é o direito, fundamenta-o, revela-o165.

Foi visto (parte II, capítulo 2) que a presença de um logos jurídico específico é sempre mencionada com ênfase maior a propósito da cultura romana. Carlos Moya, que aqui tornamos a citar, menciona magistralmente o direito como "último limite epistemológico da razão romana e seu máximo cumprimento como sistemática racionalização po­lítica da existência social"166. Além de incluir dizeres, que

164 Por aqui passaríamos ao tema das relações entre linguagem e po­der: cf. nosso Ordem e Hermenêutica, cit., págs. 219 e segs.

165 Sobre o poder e o direito, as páginas dificilmente superáveis de Hermann Heller, em Teoria dei Estado, op. cit., págs. 256 e segs.

166 Carlos Moya, De la ciudad, op. cit., pág. 83. — No ensaio de Umberto Eco "A linha e o labirinto: as estruturas do pensamento lati­no" (in Georges Duby, org., A civilização latina, dos tempos antigos ao mundo moderno, ed. Publicações Dom Quixote, Lisboa 1989], encon­tramos a referência a um estudo de Giacomo Devoto sobre a evolução

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estão em leis, arrazoados e sentenças, o direito constitui uma visão específica da realidade, uma visão que (como os formalismos do século XX viriam a enfatizar, mas sob ou­tro prisma) "seleciona" imagens e atos. O direito diz a rea­lidade, constata peremptoriamente Moya167.

Com estas observações podemos destacar a importân­cia axial do conceito de jurisdição. Toda a montagem do direito, enquanto estrutura institucional, concerne à condi­ção de algo a ser dito. Jus dicere: dizer qual o direito (em cada caso), mas também dizer como cabe dizê-lo. Dizer como se organizam as formas que estruturam o acesso à justiça e quais as normas que regulam a relação entre nor­mas, julgamentos e comportamentos (aí entrando, para a compreensão teórica do tema, a alusão aos valores). Cada forma política tem, grosso modo, um modo de regular aque-

da sintaxe pré-latina e da latina, inclusive com alusão a expressões contidas na Lei das XII Tábuas. Acentua Eco que "A transformação da sintaxe latina em direção a uma lógica rigorosa da consecutio temporem efetua-se sob o impulso de exigências jurídicas e precede, de maneira antóctone, o desenvolvimento da lógica grega" (p. 31). — Na verdade, como Fustel e Spengler já haviam percebido, eram a grega e a romana uma só cultura. Aliás Spengler, para quem "a frase (própria de determi­nada língua) é o retrato da alma (de uma cultura)", indicou desde 1917 a correlação entre as alterações linguísticas ocorridas com a formação do "Ocidente", a partir dos merovíngios, e o advento de um "novo método de sentir a vida": Decadência, Parte I, cap. IV (ed. esp. Espasa-Calpe, 1952, pág-374).

167 Moya, op. cit., pág. 84. — Vale anotar que em Hegel a Ciência da Lógica incluía uma "direção" interior, ligada ao intrínseco movimento do ser; de onde a realidade entendida como um dizer, correlato da liberdade vista como algo vinculado à "implosão" daquele movimento. Ver Gwendolyne Jarczik e Pierre-Jean Labarrière, De Kojève à Hegel. 150 anos de pensée hégélienne en France, Albín Michel, Paris 1996, pág. 36. — Sobre o ser e o pensar, cf. Jean Hyppolite, Logique et existence. Essai sur la logique de Hegel (PUF, Paris 1991), princ. parte II.

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la relação; e no Estado moderno, logo visto como Estado de Direito (ou como Estado constitucional), a função jurisdi­cional cedo apareceu como algo central168.

Vale deter-se sobre isto: o direito gira sobre a jurisdi­ção, já nas mais antigas formas de medir e contar (que Jack Coody associou às origens mais remotas do fenômeno jurí­dico), já nas ordens e ordenações de procedência palaciana, já nas codificações cujo conteúdo seria inócuo sem as com­petências e jurisdições que se estabelecem para aplicá-las. A relação eirtrepoderes e atos, que em política e em eco­nomia se definem em relação com condições "concretas", situa-se, no caso do direito, em conexão com formas e com atribuições basicamente formais.

Evidentemente há em tudo isto um sentido de raciona­lidade: as formas racionalizam, a jurisdição seleciona e de­limita. O logos do direito se manifesta através de expres­sões que, enquanto linguagem, se entendem como estrutu­ras racionais — embora ao mesmo tempo como variáveis históricas.

5. Outras referências e observações complementares

Confirma-se portanto (independentemente de tecni-cismos lingüísticos) que cada contexto histórico-cultural produz uma linguagem para a experiência jurídica. Uma linguagem peculiar, como a que se encontra em todas as codificações. E uma linguagem diferenciada, como quando

168 Cf. nosso estudo "Estado, Jurisdição e Garantias", ora no livro Estado de Direito, liberdades e garantias, ed. Sugestões Literárias, São Paulo, 1980. — V . também Ivo Dantas, Teoria do Estado, ed. Del Rey, Belo Horizonte, 1989, cap. XII.

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se lê, no código de Hamurabi, as prosaicas disposições so­bre penas ou sobre casamentos, e também as solenes pala­vras do monarca sobre sua missão legislativa, ao apresentar-se no Preâmbulo como representante dos deuses e protetor do povo159.

Um importante exemplo, concernente às variações his­tóricas da linguagem jurídica, é a passagem do período cha­mado "arcaico", na Grécia antiga, para o dessacralizado, com a substituição de um processo judicial que incluía como momento relevante e convincente o juramento, por outro tipo de processo em que o argumento — a "palavra argumento" — veio a funcionar como elemento essencial. No pensamento mítico a palavra teria sido uma potência ambígua (inclusive na boca dos reis), diversamente do que seria após a laicização. Com esta ela será, por um lado, diálogo; por outro lado expressão da referência a condicio­namentos170.

A relação entre as regras vigentes e as conceituações que se lhes referem é evidentemente um problema de her­menêutica, e é um problema histórico. Dentro do saber

169 Código de Hamurabi, ed. a cargo de Castro Dessen e Gonzalez Sanchez, CDCS, Buenos Aires 1966. — Também se encontra um pró­logo (brevíssimo) no Código de Esnuna {Les lois d'Esnunna, ed. Sirey, Paris 1954). No de Lipit — Istar, considerado anterior ao de Hamurabi, temos um prólogo semelhante ao deste na extensão e no tom (cf. Revue d'Assiriologie et d'archéologie orientale, PUF, Paris, 1957, vol. LI, nn 2 e 3 ) . ^ " ' •

170 M. Detienne Les maitres de verité, op. cit., cap. V. — Mais alguns dados em J.L. Gardiès, "Ce que la raison doit au procès", em Archives de Philosophie du droit, tomo 39, Paris, Sirey, 1995. — Sobre o jura­mento em Roma, em correlação com o próprio vocábulo jus (ligado a iuro e a iurare), e com velhas expressões iranianas e védicas, E. Benve-níste, Le vocabulaire des institutions indoeuropéennes, op. cit., vol. 2, cap. 3, págs. 111 e segs.

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jurídico contemporâneo, a superposição de concepções doutrinárias tem provocado divergências quanto aos pró­prios dados da questão: por um lado a regra (ou, se se refe­re, a norma), por outro a intenção do aplicador, que tem também uma conduta e julgará condutas.

Recentemente certos autores, impressionados com a teoria da retórica formulada desde meados do novecentos por Viehweg, e com o vasto trabalho produzido por Chaim Perelman e por Lucie Olbrechts-Tyteca, têm considerado em termos de retórica o papel da linguagem na experiência jurídica. Sob certo prisma, trata-se de uma revivescência da valorização da retórica, ocorrida em mais de um mo­mento da cultura "antiga": no caso dos sofistas, a que se opunha Sócrates, e no caso da escola de Isócrates, que se opunha à de Platão171. Mas é verdade, sempre, que em todos os estágios da criação do direito — legislação, proces­so, sentença — ocorre em alguma medida o momento argu­mentativo, no qual a instrumentalidade da palavra — assu­me, alcance especial. O direito, como algo real ou substan­cial, desaparece as vezes sob a capa das frases e recursos verbais.

De qualquer sorte o tema nos leva ao problema da hermenêutica. A vigência do direito só tem sentido na me­dida de sua aplicabilidade, o que nos remete a um fundo de valores e de significações fundamentais, ínsito no ordena-

171 Sobre Isócrates, ver Henri-lrenée Marrou, História da Educação na Antiguidade (trad. M. Casanova, EPU-INL, São Paulo 1975), parte I, cap. VII. —Para os sofistas, Olof Gigon, "Rationalité et transrationa-lité chez les sophistes", em La naissance de la raison en Grèce, org. J.F. Mattéi, PUF, Paris 1990, págs. 231 e segs. — Sobre a retórica antiga, Oisen Ghirardi Lógica dei proceso judicial, 2a edição, Córdoba 1992, cap. II.

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mento172. A retórica, como uma forma de utilização da linguagem, transparece nas ênfases verbais e nas estratégias de persuasão. Mas a compreensão e a interpretação vão além do enfatizar e do persuadir: o nexo entre a formação das decisões e o direito realmente vigente não se confunde com o material retórico nem com as técnicas de argumen­tar, por relevantes que estas sejam173.

172 Cf. nosso Ordem e Hermenêutica, op. cit. —Registraremos contu­do a opinião de Francisco Madrazo, para o qual a "ordem jurídica" aparece como mero componente do "direito judicial". Para ele existem normas primárias, que se baseiam sobre as secundárias, corresponden­do estas aos "princípios" que embasam a aplicação do direito (Orden jurídicoy derecho judicial, ed. Depalma, Buenos Aires 1985). Questio­nável mas instigante.

173 Novamente nosso Ordem e Hermenêutica, cap. X: "Ordem, inter­pretação, aplicação".

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Capítulo II

Direito -Natural, JusnaturalisirrG e Juspositivismo

Sumário: 1. Diversidade de acepções da expressão Direito Natural. 2. Origens do tema: Grécia e Roma. 3. Ocidente, até o iluminismo. 4. Ocidente, até nossos dias. 5. Direito natural e direito "positivo". 6. O Jusnaturalismo hoje. Notas.

1. Diversidade de acepções da expressão Direito Natural

Em conhecida obra publicada em 1955, Erik Wolf aludiu em termos didáticos à necessidade de distinguir entre si as diversas doutrinas jusnaturalistas. A partir disto dedicou-se à tarefa de arrolar as diferentes acepções da palavra direito, bem como as de natureza, para tentar uma "concordância si-nótica" concernente à conceituação do direito natural174.

174 Erik Wolf, El problema dei derecho natural, trad. M. Enteuza, Bar­celona, Ariel, 1961.

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Improfícuo e despropositado o esforço conceituai do mestre germânico. Independente dele, porém, podemos perceber a imprecisão da milenar expressão "direito natu­ra": uma expressão equivoca (ou multívoca), que vem rece­bendo tratamentos os'mais diversos. O que não significa que o "problema" do direito natural não exista, ou que não permaneça válido, até porque se trata de uma idéia que vem há dois milênios e meio interessando os espíritos.

Basicamente e em princípio, a noção de um direito na­tural se refere a uma ordem jurídica ideai'75. A referência a esse direito "ideal" aparece porém, freqüentemente, como alusão aos fundamentos da própria ordem positiva; outras vezes, como forma de recusa do direito vigente. Nas bases do tema se acha quase sempre a questão das relações entre direito e ética: a menção a um direito natural vem a ser, no fundo, um modo de remeter os fundamentos do direito a um dado amplamente ético, e/ou antropológico. É fre­qüente, também, ocorrer que o que se entende por direito natural é a própria justiça, concebida como base ideal para a regulação das convivências. Dá-se, por outro lado, que as posições jusnaturalistas podem aludir ao poder (mormente se revestidas de intenção política e voltadas contra a ordem positiva), mesmo, obviamente, sem perder as conotações éticas176.

E todos estes pontos revelam, como se vê, o caráter filosófico do tema. O problema não cabe na "ciência jurídi­ca" em seu sentido restrito, e daí que um juspositivismo

] 75 Para F. Wieaker, o jusnaturalismo (clássico) teria sido basicamente uma teoria da sociedade, não do direito somente {História do Direito Privado Moderno, op. cit. passim).

176 Ver Gerhard Ritter, El problema ético dei poder, trad. F. Rubio, Rev. De Occidente, Madrid 1972.

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conseqüente — como o normativismo — mantenha o pro­blema fora das linhas da própria "teoria do direito".

A questão do direito natural é uma questão teórica que engloba, sob tratacão filosófica, clamores políticos (desde as ousadas palavras de Antígona), visões teológico-cosmo-lógicas, como nos estóicos, e elaborações conceituais filosó-fico-pedagógicos como em Grócio e em Puffendorf.

I . Origens do tema: Grécia e Roma

Todos os grandes temas permitem (e requerem) uma busca de origens remotas, na qual se ratreiam antecipações e permanências. Essa busca provém da necessidade de uma compreensão mais completa dos problemas, cujos momen­tos dentro da história revelam sua própria construção: dife­rença de momentos, continuidade entretanto.

No caso do "direito natural", poderíamos chamar de antecipações algumas expressões culturais encontradas nas antigas culturas orientais. Consta por exemplo que entre os hebreus se acreditava em uma Jerusalém celeste, existente desde muito antes da terrestre e modelo desta; as cidades babilónicas seriam cópias de determinadas constelações. Eliade compara a teoria das idéias, de Platão, com sistemas arcaicos de arquétipos177. Com isto se procura ver em dis­tantes contextos a pré-formação de uma imagem da relação

177 Mircea Eliade, Le mythe de 1 'éternel retour. Achétypes et repetition (Gallimard, Paris 1969), cap. I, págs. 17 e segs. — Cf. ainda Ada Nes-chke — Hentschke, Platonisme politique et théorie du droit naturel. Contributions à une archéologie de la cidture européenne (vol. I, Lou-vain — Paris, 1995). Para uma comparação, Marcel Granet, "La droite et la gauche em Chine", em Études sociologiques sur la Chine (PUF, Paris 1953), págs. 261 e segs.

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entre o humano e o natural, ou o "sobrenatural", correlato — a calcarmos um pouco a tecla etimológica — de "meta­físico". E aqui recordamos a frase final do livro Idéia da Natureza, de Collingwood: "marchamos da idéia de natu­reza à idéia de história"178.

Todo reexame de itinerários conceituais, entendido como referência a orbes culturais diferentes, envolve a no­ção de um "caminho" que se inicia em tal ou qual ponto — Oriente, Grécia, Roma — e que chega aos tempos atuais, ou algo semelhante. E difícil evitar este roteiro, e o esque­ma epistemológico que ele conota, mesmo registrando-se alguma ressalva. Há inclusive, naquele esquema, a incidên­cia (implícita) da idéia de exemplaridade: e daí a constante indicação do mundo grego, ou do greco-romano, como nas­cedouro das concepções "originárias".

A citação de Antígona, basilar entre as que se fazem ao tratar-se dessas concepções, representa uma alusão ao pró­prio contexto helénico {polis, religião ligada à política, et­hos definido) e ao repertório de temas da tragédia ática (conflito entre o destino e as vontades, necessidade de pre­servar a ordem cósmica). Para certos autores, a própria pre­sença, no pensamento grego mais antigo, da distinção entre physis e nomos teria correspondido a uma crença no direito natural179. Na medida em que tal idéia possui fundamento, ela alude às vigências do contexto cultural grego, no qual se incluía a visão de uma diferença ôntica entre o humano e o

178 R.G. Collingwood, Idea de la naturaleza (trad. E. Imaz, FCE, Mé­xico 1950), final, p. 208. Para uma alusão complementar, Robert Leno-ble, História da idéia da natureza, trad. Teresa Perez, Edições 70, Lisboa 1990.

179 Cf. em Adolf Menzel, Cálicles. Contribution a la historia de la teoria dei derecho dei más fuerte (trad, esp., UNAM, México 1964), pág. 29.

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natural, entre a linguagem e o ser, entre convenção e reali­dade. E contudo, paralelamente, a visão de uma conexão destas coisas umas com as outras.

Retornando a Antígona: sabe-se que seu papel e suas palavras têm recebido diferentes entendimentos. Para al­guns críticos Creonte teria sido, embora um tirano, um "modernizador", tendo a heroína uma posição conservado­ra, mantenedora das tradições domésticas. Neste ponto o problema se enquadra em umaquestão mais ampla, situan-do-se o conflito dentro da transição do predomínio da gens para a da polis: um conflito que reaparece em Platão, inclu­sive no empenho em erradicar o privatismo e na imagem da família como fator de egoísmo180. Há além disso o fato de que a fala de Antígona, ao rejeitar o comando do irmão, menciona leis [nomimà]: leis que indicam uma correlação da consciência humana como a ordem natural, mas que não são o "direito" propriamente181.

Vale aludir em seguida aos sofistas, dos quais alguns colocaram o assunto em termos muito claros, ao tematizar a distinção entre physis e nomos e ao defender — sobretudo no caso de Cálicles — a validade do "conforme a natureza" como superior ao legal e mais ainda, superior ao "conforme a multidão"182.

180 Ver Warren Lane e Ann Lane, "The politics of Antigone", a n J. Peter Euben, org., Greek tragedy and political theory, Univ. California Press, 1986.

181 Stamatios Tzitzis, "Scolies sur les nomima dAntigone representes comme droit naturel", em Archives de Philosophie du droit (Paris, Si-rey), tomo 33, 1988, priric. págs. 257 e segs.

182 Cf. Menzel, Cálicles, c i t , págs. 23 e segs. — Ver também G. Kerferd, The sophistic movement (Cambridge Univ. press, 1984), cap. 10: "The nomos-physis controversy".

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I

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< Em Aristóteles, o "justo por natureza" é mencionado dentro de uma reflexão tornada clássica sobre a justiça ci­vil, como algo contraposto ao justo por disposição legal183. Com os estóicos, que elaboraram uma teologia panteísta, a idéia de um logos cosmo-ético colocava as consciências hu­manas por cima das poleis e das diferenciações empí­ricas184.

3. Ocidente,- até o iluminismo

Leo Strauss, tomando como referência a equivocidade do termo "clássico", aludiu a "três diferentes tipos de dou­trinas clássicas do direito natural". Estes tipos estariam representados em Sócrates (e Platão), em Aristóteles e em Santo Tomás, figurando o estóico no tipo socrático-platô-nico .

Deixando de lago os gregos, cuja posição na história não foi devidamente compreendida por aquele autor, retenha­mos a referência a Santo Tomás, já situado no orbe cultural chamado Ocidente. Em Tomás, as disposições da teologia cristã foram reorganizadas em combinação com a filosofia de Aristóteles, e no que tange ao direito natural temos na

183 Moral a Nicômano (trad. P. Azcárate, Espasa-Calpe, Buenos Aires 1952), livro V, cap. VII. — Sobre o assunto, o magistral estudo de Eric Voegelin sobre o 'Justo por natureza" em Anamnesis. Teoria delia sto-ria e delia política (trad. it.,Giuffrè, Milão 1972), págs. 75 e segs. 184 Guido Mancini, L'ética stoica, da Zenone a Crisippo (Pádua, Ce-

( dam 1940), princ. partes III e IV.

( 185 Leo Strauss, Droit Naturel et Histoire (trad. M. Nathan e E. Dam-pierre, Plon, Paris 1954), págs. 160-161. Ajunção de Platão e Sócrates com Santo Tomás mostra a falta de uma adequada perspectiva históri-

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Summa a alusão a uma lei (não um "direito"): lei natural distinta da eterna/divina e da humana ou positiva186.

Nos demais autores escolásticos a terminologia pouco muda. Mas com o Renascimento começa a caracterizar-se o processo dessacralizador, fundamental no curso da história do Ocidente (como em outras culturas, mormente a antiga. Com a dessacralização emerge o racionalismo, que traz o prestígio das incipientes ciências positivas — exemplar­mente a astronomia e a matemática. De Gennaro, estudan­do a evolução do pensamento jurídico, alude ao "paradigma mecanicístico" para referir o saber jurídico daquela época. Com o barroco — uma espécie de retorcida ponte entre o Renascimento e o Iluminismo — veio a tendência ao abso­lutismo na doutrina política (Hobbes por exemplo), mas ao mesmo tempo o início das alusões aos "direitos". Paralela­mente o crescimento do saber leigo e o desdobramento das funções do Estado: começos da burocracia contemporânea.

No século XVIII temos o Iluminismo, com seu "racio­nalismo aplicado", com a crítica das instituições, os come­ços do método comparativo, a indagação pelas origens e a fé no progresso. Preparação das revoluções ditas burguesas, consolidação da idéia do direito escrito e da noção moderna de constituição.

Não foi, o iluminismo, um tempo de puro racionalismo, mas a historiografia de idéias o caracteriza geralmente como dominantemente racional, o que é aceitável. Contu­do temos, no que se chama iluminismo, uma continuação

186 A parte da Summa de S. Tomás concernente às três espécies de lei foi editada em 1936 pela Labor, Barcelona (tradução e notas por C. Fernandez-Alvar). — Para as primeiras menções medievais ao "direito positivo", Pietro Piovani, Linee di una filosofia del diritto, cit. cap. X, pp. 139-140.

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do jusnaturalismo racional do tipo do de Grócio, que tran­sitará para um direito natural diferente, inclusive após o contacto com o conceito kantiano de razão legisladora. Ao mesmo tempo uma preparação do juspositivismo que será preponderante no século XIX — com a visão do direito como razão escrita e a valorização da estatalidade da ordem jurídica. Dentro da complexidade de tendências da época, a imagem do sujeito, vinda parcialmente de Descartes, pe­netra no mundo jurídico com a_noção civilística de "sujeito de direito": começa a tensão entre o subjetivismo/indivi-dualismo (dentro do direito e fora dele) e os moldes gene-ralizantes/universalizantes que aparecerão no direito posi­tivo. Moldes relacionados, inclusive, à noção de sistema que virá, em grande parte, da escola Histórica.

Germina também, na transição ao oitocentos, a contra­dição entre a fé nos cânones, que expressam a razão como algo intemporal, e a crença no progresso, que conduz os homens e convalida a evolução das instituições.

4. Ocidente, até nossos dias

A passagem de Kant para Hegel pode ter significado a mudança da autocrítica da razão para um novo ímpeto des­ta. Por outro lado, entretanto, representou uma transição do iluminismo (como "momento" do mundo moderno) para a modernidade em sua plenitude: conflito/identifica­ção entre razão e história, exacerbação da auto-consciência, fusão entre gnosiologia e teoria do ser. Hegel assumiu a tematização das conexões entre o real e o espírito, entre a vida real e as categorias conceituais. Com a geração de He­gel, ou com o seu "tempo" (Goethe, Savigny, Hoelderlin,

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Beethoven), o Ocidente passou do clássico ao romântico, embora ocorrendo a permanência do clássico dentro do ro­mântico: com isso superou-se a diferença iluminística entre o "antigo" e o "moderno". Superou-se dentro de uma refor­mulação da imagem do passado, que Hegel entreviu, e que a teoria da cultura (e das culturas) de fins do século XIX e começos do XX redefiniu através de uma "morfologia" na qual — como em Spengler — a fase antiga se encontra em cade orbe cultural, e a moderna também.

Mas a distinção entre ethos antigo e ethos moderno, que vinha do setecentos e foi retomada por Benjamin Constant ao tratar da liberdade dos antigos e dos modernos, perma­neceu válida como expressão da dualidade que envolve as peculiaridades historicamente situadas e o padrão do "hu­mano" como imagem universalizável187. Portanto envolve as diferenças entre direito antigo e direito moderno, com a sempre repetida busca de um conceito intemporal e "uni­versal" para o fenômeno jurídico.

Aludimos ao "moderno" no sentido fixado pela histo­riografia desde o iluminismo (moderno como o mundo oci­dental pós-feudal), sem ignorar o sentido utilizado por Le-febvre em sua Introdução à Modernidade, nem o uso da expressão "pós-moderno", com alcance, como já dissemos, questionável. Moderno e modernidade são termos cujo perfil se renova sempre, mormente se afetados pela idéia de crise e coligados à imagem da secularização que invadiu o Ocidente a partir dos séculos XVI ou XVII. São termos próprios da linguagem com que o Ocidente se descreve a si mesmo, entre a consciência das mudanças históricas e a

187 H.C. de Lima Vaz, Escritos de Filosofia — If, Ética e cultura, cit. caps. I e II.

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necessidade de segurar sua própria imagem com determi­nadas palavras.

Com o século XIX, o romantismo e o evolucionismo fizeram pender para o lado da história a visão do direito (assim com Bachofen por exemplo). Mas ao final daquele século, a busca do universal recobrou forças com o neokan-tismo e com a fenomenologia — neste caso, já com a tran­sição ao novecentos. Nisto se incluiria a artificiosa idéia de Stammler a respeito de um "direito natural de conteúdo variável".

Mas, apontando outra vez para um termo empregado parágrafos acima, vale sublinhar os inícios do emprego da expressão direitos naturais, no plural e com um sentido subjetivo que não se encontrava no genérico e ontológico jus naturale mencionado até então. Isto é, até o tempo de Locke e de Hobbes, que, com conotações distintas, veicu­laram o termo e colocaram o problema, daí derivado para o vocabulário das revoluções e dos ismos188. Dentro desta derivação encontramos a marca do "individualismo" mo­derno (sempre algo ambíguo) e dos igualitarismos socia­listas, tudo isto em conexão com determinada visão do homem e com algum modo de vincular a ela a ordem jurídica.

Cabe entretanto, a propósito de revoluções e retoman­do o ponto em que tratávamos de Hegel, recuar um pouco

188 Passerin d'Entreves caracteriza como "momentous change" o trân­sito do termo law ao termo rights: Natural Law. An Introduction to political philosophy (ed. Hutchinson, Londres 1967), cap. Ill, p. 59.

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e mencionar a figura estranha e mutável de Rousseau. Ilu­minista, burguês — com sua "sombra plebéia" no dizer de Spengler —, democrata mas não liberal; radical, pedagógi­co. Teria talvez havido, no autor do Émüe, um jusnaturalis-mo específico, dentro da atribuição a priori, à vontade ge­ral, de uma justiça intrínseca e de uma intrínseca aptidão para criar uma ordem justa. Rousseau racional/dessacrali­zado mas crente e maniqueísta, teólogo da lei e da religião natural.

Voltando a Hegel. Em Kant o direito se acha tematiza-do a partir das convicções liberais do filósofo, de suas con­vicções republicanas e de sua aceitação do contratualismo: a definição do direito confirma o valor da liberdade, isto é, da concepção liberal da liberdade. Em Hegel o direito apa­rece dentro da seqüência dos momentos do Espírito: no Espírito objetivo (a polis delineando o Estado) surge o di­reito, e também o Estado; com isso se tem a referência à pessoa e à liberdade189. A parte de Hegel na gênese do historicismo é ao mesmo tempo um componente nas origens do racionalismo idealista, em paralelo ao conflito, talvez aparente, entre o historicismo oitocentista e o jusnaturalis-mo posterior ao Code de 1804190. Em Kant o elemento

189 Anghern, Bobbio e outros, Estúdios sobre la filosofia dei der echo de Hegel (ed. CEC, Madrid 1989), princ. págs. 249 e seguintes: Z. Pelc-zinski, "La concepción hegeliana dei Estado". 190 Na verdade, e como é consabido, o jusnaturalismo contemporâneo se apresenta com diferentes versões, e daí sua compatibilidade com ismos vindos de outros campos e de diversos tipos. — Para uma pers­pectiva abrangente, Hans Thieme, Das Naturrecht und die europaeis-che Privatrechtsgeschichte, Helling-Licht, Basiléa, 1954. —Inteiramen­te fora dos conceitos históricos R. Dworkin, ao tratar o jusnaturalismo como "teoria rival" do positivismo e ao tratar a ambas como teorias

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teológico, que a secularização iluminista vinha pondo de lado, reaparece na obra sobre a religião e seus limites, e nos Prolegômenos]9]; não na visão do direito. Em Hegel, o com­ponente teológico se funde com o racional e é assumido como parte essencial do sistema192: assim na Lógica como na Filosofia do Direito, e na da Religião.

O que ocorreu foi que, entre o Iluminismo e o Roman­tismo, a continuidade do racionalismo permitiu a transfor­mação das cautelas analíticas de Kant na reconstrução he-geiiana da metafísica, uma das novas metafísicas (pois tam­bém a de Fichte e a de Schelling) que reelaboraram o pen­sar ocidental. A "necessidade" metódica do sistema, afir­mada por Kant, acompanha., em Hegel, o ressurgimento da teoria do direito, que participa do sistema em lugar rele­vante.

5. Direito: "natural" e "positivo"

E contudo permanece, embora de tempos em tempos abalada ou reformulada, a idéia de que deve existir, ao lado (ou acima) do direito dito positivo, qualquer coisa

"semânticas" do direito: O Império do Direito (trad. J.L. Camargo, Martins Fontes, São Paulo 1999), págs. 44 e segs., pág. 122. 191 Prolegomeni ad ogni metafísica futura que vorrà presentarsi come scienza, trad. P. Martinetti, Turim, F. Bocca 1913. Começava aí o equí­voco de pensar em uma metafísica "como ciência", que reapareceria algumas vezes.

192 Sobre o caráter teológico da filosofia de Hegel, N. Hartmann, A filosofia do Idealismo Alemão (cit.), passim e esp. pág. 659. — Cf. também Joaquim Salgado, A idéia de justiça em Hegel, op. cit., parte II.

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como uma reserva ou um "depósito" de juridicidade — senão ao menos de normatividade ou de regulatividade —, que vale como referência: para fundar o entendimento da própria ordem positiva, ou para a avaliação de seus méritos e deméritos193.

Caberá considerar como momentos iniciais da idéia de um direito natural as primeiras alusões a um "outro" direi­to, melhor do que o vigente e inteligível como ideal194.

A aparição, no mundo moderno, de um "racionalismo jurídico" foi correlata do surgimento do direito natural for­mulado por Grócio: correlata, na verdade, de várias altera­ções no pensamento social e político. Na Idade Média as coisas do mundo eram geralmente consideradas "naturais", dadas ao homem como aspectos do viver recebido de Deus e da tradição. Com o Renascimento passa-se, aos poucos, a ver a política como "arte" e o Estado como criação dos

193 Deste modo resulta equivocado o argumento segundo o qual ine­xiste o Direito Natural pelo fato de que ninguém se dirigirá ao juiz invocando uma norma de direito natural. Obviamente tal norma seria positiva, se cabível como direito aplicável; mas isto certos positivistas não percebem. — Muito interessante a reflexão crítica de R. Wiethõl-ter, em Le formule magiche delia scienza giurídica (cit.), cap. 3: "Os direitos naturais como formulas de resgate e álibi político". 194 O direito natural concernente ao adequado embassamento do sa­ber jurídico (senão mesmo da positividade) tem um sentido principal­mente epistemológico; o referente à crítica da ordem vigente tem-no principalmente axiológico. — Kosta Cavoski, em "Naturrecht, rule of law und tyrannische Gesetze" [Rechtstheorie, Berlim, n. 24, 1993, Heft 1 -2) relaciona o Direito Natural às formas históricas de resistência ligadas à idéia de uma "supremacia do direito".

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homens; assim em Maquiavel, assim em Hobbes195. O con­ceito de natureza adquire um sentido distinto do que vigo­rava na Idade média, e a este novo sentido corresponde o jusnaturalismo racionalista, que veio a ser, conforme certos autores, uma verdadeira teoria da sociedade e não apenas do direito196.

O jusnaturalismo dos séculos XVII e XVIII deve ser encarado em conexão com o novo modo de entender as relações entre o direito, a sociedade e o Estado, no que se inclui obviamente o-entendimento do poder197. O proble­ma levará a uma indagação sobre meios e fins: sob certo prisma o Estado é meio (o Estado com seu aparato de "ór­gãos") sendo o direito um sistema de fins; mas a imagem do Estado também envolve fins.

Cabe evitar, no concernente a este tipo de questão, pensar o direito como uma coisa, o direito que, mesmo apresentando-se como estrutura, é sempre processo e ex­periência (o direito fazendo-se, ordem ordinata et ordi-nans].

195 Cf. a primeira parte do livro de Jacob Burkhardt ha cultura dei Renacimiento en Itália (trad. J. Ardal, Barcelona 1951): "O Estado como obra de arte". E também os capítulos X e XI em Ernst Cassirer, O Mito do Estado (ed. Zahar, Rio de Janeiro 1976). Sobre Hobbes, Leo Strauss, The political philosophy of Hobbes, trad. Elsa Sinclair, Univ. de Chicago 1963. — Cf. ainda, para o tema, os estudos reunidos em Cris-tianesimo e ragion di Stato (Atas do II Congresso de Estudos Humanís­ticos, F. Bocca, Roma 1953).

196 Para um repasse clássico, G. dei Vecchío, El concepto de naturale-zay ei principio dei der echo (trad, esp., Madrid, Reus 1916). 197 Aqui mencionamos de novo o tema da "razão de Estado". A respei­to, a conhecida obra de F. Meinecke, ha idea de la razón de Estado, cit. — Referências, dispersas mas relevantes, em J.G.A. Pocock, The ma­chiavellian moment, Princeton Univ. Press, N. Jersey 1975.

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E mais: nem sempre a teorização sobre o direito natural se relaciona (ou tem de relacionar-se) com a axiologia, mesmo na época contemporânea. Há dois ângulos básicos para se colocar o tema do direito natural: o axiológico é um deles, o outro o onto-epistemológico.

* * *

Direito natural como pendant do direito "positivo". Desde logo não confundir a diferença entre direito natural e direito positivo, com a distinção entre direito {tout court) e lei. Mesmo que "direito positivo" se entendesse, por uma redução, como "direito legal", as duas distinções permane­ceriam diversas.

Para o ponto podemos recorrer de novo a Erik Wolf, que arrola as seguintes acepções para o "positivismo jurídi­co": uma posição prática; outra sociológico-pragmática; ou­tra teorético-filosófica; outra histórico-psicológica; e mais um positivismo irreligioso198. Noutra direção se apresen­tam as exposições de Bobbio, geralmente muito claras, sem embargo de uma certa tautologia encerrada nessa defini­ção: "O positivismo jurídico é a doutrina segundo a qual não existe outro direito a não ser o direito positivo"199. O

198 Erik Wolf, El problema, cit., págs. 29 e 30. Uma lista, como se vê, bastante desestruturada. 199 Norberto Bobbio, II positivismo giuridico (Giappichelli, Turim, 1979), cap. I, pág. 19. —V. ainda Uberto Scarpelli, Cos'è ilpositivismo giuridico, Ed. di Comunitá, Milão 1965. Sobre o positivismo jurídico, ver também Joachim Hruschka, ha comprensione dei testi giurídici, trad, it., Ed. Scient. Italiane, Univ. di Camerino, 1983, cap. III. — Mais recentemente, Friedrich Muller envolve em uma só frase duas afirma­ções contestáveis: atribui à idéia de concretização um vínculo substan­cial com o positivismo, e entende por positivismo uma posição que

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próprio Bobbio afirma que se faz pleonástico agregar o ad­jetivo "positivo" ao termo "direito".

Entendamo-nos. O direito existente, o mencionável como algo que se aplica, é certamente o positivo. Não há direito negativo, e a positividade está na presença institu­cional do direito (como experiência, como ordem, como parte da vida social). Não quer dizer, porém, que a palavra direito não possua uma amplitude maior do que a contida em "direito positivo": o direito, considerado como uma realidade social (como a economia, como a política, como a religião), abrange diferentes planos e elementos, que va­riam quanto à relação que guardam com a vida real dos seres humanos.

A "positividade" tem sido habitualmente entendida no sentido do conjunto de "fontes" do direito, que são fontes de sua criação ou de sua atuação. A esse conjunto cabe atribuir um cunho de sistema, ou ao menos uma coerência obviamente necessária àquela atuação. E é em função do direito positivo que se coloca o conceito de ordenamento, tão difundido durante o século XX. Enquanto a noção de sistema proveio da filosofia (adquirindo depois uma acep­ção especifica no campo do direito comparado), para aludir a um caráter genérico do próprio "fenômeno jurídico", a de ordenamento, distinguindo-se de "ordem" em algumas das línguas ocidentais, veiculou-se como categoria mais formal, mais vinculada ao direito dito positivo.

O direito, como dizíamos, não se reduz ao "positivo", a não ser que se amplie o conceito de positividade, fazendo-o

confunde a norma com o texto da norma: Juristische Methodik, trad, francesa Discours de la méthode juridique (op. cit), pág. 220. O afã de inovar e o desejo de atacar o normativísmo levam a estas coisas (eu não creio que alguém, um dia, tenha feito essa confusão).

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abranger coisas como princípios e decisões. A positividade em seu sentido restrito se refere às fontes, qual dissemos; ou seja, ao direito "criado, aplicado ou reconhecido" pela ordem estatal200. Mas a plena compreensão da experiência jurídica requer uma referência aos elementos éticos e cul­turais que ela conota201.

A distinção entre direito e lei leva a pensar em certas opções conceituais. Assim podemos ter o direito como um conjunto de elementos entre os quai se encontraa lei fadei como ponto de referência da positividade); o direito como um feixe de notas (medida, proporção, valores), que se expressam —'• principalmente — através da forma da lei como referência "imediata" da positividade, e em torno da lei os valores, as condutas, a hermenêutica. Entretanto pode resultar artificial este tipo de indagação, inclusive quando se pergunta onde se acha aquele conjunto chamado "direito": na sociedade, sim, mas cabendo sempre pergun­tar pelo que é jurídico no direito, pergunta sofística e des-garradora que sai dos equívocos contidos na imprecisão com que se alude à ordem, ao ordenamento e à positivi­dade.

200 Essa a grande temática da teoria jurídica na fase inicial do século vinte: aceitar ou não o residual jusnaturalismo, adotar a positividade (em sentido positivista) como critério irrecusável do jurídico, redefinir as fontes e também os métodos. Foi, inclusive, a tarefa de que se in­cumbiu Gény. 201 Para J. Esser, todo direito positivo depende de um processo de diferenciação (que inclui criação e interpretação), bem como da "ade­rência" das soluções à vida concreta: Precomprensione e scelta dei méto­do nelprocesso di individuazzione del diritto (trad, it., Univ. Camerino 1983), cap. I, pág. 12. — Sobre o tema veja-se o artigo de E.P. Haba, "Precomprensiones, racionalidad y métodos en las resoluciones jüdicia-les" (em Doxa n° 22, 1999), com um amplo elogio de Esser e — como sempre — pesadas alusões a Dworkín.

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6. O jusnaturalismo hoje

Acha-se hoje esvaziada, sem dúvida, a polêmica entre jusnaturalismo e juspositivismo, travada com deleite e aze­dume durante os séculos XIX e XX.

A questão do jusnaturalismo já não consiste, como em outros momentos, na crença em um "direito" colocado além do positivo: um direito superior (e anterior) a toda ordem positiva. Consiste, antes, no problema de como con­siderar o direito: em torno da noção de direito se agrupam perspectivas e conotações que englobam ideais e valores, ou que se resumem (ou se concentram) na positividade.

Certos pensadores encontram certa incompatibilidade entre o jusnaturalismo e o ethos moderno202. O problema, aí, está no conflito entre a mudança geral das pautas cultu­rais, particularmente com a secularização (e com a burocra­tização da vida intelectual) e a permanência de um patri­mônio de conceitos vindos de tempos em que o saber jurí­dico conviveu com o antigo jusnaturalismo substancialista e ontológico. No século XX, alguns autores tentaram refazer os fundamentos do direito natural recorrendo à noção de natureza das coisas. Ago semelhante à vetusta combinação

202 Por exemplo Pietro Piovani, Giusnaturalismo ed ética moderna, ed. Laterza, Bari 1961. — Cf. também, para outro ângulo, o balanço de F. Wieacker, Zum heutigen Stand der Naturrechtsdiscussion, ed. Wes-tdeutscher, Colônia 1965. — Para W. Maihofer, "não é mais possível o retorno ao jusnaturalismo tradicional, nem o retorno ao juspositivismo como tem sido concebido até hoje, mas uma nova fundação do direito através e além do jusnaturalismo e do juspositivismo" (apud G. Zacca-ria, L'arte dell'interpretazione, Cedam, Pádua 1990, Parte I, pág. 5). — V. ainda Agustín Squella, "Por que vuelve a hablarse de derecho natu­ral?", em Anuário de Filosofia Jurídica y Social (A. Perrot, B. Aires), n° 17, ano 1997.

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entre logos e nomos vinda dos estóicos; por outro lado, uma noção com traços axiológicos e ligada à metafísica pós-fe-nomenológica. A noção de coisa (mais próxima da res latina do que da Ding analisada em 1962 por Heidegger) combi­nada com a milenar e multiforme idéia de natureza: esta, no caso, comparável à referência néo-kantiana e weberiana aos tipos ideais203.

Alude-se às vezes à presença da teoria dos valores, construída nos decênios finais do oitocentos e nos iniciais do novecentos, no confuso território dos debates sobre di­reito natural no século XX; complicando, inclusive, o des­linde entre os conceitos de direito natural e justiça204. Con­fusão e enriquecimento são dois lados do panorama, dentro do qual vem figurando também, ultimamente, a questão da bioética (e do biodireito). Enriquecimento, acrescente-se, e equívocos.

As exigências morais trazidas pela bioética não são, em si mesmas, propriamente novas. São-no pelos conteúdos atuais, pelos contextos em que se expressam, em um mun­do a um tempo esvaziado e saturado, onde os homens des­respeitam a vida na mesma escala que antes, mas dentro de complicações crescentes205.

203 Ver E. Garzón-Vaidès, Derecho y naturaleza de las cosas. Análisis de una nueva version del derecho natural (tomo 1, Univ. de Córdoba, Argentina, 1970). — V. ainda os trabalhos do colóquio de Toulouse, Droit et nature des choses. (Dalloz, Paris 1953), e também A. Braz Teixeira, Sentido e Valor do Direito (Lisboa, Imp. Nacional, 1990), § 53.

204 Para o tema dos valores, C. Grzegorczyk, La theórie générale des valeurs et le droit, LGDJ, Paris 1982.

205 Citaremos as revistas Biblioteca delia liberta (Milão, Franco Ange-li) e Bioética y derecho, de Rosário, Argentina. A revista Mots. Les langages dupolitique lançou em 1995 um número especial sobre bioéti-

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A exaustão do debate entre juspositivismo e jusnatura-lismo corresponde ; portanto, no último meio século, ao surgimento de novas formulações teóricas e à alteração das relações entre o saber jurídico stricto sensu e a filosofia do direito. Não se entende mais, hoje, a crença em um direito natural ao modo da escolástica ou nos termos de G rácio; nem é mais viável afirmar-se um direito reduzido à "positi­vidade", esta conceituada como expressão normativa legal-estatal. Todas as referências ao direito que ultrapassem essa expressão vai abrir espaço para a alusão a componentes valorativos e hermenêuticos.

É como se a figura linear e inteiriça do jus naturale fosse sendo relegada como uma velharia sem sentido. Mas, ao diluir-se e ao fragmentar-se, o direito natural conseguiu de algum modo manter-se: tal como a utopia, em ilustres momentos construída sob a forma de cidades perfeitas, foi sendo substituída por utopismos ideológicos ou por frag­mentos utópicos incrustados ou encobertos na ética e na pedagogia. O direito natural clássico foi correlato da visão de um mundo imutável e de uma verdade invariável206; foi repensado em começos do novecentos, convivendo com

ca e política. — Ver também a parte 4 do cap. vinte em Arthur Kauf-mann, Filosofia dei der echo, trad. L. Borda, Bogotá 1999. 206 A noção de uma verdade intrinsecamente valiosa, identificada com o ser e garantidora da realidade, noção geralmente tida como oriunda de Platão, foi combatida por Nietzsche. A respeito, Gianni Vattimo/4s aventuras da diferença, trad, port., Edições 70, Lisboa 1988. — A crítica do "mundo estável" tem incluído a demolição da própria idéia de gramática (Derrida), bem como o relativismo linguístico: por exemplo o de Umberto Eco, para quem a estrutura das línguas indo-européias (com o sujeito, a cópula e o predicado) é que induz à visão do mundo como uma organização de substâncias (Eco, "A linha e o labirinto etc." em G. Duby, org., A civilização latina, cit., pág. 34).

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um mundo secularizado e relativista; reapareceu, modifica­do e discreto, em certos modos de pensar posteriores a 1945.

A "porção" de jusnaturalismo que vem ocorrendo des­de a segunda metade do século XX corresponde, basica­mente, a uma tendência a encontrar "direito aplicável" sem se prender aos limites literais da lei; e sobretudo a valer-se (o jurista) da hermenêutica e da interpretação em um sen­tido mais largo do que o tradicional. Com isso nos referi­mos a uma linha jurisprudencial européia definida após~o término da segunda Guerra207 e também às concepções que, desde o início do século XX, insistiram sobre a dife­rença entre lei e direito, e sobre — eis o exagero — a com­pleta independência deste em relação àquela. O vínculo histórico com o jusnaturalismo se situa — como visto acima — no aparecimento da idéia de "direitos", ao tempo de Hobbes e de Locke. Temos por um lado aquilo que tem sido denominado (questionavelmente) o individualismo moderno; por outro lado o constitucionalismo que, com a derrubada do Estado "absoluto", trouxe para os sujeitos a condição de destinatários das garantias constitucionais, dentro das reivindicações que corresponderam às revoluçõ­es ditas burguesas, ou liberais. Todo um clima leigo e racio-nalizante procurou fundar a ordem política sobre a conver­gência das vontades privadas (paralelamente, sobre o "con­trato social"). E as constituições, a partir de então, foram -se transformando em articuladas listas de direitos, combi-

207 Ver Gustav Boehmer El derecho através de la jurisprudência. Su aplicación y creación, trad, esp., ed. Bosch, Barcelona 1959. — Àquele contexto se ligou também o breve e famoso texto de G. Radbruch Arbitrariedad legal y derecho supralegal (Abeledo-Perrot, Buenos Ai­res 1962).

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[ • • •

nadas com normas sobre funções e poderes. Tudo isso en­volveu um agitado lastro ideológico, bem como um proble­ma de linguagem (renovação da linguagem jurídico-políti-ca) e de técnica legislativa208.

Anotemos que estas referências, historicamente decisi­vas, aos direitos, surgiram dentro dos debates sobre a deci­são justa em relação à norma positiva209.

Isto equivale ao que temos chamado de "jusnaturalismo hermenêutico". O direiro possui um componente hermenêu­tico, e é um equívoco pensar nele como sendo apenas or­dem, ou como conjunto de normas, falando-se da herme­nêutica como algo que "se refere" ao direito. O direito não se compreenderia sem a inclusão, em sua imagem, daquele componente. O jusnaturalismo hermenêutico se acha nas atitudes práticas ou teóricas que valorizam tal componente como parte da experiência jurídica. Um jusnaturalismo, dir-se-ia, sem direito natural210.

208 Nosso Formação da Teoria Constitucional (cit.), princ. caps. VI e VIII. — G. Robles, Los derechos fundamentales y la ética en la sociedad actual (Civitas, Madrid 1992); A. Perez Luno, Los derechos fundamen­tales, 6a edição, Tecnos, Madrid 1995. — V . também o cap. II do livro de Ivo Dantas, Princípios constitucionais e interpretação, Lumen Juris, Rio de Janeiro 1995.

209 Assim as posições expressadas pela "escola" do direito livre {freies Recht] e pela da livre pesquisa [libre recherche], nos inícios do novecen­tos; bem como pela soi-disante teoria crítica, e ainda pelo chamado "direito alternativo".

210 Cf. o anexo IV, "O direito natural como ordem e como hermenêu­tica", em nosso Ordem e Hermenêutica, op. cit. — Remetemos igual­mente ao nosso texto "Jusnaturalismo e juspositivismo: por um reexa­me do problema", na Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXXIII, fase. 131, 1983 (ora em Teoria do Direito e Crítica Histórica, Freitas Bas­tos, Rio de Janeiro 1987).

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* * *

Duas palavras, a propósito do Direito Natural, sobre os chamados direitos humanos. Seu surgimento mais definido ocorreu no século XVIII, antes portanto de o conceito de direito tomar forma no pensamento contemporâneo, o que sucederia apenas com a geração de Hegel, de Fichte, de Gustav Hugo, de Savigny. Surgiram como um pleito políti­co que cresceu ao lado da evolução do saber especificamen­te jurídico ocorrido durante o século XIX com a Exegese e com a Pandectística.

Entretanto o desdobramento do Estado liberal, com o advento do Estado social, renovaria o significado dos direi­tos. Esta evolução desembocaria em uma série de coisas, sobretudo nos decênios finais do novecentos, com a queda do socialismo soviético e a montée do neoliberalismo21'. De certo modo a discussão sobre direitos abrigaria temas que vieram do socialismo moderno e que foram abafadas com as ditaduras européias das décadas 30/40 (e latino-ameri­canas das décadas 60/70); dentro dela cresceria inclusive a temática da cidania, enfatizada nos países subdesenvolvi­dos como reivindicação específica212.

O lado positivo (e "humano") do pleito pelos direitos tropeça freqüentemente nos meandros das estratégias polí­ticas. Cabe de qualquer sorte advertir para um problema teórico: atribui-se aos direitos, por uma necessidade ideo­lógica, um cunho universal que existia, com um caráter

211 Bernard Bourgois, Phílosophie et droits de 1'homme de Kant à Marx (PUF, Paris 1990); Martin Laclau, "La fundamentación filosófica de los derechos humanos", em Anuário de Filosofia Jurídica y Social (Buenos Aires, Abeledo-Perrot), n° 12, 1992.

212 Clémerson M. Clève, O Direito e os direitos, Ed. Max Limonad, 2002.

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metafísico, no conceito clássico de direito natural. Mas a universalidade de um valor, de uma categoria ou de um conceito resulta geralmente de um processo histórico-cul-tural de difusão. Há no caso, talvez, mais uma padroniza­ção, paralela à expansão dos problemas "ocidentais", do que uma universalidade própria (autônoma) do conceito de direitos213.

213 Anote-se que Ortega, que combatia o "plebeismo" e a "exaspera­ção" da democracia, valorizou os direitos como expressão de uma socie­dade provida de um direito mais rigoroso: os direitos como resultado do fim da "mitologia política", da desigualdade e dos privilégios manti­dos como tabus (texto de 1917, "Democracia morbosa", em El Espec­tador — II, 4a edição, Biblioteca Nova, Madrid 1966, pág. 211).

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Capítulo III

Sobre hermenêutica e princípios

Sumário: 1 — Observações genéricas. 2. A hermenêutica no pensamento filosófico contemporâneo. 3. Viehweg, Betti, Gada-mer. 4. Hermenêutica "jurídica" e inter­pretação. 5'. Aspectos filosóficos. 6. Alusão aos princípios. Notas.

1. Observações genéricas

Hoje parece, sob certo aspecto, que tudo são interpre­tações. Um flexível relativismo (que não é sinônimo de ceticismo) se coaduna com a idéia de que o pensamento humano se desenvolve como hermenêutica. Mas semelhan­te entendimento tardou a delinear-se, e a demora de seu surgimento no ocidente lembra a referência de Dilthey a um tipo de reflexão que floresceu na antiguidade tardia, como reação ao conflito entre as doutrinas e à visão do entrechoque dos sistemas, sempre contrapostos uns aos outros. E foi sobretudo depois do historicismo, em suas

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várias vertentes, depois da sociologia do conhecimento e da obra de Gadamer (Wahrheit und Methode, I960), que se consolidou aquela tendência. De fato a configuração da fi­losofia hermenêutica, como teoria e como temática, trouxe uma relevante perspectiva doutrinária ligada a uma con­cepção específica (embora não insólita) das ciências cultu­rais. Diríamos que a hermenêutica, reformulada a partir de Gadamer, pode de certa forma ser vista como uma renova­ção e uma dissidência em face da epistemologia — e obvia­mente da metodologia—, da mesma sorte que, mutatis mu­tandis, a axiologia terá florescido como uma renovação e uma dissidência em relação à ontologia214.

Remonta a Aristóteles a autoria de um primeiro estudo sistemático sobre a hermenêutica, o breve tratado Peri Hermeneias, que se manteve desconhecido, ou quase, du­rante séculos215.

Na verdade poderíamos correlacionar a evolução da hermenêutica com a da própria filosofia. O pensar filosófi­co, nas fases consideradas mais "críticas", retoma sempre o exame das fontes, a comparação, a busca de conexões e de variações formais216. Foi o que ocorreu na Grécia antiga com o movimento dos sofistas, e também com Aristóteles

214 Para os itens fundamentais da hermenêutica no século vinte — incluindo Betti —, cf. Quaderni fiorentini per la storia del pensíero giuridico moderno (Giuffrè, Milão), n° 7, 1978. Inclusive a análise da obra de Betti por F. Bianco, a de M. Bretone sobre a polêmica Bettí-Ga-damer e a de Mengoni sobre o mesmo assunto. Cf. também J. Bleicher, Contemporary Hermeneutics, ed. Routledge and Kegan Paul, Londres 1980, e ainda nosso Ordem e Hermenêutica, cit., princ. cap. X.

215 Cf. J. Isaac, Le Peri Hermeneias en Occident, de Boèce à Saint Thomas. Histoire littéraire d'un traité d'Aristote, ed. Vrin, Paris 1953.

216 Nosso texto "Filosofias, crises e hermenêutica", em Filosofia, po­vos, ruínas (op. cit.), págs. 55 e segs.

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(quanto a este ponto mais do que com Platão, apesar da visão profunda do autor do Criton para as relações entre expressão e conteúdo); e ainda com as escolas tardias, en­redadas no exercício da crítica e na análise das "opiniões". O acúmulo de dados terá formado, então, uma massa de problemas que foi legada à Idade média (árabe e cristã) como um confuso e valioso material especulativo. Este ma­terial foi reorganizado pela Patrística e pela Escolástica sob formas bastante distintas (na segunda um esquema didáti­co maisrforrnal), mas no final da Idade Média intensifica­ram-se os questionamentos. Com o século XVI o pensa­mento filosófico se aproximou de certos componentes cul­turais antes afastados, como a nascente ciência (estranhas combinações onde entravam a astrologia e restos da alqui­mia) a também nascente crítica filológica, a desencavar textos antigos e a separar, neles, o original e as interpola­ções. Surgia o "humanismo"217.

O humanismo renascentista, desdobrado e complicado, se transformou no barroco e a este sucedeu o iluminismo (dentro do qual ocorreria o "rococó"), o iluminismo com a difusão do saber e da crítica — revistas e dicionários —, com a erudição acadêmica, o racionalismo (mas também o empirismo), a busca de origens e o gosto da comparação. E depois o romantismo: vastas sínteses, culto da história (e do passado), consolidação da hermenêutica. Revalorização ou mesmo descoberta de documentos, inclusive literários e jurídicos; arqueologia e renovação da filologia. Os grandes

217 Domenico Maffei, Gli ínizi delVumanesimo giuridico (Giuffrè, Milão 1956); G. Piano Mortati, Ricerche sulla teoria deli'ínterpretazio-ne dei diritto nel secolo XVI (Giuffrè, Milão 1956). — Para os outros aspectos, Alexandre Koyré, Mystiques, spirituels, alchimistes du XVI siècle allemand (Gallimard, Paris 1971).

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nomes: Humboldt, Schlegel, Boeckh, Schieiermacher. So­bretudo este218.

2. A hermenêutica no pensamento filosófico contemporâneo

Uma indagação sobre a evolução da hermenêutica re­quereria, por um lado, uma visão da história do próprio pensamento filosófico; _por outro lado, uma referência ao trabalho dos autores que estudaram as manifestações mais recuadas do direito e da religião nos mais diversos contex­tos. A arqueologia, passando dos equívocos dos séculos XVII e XVIII a uma melhor compreensão das instituições e das mentalidades, chegou às decifrações de Champollion e Grotefend, depois às obras de Droysen e Maspero. Pos­teriormente viria o saber filológico de mommsen e de Eduard Meier; no final do século XIX e começos do XX, surgiram as grandes teorizações sobre a cultura, com Dani-lewski, Frobenius, Spengler, Kroeber, Toynbee. Paralela­mente ocorreu o trânsito do evolucionismo total de Spen­cer e Letourneau à busca de estruturas constantes (ou não) aptas a revelar o sentido do pensar humano em função de épocas históricas e pautas culturais.

218 E. Kaleri, "Die Grundlegung der modernen Hermeneutik durch Friedrich Schieiermacher", em Hans Lenk e E. Kaleri, Philosophie und Interpretation, Suhrkamp, Frankfurt 1993, cap. 2. — Ver também Martin Laclau, "Schieiermacher y la constitución de la hermenêutica como disciplina autônoma", em Anuário de Filosofia Jurídica y Social, Buenos Aires, n° 15, 1995. — Cabe mencionar a influência, durante certo tempo, do estudo de J. Stroux "Summum jus, summa iniuria" (publicado nos Anais da Universidade de Palermo, 1929), que advertia para os perigos da interpretação literal. Cf. nosso Ordem e Hermenêu­tica, cit., pág. 282.

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Dos românticos a Dilthey fortaleceu-se a correlação entre o estudo histórico e a compreensão das coisas huma­nas. A junção entre racionalida.de e historicidade, tentada por Hegel, reapareceu no começo do novecentos com a "filosofia da vida", transformada por Ortega em raciovita-lismo. O amor ao passado, estadeado pelos românticos, converteu-se em historicismo. Um relativismo lúcido veio aparecendo como alternativa perante o niilismo e o dogma­tismo. Da denúncia da "tirania da verdade", feita por Nietzsche na segunda metade do oitocentos, chegou-se ao perspectivismo: da desconcertante valorização nietzschea-na da aparência passou-se à crítica do positivismo e do cien-tificismo. Tudo isto conviveu, entretanto, com a renovação de ambos estes ísmos no neopositivismo; dos debates a res­peito viriam o normativismo na teoria do direito, a difusão da fenomenologia e outras coisas. O século vinte, destarte, recebeu em seus primeiros decênios a presença destes mo­vimentos.

Da fenomenologia proveio Heidegger (como um dissi­dente), tematizando o homem em ligação com a palavra e com o mundo — o mundo e seus "horizontes"219; Heideg­ger herdeiro de Nietzsche também. Ortega, quase sempre em curioso contraponto com ele, retomou o historicismo de Dilthey como amplo instrumento de compreensão do humano: retomou também o modo e a temática de Sim-mel, que incluía a reflexão sobre a vida.

A idéia de horizonte, bem como a de historicidade, en­trou na composição das bases da filosofia hermêutica siste­matizada por Gadamer, que enfatizou o caráter interpreta­tivo (não dogmático, nem meramente metodológico) das

219 "Das hermeneutische Moment in M. Heideggers Analytik des Da-seins", em Philosophie und Interpretation, cit., cap. 3.

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ciências sociais (ou do espírito, Geisteswissenschaften) como ciência do homem e das coisas humanas. Pouco antes Emílio Betti havia analisado, em sua monumental "Teoria Geral da Interpretação", todas as áreas do conhecimento e da arte, que comportam tratamento interpretativo, inclusi­ve algumas até então estranhas à preocupação hermeneuti-zante220. A posição de Kelsen foi também recusada por Bet­ti, como tendente a reduzir a interpretação (jurídica) à mera constatação das possibilidades de aplicação da nor­ma221. Betti travaria com Gadamer uma rumorosa polêmi­ca que entre outros itens tratou da questão da vorverstehen, pré-compreensão222.

3. Viehweg, Betti, Gadamer

A década 50 do novecentos, marcada pelos problemas que a "consciência européia" assumiu desde a Segunda Guerra (1939-1945), foi uma década de movimentos polí­ticos surdos e maquiavélicos, com algo de Arcana e de Ra-gion di Stato. No pensamento jurídico, surgiram entretanto novos modos de descrever a relação entre a ética e o direito e sua aplicação: reformulações a respeito de jusnaturalis-

220 Emilio Betti, Teoria generale delia Interpretazione, 2 tomos, Giuf­frè, Milão 1955. — Cf. Franco Bianco, "La teoria deli interpretazione di Betti nel dibattito ermeneutico contemporâneo", em Riv. di Filoso­fia (Bolonha, II Mulino), vol. LXXXIV, n° 2, 1993.

221 Adolfo Plachy, La teoria delia interpretazione, Giuffrè, Milão 1974, pág. 112.

222 Cf. o material sobre a polêmica nos Quaderni Fiorentini per la storia del pensiero giuridico contemporâneo (Florença), n° 7, 1978, cit. — Alessandra Argiroffi, Valorí, Prassí, Ermeneutica. Emilio Betti a confronto con Hartmann e Gadamer (Giappicheili, Turim 1994).

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mo, de interpretação e de positividade. Voltava-se às ques­tões do tempo de Gény223.

Neste sentido a obra de Betti, mesmo vista por certos críticos como "convencional" (o que será "convencional"?), representou um vasto esforço como levantamento das va­riáveis que suportam e alimentam a dimensão interpretati­va do pensar.

* * *

Alguma coisa, contudo, teve relação com o cansaço e a repetitividade (parcial ao menos) da pedagogia racionalista vinda do oitocentos — de Savigny à pandectística e ao nor-mativismo — no êxito do breve ensaio de Theodor Vieh­weg intitulado Topik und Jurisprudenz de 1954. Sem ver­sar expressamente a questão hermenêutica, Viehweg a atinge, ao trazer para a visão do jurista uma ênfase maior sobre o "problema", ao invés da supervalorização do "siste­ma" vinda dos tempos de Savigny (na esteira de Kant) e do racionalismo posterior à Escola Histórica. Viehweg recor­reu a fontes clássicas e revisitou a problemática da retórica, tratando-a como um componente da realidade jurídica. Um enriquecimento temático sem dúvida, mas dentro de um esquema arbitrário e de uma questionável conceituação no concernente às noções de sistema e de problema224.

223 Cf. nota 27 do capítulo anterior.

224 Theodor Viehweg, Tópica e Giurisprudenza, trad. G. Crifó, ed. Giuffrè, Milão 1962. — Sobre a tópica, Tércio S. Ferraz Júnior, Intro­dução ao Estudo do Direito (Atlas, São Paulo 1988), págs. 298 e segs. — Sobre argumentação, Plauto Faraco de Azevedo, Aplicação do direi­to e contexto social, ed. RT, São Paulo 1996, cap. 4.

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Quanto às teses de Gadamer, apesar de não virem provo-:ando a ressonância que outras têm merecido, continuam vá­lidas como reinterpretação das relações entre a filosofia e seu passado, dentro de um realismo histórico-cultural que envol­ve profundos reexames dos percursos do pensamento mo­derno, inclusive e exemplarmente os que levaram do idealis­mo romântico às construções fenomenológicas. Com sua abrangência, as revisões de Gadamer incluir am itens distin­tos mas relevantes, como o tema da "compreensão" nas ciên­cias humanas e o sentido da experiência estética-e artística (este, aliás, já tratado por Dílthey)225.

É importante assinalar, a propósito do pensamento de Gadamer, sua conexão com a teoria geral das ciências so­ciais, ciências do social e portanto do homem: inclusive no que concerne ao "compreender" em sentido néo-kantiano, e também no que tange ao sentido (as ciências sociais como esforço de reavaliar a experiência humana em torno de de­terminadas estruturas conceituais)226. Em especial sua re-

225 Hans-Georg Gadamer, Verité et Méthode, op. cit.; idem, L'art de com prendre. Hermeneutique et tradition philosophique (trad. Marianna Simon, Aubier-Montaigne, Paris 1982), com reflexões sobre herme­nêutica jurídica no cap. Ill, princ. págs. 52 e segs. — Ver também Reinhart Koselleck e Hans-Georg Gadamer, Historia y hermenêutica, trad. F. Oncina, ed. Paidós, Barcelona 1997. Muito importante Jean Grondin, L'horizon hermeneutique de le pencée contemporaine, ed. Vrin, Paris, 1993.

226 Verité et méthode, parte II. Outra perspectiva em Jürgen Haber­mas, La lógica de las ciências sociales, trad. M. Redono, Tecnos, Ma­drid 1988: neste livro se acha o texto de 1970 sobre a "pretensão de universalidade" da hermenêutica (e se acha também um Habermas ainda nao aproximado dos analíticos "haitianos" e neoliberais). — De qualquer sorte vale conferir T. Mac Carthy, "Rationality and relati­vism: Haberma's overcoming of hermeneutics", e m A A W , Habermas. Critical debates, The Mitt Press, Cambridge 1983.

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ferência ao saber histórico, abrangendo em seu espaço sa­beres "historizáveis" como a lingüística por exemplo. Aqui remeteríamos às alusões de Umberto Eco, nos itens iniciais de seu livro sobre os limites da interpretação, ao tema das relações entre autor e leitor e às questões que se entrela­çam em torno do que seria em termos específicos uma semiótica227.

Mas: ao falar de hermenêutica, cumpre sublinhar a dis­tinção ou mesmo oposição entre verdade e método, um tema com raiz parcial em Heidegger. Oposição portanto entre hermenêutica e metodologia, atribuindo àquela uma abrangência consentânea com as riquezas e precariedades do mundo moderno. Percebemos o tema desde alguns anos228.

Em parte, agregue-se, a substituição do metodologis-mo pelo ponto de vista hermenêutico (que afinal se mos­tra um aliado do historicismo) tem algo a ver com a pugna do pensar existencial (ista) contra o néo-kantismo, ou an­tes, contra o lado formal do néo-kantismo. A propósito disto, vale recordar a crítica de Ortega ao desinteresse dos neokantistas pelos temas "substanciais" (o ser, a ontolo­gia), preteridos em benefício da epistemologia: mais inte­resse pela veste do que pelo corpo, como aduz o pensador espanhol.

227 Umberto Eco, Les limites de Íinterpretation, ed. B. Grasset, 1992, págs. 23 e segs.

228 Ordem e Hermenêutica, op. cit., capítulos IX e X; Da Teologia à Metodologia, cit., passim. Cumpre lembrar que também para a teoria política, senão para o pensamento social em geral, vale a advertência sobre a diferença entre o caminho metodologista e o caminho com-preensivo-hermenêutico.

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4. Hermenêutica "jurídica" e interpretação

A construção histórica da hermenêutica jurídica se en­tende em conexão com a trajetória do saber jurídico e com a evolução dos modos assumidos pela "cultura jurídica" (neste termo juntando-se o lado saber e o lado pensar].

Com os romanos, cuja preocupação com doutrinas e métodos nunca foi muito grande, tivemos uma teorização sobre oratória e sobre advocacia desenvolvida por Cícero dentro de uma perspectiva pessoal enriquecida pela expe­riência política e literária229. O material reunido no medie­vo e nos séculos de transição à chamada modernidade in­cluiu, como se sabe, alguns problemas duradouros, por exemplo a idéia de uma "interpretação autêntica" e tam­bém a figura dos gêneros, entre os quais os comentários, as questões e outros. Problemas que chegaram aos séculos ditos modernos ao lado de listas de preceitos e de regras, de repertórios e "lugares"230.

229 Cicéron, De Vorateur, trad. E. Courband, Belles Lettres, 4a edição, Paris 1957, 3 volumes; Brutus e La perfection oratoire, Gamier, Paris 1934; De 1 'invention, trad. H. Borneque, Garnier, Paris 1932.

230 Os textos seiscentistas sobre hermenêutica, inclusive a "teoria da interpretação" de Domat, bem como os estilos e os assentos, acham-se reproduzidos no volume segundo da edição do Código Filipino, ou Or­denações do Reino de Portugal, por Cândido Mendes de Almeida (Typ. do Instituto Philomático, Rio de Janeiro 1869, 14a edição). — Para o material sobre hermenêutica disponível no século XIX, com seus ante­cedentes medievais e humanísticos, Riccardo Orestano, lntroduzione alio studio storico del diritto Romano, cit., cap. II. — Para os aspectos ideológicos dos métodos de interpretação, cf. Luiz A. Warat, Introdu­ção Geral ao Direito, ed. Fabris, Porto Alegre 1994, vol. I, caps. V e segs.

216

Os termos hermenêutica e interpretação são realmente passíveis de distinção, embora com freqüência empregados como equivalentes. Hemenêutica parece mais próximo do âmbito teórico (cultural, crítico ou "científico"); interpre­tação beira um sentido de atividade, relativa ao plano judi­cial, profissional, "aplicado". Segundo Wach — citado por Plachy — encontra-se na interpretação um fenômeno cul­tural, na hermenêutica uma doutrina científica231.

Mencionamos algo acima a evolução dos modos do pen­sar jurídico. Obviamente essa evolução ocorre dentro de marcos e contextos, em conexão inclusive com cada um dos "sistemas"; e é nela que se dá a formação de um pensar hermenêutico. No ocidente, vale assinalar, foi o surgimen­to do direito legislado que propiciou uma relação de tipo realmente "hermenêutico" entre a experiência jurídica e as conceituações que a acompanham232.

O que sedenomina direito não pode ser visto ou enten­dido apenas como ordem, conjunto de normas,ou propor­ção e medida. A ordem e a interpretação são correlatos

231 A. Plachy, La teoria delia interpretazione (op. cit.), pág. 47.

232 Nosso Legalismo e Ciência do Direito, cit., passim. — Caberiam aqui algumas coisas sobre o direito legislado e o costumeiro. Sobre costumes e conceitos afins, vale aludir ao paralelo, ocorrente entre certos povos, entre o natural e o muito antigo: para Leo Strauss, aí se acharia a própria origem da idéia de direito natural [Droit naturel et histoire, cit., cap. III). Aliás Blaise Pascal, citando a repetida frase se­gundo a qual "o costume é uma segunda natureza", comentava genial­mente: "j'ai grand peur que cette nature ne soit elle même q'une pre­mier coutume": Pensées, II, 93 (Garnier, Paris 1948, pág. 100).

217

dentro do fenômeno jurídico233. O "direito" como realida­de inclui um corpo de informações e tendências axiológicas que tornam inteligível aquele conjunto ou aquela ordem.

Corpo de informações e de conceitos que se vinculam a valores e que se expressam no processo de realização social da ordem. Nesse corpo de conceitos, que é algo dinâmico e crescentemente autocrítico, acha-se a hermenêutica. A in­terpretação, diríamos, acha-se no modo de serem utiliza­dos os preceitos que se acham na ordem, e que são enten­didos em função de uma série de decodificações. Não se concebe uma hermenêutica que não se construa em torno de uma ordem; nem se sabe de uma ordem que não requei­ra, para ser entendida, uma construção hermenêutica.

* * *

Em toda hermenêutica, e este é um dado fundamental, ocorre uma procura de significações. Estas, por sua vez, implicam expressões. Se a hermenêutica está referida a tex­tos, ela também busca, e é o mais imediato, a fixação de fontes (em parte terá vindo daí a secular associação entre a interpretação jurídica e a alusão às fontes do direito). Isto ocorre na hermenêutica de obras ou textos de caráter his-tórico-literário, na medida em que o intérprete procura marcas de origem: ou seja, fontes do conhecimento históri­co, necessárias para situar o texto e referir o seu entendi­mento. Ocorre igualmente na hermenêutica jurídica, na qual o conhecimento, além do ser conhecimento de textos — ou mesmo sem o ser, dependendo da cultura e da época — é conhecimento da regra: ao intérprete cabe conhecer a

233 Nosso "O componente hermenêutico", incluído em Estudos de teoria do Direito (Del Rey, Belo Horizonte 1994).

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regra a fim de compreender seu alcance e suas implica-734

çoes . Na doutrina ocidental contemporânea, teve lugar a

combinação entre os termos interpretação & fontes (voltare­mos a este ponto mais adiante), uma seqüência produzida pelo hábito acadêmico, porquanto o mais provável, no pla­no do real, é que a fonte exista antes do ato interpretativo: interpreta-se o direito, e de envolta com ele a conduta e o fato; e tem-se em referência as fontes, que integram o pró­prio "direito". Vimo-lo acima. De todos os modos, porém, não se teria, sem a interpretação, a noção de fonte-do direi­to235. A imagem de um direito — no caso o "objetivo" — que provém de alguma coisa, pressupõe uma concepção, ainda que elementar, das relações entre a ordem elaborada e a ordem como elaboração: uma concepção latentemente hermenêutica.

5. Aspectos filosóficos

O intérprete do direito, ao buscar significações, busca, se se refere a textos, algo que terá sido "colocado" neles com determinada intenção normativa. A elaboração do tex­to ocorreu em determinado contexto, que terá mudado ou não em relação ao contexto do intérprete: será uma espécie de pré-compreensáo, dentro do processo hermenêutico,

234 Cf. Josef Esser, Principio y norma en la elaboracián, cit., passim. Idem, Precomprensione e scelta dei método nel processo di individuaz-zione del diritto, cit., passim.

235 Para o geral, Martin Laclau, "La constitution de la noción de fuente del derecho en el pensamiento ocidental", em La historicídad del dere-cho, cit., págs. 79 e segs.

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conhecer o contexto em que se emitiu a norma, e portanto as implicações que se acham em torno de seu sentido.

Filosoficamente, toda a teorização concernente à her­menêutica deve fundar-se sobre uma visão do ser humano: o homem criador de símbolos e de opções éticas, de rotei­ros políticos e de necessidades mentais. Pedras, ruas, ar­mas, cores, tudo diferencia e demarca; em outro plano, normas e valores delimitam direitos e deveres. Estimações e decisões expressam sentidos que.se acham nas estruturas sociais e nas pautas culturais. O plano em que se situam as questões hermenêuticas corresponde basicamente ao cam­po da epistemologia; embora, como foi dito, o surgimento de uma "filosofia hermenêutica" tenha constituído, sob certo aspecto, uma contraposição ou um desvio em relação à epistemologia dos séculos XVIII e XIX. O enfoque her­menêutico, como ficou visto, envolve, quase sempre e em princípio, uma perspectiva histórica, e também problemas axiológicos. Há portanto uma solidariedade entre o modo histórico-axiológico de pensar e a preocupação hermenêu­tica: um modo que se afasta do descomprometimento ana­lítico, e que se preocupa com a realidade existencial do direito.

Ainda a propósito de interpretação, tomada agora como algo distinto de "hermenêutica" (cf. supra, n. 4), podería­mos aludir ao velho tema dos dois lados do direito: arte e ciência. No fundo um tema mal colocado, porque o direito como realidade, como experiência institucional, não se confunde com o saber que a ele se refere, nem com a "arte" com a qual certos juristas lidam com o direito. Entretanto a distinção entre arte e ciência é um dado cultural consis­tente: entre os antigos, como se sabe, a ciência e a arte andavam menos separadas do que entre os modernos. Em Roma o direito foi entendido como arte {ars boni et aequi),

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tanto quanto como saber conceituai e prática efetiva. Ca­beria, talvez, ver aí, na conjunção entre o fazer que é arte e o saber que se elaborou como ciência, uma antecipação da fórmula de Viço, historicamente tão relevante, sobre a identificação entre o conhecer e o fazer236.

Cabe acentuar, ainda, que o "momento" interpretativo envolve o problema da verdade jurídica. A hermenêutica, marcadamente a pós-iluminista , carrega quase sempre um ingrediente de relativismo, ligado ao parentesco (que aci­ma mencionamos) entre o pensar hermenêutico e o ponto de vista histórico-axiológico. A hermenêutica institucional, que ocorre no processo, é algo distinto da filosofia herme­nêutica, mas o parentesco é o mesmo: o jurista que sope­sa dados, e que se acha (qual diria Gény) entre o dado e o construído, relativiza e reconsidera opções e funda­mentações.

Na filosofia hermenêutica encontramos, de fato, uma idéia de "verdade" que se delineia em sentido diferente do tradicional, e que se situa em uma perspectiva distinta da­quela relacionada com o formalismo do método (o método e o "objeto" como dados intemporais dentro da noção posi­tivista da pesquisa científica). Na verdade o fetichismo do método sempre ocorre em ligação com o cientificismo e com a imagem de uma verdade dada e imutável. A herme­nêutica filosófica não se prende a nenhuma verdade única nem definitiva, sim à busca de significações e de circuns­tâncias (a alusão à circunstância sempre integra o pensa-

236 Cf. Emilio Betti, "I principí di Scíenza Nuova di G.B. Viço e la teoria delia interpretazione storica", em Diritto Método Ermeneutica (Giuffrê, Milão 1991), págs. 459 e segs. Algo mais, para o tema, em Giorgio Tagliacozzo (org.), Viço y Marx. Afinidades y contrastes, ed. FCE, México 1990.

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mento interpretativo). As significações, como conteúdo de expressões, ajudando a esclarecer a relação entre o homem e as coisas, entre o homem e as normas, entre normas e condutas237. O Pensamento anti-hermenêutico é herdeiro da veritas una que se encontra na Escolástica e também nos maniqueismos de todas as épocas.

Francois Gény, cuja contribuição à teoria do direito não foi devidamente reconhecida até hoje, colocou em termos incompletos mas altamente sugestivos o papel do jurista ao apontar dois elementos em seu trabalho: la donnée (o dado] e le construit, o construído, ou seja, aquilo que é pressuposto e aquilo que é resultado de uma elaboração específica238. O fundamental se acha, em verdade, no equilíbrio entre as duas partes: a constatação das circunstâncias e das normas, e o tra­tamento do problema com vistas a cada solução exigida. O jurista não pode, segundo Gény, ignorar a lei, nem contradi­tá-la, mas deve considerá-la como algo a ser completado: jus­tamente através da interpretação.

O "momento" hermenêutico é obviamente relevante, como ponto em que se delineia a realização do direito. Re-

237 Discute-se sobre os limites da "abertura" hermenêutica, principal­mente desde a imprecisa indicação de Kelsen sobre o "direito a aplicar como uma moldura dentro da qual há várias possibilidades de aplica­ção" {Teoria Pura do Direito, trad, sobre a edição de 1960 por J. Batista Machado, A. Amado, Coimbra 1962, vol. II, pág. 288). — Para o assun­to Giuseppe Zaccaria, L'arte dell'interpretazione. — Saggi sulVerme-neutica giuridica contemporânea (op. cit.], cap. 5, princ. págs. 151 e segs. — Hoje abusa-se da noção de "abertura", um tipo de abuso contra o qual já advertira F. Wieacker ao tratar das cláusulas gerais {Elprinci­pio general de buenafé, ed. Civitas, Madrid 1977, p. 30).

238 Para Gény, corresponderia à ciência o conhecimento do dado, ca­bendo à técnica cuidar do construído: Science et technique en droit prive posítif. Nouvelle contribution à la critique de la mêthode juridique (ed. Sirey, 2a tiragem, Paris 1922).

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conhecê-lo é, entretanto, diferente de atribuir-lhe um sen­tido de criatividade absoluta, como ocorre com alguns au­tores que entendem inexistente a norma até o instante em que se forma a decisão judicial. Certos teorizadores julgam suficiente, para apoiar esta concepção, distinguir entre o texto ("o texto da norma") e a norma como conteúdo apli­cável do texto. Uma distinção evidente, que entretanto não confirma aquela idéia: sem o texto da norma não temos norma, a não ser em um contexto juscostumeiro. Ninguém procuraria o "conteúdo" jurídico-normativo da norma-em um texto de culinária ou em um livro de canções.

A norma existe como dado real, o que não é afetado pelo fato de existir um texto que enuncia e um comando que é enunciado. Dizer que os conteúdos e os significados não se acham no texto da norma, como pensa Müller, im­plica uma visão bizarra e desnecessária239. Ou a norma preexiste à hermenêutica (e portanto é dada como um su­posto) ou não existe norma, e a hermenêutica se transfor­ma em uma coisa amorfa e arbitrária. A norma é um dado porque integra o direito positivo, sem o qual não se teriam sequer competências, nem jurisdições. E nela lateja uma espécie de solicitação hermenêutica, que corresponde à

239 F. Muller, Discours de laMéthocle, op. cit., págs. 168 e segs., 177 e segs. A propósito, nosso artigo "Racionalismo jurídico, crise do lega-lismo e problemática da norma", em Anuário dos Cursos de Pós Gra­duação em Direito da UFPE, Recife, n° 10, ano 2000. — Na verdade as posições deste tipo cancelam implicitamente toda possibilidade de alu­são à vigência da norma, à validade, etc. — Cabe distinguir destas con­cepções a idéia de Carlos Cossio, segundo o qual o que se interpreta não é propriamente a norma, mas a conduta, à qual o intérprete relacio­na a norma dentro de um processo de criação (El derecho en el derecho judicial, 3a edição, Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1967, cap. Ill, pág. 146).

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sua "aplicabilidade" como referência para a realização do próprio direito.

6. Alusão aos Princípios

Aqui entramos em um território eivado de dificuldades e de equívocos. Muito vizinha da temática da interpreta­ção, encontra-se sempre em aberto a problemática dos princípios, chamados às vezes (e por vezes desnecessaria­mente) "gerais".

Em grego o correspondente de princípio seria archè, e alguns dos primeiros pensadores —Anaximandro talvez o primeiro — meditaram sobre o assunto.

Para Ortega, todo conhecimento é sempre "contempla­ção de algo através de um princípio"240. Segundo Ortega haveria dois modos básicos, o antigo e o moderno (personi­ficados respectivamente em Aristóteles e Leibniz) de teo­rizar a respeito de princípios: um dogmático e despreocu­pado de demonstrações, outro desejoso de provas e verifi­cador de hipóteses241

Princípios, se falamos em um sentido "amplo" e implí­cito, encontram-se em todas as filosofias, sobretudo no sentido de "pontos de partida" ou de intuições fundamen-

240 J. Ortega y Gasset, La idea de principio y la evolución de la teoria deductiva (op. cit.). pág. 13. — Sobre os princípios em Aristóteles, cf. Alain Guy, Ortega y Gasset, critique d'Aristote, PUF, Paris 1963.

I 241 Ortega, La Idea de principio, §2 — Certos autores encontram, já em Platão, uma "validade tríplice" no plano dos princípios: a ontológi­ca, a axiológica e a gnosiológica (no caso, Giovanni Reale, Per una nuo-va interpretazione di Platone, 18a ed., Vita e pensiero, Milão 1991, págs. 248 e segs.).

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tais, e de maneira especial nos pensadores posteriores a Kant242.

No que concerne ao direito, a questão dos princípios veio ampliando-se nos decênios mais recentes. Em parte permanece algo da idéia tradicional, que via nos princípios pontos de referência que informam a ordem jurídica e ser­vem de base às normas; ou que podem ser nelas reconheci­dos, ou "extraídos" delas através de um trabalho exegéti-co243. O conceito de standard, usado por determinados au­tores franceses, se acha próximo ao primeiro caso244. Re­centemente certos movimentos têm procurado rechaçar a idéia tradicional, buscando substituí-la por formulações polêmicas ou concepções insólitas, fundindo a noção de

242 Sobre o problema do ponto de partida (ou do "começo") entre os românticos, Frank Fischbach, Du commencement en philosophie. Etude sur Hegel et Scheíling, ed. Vrin, Paris 1999.

243 Para itens genéricos e sem maior novidade, H. Hommes, "Legal order and legal principies", em Memoria del X Congreso Mundial Or­dinário de Filosofia dei derecho. (IVR), UNAM, México 1981, vol. 5. — Infelizmente um tanto desordenado o extenso texto de C. Cossio, "Los princípios generales dei derecho y la reforma dei código civil", em Anales de la Fac. de Ciências Jurídicas y Sociales de la Plata, Argenti­na, Tomo XI, ano 1940. — Sempre citável e citado, o conceito de princípios em Celso Antônio Bandeira de Mello, em Elementos de Di­reito Administrativo (2a edição, RT, São paulo 1991), como "manda­mentos nucleares".

244 Sobre standards, Marcel Stati, Le standard juridique, Paris, Du-chemin 1927 ("Le standard juridique est le procede qui prescrit au juge de prendre en consideration le type moyen de conduite sociale correc-te pour la catégorie determinée d'actes qu'il s'agit de juger", pág. 45). — Em sentido distinto, Angelo Falzea, "Gli standards valutativi e la loro aplicazione", em Riv. di Diritto Civile, Cedam, Padua, ano XXXIII, n° 1, fev, 1987. — Ver ainda J. Esser, Principio y norma, cit., pág. 123.

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princípios com a de norma, ou entendendo que princípios e normas seriam "espécies" do "gênero" regra.

Paremos um pouco para perguntar por que, no pensa­mento jurídico dos últimos decênios, começou a crescer o tema dos princípios. Em parte terá sido uma forma de abandonar o normativismo (mormente o kelseniano), em­bora "respeitando" a figura da norma ao agregar-lhe a dos princípios. Em parte, uma maneira de evitar o jusnaturalis-mo, embora conservando uma parte do "direito natural" dentro da noção de princípio. Parece próprio das épocas de relativismo, épocas hermenêuticas, o surgimento da teori­zação sobre princípios, que são e não são parte do "direito positivo", são e não são direito supralegal245.

Os impasses da crítica kantiana dificultaram o prosse­guimento da visão dos princípios formulada por Leibniz no plano da "filosofia geral". Mas na teoria do direito a reto­mada do tema veio com a fase final da teoria das normas (em etapa de esgotamento) e com a indefinição do concei­to de direito positivo.

A alusão a princípios diz respeito, na terminologia jurí­dica, a algo que se acha entre o plano dos valores e o das normas positivas. Algo, vale dizer, que parece apontar para uma suprapositividade apreensível pela visão hermenêuti­ca. Princípios não são valores, se bem contenham obvia-

245 Cf. Ordem e Hermenêutica, cit., pág. 148. Alguns autores relacio­nam com o crescimento de importância da doutrina o gradativo desta­que do papel do intérprete: v. J. Chevallier, "Les interpretes du droit", em Yves Poirmeur e outros, La doctrine juridique, PUF, Paris 1993, págs. 259 e segs.

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mente um conteúdo axiológico; os valores, por outro lado, tendem a traduzir-se em princípios. Realmente os princí­pios (repita-se) não são normas, embora sua presença den­tro da experiência jurídica conviva com a das normas, que de certo modo se "fundam" sobre eles. Há autores respei­táveis que afirmam a identidade entre princípios e normas; é o caso de Bobbio, que, como juspositivista conseqüente, inaceita a dimensão ideal dos princípios e com isto os toma {petitio principal) em sentido positivo.

Concedamos que há, neste debate, um tanto de pseu-doproblema, ou uma certa falta de empenho critico. Os princípios da razão, expressados por Leibniz no século XVII, não eram "regras"; nem as regulae de Descartes, nem as regras-do-método de Durkheim eram "normas" no sen­tido de um artigo do Código civil. Historicamente o pensa­mento por princípios é um pensamento sistematizante (vi­mos como a metafísica pós-kantiana acolheu a noção de princípio como esteio do sistema): o racionalismo jurídico é sempre um sistematismo, desde Savigny pelo menos — e é uma construção de princípios.

E aqui uma outra anotação. Paralelamente ao cresci­mento da noção de sistema, e à alusão aos princípios, veio ocorrendo no Ocidente moderno a configuração do Estudo constitucional (Estado-deDireito, a principio liberal depois social): com ela, também um racionalismo que afinal veio a regular as relações entre o Estado e os indivíduos. As refe­rências revolucionárias aos direitos foram sendo polidas e reorganizadas dentro das constituições oitocentistas, e com isso passou a integrá-las a alusão aos princípios. O raciona­lismo, que ao tempo de Hegel e de Savigny apoiou a conso­lidação do conceito do direito, vinha apoiando em outro plano o conceito dos direitos; com ambos conceitos se ligou a noção de lei, a lei que era do Estado mas também para o

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Estado (no caso do Estado de Direito), e que amparava (teoricamente) em cada indivíduo a sua porção de direitos.

* * *

Diremos, pois, que enquanto os valores são entidades metafísicas, e as normas um dado positivo (do direito posi­tivo), os princípios são uma construção hermenêutica. Os "princípios", mencionados por Leibniz e readmitidos ao fi­losofar no tempo de Hegel e de Schelímg/46, aparecem na experiência jurídica como uma coisa ambígua, com algo de citação anônima e algo de preceito ético; sua atuação se achará no ponto em que o marco teórico se acerca do traba­lho prático.

Temos com isso um esquema que muitos acharão pou­co próximo de certas novidades doutrinárias. Há cem anos surgiram novidades doutrinárias das quais hoje ninguém mais fala. O mérito dos conceitos pouco tem a ver com o fato de serem ou não "novidades", embora a sua situação histórica seja útil para compreendê-los.

Destarte mencionamos os valores, as normas e os prin­cípios com alusão a três níveis (ou planos), concernentes ao referencial metafísico, ao direito positivo e à hermenêuti­ca: os princípios, sempre reelaborados pela hermenêutica, são uma das passagens através das quais ocorre a ligação entre o direito e a ética. Certamente que os princípios se vinculam às normas: eles delineiam uma parte da conexão entre valores e normas (a relação entre norma e princípio é um correlato da relação entre ordem e hermenêutica). O princípio não participa da "positividade" da norma estatal,

246 Frank Fischbach, Du commencement enphilosophie, cit., passim.

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que integra o sistema de fontes e portanto perfaz o "orde­namento".

Certos autores vêm fazendo uma distinção entre prin­cípios "gerais" e princípios jurídicos tout court, buscando aludir com isto ao alcance menor ou menor dos mesmos, o que parece desnecessário. Todo princípio é geral (como todo valor é "fundante"): não há um princípio que se esgote no âmbito de determinada pessoa ou situação.

O direito "positivo", como conjunto de fontes (os prin­cípios não são fontes, ao-menos neste sentido) se apresenta sempre como uma variedade de níveis e de planos positi­vos247. Quanto ao argumento, que alguns esgrimem, de que o princípio é norma quando "positivado", a própria frase já indica que não: por que positivar, ou seja transformar em norma, algo que já é norma? E mais: se tal norma, na qual se acha positivado o princípio, deixa de existir, por desuso ou ab-rogação, o princípio, como princípio, segue existindo248.

* * *

Na verdade a identificação entre princípio e norma su­põe uma radical negação do sentido originário do termo princípio, oriundo de archè (ponto de partida ou funda-

247 Joachim Hruschka, La precomprensione, cit., cap. II, pág. 23. Este autor embarca, contudo, na via perigosa de negar que o intérprete pro­cure o sentido; e de afirmar que a positividade da norma ocorre apenas quando a mesma é interpretada. 248 V. entre outros Sergio Cotta, "I principi generali del diritto: consi-derazioni filosofiche", em Riv. di Diritto Civile, ano XXXVII, n° 05, 1991. — Escusado demorar diante dos autores que confundem princí­pios com normas, como é o caso de R. Alexy (citado por Vicente Bar­reto, "As relações da bioética com o biodireito", em V. Barreto e Heloí­sa Helena Barboza, Temas de Biodireito e Bioética, cit., pág. 45).

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mento), e uma desatenção ao racionalismo clássico (Des­cartes, Leibniz, Wolf), que utilizou a noção de princípio como base para a lógica e para a metodologia. Daí certos descaminhos e certas vaguedades249.

* * *

E todavia vale registrar, na noção de principio, inclusive por conta de sua origem em"archè,^ma~ duplicidade de sentidos: o de fundamento e o de origem ou ponto de par­tida. Naquele, uma acepção algo estática, neste outra mais dinâmica. Whitehead chegou perto do tema ao mencionar o problema do fato e da forma no livro Process and Reali­ty250. A imagem estrutural do direito alimentada no ociden­te moderno pela insistência sobre as formas do ser e do pensar, tem favorecido a consolidação do lado formal da noção de princípio, que entretanto pode, se retomarmos os dois lados de archè, entender-se tanto como base quanto como origem: os princípios embasam as normas e se encon-

249 Sempre válido mencionar, acerca de todos estes pontos, o livro de J. Esser, Principio y norma en la elaboration jurisprudencial del der echo privado, op. cit., evidentemente questionável em alguns pontos, mas sempre superiormente lúcido. — Para o tema recomendamos ainda Ricardo Lobo Torres, Normas de interpretação e integração do direito tributário (Rio de Janeiro, 1988), parte I, cap. Ill, item 4. — Continua­mos considerando extremamente pobres, sobretudo quanto às implica­ções filosóficas, os textos de R. Dworkin sobre princípios, inclusive sobre princípios e normas, totalmente presos, além disso, às formas da prática judicial do chamado case law: cf. Taking rights seriously (Har­vard, 1978) e também O Império do Direito, op. cit. Já citei, em outra parte, as duras críticas de P.E. Haba a este autor, 250 Proceso y realidad, trad. Rovira Armengol, ed. Losada, Buenos Aires 1956, cap. I.

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tram implicitamente na origem delas, além de servirem ao seu entendimento.

A alusão aos princípios nos levará, ainda, a um outro item, historicamente relevante, do trabalho hermenêutico. Trata-se da noção de construção. A construção se entende como criação conceituai do jurista, mencionada já em lhe-ring231 e depois em Gény: este, em Science et technique, referia-se ao construído como a parte da realidade jurídica que dependexíe um trabalho técnico252. No direito público norteamericano a construção assumiu um sentido herme­nêutico desde o famoso e sempre citado caso Marbury vs. Madison, no qual, por vez primeira, a suprema corte esta-dunidenese anulou uma lei federal com apoio em um racio­cínio judicial253.

* * *

Convirá agregar mais alguma coisa sobre a atitude do aplicador do direito enquanto intérprete. Ele se acha, sem­pre, entre a estrita alusão à norma legal, em função da se­gurança ou da "certeza", e a tentativa de flexibilizar ou alargar o seu entendimento. Tal alternativa, no fundo, cor­responde ao problema (já o mencionamos) do próprio con­ceito de direito: o direito como conjunto de componentes, o direito positivo como o direito propriamente, a positiví-

251 Sobre construção v. Alain Bernard, "Doctrine civiliste et produc­tion normative", em Yves Poirmeur e outros, La doctrine juridique, cit., págs. 127 esegs., esp. págs. 134 e 135. 252 Cf. supra, nota 25. — Cf. também Giorgio Lazzaro, Storia e teoria delia costruzione giuridica, Giappichelli, Turim 1965. 253 Hannis Taylor, The origin and growth of the american Constitution (Boston — N. York 1991), pág. 331.

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dade incluindo ou não os valores e os princípios, a idéia de medida completando ou não a de norma. Seja qual for o quadro expositivo adotado, aceitando-se ou não o "meta-positivo" (e a "construção"), a questão central seguirá sen­do o da relação entre o que estabelece a ordem e o que pode dizer a hermenêutica. Ou por outra, a margem de que o intérprete dispõe para demarcar soluções: margem es­treita e colada à letra da lei, ou folgada para comportar a presença de valores e princípios.

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Breve digressão sobre o princípio da boa fé

O principio da boa fé (em alemão Treu und Glaube) me parece figurar entre os princípios paradigmáticos, inclusive com sua trajetória encravada na privatística: a idéia de prin­cípios sempre foi principalmente uma concepção de direi­to privado. A voga do "principiologismo" que hoje se alas­tra, com motivação ideológica e de modo especial no direi­to público, parece não ter envolvido grandemente o direito civil, salvo nos surtos de "renovação" da civilística (decodi-ficação. direito civil constitucional, etc.}. O princípio da boa fé, com sua história ligada à da própria hermenêutica, carrega sempre consigo (são duas notas relevantes) um conteúdo ético.254

254 Valorizo aqui este conteúdo, em verdade essencial, apesar da am­bígua alusão de Esser às "irrupções de critérios éticos de validez jurídica no ordenamento do direito" (Principio y norma. op. cit., pág. 80), ao parecer um excesso de objetivismo. Também Franz Wieacker, e de modo igualmente pouco claro, associou a "agonia" do princípio da boa fé à "irrupção do fator ético": cf. o Prólogo de L. Diez-Picazo a El principio general de la buenafê, op. cit. pág, 15.

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Geralmente se fala em dois aspectos da boa fé, o subje­tivo e o objetivo255: dois lados, certamente, da própna rela­ção obrigacional. A propósito da objetividade dessa relação, nocontrato, pode-se lembrar que uma das formas encontra­das no século XIX para afirmá-la foi entendê-lo, ao contra­to, como uma instituição, não mera "invenção do indivi­dualismo jurídico": as expressões estão em Georges Davy, no final do livro La foi jurée. A objetividade como algo próximo à forma e à certeza, tema que já estava em lhering, como estava o tema das relações entre religião e direito256.

A idéia de boa fé, no espírito das pessoas em geral, tem clara ligação com a pureza da intenção. Nas origens, porém, e através da história, a noção de boa fé aparece vinculada a ações de espécies diversas257.

A idéia, por outro lado, parece vincular-se a uma raiz religiosa. Assim, para Okko Behrends, haveria "fundamen­tos cristãos" na própria teoria da vontade integrante do moderno direito contratual inclusive com traços paulino-agostinianos no pensamento dos glosadores sobre os con­tratos258. Em sentido oposto, porém, ocorre a opinião de

255 Antonio M. Menezes Cordeiro. Da Boa Fé no direito Civil (Livra­ria Almedina, Coimbra 1997), pág. 43. 256 R. lhering, L'Esprit du Droit Romain (trad. Meulenaere. Torno I, ed. Maresq, Paris 1886), Livro I, § 8, pág. 99, opinando que em Roma, ao contrario da regra geral, o direito teria precedido a religião. Opinião algo equivocada, motivada pelo espírito de sistema e por uma incorreta visão do processo histórico. 257 Cf. Maxime Lemosse, "L'aspect primitif de la fides", em Studi in onore di Pietro de Francisci (Giuffré, Milão 1956), volume II, págs. 41 e segs. — E também o monumental Menezes Cordeiro. Da boa fé no direito civil, cit., págs. 87 e segs. 258 O Behrends, "Treu und Glauben. Zu den christlichen Grundlagen der Willenstheorie in heutigen Vertragsrecht", em L. Lombardi e Ger-

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Amélia Castresana, apesar de aludir à proximidade, em Sé­neca, entre fides e pietas259

Não faltam, porém, referências à necessidade de estu­dar a fides em conexão com contextos culturais260. Ou seja: sob uma perspectiva histórico-axiológica, o que merece ser sublinhado.

hard Dilcher, o,rgs., Cristianesimo, se colar izzazione e díritto moderno (ed. Quaderni Fiorentini, Giuffré, Milão 1981), tomo II, págs. 957 e segs., esp pág. 974.

259 A. Castresana. Fides, bona fides. Un coneepto para la creación dei derecho (ed. Tecnos, Madrid 1991), passim. — Um estudo das origens romanas {fides sacra nas Doze Tábuas), no notável livro de Judith Mar­tins — Costa, A Boa Fé no direito privado. Ed. RT, São Paulo, 1999, págs. 111 e segs.

260 A. Menezes Cordeiro, A Boa Fé. cít., passim, por exemplo págs. 18,41,330.

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Capítulo IV

Fontes. Novamente hermenêutica e princípios*

Sumário: Direito, ordem, hermenêutica. Fontes e interpretação. O conceito de fon­tes como produto histórico. Sobre os prin­cípios.

Chama-se direito a uma forma institucional que tem sido conceituada como ordem, como norma, como condu­ta, como medida, como conjunto de elementos261. Em

261 Com frequência se esquece que Cossio, além de enfatizar o com­ponente conduta, salienta sempre o momento judicial do direito: "mo­mento en que ei derecho ya no es una mera posibilidad, sino una reali-dad humana, que es como sale de manos dei juez" (El derecho en ei derecho judicial, op. cit., p. 158, grifo nosso). * Este capítulo, ora reescrito como os demais, reproduzia, na primei­ra edição, o texto da comunicação apresentada ao XVIII Congresso mundial da Associação Internacional de Filosofia jurídica e social (IVR), realizado em Buenos Aires e La Plata entre 10 e 15 de agosto de 1997.

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princípio e como fenômeno generalizado, o direito organiza relações e resolve conflitos: nisso se envolvem referências axiológicas, normas, funções e órgãos, situações e decisões. Na noção de direito, tal como chegou até nossos dias, en­contra-se a permanência de um componente teológico (além do ético-politico), e também a constante reelabora­ção das conceituações acadêmicas, que incidem sobre a configuração de uma praxis específica.

Por outro lado, importa dizer que o direito existe como uma ordenaçãode condutas que confere previsibilidade a certos atos. Uma ordenação que organiza, impõe soluções (facultando-as) a partir de normas e dentro de perspectivas hermenêuticas. A estrutura genérica, que corresponde a normas e valores, e a busca de soluções, que lida com atos e significados, nos remetem a dois elementos (ou momen­tos) complementares: a ordem que envolve a positividade e com ela as "fontes" do direito, e a hermenêutica, que con­cerne à compreensão da ordem e à tarefa de fazer inteligí­vel a sua aplicação.

O direito, portanto, pode ser conceituado de diferentes modos e em diferentes termos, aludindo-se à norma, à or­dem, à conduta, ao reparto, à decisão, à medida. Em torno de qualquer desses dados se pode sintetizar a sua figura, resguardando sua complexidade ou tentando reduzi-la a um daqueles dados. Será sempre preciso, porém, ter em mente as realidades humanas contidas na experiência jurí­dica, desde a criação das formas normativas até a efetiva regulação dos "casos" e das situações. Na imagem da expe­riência jurídica, vista como um todo, cabe incluir o compo­nente hermenêutico, que influi sobre a compreensão da­quelas realidades e da experiência mesma, com seus diver­sos momentos.

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* * *

No pensamento jurídico contemporâneo, o tema das fontes e o da interpretação vem sendo tratados correlata-mente. A doutrina, ao reunir os dois temas, expressa uma perspectiva metodológica correspondente à de Francois Gény, no livro sobre Métodos de Interpretação e Fontes.

Talvez a seqüência lógica devesse ser, entretanto, esta: fontes e interpretação. Primeiro a presença das normas, com suas fontes ou fontes elas mesmas (dependendo da acepção do termo "fontes"); em seguida o trabalho de ava­liar e aplicar. Foi uma necessidade da teoria, em finais do século XIX, ao receber o prestigioso mas não suficiente­mente repensado esquema de Savigny sobre interpretação (e com ele o árduo trabalho dos exegetistas e dos pandec-tistas), foi aquela necessidade que colocou em pauta pri­meiro a questão da interpretação — ladeada pela dos méto­dos — e depois a das fontes. Esta em função daquela. Mal se apercebiam, os juristas do tempo de Saleilles e de Gény, que se antecipavam, ao tomar como ponto departida a pro­blemática do interpretar, ao pensamento filosófico-herme-nêutico que nos meados do novecentos colocaria os temas hermenêuticos como base para a ordenação (vai aqui de propósito uma alusão kantiana) dos dados "positivos"262

O tópico fontes veio recebendo, desde o século XIX, a pressão de um dualismo, convivendo, por um lado, com a visão histórico-socíológica (ênfase sobre a ligação do direito com os contextos sociais) e por outro com a tendência jus-positivista (alusão às formas do direito positivo como refe­rências fundamentais, senão suficientes, para o conheci­mento das realidades jurídicas).

262 Nosso "O Componente hermenêutico", cit., passim.

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Esta dualidade de prismas foi colocada sobre uma no­ção em si mesma ambígua, a de fonte, em sua raiz latina — fons et origo — indicando o local do surgimento de uma coisa, ou a causa de sua existência.

Uma indagação histórico-filosófica mais exigente nos levaria ao tema dos inícios, tão presente e tão pulsante no pensamento grego, desde que os filósofos começaram a or­ganizar seus problemas, abandonando mas não tanto as nar­rativas mitológicas e literárias. As coisas se complicaram um pouco quando, posteriormente, a noção de "fonte his­tórica" (como fonte-do-conhecimento) se sobrepôs à de fonte do direito: inclusive nos estudos sobre direito antigo e medieval. O cristianismo, ao tempo das sumas, afirmou a lei divina como fonte de todo o direito, mas o mundo feu­dal tratava o costume como fonte; o legalismo, em parte nascido de Rousseau, consubstanciado nas constituições "burguesas" (e nos códigos], envolveu a crença no valor essencial da regra escrita, ou seja, a lei como fonte. Fonte no sentido de forma-de-expressão.

A construção da idéia de "fontes do direito" aparece portanto — sem que se descarte suas antecipações romanas — como um processo ocorrente na cultura contemporânea. O professor Martin Laclau, em profundo estudo a respeito, registra que o conceito de fonte, ao consolidar-se na teolo­gia e nas ciências humanas, conservou sua duplicidade de acepções, significando origem tanto quanto fundamento263. Uma bifurcação etimológica comparável, note-se, à ocorri-

263 "La constitución de la noción de fuente e t c " , em La historicidad dei derecho, op. cit., pág. 80.

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da com a idéia de princípio ao derivar de archè: princípio e fonte, referências hermenêuticas ambíguas e indispensá­veis.

Caberia, aqui, reconsiderar os bafisamentos. Na siste­mática romana o tema das fontes teve um sentido pedagó­gico (em Gaio por exemplo), que se prolongou pelos sécu­los seguintes como um legado, permanecendo através de contextos sempre refeitos. O tema chegou aos clássicos protomodernos do século XVIII e aos integrantes da Escola Histórica: o Sistema de Savigny trata das fontes na indaga­ção sobre a criação do direito (§ VII) e no texto sobre a legislação (§ XV), sempre em ligação com a idéia de povo e com a da positividade do direito. A menção à Escola Histó­rica significa obviamente uma referência ao clima intelec­tual do romantismo alemão, envolvendo o interesse pelo espírito do povo [Volksgeist) e pela origem das instituições, que na França constituiu um viés distinto do classicismo racionalista, presente exemplarmente na Escola de Exe­gese264.

A visão romântica do direito, expressando a alusão a um fundamento social, empiricamente constatável mas tam­bém filosoficamente expressável (diferindo da ótica clássi­ca buscadora de fundamentos ideais), nos leva a indagar se a noção de fontes não teria sido algo peculiar ao romantis­mo. Fontes no sentido histórico-evolutivo, como "gênese" dos institutos; também no sentido de autoridade, a autori­dade que "gera" as normas. Um desvio semântico amarrou ao termo o sentido de forma (de expressão) do direito. A

264 Para uma expressiva visão das diversas correntes do pensamento jurídico francês aos inícios do século XIX, Julien Bonnecase, La pensée juridique française. de 1804 à Vheure presente, 2 volumes, ed. Dei-mas, Bordeaux 1933.

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mentalidade romântica, inquieta e enfática, buscou porém a legitimidade da ordem jurídica em algo que, como fonte, se achasse para além da lei: nessa visão se combinava a permanência da forma legal com a dimensão doutrinária da experiência jurídica. Uma fórmula potencialmente herme­nêutica.

Com isso o pensamento jurídico ocidental, a partir da famosa polêmica sobre as codificações, e do romântico ape­lo ao espírito do povo (logo corrigido com a rigorosa disci­plina conceituai oitocentista), tem oscilado entre um pen­dor racional-formal-cientificista, e um pendor menos for­mal, vizinho dos enfoques históricos e axiológicos. A linha formalizante tende a ver as fontes dentro dos marcos for­mais do sistema-de- normas, a partir da figura central da lei e em conformidade com os cânones da "dogmática" (que são, diga-se de passagem, importantes). A linha informali-zante relaciona a idéia de fontes com os elementos positi­vos da ordem, mas acentuando ao lado destes os compo­nentes sociais e culturais que interferem no entendimento da aplicabilidade do direito. Mais a do direito do que mes­mo a da lei .

O que se acha de válido dentro desta dualidade de li­nhas é o fato de ela revelar o caráter relativo dos conceitos gerais que aludem ao direito. A maior ou menor "formali­dade", presente nessa ou naquela teoria, tem a ver com suas bases epistemológicas, mas também com a parte de axiologia (e de hermenêutica) que ela possui. A ordem ju­rídica, e a frase vale para as leis de Esnuna tanto quanto para o BGB alemão de 1901, não será plenamente entendi­da, por parte de uma visão crítica, sem a inteligibilidade que lhe é conferida pela hermenêutica que a ela se refere. Temos insistindo sobre isto. A própria descoberta de ele­mentos axiológicos dentro do direito é uma descoberta

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hermenêutica; do mesmo modo que a atribuição, ao direi­to, de elementos distintos da norma positiva, como condu­ta, decisão, medida. Do mesmo modo que a atribuição, sempre esclarecedora e sempre ambígua, de princípios265.

Realmente o conceito de fontes, sob um ponto de mira hermenêutico, se enriquece quando articulado com o de princípio. Em ambos lateja a duplicidade de sentidos de archè, fundamento e origem. O conceito de fontes, em sua obviedade e em sua imprecisão, recebe o conceito de prin­cípio na acepção de proposição inspiradora da norma (pro­posição, tanto quanto princípio, correspondendo ao alemão Satz); recebe-o também no sentido de preceito "dedutível" da norma, desentranhado dela pelo trabalho hermenêutico.

Conforme vimos, os princípios supõem e expressam valores. As normas supõem princípios, que se acham em sua origem ou permanecem "dentro" delas ao acesso da hermenêutica.

Por outro lado os princípios são variáveis históricas re­lacionadas a contextos culturais (este um aspecto óbvio que certos autores se mostram incapazes de ver). Eles cor­respondem a idéias e crenças próprias de determinadas épocas e determinados meios. No pensamento ocidental moderno, sobretudo a partir de Leibniz — como o demons­trou Ortega ou em seu notável e pouco lido livro a respei­to266—, os princípios passaram a integrar o pensamento fi­losófico e também o cientifico. Vimo-lo no capítulo ante­rior. As pretensões do racionalismo jurídico relacionaram-se com os princípios, e com a crise do racinalismo o apelo

265 Novamente fazemos alusão ao livro de Esser, base principal de nossa visão dos princípios. 266 La idea de princípio en Leibniz y la evolution de la teoria deducti-va, op. cit.

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aos princípios tomou novo alento: justo em função da rele­vância do componente hermenêutico267.

Destarte insistimos em que a relação entre o conceito de fontes e o de interpretação provém de uma perspectiva hermenêutica, correlativa a uma noção de direito delineada com referência a um dualismo: um sistema de normas e um conjunto de atividades intelectivas. As fontes não são uma construção hermenêutica, mas têm de ser algo hermeneu-ticamente inteligível dentro da experiência jurídica. Algo que se define pelo prisma hermenêutico.

Princípios: basicamente o repertório de princípios que constam do saber jurídico corresponde ao trabalho inter­pretativo. Historicamente, é a evolução das relações entre a ordem jurídica e a hermenêutica que lhe corresponde, que condiciona o recurso aos princípios, que varia confor­me épocas e contextos.

Recife, dezembro de 2002.

267 De certa forma pode-se dizer que, assim como a idéia de legalida­de assumiu e incorporou as idéias anteriores (valorativas e políticas) sobre legitimidade, a noção de princípios (como que retornando ao plano axiológico] veio a amparar e enriquecer a de legalidade. Daí as referências ao "princípio" de legalidade, ou ao do "due process of law". Daí o cunho de valor que aparece nas posições "principiológicas"; mas daí, também, que os princípios não possam separar-se da norma positi­va, nem tampouco confundir-se com ela. Aí ocorre uma cumulativida-de histórica. Por outro lado, a integração do elemento formal do jurídi­co com o axiológico dá-se sob certo ângulo na própria conjunção do direito com a ética; e dá-se, também, na diversificada presença dos princípios como referentes hermenêuticos dentro da experiência jurí­dica. Daí que tenhamos colocado os princípios em um plano que "de­pende" dos valores e que medeia entre estes e a norma: a norma pro­priamente dita, positiva, que faz parte das "fontes" do direito.

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