os tótens-móbilis, de ione saldanha

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ANAIS III FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2005 OS TOTENS-MÓBILIS DE IONE SALDANHA Maria José Justino * RESUMO: Ione Saldanha é uma legítima herdeira de Matisse, Mondrian e Klee, particularmente em suas obras mais maduras, Ripas e Bambus, ao mesmo tempo em que mantém um parentesco com os rituais tribais brasileiros. Os Bambus privilegiam o lúdico ao provocarem uma verdadeira orquestração de formas e cores. O espectador pode ter efetivamente uma experiência estética, interagindo com a obra, da mesma forma como se comporta diante de uma escultura viva. Desaparece o avesso. Tudo é frente, tudo é presente. Da imbricação dos retângulos amolecidos pelas curvas naturais do próprio bambu propenso, por natureza, à irregularidade, nascem a polirritmia e novas relações. Entrelaçamento do olho que vê com o olho que sente. Os Bambus alcançam aquela dimensão além do designável. São eles uma linguagem nova no interior da estética brasileira. Ione Saldanha é uma legítima herdeira de Matisse, Mondrian e Klee, particularmente em suas obras mais maduras, Ripas e Bambus, ao mesmo tempo em que mantém um parentesco com os rituais tribais brasileiros. Acerca destes, Ione afirma: "se tem, aparece sem querer. Surgiu muito mais de um trajeto próprio. Agora, se eu tenho dentro de mim uma atração por certas formas e se estas formas são formas tribais, isso pode ter acontecido". 1 Mário Pedrosa já tem, em 1968, uma leitura dos Bambus que, além de muito poética, dirige-se para uma interpretação à qual eu me somo, embora emprestando valoração diferente. Diz o crítico que os Bambus ressoam de espaço em espaço como um ambiente de festa de roça em que as bandeirinhas de papel são substituídas por essas ripas e vigas […]. Ela acrescenta qualquer coisa de tribal quando, contemplativa, pára sob os bambuzais e de lá arranca, como flautas rudes ou velhos tubos de soprar, bambus em várias espessuras e os pinta em matéria tosca como têmpera, respeitando seus gomos canhestramente. Ei-los * Doutora em Estética e Ciências das Artes pela Universidade de Paris (VIII). Foi Professora e Pró-Reitora de Extensão da Universidade Federal do Paraná. Atualmente, é membro do corpo docente da Escola de Música e Belas Artes do Paraná e crítica de arte. Tem inúmeros livros e artigos publicados no Brasil e no exterior, especialmente sobre a arte brasileira e paranaense. 1 SALDANHA, Ione. Entrevista concedida a Maria José Justino. Rio de Janeiro, 16 e 20 set. 1989. 198

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Page 1: Os Tótens-Móbilis, de Ione Saldanha

ANAISIII FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTEEscola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2005

OS TOTENS-MÓBILIS DE IONE SALDANHAMaria José Justino*

RESUMO: Ione Saldanha é uma legítima herdeira de Matisse, Mondrian e Klee,

particularmente em suas obras mais maduras, Ripas e Bambus, ao mesmo tempo em que

mantém um parentesco com os rituais tribais brasileiros. Os Bambus privilegiam o lúdico ao

provocarem uma verdadeira orquestração de formas e cores. O espectador pode ter

efetivamente uma experiência estética, interagindo com a obra, da mesma forma como se

comporta diante de uma escultura viva. Desaparece o avesso. Tudo é frente, tudo é presente.

Da imbricação dos retângulos amolecidos pelas curvas naturais do próprio bambu propenso,

por natureza, à irregularidade, nascem a polirritmia e novas relações. Entrelaçamento do olho

que vê com o olho que sente. Os Bambus alcançam aquela dimensão além do designável. São

eles uma linguagem nova no interior da estética brasileira.

Ione Saldanha é uma legítima herdeira de Matisse, Mondrian e Klee, particularmente

em suas obras mais maduras, Ripas e Bambus, ao mesmo tempo em que mantém um

parentesco com os rituais tribais brasileiros. Acerca destes, Ione afirma: "se tem, aparece sem

querer. Surgiu muito mais de um trajeto próprio. Agora, se eu tenho dentro de mim uma atração

por certas formas e se estas formas são formas tribais, isso pode ter acontecido".1 Mário

Pedrosa já tem, em 1968, uma leitura dos Bambus que, além de muito poética, dirige-se para

uma interpretação à qual eu me somo, embora emprestando valoração diferente. Diz o crítico

que os Bambus

ressoam de espaço em espaço como um ambiente de festa de roça em que as bandeirinhas de papel são substituídas por essas ripas e vigas […]. Ela acrescenta qualquer coisa de tribal quando, contemplativa, pára sob os bambuzais e de lá arranca, como flautas rudes ou velhos tubos de soprar, bambus em várias espessuras e os pinta em matéria tosca como têmpera, respeitando seus gomos canhestramente. Ei-los

* Doutora em Estética e Ciências das Artes pela Universidade de Paris (VIII). Foi Professora e Pró-Reitora de Extensão da Universidade Federal do Paraná. Atualmente, é membro do corpo docente da Escola de Música e Belas Artes do Paraná e crítica de arte. Tem inúmeros livros e artigos publicados no Brasil e no exterior, especialmente sobre a arte brasileira e paranaense.1 SALDANHA, Ione. Entrevista concedida a Maria José Justino. Rio de Janeiro, 16 e 20 set. 1989.

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evocados como mastros mágicos, instrumentos rituais de alguma festa de iniciação africana. Ione, como que por uma volta súbita ao mundo de infância, descobre, com toda a sua civilização atual tão requintada, que veio também de antigas tribos silvestres.2

Sem dúvida, formas primitivas fazem parte do imaginário de Ione, por ser essa a sua

herança cultural. Todavia, há um caminho na obra da artista que aponta muito mais para a

linguagem elaborada de Klee e de Mondrian do que propriamente para o resgate da

primitividade. Mas não me passa pela cabeça negar um trabalho de abstração existente na

própria arte indígena ou mesmo na arte popular brasileira, como, por exemplo, a assimetria

sugerida nas colchas de retalhos do nordeste brasileiro (críticos como Clarival Valadares e

Antonio Bento têm se dedicado a esses estudos), nem tampouco afirmar que Ione esteja imune

a esse universo. Quero tão somente afirmar que considero mais marcantes aqueles artistas do

que este contexto, visto encontrar um construtivismo constante em todo o seu trajeto. Essa

definição de rumos ocorre no período de 1963 a 1967, momento em que a artista ganha uma

intimidade com a cor, atingindo a cor-corpo diferenciada da cor-matéria. Essa cor-corpo, junto

aos elementos soltos das tiras-ripas e aos volumes-bambus, levou-a a uma linguagem

inovadora na arte brasileira. Já com as Ripas (Fig. 1), a artista abandonara a

bidimensionalidade, fazendo a pintura saltar da parede para atingir o espaço, somando-se ao

experimentalismo internacional. Desenvolve, então, uma busca pela simplicidade, seduzida

pelos échiquiers de Paul Klee e pela síntese de Mondrian na substituição do equilíbrio estático

pelo equilíbrio dinâmico. Com os Bambus, ela atinge uma liberdade maior, mas é dentro de

uma construção rigorosa que desenvolve esses princípios.

Figura 1: Ripas. Ione Saldanha, 1967.

Fonte: Catálogo Resumo de 45 anos de Pintura. Galeria Paulo Klabin/Saramenha. Rio de Janeiro: 12 set.-1 out. 1988.

2 PEDROSA, Mário. In: Catálogo Klabin. Rio de Janeiro: 1988.

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O que são as Ripas? Fisicamente, são sarrafos pintados em um dos lados, que

lembram as lanças de batalha de Paolo Ucello e mesmo os paus de enfeite das cavalhadas, ou

ainda, como observou A. Bento, as flechas de nossos silvícolas.3 As cavalhadas, mistura de

épico e de fantasia, eram rituais de origem moura adotados pelos ibéricos, que os

transplantaram para a América. Aí se difundiram consideravelmente, assumindo feições

regionais, como, por exemplo, no sul do Brasil, nas festas gaúchas (Ione, convém lembrar, é

gaúcha). Jayme Maurício chega a ver até uma influência chinesa na concepção estática que

Ione mantém nas ripas.4 Eu acrescentaria ainda o nosso universo barroco, mas, mesmo com

todas essas referências, continuo convencida de que o trajeto de Ione, para chegar às Ripas,

deve-se mais à herança dos abstratos. Claro que há um imaginário em que a artista se nutre e

nele certamente estão presentes a cultura popular, as cavalhadas, bem como lembranças das

verticais das espingardas da coleção de seu pai, que via extasiada quando criança. Mas creio

que, nesse imaginário, a abstração e os tons puros dos primitivos renascentistas e de Matisse

são presenças mais fortes.

Explicando como se deu o trajeto das Ripas aos Bambus, Ione admite ter sido um

achado espontâneo, embora eu acredite presente uma antecipação das Ripas já em 1956, em

Casas Compridas, Cidade Gente e Abstrato. Tais obras ainda estavam limitadas à tela, à

moldura, e ansiavam por outro espaço, obtido pelas Ripas. Ione concorda com essa minha

interpretação,5 mas afirma que na ocasião não havia se dado conta e que foi ocasional:

Na hora eu não sabia… Peguei uma ripinha e pintei. Durante oito meses pintei cada dia uma ripa; enfim, eu pensei: eu quero fazer isso em volume. Peguei um caibro… Quando eu pintar aqui (Ione, em seu ateliê, aponta as cores numa ripa), reto, a perspectiva vai criar uma inclinada. Eu não quero, eu quero uma coisa que não crie uma inclinada… Eu ando muito no mato e, de repente, decidi pintar bambus.6

As Ripas, mesmo rompendo com a moldura, guardam em si a intenção da

bidimensionalidade, isto é, invertem a sensação: é a terceira dimensão, agora real, a dar a

ilusão da bidimensionalidade. Ione quis sair para o espaço, mas ainda se ateve

psicologicamente às duas dimensões – pelo menos é essa a sensação experimentada pelo

espectador. Não obstante, se o espectador insistir, vai verificar que o “atrás” das Ripas é o

mesmo do quadro. Não há, a rigor, uma mudança de suporte, pelo menos na questão

conceitual. O espectador, desse modo, é obrigado a ver o trabalho de frente, pois as ripas são

pintadas só numa face.

Ione confessa que chegou a uma insatisfação quanto aos limites das Ripas, momento

em que sentiu necessidade do volume. Diz ela: “se eu pintasse essa ripinha de madeira, que é

estreita, mas tem sempre espessura, se eu a pintasse do lado e também atrás, eu criaria um

3 BENTO, Antonio. Catálogo Galeria IAP. Rio de Janeiro, 1968.4 SALDANHA, Ione. O Globo, Rio de Janeiro, 6 jun. 1977.5 SALDANHA, 1977. Op. cit.6 SALDANHA. 1989. Entrevista cit.

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movimento de vaivém aparente".7 As Ripas não deixam de ser um salto, embora ainda tímido,

para fora da tela, mas ainda amarrado, que só se desnodoará nos Bambus, em que Ione

alcança o movimento e a terceira dimensão. Aprofundando a pesquisa das Ripas, chega aos

Bambus. O bambu como suporte, em estado natural, é uma matéria extremamente viva, que

interfere na produção da artista. Ele impõe vontades: é preciso domá-lo. Trata-se de um

elemento essencialmente simples, sem ornamentos, que enseja o despojamento que Ione

buscou o tempo todo e que foi construindo gradativamente, dando vazão às forças poéticas

imaginativas a que se propunha.

A preparação dos bambus exige certa técnica: ela os arranca do solo – por sinal, esse

local fica infértil – e os prepara com carinho, como uma forma de compensar a natureza pelo

desfalque. Dá-lhes uma nova existência: da morte do bambu nasce a vida dos Bambus: "É

preciso pensar que o bambu não é o bambu, é uma secção".8 Corta-os e seca-os através da

penetração de uma barra de ferro aquecida, deixando-os descansar para impedir as

rachaduras. Eles repousam adormecidos durante um ano. Depois que secam, aplica-lhes

várias camadas de base. Então, com o campo limpo, inicia o trabalho no resgate das formas

abstratas. O próprio material sugere curvas, um movimento natural contido em seus gomos.

Embora Ione encontre na natureza uma espécie de alimento para as suas investigações, a

natureza nunca foi para essa artista um fim em si mesmo. Ela a desnaturaliza por meio da cor.

Com os Bambus, Ione questiona o seu antigo sistema ainda preso à representação e

alcança uma linguagem nova, afastando o acessório para se concentrar exclusivamente no

essencial. Os Bambus são signos múltiplos, uma constelação de retângulos irregulares que

multiplicam os poderes da forma na alternância das cores, alargando os sentidos. Isso é

possível na medida em que a artista elabora na esfera da abstração, libertando-se de qualquer

relação, representativa ou simbólica. As tramas geométricas são suavizadas pela cor, a cor-

corpo ou cor orgânica. Na fala da artista: "Pensei no corpo da cor, como se ela tivesse carne".9

Ela dará o ritmo. É no jogo entre a materialidade estática – bambu natureza – e a

espiritualidade dinâmica – cores, verticais e horizontais – que se dá o movimento. Não existem

nos Bambus zonas neutras. Na estruturação plástica de alguns trabalhos, Ione utiliza os

contrastes tanto de valores como de cores, mas na maior parte das obras se entrega às

nuanças.

A abstração presente em sua obra é fruto de elaboração, resultado do olhar cultivado

na tradição abstrata. Essa empatia a impulsiona a se apropriar da geometrização na natureza.

Embora Ione tenha recorrido ao acaso e buscado a espontaneidade, não se pode esquecer

que "a espontaneidade não pode tudo produzir porque ela repousa pesadamente sobre a

memória [...] e o que posso considerar uma solução original, um achado espontâneo, pode

7 SALDANHA, 1977. Op. cit.8 SALDANHA. 1989. Entrevista cit.9 SALDANHA, Ione. Anotações da Artista, s. d. Arquivo pessoal da artista.

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apenas ser um lance jogado pela memória".10 Os Bambus alcançam o ambiental, criando uma

certa tensão que exige cumplicidade do espectador. Com eles, a artista ultrapassa a

pintura/escultura. Vejo aí, aproximando-me a outros críticos, versões de Klee e de Mondrian.

Mas a artista não os copia, inova. Ione multiplica de forma pessoal as dimensões exploradas

por eles, dando vazão à pesquisa desses pintores, os quais, se obedientes às próprias teorias,

teriam extrapolado a tela (no caso de Mondrian, a Minimal Art é uma vertente das

possibilidades de sua pesquisa). Mas Ione não busca a abstração radical. Na artista, a

subjetividade da cor não se deixa objetivar.

Os Bambus estabelecem um ritmo de relações mútuas obtidas no espaço

temporalizado. Ione atenua a rigidez das pesquisas de Mondrian quanto aos planos e a linha

reta, no resgate da curva, presente na alma brasileira e visível em trabalhos anteriores da

artista. A curva é a sua heresia. Assume francamente uma concepção mais mural (aplats) da

cor, ganhando na transparência mais espiritualidade: "Eu continuei pintando a óleo e depois

comecei a pintar com tinta acrílica. E eu senti que, enquanto a tinta a óleo permite e pede

grossuras e espessuras, a tinta acrílica me deu vontade de pintar leve. Não que eu tivesse

decidido parecer com afresco, quando vi, estava pintando com as levezas do afresco".11

Interessa-lhe trabalhar atendo-se à reciprocidade: uma cor não existe senão em relação a outra

cor, um quadrado a outro quadrado etc. Dessas permutações entre cores e formas é que

surgem as estruturas.

Os ensinamentos de Mondrian e Klee estão presentes nos Bambus, mas é este o

momento em que Ione se liberta definitivamente das influências, construindo a sua versão

pessoal das “leituras” acumuladas. Os Bambus são, ao mesmo tempo, uma retomada e uma

superação das Ripas, embora, nestas últimas, o imaginário de infância seja talvez mais forte.

Sobre os Bambus, diz a artista: "É um prosseguimento de minha evolução artística. Em minha

última exposição de pintura, em 1965, na Petite Galerie, já estava dividindo o quadro com tiras

verticais. Aos poucos fui partindo para o espaço".12

Mesmo com influências, Ione sempre exigiu a solidão. Recolhe-se em si mesma para

meditar sobre os quadros “sagrados” que viu, absorvendo deles apenas o corpo fundamental.

Nesse recolhimento, ela encontra a cor como um músico chega ao som. E como a música, a

cor não precisa significar nada. Algo assim ocorre com os Bambus, que eliminam a

profundidade, o “atrás”, para, na estrutura de superfície, revelarem-se como presença. A cor

vale por si só, não mais como expressão ou simbolismo. Vejo, neles, a música de Debussy,

fundamentalmente naqueles em que Ione trabalha tom sobre tom, nuanças de azuis e violetas,

nos quais ela suaviza as tonalidades, recorrendo muito mais à troca de tons, que empresta

fluidez, do que à tradicional escala valorativa de cores. Nesse momento, a relação em Ione é

10 BOULEZ, P. Le Pays Fertile de Paul Klee. Paris: Gallimard, 1989. p. 123.11 SALDANHA. 1989. Entrevista cit.12 SALDANHA, Ione. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1969.

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inevitavelmente mais temporal do que espacial. Mais texturas – na medida em que vários tons

aparecem ao mesmo tempo – do que dissonâncias. Os elementos – retângulos – são

fragmentos que dançam ante nossa percepção.

A cor continua a ser a sua necessidade vital: "A cor para mim tem vibração muito maior

do que o som, muito maior do que a palavra. A cor para mim tem uma força total. Um vermelho

para mim é sangue, um amarelo é luz, sol… Não apenas na figuração, mas no pensamento".13

Tal declaração lembra de perto as confissões de Cézanne de que a cor é biológica, ou a de

Klee: "A cor me possui. Não tenho necessidade de procurar apanhá-la. Ela me possui, eu o sei.

Eis o sentido do momento feliz: a cor e eu somos um".14 Mais próxima da música do que da

escultura ou da arquitetura, Ione faz uma exploração das gamas de cores, da cor matizada,

como elemento estrutural, afastando-se da simbologia. Em suas anotações, Ione parece querer

salvar uma certa simbologia quando fala das cores. Nesse aspecto, acredito haver um desnível

entre pessoa e obra.

A estrutura natural do bambu já se presta à abstração, ou seja, há uma coincidência

entre o trajeto anterior de Ione, claramente inclinado para a economia da forma, e o material

que ora adota. Confessa a artista: "Não simpatizo com materiais sem vida, que não evoluem.

Meus materiais são a madeira e a pedra, que são vivas, e eu me sinto vivendo com elas".15 A

visibilidade do bambu natural sugere relações geométricas, nas quais a curva constituinte

desse material é aproveitada por Ione para dar a sugestão de tempo não linear. Na curva tem-

se a energia concentrada e a sensualidade do movimento. Tirando partido dos intervalos entre

os nódulos e gomos do bambu, cria módulos que se tornam vibrantes pelo trabalho aprimorado

da cor. A partir da percepção do que é possível extrair do próprio material, ela reelabora e

acrescenta outras dimensões. Cria a partir do material, mas o material também sugere: "A

parede, ou a superfície, propõe relações geométricas e pintar é, de qualquer forma, subornar a

geometria".16 A artista não efetua cálculos matemáticos para, então, encontrar uma

equivalência com o seu trabalho. Sua percepção, embora treinada, é mais sensitiva. No

entanto, não se pode desprezar o fato de que possui uma cultura adquirida, um olhar

capacitado. Certamente a geometria está contida nos bambus, mas é requisitado um olho

disciplinado para captá-la. Gombrich apontou a inexistência do olho inocente; este é um mito. É

com sua carga cultural e seu olhar permeado pelos abstratos e pelo imaginário primitivo e

popular que Ione seleciona e constrói. É como se tivesse se exercitado, durante os anos que

antecederam os Bambus, à abstração de tendência geométrica, tanto na estruturação

composicional como na análise das formas dos objetos, para, então, reencontrar essa

geometria na própria natureza, sintetizando esses anos de pesquisa ao atingir um real

13 SALDANHA, 1977. Op. cit.14 KLEE, Paul. Journal I. Paris: Grasset & Fasquelle, 1959. p. 282.15 SALDANHA, Ione. O Globo, Rio de Janeiro, 1979.16 PASSERON, R. L’Œuvre Picturale et les Fonctions de L’Apparence. Paris: Vrin, 1986. p. 203.

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decantado: os Bambus. Cabe à artista, nesse feliz momento, apropriar-se dessas descobertas

e fazê-las suas.

Com essa experiência, a artista atinge efetivamente a abstração pela simplificação, ao

mesmo tempo em que elabora uma reeducação do olho e reclama um novo comportamento

perceptivo do espectador, convidando-o a interagir. Os Bambus guardam uma ligação espiritual

com a cidade e o homem. São signos que evocam a vida, embora não a representem, da

mesma forma como a abstração em Mondrian, que apontava como equívoco considerar o

neoplasticismo como abstração total da vida. Insistia o artista em que ocorria exatamente o

contrário: "Precisamente pelas suas relações e seus meios plásticos puros, ela [a obra] pode

exprimir de maneira mais intensa" a própria vida.17 A realidade, pela sua riqueza, exige meios

mais abstratos para ser captada, o que não significa excluir as relações com o mundo. A

cidade moderna inclina-se para a verticalidade material – os edifícios – e para o dinâmico,

elementos de que é formada.

Não deixa de ser curioso o fato de que os Bambus são sempre apresentados em

conjunto, avessos ao isolamento. São seres destinados à sociabilidade que determina a sua

existência; eles exigem a relação. Frederico de Morais foi muito feliz em afirmar que os

Bambus se comportam "como um corpo que respira, vive, sabe ocupar, com absoluta

naturalidade, seu lugar no espaço, criar sua própria aura, e, no entanto, relacionar-se com o

outro, do lado".18 Por isso mesmo, talvez a denominação "totens-móbilis", de Regina Katz, seja

bem adequada. Mas Ione prontamente afirma que, nesse parentesco, "a analogia com o totem

vem de dentro, como coisa obscura";19 não é buscada conscientemente. Sintetizando, a artista

trabalha com a redução dos meios ao geométrico, sem rigidez, com uma tendência à forma

arredondada. O ser é redondo, diziam Van Gogh e Jaspers. O redondo é envolvente.20

O caminhar é lento e Ione tem consciência dos obstáculos: "Estamos vivendo numa

época em que temos mais meios materiais, técnicos, do que precisamos. Tive necessidade de

simplificar. Quis ficar mais livre. Alegria de liberdade, de diminuir a bagagem".21 Esvaziar-se,

buscar o despojamento do supérfluo. Enquanto em Mondrian os vazados eram possibilitados

pelo branco, em Ione os vazados são dados pelo espaço criado entre um bambu e outro. Há aí

um campo aberto de possibilidades, em especial, no que diz respeito ao espectador que altera

a percepção quando passeia entre os Bambus.

Existe um indicativo de que Ione é Minimal Art avant la lettre. Essa imputação, por

insinuar uma identificação entre as duas pesquisas, faz injustiça à originalidade da artista. Os

Bambus são não só diferentes, mas mais ricos que a Minimal Art. Esta escola, de certo modo,

17 MONDRIAN, P. La Nouvelle Plastique dans la Peinture. In: Toute l’Œuvre Peinte de Piet Mondrian. Paris: Flammarion, 1976. p. 24.18 MORAIS, Frederico. Chorei em Bugres. Rio de Janeiro: Avenir, 1983.19 SALDANHA, 1977. Op. cit.20 Ver: BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.21 SALDANHA, Ione. Revista Vogue, n. 14, ago. 1976.

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levou as experiências abstratas ao máximo, no que concerne à utilização de métodos racionais

e conceituais. Ione chega a uma simplificação do interior de sua própria obra, com a

apropriação que fez da tradição abstrata e do imaginário brasileiro, sem abrir mão da

sensualidade. Os Bambus dão também a impressão de Arte Cinética. A elaboração da artista

lembra, de fato, esses dois movimentos, mas a redução a que ela chega é de outra ordem. No

entanto, existem parentescos interessantes. Seus Bambus sugerem o movimento dos

cinéticos. Como na Minimal Art, Ione aboliu as fronteiras entre pintura e escultura, mantendo

uma preocupação de ordem espacial, indicações seriais e reduções formais. Além do mais, há

uma orientação em direção às formas geométricas, no entanto, menos duras que as dos

minimalistas. Todavia, a série em Ione não é repetitiva e as formas geométricas não são

rígidas, nem lhe interessa propriamente a geometria pura. Diria mesmo que há nos

minimalistas um rigor dogmático, ausente em Ione. Ela cria signos, aparentemente arbitrários,

que podem acabar até se tornando símbolos, se os entendermos como evocadores de outros

sentidos, de modo que "o signo pintado adquire então, por deslocamento, o estatuto de

símbolo da beleza pintada: ele torna-se evocador do mundo mesmo do ato criador que lhe deu

origem".22 Se os Bambus podem evocar outros signos, como o homem, a cidade, as flechas

indígenas, os totens e as espingardas, só o fazem indiretamente. Dessa forma, eles alcançam

a dimensão em que não precisam significar nada. As relações não se fazem mais com a

aparência natural das coisas, antes, com a carne delas. O visível possibilita o invisível; a

aparência já carrega o sentido.

A rigor, os Bambus não se identificam com a Minimal Art nem com o Brill Boxes de

Andy Warhol, em que a mesma imagem é repetida várias vezes até a saturação, nem

tampouco com o ritmo monótono da obra do escultor Jimmy Wululu, Poteaux Funéraires,

exposta em Magiciens de La Terre, em Paris (1988). O parentesco entre Ione e Wululu fica

exclusivamente por conta do material. A originalidade de Ione aparece quando aplica e

desenvolve, numa linguagem singular, a depuração de Matisse e as conquistas de Klee e

Mondrian. Mas nenhuma influência foi assumida sem ser questionada. Soma-se aos achados a

interpretação independente que a artista faz do primitivo e do popular brasileiros. Dessas

influências e descobertas, acrescidas à crença da artista na técnica, ao exercício infatigável da

pesquisa e à feliz escolha do material simples e orgânico, é que nascem os Bambus.

Por fim, os Bambus privilegiam o lúdico ao provocarem uma verdadeira orquestração de

formas e cores. O espectador pode ter efetivamente uma experiência estética, interagindo com

a obra, da mesma forma como se comporta diante de uma escultura viva. Desaparece o

avesso. Agora, tudo é frente, tudo é presente. Da imbricação dos retângulos amolecidos pelas

curvas naturais do próprio bambu propenso, por natureza, à irregularidade, nascem a

polirritmia e novas relações. Entrelaçamento do olho que vê com o olho que sente. Os Bambus

22 PASSERON, R. L’Œuvre Picturale et les Fonctions de L’Apparence. Paris: Vrin, 1986. p. 225.

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alcançam aquela dimensão além do designável. São eles uma linguagem nova no interior da

estética brasileira. No final de sua vida, Ione retorna à pintura. As horizontais, as verticais e os

bambus retornam ao chassi. Mas a cor, magicamente, continua liberta, vivendo sua plenitude.

O tempo de Ione é o mesmo de Volpi, Hélio Oiticica, Lygia Clark. Todos tiveram, nos anos

cinqüenta/sessenta, a confirmação de suas linguagens, todos se tornaram faces da

modernidade e da pós-modernidade. São eles as fortalezas da criação na arte brasileira.

ReferênciasBACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

BENTO, Antonio. Catálogo Galeria IAP. Rio de Janeiro, 1968.

BOULEZ, P. Le Pays Fertile de Paul Klee. Paris: Gallimard, 1989.

GOMBRICH, E. Art et Illusion. Paris: Gallimard, 1971.

KLEE, Paul. Journal I. Paris: Grasset & Fasquelle, 1959.

MONDRIAN, P. La Nouvelle Plastique dans la Peinture. In: Toute l’Œuvre Peinte de Piet Mondrian. Paris:

Flammarion, 1976.

MORAIS, Frederico. Chorei em Bugres. Rio de Janeiro: Avenir, 1983.

PASSERON, R. L’Œuvre Picturale et les Fonctions de L’Apparence. Paris: Vrin, 1986.

PEDROSA, Mário. In: Catálogo Klabin. Rio de Janeiro: 1988.

SALDANHA, Ione. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1969.

_____. Revista Vogue, n. 14, ago. 1976.

_____. O Globo, Rio de Janeiro, 6 jun. 1977.

_____. O Globo, Rio de Janeiro, 1979.

_____. Anotações da Artista, s. d. Arquivo pessoal da artista.

_____. Entrevista concedida a Maria José Justino. Rio de Janeiro, 16 e 20 set. 1989.

VALLADARES, C. P. A Inteligência Neolítica de Ione Saldanha. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29

jun. 1968.

IconografiaSALDANHA, Ione. Bambus. 1968. Catálogo Resumo de 45 anos de Pintura.

SALDANHA, Ione. Bambus. 1968. MAC/PR.

SALDANHA, Ione. Ripas. 1967. Catálogo Resumo de 45 anos de Pintura. Galeria Paulo Klabin/Saramenha. Rio de Janeiro: 12 set.-1 out. 1988.

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