apostila - filosofia do direito

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UNASP FACULDADE DE DIREITODISCIPLINA DE FILOSOFIA DO DIREITO

2011

FILOSOFIA DO DIREITOProf. Dr. ROMANELLO

Introduo............................................................................................................................. I. II. III. IV. V.VI. VII. IX. X.

2 5 26 35 45 59 76 90 100 106 110

O surgimento da Filosofia........................................................................................... A justia na concepo de Plato (428 347 a.C.).................................................... A justia na concepo de Aristteles (384-322 a.C.)................................................ A Filosofia no perodo medieval: Agostinho e Toms de Aquino............................... O Jusnaturalismo........................................................................................................ A filosofia prtica de Immanuel Kant (1724-1804)...................................................... O positivismo jurdico.................................................................................................. O pensamento de Hans Kelsen (1881-1973)............................................................. A teoria tridimensional do direito: Miguel Reale (1910 -)............................................

Referncias Bibliogrficas..................................................................................................

Introduo 1 - Consideraes sobre a importncia da Filosofia para o curso de DireitoFilosofia do Direito esclarea-se desde logo, no disciplina jurdica, mas a prpria Filosofia enquanto voltada para uma ordem de realidade, que a realidade jurdica. (Reale, Miguel. Filosofia do Direito, p. 9)

Inmeras vezes percebemos que a falta de interesse pela leitura contribui tambm para certo desinteresse pelo estudo de Filosofia. Muitos alunos indagam: por que estudar Filosofia? Qual a utilidade da Filosofia para o saber jurdico? Nem sempre as respostas que formulamos so convincentes para esclarecer sobre a importncia desse saber. A grande maioria dos alunos no tem contato com a Filosofia durante o ensino fundamental ou mdio, o que torna nossa tarefa ainda mais rdua. Poucos se interessam por essa disciplina, geralmente ministrada em apenas um semestre nos primeiros perodos da faculdade. Todavia muitos profissionais do Direito descobrem a Filosofia em meio aos seus estudos de ps-graduao e experimentam certa ansiedade em tentar suprir essa falta em sua formao intelectual. Nesse sentido, estudar Filosofia significa estudar os fundamentos da nossa prpria cultura. Nos dizeres de Werner Jaeger, A Grcia representa, em face dos grandes povos do Oriente, um progresso fundamental, um novo estdio em tudo o que se refere vida dos homens na comunidade. Esta se fundamenta em princpios completamente novos. Por mais elevadas que julguemos as realizaes artsticas, religiosas e polticas dos povos anteriores, a histria daquilo a que podemos com plena conscincia chamar cultura s comea com os gregos.1 preciso ressaltar que a Filosofia oferece uma abordagem singular para tratar dos problemas fundamentais da esfera jurdica que focalizam em particular a eterna insocivelsociabilidade humana. Ademais, insisto em apontar que a histria do pensamento filosfico, que se inicia com o povo grego em torno do sc. VII a.C. constitui as bases de nossa prpria cultura, ou seja, configura o nosso ponto de partida, o incio do pensamento racional. Assim, ao lermos um texto filosfico colocamos em ao todo o nosso sistema de valores, crenas e atitudes que refletem o grupo social em que se deu nossa socializao primria, isto , o grupo social em que fomos criados. Podemos ento investigar como esse sistema de valores interfere em nossa viso de mundo.

1

Jaeger, Werner W. Paidia: a formao do homem grego. So Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 4. [grifo nosso] 2

A Filosofia ensina a pensar. Ensina a formular perguntas. Ingressar nos estudos filosficos significa fundamentalmente assumir a rdua tarefa do autoconhecimento que implica transformar o seu prprio olhar, muitas vezes desatento, em um olhar cuidadoso diante das obviedades. Significa abolir a pressa e o imediatismo. A Filosofia significa a formao de uma atitude - uma atitude diante da vida. Como disse Kant em suas lies de Lgica, filosofar algo que s se pode aprender pelo exerccio, pelo uso prprio e autnomo da razo. Um exerccio sem medo. Estudar Filosofia significa estabelecer um dilogo com homens de notrio saber, que viveram em outras pocas. bom conhec-los e compreender seus costumes, pois assim podemos avaliar mais lucidamente os nossos.2 No posso deixar de mencionar as clebres palavras de Descartes na obra Discurso do Mtodo:a leitura de todos os bons livros qual uma conversao com as pessoas mais qualificadas dos sculos passados, que foram seus autores, e at uma conversao premeditada, na qual eles nos revelam to-somente os melhores de seus pensamentos. (...) bom saber algo dos costumes de diversos povos, a fim de que julguemos os nossos mais smente e no pensemos que tudo quanto contra os nossos modos ridculo e contrrio razo, como soem proceder aos que nada viram.

Mas gostaria de esclarecer preliminarmente que o estudo tem objetivo modesto. Intencionalmente se cuidou de apresentar um estudo propedutico que pudesse oferecer uma exposio clara e indispensvel, capaz de configurar um apoio til para posteriores estudos de Filosofia do Direito. Estudaremos em cada poca autores e doutrinas que julgamos essenciais para o estudo jurdico. Procurou-se, ao expor, dar certa objetividade que no comprometa a verdadeira complexidade da matria. O ponto de partida est na noo geral da Filosofia como um saber terico e universal que fundamenta toda a cultura ocidental - nossa herana grega. Assim, desvelou-se imperativo observar os diferentes problemas que a nossa cultura formulou ao longo dos tempos com suas respostas e terminologias acerca do que consideravam relevantes. Importa ressaltar que a histria apresentada focaliza um dos ramos da Filosofia, em particular, aquela que estuda a idia de justia. O estudo foi essencialmente motivado pelo desejo de compreender melhor a relao direito-sociedade a partir do devir histrico. Assim, as informaes apresentadas fundamentam-se em textos clssicos e comentadores consagrados pela tradio filosfica. Acredito no ter incorrido em erro grave, buscando no esquecer que os filsofos foram/so homens e que, portanto estavam/esto sujeitos s influncias de sua origem, educao e poca histrica. No podemos esquecer que todo pensador est fadado a ser de seu sculo a seu contentamento ou pesar. Assim, procura-se mostrar que os problemas filosficojurdicos so to antigos quanto as inquietaes conscientes dos homens sobre o problema da2

DESCARTES, R. Discurso do Mtodo. In: Col. Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p.39. 3

convivncia humana e se desvelam nas concepes fundamentais acerca do Direito e do prprio Estado, a partir das realidades que serviam como pano de fundo. Historicamente, podemos afirmar que uma Filosofia do Direito se inicia com os tratados sobre sociedade poltica: seja uma plis, uma res publica, civitas ou um Estado. Tratados que versam sobre leis, justia, direito natural e que assinalam o caminho do pensamento filosfico. Muitas vezes este estudo assume nomenclaturas diferenciadas como, por exemplo, juris naturalis scientia ou Naturrecht als Philosophie des positiven rechts.3 A abordagem filosfica nos permite ento vislumbrar que a transformao das sociedades no implica a superao pura e simples do passado, mas antes ressalta que esse passado existe e persiste no presente, condicionando o focar dos problemas, apresentando certas tendncias, validando algumas solues, revelando a lgica imanente de certos pontos de vista ou atitudes intelectuais. Algumas vezes apontando caminhos que no se devem mais seguir. No podemos negar a importncia da Filosofia, porque a prpria tentativa de impugn-la significa a essncia do filosofar. Enfim, o Direito, pertencendo histria humana, participa do seu desenrolar gradual e do seu reencontro consigo mesmo. O que importa nesse caminhar a indispensvel tarefa crtica que a Filosofia nos oferece, sem a qual cairamos inevitavelmente num dogmatismo feroz ou num ceticismo tedioso. 2 - Metodologia adotada para a disciplina O aprimoramento contnuo oferecido pela Filosofia importante ferramenta para o desenvolvimento das habilidades necessrias ao advogado. Nesse sentido, torna-se fundamental a leitura prvia dos pontos a serem tratados em cada aula. Recomenda-se que o aluno procure elaborar um pequeno resumo dos pontos mais relevantes, buscando no copiar o texto, mas elaborar o seu prprio texto sobre o que foi lido. Cada um deve procurar sua interpretao. Nosso objetivo ampliar a conscientizao sobre o assunto e fornecer as condies de possibilidade para uma reflexo filosfica sobre o direito. Por isso, indicamos outras leituras interessantes e vdeos para que o estudante possa ampliar seus conhecimentos.

3Direito

natural como filosofia do Direito positivo (Naturrecht als Philosophie des positiven rechts 1797) de Gustav Hugo, Fundamentao do Direito Natural ou elementos Filosficos do ideal do Direito (Grunlage des Naturrechts oder philosophie Grundriss des Ideals des rechts 1803) e Bosquejo do Sistema de Filosofia do Direito (Abriss des Systems der rechtsphilosophie 1828) de Karl Christian Friedrich Krause; Elementos de Direito natural e de Cincia Poltica (Grundlinien der Philosophie des Rrechts oder Naturrecht und Staatswissenschaft im Grundrisse 1821) de Hegel. 4

Parte I O surgimento da Filosofia 1 - O conceito de Filosofia Observando a advertncia de Marilena Chau, na obra Convite Filosofia, a Filosofia no se confunde com Cincia, mas pode ser entendida como reflexo crtica sobre os procedimentos e conceitos cientficos, pois se trata de um saber que cronologicamente anterior ao surgimento da prpria cincia; no tampouco Religio, antes, porm reflexo crtica sobre as origens e formas das crenas religiosas; no se reduz Arte, mas se v diante de uma reflexo crtica sobre os contedos, formas, significaes da obra de arte e do trabalho artstico; tambm no pode ser considerada Sociologia ou Psicologia, mas reflexo crtica sobre os fundamentos dessas cincias humanas de suma importncia; a Filosofia no se limita esfera Poltica, mas se configura como possvel interpretao, compreenso e reflexo sobre a origem, a natureza e as formas do poder; por fim, Filosofia no Histria, e sim interpretao do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e no espao e a compreenso do que seja o prprio tempo. A Filosofia est na histria, pois produto cultural do homem; um saber do homem situado. A Filosofia busca desvelar as interpretaes e limites de cada poca. Podemos ento definir Filosofia como a fundamentao terica e crtica dos conhecimentos e prticas. Trata-se de um saber que se preocupa com as origens, causas, forma e o contedo dos valores ticos, polticos, artsticos e culturais. O seu olhar observa com cuidado as transformaes histricas, a conscincia em suas vrias modalidades: imaginao, percepo, memria, linguagem, inteligncia, experincia, reflexo, comportamento, vontade, desejo, paixes; busca compreender as idias ou significados gerais: realidade, mundo, natureza, cultura, histria, subjetividade, objetividade, diferena, repetio, semelhana, conflito, contradio e mudana. O olhar filosfico se afasta das crenas, sentimentos, prejuzos, preconceitos; toma distncia para interrogar e no aceitar as coisas passivamente. A Filosofia diz no ao senso comum, para indagar o que , como e por que momentos que constituem o pensamento crtico. O seu conhecimento se realiza por reflexo que se configura no momento em que o pensamento volta-se para si mesmo a fim de indagar como possvel o prprio pensamento. Sua reflexo radical, porquanto investiga a raiz, a origem de tudo o que existe. A Filosofia um pensamento sistemtico, o que significa dizer que no mera opinio. Na verdade a Filosofia segue uma lgica de enunciados precisos e rigorosos, opera com conceitos ou idias obtidos por procedimentos de demonstrao e prova. Assim, a Filosofia enquanto saber exige fundamentao racional do que enunciado e pensado e deve formar um conjunto coerente de idias racionalmente demonstrveis.

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O valor da Filosofia encontra-se, portanto, na fundamentao ou justificao do trabalho cientfico ao indagar o que o homem?, o que vontade?, o que a razo?, como nos tornamos livres?, o que um valor?. Podemos estudar a Filosofia sob o aspecto temtico ou podemos compreend-la a partir de seu devir histrico, ou seja, a histria da Filosofia a partir de perodos que exprimem e manifestam os problemas e as questes que, em cada poca, os homens colocaram para si mesmos e para o mundo. Ser possvel perceber que as transformaes no modo de conhecer ampliaram os campos de investigao do filsofo. Os perodos foram classificados pela tradio da seguinte forma: Antigidade Clssica ou Filosofia Antiga, Filosofia Medieval, Filosofia Moderna e Filosofia Contempornea. 2 - Origem e Surgimento da Filosofia na Grcia Antiga Como nos lembra o saudoso professor Jos Amrico M. Pessanha, buscar as razes que conduziram o homem grego a fazer filosofia permanece ainda como um problema aberto. O que teria fundamentado esse novo saber? Por que na Grcia em torno do sc. VII ou VI a.C. surgiu uma nova mentalidade diante do real? Quais os fatores que se entrecruzaram e propiciaram esse fenmeno em uma cultura to antiga? Sabe-se que na Grcia do sc. VI a C., Pitgoras de Samos denominou-se Filo-sophos (amante do saber) e no de sophos (sbio).4 O que a tradio afirma que a Filosofia foi um fenmeno especfico do povo grego e teve continuidade com os povos dominados por ele. A Filosofia comea quando algo desperta a nossa admirao, espanta-nos e exige uma explicao sobre a origem do mundo, dos povos e dos fenmenos da natureza sem recorrer aos mitos. A palavra mito do grego mythos deriva de dois verbos, a saber: mytheyo que significa contar, narrar, falar alguma coisa para outros e do verbo mytheo que significa conversar, contar, anunciar, nomear, designar. Para o pensamento grego, mito significa um discurso ou narrativa que considerada verdadeira para seus ouvintes; h uma relao de confiabilidade que repousa sobre a pessoa do narrador, ou melhor, uma crena na autoridade do narrador. O narrador chamado de poeta-rapsodo. Os gregos acreditavam que ele fora escolhido pelos deuses e que se tornara o transmissor de suas mensagens. A palavra proferida pelo poeta-rapsodo, o mito, ganhava uma aura de divindade, portanto inquestionvel e incontestvel. Nesse sentido, a narrativa sobre a origem do mundo denominada como uma genealogia que pode ser cosmologia ou teogonia. Ser cosmologia quando trata do nascimento e da organizao do mundo, pois gonia vem do verbo gennao e do substantivo genos assumindo, portanto, a idia de gerao, nascimento a partir da concepo sexual e do parto. Cosmo quer dizer mundo ordenado, organizado. Teogonia composta de gonia e theos que significa em grego: seres divinos, coisasA palavra Filosofia formou-se da juno de Filos-filia (amigo) com sophia(sabedoria, saber), opondo-se ao termo grego polimathia que significa saber comum, desconexo, fragmentado, ao nvel do senso comum.4

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divinas, deuses. Ser teogonia quando a narrativa tratar da origem dos deuses. A Filosofia vista como uma cosmologia, ou seja, uma explicao racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das transformaes das coisas. Nesse sentido, as narrativas mticas foram reformuladas ou transformadas numa explicao que no admite fabulaes, contradies, mas sim um raciocnio lgico, racional e coerente. A autoridade dessa nova explicao no decorre de uma pessoa fsica, como no caso dos poetas-rapsodos, mas decorre do poder da razo. O seu surgimento marca uma indagao que no aceita respostas mitolgicas ou mgicas, respostas fazedoras de mitos. No podemos negar que a mitologia grega est intrinsecamente ligada histria da civilizao grega, por isso o relato mtico no resulta necessariamente da inveno individual, mas da transmisso de uma cultura por vrias geraes e da memria de um povo, o que ressalta a sua dignidade e importncia. Essa mitologia e seus mitos sobrevivem enquanto se mantiveram vivos na vida cotidiana. Memria, oralidade e tradio so os componentes indispensveis sua sobrevivncia. A explicao filosfica, que apenas uma explicao de homens que buscavam saber, se desenvolveu paulatinamente e permaneceu por muito tempo concomitante s explicaes mitolgicas que povoavam o imaginrio do mundo antigo. A Filosofia , portanto, um fenmeno cultural grego. Surgiu no momento de estabilizao da sociedade grega, com o desenvolvimento da atividade comercial, com a consolidao das cidadesestados (plis); um progressivo enriquecimento do comrcio e inveno da moeda; expanso martima que propiciou o surgimento de uma classe mercantil politicamente forte; a inveno do calendrio; a prpria inveno da poltica e da tica. No h consenso sobre a origem da Filosofia na Grcia antiga, porque muitos estudiosos entendem que os povos do oriente j sistematizavam doutrinas filosficas antes dos filsofos gregos. Todavia o que se observa freqentemente que no se configurou nesses povos o que ocorreu na Grcia: o processo de laicizao do saber. 3 - A plis grega e a conscincia jurdica Antes do advento da Plis, a Grcia j apresentava uma vida social intensa. Um dos poetas mais importantes, Homero, autor dos famosos poemas que narram as guerras troianas (1260 a 1250 a.C.), as aventuras de Aquiles e Ulisses (nome grego, Odisseu), nos desvela em suas narrativas o entrecruzamento de histria, fico, lenda, mitos e deuses, que segundo pesquisadores exprimem traos da cultura drica. Os drios oriundos do norte, sculos aps as guerras troianas, construram uma sociedade marcadamente aristocrtica que paulatinamente se transformou no que denominamos civilizao grega.

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Este poeta foi considerado o pai da cultura grega por ter sido a sua obra fundamental para a manuteno das tradies. Alm de Homero, o pensamento de Hesodo foi igualmente importante, porquanto marca uma nova fase da cultura grega. Em sua obra denominada Teogonia descreve a criao do mundo, dos deuses e a organizao do Olimpo. Em Os trabalhos e Os Dias narra o mito das cinco idades da humanidade. Por ocasio do sc. VIII a.C., com a inveno da moeda cunhada, a regio vivenciou um renascimento das relaes comerciais que resultou na runa das antigas linhagens tribais e no surgimento de pequenas cidades de agricultores e artesos. Lentamente se formou uma nova organizao social e poltica que segundo ensina Jean-Pierre Vernant destacou a supremacia da razo, do discurso. Assim, a palavra, o discurso e a razo ganharam grande relevo nessa nova organizao social. O discurso tornou-se condio fundamental para a participao nos assuntos pblicos. O que se configurou nesta etapa e a revoluo poltica que ensejou o desenvolvimento do pensamento humano. Assim, as discusses polticas, a elaborao das leis, deixaram de ser privilgio da aristocracia grega. Plis do plural pleis uma palavra grega que expressa a idia de cidades-estados autogovernadas do mundo grego. Cada plis tinha suas prprias leis de cidadania, cunhagem de moedas, costumes, festivais, ritos e etc. Como nos ensina Jaeger, a plis configurou um novo momento para os gregos, uma nova forma de convivncia humana: A polis o centro principal a partir do qual se organiza historicamente o perodo mais importante da evoluo grega. Situa-se, por isso, no centro de todas as consideraes histricas.5

O termo plis propiciou o aparecimento de palavras como

poltico e poltica e, conseqentemente, a idia de justia. Com a palavra plis surgiu tambm o direito de cada cidado de emitir, na esfera pblica, o seu pensamento para possvel debate. A plis valorizou o humano, a discusso, a persuaso, a fora do melhor argumento, enfim o prprio desenvolvimento do discurso. O interesse pela justia se desenvolveu na vida comunitria da plis grega e assumiu um grande valor que se afigurou com a mesma intensidade que a fora exercida pelo ideal cavaleiresco dos primeiros estgios da cultura grega aristocrtica. A idia do homem justo assume, portanto, um novo locus no pensamento grego, porque aquele que cumpre a lei e se regula por ela, cumpre o seu dever. Observa-se que a plis introduz uma verdadeira revoluo: O ideal antigo e livre da Arete6 herica dos heris homricos converte-se em rigoroso dever para com o Estado, ao qual todos os

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Jaeger, Werner W. Paidia: a formao do homem grego. So Paulo: Martins Fontes, 1989, p.73. aret, aretai (pl.) excelncia, virtude. 8

cidados sem exceo esto submetidos, tal como so obrigados a respeitar a fronteira entre o prprio e o alheio. 7 Com a mudana das formas de vida, surgiu um novo esprito centrado na vida pblica. A literatura que testemunha a idia de justia como fundamento da sociedade humana estende-se desde os tempos primitivos da epopia, ou seja, do sc. VIII at o sc. VI a.C. Jaeger narra que nos tempos homricos toda manifestao do direito ficou sem discusso na mo dos nobres que administravam a justia segundo a tradio, sem leis escritas. Contudo, o aumento da oposio entre os nobres e os cidados livres, a qual deve ter surgido em conseqncia do enriquecimento dos cidados alheios nobreza, gerou facilmente o abuso poltico da magistratura e levou o povo a exigir leis escritas.8

A

reclamao universal pela justia j figura claramente em Hesodo e, atravs dele, que a palavra direito, dike, se converte no lema da luta entre as classes. No temos fonte sobre a histria da codificao do direito grego, mas sabe-se ao menos que ao ser escrito assumia o carter de universalidade. Em Homero temos o direito como Themis que etimologicamente significa lei. Segundo a narrativa homrica, Zeus ofertava aos reis o cetro e themis. Esta ltima seria o smbolo da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e nobres homricos. Na prtica, significava que os nobres dos tempos patriarcais julgavam de acordo com a lei procedente de Zeus. As normas que constituam as leis de Zeus fundamentavam-se no direito consuetudinrio e no prprio saber do homem daquela poca. 4 - Os Filsofos pr-socrticos 9 J compreendemos que o que consideramos por Grcia Antiga no constituiu um Estado no sentido moderno do termo, mas o conjunto de vrias cidades autnomas entre si denominadas plis. Sabe-se que o bero da Filosofia teria sido a plis de Mileto, situada na Jnia, litoral ocidental da sia menor. Nesta cidade temos trs pensadores pr-socrticos de grande importncia: Tales, Anaximadro e Anaxmenes. Esses primeiros filsofos, denominados filsofos da Physis, tinham como objetivo construir uma explicao racional e sistemtica do universo. Tais pensadores buscavam a matriaprima, a arch, existente em todos os seres. Seria, portanto a busca pelo princpio originrio, ou substancial de todas as coisas. Tales de Mileto foi considerado o primeiro filsofo e sabe-se que era estudioso de astronomia e, segundo conta a tradio, chegou a prever um eclipse total do sol ocorrida em 28 de maio de 585 a.C. Este pensador apresentou grande desempenho em geometria e demonstrou que todos os ngulosJaeger, Werner W. Paidia: a formao do homem grego. So Paulo: Martins Fontes, 1989, p.94. Jaeger, Werner W. Paidia: a formao do homem grego. So Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 91. 9 Meu intento nesta parte foi o de mencionar os pr-socrticos mais conhecidos. Para um maior aprofundamento sugiro a obra de BORNHEIM, G. (org) Os Filsofos Pr-socrticos. So Paulo: Cultrix, 1997.7 8

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inscritos no meio crculo so retos e que a soma dos ngulos internos de um tringulo igual a 180 . Ademais concluiu que o princpio originrio era a gua, porque somente a gua permanece a mesma a despeito de todas as transformaes. Anaximandro de Mileto acreditava que o princpio primordial transcendia os limites do observvel e que, portanto, estaria fora do alcance dos sentidos. Denominou de peiron, termo grego que significa o indeterminado, o infinito a massa geradora de todos os seres. Anaxmenes de Mileto admitia que a origem de todas as coisas fosse realmente algo indeterminado, mas no o concebia como inalcanvel aos sentidos. Concluiu, portanto que o ar seria o princpio de todas as coisas, o elemento invisvel, impondervel e, no entanto, observvel. Pitgoras de Samos viveu na ilha de Samos e posteriormente deslocou-se para Crotona, localizada no sul da Itlia, regio conhecida pelo nome Magna Grcia. Nesta regio fundou uma escola filosfica preocupada com questes polticas e religiosas. Em seu modo de ver, a essncia de todas as coisas residia nos nmeros que representavam a ordem e a harmonia. A arch teria uma estrutura matemtica que configuraria a origem do finito e infinito, par e mpar, multiplicidade, unidade etc. Para ele, ao fim e a ao cabo, a diferena entre os seres repousava sobre os nmeros. Suas contribuies foram numerosas, dentre elas: o teorema de Pitgoras, a crena na imortalidade da alma e na reencarnao, o rigor moral etc. Herclito de feso foi considerado um dos mais importantes filsofos pr-socrticos. Sabe-se que floresceu pelo ano 500 a.C. e se tornou o representante do pensamento dialtico. Herclito concebeu o mundo como dinmico, em inesgotvel transformao. Sua escola filosfica foi denominada de mobilista, pois para ele a vida era fluxo constante, impulsionado pela luta de foras contrrias. Acreditava que a luta dos contrrios seria o princpio de todas as coisas e por meio dessa luta o mundo se modifica e evolui. Acreditava que o fogo era a arch. Seu fragmento mais conhecido menciona que um homem no pode banhar-se duas vezes nas guas do mesmo rio. Parmnides de Elia (510-470 a.C.) foi um grande opositor de Herclito. Acreditava que o ser era eterno, nico, imvel e ilimitado. Essa era a tica da razo, da essncia, a via a ser buscada pela filosofia. Por outro lado, a tica da aparncia, da doxa, no desvela a verdade, mas em funo do movimento ou vir-a-ser da realidade denota apenas uma aparncia enganosa. Parmnides afirmou que: o ser ; o no ser no . Acreditou que o mundo o lugar das aparncias, o mundo da iluso e que somente pela razo, no plano lgico, compreendemos a essncia da realidade. Para Parmnides o ser e o no ser no . Zeno de Elia (488-430 a.C.), discpulo de Parmnides, buscou argumentos capazes de legitimar as afirmaes de seu mestre e fortaleceu a idia de que a noo de movimento era contraditria. O mais clebre foi o denominado Aquiles que revela o complexo estudo dos conceitos10

de movimento, espao, tempo e infinito. Neste argumento Zeno nega o movimento da seguinte maneira: afirma que o mais lento em uma corrida jamais ser alcanado pelo mais rpido, se e somente se, o mais lento sair bem frente, porque o mais rpido ter que primeiro alcanar o ponto de onde partiu o mais lento que, por sua vez, continuaria se movendo. Para entendermos melhor esse paradoxo de Zeno preciso compreender o exemplo que nos forneceu e que resumidamente o seguinte: em uma determinada corrida, se a tartaruga (mais lenta) sasse frente de Aquiles (heri); este heri no conseguiria alcan-la em face da vantagem que a tartaruga obteve por ocasio da largada. Empdocles de Agrigento (490-430 a.C.) tentou conciliar as idias de Parmnides com o pensamento de Herclito, ou seja, conciliar a idia de essncia imutvel obtida pela razo com a idia de movimento, o vir-a-ser, captado pelos sentidos. Acreditou que o elemento primordial era constitudo por quatro elementos: o fogo, a terra, a gua e o ar. Tais elementos seriam misturados de modos diversos a partir de dois princpios universais, a saber: de um lado, o amor, personificando a idia de fora de atrao ou harmonizao das coisas; de outro o dio responsvel pela desagregao ou separao das coisas. 5 - A idia de justia no perodo pr-socrtico Para estudiosos como W. Jaeger e R. Mondolfo, a preocupao dos primeiros filsofos teria sido com o universo, ou seja, os pr-socrticos inauguraram o pensamento filosfico quando iniciaram um estudo racional sobre o homem, a vida e a Natureza. Outros estudiosos do pensamento grego revisaram essa tese e concluram que certa reflexo acerca do mundo dos homens teria precedido a reflexo sobre o mundo fsico. Truyol y Serra apresenta, nesse sentido, o seguinte argumento: isto verdade se tivermos em conta a primitiva concepo helnica do mundo e da vida em sua totalidade, ou seja, incluindo as teogonias mticas. Efectivamente, estas, fundadas num politesmo antropomrfico, concebem os problemas csmicos como problemas humanos, o que traz consigo a personificao dos elementos e das foras naturais e a apreenso das suas relaes segundo a natureza das relaes entre os homens. 10 A filosofia do mundo natural precisou trabalhar com categorias nascidas da experincia da vida humana, de uma forma ou de outra expressa na literatura disponvel poca, a mitologia. So categorias cuja origem social: a noo de lei, por exemplo. A imagem da comunidade foi til para a representao da Natureza. O enigma que perturbava o esprito dos pensadores pr-socrticos era o movimento, a mudana, o que justifica a necessidade de buscar um elemento primordial que permanecesse sempre o mesmo.10

SERRA, A. T. Histria da Filosofia do Direito e do Estado. Portugal: Instituto de Novas Profisses, 1985, pp. 85-86. 11

O homem desta poca vivia em uma comunidade autrquica e sagrada que configurava o microcosmo, a plis. Cada cidade apresentava independncia jurdico-poltica. Protegida por seus deuses baseava-se em normas tradicionais de fundamento religioso, themistes, regulamentaes que paulatinamente constituram o nomos. Podemos entender por nomos a idia de ordem da plis, ou seja, as regras morais e os preceitos jurdicos indistintamente misturados. O cuidado com os valores culturais de cada plis garantia uma convivncia pacfica. No fica difcil perceber que a idia de justia significava garantir essa convivncia harmnica a partir de uma represso a tudo que pudesse comprometer a ordem estabelecida. Esse sentido seria alargado diante das novas necessidades que a vida comunitria exigiria. Truyol y Serra aponta que Anaximandro teria transposto ou deslocado a idia de justia da plis para o universo. 11 Este seria uma grande plis, ou seja, uma grande comunidade sujeita a uma lei ordenadora. Ele afirma a existncia de uma justia csmica de carter imanente que preside a gerao e a dissoluo dos seres particulares. Para este autor, idias semelhantes seriam usadas mais tarde por Parmnides de Elia e Empdocles de Agrigento nos poemas que cada qual escreveu, ambos intitulados Acerca da Natureza. Parmnides teria personificado a Justia nas deusas Themis e Dike entre o dia e a noite e entre a verdade e a opinio. A justia aparece no seu poema como um princpio esttico que assegura a imutabilidade do ser que ele afirma com vigor: o ser e o no ser no . Empdocles usa a idia de justia para tentar uma explicao do universo; o amor e o dio enquanto foras originais fazem e desfazem as coisas; a lei estende-se sem alterao. Sabe-se que Pitgoras e Herclito apresentaram consideraes mais explcitas sobre a vida social. Com Pitgoras ganha relevo a preocupao tica e religiosa. Cresce o interesse pela vida humana e individual e a Filosofia se configura na possibilidade de uma purificao interior. 12 Pitgoras antecipa tambm a relao entre Filosofia e poltica. Os pitagricos foram os primeiros a organizar uma teoria da justia no interior de sua doutrina dos nmeros. Deste modo, conceberam os nmeros como essncia das coisas e expresso de harmonia e regularidade no sentido especfico de totalidade ordenada. Essa harmonia, transposta para a esfera humana, assume o sentido de uma correlao de condutas. Os pitagricos formularam uma definio de justia como aquilo que algum sofre por algo a justia como uma relao aritmtica de igualdade entre dois termos. Esta igualdade aparece como elemento essencial da justia. Simbolizavam a justia nos nmeros 4 e 9, porque a multiplicao de um nmero par (2) por ele mesmo daria 4; a multiplicao de um nmero mpar (3) por ele mesmo alcanaria o nmero 9. A justia nessa concepo funda-se na ordem natural presidida pelo nmero.

11 12

Esta idia estaria presente no nico fragmento existente da obra Sobre a Natureza, p. 87. Trata-se de uma das fontes do idealismo tico de Plato. 12

Herclito de feso associa justia e ordem universal. Como concebeu a realidade em perptuo devir; afirmou ainda que o devir nasce dos contrastes e que este surge da luta, a justia luta. Todavia esse perptuo fluir presidido por uma lei eterna e universal, o logos. Este logos seria o responsvel pela harmonia invisvel entre os opostos. Esta unidade realizada pelo logos manifesta-se no fogo. Herclito evoca as Ernias, personagens da mitologia que eram servidoras de Dike, que segundo a narrativa mtica, foravam o Sol a voltar rbita se acaso se afastassem. Por analogia o logos estaria oferecendo ao homem a norma para a ao correta. Todos os homens participam dessa ordem, embora nem todos a revelem em sua conduta. Essa lei nica e divina alimenta a lei humana, conferindo o seu sentido de sagrado e justificando qualquer sacrifcio em seu nome. Importa perceber que a moralidade, tanto para os pitagricos quanto para Herclito, fundamenta-se numa lei natural. Na fase pr-socrtica houve, portanto, um jusnaturalismo cosmolgico de cunho pantesta.13

Essa filosofia natural pr-socrtica conferiu validade concepo helnica de

justo percebida em Hesodo e Homero. Sabe-se que a idia de igualdade na reciprocidade, apresentada na narrativa hesidica, superou o sentido de autoridade expresso nos poemas homricos enquanto sentido da justia. Esse predomnio da concepo de Hesodo aconteceu por ocasio de profundas transformaes polticas e sociais nos sc. VII e VI a.C. que conduziu s codificaes e destacou a figura de Slon. Slon, legislador e poeta, anunciou em suas Elegias o conceito de eunomia, ou seja, a ordem equilibrada, fundada na justia. Slon observou a necessidade de homogeneidade social que excluiria as desigualdades excessivas. A cidade deve ser comum a todos e todos devem se interessar por sua conservao, o que configuraria o que ele entendeu por eunomia. Slon fustigou a hybris como a mxima negao da ordem. No mbito literrio, os poetas trgicos como squilo e Sfocles foram os herdeiros dessa concepo de justia pr-socrtica. A lei representa o equilbrio e a hybris a desmedida. A negao da lei deve ser resolvida com uma sano conforme o princpio que conhecemos pelo nome de talio: quem praticou a violncia sofrer violncia (squilo, Agammnon). Resgatar o equilbrio entre o crime e o castigo funo da plis. A idia de retribuio est fundada na mais antiga tradio e configura uma legalidade csmica que para os homens assumia o carter de frreo destino. Sfocles acrescenta um problema novo: o do antagonismo entre as leis humanas e as leis divinas. Este conflito constitui o ncleo dramtico da tragdia Antgona. Ao apresentar esse conflito,

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SERRA, A. T. Histria da Filosofia do Direito e do Estado. Portugal: Instituto de Novas Profisses, 1985, p.89. 13

Sfocles conduz-nos, de certo modo, filosofia jurdica da sofstica, todavia reconhea e enfatize o carter sagrado das leis no escritas. 14 Herdoto de Halicarnasso transps para o mbito da histria a concepo de justia oferecida pela tradio. Trata-se de uma concepo religiosa de justia em que os deuses ansiosos por justia procuram manter os homens longe da demasia e dos excessos do orgulho, longe da desmedida. Esse pensador considerado o pai da histria apresenta um novo problema: a diversidade das convices e instituies humanas, ou seja, a relatividade dos costumes, a no universalidade das leis entre as plis. Este pensador nos conduz problemtica da sofstica. Segundo Aristteles, Demcrito de Abdera (460-370 a.C.) foi o ltimo dos pr-socrticos, ou filsofos da physis. A importncia de mencion-lo separado dos demais que ele inaugura o que denominamos de perodo sistemtico da filosofia helnica que, por sua vez, culminar no pensamento de Plato e Aristteles. Um estudo atravs dos fragmentos deste pensador nos permite perceber que sua tica apresenta um desenvolvimento independente de sua filosofia natural. Sabemos que Demcrito professou um materialismo mecanicista que considerava os tomos, mveis no vazio, os elementos ltimos da realidade. A tradio atribui a Leucipo a inspirao deste pensamento que a rigor despoja o universo de qualquer concepo divina. Sua tica apresenta o que podemos denominar de hedonismo esclarecido, ou seja, concebia a felicidade na moderao, na preeminncia da alma sobre os sentidos, sua meta era a eutimia que significava um estado de alma sereno e alegre, de tranqilidade e equilbrio. O seu individualismo se refletia na esfera da famlia e, nesse sentido, combatia o casamento e a paternidade, porque acreditava que tais coisas perturbavam o esprito. Essa concepo no se estendia ao mbito poltico, pois compreendia que a prosperidade do indivduo est vinculada vida na plis. Da preocupar-se com questes sobre o bom governo e sobre normas. Como Scrates, Demcrito inclina-se para uma aristocracia vinculada ao conceito de sabedoria: em seu modo de ver os melhores deveriam governar. 6 - Democracia ateniense A democracia ateniense no foi obra de um nico homem, entenda-se aqui Clstenes, sabe-se que esteve presente pelo menos por dois sculos de existncia (508 a 322) no mundo grego ateniense. Tradicionalmente, comentamos que Clstenes desenvolveu um sistema de democracia, em 508-7, entendido como isonomia, ou seja, igualdade perante a lei, mas observa-se que a palavra democracia foi inventada tardiamente. Demokrata considerada uma palavra ambgua no universo ateniense, ou melhor, grego; literalmente krtos significa poder soberano do demos. Demos tinha acepes diversasChamo a ateno para um ponto interessante: a figura do coro na tragdia Antgona desvela certo vestgio da antropologia sofstica que exalta o homem e suas obras, embora apresente a advertncia que a obra humana tambm poder gerar um grande mal.14

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na Atenas do sc. V e poderia significar o povo como um todo; o conjunto dos cidados adultos do sexo masculino; a maioria pobre do corpo dos cidados, ou ainda uma denominao dada a pequenas reas dentro da plis (espcie de diviso em bairros ou comunidades). Demokata poderia significar tambm constituio, ou o prprio povo de Atenas na ekklesa. Demokrata poderia ser vista como o governo do povo como um todo ou, para um opositor, como o governo das pessoas comuns que estabelecem uma ditadura da maioria sobre os melhores cidados. As fontes fidedignas no revelam quem inventou a palavra demokata ou quando comeou a ser efetivamente utilizada, todavia acredita-se em certa apario indireta ou virtual, registrada em squilo, na tragdia A suplicante, a partir de um equivalente potico: demou kratousa kheir, que significa a mo soberana do demos. A palavra demokrata somente aparece em Histrias de Herdoto e na Constituio de Atenas de Xenofonte, aproximadamente em 420 a.C. Podemos afirmar que os ideais democrticos no eram aceitos por todos, havia inmeros adversrios. Muitos dos seus opositores defendiam um retorno ao sentido de democracia de Slon, outros pretendiam uma volta forma oferecida por Clstenes e alguns defendiam ferozmente uma oligarquia. A teoria democrtica tal como se configurou em Atenas viu-se diante da tarefa de uma reconstruo, sobretudo em face das crticas elaboradas por Aristteles na obra Poltica. O perodo mais conhecido ou famoso da demokrata ateniense o da segunda metade do sculo V, todavia as fontes disponveis que tratam do tema remontam ao sculo IV, o que compromete seu estudo, visto que esse sistema aperfeioou-se ao longo do tempo. A democracia descrita por Aristteles na obra Constituio de Atenas (Athenaion Politea) no , portanto, a democracia de Pricles15. A democracia ateniense difere da nossa democracia representativa, as decises eram tomadas e executadas diretamente pelos cidados de Atenas. Duas instituies eram fundamentais para configurar a imediatez dos procedimentos polticos de Atenas: a ekklesia (Assemblia) e a boul (conselho dos 500) com seu subcomit de prutneis (presidentes). Segundo especialistas, todos os problemas de Estado eram observados primeiramente pelos cinqenta prutneis que viviam em constante vigilncia. Se constatado a relevncia do problema os prutneis convocavam uma reunio plenria da boul dos 500 e, se necessrio, convocar-se-a a ekklesia, rgo encarregado da tomada de decises da democracia direta ateniense. A palavra ekklesia significa literalmente: um grupo que chamado e que se reunia em uma colina chamada Pnix a sudoeste da agor que era o centro cvico de Atenas.

Pricles: estadista e general, incentivador da democracia e do imperialismo ateniense. JONES, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma introduo cultura clssica ateniense. So Paulo: Martins Fontes, 1997.15

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Os cidados de mais de dezoito anos que estivessem inscritos nos registros do seu demo (comunidade) poderiam integrar a ekklesia. O assunto principal era a poltica externa. Este rgo no s deliberava sobre as polticas a serem seguidas, como tambm legislava. Tal funo foi posteriormente delegada a um rgo menor de legisladores (nomothtai), por volta de 403 a.C. De acordo com os relatos de Aristteles, na dcada de 320 a ekklesia realizava quatro reunies fixas em cada um dos meses que constituam os dez meses civis. A primeira reunio era denominada de ekklesia soberana (Kria). Cada participante era inicialmente verificado, em seguida iniciavam as oferendas de purificao, pronunciavam maldies contra traidores e, a partir de ento, comeavam as sesses. Sabe-se que uma reunio ordinria durava menos do que um dia. Outro fator importante a ser destacado que na prtica nem todos os cidados participavam da ekklesia ou poderiam subir tribuna. Acreditam alguns historiadores que a populao de cidados de Atenas flutuava em torno de 20 ou 50 mil pessoas, mas que pelo menos 5 mil efetivamente participavam da ekklesia. Tanto o local no comportava um grande nmero de cidados como muitos no se sentiam atrados pelo debate ou ainda viviam desmotivados pela longa distncia que teriam que percorrer dos demos at a Pnix. Nesse sentido, no sc. IV introduziram uma espcie de pagamento para compensar o comparecimento que implicava perda de horas de trabalho. Por razes no difceis de compreender, entre 400 e 330 a Pnix sofreu reformas para acomodar um nmero cada vez crescente de cidados alcanando o quorum de 13 mil participantes. A ekklesia exigia qualidades especiais em seus oradores que lanavam mo da persuaso para obter xito em relao aos seus interesses. Essa habilidade imperiosa para o cidado ateniense proporcionou um grande desenvolvimento da educao sofstica. Os cidados que falam tribuna eram denominados de rhetores, ou seja, oradores ou ainda politeumenoi, os polticos. Os rhetores falavam na ekklesia na qualidade de lderes de pequenos grupos de polticos ou pessoas com idias parecidas (no confundir com o que chamamos hodiernamente de partidos polticos). Eram agrupamentos informais, onde aquele que expressava com maior clareza suas idias, freqentemente tornava-se o porta-voz. Alguns desses oradores foram tambm denominados de demagogs que significa literalmente, o condutor do demos 16. A conduo da justia em Atenas era responsabilidade dos thesmothtai, seis funcionrios. A democracia ateniense implicava tambm uma grande participao do cidado nos tribunais. Em Atenas, ou melhor, na antiga Grcia no havia a separao dos poderes. Foi Aristteles em sua obra Poltica que ressaltou que o cidado de uma democracia no s participava da boul e ekklesia, como tambm, participava nos tribunais.

JONES, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma introduo cultura clssica ateniense. So Paulo: Martins Fontes, 1997, p.210.16

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O surgimento de um tribunal popular como recurso contra as decises das autoridades se deu com Slon em 594, denominado de Eliaia. Aps 462-61, todos os tribunais do jri passaram a figurar como Eliaia, no s como fase recursal, mas como primeira instncia. Tais tribunais eram constitudos por jurados em um nmero que poderia variar entre 201 a 2.501 membros e, nesse sentido, tambm foram chamados de dikastria. Sabe-se que o jri era escolhido de acordo com a necessidade a partir de uma lista anual de 6 mil jurados e, mais tarde no sc. IV, eram escolhidos dentre os que se ofereciam para tal. Observa Peter V. Jones, na obra supramencionada que o termo jurado um termo inapropriado para designar os dikastai, pois no havia juzes no sentido moderno, mas jurados que eram ao mesmo tempo juzes. Os dikastai eram pagos por cada dia de sesso; pagamento que fora introduzido por Pricles.17 Pode-se presumir que o cidado que comparecia para ser jurado era o mesmo que tinha o hbito de comparecer s ekklesias. Muitas vezes a ekklesia funcionava como tribunal. Observa-se ainda a inexistncia de um rgo que funcionasse como a promotoria pblica ou uma fora policial especfica. O procedimento especfico desses rgos ficava a cargo da iniciativa particular, embora houvesse a distino entre casos pblicos e casos particulares. Neste ltimo somente a parte ofendida poderia mover a ao que por sua vez era denominada de dke. Nos casos pblicos a iniciativa ficava a cargo de quem quisesse emitir uma intimao, graph, intimao por escrito. O homicdio, por exemplo, era considerado como dke por prejudicar o papel da famlia. Se um orador na ekklesia apresentasse uma proposta inconstitucional, configuraria um caso pblico para quem quisesse salvaguardar a democracia. Rumores de subverso e problemas de desafeto poltico tambm possibilitariam uma graph. Uma vez emitida a intimao, graph paranmom18, ao orador com proposta de lei inconstitucional, esta ficaria suspensa at o julgamento e, sendo considerado culpado, pagaria uma multa e seu projeto seria imediatamente cancelado. Em Atenas, o povo como jurado julgava o prprio povo na ekklesia o que desvela, em certo sentido, o princpio da responsabilidade democrtica alcanando a todos. Na obra Apologia de Scrates que narra a verso platnica sobre o julgamento de Scrates condenado morte em 399, percebemos as peculiaridades do tribunal ateniense. No havia advogados; os querelantes falavam em causa prpria, sem regras para apresentao de provas e sem juiz. As testemunhas embora fundamentais no eram ouvidas pelas duas partes e os jurados reagiam conforme suas emoes e preconceitos morais. Os jurados votavam imediatamente aps a fala dos querelantes, sem fazer uso de recintos reservados ou de conselhos de juiz. O testemunho de escravos somente poderia ser aceito se obtido sob tortura, porque eram considerados objetos sem alma, coisas.Cf. As vespas (422) de Aristfanes que constitui uma stira sobre os tribunais. O primeiro uso da graph paranmom foi verificado em 415, momento em que houve rumores de subverso. Tambm foi utilizada na competio pelo sucesso poltico. A graph paranmom substituiu o ostracismo que foi abandonado por volta de 416. Cf. JONES, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma introduo cultura clssica ateniense. So Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 224.17 18

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Na verdade, o escravo era tido como um bem familiar valioso para o senhor que preferia no submetlo a qualquer tortura, o que contribuiu como argumento vlido para a limitao de testemunhos considerados pouco confiveis. Sabe-se que no sc. IV havia o recurso da arbitragem. Ambas as partes concordavam com a participao de rbitros particulares e se comprometiam a aceitar as decises. Segundo os historiadores, as partes poderiam invocar a arbitragem a qualquer tempo em um processo civil. Se tal mtodo no fosse eficaz, procedia-se a uma intimao. A parte ofendida se dirigia agor e verificava se as leis que l estavam expostas apoiavam seus interesses e qual o procedimento adequado sua causa. Inicialmente, a intimao era feita verbalmente, o ru comunicado perante testemunhas deveria apresentar-se ao rkhon, conselho judicirio em dia estabelecido. Na data prevista tal conselho decidia sobre a possibilidade ou no do processo. Se vivel, a queixa era registrada por escrito e ambas as partes depositavam um sinal referente as custas que o perdedor pagava por inteiro aps o julgamento. O conselho judicirio fixava um dia para a audincia e determinava que uma cpia da queixa fosse exposta publicamente na agor. No caso de uma dike a aplicao da sentena era funo do ofendido. A recusa repetida a fazer um acerto ou acordo poderia ensejar mais processos e at mesmo a perda dos direitos civis (atmia). Se o condenado se recusasse a pagar a quantia estipulada, o querelante vencedor poderia apossar-se de suas propriedades no valor referente quantia imposta. Os julgamentos em uma graph e as sentenas de morte proferidas eram atribuies de funcionrios da cidade. Atenas tinha um grande nmero de funcionrios com mandatos anuais, embora a cidade no possusse uma burocracia, no sentido moderno do termo. Segundo Aristteles, na segunda metade do sc. V, Atenas contava com setecentos funcionrios, o que ressalta o sentido democrtico na oportunidade de ocupar cargos pblicos por turnos. A situao de atima equivalia a estar fora da lei e, nesse sentido, o homem na condio de timos poderia ser morto ou roubado sem ter direito reparao legal. A atima no acarretava a perda das propriedades ou o exlio, antes, porm equiparava-se morte no sentido poltico, a privao absoluta dos direitos civis: falar na ekklesia, participar nos tribunais, integrar a boul, entrar nos templos e na agor. Em geral, a perda dos direitos civis era de carter perptuo, sobretudo nos casos considerados particularmente graves e era at mesmo dirigida aos descendentes. Peter V. Jones nos relata um caso curioso, o de Andcides, em 415 a.C., que sofreu a perda parcial dos direitos civis por se envolver na profanao dos Mistrios de Elusis. Segundo seus relatos, tal sentena foi revogada por ocasio de uma anistia geral extraordinria concedida em 403. 19

Cf. JONES, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma introduo cultura clssica ateniense. So Paulo: Martins Fontes, 1997, pp.231-2.19

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Enfim, Atenas foi a plis grega que mais contribuiu intelectualmente para o desenvolvimento das cincias e artes. A sua importncia envolve a matemtica, a retrica, a histria, a tica, a poltica, a lingstica, a lgica e as artes (poesia, escultura e arquitetura). Seus pensadores desenvolveram teorias que permaneceram vlidas durante milhares de anos e algumas perduram at hoje. 7 - A Sofstica e Scrates O sculo V vivenciou um esplndido apogeu cultural na cidade de Atenas, considerada a capital intelectual do mundo helnico. Esta cidade-estado experimentou um verdadeiro entrecruzamento de pensamentos filosficos que contribuiu para a passagem do perodo cosmolgico para a fase antropolgica. Foi nesse contexto que surgiram os sofistas. A sofstica se tornara uma exigncia da prpria democracia ateniense: formar cidados capazes de brilhar nas assemblias. Estes senhores cultivaram a retrica, conferindo maior importncia argumentao - a arte de convencer por meio do discurso em detrimento da busca pela Verdade. Muitos estudiosos denominaram esta fase como o Iluminismo grego, pois a tendncia retrica baseava-se em certo racionalismo e um esprito crtico que calcava aos ps a tradio helnica. Ressaltaram a contraposio entre o natural e o convencional, ou seja, o costume, o arbtrio dos homens que estabelece o que justo ou injusto, certo ou errado. Tais homens causaram receio e escndalo que se refletiram nas comdias de Aristfanes e nos dilogos de Plato. Todas as informaes que temos dos sofistas foram obtidas atravs dos dilogos de Plato, seu inimigo declarado. O nico estudo da sofstica repousa na existncia de alguns fragmentos ou fontes indiretas, alm de no constituir uma unidade sistemtica. Nos dilogos de Plato os sofistas figuram como os interlocutores de Scrates. Nesse sentido, resta-nos a mxima prudncia possvel ao tentar compreend-los. Mas o que fizeram tais homens? Os sofistas freqentemente criticavam o fundamento que conferia validade s leis e costumes da tradio. Atacavam o aspecto sagrado da tradio helnica. Eles observavam a diversidade cultural de sua poca e percebiam a mudana na esfera das instituies. A lei e os costumes assumiam um carter essencialmente humano, convencional, vinculado vontade dos homens. Assim como nos pensadores jnicos, o ponto de partida dos sofistas foi o movimento e a procura de uma realidade nica capaz de permanecer idntica a si mesma. Nesse sentido, surgiu com os sofistas a dicotomia natureza (physis) e lei (nomos) ou conveno. A moralidade passa a estar desligada da ordem natural e o interesse pela convenincia assume o status de pilares da vida social.

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Trasmaco da Calcednia que figura como personagem na Repblica, livro I, afirmava que a origem do nomos estaria no interesse, interesse do mais forte. Cada governo promulga leis que lhe so favorveis. O justo o que interessa ao governo estabelecido. (Trasmaco pretende descrever aquilo que de fato acontecia) Clicles, personagem do dilogo Grgias de Plato, concebe o nomos como estabelecido em benefcio da massa dos fracos como um limite ao excesso de superioridade dos mais fortes. Clicles confundia os mais fortes com os melhores. Em seu modo de ver, a injustia consistiria em algum se destacar dos demais. H na sua doutrina uma clara oposio entre um estado de natureza e o estado civil, regido por um direito positivo que limita a liberdade natural. O seu conceito de natureza se reduz aos instintos irracionais primitivos e espontneos no homem. A oposio entre natureza e conveno criou as condies de possibilidades para uma crtica das instituies positivas. Nesse sentido, atacaram os privilgios de cidadania e de classe, a escravido, a subordinao da mulher ao marido20 e a discriminao entre gregos e brbaros. Sabe-se que um sofista chamado Antifonte, escrevera a obra Sobre a Verdade da qual restou apenas um fragmento, afirmava a igualdade natural de todos os homens, asseverando que as leis estabelecidas pelos homens eram leis contrrias natureza que, na verdade, deveriam conduzir a um igualitarismo democrtico. Em outro tratado atribudo a Antifonte, Sobre a Concrdia, os fragmentos que se conservaram afirmavam a obedincia s leis fundamentadas em um egosmo enraizado numa educao criadora de hbitos socialmente aceitos. Crtias, parente de Plato e que fora membro do governo tirnico dos Trinta em Atenas, atribuiu a uma argcia a origem da obedincia s leis e a crena nos deuses. No seu modo de ver como um crime s pode ser punido se a infrao for conhecida, o homem teria inventado um ser divino que tudo v, conhecedor das infraes mais ocultas. Outro sofista importante foi Protgoras de Abdera que, ao lado de Grgias de Leontini, figura como um dos mais antigos representantes da sofstica. Sabe-se que Protgoras fora amigo de Pricles e que recebera deste a tarefa de elaborar a redao das leis da colnia ateniense de Turioi, no Sul da Itlia, por volta de 444 ou 443 a.C. Observa-se tambm que Plato tratou-o de forma diferenciada. No mito platnico, Protgoras fundamenta a coeso social nas virtudes do pudor e da justia, ofertadas aos homens por Zeus. Como os homens viviam em incessantes lutas, Zeus concedeu o dom que iria permitir a edificao das cidades. Esse mito retrata o problema do desenvolvimento das aptides sociais a partir de uma dura e lenta aquisio do gnero humano prevalecendo sobre as tendncias egostas. Para Protgoras quem no possuir as duas virtudes mencionadas deveria ser eliminado da sociedade, justificando desse modo a supresso dos insociveis mediante uma teoria da pena como20

Os defensores de certo feminismo foram ridicularizados por Aristfanes na obra O congresso das mulheres. 20

funo intimidatria em nome da defesa social. H a crena numa virtude social mdia que o esforo pedaggico seria capaz de aperfeioar certo otimismo antropolgico. Neste sofista encontramos um relativismo tico que converte em regra desejvel a utilidade social. Protgoras transforma o nomos em conseqncia de um acordo de todos os membros da sociedade. O justo ser o conveniente em cada caso, desvelando assim, certo pragmatismo. Protgoras configurou tambm o momento de um relativismo gnosiolgico expresso em sua mais famosa frase: o homem a medida de todas as coisas: das que so enquanto so; das que no so, enquanto no so. A sofstica contribuiu para a reflexo filosfica na medida em que estimulou os debates sobre os valores partilhados e introduziu novas idias. O racionalismo que marca suas consideraes crticas inspirou projetos de reformas institucionais que conduziram formulao de constituies supostamente perfeitas. Para alguns estudiosos do helenismo, esse teria sido o momento do surgimento de um gnero literrio que para outros s aconteceria muito mais tarde: a utopia. As duas primeiras utopias seriam as de Hipodamo de Mileto e de Fleas da Calcednia que foram analisadas por Aristteles no livro II da Poltica. A diversidade nas instituies que inspirara os sofistas contribuiu para o surgimento de vrias formas de governo. A plis era a maneira comum de organizao, mas o regime variava conforme os indivduos ou grupos que detinham o poder. Os gregos denominaram de tiranos, os homens que alcanavam o poder de forma irregular, a palavra no tinha o sentido pejorativo que atribumos. O mundo grego vivenciou a monarquia, o surgimento de uma classe mdia com a passagem de uma economia natural para uma de cunho mercantil, oligarquias, tiranias e democracia direta que desembocou em demagogia. Herdoto, no livro III, de sua obra Histria, oferece-nos uma fico em que h uma sria discusso sobre as diversas formas polticas de governo. Herdoto as observa e as classifica de acordo com o exerccio do poder: monarquia, o poder supremo pertence a um indivduo; oligarquia, o poder pertence a um grupo reduzido de homens que receberam uma educao especfica; isonomia, que pertence ao conjunto dos cidados, o demos. Esta classificao ser sistematicamente observada por Plato, no dilogo O Poltico e, em Aristteles, na obra Poltica. Na poca que estamos a considerar dois nomes so importantes para o debate sobre as formas de governo: Iscrates e Demstenes. Ambos trataram de um problema fundamental Democracia: a chefia nesse regime democrtico. Combateram a demagogia e a corrupo dos tribunais populares. A despeito dos vcios desse regime Demstenes o considerava o nico legtimo. J Iscrates21 props uma reforma que significaria a substituio de uma democracia direta por uma indireta e, nesse sentido, os melhores estariam encarregados da gesto dos negcios pblicos. Foi este pensador que distinguiu o sentido de justia de dar a cada um o que merece do sentido dar a21

Na obra Areopagtico(354 a.C.) e Panatenaico(340 a.C.) 21

todos o mesmo sem discriminao. Mais tarde na obra Panegrio de Atenas (380 a.C.) ressaltou a problemtica da poltica externa e apresentou a idia de uma confederao pan-helnica que pusesse fim a atomizao poltica da Grcia. Pode-se acreditar que Iscrates tenha pressentido a possibilidade da caducidade da plis grega em face da era dos grandes imprios do perodo helenstico e romano. 8 - Scrates (469-399 a.C.) Este pensador, contemporneo e opositor mais importante dos sofistas, tornou-se o ponto de partida de vrias correntes doutrinrias. Sua existncia nos foi transmitida por Plato ao coloc-lo como personagem principal em vrios de seus dilogos. Scrates se tornou a figura mais significativa da Filosofia Antiga e, isso se deu de tal forma que muitas vezes uma linha tnue separa o homem lendrio do histrico. Na verdade, Scrates nada escreveu, mas enquanto personagem platnico expressou o pensamento de seu discpulo e supostamente o seu prprio de forma que no fica claro a diferena entre o pensamento de um e o do outro. Os dilogos platnicos considerados pela tradio como dilogos socrticos, so: Apologia de Scrates, Eutfron, Crton, Protgoras, Grgias e o livro I da Repblica. Foram considerados como socrticos porque os dilogos posteriores apresentam mais acentuadamente a personalidade de Plato. O que se deve advertir que se torna recomendvel comparar a figura de Scrates traada por Plato e a apresentada por Xenofonte22, alm das referncias feitas por Aristteles. Scrates, assim como os sofistas, orienta sua investigao para os problemas humanos, observa a necessidade de substituir a obedincia cega ao nomos por uma explicao racional convincente. Difere dos sofistas quanto ao mtodo, ou seja, no se preocupa com grandes discursos, antes, porm prioriza a clareza nos conceitos, a simplicidade na exposio e, introduz os temas mediante o uso de perguntas e respostas que vo pouco a pouco rodeando o objeto, descobrindo seus diferentes aspectos at desnudar a superficialidade e impreciso de certas opinies ou juzos proferidos pelo senso comum acerca de tal objeto mtodo maiutico. Seu mtodo enfatiza a necessidade de definies rigorosamente formuladas, porque a verdade nasce no interior desse dilogo. Scrates personifica, portanto a figura do homem insubornvel, cujo esprito prefere demonstrar uma ignorncia confessa a apresentar um falso saber. Podemos dizer que o seu mtodo o conduziu a um intelectualismo tico. Quero dizer com isso que para Scrates a moral se reduziu ao conhecimento do bem, pois acreditava que todos poderiam conhecer a verdade se interrogassem a si mesmos e comparassem seus juzos com os dos demais. O conhecimento se torna uma virtude e, nesse sentido, o homem pratica o mal por ignorncia do bem.

Xenofonte(ca.430-354 a.C.) suas obras foram conservadas na ntegra: Hiero, Repblica dos Lecedemnios, Repblica de Atenas, Ciropdia e Econmico.22

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No mbito da filosofia poltico-jurdica, Scrates se ope tese sofstica da moral do mais forte e do relativismo, ensinando em seu lugar o princpio segundo qual mais digno sofrer a injustia do que comet-la e, se por uma fatalidade a cometeu, prefervel aceitar a sano correspondente. Nesse sentido, no interior de uma tica comprometida com o aperfeioamento da alma humana, a pena figuraria como um remdio para o homem. No seu modo de ver, a temperana e a justia so condies indispensveis para a maior felicidade humana. A Filosofia assume, portanto, o papel de tornar possvel essa perfeio. Scrates ensinava que as leis eram necessrias e correspondiam a uma exigncia da natureza humana. Isto implica dizer que a obedincia s leis um dever sem excusas. a plis que torna possvel a vida do cidado, logo h um acordo tcito pelo qual o cidado deve a sua obedincia.23 Faz-se mister ressaltar que essa postura de Scrates no torna lcitas consideraes de que ele teria sido um positivista que tenha separado o Direito da Justia. A esse respeito cito Truyol y Serra: Scrates v na cidade uma realidade tica, fundamentada na ordem divina das coisas. Esta legitimidade essencial no destruda por erros acidentais. O prprio Scrates alega que, em certa ocasio, ofereceu resistncia passiva a uma ordem injusta, sob o governo dos Trinta Tiranos. Tambm se opusera a um acordo ilegal feito em assemblia popular. Mas essa desobedincia no pode ir ao extremo de pr em perigo os alicerces da ordem social, sem os quais inconcebvel uma vida humana digna de tal nome.24 Ademais, Scrates concebia a existncia de leis no escritas advindas da vontade reta da Divindade. Estas leis estariam nas conscincias humanas fundamentando sobretudo as leis positivas. Todavia no ignorava os conflitos que na realidade aconteciam entre ambas. Outro fator importante a sua oposio ao regime democrtico de Atenas, pois no compreendia como uma multido poderia conduzir corretamente os negcios pblicos com a devida competncia. Foi exatamente sua crtica ao regime democrtico em conjunto a um mtodo que denunciava a superficialidade intelectual de alguns homens o que concitou inimigos poderosos. Scrates foi acusado de introduzir novos deuses e de corromper a juventude; foi condenado morte. Nos dilogos Apologia de Scrates e Fdon conhecemos um pouco dessa morte trgica e podemos perceber Scrates como um verdadeiro homem virtuoso que no fugiu morte; que acreditava na imortalidade da alma e na justia divina. O seu imperativo tico impelia-o prtica do bem, a jamais retribuir uma injustia com outra injustia. Como j pude mencionar, seu pensamento tornou-se o ponto de partida de vrias escolas, das que podemos chamar de socrticas por

Cf. o dilogo Crton. JONES, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma introduo cultura clssica ateniense. So Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 111.23 24

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aproximarem-se de Scrates no focar dos problemas por este tratado, destaco os Cnicos e os chamados socrticos menores ou Cirenaicos25. Resumidamente podemos dizer que a escola cnica tradicionalmente atribuda a Antstenes (ca. 445-365 a.C.) outros revelam o nome de Digenes de Snope (flc.323 a.C.) como primeiro cnico. A escola cnica operou uma aproximao do pensamento de Scrates e dos sofistas, sobretudo de Grgias, visto que Antstenes foi discpulo de Grgias antes de seguir Scrates. O nome cnico se deve ao fato de que Antstenes ensina junto ao Cinosarges, ou seja, Prtico do Co, da a palavra cnicos para os seguidores desta escola. O cinismo exagerou o aspecto asctico da personalidade de Scrates. A virtude convertida na moderao entendida esta como verdadeira negao de necessidades. Postula-se a indiferena em relao aos bens externos. A diferena entre os sbios e os ignorantes repousa sobre a capacidade de autodomnio e desapego aos bens materiais. O conceito central dos cnicos era a auto-suficincia do sbio e a partir desta concepo formularam crticas s instituies e valores sociais. Desaconselhavam o casamento em face do amor livre, o desapego do significado da plis em face de uma concepo cosmopolita. Um pacifismo radical no interior de um cosmopolitismo igualitrio. Pregaram uma desvalorizao da cultura e, portanto eram avessos propriedade, famlia, cidade, ao nomos etc. O seu ideal seria um estado de natureza sem convencionalismos. Compreendiam natureza como o locus de uma espontaneidade sem esforo, glorificando o bom-selvagem26. Construram um jusnaturalismo fundado na moral da renncia. Os socrticos menores ou Cirenaicos partem de um ponto de vista aparentemente oposto ao dos cnicos. Percebe-se um vnculo com Scrates tambm distante. Sabe-se que o seu fundador, Aristipo (435-355 a.C.), antes de se vincular a Scrates fora discpulo de Protgoras. Os cirenaicos identificaram o bem com o prazer, hedone, compreendendo este como satisfao de um desejo. Em seu modo de ver a virtude uma faculdade de gozar e a sabedoria significa saber procurar o prazer. Na tica cirenaica abre-se o caminho para o postulado de uma auto-suficincia. Comentam os estudiosos que esta doutrina veio a cair num pessimismo motivado pela experincia deprimente da fugacidade do prazer, ou seja, o prazer fugaz, logo surge a necessidade psicolgica da sua repetio que causa com o tempo um amortecimento progressivo. Negou-se a vida quando esta no poderia oferecer o mnimo de prazer, apresentando como sada possvel o suicdio, hegesias. O sbio cirenaico afasta-se de tudo o que no oferece prazer, afasta-se, sobretudo de uma participao poltica e social. Conforma-se com o mundo, sem intenes de reformas nas instituies, configurando um verdadeiro conformismo. Compreenderam que a forma25 Os 26

cirenaicos foram assim chamados por ser o seu fundador oriundo da cidade de Cirene. As idias do cinismo nos fazem lembrar as proferidas por Rousseau sobre o bom-selvagem. 24

monrquica seria a mais desejvel visto no exigir participao do sdito na vida pblica. No conceberam a dicotomia natureza/ norma, mas afirmaram que nada justo por natureza e, nesse sentido, no h outro direito que o direito positivo, fruto da vontade humana. Eles professavam um positivismo moral e jurdico que mais tarde ser adotado por Epicuro. O apogeu dessas duas doutrinas que contriburam para posterior formao do estoicismo e do epicurismo marca a decadncia da plis grega como forma suprema de vida. O extremo individualismo que surge opera certo desligamento da felicidade em relao comunidade e em relao tradicional concepo do homem como bom cidado.

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Parte II - A justia na concepo de Plato (428 347 a.C.)27

Mas, a verdade que mais bem governada a polis em que aqueles que devem deter o poder so os menos ansiosos de poder. Ocorre o contrrio com aquela cujos dirigentes so mais vidos de poder. (A Repblica, livro VII, de Plato)

1 - Introduo Plato nasceu em 427 ou 428 a.C. Filho de uma famlia da aristocracia ateniense que se dedicava poltica, foi discpulo de Crtilo que por sua vez foi seguidor de Herclito e, posteriormente, Plato tornou-se discpulo de Scrates. Fundou sua Academia em 387 a.C., nos arredores de Atenas, em cujo prtico figurava: No passe destes portes quem no tiver estudado geometria. A academia de Plato durou cerca de um milnio, at o momento em que Justiniano a dissolveu em 529 d.C. Nos dizeres de Truyol y Serra:Scrates ultrapassou o relativismo e o individualismo dos sofistas, ao afirmar a existncia de uma ordem moral objetiva de validade absoluta, no deixou, apesar de tudo, um sistema, que desenvolvesse os seus postulados. Por sua vez, as escolas socrticas limitaram-se a destacar unilateralmente aspectos, ocasionalmente antinmicos do seu ensino. A tarefa de desdobrar em vasta sntese o que em Scrates era apenas grmen, viria a caber a Plato. 28

Nesse sentido Plato fornece a primeira formulao clssica da Filosofia, isto , a problemtica do conhecimento, a possibilidade do conhecimento enquanto realidade. Para isso tem por preocupao o mtodo na relao direta se possvel o conhecimento; a verificao se o conhecimento passa pelos sentidos ou pela razo; o mundo sensvel e o mundo inteligvel como objetos de conhecimento. Para Plato a Filosofia adquire a funo de crtica dos fundamentos da cultura. A obra desse filsofo uma longa reflexo sobre a decadncia dos costumes atenienses, tanto do sentido de poltica como dos valores e ideais (modelo), contexto histrico que condenou seu mestre Scrates morte. Por isso afirma-se que o pensamento platnico essencialmente poltico, isso considerando a tradio em que ele se situa e a crise poltica de seu tempo. Plato em suas reflexes analisa as estruturas mltiplas de sua cidade e suas respectivas interferncias na vida dos homens. Tal anlise realizada por meio do dilogo, cuja funo seria denunciar a fragilidade e a ausncia de fundamentos das opinies dos homens. O papel do filsofo seria, portanto, o de levar seu interlocutor, atravs da dialtica (da discusso), a dar luz s idias, uma vez que aprender recordar as formas puras contempladas pela alma quando livre do corpo. Percebe-se ento que Plato abraa o problema

27 Este 28

texto foi elaborado em conjunto pelos professores Wellington Trotta e Clara Maria C. Brum de Oliveira. P.119. 26

socrtico da superao do cepticismo gnosiolgico (impossibilidade do conhecimento) dos sofistas, isso a partir da aplicao do mtodo socrtico (maiutica), fonte de sua dialtica. No processo de buscar a essncia pelo mtodo da discusso, Plato apela para o mito como recurso. E, sendo assim, qual a funo do mito no pensamento platnico? O eros filosfico de Plato voa jubilosamente nas asas do mito, comprazendo-se no smbolo e na fbula (Truyol y Serra, 120). O mito exerce funo importante em seus dilogos, uma vez que a tradio mitolgica mantm-se como referncia cultural importante. Trata-se de um discurso indireto, enriquecido com smbolos para ajudar na compreenso dos objetos, coisas e idias complexas. E partindo desse princpio Plato concebeu o mundo em uma realidade dualista: de um lado, o mundo material visvel com objetos particulares, concretos, imperfeitos, mutveis, perecveis. Mundo este que denominou de mundo das sombras, em que o conhecimento superficial, imediato e incompleto. De outro lado, concebeu o que chamou de mundo inteligvel ou mundo das idias com realidades abstratas, perfeitas, eternas, imutveis, inteligveis. Nesse mundo inteligvel encontramos as idias (formas puras) das coisas, ou seja, a natureza essencial das coisas. A partir desse princpio, para Plato, a essncia a-histrica, ou seja, trata-se de uma forma permanente na qual persiste s mudanas. A essncia possui existncia prvia aos objetos. Quando pretendemos conhecer algo, descobrimos a essncia imutvel deste algo que est sendo investigado (Manfredo, 1993: 30). Em contrapartida as coisas singulares que existem no mundo so sombras das idias que configuram formas primordiais ou arqutipos eternos. por isso que os sentidos no oferecem a possibilidade do conhecimento verdadeiro e sim aparncias enganosas, apenas doxa. O ponto de partida o senso comum, a mera opinio para um reexame crtico. A esse respeito o prprio Plato comenta que:A Filosofia corresponderia a um mtodo para se atingir o ideal em todas as reas pela superao do senso comum, estabelecendo o que deve ser aceito por todos, independente de origem, classe ou funo. isso que significa a universalidade da razo. A prtica filosfica envolve assim, em certo sentido, o abandono do mundo sensvel e a busca do mundo das idias (A Repblica, Cap. VI e VII).

Portanto, as idias (formas puras) constituem a verdadeira realidade e na sua hierarquia, coroa-se a idia do Bem. O fim supremo do homem realizar, o quanto possvel, o Bem, vencendo os sentidos por intermdio de uma vida virtuosa fundada no autntico saber. Importa subordinar os sentidos razo, porque essa hierarquia ontolgica existe tambm na esfera axiolgica conseqentemente. Essa relao hierrquica influenciar seu pensamento poltico e diretamente suas construes ticas.

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A Repblica (Politeia), o Poltico (Politiks) e As Leis (Nomoi) so dilogos que nos oferecem a medida da importncia da filosofia poltico-jurdica no pensamento de Plato. O tema da justia, da melhor forma de vida em comunidade, constitui o eixo em torno do qual gira a sua especulao filosfica, o que nos revela a sua Carta VII. Esta famosa epstola descreve o processo da vocao polticofilosfica de Plato e sua desiluso com a vida pblica, visto que os homens pblicos so dominados pelos interesses particulares. A realidade poltica de Atenas marcada pelas particularidades, por injustias e corrupes, o fez desistir de ingressar na vida pblica. Plato compreendeu a corrupo como um dos fenmenos de sua poca e acreditou que a Filosofia poderia resgatar a ordem e a justia nas relaes sociais. O seu programa visava instaurar uma poltica fundamentada no saber. Seu projeto configurava uma concepo pedaggica da comunidade. A obra a Repblica contempla a idia de uma comunidade alternativa quelas existentes. A relevncia da educao no pensamento de Plato outra marca de seu pensamento. Para ele uma sociedade deveria ser edificada a partir de laos integrativos. Para tanto destaca a importncia da educao, pois de fato suas implicaes logicamente que obrigam a criao de uma identidade cultural, portanto poltica no sentido de unidade comunitria. Nessa perspectiva Plato o primeiro pensador a defender o carter pblico da educao, entregando ao poder pblico comunitrio a responsabilidade de sua execuo. Como o sentido da educao comunitrio e a poltica visa por meio daquela estabelecer laos integrativos no interior da polis, a razo a medida de tudo que possa ser perceptvel pela inteligncia e, nesse contexto, a justia afigura-se como a virtude suprema do cidado, o fundamento da polis. Para Plato sua carncia propicia a degenerao dos regimes polticos. A obedincia s leis configura, na concepo grega um quanto de harmonia, isto , como ordem do cosmos. Partindo dessa premissa temos que compreender o paralelo que estabeleceu entre a tripartio da alma e a sua teoria da polis. 3 - Relao entre alma e cidade: o governo da razo Na Repblica, livro IV, Plato concebe a alma como tripartite, ou seja, a mesma se divide em uma parte racional, e outra irracional que, ao seu turno se subdivide em irascvel (impulsos e afetos) e concupiscente (necessidades elementares). A parte racional regida pela sabedoria ou prudncia, capaz de estabelecer o que convm a cada um. A parte irascvel corresponde fortaleza e coragem que permitem seguir os imperativos da razo. J a parte da concupiscncia est relacionada ao sentido das necessidades elementares. As duas dimenses da parte irracional da alma devem se submeter parte racional atravs da virtude da temperana ou moderao. Com tais virtudes surge a virtude da

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justia que estabelece o equilbrio de cada uma das faculdades em seu mbito prprio e funo especfica. Estabelecendo uma analogia da alma com a cidade, Plato apresenta o que podemos chamar de concepo organicista de sociedade. A Cidade constaria de trs classes diferenciadas por suas funes prprias. A primeira seria a dos magistrados ou governantes, guiados pela sabedoria; a segunda dos guerreiros que defenderiam a polis interna e externamente, cultivando a fortaleza; a terceira e ltima dos artesos (artfices), comerciantes, agricultores e aqueles que constituiriam a base econmica da cidade. As classes dos guerreiros e dos artfices aceitam o domnio dos governantes pela ao da temperana ou moderao. Assim como na alma, a justia apresenta-se primordialmente para garantia do funcionamento do todo e da manuteno da hierarquia baseada nas tarefas especficas de cada classe. O seu pensamento poltico inspirou-se no postulado segundo o qual a parte se subordina ao todo, o que significa dizer que as classes se subordinariam ao bem comum da cidade. Plato opera uma inverso na concepo individualista da sofstica quanto relatividade das coisas, buscando o sentido de universalidade pela superao da individualidade absoluta. Nesse modo de ver, o indivduo se situa no plano coletivo e no em uma autonomia absoluta perante a polis. Esta existe para tornar possvel a vida humana. H uma diviso de trabalho que permite coordenar as diversas aptides visando o bem comum. Destarte o horizonte do indivduo seria o horizonte do cidado. Faz-se mister ressaltar que as classes da Repblica no se baseiam em uma ordem hereditria. O ponto fundamental repousa sobre as aptides pessoais dos membros da polis, desenvolvidas pela cidade atravs do processo educacional orgnico-administrado. A aristocracia de Plato uma aristocracia do esprito o saber legitima o poder. Ademais, Plato equiparava a mulher ao varo observando uma educao idntica para ambos os sexos. Plato em seu projeto poltico-pedaggico suprime a instituio famlia e a propriedade privada para as duas classes superiores dos magistrados e dos guerreiros a fim de afastar interesses particulares que pudessem conduzir corrupo. Somente as duas classes superiores teriam participao na vida pblica, enquanto que o complexo dos artfices estaria limitado vida na esfera privada. Na cidade platnica, governada pelo sentido da filosofia, no seria necessrio o direito positivo, pois os magistrados deveriam decidir, em cada caso particular, o que a justia exigiria segundo as circunstncias. Esse pensamento no perdura nos dilogos considerados tardios, O Poltico e As leis, em que Plato, mais velho, desiludido com as experincias na Siclia, admite a necessidade de fixar princpios de governo em leis positivas. Reconhece a importncia da famlia e da propriedade privada, evitando-se o excesso de riqueza e pobreza, pois no seu entender seria a causa de toda a discrdia civil. A cidade descrita na obra As Leis se afigura como uma teocracia em que os magistrados29

assumem a dignidade de intrpretes da vontade divina. Em O Poltico, apresenta a necessidade de uma legalidade. H uma clara mudana de perspectiva em Plato mais velho, consciente da imperfeio dos homens. 3 - Organizao Poltica da Cidade Plato nos oferece duas classificaes distintas das formas de governo, uma na Repblica, livros VIII e IX e outra no Poltico. Na Repblica descreve cinco formas. Entretanto, somente uma assume o carter de justa e legtima: a aristocracia do esprito ou governo dos sbios. Todas as restantes so formas corruptas que no permitem a realizao da justia. Se os guerreiros tomarem o poder teremos uma timocracia ou timarquia que significa governo da honra, caracterizado pela ambio do esprito belicoso. Esta forma poderia conduzir a uma oligarquia que liga o poder fortuna. Todavia, o enriquecimento de poucos e a extrema pobreza de muitos poder gerar a democracia, o governo da multido, que aspira a igualdade absoluta, desrespeitando hierarquias naturais e legtimas. Dessa forma, a democracia, desemboca na desordem, que acaba por ser aproveitada por algum indivduo ambicioso e audacioso, capaz de instaurar uma tirania que desvelaria um carter violento e desenfreado. Os seus excessos provocariam a reao dos mais decididos e com seu derrube encerrase o ciclo constitucional, ou seja, a dinmica poltica. No Poltico apresenta dois critrios de formas de governo: o nmero dos que participam do governo e a legalidade ou ilegalidade dos mesmos. Encontramos trs formas legais e trs ilegais de governo. As legais so a monarquia ou realeza, a aristocracia e a democracia. As formas corruptas so: a tirania, a oligarquia e a democracia (demagogia). Na verdade, Plato confere maior rigor sistemtico s teorias de Herdoto e Eurpides. Nas Leis, acrescenta um novo termo: uma forma mista de governo, ou seja, uma mistura de monarquia e democracia que se apresenta como a nica capaz de assegurar a paz social. Esta concepo assimilada por Aristteles influenciar seu pensamento poltico. 4 - A idia de Justia A idia socrtica de que a Cidade (o poder poltico), na qual a famlia e o indivduo formavam um todo harmnico, permanece na obra A Repblica e se torna o fundamento da idia de justia como virtude, que significa a observncia permanente da lei e, ao mesmo tempo, como idia da razo. O sentido de ordem poltica ideal o de justia que correlaciona intrinsecamente lei e justia. As leis so justas porque so editadas por quem pratica a virtude da justia e a conhece em sua estrutura para alm do plano das aparncias, isto , numa imagem divina. Nesse sentido encontramos a ligao entre as duas perspectivas do conceito de justia em Plato: justia como idia (forma pura) e justia como virtude.30

Segundo Joaquim Carlos Salgado,

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o pensamento platnico sobre a justia o ponto de

partida para uma reflexo sobre a idia de justia como igualdade. Plato apresenta duas perspectivas de sua concepo de justia na obra a Repblica, a saber: a justia como idia e a justia como virtude ou prtica individual. Nas primeiras obras, Plato apresenta o conceito de justia comprometido com a idia de virtude do cidado ou do filsofo. Ao relacionar o clebre livro VII, da Repblica, que narra a Alegoria da Caverna em conjunto com sua teoria da reminiscncia, compreende-se com maior clareza o que o fundador da Academia assinala na Carta VII, isto , s conhece a justia quele que justo, ou seja, s conhece a justia quele que a compreende na perspectiva divina, pelo conhecimento da alma e no dos sentidos. Plato enfatiza o agir justo na medida em que considera o outro como portador dos mesmos direitos para a superao da tica egosta. O outro nos desvela uma dimenso exterior e o comprometimento do homem com a sua polis. Tanto na Repblica quanto no Grgias, Plato enfatiza atravs de seu personagem, Scrates, que fazer a justia melhor que receb-la, e sofrer a injustia melhor que pratic-la. Na Repblica, exprime que o melhor modo de viver o viver praticando a justia, correlacionando atos justos com alma sadia. A justia uma virtude que fundamenta e fortifica a alma. Embora no Crton, a concepo de justia se apresente como a conformidade das aes com a lei, a essncia da idia de justia platnica no se limita somente a esse entendimento. Na Repblica, livro I, Plato expressa a difusa idia de justia em um conceito preciso a partir do entendimento do poeta Simnides, 30 que afirmava a idia de justia como dar a cada um o que lhe devido. Plato amplia essa idia para alm da simples relao entre particulares e a relaciona diretamente com a estrutura de sua cidade. No dizer de Salgado:Dar a cada um o que lhe pertence, o que lhe adequado, explicita-se na estrutura do Estado Platnico, dividido em planos, segundo as aptides de cada um de seus participantes, de modo semelhante ao que ocorre com a alma humana, na sua concepo. O que devido a cada um, o que lhe pertence por natureza o posto que corresponde s suas aptides e a funo que cada um, por fora dessas mesmas aptides, pode desempenhar no Estado.31

Plato concebe a justia como uma preocupao poltica que repousa na idia de igualdade; uma igualdade geomtrica, na medida em que garante a cada um o que lhe devido, segundo suas aptides. O seu conceito de justia assume tambm o carter de universalidade enquanto se vincula idia de harmonia do cosmos. A justia um compromisso do cidado com a Cidade; dedicao ao bom funcionamento da vida coletiva a partir das aptides naturais de cada um. Sendo assim, Plato

SALGADO, Joaquim Carlos. A Idia de Justia em Kant. Seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1995, pp. 24-29. 30 PLATO. A Repblica, 332c, 433a, 433e. 31 SALGADO, Joaquim Carlos. A Idia de Justia em Kant. Seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1995, p. 27 e Plato. A Repblica, 43329

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elabora duas vertentes do conceito de justia: a justia como idia norteadora do direito e da lei, e a justia como virtude norteada e determinada pela lei. Ou dizendo de outro modo, a idia de justia e a concepo da justia como hbito de cumprir o direito. Por fim Plato desenvolve um conceito de justia retributiva e transcendente. Vejamos. Na Repblica, livro X encontra-se o mito de Er que consagra o sentido de justia retributiva e transcendente. O mito narra a histria de um guerreiro chamado Er que vivencia a experincia da justia como recompensa no alm-tmulo. Er, natural da Panflia, na sia Menor, bravo soldado que morreu em combate, jaz na pira funerria dez dias aps sua morte. Subitamente, volta vida e narra o que viu no mundo alm-tmulo. Disse que, depois de morto, viajou at uma terra estranha onde o solo era rasgado por dois grandes abismos. Por cima, havia dois buracos correspondentes no Cu. Entre os abismos estavam sentados os juzes que julgavam todas as almas e as marcavam com um sinal: os justos entravam pelo abismo da direito, para o Cu; os injustos entravam pelo abismo da esquerda, que conduzia ao mundo subterrneo. Er no foi autorizado a entrar em qualquer dos buracos, mas foi escolhido para levar uma mensagem aos mortais. Observou que as almas dos injustos passavam por uma longa experincia vivenciando dez vezes mais todo o mal que causaram. Este o sentido retributivo da justia em Plato. As almas dos justos falavam em felicidade e alegria, recompensas de uma vida virtuosa. As almas vindas dos subterrneos, aps expiarem todo o mal que praticaram e vivenciar as dores do arrependimento, eram encaminhadas ao trono das Parcas: Lquesis, tropo e Cloto para receberem novas vidas como mortais. Cada alma poderia escolher a vida que desejava, algumas eram sensatas outras tolas. Todas, aps suas escolhas, bebiam a gua do rio do esquecimento, de modo que perdessem todas as recordaes da vida passada, para renascer em novas vidas. Muitas praticavam os mesmos erros. A justia para Plato no deste mundo, mas se configura como a recompensa para aquele que escolhe a vida moral e conforme ao direito. 5 - O projeto platnico: uma utopia? Sabemos que Aristteles, no livro II, da Poltica, apresenta uma reflexo crtica que considera a Repblica e As Leis como projetos de cidade perfeita e as relaciona com as supostas utopias de Hipodamo de Mileto e de Fleas da Calcednia. Entretanto, temos que ressaltar que a inteno de Plato no era edificar um mundo social irreal, utpico, mas construir uma crtica aos fundamentos de sua cultura Como essa mesma cultura se estruturava, e dentro dos limites da imaginao, a pretenso de Plato era descrever uma comunidade possvel na perspectiva de novos valores comandados pela retificao dialtica da educao. Considerar a Repblica uma utopia depender do conceito mais ou menos amplo que se tenha das idias contidas ao longo de suas linhas.

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O idealismo poltico de Plato exerceu grande influncia na posteridade. Plotino tentou fundar uma cidade segundo o modelo da Repblica com a ajuda do Imperador Galeno, projeto este que ficou inacabado por ocasio do falecimento do monarca. Atravs dos discpulos de Plotino, o platonismo alcanou os Padres da Igreja Grega. Santo Agostinho incorporou o platonismo (teoria das idias) na concepo crist do mundo. A sua doutrina determinou a orientao do pensamento medieval at a recepo do aristotelismo por Alberto Magno e Toms de Aquino, no sc. XIII, permanecendo ainda atravs da corrente franciscana da Escolstica. A influncia platnica no Renascimento propiciou a abertura de vrias Academias a comear por Florena (1459), atravs de Cosme de Mdices e dirigida por Marslio Ficino (1433-99). Houve clara influncia sobre a obra Utopia de Tomas More (1478-1535) e sobre o conjunto do pensamento de Campanella (1568-1639). Nos sculos XVII e XVIII houve grande influncia na Inglaterra, notadamente na Escola de Cambridge, com Henry More (1614-1687), mais tarde parcialmente ofuscada pelo predomnio do utilitarismo e do evolucionismo no sc. XIX. Embora Plato esteja distante de nossa realidade, longe deste mundo nada simples, complexo por mecanismos at em certa medida desnecessrios, pode-se ler Plato dentro da dimenso crtica dos costumes, dos valores e dos hbitos constitudos por uma viso utilitarista dos interesses imediatos. Mesmo no nos parecendo prximo, Plato, atravs de seu olhar idealista, ajuda-nos a vislumbrar uma possibilidade meio que perdida: a reconstruo de uma nova estrutura social a partir de uma reestruturao do homem para essa nova sociedade, tendo por fundamento o ideal de justia para alm das aparncias e do sentido mesquinho que por ora corri o tecido da vida coletiva.Trasmaco -- Certamente que cada governo estabelece as leis de acor