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EUGÊNIA AUGUSTA GONZAGA FÁVERO O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E SUA IMPLEMENTAÇÃO PELAS CONVENÇÕES INTERNACIONAIS MESTRADO EM DIREITO PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO São Paulo - 2006

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EUGÊNIA AUGUSTA GONZAGA FÁVERO

O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E SUA IMPLEMENTAÇÃO PELAS

CONVENÇÕES INTERNACIONAIS

MESTRADO EM DIREITO

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

São Paulo - 2006

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EUGÊNIA AUGUSTA GONZAGA FÁVERO

O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E SUA IMPLEMENTAÇÃO PELAS

CONVENÇÕES INTERNACIONAIS

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica, como exigência parcial para

obtenção do título de MESTRE em Direito

(Subárea de Direito Constitucional), sob a

orientação do Professor Doutor Luiz

Alberto David Araujo.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

São Paulo - 2006

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BANCA EXAMINADORA:

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Para Evandro, meu amado amigo,

e para meus filhos, Gabriela e Vinícius,

luz e sentido sempre renovados na minha vida.

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Agradecimentos

Foram dois anos de trabalho, nos quais, às incontáveis dificuldades próprias

deste processo de capacitação, somaram-se demandas de toda natureza, tendo em

vista a necessidade de se atender à vida profissional, prática e pessoal. Só mesmo a

ajuda e o estímulo das mais diversas pessoas para tornar possível a concretização

deste objetivo. A elas sou extremamente grata.

Agradeço ao Professor Luiz Alberto David Araujo, intelectual competente e

dedicado, pela leitura atenta dos meus vários escritos e pelas sugestões e correções

fundamentais. Ter desfrutado de sua sabedoria e generosidade constituiu para mim

um privilégio inestimável.

Ao meu marido, Evandro, por todo o amor, carinho e compreensão que me

dedicou, apesar de tantas ausências em nome do trabalho e dos estudos.

À minha sogra, Terezinha, e à Andréa, a “Dédi” querida das minhas crianças,

que me permitiram ter a tranqüilidade de saber que, em casa, tudo sempre esteve

bem.

À Mari e à Patrícia, presenças firmes e queridas em meu Gabinete, que

acompanharam todos os passos desta e de muitas outras caminhadas.

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Aos demais amigos e amigas, Membros e Servidores do Ministério Público

Federal, onde realizo o trabalho que sonhei desde quando nem sabia de sua

existência, pelo apoio e carinho de sempre.

Às amigas, Cláudia Werneck, Rosane Lowenthal e Maria Teresa Mantoan, na

pessoa de quem agradeço a todos os integrantes de Ong´s e movimentos sociais

com quem tive contato neste período, pelo debate franco e animado, na constante

busca pela mais ampla e verdadeira inclusão social (por mais questionável que o

uso desses adjetivos possa ser junto à palavra “inclusão”).

À minha mãe que, mesmo à distância, participou de mais este momento da

minha vida, interessando-se, sugerindo e torcendo para que tudo desse certo.

Finalmente, além de todas essas pessoas que, de uma forma ou de outra,

deram sua contribuição, eu jamais poderia deixar de agradecer a força e o conforto

que encontro na lembrança do meu pai querido, em Nossa Senhora e nAquele cujo

Filho fez afirmações que poderiam dispensar todas as teorias aplicáveis ao estudo

da igualdade.

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RESUMO

O objetivo deste trabalho é extrair das convenções e tratados internacionais

elementos que podem contribuir de forma significativa para a implementação do

princípio da igualdade. Apesar de todo o avanço que presenciamos neste campo,

em relação à conhecida máxima aristotélica, segundo a qual é preciso tratar

igualmente os iguais e desigualmente os desiguais para o alcance da Justiça, as

situações de exclusão de grupos minoritários, muitas vezes com o beneplácito dos

aplicadores do Direito, ainda são muito freqüentes. Analisaremos, inicialmente, os

ensinamentos doutrinários que vêm servindo de parâmetro para a aplicação do

princípio da igualdade. Tendo em vista os problemas que podem ser gerados pela

pré-compreensão do intérprete, vamos concluir que os critérios apontados pela

doutrina talvez sejam insuficientes. Passaremos então à análise do princípio da

igualdade positivado, tanto nas Constituições brasileiras, como em diversos tratados

e convenções internacionais. Ao final, apontaremos elementos ou requisitos para a

aplicação do princípio da igualdade extraídos das convenções e tratados

internacionais, reunindo-os com os elementos já admitidos pela doutrina tradicional e

aplicando-os a exemplos concretos e polêmicos de tratamentos diferenciados, tais

como a proibição de doação de sangue por pessoas com orientação homossexual, a

reserva de vagas em vestibulares, entre outros.

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ABSTRACT

The objective of this work is to extract the conventions and international

treaties, elements that could contribute in a significant form to the implementation of

the principle of equality. Even with all the advances that we have witnessed in this

field, in relation to the well known Aristotle maxim, according to which it is necessary

to treat equally the equals and unequally the unequal to attain justice, the situation of

the exclusion of minority groups, many times with leniency of the law makers, is still

very frequent. We will firstly analyze the teaching philosophy that is being used for

the parameters in the application of the principle of equality. Taking into

consideration the problems that can arise from the pre-comprehension of the

interpreter, we can conclude that the criteria specified by the doctrine might be

insufficient. We will therefore go straight to the analysis of the written equality

principle, not only in Brazilian Constitutions, but also in various treaties and

international conventions. Finally, we will specify elements or prerequisites for the

application of the principle of equality extracted from the conventions and

international treaties. We will unite them with the elements already admitted by the

traditional doctrine and apply them to concrete and polemic examples of different

application, such as the prohibition of blood donation by people of homosexual

orientation, the reservation of places in pre-admittance tests for universities and

colleges, and other examples.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 01

PARTE I – PRINCÍPIOS E IGUALDADE ........................................................................ 03

1. Os princípios jurídicos ................................................................................... 04 1.1 Importância dos princípios ................................................................. 05

1.1.1 O papel dos princípios na visão do Direito como sistema ...... 06 1.1.2 O princípio como alicerce, viga mestra, pedra de fecho: uma narrativa para ilustrar a importância dos princípios ........ 08

1.2 Função e interpretação dos princípios ............................................... 13 1.3 Definições de princípio ....................................................................... 14 1.4 Normas, princípios e regras ............................................................... 17 1.5 Características dos princípios ............................................................ 19 1.6 Tipologia dos princípios ..................................................................... 22

1.6.1 Princípios gerais: jurídicos e gerais do Direito, explícitos e implícitos (gerais de direito) ................................................. 23 1.6.2 Princípios jurídicos em sentido amplo: constitucionais,

legais ou infralegais ................................................................ 25 1.6.3 Princípios constitucionais e princípios gerais de direito ......... 27 1.6.4 Classificação dos princípios constitucionais ........................... 29

1.6.4.1 A classificação de Canotilho ..................................... 29 1.6.4.2 Outras classificações ................................................ 31

1.6.5 Princípios fundamentais ......................................................... 33 1.7 Destaque e localização do princípio da igualdade

entre os princípios............................................................................... 37

2. Igualdade: igualdade, democracia e Justiça ................................................. 41 2.1 Democracia e resumo histórico ......................................................... 43 2.2 Igualdade e Justiça ............................................................................ 48

3. A máxima aristotélica como ponto de partida para os estudos do princípio da igualdade .................................................................................... 52 4. Elementos necessários para a implementação do princípio da igualdade

na visão da doutrina contemporânea ............................................................ 54 4.1 As lições de Perelman ....................................................................... 54 4.2 As lições de John Rawls .................................................................... 59 4.3 As lições de José Joaquim Gomes Canotilho .................................... 60 4.4 As lições de Jorge Miranda ................................................................ 62 4.5 As lições de Celso Antônio Bandeira de Mello .................................. 64

5. A igualdade na visão do Supremo Tribunal Federal ...................................... 66 6. Conclusão parcial: a dependência de um juízo de valor para a aplicação do princípio da igualdade e a pré-compreensão do intérprete ...... 75

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10 PARTE II – O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NAS CONSTITUIÇ ÕES BRASILEIRAS E NOS DOCUMENTOS INTERNACIONAIS ................................................. 80

1. A igualdade nas Constituições brasileiras (1824 a 1967): “igualdade perante a lei” .................................................................................................. 81

2. A igualdade na Constituição brasileira de 1988 ............................................. 88 3. Abertura constitucional aos tratados e convenções internacionais sobre direitos e garantias fundamentais .................................................................. 92

3.1 Definição de tratados e convenções internacionais ........................... 93 3.2 Requisitos para sua incorporação ao

ordenamento jurídico brasileiro .......................................................... 96 3.2.1 Requisitos gerais .................................................................... 96 3.2.2 Requisitos específicos ............................................................ 98

3.3 Nível hierárquico no ordenamento jurídico brasileiro dos tratados e convenções já incorporados ........................................... 100

3.4 Conflito entre o conteúdo do tratado incorporado e o disposto em leis ordinárias ou complementares, bem como na Constituição brasileira ................................................................. 103

4. Os tratados e convenções internacionais de interesse para o estudo do princípio da igualdade .................................................................................. 110

4.1 A definição de “discriminação” em tais documentos ........................ 119 4.1.1 Convenções que definem o que vem a ser discriminação ... 121 4.1.2 Análise dos elementos ou requisitos constantes dessas definições ......................................................................................... 130

4.2 Elementos necessários para a implementação do princípio da igualdade com base em tais convenções e na doutrina tradicional ...................................................................... 147 4.2.1 Sua aplicabilidade ................................................................ 150 4.2.2 Alguns exemplos de tratamentos desiguais analisados à luz de todos esses elementos necessários para a implementação do princípio da igualdade ............................ 153

4.2.2.1 Possibilidade de discricionariedade para organização ou não do serviço militar feminino .......................... 154 4.2.2.2 Doação de sangue: proibição para homossexuais . 158 4.2.2.3 Atendimento educacional especializado ou educação especial para alunos com deficiência .... 162 4.2.2.4 Quotas para afrodescendentes em vestibulares .... 168

Conclusões ............................................................................................... 173

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 177

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INTRODUÇÃO

É grande o número de trabalhos jurídicos que aborda o princípio da igualdade.

Páginas e mais páginas em todo o mundo vêm sendo inspiradas por ele. Entretanto,

não nos incomodamos em debruçar mais uma vez sobre o assunto. Ao contrário,

temos grande honra em fazê-lo, pois essa repetição é plenamente justificável. Se o

objetivo do Direito é o alcance da Justiça, ou, de acordo com os jurisconsultos

romanos, “dar a cada um o seu”, o princípio da igualdade, aplicado de forma eficaz,

é o caminho para a realização desse nobre escopo.

Verificamos que o grande dilema, no entanto, está nesta aplicação eficaz do

princípio da igualdade. Está em saber em qual hipótese “tratar igualmente o igual e

desigualmente o desigual”, fórmula proposta também na Antigüidade, por

Aristóteles, para o alcance da Justiça, mas que não eliminou o problema para se

chegar a uma “igualdade justa”, no dizer de alguns autores adiante estudados. É que

a utilização da fórmula aristotélica, pura e simplesmente, já demonstrou que, em

certos casos, ela pode deixar de levar à Justiça e passar a configurar uma conduta

discriminatória. Logo, em razão de sua sapiência, ela jamais foi alterada, mas vem

sendo constantemente lapidada.

A doutrina e jurisprudência existentes, ainda que com matizes diferentes,

oferecem, como solução, o imperativo de tratamento igual para todos, admitindo-se

os tratamentos diferenciados apenas como exceção e desde que eles tenham um

fundamento razoável para sua adoção.

Mas, infelizmente, mesmo com esses aprimoramentos, a história da

humanidade é prova inequívoca de que eles não foram suficientes, pois as situações

de exclusão de direitos ainda são muito graves. E não é difícil encontrarmos

situações desse tipo que contam com a aprovação de profissionais do Direito,

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12 mesmo após valerem-se dos critérios apontados pela doutrina para a aplicação do

princípio da igualdade, que se baseiam fundamentalmente na análise da

razoabilidade ou não de determinado tratamento diferenciado.

Acreditamos que um dos motivos pelos quais isto ocorre é o de que há uma

grande margem de discricionariedade por parte do intérprete, na análise dessa

razoabilidade. Isto faz com que muitas pessoas, principalmente as pertencentes às

chamadas minorias, tenham seus direitos negados, até em situações que muitos

consideram plausíveis, mas que as deixam sem acesso a direitos e garantias

fundamentais, como vida, educação, trabalho e lazer.

Neste cenário, mesmo havendo a constante garantia nas constituições em

geral em relação à igualdade, como é o caso do Brasil, passaram a surgir

convenções e tratados internacionais reafirmando o direito de todos os seres

humanos à igualdade e dando especial ênfase à proibição de discriminação em

virtude de raça, sexo, religião e deficiência.

Tais documentos trouxeram significativos avanços, pois oferecem alternativas

para a solução do dilema relacionado à aplicação eficaz do princípio da igualdade.

Devido a eles, não precisamos mais nos ater, quase exclusivamente, à análise da

razoabilidade e proporcionalidade de determinado tratamento diferenciado. Mesmo

assim, as convenções e tratados internacionais têm sido pouco explorados pela

doutrina e jurisprudência.

Portanto, em nosso trabalho, vamos verificar o conteúdo de cada um desses

textos, explorar as várias definições que eles contêm sobre o que vem a ser

discriminação e, a partir daí, obter elementos que, somados aos já apontados pela

doutrina tradicional, compõem uma base bastante sólida para a implementação do

princípio da igualdade.

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PARTE I – PRINCÍPIOS E IGUALDADE

Esta primeira parte destina-se a oferecer uma visão panorâmica sobre o

princípio da igualdade e sobre alguns aspectos da teoria dos princípios que podem

ser tomados como base para a sua compreensão1. Citaremos as lições mais

conhecidas sobre o tema, com o objetivo de construir um ponto de apoio para a

continuidade de nossa pesquisa rumo às convenções internacionais de relevância

para o estudo do princípio da igualdade.

Iniciaremos por analisar o que a doutrina ensina sobre os princípios em geral,

com o fim de localizar o princípio da igualdade entre as várias classificações

existentes e de ressaltar a sua importância como tema jurídico.

Abordaremos a igualdade em paralelo com a democracia e a Justiça. A

máxima aristotélica mencionada em nossa introdução será tomada como “ponto de

partida”, passando pelas lições doutrinárias que representam um avanço em relação

a esse marco.

Encerraremos esta primeira parte com a citação de alguns acórdãos do

Supremo Tribunal Federal, a título de exemplo e para demonstrar que, não obstante

essas lições doutrinárias estarem sendo utilizadas, ainda há a necessidade de

aprimoramentos.

1 Aplicam-se aqui, perfeitamente, as seguintes palavras de Daniel Sarmento:“o nosso intuito no

presente estudo não é o de esgotar o exame de temário tão relevante na dogmática contemporânea dos direitos fundamentais, o que seria absolutamente incompatível com as dimensões deste trabalho e com as possibilidades intelectuais do seu autor. Por outro lado, não nos deteremos, senão de passagem, em alguns temas conexos ao presente [...], pois estes encerram uma multiplicidade de questões que não teríamos como percorrer com a mínima profundidade num espaço tão exíguo (2003, p. 258).

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1. Os princípios jurídicos

Como já dissemos, a finalidade desse tópico é localizar o princípio da

igualdade entre os princípios e, assim, obter o seu relevo como tema jurídico. Já que

“princípio” é um termo plurívoco, cumpre esclarecer que trabalharemos com os

princípios que interessam ao ordenamento jurídico como um todo (princípios

jurídicos em sentido amplo), com ênfase nos princípios constitucionais.

Falaremos, primeiramente, da importância dos princípios, sua função e

interpretação. São pontos que, a nosso ver, se entrelaçam e dão à matéria o

contorno necessário antes de passarmos à sua definição. Não inserimos a definição

de princípio no início, como de praxe em relação a outros temas, pois essa definição

é praticamente intuitiva, ainda mais no meio acadêmico. Mas mantivemos o item

relativo à definição, pois é de interesse técnico a análise das diferenças de enfoques

entre os diversos autores, até mesmo em épocas distintas. Feito isso, analisaremos

as diferenças entre normas, princípios e regras e cuidaremos, de forma

relativamente detalhada, da tipologia dos princípios. Só então identificaremos o

contexto do qual sobressai, e com qual destaque, o princípio da igualdade.

1.1 Importância dos princípios

Mesmo que hoje saibamos o quanto os princípios são

importantes, é salutar que ressaltemos isso, pois houve tempos em que eles eram

“qualificados como meras exortações, preceitos de ordem moral ou política, mas não

verdadeiros comandos de Direito” (ROTHEMBURG, 1999a, p. 13). Felizmente, esse

entendimento foi superado, como veremos a seguir.

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José Joaquim Gomes Canotilho chega a creditar aos princípios a

profunda mudança que tem observado no campo jurídico. Ele afirma que, no Século

XIX e na primeira metade do Século XX, o que vigorava era o “direito das regras dos

códigos”, mas que, na atualidade, o estado constitucional democrático e de direito

“leva a sério os princípios”, e por isso estamos diante de um “direito de princípios” 2.

E por falar em “levar a sério” os princípios, não podemos deixar

de citar, logo de início, Ronald Dworkin que, em sua obra Levando os direitos a

sério, delineia de maneira muito palpável a importância dos princípios, descrevendo

que “subitamente nos damos conta de que estão por toda a parte, à nossa volta” e

que eles atuam “de maneira mais vigorosa, com toda sua força, nas questões

judiciais difíceis” (DWORKIN, 2002, p. 46).

Os princípios têm caráter coercitivo3 e exercem uma função

transcendental dentro da Constituição, pois são eles que lhe dão feição de unidade,

determinando suas diretrizes fundamentais4.

Celso Antônio Bandeira de Mello (1980, p. 229) afirma que

“violar um princípio é mais grave que violar uma regra”, e, em sintonia com Celso

Ribeiro Bastos (2002, p. 80), proferiu a conhecida afirmação de que “o princípio é o

mandamento nuclear de um sistema”, “verdadeiro alicerce dele” (MELLO, 1980, p.

230, grifo nosso).

Para ressaltar ainda mais a importância dos princípios,

passaremos agora a tecer considerações sobre a idéia do Direito como “sistema” e,

2 Cfe. Joaquim J. Gomes Canotilho, 2000, p. 83- 84. 3 É a conclusão de Limongi França (1963, p. 135-185), após descrever longamente as várias

teorias então existentes a este respeito. 4 Cfe. Celso R. Bastos (2002, p. 79), o qual sentencia mais adiante (idem, p. 81) que “os princípios

são, pois, as vigas mestras do texto constitucional”. Esta expressão também foi utilizada por Sampaio Doria, ao concluir que “tratando-se de organizações juridicas, os principios representam, praticamente, os fundamentos, as vigas mestras dos edificios sociaes e políticos” (DORIA, 1926, p. 17).

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16 após, ilustraremos, com uma narrativa, essa analogia que a doutrina freqüentemente

faz entre princípios e os sustentáculos de uma construção.

1.1.1 O papel dos princípios na visão do Direito c omo

sistema

Kant (1786 apud CANARIS, 1989, p. 10) define os

sistemas em geral como um conjunto de “conhecimentos ordenado segundo

princípios”. Se o Direito também é um sistema, já que dotado das mesmas

características intrínsecas, ou seja, ordenação e unidade (CANARIS, idem, p. 12-

13), devemos então concluir que o Direito é ordenado segundo princípios. Eros

Roberto Grau (2003, p. 129), aliás, constata que “o direito deixou, para nós, de ser

concebido como um sistema de ‘normas’ – vale dizer, de regras -, passando a ser

visualizado como sistema de princípios” (grifo do autor).

Canaris (1989, p. 80-88) conclui que é acertada a

concepção de formação do sistema jurídico apoiado principalmente nos “princípios

gerais de Direito”, ao invés de em normas, conceitos, institutos jurídicos e até em

valores. O referido autor, apesar de reconhecer que “não é imediato e evidente que

o sistema deva justamente ser composto de princípios”, e que as normas, conceitos

e valores são também essenciais na composição do Direito, raciocina que esses

institutos não são a sua linha mestra, pois:

a) um “sistema de normas” é pouco significativo,

“porquanto se deve procurar justamente a conexão aglutinadora das normas e esta

não pode, por seu turno, consistir também numa norma”;

b) um “sistema de conceitos gerais de Direito” é

inadequado, pois o “sistema deve fazer claramente a adequação valorativa e a

unidade interior do Direito e, para isso, os conceitos são muito impróprios”, ou seja,

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17 no “conceito a valoração está implícita; o princípio, pelo contrário, explicita-a e por

isso ele é mais adequado para extrapolar a unidade valorativa do Direito”;

c) um “sistema de institutos jurídicos”, por sua vez, “iria

exprimir a unidade jurídica de modo fragmentário, pois a conexão ainda mais

profunda existente entre os institutos não se tornaria visível”;

d) já o “sistema como ordem de valores”, apesar de

possível, leva à constatação de que a “passagem do valor para o princípio é

extraordinariamente fluida”, porque o “princípio está num grau de concretização

maior do que o valor”.

Finalmente: “o princípio ocupa pois, justamente, o ponto

intermédio entre o valor, por um lado, e o conceito, por outro”. Daí a adequação e

vantagens de um sistema apoiado em princípios, sejam eles gerais (os

aglutinadores, que perpassam os vários âmbitos do Direito) ou não, já que inclusive

estes últimos são importantes, pois “constitutivos para a unidade interior do âmbito

parcial em causa” (CANARIS, idem, ibidem).

Luiz Alberto David Araujo (2000, p. 75) também parte da

idéia do Direito como sistema. Assim como Celso Ribeiro Bastos (2002, p. 73), J.J.

Gomes Canotilho (2002, p. 1.145 e 1.147-1.150) e outros autores5, David Araujo

afirma que a própria Constituição é um “sistema aberto de princípios e de regras”.

Conforme se vê abaixo, dá grande relevância aos princípios e à sua harmonia com

as regras e outros institutos para a formação desse sistema:

Não é possível conceber um sistema jurídico formado apenas por

regras, pois este, embora pudesse ser considerado um 'sistema de 5 Por exemplo: “A Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e

regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central. A mudança de paradigma nessa matéria deve especial tributo às concepções de Ronald Dworkin e aos desenvolvimentos a ela dados por Robert Alexy. A conjugação das idéias desses dois autores dominou a teoria jurídica e passou a constituir o conhecimento convencional da matéria” (BARROSO; BARCELLOS, 2000, p. 109).

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segurança', não permitiria a sua própria complementação e o seu

desenvolvimento [...]. Da mesma forma, um sistema exclusivamente

constituído por princípios seria inaceitável, por conduzir à

indeterminação e incerteza, devido à inexistência de regras precisas

(ARAUJO, 2000, p. 85).

1.1.2 O princípio como alicerce, viga mestra, pedra de

fecho: uma narrativa para ilustrar a importância do s

princípios

Teremos agora uma quebra em nosso estudo, pois

passaremos a colacionar a narrativa de um acontecimento do início do Século XV,

extraída de um texto literário. O motivo disto é que esta narrativa é citada por juristas

brasileiros para demonstrar a importância dos princípios em geral. Pesquisamos o

texto na obra original e consideramos que seria pertinente reproduzi-la aqui de forma

mais detalhada. Tomamos essa decisão, pois verificamos que, além de realmente

bela e de ilustrar a importância dos princípios, também é exemplo da freqüente

exclusão de pessoas em situação de minoria, por decisão de terceiros, questão que

exploraremos na segunda parte deste trabalho.

Assim, pedimos licença ao leitor para essa breve pausa

nas considerações jurídicas.

A narrativa diz respeito a um erro arquitetônico

relacionado à estrutura de um edifício e é por isso que chamou a atenção dos

estudiosos dos princípios, pois numerosos são os autores que se valem de

metáforas como “viga mestra”, “alicerce”, “pedra de fecho” para se referir aos

princípios.

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Canotilho, por exemplo, explica que os princípios

cimentam “objectivamente todo o sistema constitucional” (2002, p. 1.157-1.150).

Geraldo Ataliba (1985, p. 06 e 07), citando Juan Manuel Teran, diz que o princípio é

o alicerce de um edifício, pois suporta o sistema e lhe dá consistência. E, finalmente,

foi Roque Antonio Carrazza (1996, p. 28, grifo do autor)6 quem aguçou nossa

curiosidade ao afirmar que o princípio é:

[...] pedra de fecho do sistema ao qual pertence, desprezá-lo

equivale, no mais das vezes, a incidir em erronia inaceitável e de

efeitos bem previsíveis: o completo esboroamento da construção

intelectual, a exemplo, como lembra Geraldo Ataliba, do que ocorreu

na 'Abóbada', de Alexandre Herculano.

“Abóbada” é o nome da narrativa que citamos no início

deste tópico e que pretendemos reproduzir parcialmente. Ela faz parte da obra de

Alexandre Herculano (1970, p. 199-265) e trata-se, na opinião de Carrazza e Ataliba,

de uma das páginas “mais dramáticas e belas das já escritas em língua portuguesa”.

Ela se refere a uma descrição minuciosa e sensível do

que aconteceu numa tarde de inverno no Mosteiro de Santa Maria da Vitória, quinta

do Pinhal, em Portugal. Era “o dia 06 de janeiro do ano da Redenção 1401. [...] Era

um destes formosíssimos dias de Inverno mais gratos que os do Estio, porque são

de esperança, e a esperança vale mais do que a realidade” (HERCULANO, 1970, p.

201). 6 Carrazza faz a mesma analogia em outras oportunidades, vale citar aquela em que é bastante

específico: “[...] por comodidade didática [...] podemos dizer que o sistema jurídico ergue-se como um vasto edifício, onde tudo está disposto em sábia arquitetura. Contemplando-o, o jurista não só encontra a ordem, na aparente complicação, como identifica, imediatamente, alicerces e vigas mestras. Ora, num edifício tudo tem importância: as portas, as janelas, as luminárias, as paredes, os alicerces etc. No entanto, não é preciso termos conhecimentos aprofundados de Engenharia para sabermos que muito mais importantes que as portas e janelas (facilmente substituíveis) são os alicerces e as vigas mestras. Tanto que, se de um edifício retirarmos ou destruirmos uma porta, uma janela ou até mesmo uma parede, ele não sofrerá nenhum abalo mais sério em sua estrutura, podendo ser reparado (ou até embelezado). Já, se dele subtrairmos os alicerces, fatalmente cairá por terra. [...] Pois bem, tomadas as cautelas que as comparações impõem, estes ‘alicerces’ e estas ‘vigas mestras’ são os princípios jurídicos, objeto de nossa atenção" (CARRAZZA, 1996, p. 29).

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20

O rei D. João I tinha ido àquela localidade para a

inauguração do Mosteiro acima citado, cuja construção foi por ele determinada em

agradecimento por sua vitória em uma das principais batalhas que travou, ao lado de

seus súditos, para defender Portugal das tentativas de dominação estrangeira. As

escoras da abóbada do Mosteiro tinham sido retiradas havia poucas horas.

A construção fora encomendada ao então renomado e

competente arquiteto português Afonso Domingues, que também lutou na batalha

referida. Este profissional fez todos os projetos e fiscalizou as obras, mas ficou cego

antes de sua conclusão.

Em razão de ter adquirido essa deficiência, recebeu do rei

uma espécie de pensão e foi substituído, a contragosto, por um arquiteto

estrangeiro, o qual seguiu “à risca” todos os desenhos de Afonso Domingues, exceto

“no fechar da imensa abóbada que cobre o Capítulo” (idem, p. 220).

O resultado disso foi que, menos de 24 (vinte e quatro)

horas após terem sido retiradas as escoras, a abóbada ruiu e veio abaixo, ainda

durante as solenidades de inauguração.

O rei chamou então à sua presença Afonso Domingues e

pediu-lhe que refizesse a abóbada, de acordo com seu desenho original. O arquiteto

aceitou, mas não sem antes relutar, pois se sentia injustiçado pelo rei. Foi assim que

descreveu o seu ressentimento:

Se os olhos corporais estavam mortos, não o estavam os do espírito.

[...] Que direito tinha (o rei) para me espremer o coração debaixo dos

seus sapatos de ferro? [...] roubaram-me o filho da minha

imaginação, dando-me uma tença!... Com uma tença pagam-se a

glória e a imortalidade?

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21

[...] Dão-me o repouso do corpo e assassinam-me o da alma!

[...]

Não é este edifício obra de reis, ainda que por um rei me fosse

encomendado seu desenho e edificação, mas nacional, mas popular,

mas de gente portuguesa, que disse: não seremos servos do

estrangeiro [...]. Por engenho e mãos de portugueses devia ser

concebido e executado, até seu final remate, o monumento da glória

dos nossos; e eis aí que ele chamou de longes terras oficiais

estranhos (HERCULANO, 1970, p. 210-212, grifo do autor).

E após o convite para retornar, feito por D. João I:

[...] este aposento era a obra-prima da minha imaginação. Por eles

[os obreiros a quem perguntava] soube que a traça primitiva fora

alterada e que a juntura das pedras era feita por modo diverso [...].

Se estes olhos não tivessem feito com que eu fosse posto de banda

como uma carta de testamento antiga, que se atira, por inútil, para o

fundo de uma arca, a pedra de fecho dessa abóbada não teria de vir

esmigalhar-se no pavimento antes de sobre ela pesarem muitos

séculos; mas os de vosso conselho julgaram que um cego nada

podia prestar.

[...]

Portugal é vosso, e tudo quanto ele contém, salvo a liberdade de

vossos vassalos: nesta nada mandais. Não!... vos digo eu: não serei

quem torne a erguer essa derrocada abóbada! Os vossos

conselheiros julgaram-me incapaz disso: agora eles que a alevantem

(idem, p. 245).

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22

Depois de gentis apelos do rei, o arquiteto cedeu e

concordou em reconstruir a abóbada, colocando a pedra de fecho de acordo com

seu desenho. Após a nova inauguração, com a retirada das escoras na presença do

rei, Afonso Domingues, sabendo da desconfiança de todos em relação à segurança

do aposento7, permaneceu sentado embaixo da abóbada durante três dias, sem

alimentar-se e sem se mover. Provou que seus cálculos estavam corretos e a

importância de respeitá-los, mas sua idade avançada não permitiu que resistisse ao

jejum a que se impôs, vindo a falecer justamente quando levantou para retirar-se do

local.

Esta narrativa, ainda que longa, vale pela beleza que

encerra. Carrazza (1996) e Ataliba (1985) foram muito felizes em ressaltá-la,

instigando os estudantes à sua leitura, pois é mesmo a ilustração perfeita para se

aquilatar a importância dos princípios, as pedras de fecho do sistema jurídico.

Para nós, como já mencionamos, ela é de grande valor,

pois ainda retrata a gravidade de se excluir alguém do exercício do seu direito ao

trabalho, em virtude de deficiência, contra a sua vontade, ainda que pareça razoável

não aceitar que uma pessoa cega prossiga como responsável pela execução de um

projeto de tamanha magnitude. Mas essa questão será mais bem analisada adiante.

Continuemos com a verificação da teoria geral sobre os princípios e o princípio da

igualdade.

7 O medo de um novo desmoronamento era tanto que as únicas pessoas que tiveram de fazer o

trabalho braçal foram os condenados, prisioneiros de guerra em sua maioria, com a promessa de liberdade, caso a obra fosse concluída com sucesso.

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23

1.2 Função e interpretação dos princípios

A análise da função que os princípios desempenham no

ordenamento jurídico e a interpretação deles é tão importante quanto os princípios

em si.

É que muitos autores afirmam que os princípios são importantes

justamente porque a sua função é servir de guia na interpretação das “regras

contempladas na Constituição (GRAU, 2003, p. 148), ou seja, de “funcionar como

critério de interpretação das demais normas não-principiológicas”, conforme ensina

Celso Ribeiro Bastos (2002, p. 79). Daí dizer que eles desempenham “uma função

transcendental” no sistema jurídico (idem) 8.

Mas se, por um lado, a função dos princípios (da igualdade, da

publicidade, da moralidade, do equilíbrio contratual, entre outros) é serem guias na

atividade interpretativa, por outro, não podemos nos esquecer de que esta também

tem seus princípios, que são chamados de princípios hermenêuticos. Entre eles,

destacamos os princípios de interpretação constitucional, os quais nos limitaremos a

enumerar: princípio da supremacia da Constituição, da força normativa da

Constituição, da unidade da Constituição, do efeito integrador, da concordância

prática, da harmonização ou da cedência recíproca, da máxima efetividade, princípio

da correção funcional, da coloquialidade, da interpretação intrínseca e da

proporcionalidade (ARAUJO; SERRANO JÚNIOR, 2005, p. 83-90).

Além disso, também não podemos esquecer que os próprios

princípios podem ser objetos de interpretação. Para essa atividade, de interpretar os

princípios, a orientação a ser seguida é a de que eles, diferentemente das regras,

são dotados de flexibilidade, e por isso “dão margem à realização da justiça no caso

concreto” (BARROSO; BARCELLOS, 2000, p. 110, grifo dos autores). 8 No mesmo sentido, Roque A Carrazza (1996, p. 33) e Jorge Miranda (1991 apud CARRAZZA,

1996, p. 33-34), justificam que esta função de servir como critério de interpretação deve-se ao fato de que “são eles que dão a coerência geral do sistema”.

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Em resumo: a) os princípios funcionam como critérios de

interpretação e, nesse sentido, há os princípios específicos dessa atividade

(hermenêuticos) e os demais, chamados por Canotilho (2002, p. 1.147) de princípios

jurídicos; b) como as normas em geral, os princípios podem ser objetos de

interpretação, para a qual aplicam-se todos os métodos hermenêuticos e os

princípios apontados pela doutrina; c) a peculiaridade em sua interpretação,

entretanto, reside no seu caráter aglutinador e flexível, que é justamente o que

possibilita a concretização da Justiça.

Bem, vimos até aqui a importância dos princípios, sua finalidade

e a peculiaridade que os distingue quando de sua interpretação. Vejamos agora

algumas definições de princípio.

1.3 Definições de princípio

André Franco Montoro (1942, p. 56) é o autor da feliz e simples

expressão: princípios são “as proposições primeiras”. Ou, conforme Immanuel Kant

(2003, p. 175), os princípios “contêm em si as bases de outros juízos”.

Não obstante a clareza dessas expressões, é preciso

reconhecer que a definição de princípio é uma empreitada difícil, pois se trata de

palavra que comporta várias interpretações e sentidos. Sampaio Doria, por exemplo,

apesar de ensinar que “principios se entendem por normas geraes e fundamentaes

que inferem leis” (1926, p. 17), afirmava que “se tem fugido, como o diabo da cruz,

a precisar, definir, e, mais que tudo, especificar os principios constitucionaes” (idem,

p. 15). Passemos então a outras proposições doutrinárias neste campo.

Dworkin (2002, p. 36) define o princípio da seguinte forma:

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25

[...] um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou

assegurar uma situação econômica, política ou social considerada

desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou eqüidade ou

alguma outra dimensão da moralidade.

Para Miguel Reale (1986 apud ROTHEMBURG, 1999, p. 14):

Princípios são, pois, verdades ou juízes fundamentais, que servem

de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos,

ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção de

realidade. Às vezes, também se denominam princípios certas

proposições que, apesar de não serem evidentes ou resultantes de

evidências, são assumidas como fundantes da validez de um sistema

particular de conhecimentos, como seus pressupostos necessários

(grifos do autor).

Com a finalidade de irmos nos aproximando das definições

quanto aos princípios constitucionais, buscamos a lição de Canotilho (2002, p.

1.241) e dos autores que seguem:

Princípios são normas que exigem a realização de algo, da melhor

forma possível, de acordo com as possibilidades fácticas e jurídicas.

Os princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de

‘tudo ou nada’; impõem a optimização9 de um direito ou de um bem

jurídico, tendo em conta a ‘reserva do possível’, fáctica ou jurídica.

Roque Antonio Carrazza (1996, p. 29) define princípio jurídico

como:

9 Nessa linha, veja-se o seguinte trecho das lições de Roberto Alexy (2002, p. 13-14): “los

princípios son, por consiguiente, mandatos de optimización que se caracterizam por que pueden ser cumplidos em diversos grados y porque la medida ordenada de su cumplimiento no solo depende de las posibilidades fácticas, sino también de las posibilidades jurídicas”.

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[...] um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande

generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes

do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o

entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se

conectam.

O mesmo autor esclarece que entre os princípios jurídicos

encontramos os princípios constitucionais, legais e até infralegais (idem, p. 30),

sendo os princípios constitucionais, os mais importantes.

Princípio é ainda a:

[...] disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas,

compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata

compreensão e inteligência. [...]

[...] há princípios que se traduzem em normas da Constituição,

enquanto outros pairam abstratamente sobre o ideal constitucional

[...]. Os princípios constitucionais [...] permeiam toda a Constituição,

chocando-se, por vezes, uns com os outros, o que necessitará,

evidentemente, da devida harmonização com a cedência parcial

recíproca (BASTOS, 2002, p. 80-82).

Paulo Bonavides (1990 apud TAVARES, 2003, p. 26) assevera

que os princípios estatuídos na Constituição são:

[...] postos no ponto mais alto da escala normativa, eles mesmos,

sendo normas, se tornam, doravante, as normas supremas do

ordenamento. Servindo de pautas ou critérios por excelência para

avaliação de todos os conteúdos normativos, os princípios, desde

sua constitucionalização, que é ao mesmo passo positivação no mais

alto grau, recebem como instância valorativa máxima categoria

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27

constitucional, rodeado do prestígio e da hegemonia que se confere

às normas inseridas na Lei das Leis. Com esta relevância adicional,

os princípios se convertem igualmente em norma normarum, ou seja,

normas das normas.

Para Luiz Alberto David Araujo (2000, p. 80), princípios

constitucionais são aqueles onde se projetam “os valores fundamentais tratados na

Constituição”.

Finalmente, princípios constitucionais, para Pinto Ferreira (1983

apud TAVARES, 2003, p. 27), “são os summa genera do direito constitucional,

fórmulas básicas ou postos-chaves de interpretação e construção teórica do

Constitucionalismo, e daí se justifica a atenção desenvolvida pelos juristas na sua

descoberta e elucidação”.

Entre todas essas definições, o que sobressai é sempre a

importância do tema. Em todas é possível constatar que estamos diante daquilo que

há de mais relevante, em qualquer área e também no Direito Constitucional. Por isso

não pode ser olvidado.

Verifiquemos agora a distinção entre normas, princípios e

regras.

1.4 Normas, princípios e regras

De maneira bastante curiosa, pois adota como critério distintivo a

exclusão, Dworkin (2002, p. 36) afirma que o termo “princípio” indica “todo esse

conjunto de padrões que não são regras.” Portanto, princípios são diferentes de

regras. Aliás, o próprio Dworkin afirma que “a diferença entre princípios jurídicos e

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28 regras jurídicas é de natureza lógica”. Mas como diferenciá-los? E o que dizer das

normas?

Por uma questão de didática, podemos dizer que normas são

gênero, do qual são espécies os princípios e as regras. Nesse sentido, temos as

lições de Eros Roberto Grau (2003, p. 157), o qual faz a mesma divisão, e também

de Walter Claudius Rothemburg que, por sua vez, se baseia em Robert Alexy e

Jorge Miranda:

Antes de adentrar a discussão acerca da autonomia conceptual dos

princípios, com detença em suas particularidades e distinções para

com as demais normas jurídicas, mister se faz render homenagem

ao muito que todos – princípios e regras - têm em comum, é dizer, do

caráter normativo de ambos, a fazê-los espécies filiais de mesmo

gênero: a norma jurídica (ROTHEMBURG, 1999a, p. 15).

As regras seriam, portanto, normas diretas e definidas, e os

princípios, normas dotadas de maior flexibilidade e possibilidade de ponderação10.

Todavia, é preciso cautela com essa dicotomização entre

princípios e regras, pois, apesar de diferentes, princípios e regras não são

contrários, não se excluem e podem até se tocar, fenômeno que vem sendo

percebido recentemente11. Por outro lado, o fato de comporem um todo harmônico é

justamente o que dificulta sua distinção. Mas a doutrina vem evoluindo nesta tarefa.

10 Ou ainda, conforme Willis Santiago (2003, p. 268, grifos do autor), as regras reportam-se

“diretamente a condutas ou situações determinadas”, enquanto os princípios “positivam juridicamente certos valores”, possuindo maior grau de abstração.

11 Barroso e Barcellos (2003, p. 113 e 114), mesmo após discorrerem longamente sobre os critérios distintivos de princípios e regras que acatam com respaldo em Alexy, Dworkin, Zagrebelsky, E. R. Grau, M. Borowski, K. Larenz e Canaris, admitem um certo grau de similaridade entre princípios e regras, citando em seu apoio Humberto Ávila. Eles admitem que tanto os princípios podem adequar-se ao esquema do “tudo ou nada”, próprio das regras, como estas podem ser ponderadas, o que é mais comum na aplicação dos princípios.

O exemplo que apontam para demonstrar que certos princípios também podem adequar-se ao esquema do “tudo ou nada” é o do princípio da dignidade da pessoa humana, mas podemos dizer que o princípio da igualdade também se encaixa nesse esquema, já que possui um núcleo cuja aplicação não pode ser afastada. O problema está na definição deste núcleo, em “dar a cada um

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Canotilho (2002, p.1.146), por exemplo, apresenta critérios bem

definidos para se chegar a essa distinção, sem perder de vista o que eles têm em

comum. Os critérios que propõe baseiam-se no seguinte: a) grau de abstração; b)

grau de determinabilidade; c) carácter de fundamentabilidade; d) proximidade da

idéia de direito; e) natureza normogenética. Quanto maiores o grau de abstração, o

caráter de fundamentalidade e a proximidade da idéia de direito, mais próximos

estamos dos princípios. Quanto maiores o grau de determinabilidade e natureza

normogenética, mas próximos estamos das regras. Sua concepção é acompanhada

por diversos constitucionalistas, entre eles, Jorge Miranda, José Afonso da Silva,

Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins (ARAUJO, 2000, p. 81).

1.5 Características dos princípios

Encontramos na doutrina uma profusão de indicações

destinadas a delinear os princípios. Ficaremos aqui com as citadas por Canaris

(1986), com aquelas resumidas por André Ramos Tavares (2003), as indicadas por

Luiz Alberto David Araujo (2000), com base em Cármen Lúcia Antunes Rocha, e por

Fábio Konder Comparato (1999).

Canaris aponta quatro características dos princípios:

- eles não valem sem exceção e podem estar em oposição

(antagonismo) ou contradição (incoerência entre afirmações) 12;

o que é seu”, o que será objeto de nossos estudos em momento posterior, conforme explicitamos logo de início.

12 Exemplos do autor: as exceções sofridas pelo princípio da liberdade na forma dos contratos obrigacionais; as múltiplas limitações do princípio da autonomia em negócios. Tais exceções e limitações, no entanto, não se transformam em “princípios constitutivos”, justamente por serem “meras exceções” (idem, p. 89).

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- não têm a pretensão da exclusividade13;

- ostentam o seu sentido próprio apenas numa combinação de

complementação e restrição recíprocas14;

- precisam, para a sua realização, de uma concretização através

de subprincípios e valores singulares, com conteúdo material próprio15.

Tavares (2003, p. 36-39), por sua vez, fala em:

- abstratividade, abertura ou inexauribilidade: significa “a

capacidade de alcançar um grande e indefinido número de situações concretas,

nelas incidindo com seu comando normativo mínimo” 16;

- sistematicidade, interdependência ou mútua influência: quer

dizer que “os princípios contidos na Constituição obedecem a uma regra básica de

interpretação - a necessidade de realizar uma leitura sistemática” 17;

13 Exemplos do autor: as prestações de indenização não resultam apenas de violações culposas do

Direito, mas também de outros princípios de imputação, “tais como o princípio de risco, da confiança” (idem, p.90) etc.

14 Exemplos do autor: “a autodeterminação só é possível em auto-responsabilidade, assim como a autêntica liberdade sempre inclui, em si, a vinculação ética” (idem, p. 93). Em relação à autodeterminação, o autor ainda especifica que a conseqüência disso é que o imputável, em certas circunstâncias, responde mesmo quando sua autodeterminação falhe, pois ele tem auto-responsabilidade. Conclui: “o entendimento de um princípio é sempre, ao mesmo tempo, o dos seus limites” (idem, p. 95).

15 Exemplos do autor: ainda que existam os princípios da auto-responsabilidade, da culpa, do risco, da causalidade, o processo de concretização, contudo, não fica concluído, pois ainda resta a questão das formas de culpa, do que seria o cuidado necessário etc. São necessários então valores autônomos (idem, p. 97). Mas estes elementos valorativos autônomos, não obstante necessários para a concretização dos princípios, não têm “a categoria de elementos constitutivos do sistema” (p. 99).

16 Ainda: “Também pela abstratividade, os princípios apresentam-se como orientações interpretativas no manejo das demais normas do sistema” (TAVARES, 2003, p. 36).

17 E prossegue: “Isso equivale a dizer que os princípios estão imbricados entre si, e a correta dimensão de um deles só pode ser obtida a partir de uma interpretação sistemática. Os diversos princípios podem complementar uns aos outros. É necessária, pois, a consideração ampla de todos na análise de qualquer um deles em particular” (idem, p. 38).

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- limitabilidade ou relatividade: “todos os princípios, incluindo os

direitos fundamentais, são considerados relativos em sua normatividade, na medida

em que não se admite, no estágio atual da Dogmática Jurídica, que um princípio

possa ser absoluto, afastando todos os demais em toda e qualquer hipótese”;

- aplicabilidade imediata e programaticidade: Tavares

esclarece18 que, “longe de se pretender, aqui, uma mera e desnecessária repetição

acerca da normatividade dos princípios, é preciso afirmar que as normas

programáticas possuem elementos característicos dos princípios gerais”.

Luiz Alberto David Araujo (2000) enumera como características

dos princípios: generalidade, primariedade (histórica, jurídica e ideológica),

dimensão axiológica, objetividade, atualidade, polimorfia, aderência, vinculabilidade,

informatividade e normatividade jurídica. Tais termos falam por si só e dispensam

maiores explicações, mas fazemos questão de nos deter sobre a característica da

atualidade pois, a nosso ver, é esta característica que dá aos princípios a

maleabilidade e abertura necessárias para a sua contínua aplicação às situações

concretas e, conseqüentemente, à realização da Justiça19. O referido autor ensina

que:

[...] a atualidade guarda relação com a necessidade de manter a

coerência entre os princípios constitucionais, firmados no sistema

fundamental, e os projetos e ideais do povo, estabelecidos no

ordenamento jurídico, no presente momento (2000, p. 92).

De acordo com Fábio Konder Comparato:

18 Ele o faz com apoio em Vezio Crisafulli e Pontes de Miranda, pois o primeiro “distinguiu e

aperfeiçoou as funções integrativas, interpretativas e programáticas dos princípios”, e o segundo, com suas ponderações, permitiu identificar uma certa similaridade entre os princípios e as regras jurídicas programáticas.

19 É o que se depreende da seguinte afirmação: os “princípios, com sua flexibilidade, dão margem à realização da justiça no caso concreto” (BARROSO; BARCELLOS, 2000, p. 110).

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Os princípios formam, na verdade, uma categoria especial de

normas jurídicas, que se distinguem das demais (as simples regras

de direito) por um conjunto de características próprias, a saber: a)

maior amplidão de seu campo de incidência; b) maior força jurídica;

c) permanência em vigor em caso de conflito normativo (1999, p. 15).

Delineados os princípios com a apresentação de sua

importância, função, interpretação, definição e características, cumpre observar que,

durante todo o nosso estudo, nos deparamos com expressões como princípios

jurídicos, constitucionais, gerais de direito, estruturantes, entre outras. Assim, no

próximo tópico, cuidaremos de esclarecê-las com o objetivo final de situar, entre

essas várias designações, o princípio da igualdade.

1.6 Tipologia dos princípios

O fato de deixarmos essas distinções para o final deste tópico,

na visão de Eros Roberto Grau (2003, p. 131), representa um equívoco. É assim que

este autor introduz a matéria:

A doutrina, bastante preocupada com a distinção entre princípios e

regras e com a questão do conflito entre princípios, não tem

enfatizado, como seria de se esperar, uma distinção anterior, que

aparta os princípios jurídicos ou princípios de direito dos princípios

gerais do direito.

Mesmo assim, insistimos em fazê-lo, já que parece não haver

dúvidas de que estamos a tratar de princípios que interessam a estudos no âmbito

jurídico. Seriam os princípios gerais20 ou princípios jurídicos em sentido amplo. Por

20 Que não são apenas os “jurídicos”, no sentido estrito referido por Eros. R. Grau, e nem apenas os

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33 outro lado, com a devida vênia, achamos que Eros R. Grau não é bastante explícito

ao definir, na divisão que aponta, os princípios jurídicos e os gerais do Direito antes

de também passar às diferenciações entre princípios e regras. Além disso, não

encontramos similaridade entre a divisão que indica e as lições dos autores mais

citados no tema.

Vamos então às distinções entre os vários tipos de princípios,

com o objetivo de, repetimos, situar entre eles o princípio da igualdade.

1.6.1 Princípios gerais: jurídicos e gerais do Dir eito,

explícitos e implícitos (gerais de direito)

Esta divisão, bastante diferente das demais que

encontramos, é proposta por Eros Roberto Grau. Os princípios jurídicos, em sentido

amplo, são chamados de princípios gerais e se subdividem em princípios jurídicos e

princípios gerais do Direito.

Logo, o gênero do qual ambos seriam espécies é o dos

princípios gerais. Grau permite essa construção ao trazer, em seu abono, a lição de

Canaris, já citada aqui, segundo a qual define-se “o direito, enquanto sistema, como

uma ordem axiológica ou teleológica de princípios gerais” (GRAU, 2003, p. 134).

Antes de fazer a distinção entre princípios jurídicos e

gerais do Direito, o mesmo autor ensina ainda que entre os princípios gerais, há os

princípios explícitos ou implícitos, e, conforme se depreende de suas considerações,

esta divisão (explícitos e implícitos) não exclui aquela (jurídicos e gerais do Direito).

princípios gerais do Direito, ou de direito, conforme veremos adiante.

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Princípios explícitos são os “recolhidos no texto da

Constituição ou da lei”. Implícitos são aqueles “inferidos como resultado da análise

de um ou mais preceitos constitucionais ou de uma lei ou conjunto de textos

normativos da legislação infraconstitucional” (idem, ibidem). Nesta categoria de

princípios implícitos estariam os princípios gerais de direito. Estes são “princípios

teoréticos”, que se localizam no campo conceitual, coletados no que Grau chama de

“direito pressuposto” 21 e não se confundem com princípios gerais do Direito. Cabe

ainda esclarecer que os “princípios gerais de direito – princípios implícitos,

existentes no direito pressuposto22 – não são resgatados fora do ordenamento

jurídico, porém descobertos no seu interior”, mas alguns devem ser positivados

(idem, p. 139) para que sejam observados. Exemplo: o princípio do Estado de

Direito.

Quanto aos princípios jurídicos, citados na primeira

divisão feita por Grau, eles são:

[...] princípios morais, políticos ou dos costumes [...] que influenciam

a criação das normas jurídicas individuais pelas autoridades

competentes. Não obstante, eles não se confundem com as normas

jurídicas cujos conteúdos lhes sejam adequados [...]. [...]

consubstanciam, entre outros, os motivos do legislador, não sendo

juridicamente obrigatórios (idem, p. 160).

Já os princípios gerais do Direito refletem a:

21 É o que “brota na sociedade, à margem da vontade individual dos homens [...]. [...] condiciona a

elaboração do direito posto (positivo), mas este modifica o direito pressuposto” (idem, p. 137) 22 Mas Celso Ribeiro Bastos, que traz preciosa lição sobre os “princípios gerais de direito”, não faz

nenhuma diferenciação em relação a “princípios gerais do direito”. Vejamos: “[...] os princípios gerais de Direito são cânones de incidência obrigatória seja qual for a parte do ordenamento constitucional (ou até infraconstitucional) com que se esteja lidando. Isso significa dizer que os princípios gerais de direito sempre deverão impor-se na atividade interpretativa, enquanto os princípios constitucionais só serão invocados conforme a área na qual se esteja atuando. [...] Dar-lhes, contudo, uma força normativa superior à da Constituição não encontra respaldo na doutrina e não pode ser admitido. Esses princípios penetram na Constituição, mas pelas mãos dela própria” (BASTOS, 2002, p. 83-84).

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35

[...] vontade da sociedade de se ligar a si mesma através da sua

própria história, da sua herança, do seu patrimônio jurídico e

constitucional [...]. Numa palavra, a prática dos princípios gerais do

direito equivale a fazer a história do direito, da sedimentação jurídica,

logo, da própria positividade do direito, uma fonte do direito (GRAU,

2003, p. 161).

1.6.2 Princípios jurídicos em sentido amplo:

constitucionais, legais ou infralegais

É Roque Carrazza (1996) quem traz essa divisão, na qual

também menciona os princípios jurídicos. Mas aqui estes seriam apenas o gênero23,

tendo como espécies os princípios constitucionais, legais ou infralegais. Estas

espécies estariam ordenadas de forma escalonada na “pirâmide jurídica”

(CARRAZZA, 1996, p. 30). Logo, os mais importantes, dentre os princípios

jurídicos24, são os princípios constitucionais, que Carrazza chama de “jurídico-

constitucionais” e é deles que cuida em sua obra, asseverando que “nenhuma

interpretação poderá ser havida por boa (e, portanto, por jurídica) se, direta ou

indiretamente, vier a afrontar um princípio jurídico-constitucional” (idem, p. 31).

Tal posicionamento encontra eco no pensamento de

outros autores: “os princípios elevados à esfera constitucional assumem importância

maior que os demais princípios jurídicos” (TAVARES, 2003, p. 25-26).

É relevante destacar que o termo “princípios

constitucionais” não abrange apenas os princípios que estão positivados na

Constituição. Veja a este respeito a lição de Luiz Alberto David Araujo:

23 O mesmo pode se depreender das lições de Canotilho (2002). 24 Para Carrazza, então, princípios jurídicos seriam os tais “princípios gerais” citados por Eros Grau.

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36

Em virtude de sua própria natureza, os princípios não precisam de

sede fixa no Texto Constitucional. Entretanto, na maioria das Cartas

Magnas, eles aparecem enumerados.

[...]

Deve restar claro [...] que os princípios constitucionais não se

restringem aos expressos na Constituição. Podem existir princípios

implícitos (2000, p. 97).

Para sabermos então que princípios seriam

“constitucionais”, é preciso verificar se eles tratam de “matéria constitucional”, ainda

que não formalmente inscritos em uma Constituição. Tais matérias são: forma de

Estado, forma de governo, modo de aquisição e exercício do poder, estabelecimento

de seus órgãos e limites de sua ação que são os traçados pelos direitos

fundamentais do homem (FERREIRA FILHO, 2003, p. 10-12)25.

Mas é salutar que eles se localizem na Constituição, até

mesmo em seu preâmbulo, pois:

A residência dos princípios na constituição tem implicação com a

caracterização e funcionalidade deles.

[...]

Quanto melhor inseridos no texto constitucional, mais evidente e

apelável restará o caráter eminentemente jurídico dos princípios,

muito embora a possibilidade de exteriorização deles em fórmulas

lingüísticas seja limitada, e a admissão de princípios implícitos ou

25 Esta enumeração é feita por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em sintonia com vasta doutrina, e

a citamos sem olvidar que o conceito de Constituição é matéria delicada e que apenas este tópico comportaria um trabalho específico.

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37

não-escritos não seja jamais de se excluir (ROTHEMBURG, 1999a,

p. 73/74).

Após termos localizado entre os princípios em geral os

princípios constitucionais, poderíamos passar à sua classificação, pois é entre os

princípios constitucionais que se situa o princípio da igualdade. Antes, porém,

queremos tratar da sua diferenciação (ou não) em relação aos princípios gerais de

direito.

1.6.3 Princípios constitucionais e princípios gera is de

direito

Celso Ribeiro Bastos (2002), quando delimita os

princípios, fala apenas em princípios constitucionais e princípios gerais de direito.

Com relação aos primeiros, repete a classificação feita por Canotilho, abaixo

especificada.

Quanto aos princípios gerais de direito, Bastos traz uma

concepção que se aproxima bastante da que já citamos com base em Eros Roberto

Grau, porém esclarece, didaticamente26, que os princípios gerais de direito podem

estar expressos em norma constitucional e que, mesmo quando não expressos, eles

“entram na Constituição pelo caminho da interpretação. São exatamente eles que

permitem a evolução do Texto Constitucional. São eles que vão preencher a

vaguidade das normas” (BASTOS, 2002, p. 84).

Finalmente, o saudoso professor ressalta que, apesar de

sua incidência obrigatória, os princípios gerais não submetem a Constituição,

contrariando-a. Eles auxiliam na interpretação, “dada a força civilizatória que

exercem” (idem, ibidem), mas não têm força normativa superior à Constituição. 26 Reportamo-nos à nota de rodapé nº 22, supra.

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38 Enumera como princípios gerais de direito, informadores de todo o ordenamento

jurídico, os princípios da Justiça, da igualdade, da liberdade e da dignidade da

pessoa humana.

É possível então distinguir, dentre os princípios

consagrados constitucionalmente, os “princípios constitucionais gerais e meros

princípios constitucionais” (TAVARES, 2003, p. 32).

Essa possibilidade existe, pois a divisão entre princípios

constitucionais e gerais de direito não é estanque, já que estes também podem ser

“constitucionais”, se tratarem de matéria constitucional. Se isto ocorrer, teríamos

então os “princípios constitucionais gerais”, que seriam um ponto de intersecção

entre princípios gerais de direito (fontes do Direito em geral, porque decorrentes da

própria “natureza” do Direito) e princípios constitucionais (que versam sobre outras

matérias constitucionais).

Há também, todavia, quem entenda que sequer exista

divisão entre eles. Vale transcrever a conclusão abaixo que demonstra o quanto o

tema é vasto e instigante:

Parece, assim, que os princípios constitucionais outros não são que

os 'velhos conhecidos' princípios gerais de Direito (de um

determinado Direito, historicamente situado), agora dignamente

formulados através das normas supostamente mais altas do

ordenamento jurídico (ROTHEMBURG, 1999a, p. 15, grifo do autor).

Podemos ir agora à classificação de Canotilho dos

princípios constitucionais, à qual adicionaremos as considerações de alguns autores.

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39

1.6.4 Classificação dos princípios constitucionais

Como já adiantamos, neste tópico, iremos nos deter mais

na classificação de Canotilho, já que bastante citada pela doutrina, mas queremos

mencionar também outras classificações, pois as consideramos muito elucidativas e

didáticas. Por outro lado, concluímos que não é possível fazer uma sobreposição

entre essas classificações, pois, mesmo com algumas similaridades, cada uma

segue um critério próprio.

1.6.4.1 A classificação de Canotilho

Essa tipologia é a base eleita por Canotilho (2002,

p. 1.150) para delimitar o tema dos princípios jurídicos, dentro dos quadros do

Direito Constitucional. Para ele, os princípios constitucionais podem ser divididos em

princípios jurídicos fundamentais, princípios políticos constitucionalmente

conformadores, princípios constitucionais impositivos e princípios garantia. Em cada

um deles, podem ser encontrados subprincípios, que não citaremos para não

perdermos a objetividade deste trabalho, e não porque eles seriam menos

importantes.

a) Princípios jurídicos fundamentais

Consideram-se princípios jurídicos fundamentais os princípios

historicamente objectivados e progressivamente introduzidos na

consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou

implícita no texto constitucional. Pertencem à ordem jurídica positiva

e constituem um importante fundamento para a interpretação,

integração, conhecimento e aplicação do direito positivo

(CANOTILHO, 2002, p. 1.151, apenas o último grifo é nosso).

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Em tal categoria, cita os princípios da proibição do

excesso de poder; da publicidade dos atos jurídicos; da exigibilidade, adequação e

proporcionalidade dos atos dos poderes públicos em relação aos fins que eles

prosseguem (“justa medida”); e do acesso aos tribunais.

b) Princípios políticos constitucionalmente

conformadores

Designam-se por princípios politicamente conformadores os

princípios constitucionais que explicitam as valorações políticas

fundamentais do legislador constituinte. Nestes princípios se

condensam as opções políticas nucleares e se reflecte a ideologia

inspiradora da constituição. Expressando as concepções políticas

triunfantes ou dominantes numa assembléia constituinte, os

princípios político-constitucionais são o cerne de uma constituição

política, não admirando que: (1) sejam reconhecidos como limites do

poder de revisão; (2) revelem os princípios mais directamente

visados no caso de alteração profunda do regime político (idem, p.

1.152).

Como exemplo, apresenta os princípios

definidores da forma de Estado; da estrutura do Estado; os estruturantes do regime

político e os caracterizadores da forma de governo.

c) Princípios constitucionais impositivos

Nos princípios constitucionais impositivos subsumem-se todos os

princípios que impõem aos órgãos do Estado, sobretudo ao

legislador, a realização de fins e a execução de tarefas. São,

portanto, princípios dinâmicos, prospectivamente orientados (idem, p.

1.152-1.153).

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Menciona, como exemplo, os princípios da

independência nacional e da correção das desigualdades na distribuição de riqueza

e do rendimento.

d) Princípios-garantia

Há outros princípios que visam instituir directa e imediatamente uma

garantia aos cidadãos. É-lhes atribuída uma densidade autêntica de

norma jurídica e uma força determinante, positiva e negativa.

Refiram-se, a título de exemplo, o princípio de nullum crimen sine

lege e de nulla poena sine lege (cfr. art. 29.º), o princípio do juiz

natural (cfr. art. 32.º/7), os princípios de non bis in idem e in dúbio pro

reo (cfr. arts. 29.º/4, 32.º/2) - (Idem, p. 1.153).

1.6.4.2 Outras classificações

Sampaio Doria ensina que há três ordens de

princípios constitucionais: os da estrutura, os das atribuições e os da liberdade

individual.

Os princípios constitucionais da estrutura, também

chamados de princípios estruturais, são os “que interessam de perto a physionomia

geral do Estado” (DORIA, 1926, p. 19). Os das atribuições, denominados também

princípios privativos, são aqueles “que definem as competências peculiares aos

órgãos da soberania” (idem, ibidem). Já os princípios relativos à liberdade individual,

também chamados de princípios liberais, são os “que amparam os direitos

individuaes contra possíveis violências das autoridades publicas” (idem, p. 20).

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42

Sérgio Sérvulo da Cunha (2003, p. 272) também

propõe uma interessante classificação. É a que divide os princípios constitucionais,

ou “princípios indutores de um sistema”, em princípios fundantes, estruturantes e

estruturais.

Princípios fundantes são aqueles que refletem

“condições de existência da Constituição”. São os princípios gerais do Direito, entre

eles os “princípios da liberdade, da isonomia e da proporcionalidade, e os princípios

técnicos concernentes à natureza da Constituição, como os princípios da

supremacia e da rigidez” (CUNHA, 2003, p. 273).

Princípios estruturantes “são princípios que

estabelecem e organizam a Constituição [...]. São princípios estruturantes, por

exemplo, aqueles segundo os quais determinadas matérias são incluídas na

Constituição, seja originária, seja derivadamente” (idem, ibidem).

Os princípios estruturais são também chamados

de “princípios intencionais”. O autor cita entre eles “os princípios sociais, o princípio

democrático, o princípio do pluralismo” (idem, p. 274).

Jorge Miranda, por sua vez, em classificação

citada por Luiz Alberto David Araujo (2000, p. 88), divide os princípios

constitucionais em princípios constitucionais substantivos, que podem ser

axiológicos fundamentais e políticos constitucionais, e em princípios constitucionais

instrumentais ou adjetivos.

José Afonso da Silva (2005), após resumir as

categorias dos princípios constitucionais, também com base em CANOTILHO, passa

a distinguir entre princípios fundamentais e princípios gerais do Direito

Constitucional. Princípios fundamentais integram o Direito Constitucional positivo e

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[...] contêm as decisões políticas fundamentais que o constituinte

acolheu no documento constitucional. Os princípios gerais formam

tema de uma teoria geral do Direito Constitucional, por envolver

conceitos gerais, relações, objetos, que podem ter seu estudo

destacado da dogmática jurídico-constitucional [...]. É certo, contudo,

que tais princípios (os gerais) se cruzam, com freqüência, com os

princípios fundamentais, na medida em que estes possam ser

positivação daqueles (SILVA, 2005, p. 95).

José Afonso da Silva ressalta a relevância dos

princípios fundamentais e por isso nos ocuparemos deles no próximo tópico. Antes,

porém, vejamos como Luís Roberto Barroso (1996 apud ARAUJO; SERRANO,

2005, p. 69), classifica os princípios.

Para Barroso, há três ordens de princípios: os

princípios fundamentais do Estado brasileiro, os princípios gerais e os princípios

setoriais ou especiais. Entre os fundamentais, elenca o republicano, o federativo e o

da separação de poderes, entre outros. Entre os princípios gerais, indica o da

legalidade, o da isonomia, o do juiz natural, etc. E, finalmente, dentre os setoriais ou

especiais, são colhidos os da Administração Pública, os da organização dos

Poderes, os da tributação e orçamento, e outros.

Vejamos agora a respeito dos princípios

fundamentais.

1.6.5 Princípios fundamentais

Observamos que o termo “fundamental” é mais uma

qualificação do que propriamente algo que indica uma classificação ou categoria de

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44 princípios. Ele indica os princípios que são mais relevantes para o Direito, seja qual

for o âmbito em estudo27.

A Constituição brasileira de 198828 reservou um tópico

específico para os princípios fundamentais, poupando, de certa forma, o trabalho de

identificação. Ela os indicou no seu Título I, que se chama: “Dos princípios

fundamentais” 29.

Luiz Alberto David Araujo (2000, p. 98) explica que “os

princípios anunciados no Título I apresentam um traço de fundamentabilidade. [...]

São, portanto, mais importantes que outros princípios, por força da escolha do

próprio constituinte de 1988”.

Convém advertir, entretanto, que “os princípios

fundamentais não se encontram apenas no capítulo próprio [...], achando-se

dispersos ao longo do texto constitucional” (ROTHEMBURG, 1999a, p. 76)30. Mas,

em homenagem ao esforço didático do legislador constituinte, mencionaremos aqui

apenas os princípios fundamentais indicados no Título I, da Constituição brasileira.

Do ‘caput’, do art. 1º, da Constituição, podemos extrair o

princípio republicano, federativo, do Estado de Direito e o democrático.

27 A este respeito, v. André Ramos Tavares, 2003, p. 32. 28 É impossível tratar de uma teoria geral dos princípios sem verificarmos o que consta do texto

constitucional, pois, no dizer de Willis Santiago, “a ambiência natural dos princípios jurídicos, como é fácil deduzir, será o texto constitucional” (2003, p. 269). É por este motivo que inserimos a presente menção à Constituição de 1988, bem como a análise que segue dos dispositivos constantes do seu Título I, mas apenas com o intuito de identificarmos o termo “princípios fundamentais” e não de adentrarmos ao texto positivado que interessa ao estudo do princípio da igualdade, o que pretendemos fazer na segunda parte deste trabalho.

29 Mas esta não é uma característica exclusiva da Constituição brasileira. Vejamos o que dizem Canotilho e Vital Moreira: “É comum a todas as constituições portuguesas – tal como a muitas estrangeiras – a existência de um capítulo próprio, normalmente introdutório [...], abrangendo preceitos do tipo dos contidos na divisão vestibular da CRP, cuja rubrica se refere expressamente aos 'princípios fundamentais'” (1991, p. 67). Mais adiante os mesmos autores ainda explicam: “Os princípios fundamentais visam essencialmente definir e caracterizar a colectividade política e o Estado e enumerar as principais opções político-constitucionais. Daí a sua importância capital no contexto da CRP” (op. cit., p. 71).

30 No mesmo sentido: Canotilho e Vital Moreira (1991, p. 70).

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Ainda do artigo 1º, podem ser extraídos outros princípios

fundamentais, ali indicados como “fundamentos” do Estado brasileiro. São eles:

princípios da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos valores

sociais do trabalho e da livre iniciativa.

No artigo 2º, identificamos o princípio da separação de

poderes. Já no artigo 3º, sob o título de “objetivos fundamentais da República

Federativa do Brasil”, vamos encontrar, dentre outros, os princípios da construção

de uma sociedade justa, da erradicação da pobreza, da redução das desigualdades

sociais e da promoção do bem de todos, sem preconceitos.

E no artigo 4º, temos os princípios orientadores do Estado

brasileiro nas suas relações internacionais.

Entre todos esses princípios, Araujo (2000, p. 101, grifo

nosso) conclui:

São os princípios fundamentais as regras básicas do Estado

brasileiro, seu cerne, sua identidade. Mas, talvez, de todos os

princípios anunciados, o princípio da dignidade da pessoa humana e

o da promoção do bem de todos mereçam nossa maior atenção,

quer pelo seu alcance, quer pela sua natureza.

Paulo Bonavides (2001, p. 253) tem opinião particular

sobre qual seria o mais importante dentre os princípios fundamentais:

[...] a democracia é rigorosamente o mais valioso dos direitos

fundamentais.

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Sem ela, a convivência, a informação, o consenso e o pluralismo não

alcançariam, em relação ao bem comum, o sentido perfectivo, nem o

grau de importância que ora assumem. [...]

A democracia incorpora a igualdade e a liberdade, sem as quais não

há sociedade aberta nem digna, abraçada ao dogma da justiça.

José Afonso da Silva (2005) discrimina os princípios

constitucionais fundamentais da seguinte forma31: a) os relativos à existência, forma,

estrutura e tipo de estado (art. 1º); b) os relativos à forma de governo e à

organização dos poderes (arts. 1º e 2º); c) os relativos à organização da sociedade

(art. 3º, inc. I); d) os relativos ao regime político (art. 1º, parágrafo único); e) os

relativos à prestação positiva do Estado (art. 3º, incs. II, III e IV); f) os relativos à

comunidade internacional (art. 4º).

No próximo tópico, finalmente localizaremos o princípio da

igualdade entre os princípios jurídicos, objetivo da inserção deste item 1.6, referente

à tipologia dos princípios, em nosso trabalho.

31 Canotilho e Vital Moreira também fazem o mesmo em relação à Constituição portuguesa: “Os

princípios fundamentais não são homogêneos quanto ao seu objeto e conteúdo, podendo identificar-se três grupos principais: - o primeiro é constituído pelas chamadas opções políticas fundamentais conformadoras da Constituição [...]; - o segundo grupo é constituído pelos preceitos que definem e caracterizam jurídico-constitucionalmente a colectividade política (ou 'República', na expressão do art. 1º) e o Estado em que ela se organiza [...]; - o terceiro grupo é constituído pelos preceitos que contêm princípios fundamentais da ordem jurídico-constitucional, e abrange normas de âmbito desigual [ex. princípio da legalidade, recepção do direito internacional na ordem interna]” (1991, p. 70).

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47

1.7 Destaque e localização do princípio da igualda de entre os

princípios

Passando ao largo das controvérsias existentes sobre a

possibilidade ou não de hierarquia entre os princípios, se nos permitirmos visualizar

uma pirâmide por eles constituída, é intuitivo que o princípio da igualdade estaria em

seu ápice.

É claro que, compartilhando este espaço, poderíamos citar

também o princípio da dignidade da pessoa humana (ARAUJO, 2000, p. 101;

CANOTILHO, 2002, p. 350), pois a igualdade pressupõe dignidade e vice-versa,

como ainda veremos32. Alexy (2001, p. 112/113) ressalta ainda a importância da

proporcionalidade, que teria total conexão com a própria teoria dos princípios, na

medida em que estes são mandados de otimização no tocante às possibilidades

jurídicas e fáticas. De fato, até para se chegar à igualdade e à dignidade há de se

fazer sempre um exercício baseado na proporcionalidade33.

32 V.Capítulo 2 desta primeira parte de nosso trabalho, o qual denominamos “Igualdade: igualdade,

democracia e Justiça”, onde citamos a lição de Canotilho (2002, p. 350/351) segundo a qual, para se interpretar o princípio da igualdade, não se pode esquecer a dimensão da “dignidade social”.

33 Não podemos deixar de citar aqui as lições de Willis Santiago (2003, p. 269/281), que também destaca o princípio da proporcionalidade, chamando-o de “princípio dos princípios”. Vale transcrever os seguintes trechos de seus festejados ensinamentos: “Para resolver o grande dilema da interpretação constitucional, representado pelo conflito entre princípios constitucionais, aos quais se deve igual obediência, por ser a mesma a posição que ocupam na hierarquia normativa, preconiza-se o recurso a um 'princípio dos princípios', o princípio da proporcionalidade, que determina a busca de uma 'solução de compromisso', na qual se respeita mais, em determinada situação, um dos princípios em conflito, procurando desrespeitar o mínimo o(s) outro(s), e jamais lhe(s) faltando totalmente com o respeito, isto é, ferindo-lhe(s) seu 'núcleo essencial', onde se acha insculpida a dignidade humana. [...]

[...] A imposição nela contida [na 'máxima da proporcionalidade'] é a de que se realize através do

Direito, concretamente e cada vez melhor, o que for jurídica e faticamente possível, para se obter a otimização no adequamento da norma, com seu dever-ser de entidade ideal, à realidade existencial humana.

É esse equilíbrio a própria idéia do Direito, manifestado inclusive na simbologia da balança, e é a ele que se pretende chegar, com Estado de Direito e Democracia.

[...] [...] o princípio da proporcionalidade aparece como mais importante do que aquele da isonomia,

embora sejam ambos pressupostos da existência mesma, jurídico-positiva, de direitos fundamentais, pois enquanto esse último determina, abstratamente, a extensão a todos desses direitos, é aquele que permite, concretamente, a distribuição compatível dos mesmos” (grifos do autor).

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No entanto, o entendimento do que é “digno”, “proporcional” ou

“razoável” 34, é extremamente mutável35, tanto no tempo quanto no espaço,

especialmente em questões ligadas a sexo, raça, religião, deficiência, entre outros

fatores pelos quais seres humanos freqüentemente recebem tratamentos

diferenciados, porque terceiros, mesmo munidos das melhores intenções, acabam

concebendo, nem sempre acertadamente, que haveria “razão suficiente”36 para

tanto. É a aplicação dos elementos ligados ao princípio da igualdade que faculta

decisões justas sobre a possibilidade de se diferenciar ou não, até em situações

inusitadas, jamais vivenciadas antes pelo intérprete. Daí o motivo pelo qual

destacamos, dentre os princípios jurídicos, o princípio da igualdade. E a doutrina é

vasta no mesmo sentido37.

Sem prejuízo das várias designações e qualificações existentes

em relação aos princípios, consideramos adequada, para a finalidade de localizar o

34 O termo “razoável” vem sendo utilizado em nosso trabalho em seu sentido léxico, que permite

empregá-lo, sem maiores preocupações, ao lado do termo “proporcional”. Não desconhecemos, entretanto, que, enquanto princípios jurídicos (da razoabilidade e da proporcionalidade), eles têm significados diferentes, conforme alerta Willis Santiago (op. cit., p. 283), esclarecendo que o princípio da razoabilidade destina-se “a evitar absurdos na elaboração do Direito”, enquanto o princípio da proporcionalidade destina-se a garantir que o Direito “seja interpretado e aplicado atendendo a um princípio de racionalidade, apto a determinar qual a melhor dentre as diversas interpretações possíveis, do ponto de vista da promoção simultânea e equânime do Estado de Direito e da Democracia, com a gama de direitos fundamentais e valores que lhe são inerentes, sendo esse mesmo compromisso com a racionalidade o principal de toda teoria, também no campo do Direito”. Luís Roberto Barroso apesar de, em certo momento, valer-se dos termos indistintamente (1996, p. 209), também explica que a proporcionalidade em sentido estrito cuida-se “de uma verificação da relação custo-benefício da medida, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos” (1996, p. 208).

35 Para Fábio Konder Comparato, a resposta sobre o que vem a ser a “dignidade humana”, vem sendo dada, “sucessivamente, no campo da religião, da filosofia e da ciência” (2005, p. 01).

36 Termo baseado na seguinte lição de Alexy (2001, p. 395, grifos nossos): “[...] para la admissibilidad de las diferenciaciones tiene que haber una razón suficiente que las justifique”.

37 José Souto Maior Borges, em parecer inédito citado por Eros Grau (2003, p. 149), aponta: “uma hierarquia de importância mesmo entre os princípios constitucionais, na qual surge com proeminência substancial o princípio da isonomia, que ‘penetra como uma linfa, os demais direitos e garantias constitucionais, perpassando-lhes o conteúdo normativo’ ”.

Celso Ribeiro Bastos (2002, p. 322-323) não é menos incisivo ao afirmar que: “o princípio da igualdade é dos mais importantes da Constituição: ele incide no exercício de todos os demais direitos. É como se disséssemos: é garantido o direito de propriedade, de liberdade, de comunicação, respeitado o princípio da igualdade. Toda vez que o critério perde legitimação, isto é, não se afigura mais aos olhos da sociedade com razão para diferenciar as pessoas, esse elemento tem de ser expurgado do sistema. [...] A igualdade é, portanto, o mais vasto dos princípios constitucionais, não se vendo recanto onde ela não seja impositiva”.

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49 princípio da igualdade entre os princípios, a classificação que trata dos princípios

constitucionais e princípios gerais de direito.

Quando estudamos a teoria dos princípios, verificamos que essa

divisão entre princípios constitucionais e gerais de direito não é estanque, já que

estes podem também ser “constitucionais”, se tratarem de matéria constitucional

(BASTOS, 2002, p.84). Se isto ocorrer, teríamos então os “princípios constitucionais

gerais” (TAVARES, 2003, p. 32).

O princípio da igualdade, por sua vez, é apontado como um dos

princípios gerais de direito (BASTOS, idem, ibidem; CUNHA, 2003, p. 273) e

encontra-se positivado na Constituição brasileira, em vários pontos dela. Logo,

podemos localizá-lo entre os “princípios constitucionais gerais”, mencionados acima,

ou seja, entre os princípios gerais de direito que estão positivados na Constituição.

Porém não é só. Um dos pontos da Constituição em que ocorreu

a positivação do princípio da igualdade foi entre os princípios fundamentais,

identificados expressamente em seu Título I. Esta afirmação pode ser feita não

apenas porque a igualdade está presente no princípio democrático (CANOTILHO,

2002, p. 350), apontado como um dos mais importantes entre os princípios

fundamentais (BONAVIDES, 2001, p. 253), mas também porque está presente no

objetivo fundamental de promoção do bem de todos, sem preconceitos, também

apontado como um dos mais importantes princípios entre os princípios fundamentais

(ARAUJO, 2000, p. 101)38.

Podemos então dizer do princípio da igualdade: é um dos

princípios gerais de direito, é constitucional e é fundamental, lembrando sempre que

uma designação não exclui a outra.

38 Canotilho e Vital Moreira, em relação à Constituição portuguesa, também afirmam, em relação ao

princípio da igualdade, que: “embora não esteja explicitamente autonomizado em nenhum preceito específico do capítulo introdutórios da CRP, ele é seguramente um dos princípios estruturantes do sistema constitucional. Ele constitui naturalmente o elemento essencial da 'sociedade justa' a que se refere o art. 1º ” (1991, p. 81).

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50

E ainda, nas várias classificações existentes dos princípios, o da

igualdade é sempre apontado entre os mais relevantes, sejam eles chamados de

gerais (BARROSO, 1996), fundantes (CUNHA, 2003), ou perpassando os princípios

estruturantes (CANOTILHO, 2002).

Ressaltamos essa importância lembrando que “os direitos

fundamentais não podem ser estudados à margem da idéia de igualdade”

(MIRANDA, 1993, p. 201). E embora a Justiça compreenda diversas esferas, nela

está sempre presente (mesmo que não haja uma identificação total com ela) a idéia

de igualdade (CANOTILHO, 2002, p. 239).

A justiça fará, assim, parte da própria idéia de direito (Radbruch) e

esta concretizar-se-á através de princípios jurídicos materiais como

os princípios da proibição do excesso, da protecção da confiança, da

indenização de danos, da igualdade, do respeito da dignidade da

pessoa humana (CANOTILHO, idem, ibidem).

No dizer de John Rawls (2002, p. 03), “a justiça é a primeira

virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento”.

Igualdade e Justiça serão estudadas logo adiante, mas

inserimos as citações acima desde já, pois queremos encerrar esta seção de nosso

trabalho, relativa aos princípios, enfatizando a importância do princípio da igualdade

entre as “pedras de fecho”, entre os “mandamentos nucleares” do sistema jurídico, e

consideramos tais expressões bastante pertinentes para tanto.

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2. Igualdade: igualdade, democracia e Justiça

A partir de agora, deixaremos para trás as noções teóricas sobre

princípios para enfocarmos mais diretamente o princípio da igualdade. Logo de

início, fazemos questão de tratar de seu paralelo com a democracia e a Justiça,

porque são temas que se entrelaçam e são sempre citados pelos autores como

forma de explicitar a importância e significado de uma ou de outra. Cite-se como

exemplo, a este respeito, a seguinte lição de Paulo Bonavides:

A nosso ver, a democracia, conforme temos reiteradamente

assinalado, é a esta altura da civilização política, do gênero humano,

[...] direito cuja universalidade, em rigor, deriva de sua natureza

principial, e como princípio entra ela de forma constitutiva no

ordenamento republicano [...]. [...] a democracia é rigorosamente o

mais valioso dos direitos fundamentais.

Sem ela, a convivência, a informação, o consenso e o pluralismo não

alcançariam, em relação ao bem comum, o sentido perfectivo, nem o

grau de importância que ora assumem. A democracia, seguindo essa

linha de compreensão, sintetiza na escala ética do poder valores

substanciais, valores supremos, valores que emancipam o homem e

a sua consciência.

A democracia incorpora a igualdade e a liberdade, sem as quais não

há sociedade aberta nem digna, abraçada ao dogma da justiça

(BONAVIDES, 2001, p. 253, último grifo nosso).

Canotilho (2002, p. 350) raciocina no mesmo sentido ao imbricar a idéia

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52 de igualdade à democracia e à Justiça, afirmando que “não se pode interpretar o

princípio da igualdade como um ‘princípio estático’ indiferente à eliminação das

desigualdades” (grifo do autor), pois isto implicaria na “relativização do princípio da

igualdade”, que acabaria sendo interpretado apenas “no sentido de igualdade formal

perante a lei, esquecendo a dimensão da ‘dignidade social’”.

E prossegue:

A igualdade material postulada pelo princípio da igualdade é também

a igualdade real veiculada pelo princípio da democracia econômica e

social. Nesta perspectiva, o princípio da democracia econômica e

social não é um simples ‘instrumento’, embora se lhe possa assinalar

uma ‘função conformadora’ tradicionalmente recusada ao princípio

da igualdade: garantia de igualdade de oportunidades39 e não

apenas de uma certa ‘justiça de oportunidades’40. Isto significa o

dever de compensação positiva da ‘desigualdade de oportunidades’.

[...]. O princípio da igualdade e o princípio da democracia econômica

e social aglutinam-se reciprocamente numa ‘unidade’ não redutível a

momentos unidimensionais de ‘estática’ ou ‘dinâmica’ da igualdade.

Em fórmula sintética, dir-se-á que o princípio da igualdade é,

simultaneamente, um princípio de igualdade de Estado de direito

(rechtsstaatliche Chancengleichheit) e um princípio de igualdade de

democracia econômica e social (sozialstaatliche Chancengleichheit)41

(CANOTILHO, 2002, p. 350-351).

Vejamos agora um pouco do histórico do surgimento da democracia

para entendermos porque Gomes Canotilho refere-se à democracia econômica e

social como aquela apta à realização da Justiça.

39 Nessa direção também John Rawls, adiante estudado. 40 Nota do autor: “Cfr., em sentido contrário, MAUNZ-DÜRIG-HERZOG-SCHOLZ, Kommentar, cit.,

art. 20.º, p. 187.” 41 Idem: “Cfr. KLOEPFER, Gleichheit als Verfassungsauftrage, 1980, pp. 41 e ss; R. ZIPPELLIUS,

Der Gleichheitssatz, in VVDSTRL, 1988. Entre nós, cfr. CASTANHEIRA NEVES, Assentos, pp. 11 e ss; MARIA DA GLÓRIA FERREIRA PINTO, O princípio da igualdade, p. 20 e ss; JORGE MIRANDA, Manual, vol. IV, p. 236.”

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53

2.1 Democracia e resumo histórico

Não poderíamos tratar deste subitem sem nos lembrarmos de

Aristóteles que, em sua célebre obra, Ética a Nicômaco, conclui que a democracia,

apesar de inseri-la entre as formas corrompidas de governo, é a melhor entre elas.

Demonstra a grande tendência existente para o abuso de poder, concluindo que a

democracia é a que menos perigo oferece nesse campo42.

Feita essa observação, são relevantes neste tema as

proposições feitas a partir do pensamento moderno. Gomes Canotilho (1991, p. 201-

245) relata esse histórico de forma bastante completa e didática. Assim, teceremos

as considerações que seguem, com base no autor e obra referidos.

São identificadas “três linhas de força do princípio democrático”,

detectadas principalmente nos escritos do Iluminismo.

A primeira delas é contra a idéia de democracia. Trata-se do

pensamento antidemocrático do liberalismo burguês43, o qual, apesar de defender

uma “republique”, “société civil” ou “political society”, associa a democracia à idéia de

“populace” ou “sans culottes”, termos utilizados para atribuir-lhe, ou aos seus

seguidores, um sentido de vulgar, desprezível. São citados como expoentes desse

pensamento Diderot, Sieyès, Madison, nos Estados Unidos, e Herculano, em

Portugal.

42 V. obra citada, 2002, p. 230/231. 43 Trata-se do grupo identificado na Revolução Francesa como girondinos. Os girondinos “eram os

deputados de um departamento do interior da França, a Gironda, área próspera da costa atlântica, tendendo a representar os interesses comerciais e a visão de mundo da burguesia ilustrada, que oscilava entre a monarquia constitucional e a república” (Informação disponível em educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/rev_francesa_dois2.htm. Acesso em 01.08.2005).

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A segunda é totalmente a favor da democracia, exercida

diretamente, e é denominada de “radical-democrática”, composta justamente pelos

taxados de “sans culottes” 44. Entre seus maiores expoentes estão Rousseau,

Robespierre e Danton.

A terceira reflete uma posição intermediária. É a que defende a

“democracia representativa”. Foi esta corrente que acabou se impondo. Criticada

pelos radicais como sendo uma “ideologia da classe burguesa”, para Canotilho

(1991, p. 407) ela reflete “aspirações de ‘racionalização’ ” e de “qualidade das

prestações políticas”.

Mas, mesmo que a idéia de democracia tenha vencido, o que

passou a vigorar, de fato, foi uma democracia “política”, “liberal” ou “burguesa”, que

representava mais uma forma de domínio, impedindo que as camadas não

pertecentes às elites participassem de suas várias decisões.

Eis então que, no final do Século XIX, partindo do movimento

operário, a idéia da “socialdemocracia” contrapõe-se a essa “democracia política”.

Trata-se de um movimento que clama por justiça social, por igualdade e pelo fim da

exploração do “homem pelo homem”. É contra a unidimensionalização individualista,

egoísta e proprietária do liberalismo. Este liberalismo, embora tenha lutado, no

Iluminismo, contra o absolutismo, o arbítrio do poder e os feudos, não havia feito

justiça social.

Um vício grave, como a falta de justiça social, torna clara então a

44 São os jacobinos, opositores dos girondinos na mesma ocasião. “Os jacobinos tinham esse nome

derivado do seu local de encontro, o Convento de S.Jacques, em Paris. Com o tempo, o clube dos jacobinos tornou-se uma poderosa facção revolucionária, compostas pelos democratas mais ardentes e pelos revolucionários mais radicais, que terminaram por formar, dentro do eclético corpo do jacobinismo militante, outras tendências, como a dos Cordelliers e a dos Feuillants. Politicamente eles representavam a massa dos sans-culottes, os setores mais pobres da sociedade francesa, os trabalhadores jornaleiros e parte considerável da classe média dos jornalistas, dos advogados e pequenos profissionais que, com o rugir da revolta, assumiram as posições mais extremadas” (idem, ibidem).

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55 necessidade de um aprimoramento do que se vinha praticando sob o nome de

democracia, ou seja, concluía-se que a democracia deveria se estender à ordem

social, econômica e à vida cultural. Deveria haver uma transformação “socialista” da

sociedade.

Tal movimento (radical-democratas e marxistas), apesar de suas

pertinentes e salutares preocupações, transmite a noção de que a democracia

“ideal” (a que implica igualdade e liberdade em todos os domínios) só seria possível

num cenário de socialismo. Mas Canotilho (1991, p. 413) explica que a democracia

também pode ter uma dimensão social naquilo que se chama vulgarmente de

“capitalismo social”, onde se mantém a propriedade, mas se adota uma política

social com medidas de proteção e infra-estruturas sociais, conjugadas com uma

política de desenvolvimento.

Apresenta-se então como alternativa ao impasse do sistema

representativo, o qual se revelou também inapto para o alcance da justiça social, a

idéia de “democracia participativa”. Esta, por sua vez, traz dificuldades no conceito

de participação, o que não chega a ser um impeditivo, caso as idéias de participação

e de representatividade forem combinadas.

Daí se conclui que o essencial é que, seja qual for o meio

utilizado para se chegar à “participação”, ele será válido se contribuir para as

mudanças de poder, das relações de domínio e de estilos de direção, condições

imprescindíveis numa democracia.

Entretanto, a democracia, mesmo com aprimoramentos, sempre

sofreu um ataque dos conservadores, ao longo da história. Os principais destes

ataques respaldam-se nas idéias de ingovernabilidade, fundamentada no excesso

de carga para o governo; de necessidade de limites da liberdade; de polarização

partidária; de excesso de leis; de burocracia (o Estado se transforma em um novo

“Leviathan”); de promessas não realizáveis pelos partidos; de crescente frustração

das camadas sociais e, não se pode negar, na idéia de que a democracia também

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56 implica domínio de “homens sobre homens”. Mas é justamente neste último ponto

que o ideal democrático volta a imperar.

Já constatamos que a necessidade de racionalização da

qualidade na prestação política realmente exige um órgão dirigente. É impossível

que um país seja governado por todos, sempre diretamente. Este órgão dirigente

exerce então um certo domínio, que só é admissível se for justificado. Tal justificativa

chama-se “legitimação” e esta é válida se derivar do próprio povo (soberania

popular)45, e não de “fora” (ordem divina, hereditária, etc.).

A soberania popular, por sua vez, baseia-se nos princípios da

liberdade política e da igualdade entre os cidadãos46, o que exige instrumentos aptos

(participação) a garantir um processo político livre para a escolha desse “órgão

dirigente” (representatividade). Problemas sempre irão existir, mas, como já havia

diagnosticado Aristóteles, citado no início, suas probabilidades de acontecer e suas

conseqüências são mais graves em regimes que podem se deteriorar em uma

tirania ou numa oligarquia47.

45 V. também Canotilho e Vital Moreira (1991, p. 74), especialmente o seguinte trecho: “o poder

político – com domínio do homem sobre o homem – carece de uma legitimação, que só pode vir do povo, mas a forma democrática de legitimação exige procedimentos, formas e garantias materiais, de modo a evitar-se quer uma democracia sem Estado de direito ou um Estado de direito sem democracia”.

46 Kelsen, em mais uma lição magistral, elege a liberdade e a igualdade como requisitos indispensáveis para a idéia de democracia: “O parecer de que o grau de liberdade na sociedade é proporcional ao número de indivíduos livres subentende que todos os indivíduos têm igual valor político e que todos têm o mesmo direito à liberdade [...]. Assim, o princípio da maioria, e, portanto, a idéia de democracia, é uma síntese das idéias de liberdade e igualdade” (1998, p. 410).

É ainda, do mesmo autor, a explicação sobre o que se deve entender por princípio da maioria, noção de especial interesse em nosso trabalho e que passamos a transcrever para espancar de imediato qualquer dúvida nesse sentido: “O princípio de maioria não é, de modo algum, idêntico ao domínio absoluto da maioria, à ditadura da maioria sobre a minoria. A maioria pressupõe, pela sua própria definição, a existência de uma minoria; e, desse modo, o direito da maioria implica o direito de existência da minoria. O princípio de maioria em uma democracia é observado apenas se todos os cidadãos tiverem permissão para participar da criação da ordem jurídica, embora o seu conteúdo seja determinado pela vontade da maioria. Não é democrático, por ser contrário ao princípio de maioria, excluir qualquer minoria da criação da ordem jurídica, mesmo se a exclusão for decidida pela maioria.

Se a minoria não for eliminada do procedimento no qual é criada a ordem social, sempre existe uma possibilidade de que a minoria influencie a vontade da maioria. Assim, é possível impedir, até certo ponto, que o conteúdo da ordem social venha a estar em oposição absoluta aos interesses da minoria. Esse é um elemento característico da democracia” (idem, p. 411).

47 “Quando ocorre uma mudança da constituição, a realeza se converte em tirania, porque a tirania é a forma má da monarquia (governo de um só), de modo que um mau rei se transforma num

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Na democracia, é incondicional que o poder seja exercido com

base em autorização, sempre recente, dada pelo povo e por ele deve ser exercido, o

que pode ser resumido na máxima de Lincoln: “tudo do povo, pelo povo, para o

povo”. Dessa forma, garantindo-se que todos os cidadãos tenham e exerçam sua

parcela de poder, aliada à existência de uma “política social com medidas de

proteção e infra-estruturas sociais”, há chances reais de justiça social.

A Constituição brasileira de 1988 albergou todos esses

postulados ao afirmar, já em seu artigo 1º, que a República Federativa do Brasil

“constitui-se em Estado Democrático de Direito” (grifo nosso) e que “todo o poder

emana do povo, que o exerce por meios de representantes eleitos ou diretamente”

(parágrafo único). Tudo com o objetivo de alcançar “o bem de todos” (art. 3º, inc. IV).

[...] uma análise do texto constitucional faz ver, [...] que um grande

número de dispositivos constitucionais palmilhou claramente o

caminho do chamado bem-estar social. [...] Destarte, parece

inquestionável que a Constituição do Brasil institui um Estado

Democrático Social de Direito (ARAUJO; SERRANO JÚNIOR, 2005,

p. 93-94).

Com este histórico, verificamos o quanto o respeito ao princípio

da igualdade é importante e indispensável ao conceito de democracia, que deve ser

entendida como uma social-democracia para que possa alcançar a almejada justiça

social. É ainda Canotilho quem observa isto, de maneira bastante enfática:

Como já atrás se referiu (cfr. supra), o princípio da igualdade é não

apenas um princípio de Estado de direito mas também um princípio

de Estado social. Independentemente do problema da distinção entre

tirano. A aristocracia (governo dos melhores, dos mais excelentes) se converte em oligarquia (governo de poucos) devido à maldade dos governantes que não distribuem o que o Estado tem a oferecer em conformidade com o mérito, mas proporciona todos ou a maioria de seus benefícios a si mesmos e sempre confiam os cargos às mesmas pessoas [...]; de sorte que o poder fica nas mãos de uns poucos homens maus, em lugar de ficar nas mãos dos homens mais excelentes” (2002, p. 231).

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‘igualdade fáctica’ e ‘igualdade jurídica’ e dos problemas econômicos

e políticos ligados à primeira (ex.: políticas e teorias da distribuição e

redistribuição de rendimentos), o princípio da igualdade pode e deve

considerar-se como um princípio de justiça social . Assume relevo

enquanto princípio de igualdade de oportunidades (Equality of

opportunity) e de condições reais de vida. [...]

Esta igualdade conexiona-se, por um lado, com uma política de

‘justiça social’ e com a concretização das imposições constitucionais

tendentes à efectivação dos direitos econômicos, sociais e culturais.

Por outro, ela é inerente à própria ideia de igual dignidade social (e

de igual dignidade da pessoa humana) consagrada no artigo 13.º/2

que, deste modo, funciona não apenas como fundamento

antropológico-axiológico contra discrminações, objectivas e

subjectivas, mas também como princípio jurídico-constitucional

impositivo de compensação de desigualdade de oportunidades48 e

como princípio sancionador da violação da igualdade por

comportamentos omissivos (inconstitucionalidade por omissão) -

(CANOTILHO, 2002, p. 430-431).

Diante desta total conexão entre igualdade e justiça social,

passemos ao próximo tópico.

2.2 Igualdade e Justiça

Já vimos aqui o quanto Justiça e igualdade estão ligadas, ainda

que não se confundam49. A Justiça é mais ampla e concretiza-se por meio de vários

48 “Cfr. a proximidade do discurso de BALDASSARE, ‘Diritti Sociali’, in Enciclopedia Giuridica, Vol.

XI; PIZZORUSSO, Che cos’e l’egualianza. Il principio etico e la norma giuridica nella vita real, Roma, 1983. Preocupações semelhantes em JORGE MIRANDA, Manual, IV, pp. 233 e ss”.

49 Celso Ribeiro Bastos chega a enumerá-las como dois princípios distintos: “Enumeramos como princípios gerais de Direito, dada sua larga abrangência, informadores que são de todo o ordenamento jurídico, os princípios da justiça, da igualdade, da liberdade e da dignidade da pessoa humana” (BASTOS, 2002, p. 84, grifo nosso).

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59 princípios jurídicos. O da igualdade é um desses princípios, mas trata-se de princípio

que atinge posição de destaque50 exatamente porque o pressuposto da igualdade

está sempre presente na materialização da Justiça. A Justiça, por sua vez, faz parte

da própria idéia de direito (CANOTILHO, 2002, p. 239)51. Por isso, precisamos nos

aprofundar um pouco mais na seara da Justiça.

Saber o que é justo é uma preocupação que remonta a tempos

imemoráveis. Basta abrirmos a Bíblia que, mesmo em seus livros mais antigos,

encontraremos menções à Justiça e sempre com destaque à sua importância como

bem a ser alcançado52.

Já a associação entre igualdade e justiça, por sua vez,

considera-se que vem desde o pensamento grego. Citemos a lição de Maren

Guimarães Taborda (1998, p. 244) para corroborar essa assertiva:

Foi também entre os gregos (pitagóricos) que nasceu a noção de que

a igualdade é justiça. Para eles, a harmonia e regularidade do

universo, concebido como kosmos (totalidade ordenada), se traduz

na esfera humana em uma correção de condutas, e a justiça (dikê)

se caracteriza como uma relação de igualdade entre dois termos,

como, por exemplo, uma injúria e sua reparação. Havendo um

desequilíbrio no kosmos é tarefa da justiça reintroduzi-lo.

Para Jorge Miranda (1993, p. 213), um dos pontos que não

50 V. item 1.7, Parte I, deste trabalho. 51 Esta frase, provavelmente, desagrada aos adeptos de uma visão kelseniana do Direito, que será

abordada, ainda que pela visão crítica de Chaïm Perelman, no item 4.1, Parte I. 52 A mais importante dessas menções, a nosso ver, é a que conta a história de uma noite em que

Deus teria aparecido a Salomão em sonhos e dito para que ele pedisse o que quisesse, como homem e como rei, que Ele lhe concederia. Salomão disse: “[...] meu Deus, constituíste rei a teu servo em lugar de meu pai Davi, mas eu não passo de um jovem, que não sabe comandar. Teu servo se encontra no meio do teu povo que escolheste, povo tão numeroso que não pode contar nem calcular. Dá, pois, a teu servo um coração que escuta para governar teu povo e para discernir entre o bem e o mal [...]” (Primeiro livro dos Reis, cap. 3, v. 7-9). E Deus lhe responde: “porque foi este o teu pedido, e já que não pediste para ti vida longa, nem riqueza, nem a vida dos teus inimigos, mas pediste para ti discernimento para ouvir e julgar, vou fazer como pediste: dou-te um coração sábio e inteligente, como ninguém teve antes de ti e ninguém terá depois de ti” (idem, ibidem, v. 11-12).

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60 podem ser suprimidos na análise do próprio sentido da igualdade é o de que

“igualdade significa intenção de racionalidade e, em último termo, intenção de

justiça”.

Canotilho assevera que a igualdade deve ser justa (2002, p.

428), mas adverte que o problema em se alcançar essa “justiça” na igualdade é que:

A fórmula ‘o igual deve ser tratado igualmente e o desigual

desigualmente’ não contém o critério material de um juízo de valor

sobre a relação de igualdade (ou desigualdade). A questão da

igualdade justa pode colocar-se nestes termos: o que é que nos

leva a afirmar que uma lei trata dois indivíduos de uma forma

igualmente justa? Qual o critério de valoração para a relação de

igualdade?

Uma possível resposta, sufragada em algumas sentenças do

Tribunal Constitucional, reconduz-se à proibição geral do arbítrio :

existe observância da igualdade quando indivíduos em situações

iguais não são arbitrariamente (proibição do arbítrio) tratados como

desiguais. [...] Embora ainda hoje seja corrente a associação do

princípio da igualdade com o princípio da proibição do arbítrio, este

princípio, como simples princípio de limite, será também insuficiente,

se não transportar já, no seu enunciado normativo-material, critérios

possibilitadores da valoração das relações de igualdade ou

desigualdade. Esta a justificação de o princípio da proibição do

arbítrio andar sempre ligado a um fundamento material ou critério

material objectivo . Ele costuma ser sintetizado da forma seguinte:

existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a

disciplina jurídica não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não

tiver um sentido legítimo; (iii) estabelecer diferenciação jurídica sem

um fundamento razoável. Todavia, a proibição do arbítrio

intrinsecamente determinada pela exigência de um ‘fundamento

razoável’ implica, de novo, o problema da qualificação desse

fundamento, isto é, a qualificação de um fundamento como razoável

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aponta para um problema de valoração53 (CANOTILHO, 2002, p.

428).

Já para Alf Ross (2000) a idéia de justiça é dotada de uma

“compreensão instintiva”. Para ele, a noção de justiça parece ser uma idéia clara e

simples dotada de uma poderosa força motivadora, pois em todas as partes parece

haver uma compreensão instintiva das exigências de justiça. Exemplifica dizendo

que as crianças de tenra idade já apelam para a justiça, se uma delas recebe um

pedaço de maçã maior que os pedaços das outras; que mesmo os animais possuem

o gérmen de um sentimento de justiça, ou seja, o poder da justiça é grande. Lutar

por uma causa "justa" fortalece e excita uma pessoa. Todas as guerras têm sido

travadas em nome da justiça e o mesmo se pode dizer dos conflitos políticos entre

as classes sociais.

Mas é forçoso reconhecer que o conteúdo do princípio da

igualdade, para o alcance dessa igualdade justa, pressuposto e objetivo de um

Estado Democrático de Direito, não é de fácil definição, e nem é tão “instintivo”.

Vamos à sua análise.

53 Acreditamos que este “problema de valoração” mencionado por Canotilho foi, em grande parte,

solucionado pelas convenções internacionais, conforme veremos na segunda parte deste trabalho.

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3. A máxima aristotélica como ponto de partida par a os estudos do

princípio da igualdade

É de conhecimento geral a vinculação feita por Aristóteles da idéia da

igualdade com a idéia de justiça – que dá a cada um o que é seu -, sendo

necessário, para tanto, conferir tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais,

na medida dessa desigualdade.

Mas, dentro dessa idéia, não seria injusto, por exemplo, tratar de

maneira diferente o escravo e seu proprietário. É Canotilho (2002, p. 380-381) quem

afirma que “quando se põe a pergunta da existência de direitos do homem na

antigüidade a resposta é negativa. Basta recordar que Platão e Aristóteles

consideravam o estatuto da escravidão como algo natural” 54.

Percebe-se logo que, no fundo, nessa idéia de igualdade formal pode

prevalecer, às vezes, uma profunda injustiça real.

David Araujo e Serrano Júnior (2005, p. 119), por exemplo, observam

em relação a esta máxima o seguinte:

54 O mesmo autor afirma ainda que: “O princípio da igualdade, no sentido de igualdade na própria

lei , é um postulado de racionalidade prática: para todos os indivíduos com as mesmas características devem prever-se, através da lei, iguais situações ou resultados jurídicos. Todavia, o princípio da igualdade, reduzido a um postulado de universalização, pouco adiantaria, já que ele permite discriminação quanto ao conteúdo (exemplo: todos os indivíduos da raça judaica devem ter sinalização na testa; todos os indivíduos da ‘raça negra’ devem ser tratados ‘igualmente’ em ‘escolas’ separadas das escolas reservadas aos brancos). [...] Consequentemente, é preciso delinear os contornos do princípio da igualdade em sentido material. Isto não significa que o princípio da igualdade formal não seja relevante nem seja correcto. Realça-se apenas o seu caráter tendencialmente tautológico, uma vez que o cerne do problema permanece irresolvido, qual seja, saber quem são os iguais e quem são os d esiguais “ (CANOTILHO, 2002, p. 427, grifo nosso).

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A locução, conquanto correta, parece não concretizar explicação

adequada quanto ao sentido e ao alcance do princípio da isonomia,

porque a grande dificuldade reside exatamente em determinar, em

cada caso concreto, quem são os iguais, quem são os desiguais e

qual a medida dessa desigualdade.

De maneira bastante ácida, Alf Ross (2000, p. 321) indaga:

Dar a cada um o seu soa explêndido. Quem ousará questioná-lo? A

única dificuldade é que esta fórmula pressupõe que eu saiba o que é

devido a cada pessoa como o seu (quer dizer, como seu direito). A

fórmula é, assim, carente de significado, visto que pressupõe a

posição jurídica para a qual deveria servir de fundamento.

Não se nega, entretanto, o extremo valor da proposição de Aristóteles,

o que não significa que ela não comporte aprimoramentos. É o que tem ocorrido.

São estudos que, muito longe de negá-la, a têm sempre, como identificamos no

subtítulo, como “ponto de partida” 55, são de extrema relevância as conclusões a

esse respeito constantes do O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, de

Celso Antônio Bandeira de Mello, conforme veremos a seguir, dentre outras lições.

55 Cfe. Bandeira de Mello (2004, p. 11), que afirma sua validade “como ponto de partida” e que deve

lhe ser negado, entretanto, o “caráter de termo de chegada”.

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4. Elementos necessários para a implementação do p rincípio da

igualdade na visão da doutrina contemporânea

A doutrina tem se preocupado em resolver o “cerne do problema”

apontado acima por Canotilho. Traremos aqui algumas concepções56, que até se

sobrepõem em alguns pontos, mas cada uma com importantes contribuições a dar

ao estudo do princípio da igualdade e, conseqüentemente, à sua implementação.

4.1 As lições de Perelman

Fundador da Retórica moderna, Chaïm Perelman, foi um grande

pensador que se dedicou com profundidade tanto ao Direito quanto à Justiça.

A partir de uma razão preocupada em estabelecer o plano

discursivo não-matemático no âmbito dos direitos e a razão prática na sua

coerência, Perelman ilustra o seu método com diversas análises da noção de justiça,

acabando por brindar-nos com preciosas noções para o nosso estudo.

Analisaremos aqui, inicialmente, o texto intitulado “Teoria Pura

do Direito e a Argumentação” (1990, p. 567-575), no qual critica a visão positivista

de Kelsen, a seu ver, dissociada da justiça.

Afirma que Kelsen esforçou-se notavelmente por construir uma

ciência do Direito livre de toda interferência de considerações não jurídicas, daí o

56 Mencionaremos apenas alguns dos autores mais conhecidos nesta área, sem qualquer pretensão

de exaurimento, mas somente com a finalidade de obtermos um apanhado geral sobre as posições doutrinárias relacionadas à aplicação do princípio da igualdade.

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65 nome “Teoria Pura do Direito” (teoria do positivismo jurídico), o que gerou muitas

controvérsias. É que, observa, as idéias de Kelsen “colocam em xeque tantas idéias

comumente aceitas e apontam para conseqüências paradoxais” (ex: as que se

referem à concepção da interpretação jurídica e ao papel do juiz na aplicação do

Direito). Para Kelsen, as ciências em geral dedicam-se ao estudo daquilo que é e o

sistema de normas cuidam do que deve-ser, por isso a necessidade de separação.

É assim que Perelman resume o pensamento de Kelsen:

- o ato ilícito => é condição para uma reação específica do Direito;

- a sanção => é pronunciada pelos juízes, de acordo com as situações

estabelecidas na lei;

- a lei => é válida desde que elaborada e promulgada de acordo com as

regras hierarquicamente superiores;

- a Constituição => é a que estabelece as condições acima;

- o sistema de normas e atos jurídicos => é hierarquizado e dinâmico, no

qual as normas dependem umas das outras e assim por diante, até que se

alcance a norma fundamental;

- a norma fundamental => não tem justificação jurídica, é pressuposta por

todas as normas e atos jurídicos do sistema;

- o legislador, o juiz e o administrador => recebem a autoridade

(competência) necessária para criar novas leis (obedecidas as regras

acima), ou para aplicar concretamente uma norma genérica, mas tais

atividades são sempre “criadoras do Direito”, pois o legislador não

interpreta, ele vota e o juiz não verifica o objetivo correto da lei, apenas

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decide dentre as interpretações possíveis a que quer privilegiar no caso

concreto.

Após fazer estas anotações, Perelman diz restar demonstrado

“que a teoria pura do direito caracteriza-se por um dualismo intransigente que opõe,

de uma parte, o ser ao dever-ser, a realidade ao valor, o conhecimento à vontade”, e

de outra parte, “o direito à moral e o direito positivo ao direito natural”. Mas, para ele,

as teses de Kelsen “dependem de decisões, de atos de vontade, não baseados no

direito, mas justificados por considerações de ordem política ou moral”. Esse

dualismo kelseniano obriga quem quer adotá-lo a “renunciar à ilusão da razão

prática” e esta forma de agir nem sempre levaria a soluções justas.

Parece a Perelman que:

[...] todos os paradoxos e implicações filosóficas da teoria pura do

direito são fruto de uma teoria do conhecimento, cujo único

compromisso é com o desenvolvimento de suas teses a partir de um

saber incontroverso, inteiramente fundado sobre os dados da

experiência e da prova demonstrativa, que desconsidera, por

completo, o papel da argumentação.

[...] como toda justificação racional das normas parece estar excluída

da visão kelseniana, sua fundamentação somente pode ter lugar a

partir de imperativos religiosos e de revelações sobrenaturais.

Dispara a seguinte crítica: “para a construção de uma ciência do

direito tal qual ela é – e não tal qual ela deve-ser – faz-se necessário, parece-me,

renunciar ao positivismo jurídico, como concebido por Kelsen”.

Perelman aponta os motivos pelos quais entende haver a

necessidade de renúncia ao positivismo jurídico, estando a regra de justiça

claramente delineada entre eles:

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Inicialmente, um sistema jurídico não é tão formal e impessoal

quanto os sistemas axiomáticos, lógicos ou matemáticos. [...] A prova

da coerência de um sistema formal [...] toma como base apenas sua

própria estrutura.

[...] o juiz está obrigado a julgar e motivar suas decisões. [...]

Decorre, portanto, a necessidade de o juiz julgar e argumentar como

se o sistema jurídico que aplica não tivesse lacunas e não

comportasse antinomias [explica que elas seriam todas 'aparentes' e

conclui conforme segue].

[...] se o sistema jurídico não tem ambigüidades, é graças ao poder

de decisão conferido ao juiz.

[...]

As decisões e suas motivações contribuem para a elaboração da

ordem jurídica, ao fornecer os precedentes paras as decisões

futuras. [...] É por força do papel inegável dos precedentes e da regra

de justiça que a jurisprudência fornece material à doutrina.

Outro obstáculo que aponta na teoria pura: ela tem a idéia de

que um sistema jurídico identifica-se com a soberania do Estado, pois a norma

fundamental é uma lei estatal, mas surgiram “as exigências da construção de um

direito público internacional, no qual esta mesma norma seria supra-estatal”. Estas

duas construções (norma fundamental como norma estatal ou supra-estatal) seriam

arbitrárias, pois não há razões plausíveis para se preferir a norma estatal à norma

internacional. Perelman denuncia então que há uma resistência do positivismo em

tratar a esse respeito. Uma resistência que, em sua severa crítica, se identifica com

a resistência em se abandonar a teoria geocêntrica de Ptolomeu pela heliocêntrica

de Copérnico/Galileu, mesmo havendo motivos válidos para isso.

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E assim, demonstrando a inaptidão das idéias positivistas para o

alcance da Justiça, dá a sua visão sobre como realizá-la, oferecendo uma rica

contribuição aos estudiosos desse tema, pois apresenta, de forma objetiva, seis

critérios materiais de justiça. Vejamos.

Perelman expõe, em primeiro lugar, uma concepção de justiça

formal, segundo a qual os seres que se encontram em situações essencialmente

similares devem ser tratados da mesma maneira. A partir deste princípio, sobre o

qual admite que existe uma forte concordância, ele mostra as divergências ligadas à

interpretação do que seja essencialmente similar, e conclui que, para aqueles que se

encontram em situações diferentes, o tratamento justo depende da concepção que

for feita do interesse geral, o que acarreta, novamente, a possibilidade de

concepções divergentes, o que seria solucionado com os critérios que aponta e

estão abaixo transcritos.

São autores que se identificam com Perelman57: Miguel Reale,

Manuel Atienza, Aulio Aarnio, Klaus Gunter, Robert Alexy, Karl Engish, Tércio

Ferraz, Paul Ricoeur.

Atienza (2003, p. 59-60), por exemplo, tece interessantes

considerações sobre a obra de Perelman, resumindo seus célebres critérios

atinentes à concepção de justiça:

Perelman se dedicou a realizar um trabalho sobre a Justiça [...]. Sua

tese fundamental é que se pode formular uma noção válida de justiça

puramente formal, que ele enuncia assim: ‘Deve-se tratar do mesmo

modo os seres pertencentes à mesma categoria’. Mas, dado o

caráter formal dessa regra, é preciso contar com outros critérios

materiais de justiça que permitam estabelecer quando dois ou mais

seres pertencem à mesma categoria. Segundo Perelman, é possível

57 Cfe. ANTÔNIO C. MAIA, texto disponível em www.puc-

rio.br/sobrepuc/depto/direito/pet_jur/c2maia.htm, acesso em 24/09/04.

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distinguir os seis critérios seguintes, que definem outros tantos tipos

de sociedade e de ideologia: a cada um o mesmo; a cada um

segundo o atribuído pela lei; a cada um segundo a sua categoria; a

cada um segundo seus méritos ou sua capacidade; a cada um

segundo seu trabalho; a cada um segundo suas necessidades (grifo

nosso).

4.2 As lições de John Rawls

Os campos de interesse de Rawls (2002) variaram bastante,

passando por química, matemática e história da arte, para finalmente se dedicar à

filosofia. Sua principal obra é Uma Teoria da Justiça, que teve três versões

preliminares: 1964-5; 1967-68 e 1969-70, até finalmente ser publicada.

A intenção do autor com esta obra foi apresentar uma

concepção que ele chama, já no prefácio, de “justiça como eqüidade”, afirmando que

não acredita “que o utilitarismo possa explicar as liberdades e direitos básicos dos

cidadãos como pessoas livres e iguais, uma exigência de importância absolutamente

primordial para uma consideração das instituições democráticas” (idem, ibidem, p.

XIV). Acredita, sim, na igualdade democrática, que conduz ao princípio da igualdade

eqüitativa de oportunidades e ao princípio da diferença.

No prefácio à edição brasileira, explica que o princípio da

diferença pressupõe uma base institucional que satisfaça os princípios das

liberdades iguais e da igualdade eqüitativa de oportunidade. Defende que:

[...] em um estado do bem-estar social, o objetivo é que ninguém

fique abaixo de um padrão decente de vida e que todos possam

receber certas proteções contra acidentes e a má sorte, por exemplo,

seguro desemprego e assistência médica. [...]

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[...] esse sistema, embora se esforce para assegurar a igualdade

eqüitativa de oportunidades, é insuficiente ou ineficaz, porque ainda

admite disparidades oriundas de grandes heranças e de ganhos. Em

contraste, em uma democracia da propriedade particular o objetivo é

levar a cabo a idéia de sociedade como um sistema eqüitativo de

cooperação ao longo do tempo, entre os cidadãos como pessoas

livres e iguais. Dessa forma, as instituições básicas devem desde

o princípio conceder aos cidadãos em geral, e não a penas a uns

poucos, os meios produtivos que lhes permitam ser m embros

totalmente comparativos de uma sociedade (p. XVIII, grifo nosso).

Ao tratar do “bem da justiça”, Capítulo IX da obra mencionada,

indaga: “a justiça como eqüidade e o bem como racionalidade são congruentes?” É

que dadas as circunstâncias “de uma sociedade bem-organizada, o plano racional

de vida de uma pessoa sustenta e afirma o seu senso de justiça”. Além disso, essa

sociedade “permite que as pessoas tenham autonomia e objetividade em seus juízos

a respeito do justo e da justiça” (p. 572). E finalmente, numa “sociedade bem

organizada, um senso efetivo da justiça faz parte do bem dos indivíduos, e portanto

as tendências à instabilidade são controladas, se não forem totalmente eliminadas”

(p. 571).

Para Rawls, a Justiça combina com o ideal de união social,

abranda a propensão à inveja e ao rancor e define um equilíbrio dentro do qual se

verifica a prioridade da liberdade (idem, ibidem).

4.3 As lições de José Joaquim Gomes Canotilho

Canotilho (2002, p. 1.279-1280), cujas lições já citamos bastante

neste trabalho, o que dispensa outras considerações, apresenta um “esquema”

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71 como apoio metódico para se saber “quando há um tratamento justo de igualdade ou

desigualdade” (grifo do autor).

O esquema que propõe é o seguinte:

a) quais as situações de fato são objetos de comparação,

pois, se o princípio da igualdade é, por definição, um princípio relacional, e a norma

jurídica comporta sempre um âmbito ou sector ‘real’ ou ‘fático’, então importa sempre

determinar quais os ‘candidatos’ (objetos, pessoas, situações) que se consideram

iguais ou desiguais;

b) quais os critérios ou medidas materiais com base nos

quais avaliamos se determinados ‘pressupostos de facto’ devem ser tratados de

forma ‘essencialmente igual’ ou ‘essencialmente desigual’?

Explica que, em relação a estas perguntas, deve notar-se que as

medidas jurídico-materiais de aferição da igualdade ou desigualdade devem

encontrar-se, em primeiro lugar, nas normas e princípios de constituição.

Portanto, exige que a comparação feita tenha pertinência

jurídico-constitucional, “pois, se determinada regulação está em contradição

intrínseca com a concepção global do sistema jurídico, isso pode ser um forte indício

da violação do princípio da igualdade” (idem, ibidem, p. 1279-1280).

Canotilho elabora ainda uma seqüência de perguntas

(“perguntas de controlo” ou “modelo argumentativo”) para se verificar, sob o ponto

de vista metódico, se uma medida pública obedece ao princípio da igualdade.

Finalmente, permite a conclusão de que a igualdade pressupõe

um critério de proporcionalidade/razoabilidade, pois para se chegar a uma conclusão

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72 justa devemos aplicar a casos semelhantes, a mesma solução, livre de excessos.

Vale transcrever a lição do autor neste ponto:

Nos tempos mais recentes, tende-se a reforçar a metódica de

controlo do princípio da igualdade através do princípio da

proporcionalidade (em sentido amplo). Talvez seja mais correcto

dizer que se exige aqui um esquema de fundamentação e controlo

conducentes, em termos gerais, aos mesmos resultados obtidos pela

utilização do princípio da proibição do excesso em sede de restrição

de direitos (CANOTILHO, 2002, p. 1.281).

Resume seu “controlo metódico da desigualdade de

tratamento”, com base no seguinte “teste”:

a) a legitimidade do fim do tratamento desigualitário;

b) a adequação e necessidade deste tratamento para a

prossecução do fim;

c) a proporcionalidade do tratamento desigual relativamente

aos fins obtidos (ou a obter).

4.4 As lições de Jorge Miranda

Jorge Miranda (1993, p. 213-215) também chega à

proporcionalidade como solução para o alcance da “igualdade justa”, mas antes, da

mesma forma que os autores que temos citado, resume alguns critérios, extraídos

do que chama de “sentido positivo” da igualdade:

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a) tratamento igual de situações iguais (ou tratamento

semelhante de situações semelhantes);

b) tratamento desigual de situações desiguais, mas

substancial e objetivamente desiguais – “impostas pela diversidade das

circunstâncias ou pela natureza das coisas” – e não criadas ou mantidas

artificialmente pelo legislador;

c) tratamento desigual que, consoante os casos, se converte

para o legislador ora em mera faculdade, ora em obrigação;

d) tratamento igual ou semelhante, em moldes de

proporcionalidade, das situações desiguais relativamente iguais ou semelhantes;

e) tratamento das situações não apenas como existem mas

também como devem existir, em harmonia com os padrões da Constituição material

(acrescentando-se, assim, um componente ativo ao princípio e fazendo da igualdade

perante a lei uma verdadeira igualdade através da lei).

Quanto ao princípio da proporcionalidade, explica, de imediato,

que “igualdade e proporcionalidade não coincidem, embora se sobreponham

largamente”.

E prossegue:

A igualdade tem que ver com a distribuição de direitos e deveres, de

vantagens e de encargos, de benefícios e de custos inerentes à

pertença à mesma comunidade ou à vivência da mesma situação. A

proporcionalidade é um dos critérios que lhe presidem ou uma das

suas situações imprescindíveis, como acaba de se indicar; é uma

medida de valor a partir da qual se procede a uma ponderação.

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Mas a proporcionalidade não concerne apenas à declaração, em

abstracto ou em concreto, de direitos e deveres. Ela está sobretudo

ao serviço da limitação do poder político, enquanto instrumento de

funcionalização de todas as actualizações susceptíveis de

contenderem com o exercício de direitos ou com a adstrição a

deveres. [...] Também envolve uma directiva para as relações que se

desenrolem no interior do aparelho institucional do Estado, máxime

na consideração das competências dos órgãos em determinadas

vicissitudes.

A igualdade foi elevada a princípio jurídico pelas Constituições

modernas, irradiando depois como tête de chapitre para os diferentes

ramos do sistema jurídico positivo. A proporcionalidade, ao invés,

nasceu no Direito Penal e no Direito Administrativo e só

recentemente atingiu clara expressão nos quadros peculiares do

Direito Constitucional (MIRANDA, 1993, p. 216).

4.5 As lições de Celso Antônio Bandeira de Mello

A pequena grande obra deste autor, nesta matéria, é o

Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade (2004), a qual, desde que publicada,

vem sendo referência e citação obrigatória, tanto na doutrina quanto na

jurisprudência. Vejamos, em síntese, os seus ensinamentos.

Bandeira de Mello, na mesma linha dos autores que citaremos

quando da análise do princípio da igualdade nas Constituições brasileiras (Parte II),

explica que o termo “igualdade perante a lei”, previsto nas Constituições brasileiras,

é no sentido de que “a própria lei não pode ser editada em desconformidade com a

isonomia”, mas é norma voltada, tanto para o legislador, quanto para o aplicador da

lei.

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Considera que entre as pessoas há diferenças óbvias,

“perceptíveis a olhos vistos, as quais, todavia, não poderiam ser, em quaisquer

casos, erigidas, validamente, em critérios distintivos justificadores de tratamentos

jurídicos díspares” (p. 11). Apresenta vários exemplos de situações concretas em

que as diferenciações em tais hipóteses não são válidas e outras que o são,

indagando o motivo dessa “diferença” entre as conclusões. Ou seja: “quais os limites

que adversam este exercício normal, inerente à função legal de discriminar?”

Para solução deste “problema”, também apresenta critérios, que

são assim resumidos58:

a) identificação do fator adotado como critério de

discriminação (discrímen);

b) necessidade de correlação lógica entre o fator

discriminatório e o tratamento jurídico atribuído em face da desigualdade apontada;

c) necessidade ainda de afinidade entre a correlação acima

apontada e os valores protegidos pelo nosso ordenamento constitucional.

Feitas essas considerações, com base na doutrina, não

podemos terminar esta parte de nosso trabalho, sem verificarmos qual tem sido a

posição de nosso mais alto Tribunal em relação à aplicação do princípio da

igualdade.

58 Cfe. ARAUJO; SERRANO JÚNIOR, 2005, p. 120.

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5. A igualdade na visão do Supremo Tribunal Federa l

A mais alta Corte no Brasil vem adotando o que a doutrina preconiza

em relação ao princípio da igualdade59. Vejamos.

MANDADO DE INJUNÇÃO - PRETENDIDA MAJORAÇÃO DE

VENCIMENTOS DEVIDOS A SERVIDOR PÚBLICO

(INCRA/MIRAD) – ALTERAÇÃO DE LEI JÁ EXISTENTE –

PRINCÍPIO DA ISONOMIA – POSTULADO INSUSCETÍVEL DE

REGULAMENTAÇÃO NORMATIVA - INOCORRÊNCIA DE

SITUAÇÃO DE LACUNA TÉCNICA – A QUESTÃO DA EXCLUSÃO

DE BENEFÍCIO COM OFENSA AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA –

MANDADO DE INJUNÇÃO NÃO CONHECIDO.

[...] O princípio da isonomia, que se reveste de auto-aplicabilidade,

não é, enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-

jurídica, suscetível de regulamentação ou de complementação

normativa60.

59 Esta não é uma peculiaridade brasileira. Em Portugal, de acordo com Jorge Miranda (1992) e

Canotilho (2002), os instrumentos metódicos que propõem, acima enumerados, vêm sendo utilizados pelos tribunais, “de forma mais ou menos expressa”. Ainda para Jorge Miranda, os aspectos que se podem extrair das decisões constantes dos arestos mais significativos são três: “a constante atinência às normas constitucionais, a relativa contenção no julgamento dos critérios do legislador ordinário e a específica indagação de um ‘fundamento material suficiente’ em caso de diferença de tratamento” (MIRANDA, 1993, p. 225).

60 Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção nº 58 - DF. Requerentes: Airton de Oliveira e outros. Requerido: Presidente da República. Relator: Ministro Carlos Velloso. Brasília, DF, 19 de abril de 1991.

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DECISÃO LEI MUNICIPAL - ESTACIONAMENTO - OFICIAIS D E

JUSTIÇA - INICIATIVA - INDEPENDÊNCIA DOS PODERES -

ISONOMIA - ORÇAMENTO - AGRAVO DESPROVIDO

[...] No tocante ao principio isonômico, atente-se para a lição, por

sinal transcrita no acórdão atacado, de Celso Antonio Bandeira de

Mello, em O Conteúdo Jurídico do Principio da Igualdade (2. Edição,

RT, 1984, pagina 25): O principio isonômico revela a impossibilidade

de desequiparações fortuitas ou injustificadas. A lei municipal

atendeu as peculiaridades da função dos oficiais de justiça,

facilitando deslocamentos que, em última análise, objetivam o

cumprimento de atos judiciais [...] 61.

CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO

DE VEÍCULOS USADOS. VEDAÇÃO: PORTARIA Nº8/91-DECES.

VULNERAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA

LEGALIDADE. INEXISTÊNCIA. RECURSO CONHECIDO E

PROVIDO.

[...] Não há que se falar, por outro lado, em ofensa ao princípio da

isonomia, em face de haver restrição à importação de veículos

novos, e somente em relação aos veículos usados. É lícita a

restrição imposta, pois o que a Constituição proíbe são os privilégios

odiosos, como seria a que se assentasse na diferença de raça, cor,

sexo, fé religiosa, credo político, etc. São lícitas, no entanto, as

discriminações tributárias baseadas em diferenças de fato entre as

pessoas e os objetos taxados; diferenças na natureza dos objetos

taxados, como bens móveis ou imóveis, rurais ou urbanos, bens em

espécie ou moeda, mercadorias de todos os tipos, rendimentos de

61 Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento nº 207130/SP. Agravante: Município de São

Paulo. Agravada: Maria Aparecida Martins Carletto. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília, DF, 02 de março de 1998.

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capital ou trabalho, diferenças de profissão ou atividade do

Contribuinte, tais como tributação distinta de acordo com a profissão

(imposto sobre serviços, por exemplo), atividades industriais,

comerciais ou agrícolas, pessoas físicas e jurídicas, vendas a varejo

ou atacado, etc.; lícitas, também, as discriminações baseadas no

interesse fiscal do Estado, tal como a dispensa de tributos pelo custo

ou dificuldade da arrecadação; lícitas, ainda, as discriminações

fundadas no interesse social, como se dá quando a isenção ou

redução do ônus fiscal para pessoas ou atividades no interesse

comum, como isenção para beneficentes, culturais, recreativas, limite

de isenção de imposto de renda, etc. (Sampaio Dória, Direito

Constitucional Tributário e “Due Process of Law”, Rio de Janeiro,

Forense, 1986, p. 144-148). No caso em exame, a restrição à

importação de bens de consumo usados tem como destinatários os

importadores em geral, sejam pessoas jurídicas ou físicas. Não se

inibiu a importação de bens de consumo à pessoa física, permitindo-

a à pessoa jurídica. Nesse contexto, não se vislumbra ofensa ao

princípio da isonomia.

A igualdade perante a lei é um princípio que não pode ser entendido

em sentido individualista, que não leve em conta as diferenças entre

grupos, como preleciona José Afonso da Silva, em sua obra CURSO

DE DIREITO CONSTITUCIONAL POSITIVO, 6ª edição, Revista e

Ampliada, Editora Revista dos Tribunais, pág. 192.

Quando se diz que o legislador não pode distinguir, isso não significa

que a lei deva tratar todos abstratamente iguais, pois o tratamento

igual não se dirige a pessoas integralmente iguais entre si, mas

àqueles que são iguais sob os aspectos tomados em consideração

pela norma, o que implica acentuar que os “iguais” podem diferir

totalmente sob outros aspectos ignorados ou considerados como

irrelevantes para o legislador. Esse julga, assim, como “essenciais”

ou “relevantes”, certos aspectos ou características das pessoas, das

circunstâncias ou das situações nas quais essas pessoas se

encontram, e funda sobre esses aspectos ou elementos, as

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categorias estabelecidas pelas normas jurídicas; por conseqüência,

as pessoas que apresentam os aspectos “essenciais” previstos por

essas normas são consideradas encontrar-se nas “situações

idênticas, ainda que possam diferir por outros aspectos ignorados ou

julgados irrelevantes pelo legislador; vale dizer que as pessoas ou

situações são iguais ou desiguais de modo relativo, ou seja, sob

certos aspectos”. Como ressaltado por SEABRA FAGUNDES, os

“conceitos da igualdade e da desigualdade são relativos; impõe a

confrontação e o contraste entre duas ou várias situações, pelo que,

onde uma só existe, não é possível indagar de tratamento igual ou

discriminatório (RT 235/7)” 62.

CONCURSO PÚBLICO – TÍTULOS – PRINCÍPIO ISONÔMICO –

EXERCÍCIO DA ADVOCACIA – TOMADOR DOS SERVIÇOS –

IRRELEVÂNCIA – Vulnera o princípio isonômico valida r-se,

como título, a prestação dos serviços de advocacia a pessoa

jurídica de direito público e não fazê-lo no tocant e à iniciativa

privada.

[...] No ponto dou razão à recorrente.

Na verdade, a discriminação – contar como título o exercício de

cargo e/ou função, privativos de bacharel de Direito, em órgãos da

administração em órgãos da administração pública federal, estadual

e municipal e não considerar como título igual exercício na empresa

privada – não tem justificativa, ou não ocorre, no caso, “correlação

lógica entre o fator erigido em critério de discrímem e a discriminação

legal decidida em função dela”, na lição de Celso Antônio Bandeira

de Mello (“O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, Ed. R.T.,

1978, pág. 46).

62 Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 199619-6-SP. Recorrente: União Federal.

Recorrido: Aguinaldo Viriato de Medeiros. Relator: Maurício Corrêa. Brasília, DF, 07 de fevereiro de 1997.

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Por que contar como título o exercício de função privativa de

bacharel em Direito no serviço público e não fazê-lo na empresa

privada? O critério erigido como fator de discrímem é simplesmente

este: exercício no serviço público. Ora, o exercício de tais funções,

tanto no serviço público quanto na empresa privada exige apenas

que o servidor tenha conhecimentos jurídicos, tenha experiência no

campo de Direito. Se é assim, não há “correlação lógica entre o fator

erigido em critério de discrímem e a discriminação legal decidida em

função dele” (MELLO, lição citada).

A discriminação posta no edital, pois, tratou mal o princípio da

igualdade que a Constituição consagra (CF, art. 5º).

Do exposto, nesta parte, acompanho o Ministro Relator conheço do

recurso e dou-lhe provimento63.

CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE.

TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA

ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA:

APLICABILIDADE: AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO

TRABALHADOR BRASILEIRO. CF, 1967, ART. 153, § 1º; C F,

1988, ART. 5º, CAPUT.

I – AO RECORRENTE, POR NÃO SER FRANCÊS, NÃO

OBSTANTE TRABALHAR PARA A EMPRESA FRANCESA, NO

BRASIL, NÃO FOI APLICADO O ESTATUTO DO PESSOAL DA

EMPRESA, QUE CONCEDE VANTAGENS AOS EMPREGADOS,

CUJA APLICABILIDADE SERIA RESTRITA AO EMPREGADO DE

NACIONALIDADE FRANCESA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA 63 Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 221.966-5 – DF. Recorrente: Adélia

Augusto. Recorrido: União Federal e Ministério Público do Trabalho. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília, DF, 10 de setembro de 1999.

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81

IGUALDADE: CF., 1967, ART. 153, § 1º; CF., 1988, AR T. 5º ,

'CAPUT'.

II – A DISCRIMINAÇÃO QUE SE BASEIA EM ATRIBUTO,

QUALIDADE, NOTA INTRÍNSECA OU EXTRÍNSECA DO

INDIVÍDUO, COMO O SEXO, A RAÇA, A NACIONALIDADE, O

CREDO RELIGIOSO, ETC., É INCONSTITUCIONAL.

PRECEDENTE DO STF: AG 110.846 (AgRg) – PR, CÉLIO BO RJA,

RTJ 119/465.

III – FATORES QUE AUTORIZARIAM A DESIGUALIZAÇÃO NÃO

OCORRENTES NO CASO.

IV – R.E. CONHECIDO E PROVIDO.

[...] No RE, sustenta-se, justamente, ofensa ao citado princípio: é que

ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para uma

empresa francesa, a ele não foi aplicado o Estatuto Pessoal da

Empresa.

A questão é, pois, puramente jurídica: seria possível, tendo em vista

o princípio isonômico, que a um empregado da empresa francesa,

em território brasileiro, não fosse aplicado o Estatuto do Pessoal da

Empresa, só pelo motivo de o empregado não ser francês? Não há

que se examinar, portanto, “aspectos probatórios”, e o exame do

Estatuto está jungido à questão constitucional.

A Procuradoria-Geral da República, no parecer de fls. 241/245,

depois de deixar expresso, com acerto, que a única questão

constitucional ventilada no acórdão recorrido é a inscrita no art. 153,

§ 1º, da Constituição pretérita, opina no sentido de conhecimento e

provimento do recurso.

Destaco o parecer:

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[...]

5. Tudo posto, é de se lembrar que essa Excelsa Corte tem o

seguinte entendimento, a propósito do princípio constitucional da

ISONOMIA:

‘A discriminação proibida é a que se funda em atributo, qualidade,

nota intrínseca ou extrínseca do sujeito, enunciados na Constituição,

art. 153, § 1º’ (Ag. 110.846-1 AgRg-PR, Rel. Min. Célio Borja, in DJ

de 05.09.86, p. 15.844).

6. Ora, as instâncias trabalhistas não se arrimaram em qualquer

OUTRO fundamento – além do fato de NÃO ser o Recorrente

CIDADÃO FRANCÊS – para negar, ao empregado, a INTEGRAL

“APLICAÇÃO DOS Estatutos do Pessoal em Terra da Rda.”.

7. Sendo essas as circunstâncias da causa, afigura-se forçoso

concluir que a discriminação do Recorrente, frente a seus IGUAIS

companheiros de trabalho, como autorizada pelo V. aresto

combatido, está nitidamente fundada em ATRIBUTO, QUALIDADE,

NOTA INTRÍNSECA do Recorrente, qual seja sua NACIONALIDADE!

8. Trata-se, então, realmente, de DISCRIMINAÇÃO então

PROIBIDA, pelo art. 153, § 1º, da Emenda Constitucional nº 1, de

1969, como aliás, continua sendo vedada, na atualmente vigente

ordem constitucional, por força do que reza o art. 5º, caput, da Carta

de 1988.

9. O parecer é, por conseguinte, de que o Recurso Extraordinário

comporta conhecimento e provimento. [...] (fls. 244/245).

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O parecer é de ser acolhido na sua conclusão [..] 64.

CONCURSO PÚBLICO - LIVRE ACESSO DE HOMENS E

MULHERES - CRITÉRIO DE ADMISSÃO - SEXO.

A regra direciona no sentido da inconstitucionalidade da diferença de

critério de admissão, considerando o sexo -art. 5º, inciso I, e § 2º do

art. 39 da Carta Federal. A exceção corre à conta das hipóteses

aceitáveis, tendo em vista a ordem socioconstitucio nal [grifo

nosso] 65.

Das decisões do Supremo Tribunal, aqui exemplificadas, podem ser

extraídos os seguintes aspectos no tocante à aplicação do princípio da igualdade:

a) freqüente referência aos ensinamentos doutrinários e aos

dispositivos constitucionais sobre igualdade, que são tomados como sendo de

aplicabilidade imediata;

b) não admissão de diferenciações fundadas em atributo, qualidade ou

nota intrínseca do sujeito, quais sejam, nacionalidade, raça, cor, sexo, fé religiosa,

credo político, etc., admitindo-se exceções a esta regra, desde que tais exceções

sejam fundadas em “hipóteses aceitáveis” e compatíveis com o texto constitucional.

64 Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 161.243-6 – DF. Recorrente: Joseph Halfin.

Recorrida: Compagnie Nationale Air France. Relator: Ministro Carlos Velloso. 65 Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 120.305-6 - RJ, 2ª Turma. Relator: Ministro

Marco Aurélio.

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Outro aspecto a ser ressaltado, a nosso ver, é o de que a

jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ignora o conteúdo de convenções e

tratados internacionais, já ratificados pelo Brasil e que serão adiante analisados.

Ao deixar de lado tais documentos, essa jurisprudência torna-se

bastante tímida e vulnerável pois, ao mesmo tempo em que proíbe diferenciações

fundadas em nota intrínseca dos seres humanos, admite exceções “em hipóteses

aceitáveis”. Ora, essa abertura, tendo como único parâmetro a verificação da

razoabilidade ou não das mencionadas exceções, nos parece bastante indesejável e

não deveria ser afirmada de maneira tão simplista.

Bem, feita esta análise de parte da doutrina e jurisprudência, de forma

a termos um panorama sobre os estudos relacionados ao princípio da igualdade,

vejamos agora o que podemos tomar como conclusão, até o presente momento.

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6. Conclusão parcial: a dependência de um juízo de valor para a

aplicação do princípio da igualdade e a pré-compree nsão do

intérprete

Acreditamos ter exprimido até aqui, ainda que em rápidas linhas, o que

a doutrina e a jurisprudência vêm entendendo por “igualdade justa” e quais os

critérios para o alcance deste objetivo de importância inquestionável.

Essa importância, além de poder ser detectada de maneira intuitiva,

decorre do fato de que a igualdade, entre os temas jurídicos, faz parte do mais

relevante deles: os princípios. E entre os princípios, está entre os mais importantes,

se não for o mais importante.

Por outro lado, o termo, “igualdade justa”, mencionado logo acima,

deveria representar um pleonasmo, mas vimos também que não é simples fazer com

que a Justiça esteja sempre presente na aplicação do princípio da igualdade. Se não

fosse assim, os autores mais renomados no campo jurídico não teriam destinado

tantas páginas a um único tema.

De tudo o que vimos, concluímos que o alcance da Justiça, por meio

da aplicação do princípio da igualdade, é mesmo tarefa delicada, principalmente

porque, seja com base nos critérios propostos pela doutrina ou extraídos da

jurisprudência, acaba-se chegando à necessidade de realização de um juízo de

valor por parte do intérprete. A finalidade desse juízo de valor é decidir se as

situações em análise tratam-se de “hipóteses aceitáveis” de tratamentos

diferenciados, ou não66.

66 Vamos utilizar aqui o termo “intérprete” no seu sentido mais amplo possível (mais adiante

citaremos Rousseau que se refere a “jurisconsulto”), pois não estamos nos referindo apenas aos juízes, mas a qualquer pessoa que precise adotar uma posição quando diante dessa decisão.

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Este ponto não se encontra suficientemente solucionado pela doutrina

e jurisprudência, e, a nosso ver, é o cerne das dificuldades na aplicação do princípio

da igualdade. Ele é delicado, pois o referido juízo de valor, assim como na

interpretação das normas em geral, parte sempre de uma pré-compreensão67. Por

outro lado, não há, entre os critérios propostos pela doutrina e jurisprudência,

nenhum que minimize os riscos da grande margem de discricionariedade do

intérprete na elaboração desse juízo.

Ora, a pré-compreensão representa a carga subjetiva existente numa

análise, na elaboração de um juízo de valor, e é influenciada por fatores

relacionados a tempo68, lugar e cultura, ou seja, pela experiência, pelo uso que o

intérprete faz ou não daquele sentido. É o que se depreende dos ensinamentos de

Blackburn:

Ter uma palavra, uma imagem ou qualquer outro objeto em mente

parece ser uma coisa, mas compreendê-lo é bastante diferente. [...] a

compreensão deve ser concebida como a posse de uma técnica ou

habilidade (1997, p. 65, grifo nosso).

As conseqüências desta carga subjetiva do intérprete podem ser

bastante danosas, como foi detectado por Rousseau, em seu famoso Discurso sobre

a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:

67 Este raciocínio é extraído da seguinte advertência: “[...] a leitura de um texto normativo se inicia

pela pré-compreensão do seu sentido através do intérprete” (CANOTILHO, 1991, p. 220). Luís Roberto Barroso também aponta essa dificuldade em relação à aplicação do princípio da

razoabilidade: “sendo mais fácil de ser sentido do que conceituado, o principio se dilui em um conjunto de proposições que não o libertam de uma dimensão excessivamente subjetiva” (1996, p. 204, grifo nosso). Quanto à interpretação das normas, o mesmo autor, deixando claro que também não é desejável uma visão puramente neutra em todas as questões, pois isso, da mesma forma, pode levar a graves injustiças, assevera que: “E assim, tanto no momento de elaboração quanto no de interpretação da norma, há de se projetar a visão subjetiva, as crenças e os valores do intérprete” (idem, p. 255).

68 Mesmo Celso Antônio Bandeira de Mello (2004), que tanto ressalta em sua obra a importância de se averiguar a existência ou não de pertinência lógica entre a diferenciação e o elemento de dicrímen, admite que a correlação lógica “nem sempre é absoluta, 'pura', a dizer, isenta da penetração de ingredientes próprios das concepções da época, absorvidos na intelecção das coisas [...]. Por conseqüência, a mesma lei, ora surgirá como ofensiva da isonomia, ora como compatível com o princípio da igualdade” (p. 39/40).

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[...] de modo que, assim como foi preciso violentar a natureza para

estabelecer a escravidão, foi preciso mudá-la para perpetrar esse

direito, e os jurisconsultos que sentenciaram gravemente que o filho

de um escravo nasceria escravo decidiram, em outros termos, que

um homem não nasceria homem (2005, p. 230/231).

Repetimos: o risco de se chegar a soluções que não vão ao encontro

dos anseios de determinado grupo, que acabou por receber eventual tratamento

diferenciado, é inevitável. No exemplo de Rousseau, tratava-se de escravos. Os

jurisconsultos, que não eram escravos, obviamente, não tinham em sua pré-

compreensão a experiência daquela condição. Decidiam algo partindo da sua

experiência em sentido oposto, ou seja, na condição de homens livres. Grande, pois,

a possibilidade de se chegar a uma decisão injusta.

Este risco ainda existe nos tempos atuais, no caso das chamadas

minorias69. Freqüentemente, aqueles a quem cabe fazer o sempre citado juízo de

valor não têm, em sua pré-compreensão, a vivência na condição de pessoa do sexo

feminino, com deficiência, de descendência africana, ou com orientação

homossexual, entre outras situações. E não são raras as vezes em que, mesmo a

causa sendo levada ao “jurisconsulto”, aquele que foi desigualado recebe uma

decisão injusta, que não garante igualdade, perpetuando-se as exclusões e

restrições a direitos, em diversas áreas, que acabam por manter determinados

grupos em situação de vulnerabilidade.

Assim, pensamos que as considerações sobre a mencionada pré-

compreensão explicam a ocorrência destes “erros” na aplicação do princípio da

igualdade pois, conforme sentencia Lenio Luiz Streck, é “impossível ao intérprete

colocar-se em lugar do outro” (2003, p. 104), e prossegue:

69 “[...] podemos apontar grupos que refletem alguma parcela da vontade geral mas que, por algum

motivo, não se alinham ao grupo predominante [...]. O seu traço comum é o de não refletirem a vontade da maioria. São as chamadas minorias (ARAUJO, 1997, p. 198, grifo nosso).

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Para compreender, temos de ter uma pré-compreensão [...],

constituída de estrutura prévia do sentido – que se funda

essencialmente em uma posição prévia (Vorhabe), visão prévia

(Vorsicht) e concepção prévia (Vorgriff) – que já une todas as partes

(textos) do “sistema” [o autor credita estas aspas a GADAMER,

1991, I]. Desse modo, no campo da interpretação do direito é a

condição-de-ser-no-mundo que vai determinar o sentido do texto [...].

A pergunta pelo sentido do texto jurídico é uma pergunta pelo modo

como esse sentido (ser do ente) se dá, qual seja, pelo Dasein que

compreende esse sentido. A compreensão que o Dasein tem de si

mesmo e que nasce da compreensão do ser significa dizer que o

mensageiro já vem com a mensagem.

[...]

Por isso, as condições de possibilidades para que o intérprete possa

compreender um texto implicam uma pré-compreensão (seus pré-

juízos) acerca da totalidade (que a sua linguagem lhe possibilita) do

sistema jurídico-político-social (idem, p. 105/106)70.

Felizmente, contudo, o problema gerado pelos “pré-juízos” de

intérpretes que não compreendem o que é ser ou estar em minoria71, a nosso ver,

não é mais insolúvel, graças ao disposto em algumas convenções internacionais e

às Constituições que se descerram a elas.

70 Luís Roberto Barroso é muito didático quanto a este aspecto. Vejamos: “Idealmente, o intérprete,

o aplicador do Direito, o juiz, deve ser neutro. E é mesmo possível conceber que ele seja racionalmente educado para a compreensão, para a tolerância, para a capacidade de entender o diferente, seja o homossexual, o criminoso, o miserável ou mentalmente deficiente. Pode-se mesmo, um tanto utopicamente, cogitar de libertá-lo de seus preconceitos, de suas opções políticas pessoais e oferecer-lhe como referência um conceito idealizado e asséptico de justiça. Mas não será possível libertá-lo do próprio inconsciente, de seus registros mais primitivos. Não há como idealizar um intérprete sem memória e sem desejos” (1996, p. 257-258).

71 Mesmo que eles se esforcem para se colocar no lugar do “outro”, a total transposição é impossível como observou Streck.

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As convenções internacionais, ao definirem o que vem a ser

discriminação, entre outras contribuições, minimizaram a margem de

discricionariedade do intérprete, logrando êxito em oferecer um aporte mais seguro

para a aplicação do princípio da igualdade. Assim, nos fizeram crer que são aptas a

implementá-lo, fato que motivou o nosso trabalho.

Vejamos então, a partir daqui, como se encontra positivado o

importante princípio da igualdade em nossa Lei Maior, bem como nas convenções

internacionais.

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PARTE II – O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NAS CONSTITUIÇ ÕES

BRASILEIRAS E NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Como já adiantamos, nesta segunda parte de nosso trabalho, trataremos do

princípio da igualdade positivado. Para tanto, partiremos da Constituição brasileira

de 1988 porque esta, além de positivar o princípio da igualdade em seu texto,

deixou-o aberto aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos72,

matéria totalmente perpassada pelo princípio da igualdade, formando com tais

documentos internacionais um todo indissociável73.

A título de comparação, antes de enfocarmos a Constituição de 1988,

traremos à baila os dispositivos de nossas Constituições anteriores que sempre

afirmaram a “igualdade de todos perante a lei”, bem como estudaremos o significado

dessa expressão.

72 “[...] compreendeu-se, pouco a pouco, que a proteção dos direitos básicos da pessoa humana

não se esgota, como não poderia esgotar-se, na atuação do Estado, na pretensa e indemonstrável 'competência nacional exclusiva'“ (TRINDADE, 1991, p. 04).

73 Conforme Cançado Trindade: “Já não mais se justifica que o direito internacional e o direito constitucional continuem sendo abordados de forma estanque ou compartimentalizada, como o foram no passado. [...] Estas transformações recentes têm, a um tempo, gerado um novo constitucionalismo assim como uma abertura à internacionalização da proteção dos direitos humanos” (1996, p. 207).

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1. A igualdade nas Constituições brasileiras (1824 a 1967):

“igualdade perante a lei”

De uma forma ou de outra, a igualdade, principalmente a “perante a

lei”, bem como a proibição de distinções entre brasileiros, sempre esteve presente

em nossas Constituições.

A Constituição do Império, outorgada em abril de 1824, “em nome da

Santíssima Trindade”, previa no inciso XIII, do artigo 179, que a “Lei será igual para

todos, quer proteja, quer castigue, o recompensará em proporção dos merecimentos

de cada um”. O inciso XIV, do mesmo artigo, também estabelecia que “todo o

cidadão pode ser admitido aos Cargos Publicos Civis, Politicos, ou Militares, sem

outra differença, que não seja dos seus talentos, e virtudes”.

Previa ainda “a Instrucção primaria74, e gratuita a todos os Cidadãos”,

como uma das formas de se garantir a “inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos

dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a

propriedade”.

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de

fevereiro de 1891, foi votada e, em seu preâmbulo, já estava inserido o princípio da

igualdade ao ser afirmado que: “nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos

em Congresso Constituinte, para organizar um regime livre e democrático,

estabelecemos, decretamos e promulgamos a seguinte Constituição” (grifo nosso).

74 Na análise que fizemos dos textos constitucionais brasileiros, pinçamos, entre os direitos

humanos fundamentais, o direito à educação para verificar de que forma foi ou não ali contemplado o princípio da igualdade. Portanto, além de citarmos os artigos que tratam diretamente do direito à igualdade, vamos informar também qual foi o tratamento dado ao direito à educação, básico para o alcance da plena igualdade e da dignidade.

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O seu artigo 72, responsável pela “Declaração de Direitos”, assegurou

a “inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à

propriedade” e, em seu § 2º sentenciou pela primeira vez em nossas Constituições:

“Todos são iguais perante a lei”. Logo em seguida, no mesmo artigo, fez constar

ainda:

A República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros

de nobreza e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as

suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e

de conselho.

Não obstante a “igualdade” apregoada, o artigo 71 proclamava que “os

direitos de cidadão brasileiro só se suspendem ou perdem nos casos aqui

particularizados” e, entre esses casos constou “a incapacidade física ou moral”, ou

seja, pessoas com qualquer tipo de deficiência não eram titulares de direito algum.

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de

julho de 1934, também foi promulgada pelos “representantes do povo brasileiro”, os

quais mencionavam no preâmbulo a sua “confiança em Deus” e que estavam

“reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime

democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a Justiça e o bem-estar

social e econômico” (grifo nosso). Além de trazer, pela primeira vez, a “Justiça” em

seu preâmbulo, também afirmou, no seu art.113, item 1: “Todos são iguais perante a

lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça,

profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias

políticas”.

Inseriu dispositivo referente à vedação de “distinções entre brasileiros

natos”, dispositivo este que foi repetido em todas as Constituições seguintes, com

pequenas alterações de redação.

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É interessante notar que esta Constituição foi ainda a primeira a trazer

um capítulo inteiro (arts. 148 e seguintes) voltado para a Educação e a Cultura, o

qual foi também perpassado pelo princípio da igualdade. De maneira bastante

detalhada, a educação foi reconhecida como direito de todos (art. 149), e deveria ser

ministrada:

[...] pela família e pelos Poderes Públicos, cumprindo a estes

proporcioná-la a brasileiros e a estrangeiros domiciliados no País, de

modo que possibilite eficientes fatores da vida moral e econômica da

Nação, e desenvolva num espírito brasileiro a consciência da

solidariedade humana.

No entanto, previa também a “limitação da matrícula à capacidade

didática do estabelecimento e seleção por meio de provas de inteligência e

aproveitamento, ou por processos objetivos apropriados à finalidade do curso”. Esta

condição de mérito para a matrícula não era direcionada apenas ao ensino superior.

Portanto, apesar de garantir o direito de todos à educação e a obrigatoriedade do

ensino primário, podemos concluir que essas garantias não eram exatamente “de

todos”, o que, salvo melhor juízo, não se coaduna com o princípio da igualdade.

Já a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de

1937, ao contrário das duas que lhe antecederam, foi outorgada. Em seu preâmbulo,

não obstante longo, não houve qualquer referência à igualdade ou à Justiça. Ali o

Presidente da República explica que está “atendendo às legítimas aspirações do

povo brasileiro à paz política e social”; que a Nação está “profundamente perturbada

por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos

dissídios partidários”; que o Estado não dispunha de “meios normais de preservação

e de defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo” e por isso resolvia

“assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à sua independência, e

ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as condições necessárias

à sua segurança, ao seu bem-estar e à sua prosperidade”, decretando a

Constituição.

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Apesar dessa circunstância, tal Carta permaneceu afirmando em seu

art. 122, § 1º, que “todos são iguais perante a lei” e que é “vedado à União, aos

Estados e aos Municípios criar distinções entre brasileiros natos” (art. 32).

Na Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de

1946, votada, em breve preâmbulo era informado que “nós, os representantes do

povo brasileiro, reunidos, sob a proteção de Deus, em Assembléia Constituinte para

organizar um regime democrático” decretamos e promulgamos uma nova

Constituição. A afirmação de que “todos são iguais perante a lei” veio inserida no art.

141, § 1º.

De maneira muito parecida com a Constituição de 1934, no Capítulo

relativo à Educação (arts. 166 e seguintes), ficou reconhecido que: “a educação é

direito de todos”.

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro de

1967, votada pelo Congresso Nacional, foi por este decretada e promulgada,

“invocando a proteção de Deus”, sem nenhum considerando em seu preâmbulo.

Inovou ao trazer, além da afirmação de que “todos são iguais perante a lei” (art. 150,

§ 1º), uma enumeração das diferenciações vedadas, com ênfase para o racismo:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção, de sexo, raça, trabalho, credo

religioso e convicções políticas. O preconceito de raça será punido pela lei”.

Vejamos agora o que significa a sempre citada expressão e qual o

motivo de sua constante inserção, fazendo dela um traço característico de nossas

Constituições75, inclusive da Constituição brasileira de 1988, que será analisada

mais adiante.

De forma bastante didática, Jorge Miranda explica que:

75 E também de outros países (BASTOS, 2002, p. 318-319).

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Igualdade perante a lei não é igualdade exterior à lei. É, antes de

tudo, igualdade na lei. Tem por destinatários, desde logo, os próprios

órgãos de criação do Direito.

[...]

[...]. Toda a lei ordinária deve obedecer ao princípio, tanto nas suas

precipitações imediatas de igualização e diferenciação como no seu

conteúdo geral (MIRANDA, 1993, p. 219).

Celso Ribeiro Bastos (2002) explica que a repetição dessa afirmação é

feita tendo em vista uma necessidade constante de reafirmação do princípio da

igualdade. No texto abaixo reproduzido, ele a considera como indicadora de

“igualdade formal”, diferenciando-a da “igualdade material”. Vejamos:

[...] na área das democracias ocidentais, o princípio da igualdade

material não é de todo desconhecido. [...] muitos exemplos poderiam

ser citados [em relação à igualdade material], como o direito ao

acesso à instrução, à saúde, à alimentação etc.

Entretanto, o princípio da igualdade, hoje encontrável em

praticamente todas as Constituições e que atormenta a mente dos

juristas é o da igualdade chamada formal.

[...]

Historicamente, sabemos que a proclamação fática deste princípio da

igualdade de todos perante a lei data da época da Revolução

Francesa.

[...]

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Contudo, a necessidade da reafirmação constante do princípio da

igualdade manteve-se intacta e, quiçá, mais aguda ainda.

[...]

[A igualdade formal] consiste no direito de todo cidadão não ser

desigualado pela lei senão em consonância com os critérios

albergados ou ao menos não vedados pelo ordenamento

constitucional (BASTOS, idem, p. 318-319).

Já o Supremo Tribunal Federal oferece uma visão mais dicotomizada

nesse sentido:

Esse princípio [o da igualdade], cuja observância vincula,

incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público, deve

ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e

de extinguir privilégios (RDA 55/114), sob duplo aspecto: (a) o da

igualdade na Lei e (b) o da igualdade perante a Lei. A igualdade na

Lei, que opera numa fase de generalidade puramente abstrata,

constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua

formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação,

responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante

a Lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição

destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma

legal, não poderão subordiná–la a critérios que ensejam tratamento

seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse postulado

pelo legislador imporá ao estatal por ele elaborado e produzido a eiva

de inconstitucionalidade [...] 76.

76 Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção nº 58 - DF. Requerentes: Airton de Oliveira e

outros. Requerido: Presidente da República. Relator: Ministro Carlos Velloso. Brasília, DF, 19 de abril de 1991.

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Mas a lição de Canotilho (2002, p. 426) corrobora a doutrina que já

citamos, parecendo-nos que, na definição de “igualdade perante a lei”, a doutrina

teria caminhado um pouco mais que a jurisprudência:

[...] ser igual perante a lei não significa apenas aplicação igual da lei.

A lei, ela própria, deve tratar por igual todos os cidadãos. O princípio

da igualdade dirige-se ao próprio legislador, vinculando-o à criação

de um direito igual para todos os cidadãos.

De qualquer forma, seja qual for a amplitude que se queira dar à

expressão “igualdade perante a lei”, podemos dizer que as Constituições brasileiras

que vimos até aqui, praticamente limitaram-se a ela, ou seja, à igualdade formal. E

ainda, não obstante, em sua maioria, preverem a competência para assinatura de

tratados e convenções internacionais, nenhuma foi expressa ao acolher em seu bojo

as disposições constantes de tratados e convenções internacionais.

Logo, havia um campo bem pequeno no Direito Constitucional a refletir

a positivação do princípio da igualdade, mas isto mudou bastante após o grande

marco que foi a Constituição brasileira de 1988. Passemos a ela.

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2. A igualdade na Constituição brasileira de 1988

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de

1988, a nosso ver, merece mesmo o título de “cidadã”. Ela traz inovações muito

importantes em vários aspectos, mas especialmente no tocante à igualdade.

Nunca, nas Constituições brasileiras, esse princípio foi tão afirmado e

reafirmado, a começar de seu preâmbulo, onde “a liberdade, a segurança, o bem-

estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça” (grifo nosso), foram citados “como

valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada

na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional”.

O ponto principal em que ocorreu a positivação do princípio da

igualdade foi entre os princípios fundamentais77. A Constituição brasileira de 1988

reservou um tópico específico para eles: o Título I.

Em tal Título foram eleitos, como fundamentos da República, a

cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, incisos II e III), e, como um dos

seus objetivos fundamentais, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de

origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º,

inciso IV).

No capítulo que trata dos direitos e deveres individuais, a famosa frase

de que “todos são iguais perante a lei” é a sua primeira afirmação. Não como

parágrafo de artigo e de maneira isolada, mas sim no “caput” do seu principal artigo,

o qual contempla ainda os estrangeiros residentes no país e os direitos

77 V. Item 1.6.5, Parte I, deste trabalho.

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99 fundamentais, entre eles, mais uma vez, a igualdade, também repetida no primeiro

de seus parágrafos. Vejamos:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer

natureza, garantindo-se aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança

e à propriedade, nos seguintes termos:

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos

termos desta Constituição.

A igualdade continua percorrendo a Constituição de 1988, em vários de

seus dispositivos. No tocante à educação, conforme temos destacado neste

trabalho78, afirma, nos artigos 205 e seguintes, que esse direito é de todos. Com

base em tais dispositivos, diferentemente das Leis Maiores anteriores79, é possível

concluir que esse “todos” se refere a todos os seres humanos.

Outra inovação foi incluir, entre os brasileiros para os quais “a lei não

poderá estabelecer distinção” (art. 12, § 2º), os brasileiros naturalizados, “salvo nos

casos previstos nesta Constituição”.

Para encerrar este tópico, trazemos a lição de Celso Bastos, na qual

compara a redação atual do dispositivo constitucional que trata do princípio da

isonomia com o da Constituição anterior, concluindo que:

Desde logo, a leitura da atual redação do artigo sob comentário, em

confronto com a redação do direito imediatamente anterior, aponta

para o sintetismo da sua redação.

78 V. nota 74. 79 Na Constituição de 1967, a educação voltada para pessoas com deficiência, por exemplo, não

era prevista no capítulo relativo à educação, mas entre os dispositivos relacionados à ordem econômica e social, assim mesmo, somente após a Emenda nº 12/78.

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O artigo ganhou em brevidade. E com isto ganhou também em

qualidade técnica.

De fato, a referência que se fazia no direito anterior aos critérios

expressamente vedados tinha uma função praticamente nula. Visto

que nem a doutrina nem a jurisprudência jamais consideraram

aqueles discrímenes como taxativos.

[...]

A expressão atual “sem distinção de qualquer natureza” é

meramente reforçativa da parte inicial do artigo. [...].

O atual artigo isonômico teve trasladada a sua topo grafia.

Deixou de ser um direito individual tratado tecnica mente como

os demais. Passou a encabeçar a lista destes direit os, que foram

transformados em parágrafos do artigo igualizador ( BASTOS,

2002, p. 322-323).

Mas além das sobejas disposições constitucionais, expressas ou não,

garatindo o direito à igualdade, a Constituição brasileira de 1988, também pela

primeira vez em nosso ordenamento jurídico constitucional80, dispôs que os direitos

e garantias ali expressos não excluem outros decorrentes de tratados internacionais

dos quais o Brasil for parte.

Portanto, não é possível considerar como feita a análise do princípio da

igualdade positivado no âmbito constitucional, sem se adentrar aos documentos

internacionais que a ele fazem referência, pelo menos àqueles mais relevantes e

dos quais o Brasil é signatário. No caso do nosso trabalho, não havia risco de isso

80 Cfe. Piovesan (2003, p. 44).

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101 ocorrer, pois o nosso objetivo é justamente o de chegar ao conteúdo de tais

documentos.

Antes, ainda, vamos verificar como se dá essa abertura constitucional

aos tratados e convenções internacionais.

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3. Abertura constitucional aos tratados e convenç ões internacionais

sobre direitos e garantias fundamentais

O § 2º, do artigo 5º, da Constituição brasileira de 1988, dispõe que:

Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem

outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou

dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil

seja parte.

Tal norma, que não traz regra nova no Direito Constitucional81, admite

que “os tratados internacionais de que o Brasil seja parte passam a ser fonte de

direitos individuais e coletivos” (ARAUJO; SERRANO JÚNIOR, 2005, p. 202).

O referido dispositivo, agora especificado no § 3º, do mesmo artigo,

implica abertura constitucional para a incorporação do Direito Internacional sobre

direitos e garantias fundamentais, indicando que o rol do artigo 5º é apenas

exemplificativo (idem, ibidem, p. 203)82.

81 Disposições semelhantes e até aprimoradas podem ser encontradas na Constituição Portuguesa

de 1976, bem como nas Constituições do Peru (1978), Guatemala (1985), Nicarágua (1987), Chile (reforma constitucional de 1989) e Colômbia (1991), conforme Cançado Trindade (1996, p. 207-209).

82 Esta é a mesma conclusão de André de Carvalho Ramos: ”[...] verifica-se a existência de uma cláusula aberta ou mesmo um princípio de não tipicidade dos direitos fundamentais. [...] De fato a própria Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 5º, § 2º, indica que fundamentalidade formal (fruto da positivação) aceita a fundamentalidade material e já faz remissão a outros direitos fundamentais não constitucionalizados, sendo certo que o regime jurídico dos direitos humanos previsto na Constituição será aplicável a esses direitos também” (2001, p. 33). Rothemburg (1999b, p. 59), por sua vez, sentencia: “[...] o catálogo previsto de direitos fundamentais nunca é exaustivo (inexauribilidade ou não tipicidade dos direitos fundamentais), a ele podendo ser sempre acrescidos novos direitos fundamentais”.

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Visto que nossa Constituição, seguindo uma tendência mundial das

constituições contemporâneas83, está aberta à incorporação das normas

internacionais, após tecermos considerações sobre questões relacionadas à

nomenclatura aplicável, forma de incorporação dos tratados e convenções ao Direito

pátrio, abordaremos nos próximos subitens a polêmica referente ao status com o

qual essas normas internacionais são incorporadas.

3.1 Definição de tratados e convenções internacion ais

Para designar os documentos internacionais, nos quais dois ou

mais países comprometem-se mutuamente a alcançar certos objetivos, são

utilizadas as mais diversas nomenclaturas, entre elas, as mais conhecidas são

tratados e convenções.

Os tratados são gêneros, do qual as convenções e os tratados

internacionais (em sentido estrito) são espécies84.

André de Carvalho Ramos (2001, 2005), seguindo essa linha,

utiliza em suas obras a palavra “tratado” para se referir a cartas, convênios,

declarações, pactos, convenções e outros. A mesma técnica é utilizada por Flávia

Piovesan (2003) e Fábio Konder Comparato (2005). Também o legislador

constituinte de 1988, no artigo 5º, § 2º, referiu-se genericamente a “tratados

internacionais” para dispor que os princípios ali reconhecidos estão abrangidos nos

direitos e garantias expressos na Constituição brasileira de 1988.

83 Cfe. Luís Roberto Barroso: “A Constituição da maior parte dos países europeus contém regras

sobre as relações entre o direito interno e o direito internacional, normalmente no sentido de considerar este último como parte integrante do primeiro” (1996, p. 16).

84 Cfe. Alexandre de Moraes (2005, p.302).

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Entretanto, a Emenda Constitucional de nº 45, de 08 de

dezembro de 2004, fez constar do § 3º que inseriu no mesmo artigo 5º, acima citado,

texto no qual se refere a “tratados e convenções internacionais” (grifo nosso). Tal

redação pode gerar o entendimento de que apenas os tratados em sentido estrito e

as convenções, ambos referentes a direitos humanos, estariam contempladas na

possibilidade de equivalerem a emendas constitucionais, excluindo pactos, cartas,

protocolos, entre outros, ainda que referentes ao mesmo tema. Essa visão, todavia,

nos parece bastante restritiva, sendo assim, pensamos que ainda se faz necessário

investigarmos um pouco mais sobre tais nomenclaturas.

É De Plácido e Silva (1989) quem esclarece que convenção

também é um termo genérico, e que tem o sentido de ajuste, pacto, tratado,

contrato, convênio. Tratado, da mesma forma, tem o sentido de acordo, convênio,

declaração, ajuste, pelo qual duas, ou mais nações, “se obrigam a cumprir e

respeitar as cláusulas e condições que nele se inscrevem” (idem, ibidem, vol. IV, p.

414). Entretanto:

[...] na técnica do Direito Internacional, a convenção possui sentido

mais estrito que tratado. A convenção indica o ajuste ou acordo

sobre assuntos de interesse entre as nações, de caráter não político.

[...]

Os tratados, além de cogitarem de afirmações de princípios de

ordem mais elevados, referem-se mais precipuamente aos assuntos

de ordem política (idem, ibidem, vol. I, p. 558/559).

E ainda:

A convenção é o acordo sem objetivo político. E declaração é o

acordo que vem afirmar um princípio.

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Desse modo, quando o tratado exprime o ato jurídico de natureza

internacional, em que dois ou mais Estados concordam sobre a

criação, modificação, ou extinção de algum direito, é tido em sentido

mais amplo, para compreender qualquer espécie de acordo,

convenção ou declaração. Quando simplesmente exprime o acordo

de maior importância por seu objeto [político], é tomado em sentido

mais estrito.

Portanto, o termo convenção, apesar de também ser dotado de

caráter genérico, nem sempre é tido como sinônimo de tratado, como na hipótese

em que este é voltado para questões políticas (tratados em sentido estrito). Neste

caso, os tratados não são objeto principal de estudo em matéria de direitos

humanos. Logo, não haveria sentido na utilização do termo tratado, no texto da

Emenda Constitucional, em seu sentido estrito.

Podemos então concluir que, quando a Emenda Constitucional

de nº 45, de 2004, referiu-se a “tratados e convenções internacionais”, o objetivo foi

utilizar ambos os termos de maneira bastante genérica, de forma a alcançar,

efetivamente, todo e qualquer documento internacional que se refira a direitos

humanos.

No presente trabalho, utilizaremos indistintamente a designação

de tratados e convenções internacionais, também de maneira genérica. Entretanto,

no título, nos ativemos ao termo convenções internacionais, mas apenas porque

assim foram intitulados os documentos que trouxeram as definições de

discriminação que analisaremos mais adiante e que, a nosso ver, mais contribuíram

para a implementação do princípio da igualdade.

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3.2 Requisitos para sua incorporação ao ordenament o jurídico

brasileiro

Há autores para os quais a incorporação dos tratados e

convenções é automática, como por exemplo Flávia Piovesan85 e Luiz Ximenes

Rocha (MORAES, 2005, p. 307). Todavia, mesmo para estes, não se questiona que

algumas formalidades mínimas, como o referendo e a ratificação, são necessárias,

não bastando a mera assinatura do documento internacional pelo Presidente da

República: “a assinatura do tratado, por si só, traduz o aceite precário e provisório,

não irradiando efeitos jurídicos vinculantes” (PIOVESAN, 2003, p. 78) . Sendo assim,

elencaremos requisitos usualmente apontados pela doutrina e jurisprudência e que,

na prática, vêm sendo utilizados para a incorporação dos tratados e convenções.

Dividiremos tais requisitos em gerais e específicos. Os primeiros

referem-se aos requisitos necessários para a incorporação de quaisquer tratados e

convenções. Os segundos referem-se a exigências previstas no corpo do próprio

documento internacional, e que podem variar bastante.

3.2.1 Requisitos gerais

A celebração de tratados, convenções e atos

internacionais é de competência privativa do Presidente da República, nos termos do

art. 84, inciso VIII. Ocorre que tal competência, de acordo com o mesmo dispositivo,

fica sujeita a referendo pelo Congresso Nacional.

85 Flávia Piovesan, em posição contrária à maioria da doutrina e jurisprudência, assevera que o §

2º, do art. 5º, da Constituição, colocou os tratados internacionais relativos a direitos humanos em um patamar diferenciado, sendo assim, eles “irradiam efeitos concomitantemente na ordem jurídica internacional e nacional, a partir do ato da ratificação. Não é necessária a produção de um ato normativo que reproduza no ordenamento jurídico nacional o conteúdo do tratado, pois sua incorporação é automática, nos termos do art. 5º, § 1º, que consagra o princípio da aplicabilidade imediata de direitos e garantias fundamentais” (2003, p. 48).

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Sendo assim, assinado o tratado no plano internacional,

faz-se necessário que ele seja submetido a votação pelo Congresso Nacional. Este,

por sua vez, possui competência exclusiva para resolver definitivamente sobre

tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos

gravosos ao patrimônio nacional (art. 49, inc. I, CF).

O instrumento pelo qual o Congresso aprova o tratado é o

decreto legislativo. Feito isto, há o ato de ratificação dele pelo Presidente da

República:

A ratificação significa a subseqüente confirmação formal (após a

assinatura) por um Estado, de que está obrigado a um tratado.

Significa, pois, o aceite definitivo no plano internacional. A ratificação

é ato jurídico que irradia necessariamente efeitos no plano

internacional (PIOVESAN, 2003, p. 78/79).

O instrumento de ratificação deve ser depositado junto ao

órgão que tiver assumido a custódia dos instrumentos de ratificação.

Conforme dissemos, há autores para os quais o decreto

legislativo e a ratificação bastam para a entrada do tratado no ordenamento jurídico

brasileiro, mas esta não é a posição predominante, que exige também um decreto

do Executivo, com a respectiva promulgação, para que o tratado possa ter valor em

âmbito interno.

Gilmar Mendes Ferreira explica que essa exigência se

deve ao fato de que o decreto legislativo não é instrumento hábil a veicular uma

“ordem de execução” no Território Nacional, uma vez que isto só ocorre por meio de

decreto do Chefe do Executivo, que também é o único que pode expedir o ato de

ratificação (MORAES, 2005, p. 303). Logo, somente após a promulgação por decreto

do Executivo, devidamente publicado, é que os tratados e convenções podem ser

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108 aplicados de forma geral e obrigatória. Esta é também a posição do Supremo

Tribunal Federal86.

Entretanto, exceção à exigência de promulgação deve ser

feita quanto aos tratados e convenções relativos a direitos humanos e aprovados,

em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos

dos respectivos membros, nos termos do § 3º, do art. 5º, acrescentado pela EC

45/05. Neste caso, tais documentos serão equivalentes a emendas constitucionais,

que dispensam promulgação (MORAES, 2005, p. 302/303).

Em resumo, são requisitos gerais para a incorporação dos

tratados e convenções internacionais ao ordenamento jurídico brasileiro:

– assinatura, no âmbito internacional, pelo representante do Executivo;

– aprovação pelo Congresso Nacional, por meio de decreto legislativo;

– ratificação pelo Executivo e depósito do ato respectivo junto ao órgão indicado no

tratado;

– promulgação, por decreto do Executivo, exceto quando a ratificação tiver ocorrido

com quorum de emenda constitucional, tendo em vista tratar-se de matéria

relativa a direitos humanos.

3.2.2 Requisitos específicos

São os constantes dos textos dos tratados e convenções

e que variam de instrumento para instrumento.

86 Cfe. Mirtô Fraga apud Alexandre Moraes (2005, p. 303).

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Por exemplo, o parágrafo 3 87, do Artigo VIII, da

Convenção da Guatemala, promulgada pelo Decreto 3.956/2001, dispõe que “esta

Convenção entrará em vigor para os Estados ratificantes no trigésimo dia a partir da

data em que tenha sido depositado o sexto instrumento de ratificação de um Estado

membro da Organização dos Estados Americanos”. Tal fato ocorreu em 14 de

setembro de 2001, mas se não houvesse o número mínimo de ratificações ali

previsto, a convenção não entraria em vigor para os países signatários.

Outros exemplos:

A presente Convenção entrará em vigor no trigésimo dia após a data

em que tenha sido depositado o vigésimo instrumento de ratificação

ou de adesão junto ao Secretário Geral das Nações Unidas (art. 49,

parágrafo I, da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou

Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, da ONU).

Esta Convenção entrará em vigor logo que onze Estados houverem

depositado os seus respectivos instrumentos de ratificação ou de

adesão (art. 74, parágrafo 2, do Pacto de San José da Costa Rica).

A presente Convenção entrará em vigor no trigésimo dia a partir da

data em que tenha sido depositado o segundo instrumento de

ratificação (art. 21, da Convenção de Belém do Pará).

Como se percebe, estes requisitos são bastante variados,

não seguem um critério prévio e, portanto, devem ser verificados no corpo de cada

instrumento.

87 Nesta Parte II, de nosso trabalho, utilizamos formas de referência a parágrafos e artigos seguindo

a mesma técnica utilizada nos tratados e convenções, que é, no entanto, bastante variável. Sendo assim, quando estivermos nos referindo a algum dispositivo específico desses documentos, optamos por nos valer da mesma forma ali constante.

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110

3.3 Nível hierárquico no ordenamento jurídico brasi leiro dos

tratados e convenções internacionais já incorporado s

Esta é a questão que tem gerado maiores debates no tocante à

incorporação dos tratados e convenções internacionais.

Flávia Piovesan sempre foi categórica no seguinte sentido:

No que diz respeito à hierarquia dos tratados, [...] percebe-se que a

Carta Constitucional acolhe um sistema misto, de modo a conjugar

regimes jurídicos diferenciados – um atinente aos tratados de direitos

humanos e outro aos tratados tradicionais.

Por força do art. 5º, § 2º, a Carta de 1988 atribui aos direitos

enunciados em tratados internacionais hierarquia de norma

constitucional, incluindo-os no elenco dos direitos

constitucionalmente garantidos, que apresentam aplicabilidade

imediata. Os demais tratados internacionais têm força hierárquica

infraconstitucional, nos termos do art. 102, III, “b”, do texto (que

admite o cabimento de recurso extraordinário de decisão que

declarar a inconstitucionalidade de tratado), e se submetem à

sistemática de incorporação legislativa (PIOVESAN, 2003, p. 83)88.

Em posição contrária, no sentido de que os tratados e

convenções internacionais são incorporados na mesma hierarquia das normas

88 Em sua companhia, podemos citar Cançado Trindade, o qual explica que essa posição em nada

afeta a soberania do Estado brasileiro: “Tem-se, freqüentemente, invocado a noção de soberania estatal como óbice à operação dos mecanismos de proteção internacional dos direitos humanos. Aquela noção tem sido invocada de forma mecânica e impensada, sem precisar-lhe o conteúdo” (1991, p. 522-523).

De suas palavras e citações concluímos que a verdadeira noção de soberania, no plano internacional, diz respeito a um sentido de independência perante os demais Estados, e não de supremacia. Sendo assim, “uma vez contraídas obrigações por meio de um tratado, não poderá o Estado Parte alegar dificuldades de ordem interna ou constitucional para tentar justificar o não-cumprimento de tais obrigações” (idem, ibidem).

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111 ordinárias, temos uma maioria expressiva, e ainda a jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho também é enfático:

Embora haja quem pretenda ser a norma do tratado superior,

sempre, à lei interna de tal sorte que prevaleceria mesmo quando

esta fosse a ela posterior, conquanto haja quem pretenda, até, ser a

norma do tratado superior à própria norma constitucional, nenhuma

destas duas teses encontra fundamento no direito brasileiro.

Neste, três normas regem a matéria: primeira, jamais norma de

tratado prevalece sobre a Constituição; segunda, a norma de tratado,

desde que devidamente incorporada ao direito pátrio, prevalece

sobre lei interna anterior; terceira, tendo, porém, o mesmo nível na

hierarquia das leis que a norma interna, não prevalece sobre lei

posterior (que pode revogá-la, derrogá-la, etc.). Esta é a lição de

José Francisco Rezek, o qual não deixa de advertir que, no último

caso, o Estado brasileiro continua, no plano do direito internacional,

preso à obrigação que contraiu – e pela lei interna nova descumpre –

até que pelo caminho adequado se desvincule da obrigação

internacional contraída.

Esta é presentemente a jurisprudência do STF, sendo caso padrão o

RE n. 80.004-SE, relatado pelo Min. Xavier de Albuquerque, em

1977. Este acórdão – insista-se – subscreve as três teses

assinaladas.

[...]

[Os tratados] Têm apenas força de legislação ordinária (2005, p.

101/102).

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112

Nesse último sentido, encontramos os julgamentos proferidos

em sede da ADIN 1.480-3, que teve como relator o Ministro Celso de Mello, e em

sede do HC nº 73.044/SP, que teve como relator o Ministro Maurício Correa. Na

doutrina, entre outros, há o posicionamento de Alexandre de Moraes (2005, p. 303)

e de Luiz Alberto David Araujo, o qual, em tópico de sua autoria exclusiva, aponta

problemas práticos em se adotar postura diversa:

Se ingressar na qualidade de norma constitucional, tal direito deverá

ser petrificado, por força do art. 60, § 4º, da Lei Maior. E se outros

países signatários do tratado o denunciarem? A norma ingressa no

sistema e dele é retirada? (ARAUJO; SERRANO JUNIOR, 2005, p.

204).

O mesmo autor, em nota de rodapé, esclarece que:

A posição, em princípio, pode parecer restritiva. No entanto, o

entendimento contrário tem trazido grande dificuldade para a

aplicação dos tratados, especialmente diante do temor de se estar

alterando a Constituição Federal por decreto legislativo. Pensamos

que ajustar os tratados para o plano ordinário, aliás, de onde nunca

saíram, colaborará para uma interpretação mais efetiva do

instrumento legislativo, fazendo com que o aplicado do direito

empregue mais efetivamente o tratado, sem o temor de alteração do

Texto Maior por via ordinária (idem, ibidem).

Com o advento da Emenda Constitucional de nº 45, de 2004,

parece ter havido um ponto final nessa discussão, pois ficou expressa a

possibilidade de se conferir status de emenda constitucional para tratados e

convenções internacionais que versem sobre direitos humanos, mas desde que

aprovados da mesma forma que as emendas constitucionais. Assim, é forçoso

reconhecer que a referida Emenda representou um divisor de águas nesta matéria

mas, a nosso ver, não muito benéfico.

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113

Nossa preocupação reside no fato de que, após a Emenda nº

45, nos parece, salvo melhor entendimento, que fica totalmente a critério do

Congresso Nacional conferir ou não a força de norma constitucional a tratado ou

convenção sobre direitos humanos que estiverem votando. Se o Congresso, em tal

momento, optar pela votação por maioria simples, é inequívoco que a referida norma

terá a condição de lei ordinária. Para os estudiosos mais afetos à área de direitos

humanos, que sempre defenderam o status de norma constitucional para tais

documentos, perde-se até mesmo a possibilidade de controvérsia.

Todavia, ainda que isto ocorra, devemos sempre considerar que

não se trata de qual lei, conforme veremos.

3.4 Conflito entre o conteúdo do tratado incorpora do e o

disposto em leis ordinárias ou complementares, bem como

na Constituição brasileira

A solução para os conflitos porventura existentes entre o

conteúdo de tratados e convenções ratificados e o disposto na legislação pátria

depende da posição adotada no tocante à hierarquia que os primeiros ocupam no

ordenamento jurídico, tema abordado no tópico anterior89.

89 Tema que sempre vem à baila quando se fala em conflito entre normas internas e a ordem

internacional é o relativo às duas grandes correntes doutrinárias que disputam o melhor equacionamento da questão: o dualismo e o monismo. Como explica Luís Roberto Barroso (1996, p. 16), para os dualistas, “inexiste conflito possível entre a ordem internacional e a ordem interna simplesmente porque não há qualquer interseção entre ambas. São esferas distintas, que não se tocam. Nesta ordem de idéias, um ato internacional qualquer, como um tratado normativo, somente operará efeitos no âmbito interno de um Estado se uma lei vier incorporá-lo ao ordenamento jurídico positivo. [...] O monismo jurídico afirma, com melhor razão, que o direito constitui uma unidade, um sistema, e que tanto o direito internacional quanto o direito interno integram esse sistema”. Entretanto, não nos deteremos na análise dessas correntes pois já afirmamos, logo de início, com base em nossa Constituição (art. 5º, § 2º), que no Direito brasileiro existe uma abertura constitucional a normas internacionais, estando, pois, afastado o pensamento dualista nessa matéria. Portanto, possível o conflito, mesmo que o monismo aqui presente seja chamado de “moderado” (BARROSO, idem, p. 19). Para a solução do conflito, consideramos então que basta (como se fosse simples) identificarmos o status com que ocorre a

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Tendo em vista a posição jurisprudencial, a maioria doutrinária e

o disposto na Emenda 45, de 2004, partiremos da premissa de que apenas os

tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos e aprovados por

maioria de três quintos é que possuem status de emenda constitucional. Todos os

demais têm status de leis ordinárias.

Os tratados e convenções aprovados com quorum de emenda,

por sua vez, não oferecem maiores problemas no tocante a eventual conflito, pois

irão prevalecer sobre o conteúdo de leis ordinárias e complementares, anteriores ou

posteriores, em razão do critério hierárquico. Sendo assim, nos ocuparemos mais

aqui dos tratados e convenções aprovados por maioria simples e que, de acordo

com os entendimentos já mencionados e a Emenda 45/04, possuem status de leis

ordinárias.

Se tais documentos internacionais estão no mesmo nível

hierárquico de leis ordinárias e complementares, em caso de eventual conflito,

aplica-se o critério da hierarquia, no tocante às normas constitucionais, e o critério

cronológico ou o princípio da especialidade, em relação às demais normas. Esta é a

solução apontada pela jurisprudência:

HABEAS CORPUS. EXTRADIÇÃO. CRIME DE NATUREZA

POLÍTICA. TRATADO DE EXTRADIÇÃO (PREVALÊNCIA).

DIREITO INTERNO ESTRANGEIRO. DECRETO-LEI Nº 941/69.

PRISÃO DO EXTRADITANDO. EXCESSO DE PRAZO

(INOCORRÊNCIA).

- A argüição de se tratar de crime político é tema que só

excepcionalmente se torna possível examinar nesta via sumária.

integração da norma internacional à ordem interna.

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- A existência de tratado, regulando a extradição, quando em conflito

com a lei, sobre ela prevalece porque contém normas específicas90.

HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO FISCAL. PRISÃO CIVIL. PACTO

DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA. INAPLICABILIDADE.

DEPOSITÁRIO INFIEL INTIMAÇÃO. NECESSIDADE.

1. A vedação à prisão civil encartada no Pacto Internacional de San

José da Costa Rica não se aplica às hipóteses de descumprimento

de depósito judicial. Aplicação da Súmula n. 619/STF

2. Incabível a prisão do depositário judicial que não foi devidamente

intimado judicialmente para apresentar os bens sob sua custódia.

3. Ordem de habeas corpus concedida91.

Mas é preciso tecer aqui algumas ressalvas às hipóteses de

prevalência do Direito interno. A primeira é no caso de lei posterior contrariando o

teor de tratado ratificado, pois não se trata simplesmente de uma norma contrariando

outra: o que estará ocorrendo é, antes de tudo, o descumprimento pelo Brasil do

compromisso assumido internacionalmente.

Franscisco Rezek (apud FERREIRA FILHO, 2005, p. 101), em

lição que já citamos anteriormente, afirma que, em tal hipótese, “o Estado brasileiro

continua, no plano internacional, preso à obrigação que contraiu - e pela lei interna

90 HC 51977, Relator Ministro Thompson Flores, RTJ 70/333. No Mesmo sentido: HC 58727,

Relator Ministro SOARES MUÑOZ, RTJ 100/1030. 91 HC 18014 / SP, Relator Ministro João Otávio de Noronha, DJ 19.12.2005 p. 293.

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116 descumpriu – até que pelo caminho adequado se desvincule da obrigação

internacional contraída”. Logo, o País fica em situação de inadimplemento. Para

evitar isto, se a intenção é editar lei contrária a texto de tratado, não vemos

alternativa senão a de, primeiramente, desvincular-se da obrigação assumida92, sob

pena de incorrer nas conseqüências pelo descumprimento do tratado ou

convenção93.

Outra ressalva, em relação aos conflitos, é para os tratados e

convenções que versem sobre direitos humanos. É que a superveniência de lei, ou

até mesmo de emenda constitucional, contrariando o teor desse tipo de documento

já ratificado e incorporado ao Direito brasileiro (e aqui não importa se aprovado por

maioria simples - status de lei ordinária -, ou de três quintos - status de emenda),

encontra óbice no princípio do não retrocesso.

De acordo com tal princípio, “é vedado aos Estados que

diminuam ou amesquinhem a proteção já conferida aos direitos humanos” (RAMOS,

2005, p. 243), ou ainda, de acordo com Canotilho e Vital Moreira, “uma vez dada

satisfação ao direito, este 'transforma-se', nessa medida, em 'direito negativo', ou

direito de defesa, isto é, num direito a que o Estado se abstenha de atentar contra

ele” (1991, p. 129).

Fábio Konder Comparato vai ainda mais longe nesse sentido,

deixando expresso que sequer é possível a renúncia a um tratado que verse sobre

direitos humanos:

É esse movimento histórico de ampliação e aprofundamento que

justifica o princípio da irreversibilidade dos direitos já declarados

oficialmente, isto é, do conjunto dos direitos fundamentais em vigor.

Dado que eles se impõem, pela sua própria natureza, não só aos

92 Esta possibilidade não existe se o tratado disser respeito a direitos humanos, conforme será

abordado logo a seguir. 93 No mesmo sentido, Luís Roberto Barroso: “A derrogação do tratado pela lei não exclui eventual

responsabilidade internacional do Estado, se este não se valer do meio institucional próprio de extinção de um tratado, que é a denúncia” (1996, p. 31-32).

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Poderes Públicos constituídos em cada Estado como a todos os

Estados no plano internacional, e até mesmo ao próprio Poder

Constituinte, à Organização das Nações Unidas e a todas as

organizações regionais de Estados, é juridicamente inválido suprimir

direitos fundamentais, por via de novas regras constitucionais ou

convenções internacionais.

Uma das proibições desse princípio é a proibição de pôr fim,

voluntariamente, à vigência de tratados internacionais de direitos

humanos. Em particular, o Estado-parte, num tratado que tenha por

objeto, total ou parcial, a declaração de direitos humanos ou a

regulação de garantias fundamentais, não pode denunciá-lo, nem

mesmo com a aprovação do ato de denúncia pelo órgão ratificador

[...]. Ora, o poder de denunciar uma convenção internacional só faz

sentido quando esta cuida de direitos disponíveis. Em matéria de

tratados internacionais de direitos humanos, não há nenhuma

possibilidade jurídica de denúncia, ou de cessação convencional da

vigência, porque se está diante de direitos indisponíveis e,

correlatamente, de direitos insuprimíveis (2005, p. 66/67).

E ainda, quanto às ressalvas ao critério cronológico para a

solução de conflitos, devemos lembrar a prevalência do conteúdo de tratado

ratificado, mesmo que anterior a uma lei que lhe for contrária, em caso de matéria

fiscal, tendo em vista o disposto no art. 98, do Código Tributário Nacional94, e em

casos de extradição, “onde se considera que a lei interna (Lei n. 6.815, de 19-8-

1980), que é geral, cede vez ao tratado, que é regra especial” (BARROSO, 1996, p.

19)95.

Para finalizar, queremos frisar que, havendo contrariedade entre

o conteúdo de tratado e o texto constitucional em vigor, é amplamente admitida a

possibilidade de controle de constitucionalidade, preventivo ou não, difuso ou

concentrado (RTJ 84/724, RTJ 95/980). A Constituição brasileira o admite 94 “Art. 98. Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária

interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”. 95 Ainda quanto à extradição, v. HC 51977, citado acima, neste mesmo subitem.

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118 expressamente, no seu artigo 102, inc. III, alínea “b”. A doutrina, por sua vez,

caminha na mesma direção:

O tratado celebrado na vigência de uma constituição e que seja com

ela incompatível, do ponto de vista formal (extrínseco) ou material

(intrínseco), é inválido e sujeita-se à declaração de

inconstitucionalidade incidenter tantum, por qualquer órgão judicial

competente [...].

Embora não haja precedente, é possível cogitar-se do cabimento de

ação direta de inconstitucionalidade contra o decreto que o

promulga, haja vista seu status equiparado ao de ato normativo

federal (BARROSO, idem, p. 32, e nota de rodapé nº 61).

Nossa intenção com essa análise da abertura constitucional aos

tratados e convenções internacionais, bem como da hierarquia do conteúdo de tais

documentos em relação às normas internas, foi chegar à possibilidade de afirmar o

quanto segue, em relação àqueles que dizem respeito a direitos humanos:

a) eles têm especial relevo e destaque pois, seja qual for a linha

adotada no tocante ao status do tratado incorporado, o Estado que se obrigou a

cumpri-lo deve respeitá-lo e, se editar norma mais recente, contrária ao seu

conteúdo, estará sujeito às sanções internacionais pelo descumprimento do

compromisso;

b) o Estado que se obrigou a cumpri-lo fica impedido de

renunciar a ele ou até mesmo de adotar normas de status constitucional que lhe

sejam contrárias, em razão do princípio do não retrocesso em relação aos direitos

humanos, entre os quais se encontram, inquestionavelmente, os direitos à igualdade

e à não discriminação.

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Presentes essas noções, acreditamos que agora temos base

suficiente para adentrarmos ao conteúdo dos tratados e convenções que interessam

ao estudo do princípio da igualdade, cuja importância nos preocupamos em esmiuçar

até aqui, sob aspectos variados.

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4. Os tratados e convenções internacionais de inte resse para o

estudo do princípio da igualdade

O Brasil é signatário de vários documentos no âmbito da ONU e da

OEA, a maioria deles ratificada, e há também aqueles dos quais não somos

signatários. Todos eles são de grande importância pois sua mera existência traz:

[...] a revelação de que todos os seres humanos, apesar das

inúmeras diferenças biológicas e culturais que os distinguem entre si,

merecem igual respeito, como únicos entes no mundo capazes de

amar, descobrir a verdade e criar a beleza. É o reconhecimento

universal de que, em razão dessa radical igualdade, ninguém –

nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou

nação - pode afirmar-se superior aos demais (COMPARATO, 2005,

p. 01).

Entretanto, apesar da sua riqueza e importância para a raça humana,

não seria possível neste espaço analisar todos eles com a necessária profundidade.

Faremos então um recorte entre os mais conhecidos e aqueles nos quais o Brasil

teve alguma participação: desde a mera assinatura até a ratificação e promulgação.

Mesmo entre estes, inicialmente, vamos apenas elencar os tratados e convenções

que contêm disposições de interesse para o estudo do princípio da igualdade, nos

limitando a assinalar seus principais traços.

Após, cuidaremos de maneira mais detalhada daqueles que definem o

que é discriminação, pois são eles que nos ajudam no sentido de resolver o dilema

da aplicação do princípio da igualdade, do alcance da “igualdade justa”. Os demais

contêm basicamente proclamações sobre esse direito, apontando medidas para o

combate à discriminação e alcance da igualdade plena, mas trazem poucos

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121 elementos que auxiliam o intérprete na aplicação do princípio da igualdade. Por isso,

dedicaremos mais tempo à análise daqueles que definem o que vem a ser

discriminação.

a) Carta das Nações Unidas, de 26.06.1945: aprovada pelo Decreto-lei

n. 7.935, de 04.09.1945, ratificada em 21.09.45

Trata dos propósitos das Nações Unidas, das relações entre as nações,

de cooperação internacional, de condições de estabilidade, bem-estar e não

discriminação.

Foi elaborada tendo em vista principalmente as atrocidades ocorridas

na Segunda Guerra Mundial. Reafirma a fé “na igualdade de direitos dos homens e

das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas”.

b) Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10.12.1948:

assinada pelo Brasil na mesma data

Trata do direito à vida, à liberdade, à igualdade, segurança pessoal,

proibição de escravidão, de tortura, acesso à Justiça, nacionalidade, família,

casamento, participação política, trabalho, lazer, saúde, educação e deveres para

com a comunidade.

Foi elaborada em atenção ao disposto no artigo 55 da Carta das

Nações Unidas. É um dos documentos mais importantes para a garantia do direito à

igualdade, pois:

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Inegavelmente, a Declaração Universal de 1948 representa a

culminância de um processo ético que, iniciado com a Declaração de

Independência dos Estados Unidos e a Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, levou ao

reconhecimento da igualdade essencial de todo ser humano em sua

dignidade de pessoa, isto é, como fonte de todos os valores,

independentemente das diferenças de raça, cor, sexo, língua,

religião, opinião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou

qualquer outra condição, como se diz em seu artigo II. E esse

reconhecimento universal da igualdade humana só foi possível

quando, ao término da mais desumanizadora guerra de toda a

História, percebeu-se que a idéia de superioridade de uma raça, de

uma classe social, de uma cultura ou de uma religião, sobre todas as

demais, põe em risco a própria sobrevivência da humanidade

(COMPARATO, 2005, p. 225)96.

c) Convenção Concernente a Discriminação em Matéria de Emprego e

Profissão, de 05.06.1958: promulgada pelo Decreto nº 62.150, de 19.01.1968,

ratificada em 26.11.65

Baseia-se, entre outros documentos, na Declaração de Filadélfia, a

qual afirma “que todos os seres humanos, seja qual for a raça, credo ou sexo, tem

direito ao progresso material e desenvolvimento espiritual em liberdade e dignidade,

em segurança econômica e com oportunidades iguais” (considerandos).

Foi o primeiro documento relativo a direitos humanos, de que temos

notícia, a trazer uma definição sobre o que vem a ser discriminação (Artigo 1º).

96 Ou ainda, nas palavras de Cançado Trindade: “A Declaração Universal dos Direitos Humanos de

1948 constituiu um ímpeto decisivo no processo de generalização da proteção dos direitos humanos testemunhado pelas quatro últimas décadas, permanecendo como fonte de inspiração e ponto de irradiação e convergência dos instrumentos de direitos humanos a níveis global e regional” (1991, p. 01).

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d) Convenção relativa à Luta contra a Discriminação no campo do

Ensino, de 15.12.1960: ratificada em 19.04.1968 e promulgada pelo Decreto nº

63.223, 6.09.1968

Lembra o princípio relativo à não discriminação e proclama o direito de

toda pessoa à educação (grifo nosso). Define o que vem a ser discriminação e

ensino (Artigo I).

Cita os objetivos que devem ser alcançados pela educação, entre eles

o “pleno desenvolvimento da personalidade humana”, “o fortalecimento do respeito

aos direitos humanos e das liberdades fundamentais”, bem como “favorecer a

compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações” (Artigo V).

e) Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de

Discriminação Racial, de 21.12.1965: ratificada em 27.03.1968, promulgada pelo

Decreto nº 65.810, de 08.12.1969

Também traz definição de discriminação, prevê a adoção de medidas

necessárias para combatê-la, entre elas, propagandas e acesso à Justiça.

Cria o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial.

f) Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de

16.12.1966: ratificado em 24.01.1992, promulgado pelo Decreto nº 592, de 06.12.92

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Trata, entre outros temas, da igualdade entre homens e mulheres para

o exercício de direitos econômicos, sociais e culturais, com a garantia para tanto de

salário compatível, nível de vida adequado, etc.

Assim como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos,

desenvolve mais pormenorizadamente o conteúdo da Declaração Universal de 1948.

g) Convenção Americana sobre Direitos Humanos/Pacto de San José

da Costa, de 22.11.1969: ratificada em 25.09.1992, promulgada pelo Decreto nº 678,

de 06.11.1992

Tem por finalidade consolidar as instituições democráticas, um regime

de liberdade e de justiça social. Dá grande ênfase ao direito à vida, resguardado

desde a concepção, com disposições importantes sobre a pena de morte. Enumera

deveres gerais dos Estados em relação aos direitos que protege.

Cria a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Foi acrescida pelo Protocolo de San Salvador, ratificado em

21.08.1996, que especifica, entre outras disposições, a obrigação de não

discriminação e os direitos sociais, inclusive previdenciários, de idosos, de pessoas

com deficiência, etc.

h) Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação

contra a Mulher, de 18.12.1979: ratificada em 01.02.1984. Promulgada pelo Decreto

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125 nº 89.460, de 20.03.1984, que foi revogado pelo Decreto nº 4.377, de 13.09.2002, o

qual promulgou novamente a Convenção sem as reservas anteriormente feitas

Define o que vem a ser discriminação, “relembrando que a

discriminação contra a mulher viola os princípios da igualdade de direitos e do

respeito da dignidade humana” (considerandos). Assevera que a “participação

máxima da mulher, em igualdade de condições com o homem, em todos os campos,

é indispensável para o desenvolvimento pleno e completo de um país, para o bem-

estar no mundo e para a causa da paz” (idem). Prevê diversas medidas para o

alcance dessa igualdade.

Cria o Comitê sobre a Eliminação de Discriminação contra a Mulher.

i) Declaração para a Eliminação de todas as formas de Intolerância e

de Discriminação baseada em Religião ou Crença, de 25.11.1981

Define discriminação e intolerância religiosa, afirmando que a liberdade

de religião ou crença contribui também para o alcance da justiça social e para

eliminação de discriminação racial, entre outros objetivos.

Ressalta que “a discriminação entre seres humanos em termos de

religião ou crença constitui uma afronta à dignidade humana e uma refutação aos

princípios da Carta das Nações Unidas” (art. 3º).

j) Convenção relativa aos Povos Indígenas e Tribais em Países

Independentes, de 27.06.1989: ratificada em 25.07.2002, promulgada pelo Decreto

5.051, de 19.04.04

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É bastante enfática no direito à igualdade com respeito às diferenças,

pois determina, entre outros aspectos, a adoção de medidas que:

[...] assegurem aos membros desses povos o gozo, em condições de

igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional

outorga aos demais membros da população;

[...] promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e

culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e

cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições (art.2º,

parágrafo 2).

Quanto à discriminação, não traz definição, mas dispõe que:

Os povos indígenas e tribais deverão gozar plenamente dos direitos

humanos e liberdades fundamentais, sem obstáculos nem

discriminação. As disposições desta Convenção serão aplicadas sem

discriminação aos homens e mulheres desses povos (art. 3º).

Deverão ser adotadas as medidas especiais que sejam necessárias

para salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as culturas e

o meio ambiente dos povos interessados.

Tais medidas especiais não deverão ser contrárias aos desejos

expressos livremente pelos povos interessados (art. 4º, itens 1 e 2).

l) Convenção sobre os Direitos da Criança, de 20.11.1989: ratificada

em 24.09.1990, promulgada pelo Decreto 99.710, de 21.11.1990

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Entende por criança todo ser humano menor de 18 (dezoito) anos de

idade.

Assegura direitos a:

[...] toda criança sujeita à sua jurisdição, sem discriminação de

qualquer tipo, independentemente de raça, cor, sexo, língua, religião,

opinião política ou outra, origem nacional, étnica ou social, posição

econômica, impedimentos físicos, nascimentos ou qualquer condição

da criança, de seus pais ou de seus representantes legais (art. 2º,

parágrafo 1).

Esta enumeração, bastante completa das “qualidades ou notas

intrínsecas do sujeito” 97 pelos quais tratamentos discriminatórios não são admitidos,

constitui-se numa ótima referência para a aplicação do princípio da igualdade98. Em

razão disso, iremos nos valer dela mais adiante.

Trata ainda das questões relativas à reunificação familiar, em caso de

pais que moram em países diferentes, do direito à liberdade de expressão e de

associação, de adoção, pensão alimentícia e objetivos educacionais.

m) Declaração e Programa de Ação de Viena, de 25.06.1993

Entre vários outros considerandos, a Conferência Mundial de Direitos

Humanos, realizada em Viena, diz-se “preocupada com as diversas formas de

97 Termo utilizado pelo Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 161.243-6, para

vedar discriminações. 98 Trata-se de enumeração mais completa, inclusive que a da Declaração Universal dos Direitos

Humanos, que fala “raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” (art. 2º, parágrafo 1).

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128 discriminação e violência às quais as mulheres continuam expostas em todo o

mundo”. Dá substancial ênfase para a democracia como instrumento para a

realização de direitos humanos:

A democracia, o desenvolvimento e o respeito aos direitos humanos

e liberdades fundamentais são conceitos interdependentes que se

reforçam mutuamente. A democracia se baseia na vontade

livremente expressa pelo povo de determinar seus próprios sistemas

políticos, econômicos, sociais e culturais e em sua plena participação

em todos os aspectos de suas vidas.

[...]

A comunidade internacional deve apoiar o fortalecimento e a

promoção de democracia e o desenvolvimento e o respeito aos

direitos humanos e liberdades fundamentais no mundo inteiro (artigo

I, parágrafo 8).

Em relação às minorias, prevê especificamente a obrigação dos

Estados de garantir-lhes “o pleno e efetivo exercício de todos os direitos humanos e

liberdades fundamentais, sem qualquer forma de discriminação e em plena

igualdade perante a Lei” (artigo I, parágrafo 19).

n) Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as formas de

Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, de 08.06.1999:

promulgada pelo Decreto 3.956, de 08.10.2001

Traz definição bastante completa de discriminação, reunindo, de forma

aprimorada, importantes elementos, já apontados nas convenções e tratados

anteriores, hábeis a caracterizar tratamentos discriminatórios.

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4.1 A definição de “discriminação” em tais documen tos

Conforme adiantamos, passaremos agora a analisar as várias

definições de discriminação existentes em tratados e convenções internacionais,

pois elas nos permitem acrescentar, aos já apontados até aqui, elementos que

podem ser considerados como aptos à implementação do princípio da igualdade.

Nas definições de discriminação, vamos perceber que há

sempre uma constante afirmação no sentido de que situações como raça, sexo,

religião e deficiência não podem ser tidas como fatores de discrímen.

Tal vedação, a princípio, colide com toda a doutrina já analisada.

É que os ensinamentos doutrinários, seguidos pela jurisprudência, apesar de

também proibirem discriminações com base nos fatores acima apontados, admitem

tratamentos desiguais para pessoa oriundas de grupos minoritários, exigindo apenas

que esses tratamentos tenham um fundamento razoável, na concepção do

intérprete, e que não firam o texto constitucional.

Celso Antônio Bandeira de Mello (2004), por exemplo, afirma

que:

[...] o critério especificador escolhido pela lei, a fim de circunscrever

os atingidos por uma situação jurídica – a dizer: o fator de

discriminação – pode ser qualquer elemento radicado neles; todavia,

necessita, inarrredavelmente, guardar relação de pertinência lógica

com a diferenciação que dele resulta. [...]

[...]

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130

Requer-se, demais disso, que o vínculo demonstrável seja

constitucionalmente pertinente (p. 39/42).

Percebe-se que a doutrina não é tão categórica quanto os

tratados e convenções na vedação ao discrímen com base em atributos dos seres

humanos. Os requisitos da razoabilidade e pertinência constitucional, por sua vez,

podem parecer suficientes para justificar certos tratamentos diferenciados, mas

entendemos que não o são com base em um exemplo mencionado pelo mesmo

autor acima citado. Vejamos.

Ele analisa diferenciações destinadas “aos que excedem certo

peso em relação à altura” (tipologia física), e conclui que estes poderiam ser

excluídos, no serviço militar, de “funções que reclamem presença imponente” (idem,

p. 38). Ora, tal exclusão, por mais razoável que possa se apresentar, não nos

parece consentânea com o princípio da igualdade e até mesmo com o princípio da

dignidade humana: proibir pessoas acima do peso de exercerem guarda de honra,

por exemplo. Além disso, a exigência de certa compleição física já é garantida pelos

árduos testes físicos a que o candidato deve se submeter durante os exames de

ingresso nas carreiras militares. E mais, para as funções que exijam a manutenção

desse requisito, os princípios da eficiência e qualidade no serviço público exigem

que os exercícios e testes físicos sejam refeitos periodicamente (como no caso de

bombeiros e outras funções). Dessa maneira, são naturalmente garantidas a

compleição física ou a destreza necessárias para essas funções, dispensando

totalmente a existência de uma regra prevendo a exclusão de pessoas acima do

peso para certas atividades.

As definições de discriminação que colacionaremos logo a

seguir minimizam essa problemática, pois não apenas inovam em vários pontos,

como também nos parecem mais categóricas na proibição de discriminações

fundadas em qualidades subjetivas, além de serem mais específicas quando da

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131 admissão apenas de certos tratamentos desiguais, não deixando a análise de sua

razoabilidade na dependência exclusiva do intérprete.

4.1.1 Convenções que definem o que vem a ser

discriminação

a) Convenção Concernente a Discriminação em Matéria

de Emprego e Profissão (1958)

Conforme já apontamos, é o primeiro documento que

localizamos a trazer uma definição de discriminação, tendo-o feito em seu Artigo 1º:

Para os fins da presente convenção o termo "discriminação",

compreende:

- toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo,

religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social que

tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou

de tratamento em matéria de emprego ou profissão;

- qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por

efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento

em matéria de emprego ou profissão, que poderá ser especificada

pelo Membro interessado depois de consultadas as organizações

representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas

existam e outros organismos adequados (item 1, alíneas, “a” e “b”).

Previu, no mesmo artigo, que “distinções, exclusões ou

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132 preferências fundadas em qualificações exigidas para um determinado emprego não

são consideradas como discriminação” (item 2).

Em seus artigos 4º e 5º, deu início a uma tradição que

seria observada nas demais convenções dessa natureza: especificou as exceções à

impossibilidade de tratamentos diferenciados99 com base em fatores como raça,

sexo, religião, etc. Vale transcrevê-los antes de passarmos à próxima convenção:

Artigo 4º

Não são consideradas como discriminação quaisquer medidas

tomadas em relação a uma pessoa que, individualmente, seja objeto

de uma suspeita legítima de se entregar a uma atividade prejudicial à

segurança do Estado ou cuja atividade se encontre realmente

comprovada, desde que a referida pessoa tenha o direito de recorrer

a uma instância competente, estabelecida de acordo com a prática

nacional.

Artigo 5º

1. As medidas especiais de proteção ou de assistência previstas em

outras convenções ou recomendações adotadas pela Conferência

Internacional do Trabalho não são consideradas como discriminação.

2. Qualquer Membro pode, depois de consultadas as organizações

representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas

existam, definir como não-discriminatórias quaisquer outras medidas

especiais que tenham por fim salvaguardar as necessidades

particulares de pessoas em relação às quais a atribuição de uma

proteção ou assistência especial seja, de uma maneira geral,

99 Tendo em vista que as referidas definições seguem um certo padrão, esclarecemos desde já que,

em nossos comentários, vamos tomar os termos diferenciação, tratamento diferenciado ou desigual como gênero (discriminação positiva ou negativa), do qual as convenções estabelecem como espécies qualquer tipo de distinção, exclusão, restrição ou até mesmo preferência, benefícios, etc.

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reconhecida como necessária, por razões tais como o sexo, a

invalidez, os encargos de família ou o nível social ou cultural.

b) Convenção relativa à Luta contra a Discriminação no

campo do Ensino (1960)

Trata-se, como de regra no tocante a documentos

internacionais, de documento bastante desconhecido na seara jurídica e raramente

invocado como fonte, mas que é de grande relevância na luta ainda existente de

certos grupos de pessoas por uma educação, sem exclusões fundadas em

condições subjetivas:

Artigo I

Para os fins da presente Convenção, o termo "discriminação" abarca

qualquer distinção, exclusão, limitação ou preferência que, por

motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião publica ou

qualquer outra opinião, origem nacional ou social, condição

econômica ou nascimento, tenha por objeto ou efeito destruir ou

alterar a igualdade de tratamento em matéria de ensino, e,

principalmente:

a) privar qualquer pessoa ou grupo de pessoas do acesso aos

diversos tipos ou graus de ensino;

b) limitar a nível inferior a educação de qualquer pessoa ou grupo;

c) sob reserva do disposto no artigo 2 da presente Convenção,

instituir ou manter sistemas ou estabelecimentos de ensino

separados para pessoas ou grupos de pessoas; ou

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134

d) de impor a qualquer pessoa ou grupo de pessoas condições

incompatíveis com a dignidade do homem.

As reservas a que se refere a alínea “c”, no tocante à

proibição de escolas separadas para pessoas ou grupos de pessoas, dizem respeito

apenas às hipóteses de escolas separadas para alunos de sexos diferentes, por

motivo de religião ou lingüístico, ou ainda a estabelecimentos privados de ensino.

Mesmo tais exceções são admitidas somente quando observados os requisitos e

objetivos abaixo especificados:

Artigo II

Quando admitidas pelo Estado, as seguintes situações não são

consideradas discriminatórias nos termos do artigo 1 da presente

Convenção:

a) a criação ou a manutenção de sistemas ou estabelecimentos de

ensino separados para alunos dos dois sexos, quando estes

sistemas ou estabelecimentos oferecerem facilidades equivalentes

de acesso ao ensino, dispuserem de um corpo docente igualmente

qualificado, assim como locais escolares e equipamentos da mesma

qualidade, e permitirem seguir os mesmos programas de estudos ou

equivalentes;

b) a criação ou manutenção por motivos de ordem religiosa ou

lingüística, de sistemas ou estabelecimentos separados que

proporcionem um ensino que corresponda à escolha dos parentes ou

tutores legais dos alunos, se a adesão a estes sistemas ou a

freqüência desses estabelecimentos for facultativa e se o ensino

proporcionado se coadunar com as normas que possam ter sido

prescritas ou aprovadas pelas autoridades competentes,

particularmente para o ensino do mesmo grau;

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135

c) a criação ou manutenção de estabelecimentos de ensino

privados, caso estes estabelecimentos não tenham o objetivo de

assegurar a exclusão de qualquer grupo, mas o de aumentar as

possibilidades de ensino que ofereçam os poderes públicos, se seu

funcionamento corresponder a esse fim e se o ensino prestado se

coadunar com as normas que possam ter sido prescritas ou

aprovadas pelas autoridades competentes, particularmente para o

ensino do primeiro grau.

Quanto a eventuais tratamentos preferenciais ou

benefícios, dispõe, em seu Artigo III, que não deve ser admitida qualquer ajuda ou

facilidade que não seja baseada no mérito ou nas necessidades do aluno (alínea

“c”). Ainda no mesmo artigo, é expressa a obrigação dos Estados de “conceder aos

estrangeiros que residirem em seu território o mesmo acesso ao ensino que o

concedido aos próprios nacionais” (alínea “e”).

A referida convenção, apesar da data, é bastante

avançada em seu objetivo de proporcionar a toda criança o direito de acesso à

educação, sem discriminações.

c) Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas

as formas de Discriminação Racial (1965)

A definição de discriminação consta de seu Artigo 1º,

parágrafo 1:

[...] a expressão “discriminação racial” significará toda distinção,

exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor,

descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou

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resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício

em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos

humanos e liberdades fundamentais nos campos político,

econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida

pública.

Estabelece, no parágrafo 4, do mesmo artigo, como

exceção à total proibição de tratamentos desiguais o seguinte:

Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais

tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado

de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem

da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais

grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e

liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam,

em conseqüência, à manutenção de direitos separados para

diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido

alcançados os seus objetivos.

As condições acima referidas configuram vetores a serem

observados em caso de adoção de medidas afirmativas, aqui denominadas de

especiais.

d) Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de

Discriminação contra a Mulher (1979)

Art. 1º:

[...] a expressão “discriminação contra a mulher” significará toda

distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por

objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou

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exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com

base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e

liberdades fundamentais nos campos políticos, econômico, social,

cultural e civil ou em qualquer outro campo.

Observe-se que nesta definição a preferência não foi

incluída entre as espécies vedadas de tratamentos desiguais. Além disso, também

estabelece exceções a esta vedação:

A adoção pelos Estados-partes de medidas especiais de caráter

temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem

e a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta

Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como

conseqüência, a manutenção de normas desiguais ou separadas;

essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de

oportunidade e tratamento houverem sido alcançados.

A adoção pelos Estados-partes de medidas especiais, inclusive as

contidas na presente Convenção, destinadas a proteger a

maternidade, não se considerará discriminatória (art. 4º, itens 1 e 2).

Esta última ressalva, que visa, em última análise, a

proteção do direito à vida do nascituro, deve gerar algumas reflexões, conforme

veremos mais adiante.

e) Declaração para a Eliminação de todas as formas de

Intolerância e de Discriminação baseada em Religião ou Crença (1982)

Art. 2º, parágrafo 2:

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[...] a expressão “intolerância e discriminação baseada em religião ou

crença” significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou

preferência baseada em religião ou crença, tendo como propósito ou

efeito a anulação ou prejuízo do reconhecimento, desfrute, ou

exercício dos direitos humanos e liberdades fundamentais em bases

iguais.

Faz a mesma proibição relativa a tratamentos que

impliquem distinção, exclusão, restrição ou preferência e, diferentemente das

definições anteriores, não admite qualquer tipo de exceção, mesmo a título das

chamadas “medidas especiais”.

f) Convenção Interamericana para a Eliminação de todas

as formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999)

Esta última convenção é de suma importância, pois traz a

mais completa das definições de discriminação constantes desses documentos

internacionais. Talvez isto ocorra porque o público formado pelas pessoas com

deficiência ainda seja um dos mais afetados pela falta de acesso a direitos,

justamente pela boa intenção de alguns em protegê-los de certas situações, por

considerá-los inaptos para determinadas atividades, principalmente as relacionadas

ao trabalho, à educação e ao lazer.

A situação é tão dramática que um dos primeiros

considerandos dessa convenção é no sentido de praticamente proibir que a

deficiência seja utilizada como fator de discrímen. Vejamos:

[...] as pessoas portadoras de deficiência têm os mesmos direitos

humanos e liberdades fundamentais que outras pessoas e que estes

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direitos, inclusive o direito de não ser submetidas a discriminação

com base na deficiência, emanam da dignidade e da igualdade que

são inerentes a todo ser humano.

Eis a sua definição:

[...] o termo "discriminação contra as pessoas portadoras de

deficiência" significa toda diferenciação, exclusão ou restrição

baseada em deficiência, antecedente de deficiência, conseqüência

de deficiência anterior ou percepção de deficiência presente ou

passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o

reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras

de deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades

fundamentais (artigo I, parágrafo 2, alínea “a”).

Constata-se que, entre as hipóteses vedadas de

tratamentos desiguais, foram contempladas a diferenciação (ou distinção, conforme

as convenções anteriores), exclusão ou restrição. Não foi feita referência, nesta

parte, à preferência, levando à conclusão de que esta é uma hipótese de tratamento

diferenciado ou desigual permitida.

Entre os seus esclarecedores elementos, inovou no

tocante à não obrigatoriedade de aceitação sequer dos tratamentos diferenciados

permitidos, bem como ao estabelecer as seguintes condições:

Não constitui discriminação a diferenciação ou preferência

adotada pelo Estado-parte para promover a integração social

ou o desenvolvimento pessoal dos portadores de deficiência,

desde que a diferenciação ou preferência não limite em si

mesma o direito à igualdade dessas pessoas e que elas não

sejam obrigadas a aceitar tal diferenciação ou preferência. Nos

casos em que a legislação interna preveja a declaração de

interdição, quando for necessária e apropriada para o seu bem-

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estar, esta não constituirá discriminação (idem, ibidem, alínea

“b”).

4.1.2 Análise dos elementos ou requisitos constante s

dessas definições

Vimos que tais documentos oferecem um campo bastante

vasto e repleto de oportunidades de reflexão no tocante ao princípio da igualdade.

Indicamos cada um dos elementos que consideramos

relevantes e que podem ser agregados aos tradicionalmente apontados pela

doutrina para a implementação do princípio da igualdade. Passaremos a analisar

cada um deles.

a) Impossibilidade de tratamento desigual que implique

qualquer forma de negação de direitos humanos e liberdades fundamentais100

[...] mas os de vosso conselho julgaram que um cego nada podia

prestar (HERCULANO, 1970, p. 245).

100 No presente subtítulo, nos referimos a direitos e liberdades apenas para seguir a mesma técnica

utilizada na maioria das convenções em análise. Porém, ao longo deste trabalho, nos valemos de tais termos indistintamente, pois Canotilho e Vital Moreira concluem que: “a distinção entre cada uma das categorias que compõem a trilogia 'direitos, liberdades e garantias' é, para além de pouco precisa, verdadeiramente irrelevante, visto que, qualquer que seja a categoria a que pertençam, todos os direitos fundamentais que a integram gozam do mesmo regime jurídico” (1991, p. 111, grifos dos autores).

Antes de chegarem a essa conclusão explicam que as liberdades “estariam ligadas ao status negativus e, através delas, visa-se defender a esfera jurídica dos cidadãos perante a intervenção ou agressão dos poderes públicos” (1991, p. 109). Ex.: direito à vida, direito à integridade pessoal, à liberdade e à segurança, etc. “Sob a designação de direitos incluem-se, quer os tradicionais 'direitos naturais', inerentes ao homem (dir. à vida, à integridade pessoal), quer os direitos ligados ao status activus do indivíduo” (idem, p. 110). Ex. Direitos políticos. E o termo garantias abrange quer “o direito dos cidadãos a exigir dos poderes públicos a protecção dos seus direitos, quer o reconhecimento dos meios processuais adequados a essa finalidade” (idem, ibidem). Ex. Direito de acesso aos tribunais, direitos relacionados ao devido processo legal, etc.

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141

Esta frase é extraída da narrativa de Alexandre

Herculano, citada logo no início de nossa dissertação101, na qual conta-se que

conselheiros do rei o orientaram a dar uma espécie de aposentadoria a um arquiteto

que ficou cego durante as obras, contra a vontade daquele profissional que se

julgava capaz de prosseguir trabalhando a despeito da deficiência visual.

Trata-se de situação ocorrida há séculos, mas que ainda

se repete.

Mesmo que tenhamos doutrina e jurisprudência no

sentido de não admitir discriminações fundadas em atributos do ser humano, a

mesma doutrina e jurisprudência admitem, conforme temos apontado neste trabalho,

que, em certas situações, após um juízo de razoabilidade (que parecia presente no

caso do arquiteto cego), alguns direitos sejam negados a pessoas que apresentam

qualidades e atributos muito diferentes da maioria que compõe o cenário ativo do

País.

Caso emblemático de uma situação muito parecida com a

ocorrida na narrativa de Alexandre Herculano é, no Brasil, o da não admissão pelo

Poder Judiciário de pessoas cegas para exercer a função de magistrado.

Transcrevemos a ementa abaixo, a qual, apesar da data, ainda pode ser citada

como exemplo, pois é grande a quantidade de pessoas nessa condição, recusadas

para a função de Juiz nos tempos atuais, cuja insatisfação sequer é levada ao

mesmo Poder, ou quando isto ocorre, já desistem após a decisão, sempre

desfavorável, em Primeira Instância:

ADMISSÃO AO CARGO DE JUIZ DE DIREITO. CEGUEIRA

BILATERAL TOTAL. INCAPACIDADE FÍSICA PARA ESSA

ADMISSÃO.

101 V. Parte I, subitem 1.1.2.

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– Inexistência de ofensa ao inciso III do artigo único da

Emenda Constitucional n. 12/78, uma vez que a decisão que

entende que a cegueira bilateral total impossibilita o

desempenho pleno das atribuições ínsitas ao cargo de Juiz

de Direito não é discriminatória.

– A Lei Complementar n. 35/79, em seu artigo 78, parágrafo 2,

estabelece que os candidatos a juiz serão submetidos a

exame de sanidade física, conforme dispuser a lei; e a Lei

6750/79, posterior àquela, incluiu entre os requisitos de

ingresso na carreira da Magistratura do Distrito Federal e

dos Territórios o de o candidato 'ser moralmente idôneo e

gozar de sanidade física e mental' (inciso VI do artigo 46).

Não-ocorrência, pois, de violação do parágrafo 2. do artigo

153, do caput do artigo 97 e do inciso I do artigo 144, todos

da Constituição Federal.

– Aos médicos cabe determinar a existência e a extensão da

deficiência física; ao tribunal, porém, é que compete aferir se

ela permite, ou não, o desempenho pleno e normal das

funções do cargo de Juiz. Recurso Extraordinário não

conhecido102.

E isto não ocorre apenas com relação à deficiência.

Em relação às mulheres, deixando de lado a violência a

que são freqüentemente submetidas, independentemente da classe social, raça,

etc., afirma-se que:

102 RE 1000.001-DF, julgado em 29/03/1984.

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[...] alguns países têm ainda leis discriminatórias que regulam a

propriedade de terras e o direito a herdá-las ou o acesso a

empréstimos e créditos. A discriminação contra as mulheres

subsiste também em algumas leis sobre a nacionalidade, leis

essas que impedem as mulheres de transmitirem a sua

nacionalidade aos filhos103.

Mesmo não sendo este o caso do Brasil, no tocante às

leis, o certo é que as estatísticas relacionadas a níveis salariais, de ensino, entre

outros fatores, não deixam dúvidas de que as mulheres ainda estão longe da

almejada igualdade real. O mesmo ocorre em relação a afrodescendentes e aos que

possuem orientação homossexual104, por exemplo. Tais estatísticas105, de uma

maneira ou de outra, se repetem em todo o mundo.

Logo, é preciso afirmar e reafirmar a impossibilidade de

discriminação com base em qualidades intrínsecas do sujeito. É o que têm feito as

convenções internacionais citadas.

Portanto, o primeiro ponto entre elas a ser ressaltado é o

de que, de maneira geral, todas essas convenções vedam tratamentos que

impliquem anulação, impedimento, prejuízo ou restrição do reconhecimento, gozo ou

exercício, em condições de igualdade, de direitos humanos e liberdades

fundamentais.

103 Informação disponível em www.runic-europe.org/portuguese/ecosoc/cedawAnniv.html. Acesso

em 02.02.2006. Comunicado do Centro Regional de Informação das Nações Unidas (UNRIC), intitulado “Convenção sobre Direitos das Mulheres adoptada há 25 anos – em nenhum país as mulheres alcançaram ainda a plena igualdade” (Nova Iorque, 13.10.2004).

104 Em relação a estes a situação é mais delicada pois ainda lutam pela simples inclusão, nos dispositivos que proíbem discriminações, do termo "orientação sexual", para que fique expresso o seu direito à igualdade com tolerância dessa orientação (V. http://carreiras.empregos.com.br/carreira/administracao/comportamento/discriminacao_homossexual, acesso em 02.02.2006).,

105 Cf. Retrato das Desigualdades – Gênero e Raça, disponível em www.ipea.gov.br, acesso em 03.02.2006.

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Não se fala aqui em razoabilidade ou correlação lógica.

Se o resultado ou objetivo tiver sido a negação de direitos, trata-se de discriminação.

Existem, é verdade, exceções a esta vedação, mas são

muito bem delineadas.

A primeira, que pode ser extraída da Convenção sobre a

Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), refere-se à

admissão de tratamentos desiguais, mesmo que impliquem negação de direitos, se

o objetivo for a proteção do direito à vida106, que é tutelada com peculiar ênfase nos

tratados e convenções internacionais em geral. Mesmo assim, há de ficar

caracterizado, e aí sim entra o critério da razoabilidade, que não há outra forma de

se resguardar a vida do indivíduo ou do nascituro, senão a negação de direitos.

A segunda e última exceção é extraída da Convenção

sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação com a Pessoa Portadora

de Deficiência. Refere-se à possibilidade de interdição judicial, nos casos em que a

legislação do país contemple tal medida.

Outro ponto comum entre as convenções, e não

mencionado pela doutrina e jurisprudência, é o de bastar o resultado para

caracterização da conduta discriminatória. Ou seja, é irrelevante se a conduta teve

ou não propósito ou objetivo de negar o acesso a direitos. Se ficar caracterizado

este resultado, estará configurada a discriminação. Obviamente que a punição desta

ocorrerá nos moldes da legislação de cada País. No caso do Brasil, por exemplo,

exige-se o dolo ou a culpa para uma responsabilização em âmbito penal (art. 18,

Código Penal), mas no âmbito civil, a responsabilização é plenamente possível

quando presente apenas o resultado e o nexo de causalidade com a conduta

voluntária (art. 186, Código Civil).

106 V. exemplo analisado no subitem 4.2.2.2, abaixo, que se refere a tratamento diferenciado visando

a proteção do direito à vida.

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Apesar de essas convenções tratarem apenas de alguns

destinatários, pois as vedações expressas são para tratamentos que tenham por

fundamento, direto ou indireto, a raça, sexo, religião, crença ou deficiência, podemos

dizer que elas podem se aplicar a qualquer situação de diferenciações dirigidas a

seres humanos107 e que tenham por base, não apenas os fatores acima apontados,

mas também língua, opinião política ou outra, origem nacional, étnica ou social,

posição econômica, filiação ou orientação sexual108.

É que, por se tratar de negação de acesso a direitos, não

se pode aceitar, fora a hipótese extrema e comprovada de proteção à vida, que isto

possa ser feito com base em elementos subjetivos relacionados à pessoa humana,

mesmo em situações que alguns consideram razoáveis. Ora, os juízos de valor

“expressam atitudes próprias de um indivíduo ou de um grupo, podem ser mais ou

menos fundamentados ou justificados, mas não verdadeiros nem falsos e não

podem, portanto, tornar-se elemento constitutivo de um conhecimento objetivo”

(PERELMAN, 2004, p. 237). Por isso, não podem justificar, isoladamente, um

tratamento diferenciado que leve a qualquer forma de restrição ao exercício de um

direito.

Por outro lado, precisamos lembrar que devem ser

admitidos tratamentos desiguais que, mesmo implicando negação de direitos, são

baseados em fatores objetivos e constantes do texto constitucional. Por exemplo: na

Constituição brasileira de 1988, consta a proibição do voto para pessoas com menos

107 Esta afirmação, bem como outras que seguem no sentido de promover uma integração entre os

dispositivos de convenções diversas, são feitas com apoio na seguinte lição de Cançado Trindade: “Tem-se admitido a possibilidade de que os avanços normativos em um determinado tratado sobre direitos humanos possam ter um impacto direto na aplicação de outros tratados de direitos humanos, no sentido de ampliar ou fortalecer as obrigações dos Estados-partes e assegurar um maior grau de proteção às supostas vítimas” (1991, p. 50).

108 Enumeração baseada na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989), na qual acrescentamos a orientação sexual. Este acréscimo pode ser embasado na decisão do Comitê de Direitos Humanos que, no caso Toone versus Austrália, estabeleceu que a referência ao "sexo", no artigo 2, parágrafo 1 (da não-discriminação), e 26 (da igualdade perante a lei), do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos deveria ser entendida pela inclusão da questão da orientação sexual (Cfe. http://www.hrea.net/learn/guides/lgbt_pt.html, acesso em 17.11.2005).

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146 de 16 (dezesseis) anos e a exigência de 03 (três) anos de experiência para as

carreiras jurídicas, entre outras situações.

São diferenciações que levam a exclusões e restrições

mas, além de constarem no plano constitucional, refletem condições objetivas, que

colhem a todos os cidadãos indistintamente, independentemente do sexo, condição

física ou mental, raça, orientação sexual, entre outros fatores que freqüentemente

fazem com que a pessoa fique em situação de vulnerabilidade social.

Logo, em qualquer análise relacionada à aplicação do

princípio da igualdade se, da identificação do elemento de discrímen ficar

caracterizado que este reflete uma condição subjetiva do sujeito, é muito provável

que se trate de uma conduta discriminatória.

Dizemos “provável”, pois o tratamento desigual vedado

(distinção, exclusão ou restrição) é aquele que implica negação de direitos, ou seja,

anulação, impedimento, prejuízo ou restrição do reconhecimento, gozo ou exercício

de direitos, em condições de igualdade.

Não havendo negação de direitos, há tratamentos

diferenciados que podem ser admitidos. Aliás, é o que já recomendava Aristóteles:

“tratar desigualmente os desiguais”. No entanto, como já sabemos, mesmo esta

regra, relacionada ao tratamento desigual benéfico, não pode ser aplicada sem

critérios e as convenções nos fornecem estes critérios. Vejamos, então, quais são

eles.

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b) Possibilidade de discriminação positiva: tratamentos

desiguais que não implicam discriminação

Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2005) é o autor da

seguinte lição:

A uniformidade do direito não significa, todavia, que não haja

distinções no tratamento jurídico. As distinções são, ao contrário,

uma própria exigência da igualdade. [...]

Mas distinção não é discriminação na medida em que a diferenciação

“compensa” a desigualdade e por isso serve a uma finalidade de

igualização. [...]

[...]

É necessário distinguir das discriminações, que violam o princípio da

igualdade, “as ações afirmativas”, que podem ser com elas

compatíveis.

Estas ações afirmativas tiveram origem nos Estados Unidos da

América e hoje se difundiram pelo mundo, estando presentes no

Brasil atual. São elas distinções no sistema normativo, em benefício

de grupos determinados – negros, mulheres etc. -, que visam a

equipará-los (igualá-los) a grupos outros que são padrão de

referência. (Na prática, os negros aos brancos, as mulheres aos

homens, etc.)

Justificam-se tais distinções pela finalidade que é igualar e não

desigualar, mas igualar corrigindo tratamentos discriminatórios –

portanto, prejudiciais ao grupo – globalmente vigorantes na

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148

sociedade. Refletem elas a idéia do tratamento desigual dos que se

apresentam desigualados na sociedade (p. 114/115).

Portanto, mais do que impedir a negação de direitos, são

necessárias medidas para a “igualização” acima referida, pois o dilema dos seres

humanos é que:

[...] nem todos se acham em igualdade de condições para os

exercer [os direitos], é preciso que essas condições sejam

criadas ou recriadas através da transformação da vida e das

estruturas dentro das quais as pessoas se movem” (MIRANDA,

1993, p. 202).

As convenções internacionais que visam eliminar todas

as formas de discriminação preocuparam-se em garantir a possibilidade de

promoção dessas condições concretas de igualdade.

A Convenção concernente a Discriminação em Matéria

de Emprego e Profissão (1958) previu, em seu art. 5º, que “as medidas especiais de

proteção ou de assistência previstas em outras convenções ou recomendações

adotadas pela Conferência Internacional do Trabalho não são consideradas como

discriminação”.

Já a Convenção Internacional sobre a Eliminação de

todas as formas de Discriminação Racial (1965) é expressa ao garantir a

possibilidade de adoção de “medidas especiais” que tenham por objetivo, em última

análise, facilitar o acesso a direitos.

Ou seja, enquanto são proibidos os tratamentos desiguais

que impliquem negação a direitos em geral, as medidas especiais ou afirmativas são

válidas justamente por facilitarem esse acesso.

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149

A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de

Discriminação contra a Mulher (1979) faz o mesmo. Primeiramente, ela não inclui

entre as hipóteses de tratamentos desiguais vedados a preferência. Além disso,

afirma que a adoção de “medidas especiais” voltadas para promover a “igualdade de

fato entre o homem e a mulher não será considerada discriminação”.

A Convenção Interamericana para a Eliminação de todas

as formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999), por

sua vez, dispõe que não constitui discriminação a diferenciação ou preferência

adotada para promover a integração social ou o desenvolvimento pessoal dos

portadores de deficiência.

Entretanto, não é apenas porque determinado tratamento

diferenciado facilita o acesso ao direito que ele será admitido. Pensamos que agora

tem lugar a análise da razoabilidade desse tratamento para verificar se é real a

facilitação alegada. Observe-se que não se trata de usar a razoabilidade como fator

final e definitivo para definição sobre a viabilidade ou não de um tratamento

diferenciado, mas de utilizá-lo como indicador da plausibilidade de adoção de

determinada medida especial, com a única finalidade de se evitar abusos.

Outra ressalva no tocante à possibilidade de medidas

especiais, ou de discriminação positiva, é a que se pode extrair da Declaração para

a Eliminação de todas as formas de Intolerância e de Discriminação baseada em

Religião ou Crença (1982). Este documento, ao contrário dos demais da mesma

espécie, não admite preferências, dispondo que esta é uma das hipóteses vedadas

de tratamentos desiguais e não prevê a possibilidade de adoção de medidas

especiais. Isto é perfeitamente explicável pelo próprio caráter do direito que essa

Declaração protege, que é a liberdade de religião ou de crença, e pela importância

da laicidade dos Estados.

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150

Pelo exposto, a regra que emerge é pela admissão de

tratamentos diferenciados, ou medidas especiais, ou ainda, de discriminação

positiva, que impliquem na facilitação do acesso a direitos, desde que haja

justificativa razoável para a sua adoção e que o motivo da diferenciação não seja a

religião ou crença. Contudo, isto ainda não basta. Há outras condições para a

admissão da discriminação positiva.

c) Condições para que essa “diferenciação” ou

“preferência” não implique discriminação

Feita a ressalva no tocante a religiões e crenças, cuja

convenção não admite sequer preferências a esse título, o que verificamos é que as

convenções que visam eliminar a discriminação admitem a adoção de medidas

especiais fundamentadas, ou ações afirmativas, que podem ser reunidas sob a

denominação de discriminações positivas. Entretanto, mesmo em tais casos,

constata-se que há um rol de condições para a admissão dessas medidas especiais.

É nessas condições que nos deteremos a partir de agora.

c.1. Temporariedade das medidas afirmativas

A primeira condição para a validade das medidas

especiais, mencionada tanto na convenção que trata sobre discriminação racial,

como na convenção que se refere à discriminação contra a mulher, é a

temporariedade.

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Isto significa que a medida que diferencia para

facilitar o acesso a direitos não pode ser utilizada para sempre pois isto

demonstraria que a igualdade não está sendo alcançada. Note-se: apesar da

admissão de “tratamento desigual ao desigual”, a finalidade é sempre a promoção

da igualdade real. Logo, para que possam mesmo ser temporárias, as medidas

afirmativas devem vir acompanhadas de políticas que reduzam cada vez mais essa

desigualdade, para que o tratamento desigual um dia se torne desnecessário109.

Trata-se de requisito mencionado apenas nas

duas convenções acima citadas, mas a sua clareza e pertinência faz com que deva

ser observado no tocante a medidas afirmativas que tenham por destinatários

qualquer grupo que se encontre em condição de vulnerabilidade. Aliás, isto é o

recomendado por Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2005, p. 116)110, que enumera,

como critério para se aferir a constitucionalidade das ações afirmativas, as seguintes

regras: da objetividade, de medida ou proporcionalidade, de adequação ou

razoabilidade, de finalidade, de não onerosidade e de temporariedade.

Assim, por exemplo, caso sejam estabelecidas,

no Brasil, cotas em universidades para alunos oriundos de escolas públicas, as

mesmas devem ser temporárias e acompanhadas de políticas efetivas destinadas à

melhoria do acesso e qualidade da educação no âmbito das escolas e até mesmo

no âmbito familiar, para que a desigualdade, que porventura se considere existente

entre alunos do ensino básico oriundos de escolas públicas e de escolas

particulares, deixe de existir com o tempo e a cota se torne desnecessária.

109 Nesse sentido, é importante consultar a obra de Pierucci, Ciladas da diferença, especialmente

quando conclui que: “...uma política que hoje queira agir sobre as condições de vida reais dos ‘diferentes’ devesse preocupar-se também em reconstruir ‘o geral’ e não se deixar cair presa da essencialização das diferenças com vistas à sua institucionalização e canonização (Rouanet, 1994), que não prometem outra coisa senão pavimentar a avenida e balizar o percurso rumo a um beco sem saída minado de explosivos” (1999, p. 117).

110 V. também nota de rodapé nº 107, deste trabalho.

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c.2. A diferenciação ou preferência não pode

implicar manutenção de “direitos separados”

Esta é uma condição da mais alta relevância, pois

é neste ponto que começam a se descortinar as garantias, para os grupos

minoritários, de que os tratamentos desiguais que terceiros consideram necessários,

adequados, razoáveis, facilitadores ou protetórios não acabem redundando em

discriminação.

Essa condição, ainda que com dizeres diferentes,

é prevista nas convenções que admitem a adoção de medidas afirmativas ou de

tratamentos preferenciais, também chamados de especiais. Os dizeres são os

seguintes e visam o mesmo objetivo: i) não conduzir à manutenção de direitos

separados para diferentes grupos (Convenção relativa à discriminação racial); ii) não

ter como conseqüência a manutenção de normas desiguais ou separadas

(Convenção relativa à discriminação contra a mulher); iii) não limitar em si mesma o

direito à igualdade (Convenção relativa à discriminação contra pessoas com

deficiência).

Diferentemente do que temos visto até o

momento, com base na doutrina e jurisprudência, ao vedarem tratamentos

diferenciados que impliquem direitos separados, as convenções deixam claro que

não bastam a lógica, a razoabilidade ou a proporção, para que a medida

diferenciadora possa ser admitida.

O valor desse requisito reside no fato de que,

como temos afirmado, a idéia que admite os tratamentos desiguais que correm “à

conta das hipóteses aceitáveis, tendo em vista a ordem socioconstitucional” 111,

deixa uma grande margem de possibilidade de discriminação, já que resta mantido

111 Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 120.305-6 - RJ, 2ª Turma. Relator: Ministro

Marco Aurélio.

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153 um vasto campo no qual o que vai prevalecer é o entendimento do intérprete do que

é “aceitável” ou não, e, neste momento, surge o problema gerado pela pré-

compreensão, já mencionado112.

Esse problema não existiria se os termos das

convenções aqui mencionadas fossem observados.

Por exemplo, na cidade de Santa Cruz do Sul, no

Rio Grande do Sul, sempre houve o tradicional concurso para “rainha”. Além desse

concurso, há algum tempo é feito, também, um concurso separado para eleger a

“rainha negra” 113.

Ora, mesmo que se considere tal concurso como

uma oportunidade, um tratamento preferencial, é nítido que implica exercício

separado de direitos e que, se os termos das convenções fossem observados, ele

jamais seria admitido.

Sim, este exemplo se refere a um concurso de

rainha. Poder-se-ia alegar que ser a “rainha” de uma cidade não se trata de um

direito humano ou liberdade fundamental, pois apenas os atos que implicam

exclusão ou restrição destes é que podem ser considerados como discriminatórios.

Entretanto, o termo “direitos humanos” deve ser entendido em sua mais ampla

concepção que inclui obviamente o direito à imagem e à dignidade da pessoa

humana, o que não se compatibiliza com um concurso separado para pessoas de

certa raça e um outro concurso geral.

Nossa intenção, com o referido exemplo, é de

demonstrar o quanto certas iniciativas que, à primeira vista para alguns, parecem

inocentes e até bem intencionadas, não resistem a um confronto com os termos das

112 V. item 6, Parte I, deste trabalho. 113 Informação disponível em www.pmscs.rs.gov.br/index.php?acao=eventos&eventos_id=31.

Acesso em 17.11.2005.

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154 convenções que nosso País subscreve, mas que raramente são invocadas para

evitar situações discriminatórias.

E ainda há outros requisitos a serem observados.

Prossigamos.

c.3. Não obrigatoriedade de aceitação da

diferenciação ou preferência

Esta é a condição final e definitiva para o efetivo

cumprimento do princípio da igualdade, pois realmente elimina a problemática

sempre apontada em relação às situações em que terceiros decidem o que é

melhor, ou o que é razoável para aqueles que recebem o tratamento desigual, ainda

que tal tratamento, a princípio, venha sob as vestes de preferência ou de afirmação.

A referida condição consta da Convenção

Interamericana para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a

Pessoa Portadora de Deficiência (1999), quase nunca citada pela doutrina e, muito

menos, pela jurisprudência. Mas o fato é que ela, além de também trazer os

esclarecedores elementos já apontados, inovou entre os documentos internacionais

que definem discriminação, ao garantir a não obrigatoriedade de aceitação sequer

dos tratamentos desiguais considerados possíveis. Vale transcrever novamente:

Não constitui discriminação a diferenciação ou preferência

adotada pelo Estado-parte para promover a integração social

ou o desenvolvimento pessoal dos portadores de deficiência,

desde que a diferenciação ou preferência não limite em si

mesma o direito à igualdade dessas pessoas e que elas não

sejam obrigadas a aceitar tal diferenciação ou preferência

(artigo I, parágrafo 2, alínea “b”, grifos nossos).

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155

Tal requisito reflete bem o lema do movimento

internacional das pessoas com deficiência: “Nada sobre Nós Sem Nós”. Esta frase

tem seu embrião no princípio adotado pela Organização Internacional do Trabalho,

em sua Convenção 159, de 1983, sobre Reabilitação Profissional e Emprego de

Pessoas com Deficiência, a qual exige que "as organizações representativas de e

para pessoas com deficiência" sejam sempre consultadas naquilo que lhes diga

respeito114.

Outra fonte possível para essa exigência de

concordância da pessoa interessada com o tratamento desigualador, mesmo

benéfico, é a Convenção relativa aos Povos Indígenas e Tribais em Países

Independentes (1989), que prevê, conforme já assinalamos, que as medidas

especiais “para salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as culturas e o

meio ambiente dos povos interessados” não deverão “ser contrárias aos desejos

expressos livremente” por eles.

E para não ficarmos apenas nas convenções,

como fontes para esse requisito, lembramos também os ensinamentos de Kelsen115,

sobre a importância de se garantir a presença da vontade da minoria para a criação

da ordem social, para que a democracia não se transforme numa “ditadura da

maioria” (1998, p. 411).

Novamente, vamos ilustrar este requisito com um

exemplo. Imagine-se um estádio de futebol no qual, sob o pretexto de impulsionar a

ida de mulheres a jogos, fosse estabelecido um certo local com cadeiras

114 O lema “Nada Sobre Nós Sem Nós” foi também adotado como tema para o Dia Internacional das

Pessoas com Deficiência em 2004. A este respeito, V. Ainda: www.runic-europe.org/portuguese/ecosoc/disabledday2004sg.html, acesso em 02.02.2006, especialmente a mensagem do Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, por ocasião do Dia Internacional das Pessoas com Deficiência (3 de Dezembro de 2004).

115 V. nota 46, deste trabalho.

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156 “preferenciais” ou “reservadas” para mulheres116, separadamente dos demais

lugares disponíveis ao público.

Como pode se tratar de eventual interferência no

direito ao lazer, é preciso averiguar se essa hipótese de tratamento desigual, ainda

que a título de preferência, fere ou não o princípio da igualdade. A nossa conclusão

é a de que, mesmo que se considere que essa cota de lugares implica facilitação do

acesso ao direito (assistir ao jogo), e que este direito não estaria sendo exercido de

forma separada (todos estariam assistindo ao mesmo jogo, ao mesmo tempo, no

mesmo local), percebe-se facilmente que seria discriminação se todas as mulheres

que freqüentassem o referido estádio fossem obrigadas a se sentar no local

reservado.

Demos este exemplo, pois, por meio dele, fica

muito fácil constatar a presença de discriminação ao não ser dada a possibilidade de

recusa ao tratamento preferencial ou especial. Mas é um exemplo que pode até ser

taxado de tosco e de não ocorrer na prática. Entretanto, ele se repete em algumas

situações onde a consciência da discriminação não fica tão patente.

Vejamos então o caso das vagas reservadas em

vestibulares ou concursos públicos. Em alguns exames, a forma de realização do

certame ocorre de tal maneira que, uma vez a pessoa se identificando como

afrodescendente, oriundo de escola pública, ou alegando ter alguma deficiência,

automaticamente passa a ser candidato com direito a vagas reservadas onde essas

são previstas. Ou seja, caso queira se identificar como pessoa que tem alguma

dessas peculiaridades, por qualquer motivo (ter uma prova em braile, por exemplo),

mas não aceite o tratamento diferenciado relativo às vagas reservadas, não possui

forma de fazê-lo na prática.

116 Apesar do requisito aqui em análise ser extraído da Convenção relativa a pessoas com

deficiência, elegemos o sexo, no exemplo, como fator de discrímen pois, conforme temos nos posicionado, os requisitos e inovações de um tratado aproveitam a outras vítimas de discriminação. V. nota 107.

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157

Em relação às pessoas com deficiência,

destinatários da convenção que deixou expressa tal garantia, essa situação é muito

freqüente. São absolutamente comuns os tratamentos desiguais, de questionável

finalidade, mas sempre indicados como protetórios, especiais, etc., que não

contemplam nenhuma alternativa que faça valer a possibilidade de recusa por parte

de seus destinatários, sem que estes fiquem privados do direito usufruído pela

maioria. Exemplo bastante dramático dessa situação é a que se relaciona com o

direito de acesso à educação e que será abordado mais adiante.

4.2 Elementos necessários para a implementação do princípio

da igualdade com base em tais convenções e na doutr ina

tradicional

Após combinarmos as mais diversas posturas doutrinárias e

jurisprudenciais, se não levarmos em conta o que consta das convenções

internacionais, vamos verificar que temos como elementos necessários à

implementação do princípio da igualdade:

a) necessidade de identificação do fator adotado como critério

de discriminação (discrímen);

b) não admissão, em regra, de diferenciações fundadas em

atributo, qualidade ou nota intrínseca do sujeito, quais sejam, nacionalidade, raça,

cor, sexo, fé religiosa, credo político, etc.;

c) admissão de exceções a esta regra, desde que as

diferenciações encontrem fundamento lógico, razoável e compatível com o texto

constitucional;

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158

d) eventuais diferenciações devem ser feitas da mesma forma,

em moldes de proporcionalidade, para situações desiguais relativamente iguais ou

semelhantes;

e) possibilidade de adoção de medidas visando o alcance de

condições concretas de igualdade.

As convenções não vão contra esses elementos, mas vão além.

Delas pode ser extraído o quanto segue:

a) não admissão de tratamentos desiguais, com base direta ou

indireta em atributos subjetivos do ser humano (raça, sexo, religião, crença,

deficiência, língua, opinião política, origem nacional, filiação entre outros), que

tenham por objetivo ou resultado a anulação, impedimento, prejuízo ou restrição do

reconhecimento, gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais;

b) admissão de exceções a essa regra que podem ser

identificadas objetivamente, pois dizem respeito apenas à interdição, em caso de

pessoas com deficiência, e à proteção do direito à vida;

c) possibilidade de adoção de medidas especiais (discriminação

positiva) desde que não sejam relacionadas a religião ou crença e que visem à

facilitação do gozo ou exercício do direito, e não a sua negação;

d) necessidade de que tais medidas não impliquem manutenção

de direitos separados; que a pessoa interessada, ou seu responsável, não esteja

obrigada a aceitar tal tratamento diferenciado ou mesmo a preferência; e que

eventuais medidas afirmativas sejam temporárias.

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159

A presença de todos esses elementos é de particular interesse,

como temos alertado durante nosso trabalho, para grupos considerados como

minoratários. É para estes que freqüentemente são adotadas medidas ou políticas

que, à primeira vista, principalmente daquele que não traz em sua vivência a

experiência de uma situação específica de minoria, parecem protetórias e

recomendáveis, mas que, em última análise, acabam importando em negação ou

exercício separado de direitos e, conseqüentemente, em discriminação.

Esses elementos, se não eliminam os riscos de discriminação,

os minimizam substancialmente e auxiliam na adoção de medidas que efetivamente

reduzam as desigualdades. Aliás, a Declaração e Programa de Viena (1993)

determina especificamente a obrigação dos Estados de garantir às pessoas

pertencentes a minorias “o pleno e efetivo exercício de todos os direitos humanos e

liberdades fundamentais, sem qualquer forma de discriminação e em plena

igualdade perante a Lei” ( artigo I, parágrafo 19).

Se reunirmos os elementos apontados pela doutrina tradicional

àqueles que podem ser extraídos das convenções internacionais, teremos:

a) necessidade de identificação do fator adotado como

discrímen;

b) não admissão de tratamentos desiguais, com base direta ou

indireta em atributos subjetivos do ser humano (raça, sexo, religião, crença,

deficiência, língua, opinião política, origem nacional, filiação, entre outros), que

tenham por objetivo ou resultado a anulação, impedimento, prejuízo ou restrição do

reconhecimento, gozo ou exercício, de direito humanos e liberdades fundamentais;

c) admissão de exceções a essa regra, desde que possam ser

identificadas objetivamente, pois dizem respeito apenas à interdição, em caso de

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160 pessoas com deficiência, e à proteção do direito à vida, cabendo ainda, neste último

caso, a análise da razoabilidade da medida;

d) possibilidade de adoção de medidas especiais (discriminação

positiva), desde que não sejam relacionadas a religião ou crença e que visem à

facilitação do gozo ou exercício do direito, e não a sua negação;

e) necessidade de que tais medidas sejam razoáveis, ou

proporcionais; que não impliquem manutenção de direitos separados; que a pessoa

interessada, ou seu responsável, não esteja obrigada a aceitar tal tratamento

diferenciado ou mesmo a preferência; e que eventuais medidas afirmativas sejam

temporárias.

4.2.1 Sua aplicabilidade

Em nosso trabalho, após construirmos uma base relativa

aos princípios em geral e ao princípio da igualdade, analisamos a abertura do

ordenamento jurídico brasileiro aos tratados e convenções internacionais, bem como

a forma de sua incorporação.

Restou caracterizado que as normas internacionais, após

ratificadas, podem ter peso de lei ou de emenda constitucional em nosso país.

Entretanto, não raras vezes essas normas internacionais veiculam princípios,

postulados, que não configuram regras, mas vetores a serem observados em

determinada questão. É o caso das normas que auxiliam o intérprete na aplicação do

princípios da igualdade, presentes nas convenções que citamos.

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161

Voltamos então, à primeira parte do nosso trabalho,

relativa aos princípios, onde tratamos de sua importância, fluidez e localização do

princípio da igualdade entre os princípios gerais de direito.

E ainda, mesmo que as normas aqui estudadas

estivessem esboçadas apenas em documentos não ratificados pelo Brasil, nada

impediria que fossem observadas entre nós, pois teriam, no mínimo, a qualidade de

contribuição doutrinária, que é de suma importância no estudo do princípio da

igualdade. Mas elas, no presente caso, são mais que doutrina. A lição que nos

permite essa afirmação117 é a seguinte:

Reconhece-se hoje, em toda parte, que a vigência dos direitos

humanos independe de sua declaração em constituições, leis e

tratados internacionais, exatamente porque se está diante de

exigências de respeito à dignidade humana, exercidas contra

todos os poderes estabelecidos, oficiais ou não. A doutrina

jurídica contemporânea, de resto, como tem sido

reiteradamente assinalado nesta obra, distingue os direitos

humanos dos direitos fundamentais, na medida em que estes

últimos são justamente os direitos humanos consagrados pelo

Estado mediante normas escritas. É óbvio que a mesma

distinção há de ser admitida no âmbito do direito internacional.

Já se reconhece aliás, de há muito, que a par dos tratados ou

convenções, o direito internacional é também composto pelo

costumes e os princípios gerais de direito, como declara o

Estatuto da Corte Internacional de Justiça (art. 38) –

(COMPARATO, 2005, p. 224).

117 V. ainda a sempre citada nota 107.

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162

Por outro lado, a possibilidade de sua destinação também

a grupos diversos que os previstos no documento original é justificada, por exemplo,

pelo disposto na Convenção Relativa aos Povos Indígenas e Tribais em Países

Independentes (1989). Tal convenção traz importante contribuição ao garantir o

direito à igualdade com respeito às diferenças e é inquestionável que se trata de um

postulado de observância geral, e não apenas em relação aos povos indígenas. É

que, quanto a estes, fazia-se necessária a proclamação expressa de tal direito, nada

impedindo que uma afirmação de tamanha relevância seja de observância geral.

Isto não significa que a ratificação dos documentos

internacionais, a sua forma e status de incorporação sejam irrelevantes. A atitude de

um País nesse sentido tem conseqüências positivas no plano interno e internacional,

bem como é inquestionável que permite uma maior facilidade quando da

argumentação, em qualquer campo, em favor de algum desses direitos. E há ainda o

princípio da vedação do retrocesso em relação aos direitos humanos que demonstra

a importância da ratificação. Uma vez ratificado um documento de tamanha

envergadura, o País que o fez fica impedido de adotar normas novas que lhe forem

contrárias118.

O que queremos deixar claro é que os elementos

apontados no item anterior, independentemente de ratificação (mas se esta existir

tanto melhor), podem ser reunidos com os já admitidos pela doutrina tradicional para

a busca da implementação do princípio da igualdade, especialmente nas hipóteses

em que é preciso averiguar se determinado tratamento desigual, que tem por

destinatário pessoa ou grupo minoritário, configura ou não discriminação.

118 Cf. item 3.4, Parte II, desta dissertação.

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163

4.2.2 Alguns exemplos de tratamentos desiguais

analisados à luz de todos esses elementos

necessários para a implementação do princípio da

igualdade

Neste último item aplicaremos as conclusões

desenvolvidas até aqui a situações concretas que temos presenciado e que refletem

tratamentos diferenciados ou desiguais. São situações polêmicas e que têm

defensores em pólos antagônicos, ambos com argumentos lógicos e, a princípio,

compatíveis com nossa Constituição.

O objetivo dessa análise é demonstrar que os elementos

ou requisitos para a implementação do princípio da igualdade trazidos por

convenções internacionais representam uma contribuição ao estudo desse princípio,

pois podem ser efetivos no alcance da igualdade. Isto ocorre, pois eles nos fornecem

soluções que vão além da análise da razoabilidade, que não é dispensada, mas

tomada como mais um instrumento, e não o único normalmente usado para a

solução de questões tão difíceis.

A nossa técnica será a de ir respondendo perguntas que

extraímos das convenções internacionais e dos ensinamentos doutrinários, e que

podem ser assim resumidas:

a) Qual o fator de diferenciação (discrímen)?

b) Qual o direito visado?

c) A diferenciação feita leva a qualquer forma de negação

ao exercício de direitos?

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164

d) Se positiva a resposta acima, trata-se de diferenciação

feita como única forma de se preservar o direito à vida? Em caso positivo, há

razoabilidade na escolha desse tipo de diferenciação?

Se a resposta ao item “c”, logo acima, for negativa, é

porque se trata de diferenciação que, ao invés de negar o exercício de direito, é feita

visando a facilitação ao seu acesso. Indaga-se, então:

a) Há justificativas para a sua adoção (razoabilidade)?

b) O tratamento diferenciado acarreta o exercício

separado de direitos, ou ainda, fere em si mesmo o direito à igualdade?

c) A pessoa que recebe o tratamento diferenciado tem a

faculdade de recusá-lo sem que isso implique a frustração do acesso ao direito

visado?

4.2.2.1 Possibilidade de discricionariedade para

organização ou não do serviço militar feminino

A Constituição Federal, em seu artigo 143,

estabelece que o serviço militar é obrigatório, nos termos da lei, mas o torna isento

para mulheres, em tempo de paz (art. 143, § 2º). Ela não proibiu que as mulheres

nele se inscrevam .

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165

A lei que regula o serviço militar119, no entanto,

não contemplou essa faculdade para as mulheres. Isto veio a ocorrer apenas em

1994, por meio do Decreto 1.295, de 26.10.1994, que acrescentou o § 3º, ao art. 2º,

do Decreto 63.704/68, responsável pela regulamentação da Lei 4.375/64 (Lei do

Serviço Militar), assim dispondo: “é permitida a prestação do Serviço Militar, na

forma deste regulamento, pelas mulheres que forem voluntárias”.

Foi acrescentado, porém, o §4º, ao mesmo artigo,

com a seguinte redação: “o Serviço Militar a que se refere o parágrafo anterior

poderá ser adotado por cada Força Armada segundo seus critérios de conveniência

e oportunidade”.

Ocorre que tal previsão, a de admissão de

prestação do serviço militar de acordo com “critérios de conveniência e

oportunidade” de cada Força Armada, não existe em relação ao serviço militar

masculino, que segue regras muito precisas. Isto faz com que o serviço militar

feminino possa ter regras variáveis, de acordo com cada Força Armada, que

admitem até a negativa de inscrição de mulheres voluntárias em certas unidades.

Para nós é indiscutível que se trata de uma forma

de tratamento desigual. Vejamos se fere ou não o princípio da igualdade, com base

nos critérios apontados no item anterior.

Qual o fator de diferenciação (discrímen)?

O elemento de discrímen é o sexo, logo, é preciso

bastante cautela. Como já vimos, o sexo, a raça, a condição física, entre outros

fatores subjetivos, são motivos que, até segunda ordem, não podem ser tomados

como causa da diferenciação. Assim, uma vez identificado que o tratamento

119 Trata-se da Lei do Serviço Militar, de nº 4.375, de 17.08.1964.

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166 desigual teve por base justamente um desses fatores, é preciso analisar se tal

diferenciação cumpriu os requisitos apontados tanto pela doutrina, quanto pelas

convenções, que lhe autorizam.

Qual o direito visado?

Bem, o serviço militar, antes de ser uma

obrigação, é um direito dos cidadãos que querem participar das Forças Armadas

para trabalhar na defesa da Pátria (art. 142, CF). Não obstante a Constituição ter

isentado as mulheres da obrigatoriedade desse serviço, não as proibiu de nele se

inscreverem.

O fato de a Constituição ter estabelecido que o

serviço militar trata-se de uma obrigação para homens não eclesiásticos, não

significa que ele tenha deixado de ser um direito para os demais cidadãos

brasileiros, entres eles, as mulheres.

A diferenciação feita leva a qualquer forma de

negação ao exercício de direitos?

Respondemos, neste caso, que sim, pois trata-se

de diferenciação que não preserva o acesso a direitos. Ora, as mulheres têm o

direito de se inscrever no Serviço Militar. A facultatividade que pode se depreender

do texto constitucional é para elas, e não para as Forças Armadas. A possibilidade

de discricionariedade para recebê-las ou não implica frustração do direito de se

inscreverem.

Com a resposta afirmativa no sentido de que tal

diferenciação leva à negação de direitos, nem precisamos passar à análise de

outros requisitos, já que o único caso em que se pode admitir uma diferenciação que

leve à negação de direitos é o da proteção do direito à vida. O que não ocorre na

hipótese em tela.

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167

Se fôssemos seguir apenas a linha do que

determina a doutrina e jurisprudência tradicionais, a nossa pergunta básica seria:

existe motivo lógico para se prever que o serviço militar facultativo, ou seja, quando

voltado para mulheres, pode ser organizado segundo critérios de conveniência e

oportunidade de cada Força Armada?

Talvez a razoabilidade esteja presente, pois os

locais destinados ao serviço militar estão sempre preparados para homens, que

compõem uma esmagadora maioria. Logo, poder-se-ia alegar que o ônus para a

Administração seria incompatível com o pequeno número de mulheres que se

inscrevem voluntariamente em tal serviço.

Mas basta haver razoabilidade? Pensamos que

não, até porque, da mesma forma que tivemos um argumento para afirmar a

presença dela, poderíamos ter outro para negá-la. Por exemplo: não há

razoabilidade possível nessa previsão de discricionariedade pois, uma vez que a

Constituição não proíbe tal serviço para a mulheres, cabe às Forças Armadas

receberem as voluntárias, seja qual for o número de inscritas. A razoabilidade deve,

pois, ceder lugar às determinações constitucionais relativas ao direito à igualdade, à

dignidade e ao exercício da cidadania.

A falta de estrutura de muitos locais para receber

homens e mulheres pode até ser motivo que justifique a suspensão momentânea do

serviço, ou a concessão de um prazo para que as unidades venham a se adaptar,

mas jamais poderia justificar a válvula constante existente na legislação para negar

as inscrições de mulheres com base neste argumento. Além disso, a falta de

estrutura para receber mulheres poderia até ser justa causa em 1988, 1989, em

datas próximas à Constituição que permite essa construção, mas não muitos anos

após120.

120 No Exército, por exemplo, apenas no ano de 1996 é que foi instituído o Serviço Militar Feminino

Voluntário, assim mesmo voltado para médicas, dentistas, farmacêuticas, veterinárias e

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168

Afirmamos, portanto, que a previsão constante do

§ 4º, do art. 2º, do Decreto 63.704/68, segundo a qual o Serviço Militar voluntário

feminino “poderá ser adotado por cada Força Armada segundo seus critérios de

conveniência e oportunidade”, fere o princípio da igualdade e é, conseqüentemente,

inconstitucional.

4.2.2.2 Doação de sangue: proibição para

homossexuais

A Resolução nº 153/2004, da Anvisa – Agência

Nacional de Vigilância Sanitária -, dispõe que estão impedidas de doar sangue as

pessoas que estejam em situação, ou tenham comportamento, de risco acrescido.

Entre essas situações consta, além da proibição

para quem teve relações sexuais com parceiros ocasionais, sem o uso de

preservativos, a proibição de doação feita por “homens que tiveram relações sexuais

com outros homens ou parceiras destes”, nos últimos doze meses (alínea “d”, item

B.5.2.7.2), independentemente de tratar-se de parceiros conhecidos e do uso ou não

de preservativos.

Identificamos que há aqui um tratamento

diferenciado, pois pessoas heterossexuais estão impedidas de doar sangue,

basicamente, apenas se declararem que são profissionais do sexo, ou que tiveram

parceiros ocasionais sem o uso de preservativos. Se o heterossexual declara que

enfermeiras de nível superior. Fora da área da saúde, a incorporação deu-se em 1998, mas apenas para profissionais de nível superior (advogadas, administradoras de empresas, contadoras, professoras, analistas de sistemas, engenheiras, arquitetas, jornalistas, entre outras áreas de ciências humanas e exatas, de acordo com as da Instituição). No mesmo ano iniciou-se, também, o Serviço Militar Feminino voluntário para auxiliares e técnicas de enfermagem. Essas voluntárias são formadas Sargentos de enfermagem (informações constantes de http://www.exercito.gov.br/02Ingres/mulhhist.htm, acesso em 05.02.2006).

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169 tem relações sempre com o mesmo parceiro, que não tem motivos para pensar que

este tem comportamento de risco, pode doar sangue, mesmo que tenha tido

relações recentes sem o uso de preservativo. Mas pessoas com orientação

homossexual, ainda que informem ter um parceiro fixo, sem comportamento de risco

e que use preservativo, fica impedida de doar se sua relação tiver ocorrido nos

últimos 12 (meses).

Vejamos se há ou não discriminação.

Qual o fator de diferenciação (discrímen)?

Trata-se de diferenciação que tem por fator

discrímen a orientação sexual. Apesar de este fator não constar expressamente das

convenções e da Constituição brasileira, o rol de fatores subjetivos pelos quais é

vedada a discriminação é meramente exemplificativo. O que está em jogo, em última

análise é, novamente, o direito à dignidade e à igualdade.

Qual o direito visado?

O direito de doar sangue, de participar de

iniciativas que levem à preservação da vida, ao exercício da solidariedade.

É certo que se trata de direito que comporta

requisitos, pois não é qualquer pessoa que se encontra apta a doar sangue: os

portadores de certos vícios, ou que estão abaixo do peso mínimo exigido, entre

outros, mas preenchidos os requisitos, há sim o direito de doar. O que queremos

saber é se o fato de ser homossexual, sexualmente ativo, coloca a pessoa entre os

indivíduos inaptos.

A diferenciação feita leva a qualquer forma de

negação ao exercício de direitos?

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170

Sem dúvidas, leva à negação de direitos. Portanto

é, a princípio, vedada, conforme temos apontado até aqui.

Como foi positiva a resposta acima, cabe a

seguinte indagação: trata-se de diferenciação feita como única forma de se

preservar o direito à vida? Há razoabilidade na opção por esse tipo de

diferenciação?

Sim, o motivo dessa negativa de direitos é

justamente a proteção do direito à vida já que, acredita-se, tais pessoas seriam mais

suscetíveis a doenças sexualmente transmissíveis como a Aids.

Mas, por estarmos diante de uma hipótese rara

em que a negação de direitos deve ser admitida como possível, entendemos que

agora, sim, tem lugar a indagação relativa à plausibilidade ou razoabilidade dessa

diferenciação. Precisamos saber se negar aos homossexuais o direito de doarem

seu sangue realmente garante maior segurança, levando à preservação da vida de

quem irá receber esse sangue.

A realidade atual demonstra que não. Por

exemplo: o índice de mulheres, heterossexuais, casadas e que têm apenas um

parceiro sexual, infectadas pelo vírus HIV, tem alcançado níveis alarmantes e seu

sangue não é descartado nos postos de coleta.

A evolução científica presente nos exames a que

estão submetidas as amostras de sangue doadas é que deve garantir a segurança

necessária, independentemente da orientação sexual do doador. Existe, é verdade,

um lapso temporal de algumas semanas, entre a relação sexual e o momento a

partir do qual os exames, mesmo os mais sofisticados, são capazes de acusar a

presença do vírus. Ora, o sangue de qualquer pessoa que declare ter tido relações

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171 sexuais sem preservativo em tal período deve ser descartado. Não se trata de

assunto sobre o qual possa haver concessões de qualquer natureza.

Logo, o que constatamos é que não há

razoabilidade na proibição de homossexuais serem doadores de sangue. Resta,

pois, ferido o princípio da igualdade.

Não desconhecemos que há um grande

movimento pela admissão do “sangue gay” 121 e que, graças a isso, as informações

expressas em sítios oficiais não são mais expressas quanto a esta proibição,

falando-se apenas, genericamente, em proibição para pessoas pertencentes a

“grupos” de risco. Mas a discriminação está expressa na Resolução 153/2004, citada

no início.

Melhor seria, e totalmente consentâneo com o

princípio da igualdade, se os impedimentos constantes da referida Resolução fosse

no sentido de não aceitação de sangue oriundo de pessoas que têm

comportamentos de risco, independentemente da orientação sexual. Ora, o

comportamento de risco pode estar presente tanto em relações homossexuais como

nas heterossexuais122. A manutenção da normatização existente nesse sentido

acaba levando a discriminações e à não garantia do sangue doado.

121 Por exemplo, o dia 22/11 é considerado pelo movimento respectivo como o Dia Nacional de

Doação de Sangue Homossexual. 122 A respeito da discriminação contra homossexuais no momento da doação do sangue v., entre

outros, sítios como mixbrasil.uol.com.br/cultura/especiais/bcosangue/bcosangue.asp, www.midiaindependente.org/en/blue/2003/01/45774.shtml , ambos acessados em 05.02.2006, os quais contêm, além dos argumentos aqui expostos e dados estatísticos, depoimentos recentes de acontecimentos reais nesse sentido.

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172

4.2.2.3 Atendimento educacional especializado ou

educação especial para alunos com

deficiência

Qual o fator de diferenciação (discrímen)?

A deficiência, portanto, é vedada a diferenciação,

a princípio.

Qual o direito visado?

É o direito à educação. Direito humano,

fundamental, o que reforça a possibilidade de existência de discriminação.

Entretanto, desde já, o simples fato de se referir a pessoas com deficiência, já faz

com que surja de imediato a noção de é uma diferenciação mais que válida,

necessária, de tão acostumados que todos estão a identificar tais pessoas como

titulares de um ensino especial.

Portanto, é preciso discorrermos um pouco mais

sobre o direito que está em jogo e do qual as pessoas com deficiência também são

titulares.

O direito de todos à educação tem

peculiaridades: não é qualquer tipo de acesso à educação que atende o princípio da

igualdade de acesso e permanência em escola (art. 206, I, CF), bem como a

garantia de ensino fundamental obrigatório (art. 208, I, CF).

Em se tratando de crianças a adolescentes,

principalmente, o seu direito à educação só estará totalmente preenchido: a) se ela

visar o pleno desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da

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173 cidadania, entre outros objetivos (art. 205, CF); b) se for ministrada em

estabelecimentos oficiais de ensino, em caso do ensino básico e superior, nos

termos de toda a legislação de regência; c) se tais estabelecimentos não forem

separados por grupos de pessoas, nos termos da Convenção relativa à Luta contra a

Discriminação no campo do Ensino (1960).

É a este direito que as pessoas com deficiência

também têm direito. É certo que além desses objetivos, requisitos e garantias, nossa

Constituição garante, agora apenas para as pessoas com deficiência, o atendimento

educacional especializado.

Trata-se, pois, de tratamento diferenciado, que

tem sede constitucional, mas que não exclui as pessoas com deficiência dos demais

princípios e garantias relativos à educação acima citado. Portanto, ele será válido

apenas e tão-somente se realmente levar à concretização do direito à educação.

Vamos às demais perguntas.

A diferenciação feita leva a qualquer forma de

negação ao exercício de direitos?

Ainda antes de responder a esta questão, é

preciso esclarecer que o atendimento educacional especializado, chamado pela Lei

de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de educação especial, apresenta duas

facetas.

A primeira, e mais conhecida, é a que levou à

organização de escolas separadas, chamadas de especiais ou especializadas,

voltadas apenas para pessoas com deficiência, nas quais normalmente se pode

cursar o ensino infantil e o ensino fundamental, ou seja, substituem totalmente o

acesso a uma escola comum. Para os defensores desse tipo de ensino segregado, o

aluno ali matriculado está tendo acesso à educação, pois eles desconsideram os

requisitos que mencionamos acima para esta, extraídos da Constituição e dos

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174 tratados e convenções internacionais pertinentes, inclusive a Declaração Universal

de Direitos Humanos. Para os defensores dessa linha de pensamento, a resposta é

negativa. O atendimento educacional especializado não nega direitos, pois o aluno

está tendo acesso a algum ensino.

A segunda faceta da educação especial, e que

vem sendo bastante propagada pelos movimentos que defendem a inclusão escolar,

ou seja, a freqüência a um mesmo ambiente por alunos com e sem deficiência, entre

outras características, é a do atendimento educacional especializado como apoio e

complemento, destinado a oferecer aquilo que há de específico na formação de um

aluno com deficiência, sem impedi-lo de freqüentar, quando na idade própria,

ambientes comuns de ensino, em estabelecimentos oficiais123.

Para os que entendem o atendimento educacional

especializado, ou educação especial, dessa forma, como apoio, também não há

negação de acesso a direitos.

A negação de direitos ocorre apenas quando tal

atendimento acaba substituindo totalmente os serviços oficiais comuns. Nesta

hipótese, fica caracterizada a negação ou restrição, pois é direito de toda criança,

mesmo que apresente características muito diferentes da maioria, conviver com sua

geração, sendo que o espaço privilegiado para que isto ocorra é a escola.

Crenças tradicionais no sentido de que o

ambiente de ensino, quanto mais especializado, melhor; no sentido da obtenção de

sucesso com base na concorrência entre os alunos por notas, entre outros fatores,

vêm revelando-se insuficientes e até prejudiciais aos alunos em geral.

123 Estas e outras informações sobre inclusão escolar de alunos com deficiência podem ser obtidas

por meio do documento intitulado Acesso de alunos com deficiência às classes e escolas comuns da rede regular, disponível em /www.pgr.mpf.gov.br/pgr/pfdc/publicacoes/cartilha_acesso_deficientes.pdf, acesso em 05.02.2006.

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175

O que se persegue, especialmente em fase de

ensino fundamental, é a formação humana e a preparação emocional do aluno para

prosseguir nos estudos. Não se descuida da matéria, mas esta deixa de ser o eixo

principal da escola que a Constituição brasileira de 1988 previu, adotando uma

tendência mundial. As escolas que seguem essa tendência recebem com sucesso a

todos os alunos, inclusive os que têm algum tipo de deficiência.

As escolas tradicionais alegam um antigo

despreparo para receber alunos com deficiência visual, auditiva, mental e até física,

mas nada ou muito pouco fazem no sentido de virem a se preparar. Há também uma

constante alegação de que essa inclusão escolar é muito boa, mas não pode servir

para o aluno que tenha deficiências muito graves. Ora, alunos em tais condições

estão à procura de tratamentos relacionados à área da saúde e são em número

bastante reduzido. As crianças que vêm sendo recusadas constantemente nas

escolas são crianças cegas, surdas, com limitações intelectuais e/ou físicas, mas

não associadas a doenças. São, apenas, crianças com deficiência.

O fato é que a presença desses alunos em salas

de aula comuns pode até ser novidade, mas é um direito e, no tocante ao ensino

fundamental, também um dever do Estado e de seus responsáveis. Dessa maneira,

o atendimento educacional especializado, quando ministrado de forma a impedir ou

restringir esse direito, fere o princípio da igualdade.

Mas, como já dissemos, há aqueles (e são a

maioria) que não levam em conta a importância da convivência entre as crianças e

adolescentes, considerando que a freqüência exclusiva a uma escola especial

atende o direito de acesso à educação.

Continuemos nossas indagações analisando cada

uma dessas posturas até onde for possível.

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176

Há justificativas para a sua adoção

(razoabilidade)?

Sim, na grande maioria das vezes. Os alunos com

deficiência têm limitações físicas, sensoriais ou intelectuais significativas por

definição e, muitas vezes, para poderem se relacionar com o ambiente, necessitam

de instrumentos e apoios que os demais alunos não necessitam.

Trata-se de tratamento diferenciado que implica

exercício separado de direitos, ou que fere em si mesmo o direito à igualdade?

A admissão de educação especial, totalmente

substitutiva do ensino comum, como sistema de ensino à parte, especial, não

subsiste a esta indagação porque implica, sim, exercício de “direitos separados”.

De acordo com esta postura, amplamente

admitida pelas autoridades, nos deparamos com escolas de ensino fundamental e

escolas de ensino fundamental especial, estas últimas voltadas para pessoas com

deficiência e/ou recusadas pelas escolas de ensino comum. Trata-se de exercício

separado de direitos e mais, trata-se de conduta consistente em “instituir ou manter

sistemas ou estabelecimentos de ensino separados para pessoas ou grupos de

pessoas”, já vedada pelo Artigo I da vetusta Convenção relativa à Luta contra a

Discriminação no campo do Ensino, de 15.12.1960, ratificada pelo Brasil em

19.04.1968 e promulgada pelo Decreto nº 63.223, 6.09.1968.

Sendo assim, a partir daqui, não nos deteremos

mais em considerações sobre a possibilidade de uma educação especial substitutiva

dos níveis de escolarização, pois ela é incompatível com o princípio da igualdade.

Vejamos o atendimento educacional especializado, ou educação especial, como

apoio e complemento, que não impede o acesso às turmas comuns.

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177

Bem, se esse tipo de atendimento não impede

acesso às turmas comuns, não há que se falar em negação de direitos, como já

afirmamos. E também não se trata do exercício separado de direitos, tendo em vista

que não existem cursos semelhantes voltados para pessoas que não tenham

deficiência. Quando estas querem aprender o braile, a Língua de Sinais, elas

procuram escolas e instituições especializadas e podem se matricular normalmente.

É preciso ainda que o atendimento educacional

especializado não gere uma situação por si só constrangedora para quem recebe o

tratamento desigual. Por exemplo: exigir que uma criança com deficiência, para que

possa freqüentar uma turma comum, seja permanentemente acompanhada por

assistentes, até em situações em que isto é plenamente dispensável (recreio,

brincadeiras, etc.).

Finalmente: há obrigatoriedade de aceitação do

atendimento educacional especializado?

Não. O ensino que nossa Constituição prevê

como obrigatório é o fundamental, o atendimento educacional especializado, bem

como qualquer um dos apoios e instrumentos que ele compreende, é uma faculdade

do aluno ou seus responsáveis. Sendo assim, ele jamais poderia ser imposto pelo

sistema de ensino, ou eleito como condição para aceitação da matrícula do aluno em

estabelecimento comum124, sob pena de acarretar restrição ou imposição de

dificuldade no acesso ao direito à educação.

Sabemos que tais considerações estão bastante

longe do que vem sendo praticado na maioria das escolas brasileiras, as quais se

acham no direito de matricular apenas os alunos que julgam terem condições de

freqüentar suas salas de aula,como se não bastasse o fato de ser uma criança ou

124 Isto ocorre com bastante freqüência e normalmente são terapias ou tratamentos especializados,

onerosos e não disponíveis na rede pública, e nem sempre são os mais recomendáveis.

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178 adolescente na idade própria para essa matrícula. O pior é que, mesmo as

autoridades consultadas sobre o tema, quando se deparam com a recusa de um

aluno com deficiência por uma escola que, como sempre, se diz “despreparada” para

recebê-lo, aceitam essa recusa como sendo razoável e não adotam nenhuma

medida para garantir que essa preparação (que poderia ter início com a matrícula

daquele aluno) um dia venha a ocorrer.

Assim, mais uma vez, louvamos os termos das

convenções internacionais, os quais, caso venham a ser observados, principalmente

em relação às pessoas com deficiência, prometem um significativo avanço no

acesso aos seus direitos, tanto gerais como específicos.

4.2.2.4 Quotas para afrodescendentes em

vestibulares

E agora um último, e não menos polêmico,

exemplo de tratamento diferenciado.

Qual o fator de diferenciação (discrímen)?

A raça. Então, repetimos: inicialmente, é vedada a

diferenciação.

Qual o direito visado?

O direito de acesso à educação, em nível de

ensino superior, que tem como peculiaridade o acesso via mérito, sobre o qual

iremos discorrer mais adiante.

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A diferenciação feita leva a qualquer forma de

negação ao exercício de direitos?

Trata-se de diferenciação que, ao invés de negar

o acesso ao direito, está apenas facilitando este acesso. É importante também

notarmos que, configurando-se numa medida afirmativa, deve ser adotada em

caráter justificado125 e temporário. Porém, isto ainda não basta.

Já que falamos em facilitação do acesso, é

preciso observar que o direito aqui visado exige o mérito do aluno para o seu

acesso. Vejamos se o princípio do mérito fica ferido.

A existência de quotas, se corretamente realizado

o certame, não dispensa o candidato de alcançar uma nota mínima. Além disso, a

variação de notas entre os candidatos que alcançaram a nota mínima é, muitas

vezes, de décimos.

Portanto, alguma facilidade nesse sentido, para

quem tirou apenas décimos a menos, tendo um histórico de vida que implica maior

dificuldade de acesso ao ensino, é plenamente justificada. A nota é um critério

objetivo, mas não pode ser definitivo, pois esses décimos a menos não representam

falta de qualificação. Ao contrário, representam que o titular do direito à reserva é tão

ou mais capaz do que seu concorrente que, não obstante tenha um histórico de vida

com maiores facilidades no acesso à educação e cultura, tirou praticamente a

mesma nota que outro que não teve as mesmas facilidades.

Assim, nossa conclusão é a de que não há

qualquer ofensa ao acesso ao ensino superior com base no mérito, pois ele está

presente.

125 V. a questão sobre a razoabilidade ou não dessa medida, mais adiante.

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180

Há justificativas para a sua adoção

(razoabilidade)?

A nosso ver a existência de quotas é

absolutamente razoável, sejam elas para alunos de escolas públicas e/ou para

afrodescendentes, também oriundos de escolas públicas. Neste último caso,

obviamente não há qualquer relação com capacidades intelectuais. É que as

estatísticas não deixam dúvidas de que há a necessidade de atuação positiva do

Estado no sentido de melhorar os índices de acesso da população afrodescendente

ao ensino superior, pois os fatos históricos fizeram com que ficassem em nítida

posição de desvantagem na sociedade brasileira em relação a pessoas de outras

raças.

Entendemos ainda, com base nas estatísticas,

que, se houver quota para aluno de escola pública, ela deve ser mais acentuada em

se tratando de afrodescendentes na mesma situação, de pessoas com deficiência ou

descendentes de populações indígenas126. Estamos destacando neste trabalho a

questão da quota para afrodescendentes, pois esta é a que encontra maiores

resistências e opositores.

Também concordamos que é urgente que se

melhore a qualidade do ensino público e isso deve ser feito, mas tal iniciativa não

126 Nem se alegue que pessoas oriundas de outras raças, e que hoje representam a maioria dos que

têm acesso ao ensino superior, ficariam tolhidas em seu direito, o que tornaria esse tipo de medida afirmativa extremamente onerosa. O que se procura corrigir com as quotas, com um pouco mais de rapidez e eficácia, é o extremo desequilíbrio que verificamos, na atualidade, entre os brasileiros e que tem por motivo direto a raça, ou outro fator como a deficiência. Ora, estamos falando de escolas públicas. É muito fácil constatar que as pessoas brancas, por exemplo, que freqüentam o ensino superior em escolas públicas, e que tiraram notas não muito altas no vestibular, mas o suficiente para ter acesso a elas, têm condições financeiras para freqüentar o ensino superior em outras faculdades, ou condições de arrumar um trabalho, de nível médio, que lhes possibilite pagar uma mensalidade. Mas isto não ocorre em relação a afrodescendentes, a indígenas e àqueles que têm algum tipo de deficiência. Caso não entrem em uma faculdade pública, dificilmente possuirão condições financeiras para pagar uma instituição de ensino privado. As estatísticas também demonstram que o tipo de emprego que uma pessoa afrodescendente consegue, por exemplo, tendo apenas nível médio, geralmente não lhe proporciona salário suficiente para o pagamento de tal mensalidade.

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181 dispensa imediatamente as quotas para afrodescendentes. Os dados concretos

demonstram que brancos oriundos de escolas públicas têm maior acesso ao ensino

superior que afrodescendentes na mesma situação. A justificativa é a mesma: o

histórico de toda uma geração. Logo, se melhorada a qualidade do ensino público, a

discrepância entre afrodescendentes e não afro permanecerá. A quota, por sua vez,

é uma medida que traz efeitos imediatos e, diante da gravidade da desigualdade

social que tem por causa direta a raça, é salutar que seja adotada. Mas sempre,

afirmamos, em caráter temporário e acompanhada das políticas públicas

necessárias.

Ainda em relação à razoabilidade dessa medida

afirmativa, convém analisarmos a alegação de que se trata de uma medida

desprovida de objetividade. Argumenta-se que, após tanta miscigenação, não há

como definir-se quem é ou não afrodescendente no Brasil, atualmente.

Esta é, porém, uma questão superada com base

no critério da autodeclaração que, no entanto, é muito mal compreendida. A

autodeclaração é a solução necessária para que ninguém imponha ao outro

determinada qualificação. É somente a própria pessoa que pode dizer se é

afrodescendente, o que não impede que essa sua informação deva ser comprovada,

até por meio de fotos, se isto for necessário. Em caso de se verificar,

inequivocamente, que a afirmação foi inverídica, nada proíbe que a inscrição do

candidato seja desconsiderada para efeito da reserva.

O tratamento diferenciado implica exercício

separado de direitos, ou ainda, fere em si mesmo o direito à igualdade?

Não, ele não implica exercício separado de

direitos. Caso o candidato passe no vestibular, independentemente de a aprovação

ter-se dado em virtude de quotas ou não, freqüentará a mesma escola, a mesma

sala de aula que os demais candidatos.

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182

A pessoa que recebe o tratamento diferenciado

tem a faculdade de recusá-lo sem que isso implique frustração do acesso ao direito

visado?

Depende da maneira como o vestibular for

organizado. É preciso que, mesmo se a pessoa quiser se qualificar como

afrodescendente, ainda conste a possibilidade de aceitar ou não ser candidato às

vagas reservadas. Se isto ocorrer, não há ofensa ao princípio da igualdade.

Resta demonstrado, portanto, que numa análise

objetiva, mesmo uma matéria tão polêmica é facilmente solucionada. O problema,

entretanto, é que muitas pessoas têm profundas resistências a qualquer um desses

temas, especialmente à chamada quota em vestibulares e, mesmo lendo essa

seqüência de respostas, entendem que não há razoabilidade, nem justificativa, na

existência de quotas para afrodescendentes em vestibulares.

Para estas pessoas, poderíamos continuar

discorrendo a favor das quotas, que não conseguiríamos convencê-las. Por isso,

mais uma vez, constatamos a insuficiência do critério da razoabilidade para

admissão ou não de tratamentos desiguais, pois ele é extremamente mutável, de

acordo com cada intérprete.

O certo é que, tecnicamente, esperamos ter

demonstrado o seguinte: não há nada que impeça a adoção de quotas em

vestibulares para afrodescendentes. É uma diferenciação válida, amplamente

admitida pelas convenções internacionais e consentânea com a Constituição

brasileira.

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CONCLUSÕES

1. Princípios são verdadeiros comandos de direito, de importância superior às

demais normas jurídicas, que são as regras. A função transcendental dos

princípios é ser guia na atividade interpretativa, sendo que eles próprios podem

ser objetos de interpretação.

2. Entre os princípios jurídicos, os princípios constitucionais, explícitos ou implícitos,

são os mais importantes. O princípio da igualdade, por sua vez, localiza-se entre

os princípios gerais de direito, que estão positivados na Constituição brasileira de

1988, inclusive entre os princípios fundamentais.

3. Entender a democracia, com base em seu histórico, é importante para o estudo

do princípio da igualdade, pois fica claro que a democracia, que tem como

pressuposto a soberania popular, deve implicar igualdade e liberdade em todos os

domínios, com vistas à realização de justiça social.

4. A igualdade, portanto, deve ser justa. O problema em se alcançar a “Justiça” na

igualdade é que a simples proibição do arbítrio é insuficiente para este escopo,

fazendo-se necessária a aplicação de critérios materiais objetivos, que

possibilitem a valoração das relações de igualdade ou desigualdade. A dificuldade

que persiste, no entanto, é que a análise da existência ou não de um fundamento

razoável para o tratamento diferenciado entre seres humanos implica, novamente,

a necessidade de valoração.

5. A proposição de Aristóteles, segundo a qual basta que se trate igualmente os

iguais e desigualmente os desiguais para o alcance da Justiça, é dotada de

extremo valor, mas ela comporta aprimoramentos. É o que tem ocorrido,

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principalmente com base em estudos que, muito longe de negá-la, a têm sempre

como “ponto de partida”.

6. Tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, chega-se à conclusão de que, para

aplicar-se o princípio da igualdade, há a necessidade de um juízo de valor, de se

verificar a razão, a proporção, entre situações. Este juízo é impregnado por uma

carga subjetiva do intérprete, o que pode levar a decisões injustas, especialmente

no tocante a minorias. É com estes grupos vulneráveis que certas convenções

internacionais se preocupam, objetivando eliminar toda forma de discriminação.

7. As definições de discriminação constantes em documentos internacionais

contemplam critérios que minimizam as conseqüências indesejáveis, quando da

realização de juízos de valor por terceiros, na aplicação do princípio da igualdade.

8. A adoção dessas convenções é muito importante, pois: a) se o País pretender

editar norma contrária a texto de tratado já incorporado ao seu ordenamento

jurídico, mesmo que apenas com status de lei ordinária, deve, antes, desvincular-

se da obrigação assumida internacionalmente, sob pena de incorrer nas

conseqüências pelo seu descumprimento; b) em caso de tratados e convenções

que dizem respeito a direitos humanos, como os que visam a não discriminação,

até a possibilidade de renúncia é vedada, tendo em vista o princípio do não

retrocesso.

9. Os postulados veiculados por convenções e tratados internacionais, relativos aos

direitos humanos, especialmente ao princípio da igualdade, devem ser

observados independentemente de ratificação, pois são verdadeiros princípios

gerais de direito.

10.Com base nas definições de discriminação e demais termos constantes das

convenções internacionais, é possível afirmar que:

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- basta o resultado para caracterização da conduta discriminatória, sendo

irrelevante se ela teve ou não propósito ou objetivo de negar o acesso a direitos;

- são vedados tratamentos que acarretem a anulação, impedimento, prejuízo ou

restrição do reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de

direitos humanos e liberdades fundamentais, e que tenham por fundamento,

direto ou indireto, a raça, sexo, religião, crença ou deficiência;

- são admitidos tratamentos diferenciados, mesmo que fundados nas condições

acima indicadas e que impliquem negação de direitos, somente em caso de

interdição para pessoas com deficiência e, nas demais situações, apenas se for a

única forma de se proteger o direito à vida;

- também são admitidos os tratamentos diferenciados que implicam facilitação de

acesso a direitos;

- os tratamentos preferenciais, porém, são vedados se o motivo for a religião ou

crença;

- são condições para que a diferenciação que visa facilitar o acesso a direitos, ou

preferência, não implique discriminação: a) as medidas afirmativas devem ser

temporárias; b) a diferenciação ou preferência não pode implicar manutenção de

direitos separados; c) a pessoa diferenciada não pode ser obrigada a aceitar a

diferenciação ou preferência.

11.Os elementos apontados no item anterior podem ser reunidos com os já

admitidos pela doutrina tradicional, para a busca da implementação do princípio

da igualdade, especialmente nas hipóteses em que é preciso averiguar se

determinado tratamento desigual, que tem por destinatário pessoa ou grupo

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minoritário, configura ou não discriminação. Teremos, então, como elementos

necessários para a implementação do princípio da igualdade:

- necessidade de identificação do fator adotado como discrímen;

- não admissão de tratamentos desiguais, com base direta ou indireta em

atributos subjetivos do ser humano (raça, sexo, religião, crença, deficiência,

língua, opinião política, origem nacional, filiação, entre outros), que tenham por

objetivo ou resultado a anulação, impedimento, prejuízo ou restrição do

reconhecimento, gozo ou exercício, de direitos humanos e liberdades

fundamentais;

- admissão de exceções a essa regra, desde que possam ser identificadas

objetivamente, pois dizem respeito apenas à interdição, em caso de pessoas

com deficiência, e à proteção do direito à vida, cabendo ainda, neste último caso,

a análise da razoabilidade da medida;

- possibilidade de adoção de medidas especiais (discriminação positiva), desde

que não sejam relacionadas a religião ou crença e que visem à facilitação do

gozo ou exercício do direito, e não a sua negação;

- necessidade de que tais medidas sejam razoáveis, ou proporcionais; que não

impliquem manutenção de direitos separados; que a pessoa interessada, ou seu

responsável, não esteja obrigada a aceitar tal tratamento diferenciado ou mesmo

a preferência; e que eventuais medidas afirmativas sejam temporárias.

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