filosofia do direito ii unidade

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Sumário 1. Aula 14.02.2013.............................................1 2. Aula 06.03.2013.............................................5 3. Aula 07.03.2013............................................16 4. Aula 13.03.2013............................................17 5. Aula 14.03.2013............................................23 6. Aula 27.03.2013............................................25 7. Aula 03.04.2013............................................37 1. Aula 14.02.2013 Na tentativa de colocar uma lupa agora sobre determinados aspectos desse projeto moderno, então vou discutir com vocês, do ponto de vista institucional e político o que isso representa, ou seja, o que representa esse projeto moderno. Bom, a gente sabe que existe uma forma peculiar de organização social e política que caracteriza a modernidade, não é? Como é que as pessoas se organizam politicamente na modernidade? Será que em tribos? Será que em feudos? Ou em cidades? Ou em Estados? Parece que todas essas experiências são experiências, sem dúvida nenhuma, do que a gente pode chamar de experiências conhecidas pela história, e por tanto, válidas, de organização política e social. Uma tribo, por mais rudimentar que seja, é uma forma de organização social, mas não dá pra dizer que uma tribo é o modelo por excelência, o modelo típico de organização dos povos na modernidade. A modernidade caracteriza-se pela construção de mecanismos de racionalização de exercício do poder que culmina com o surgimento de uma forma até então desconhecida de exercício de poder. Ou seja, esse modelo ao qual eu quero me referir 1

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Page 1: Filosofia Do Direito II Unidade

Sumário1. Aula 14.02.2013...................................................................................................................1

2. Aula 06.03.2013...................................................................................................................5

3. Aula 07.03.2013.................................................................................................................16

4. Aula 13.03.2013.................................................................................................................17

5. Aula 14.03.2013.................................................................................................................23

6. Aula 27.03.2013.................................................................................................................25

7. Aula 03.04.2013.................................................................................................................37

1. Aula 14.02.2013

Na tentativa de colocar uma lupa agora sobre determinados aspectos desse projeto moderno, então vou discutir com vocês, do ponto de vista institucional e político o que isso representa, ou seja, o que representa esse projeto moderno. Bom, a gente sabe que existe uma forma peculiar de organização social e política que caracteriza a modernidade, não é? Como é que as pessoas se organizam politicamente na modernidade? Será que em tribos? Será que em feudos? Ou em cidades? Ou em Estados? Parece que todas essas experiências são experiências, sem dúvida nenhuma, do que a gente pode chamar de experiências conhecidas pela história, e por tanto, válidas, de organização política e social. Uma tribo, por mais rudimentar que seja, é uma forma de organização social, mas não dá pra dizer que uma tribo é o modelo por excelência, o modelo típico de organização dos povos na modernidade. A modernidade caracteriza-se pela construção de mecanismos de racionalização de exercício do poder que culmina com o surgimento de uma forma até então desconhecida de exercício de poder. Ou seja, esse modelo ao qual eu quero me referir aqui, o modelo típico de organização política e social que a modernidade consagrou é precisamente o Estado Moderno que, aliás, como tudo o que se refere à modernidade é também um conceito em crise. Não é apenas a modernidade que está em crise. A gente cansa de ouvir "crise da modernidade", "crise da racionalidade", "crise do Estado Moderno". Mas de qualquer forma, o modelo de organização que a modernidade consagrou, adotou como exemplar é, sem dúvida nenhuma, o chamado Estado Moderno. Mas olha lá, o que é que tem de diferente o Estado Moderno, por exemplo, de uma tribo? Ou uma polis? Ou de um feudo? Qual a diferença fundamental afinal de contas? Porque é tão inovador esse modelo de organização afinal de contas? O que tem de diferente? Porque se a gente olha bem, todos esses modelos que eu citei são

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formas de organização política e social. Assim como a tribo, assim como o feudo, assim como o Estado são formas de organização social. Mas o Estado introduz algumas novidades que a história institucional até o momento da criação do Estado desconhecia. Eu tô falando aqui de uma unidade que é, simultaneamente, territorial, pessoal e formal. Ou seja, não há Estado sem a dimensão territorial, como não há Estado sem a dimensão pessoal. Daí aquilo que a gente aprende lá em Teoria do Estado, os chamados Elementos Constitutivos do Estado, que são: o elemento pessoal, o elemento espacial e o elemento formal, aos quais a gente chama de povo, território e governo. Esse governo normalmente qualificado pela soberania, que é, aliás, como todos os conceitos que aí decorrem, conceitos que estão também em crise. O próprio conceito de soberania está em crise. Aliás, a própria noção de povo está em crise diante das questões relativas a um multiculturalismo, de uma fragmentação dessa unidade nacional, e porque não dizer também, a própria ideia de jurisdição territorial como algo mais fluido na época contemporânea, nos dias de hoje, no momento em que experimentamos e percebemos essa dinâmica. Então, o Estado é uma realidade consagrada pela modernidade e tem como função ou missão principal permitir o exercício do poder de forma racional. Portanto a gente pode dizer que o Estado é fruto desse espírito racionalista moderno que exige pautas ou padrões de exercício de poder que ocorram dentro de limites racionais. Bom, e como é que isso surge? O primeiro modelo de Estado conhecido pela modernidade ainda é o modelo absoluto. Talvez, ainda não tenha o Estado nesse momento assumido aquelas feições que o notabilizaram ao longo da modernidade. Talvez o modelo de Estado Liberal, o modelo clássico de Estado Liberal, seja a imagem mais evidente, ou mais forte, do que é o compromisso do Estado na modernidade. Mas talvez seja importante lembrar que a primeira manifestação de Estado não é propriamente um Estado Liberal. Ou seja, a gente já tem a definição de elemento pessoal, elemento espacial e elemento formal, os elementos constitutivos do estado e, portanto, a proclamação do Estado e a proclamação de soberania, a própria ideia de nacionalidade, territorialidade e tudo que daí deriva desde a fundação do chamado Estado Absoluto. E talvez seja importante a gente discutir como aconteceu esse processo de fundação do Estado Moderno. Se a gente olhar para o que era a Europa no momento em que não existiam os Estados Nacionais, os chamados Estados Modernos, a gente tinha uma situação em que existiam unidades territoriais, os chamados reinos. Mas nesses reinos, quem é que mandava? Se eu tô falando de reino então existiam reis e rainhas, castelos e tudo aquilo mais que a realeza costumava cultuar. Mas aquilo que era fundamental talvez faltasse para o rei, que era o exercício efetivo do poder. Quem mandava, e quem exercia o poder era, neste contexto, eram os senhores feudais, a nobreza feudal, sobretudo aquele mais poderoso. Quanto maior o número de vassalos (que possuísse o maior número de cavaleiros e de soldados leais às suas causas era o mais temido, e era quem exercia efetivamente o poder, porque ele podia invadir quem ele quisesse e podia resistir com mais folga contra ataques provenientes dos outros feudos. Então a

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gente tinha uma verdadeira pulverização, uma fragmentação do poder. A função do rei era, única e exclusivamente, a de conferir uma certa unidade - muito precária, por sinal - territorial, mas o poder mesmo quem exercia era o Senhor Feudal. E claro que havia uma realidade semelhante nos reinos vizinhos, que passavam por uma experiência idêntica de fragmentação do poder e de exercício pulverizado das diversas formas de poder. Por isso tínhamos, aqui, nesse período, o desenvolvimento de diversas manifestações de juridicidade, de direito, de acordo com os diversos feudos (???). Para complicar ainda mais a situação do rei, aparece, em um certo momento, uma pretensão de um Sacro-Império Romano-Germânico, ou seja, o Papa pretende anexar, sob sua autoridade, todos os reinos cristãos na Europa. Então vejam: Se a função única do rei era a de certa forma revelar uma unidade territorial e até isso ele iria perder por conta de uma pretensão da Igreja Católica (o Sacro-Império Romano-Germânico), então nem pra isso o rei serviria mais. E aqui é curioso, porque é neste momento de tensa adversidade para o rei, que já não mandava nada do ponto de vista do seu reino e agora via uma pretensão externa, que é fundado o Estado Moderno. Ou seja: o rei, que a primeira vista perderia o pouco que já tinha, aparece como soberano. Como é que isso foi possível? Isso foi possível a partir do desenvolvimento de alianças estratégicas dele - o rei - com aqueles que mais adiante viriam a ser seus piores inimigos: a então nascente burguesia europeia. Alguns séculos adiante, os burgueses viriam a derrubar o próprio rei, mas neste momento eles foram fundamentais para permitir, diante dessa aliança do rei com a burguesia a fundação e afirmação do Estado Moderno. Do ponto de vista prático, o rei luta em duas frentes de batalha. Por isso que se diz que o resultado desse processo se deu em virtude da luta de duas espadas: uma luta para dentro do próprio reino, contra os senhores feudais; e para fora, contra o Sacro-Império Romano-Germânico. Bem sucedido nessas lutas, ele afirma-se e aí nasce a ideia de soberania. Vejam que não é por acaso que analiticamente a gente pode decompor a soberania em duas dimensões. Não é que são duas soberanias, soberania é uma só, mas a gente pode perceber que a soberania se manifesta de duas formas: para dentro e para fora de um Estado. A gente tem então uma manifestação para dentro, que se revela afirmativamente ou positivamente; e para fora, como uma reação ou uma negação. Talvez isso explique o fato de que esse mesmo poder soberano seja caracterizado no plano interno por uma verticalização do poder, um escalonamento, uma estruturação do poder que é o que acontece até os dias de hoje do ponto de vista do que é a afirmação do poder estatal, do poder soberano do estado, que é um poder máximo, incontestável. E do ponto de vista de uma manifestação externa, no plano horizontal. Por isso a gente diz que soberania é um conceito que não admite graus. Soberania é um conceito que só existe se forem atendidas as exigências referentes à possibilidade de exercício desse poder em direção ao elemento pessoal e em direção ao elemento espacial. Só tenho soberania assim. Se faltar qualquer desses elementos, ou seja, o modo de incidência desse poder em direção a esses elementos, eu não tenho Estado, posso ter qualquer outra coisa menos

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um Estado. Vejam que do ponto de vista de um direito interno nós temos aqui claramente a definição de uma hierarquização, de uma subordinação do poder. Do ponto de vista do Direito Internacional temos aqui uma coordenação. Isso significa que nenhum Estado é mais soberano que o outro. Isso pode parecer uma loucura, né. A gente de repente afirmar tão taxativamente que nenhum Estado é mais soberano que o outro. Isso é uma argumentação, claro, eminentemente jurídica. Claro que politicamente, economicamente, historicamente, socialmente, culturalmente ou por qualquer outro critério que possamos adotar, os Estados são bastante diferentes entre si. Mas do ponto de vista de uma fundamentação jurídica em virtude do poder, da forma como o poder é exercido, todos os Estados são igualmente soberanos quando conseguem a definição dos seus elementos constitutivos. Então é tão soberano, por exemplo, a China, com mais de 1 bilhão de habitantes, acho que 1/5 ou 1/6 da população do planeta, tanto quanto uma pequena ilha do Pacífico, chamada Nauru, que tem uns 20 mil habitantes apenas. São igualmente soberanos. São Estados soberanos. São Estados que possuem a definição elementar daquilo que se exige para o exercício do poder na qualidade de Estado. Vejam, portanto, pessoal que esse processo é um processo que leva à construção de um modelo de organização política jurídica e social que tem atravessado séculos e tem, claro, sido modificado. Era isso que eu queria conversar com vocês na nossa próxima aula, sobretudo essa passagem do modelo de Estado Absoluto para o Estado Liberal e depois, na sua leitura Social, e ver efetivamente o que aconteceu até chegarmos ao Estado Contemporâneo (talvez um Estado Neoliberal, não sei como qualificar um Estado que mantém determinados compromissos liberais mas se propõe a (???)). De qualquer forma, as matrizes fundamentais são lançadas aqui, neste momento. Aqui existe já uma burocracia, uma centralização de uma organização do poder. Existe já uma estrutura de um exército controlado já pelo soberano, existe já toda uma estrutura burocrática que é típica de qualquer modelo de Estado até os dias de hoje. Esse modelo é, portanto, um modelo emblemático. Agora, uma coisa curiosa, que talvez seja importante a gente relembrar, é que esse processo também se propôs a provocar uma identificação - já que estou falando aqui de Estado-Nação - entre dois conceitos nem sempre facilmente harmonizáveis: primeiro o conceito de Estado, que é um conceito jurídico e é um conceito político; e segundo, o conceito de nação, que não é um conceito jurídico. Pode ser até certo ponto político, mas não é, certamente, um conceito jurídico-político. O conceito de nação é muito mais um conceito sócio antropológico do que propriamente jurídico. É um conceito muito mais ligado à matéria do que à forma. Uma nação é um grupo humano no qual encontramos, primeiro, objetivamente, determinados elementos que identificam esse grupo. Quais são esses elementos objetivos? Eles falam a mesma língua, falam de uma mesma forma, tem uma mesma origem histórica, étnica, cultural, partilham de uma mesma religião... Enfim: traços culturais, que por si só não são suficientes, porque, por exemplo, brasileiros e portugueses falam a mesma língua, mas eu acho muito difícil que nós, enquanto

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brasileiros, por falarmos a mesma língua que os portugueses, venhamos a nos sentir como portugueses, me parece que isso está fora de cogitação. Então, esses elementos objetivos são apenas indicativos de que ali provavelmente existe uma nação. Além destes elementos objetivos, é preciso ainda uma dimensão subjetiva. Ou seja, é preciso que aja um sentimento de pertinência ao grupo. É preciso que, subjetivamente, cada pessoa se sinta pertencente a esse todo, aí eu tenho uma nação. Também o ideal do Estado-Nação pretendeu promover essa assimilação entre uma dimensão formal (jurídica) e uma dimensão material (sócio antropológica), de tal forma que, para cada Estado teríamos uma nação, e vice-versa. Ou seja: O Estado seria uma representação de uma organização política e institucional de um grupo nacional, e a nação seria a base social e material dessa organização política. Então, essa pretensão de correspondência entre Estado e Nação talvez tenha sido uma grande aposta desse projeto moderno, que é difícil a gente defender nos dias de hoje. Todos os Estados são Estados Plurinacionais. O reconhecimento da plurinacionalidade não é tarefa simples nos dias de hoje. O Brasil é um Estado Plurinacional? A gente gosta muito de apostar também nessa ideia da miscigenação, da cordialidade, mas não sei se essa é uma questão muito bem resolvida não no nosso país. Talvez não seja uma coisa tão latente, tão intensa, se a gente pensar, por exemplo, em um grande conflito internacional, observem que, provavelmente, neste conflito em que pensamos, na sua base existe a questão étnica e racial. Esse componente estava presente na I Guerra Mundial, na II Guerra mundial, agora nessas recentes remodificações do mapa mundial, com o esfacelamento da Iugoslávia, a questão da África, em Ruanda, por exemplo, onde duas tribos diferentes, duas etnias diferentes se destruíram e mais da metade do país foi eliminado numa sangrenta guerra civil. Enfim, este componente étnico de fato é muito forte e a pretensão de unificação disso nos Estados Contemporâneos não é algo tão facilmente discutível. Bom, mas a ideia principal é tentar mostrar pra vocês que esse modelo nada mais é que uma resposta a essa pretensão de racionalização quanto ao exercício do poder. Na fase do Estado Absoluto, talvez ainda seja muito intensa a luta da ideia de razão como forma de organização do poder e as questões religiosas, que ainda permanecem. Por exemplo, um rei absolutista muitas vezes se coloca como o próprio representante de Deus na terra. Mas de todo modo, isso representa, do ponto de vista de uma caminhada em direção à secularização, e à organização em padrões nacionais, um passo importante.

2. Aula 06.03.2013

Bom, pessoal, eu queria nesse nosso encontro de hoje, eu queria conversar com vocês sobre algo que eu acho que já tive até oportunidade de começar a falar. Eu acho que na última aula antes da prova a gente começou a conversar sobre as origens do Estado, não foi assim? E, na verdade, o que eu queria era dar sequência a esse argumento; eu mostrei pra vocês que no horizonte da modernidade um dos imperativos de racionalização do exercício do Poder levou

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ao surgimento do chamado Estado Moderno/ Estado Nação, que surge, enquanto estado absoluto, portanto, naquele momento, a formatação sobre a forma e o modo do exercício do poder resultava em um modelo absolutista, mas ali já estavam presentes todos os elementos da teoria clássica do estado, enfim a definição territorial, portanto a noção de jurisdição territorial, a ideia de nacionalidade, enquanto elemento plano do estado, a ideia de soberania, enfim, com todos as repercussões que ela implica, enfim, tudo isso já estava bem definido, bem organizado. E o que eu queria tentar trabalhar hoje é justamente essa passagem, do modelo de estado absoluto, para o modelo seguinte, que viria a ser um modelo bem diferente e talvez seria uma etapa decisiva no que se refere a essa implantação desse modelo racional, né, do ponto de vista do Direito, o que veio com o Estado absoluto é definitivamente incorporado à nossa tradição jurídica.

Bom, se a gente olha então para a dinâmica, né, o que é que acontecia efetivamente aqui, a gente lembra que a burguesia, é, no momento em que o Estado Absoluto é fundado, a burguesia foi decisiva para a fundação do próprio Estado Moderno, no que se refere a uma afirmação do poder contra a nobreza feudal, foi importante a burguesia estar perto do rei, mas o problema é que, com a dinâmica absolutista efetivamente instalada, a gente tem a grande dificuldade de, de certa forma, explicar ou de manter [interrupção]. Bem, então eu dizia que a burguesia, que havia sido decisiva na formatação desse Estado Moderno, em um certo momento começa a ser um entrave para a estrutura do poder absolutista e vice-versa, né? Porque o que acontece é que se vocês tem, vejam lá, um Estado absoluto, que pode, portanto, fazer o que absolutamente bem entenda, porque, afinal de contas, não há nenhum referencial de limite ao exercício do poder, não é? Por exemplo, não há a noção de Estado de Direito, não há, portanto, uma noção de direitos fundamentais, então o que decorre disso é que ninguém tem direito a absolutamente nada, a não ser o próprio rei, o próprio monarca, que pode mandar matar, pode mandar prender, pode mandar despojar uma pessoa de seus bens, e, nessa hipótese, a quem reclamar? Não há instância de reivindicação possível, porque o rei, monarca absoluto, tudo pode. E vejam que tudo o que o rei faz é interpretado sempre como algo bom em si, como algo que é, enfim, revertido, necessariamente, em benefício da coletividade, já que a vontade do rei é a própria vontade do Estado. Então dá pra a gente imaginar que, numa estruturação como essa, é terrível para os interesses de uma burguesia mercantil, que começa a ganhar uma dimensão, uma projeção significativa, já que ela não pode planejar o seu futuro. Ou seja, quem trabalha em determinada oficina não sabe se vai continuar lá e nem por quanto tempo vai continuar lá, porque pode, a qualquer momento, chegar um emissário do rei e dizer: olhe, daí que aqui agora vai ser outra coisa, que o rei não quer que funcione. Um outro exemplo é que, enfim, a taxação, enfim, as cobranças por parte do Estado eram absolutamente variáveis e, assim, impossíveis de serem apreendidas dentro de uma lógica racional que permita o planejamento dos lucros. Então vejam que isso chega a um momento crítico, e esse momento crítico é justamente quando o Estado absoluto começa a ser um grande entrave para a burguesia. E vejam, a burguesia, de aliada inicial com o Estado, ou seja, o monarca, passa a ser agora o seu pior inimigo. E a gente tem nesse horizonte, portanto, uma crise, que leva a uma ruptura com o Estado absoluto e à afirmação de novos compromissos sociais. Funda-se, assim, o chamado Estado Liberal clássico, que é um Estado construído e formatado para atender aos interesses da burguesia. Do ponto de vista estritamente jurídico, a gente pode dizer que o que importa para o Estado Liberal é,

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sobretudo, é a garantia e a defesa da chamada “esfera privada”, que é construída a partir do estatuto normativo dos direitos individuais. Pessoal, eu diria que esse é o ponto zero da história do chamado Estado de Direito. O Estado de Direito na Modernidade, portanto, nasce justamente com o Estado Liberal e com a afirmação do constitucionalismo, que também é filho desse momento aqui, né, a gente vê aqui dois marcos históricos importantes: a Revolução Francesa de 1789, mas antes dela, em 1776, como movimento na América do Norte para a sua Independência. Então a gente tem manifestações que aconteceram no contexto americano, mas também no contexto europeu, e a Revolução Francesa, talvez por ter repetido algo que já era uma experiência aparecida no continente americano, talvez tenha ganhado uma projeção de uma universalização que permitiu ser ela, essa experiência francesa, talvez um padrão, uma referência fundamental, eu diria, até os dias de hoje. Vejam que a Declaração, por exemplo, da ONU, de 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, ela tem, de certa forma, uma perspectiva de resgatar muito do que a Revolução Francesa já havia anunciado em 1789. Mas, enfim, esse modelo de Estado, pessoal, é portanto um modelo que valoriza o quê? Vamos lá: marcos fundamentais: 1776, Independência Norte-Americana e 1789, Revolução Francesa. Qual o compromisso desse Estado? Quase que fundamentalmente com os direitos individuais, que são: direito à propriedade, direito à vida, direito à liberdade [nas suas várias manifestações: liberdade de opinião, liberdade de expressão, de locomoção etc.], e ainda o direito à privacidade. Vejam que são, portanto, direitos que são afirmados enquanto trunfos que permitem afastar o Estado diante de uma eventual pretensão de ingerência nesse espaço que é individual, privado e particular. E o amparo constitucional desses direitos é bastante significativo, porque ele consegue, né, cada indivíduo, retirar uma fundamentação do próprio exercício dessas prerrogativas daquele mesmo documento, daquela mesma norma que tira o poder de qualquer pessoa que, no âmbito do Estado, o exerça. Então, do ponto de vista de uma paridade, a gente tem aqui a afirmação muito importante, muito relevante de uma possibilidade no sentido de afastar, enfim, pretensões que não sejam individuais ou que não sejam do interesse do indivíduo. Pois muito bem, esse modelo de Estado é o modelo que eu diria perfeito para os interesses da burguesia. É um Estado, portanto, ausente, um Estado que não se mete em absolutamente nada, talvez a expressão econômica disso seja justamente a ideia de uma mão invisível, em que o Estado, o que tem que fazer, é assistir de longe aquilo, o mercado se autorregula através das próprias regras inerentes à oferta e à procura, enfim, esse é o modelo de Estado que não se mete em absolutamente nada. Todas as obrigações do Estado, portanto, que eventualmente tenha são obrigações negativas, ou seja, implicam em um não fazer. O Estado, portanto, fica afastado da área social e econômica, e, por isso, esses direitos individuais são direitos – costuma-se assim serem referidos – direitos prestacionais negativos.

Muito bem, esse modelo de Estado é perfeito, como eu disse agora há pouco, para a burguesia, porque se a gente tem um Estado, vejam só, que não se mete em nada, e que a própria dinâmica social se encarrega de fazer com que as coisas funcionem, sem qualquer intervenção estatal, sem qualquer interferência estatal, é razoável, pessoal, admitir quem antes era membro de uma burguesia mercantil e que, portanto, talvez, né, produzisse lá seus artigos de couro, calçados etc., que em pouco tempo começa a produzir mais e em maior velocidade. Ou seja, eu estou falando aqui de algo que viria a ser fundamental e decisivo para a compreensão desse percurso, que é a chamada Revolução Industrial, que é favorecida,

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evidentemente, pelo próprio formato institucional que o Estado assume nesse momento. Talvez a Revolução industrial não tivesse acontecido, ou talvez não tivesse acontecido tão rapidamente, se o Estado não tivesse assumido esses compromissos sociais que ele assumiu. Então a burguesia mercantil converte-se rapidamente em burguesia industrial e, convertendo- se em burguesia industrial, aquelas pessoas que estão efetivamente com a “mão na massa”, produzindo os bens, passam agora a ser, simplesmente, os detentores dos meios de produção, ou seja, os grandes capitalistas, os grandes industriais, que, para tal, precisam de quê? Contratar pessoas para, sob a sua orientação, fazer o que, antes, eles faziam sozinhos. Então existem, vejam lá, aqui o processo industrial leva, necessariamente ao desenvolvimento de uma nova categoria, que era desconhecida nas origens do Estado Liberal. Ou seja, os trabalhadores, os operários, enfim, o proletariado. E vamos agora lembrar de algo que é importante para a gente entender esse processo. Se o Estado é um Estado ausente, um Estado absenteísta, um Estado que não se mete em nada, um Estado que não regula nada, e a gente tem agora um processo de intensa industrialização, o que é que vocês acham que aconteceu? Os caras chegaram lá e disseram: “você, olhe, trabalhe duas horinhas aqui pra mim e depois vá para casa descansar. Volte depois de amanha!”. Né? Era assim que acontecia? Evidente que não, não é nem razoável pensar nisso. O Estado não se mete em nada, portanto, era gente trabalhando dez, vinte horas por dia; homens, mulheres, crianças, idosos trabalhando em igualdade de condições nos ambientes mais desumanos e inóspitos possíveis. Afinal de contas, o Estado é um Estado Liberal, clássico, ausente, enfim, que não se mete em nada e que tudo se resolve por si mesmo. Dá pra imaginar, então, o tamanho da instabilidade social que naturalmente surge de uma condição como essa. Ou seja, se a gente não tem, efetivamente, a possibilidade de conter ou de impor limites ao lucro a partir do próprio Estado, quem vai fazer isso? Esses movimentos sociais, portanto, esses movimentos operários, portanto, decorrentes do processo de industrialização acabaram também sendo decisivos para promover um segundo corte nessa nossa historia e a fundação de um novo modelo de Estado, de um novo modelo constitucional, de um novo modelo de discurso constitucional e, por que não dizer, de novos compromissos sociais e econômicos. Funda-se, assim, agora, o Estado Social, que é um Estado que também tem marcos históricos importantes que a gente pode identificar: Constituição do México 1917 e Weimer, na Alemanha. E esse Estado é um Estado, portanto, que assume uma postura bem diferente da postura do Estado Liberal Clássico. Para começar, não é mais o Estado uma instância de poder que assiste de longe às coisas acontecerem. Passa agora esse Estado a ser um Estado que não apenas se aproxima da dinâmica social e econômica, mas se envolve efetivamente naquilo que acontece, quanto ao desenvolvimento econômico, em seu interior. Então vejam que o Estado Social é também conhecido como o Estado intervencionista, Estado de Bem Estar ou Welfare State – são denominações sinônimas para designar esse tipo de modelo, ele representa, talvez, um momento fundamental de percepção de uma impossibilidade de continuar ausente das relações econômicas. Passa então a se preocupar com os chamados direitos sociais, que são: direito a saúde, educação, trabalho, previdência, lazer etc. Para garantir esses direitos, o Estado precisa intervir; precisa adotar estratégias intervencionistas. Por isso que a gente tem aqui modelos diferentes de intervenção. Essa intervenção, ela acontece.. aí eu tenho dois livros para recomendar aqui: o primeiro seria Do Estado Liberal ao estado Social – de Paulo Bonavides [...]; um segundo, talvez um pouco mais focado naquilo que eu vou agora conversar com vocês, é um livro do Eros Roberto Grau, que, enfim, foi Ministro do Supremo até pouco tempo, mas quando ele

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escreveu esse livro ele ainda não era Ministro, acho que nem imaginava que viria a ser Ministro do Supremo. Enfim, é um livro que foi publicado logo depois da promulgação da nossa Constituição de 1988, e é um comentário sobre a ordem econômica na nossa constituição. Então traz várias formas de intervenção, de forma bem detalhada, é um livro que eu recomendaria para quem tem interesse específico em aprofundar esse debate. Mas, enfim, para garantir esses direitos, o Estágio adota algumas estratégias de intervenção. Uma delas é a chamada intervenção no domínio econômico, e a segunda, a chamada intervenção sobre o domínio econômico. A diferença fundamental entre essas duas formas de intervenção, pessoal, quando o Estado intervém no domínio econômico, ele está atuando em pé de igualdade, ou seja em paridade de situação com o particular. Em outras palavras, está assumindo a condição de empresário, está tornando-se um empresário. Qual a finalidade disso? Por que ele vai virar um empresário? Porque, vejam, a presença de um Estado, com tudo o que ele representa no desempenho de uma atividade econômica, é um fator importante de regulação do mercado e de pressão do preço pra baixo, e da qualidade para cima. Vamos pensar numa possibilidade, numa situação hipotética: ônibus. Uma empresa privada cobra quanto, pessoal? Dois e vinte e cinco, né? Chega o Estado e diz: olha, eu vou oferecer o mesmo serviço, cobrando apenas 50 centavos. Vejam aí. Se o Estado fizesse isso, como o fez durante muito tempo, quando mantinha empresas justamente para garantir o acesso de um número muito grande de pessoas aos serviços que eram inacessíveis, enfim, através apenas da iniciativa privada, é, se o Estado fizesse isso, o que aconteceria? A gente teria uma demanda muito maior, levando em consideração a dinâmica do mercado, uma demanda muito maior de pessoas interessadas em utilizar o serviço público. Evidente, porque é mais barato. O que significa, pessoal, que só haveria uma justificativa para que o empresário particular, agora, mantivesse o preço nesse patamar de dois e vinte e cinco. Qual seria essa justificativa? Se a qualidade fosse muito maior. Ou seja, é fácil de se imaginar que a gente tivesse uma demanda muito grande, portanto, ônibus lotados, regularidade talvez não tao intensa, então o particular poderia dizer, o meu é dois e vinte e cinco, mas eu tenho ônibus de três em três minutos, você não vai passar mais de três minutos no ponto de ônibus, e todos tem lugar para pessoas sentadas e ar-condicionado, por isso eu cobro dois e vinte e cinco. Porque se for para oferecer o mesmo serviço que o Estado oferece, não se justifica cobrar tao mais caro, quase cinco vezes mais caro. Então percebam que a presença do Estado nesses termos é um fator importante de pressão do preço para baixo, porque não dá para aumentar o preço com uma concorrência dessas, né? Ou pelo menos, né, para aumentar o preço é preciso ter alguma coisa que justifique, né? E pela qualidade, para cima, porque é preciso ter alguma coisa diferente, se não, não tem justificativa nenhuma para que isso acontece. Esse é o modelo de intervenção, portanto, no domínio econômico em que o Estado vira empresário, torna-se empresário e compete com o particular, como se fosse mesmo o particular, submetendo-se às mesmas regras do jogo que o particular. A segunda situação é chamada de intervenção sobre o domínio econômico, quando o Estado, aí, permanece na condição de príncipe, soberano. O que é que ele vai fazer, o Estado aqui? Ele vai simplesmente regular, enfim, estabelecer as regras do jogo. Um exemplo disso aqui: vamos imaginar que eu seja o Prefeito do Recife hoje, e eu quero criar um polo de desenvolvimento turístico no Bairro do Recife, como já aconteceu há um tempo atrás, né? parece que a coisa anda meio esquecida, não mudou nada, por causa dessas questões políticas mesmo, mas, enfim, vamos imaginar que seja essa a intenção, né, quero criar um polo de desenvolvimento turístico no Bairro do Recife. Para isso, eu preciso ter

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lá, o que? Tenho que ter livrarias, restaurantes, o que mais? Cafés, o que mais? Lojas, empresas, enfim, o que atrai turistas, não é? Limpeza? É, aí seria uma função dele mesmo né, mas do ponto de vista da criação de um ambiente atrativo para um turista, certamente esses serviços são interessantes. E aí o Prefeito diz o seguinte: eu vou conceder, por exemplo, isenção fiscal durante trinta anos para aquele empresário, desses setores que eu defini como prioritários, para se instalarem aqui nessa área. Tá certo. Se eu sou dono, por exemplo, da Saraiva Mega Store e eu quero inaugurar uma nova unidade no Recife, né, que é que eu vou fazer? Eu sei que eu posso fazer no Shopping Rio Mar, posso fazer em Boa Viagem, posso fazer na Madalena, posso fazer em qualquer lugar da cidade. Mas, se eu escolher o Bairro do Recife, eu vou ter 30 anos sem pagar nada para o Município. Veja como atrai, fica bem atrativo, né? Essa forma de indução, é forma de intervenção no domínio econômico, porque o Estado começa a estimular um determinado tipo de atividade do seu interesse. Tem outro exemplo clássico. Esse todo mundo vai lembrar, porque é bem recente. Lembram em 2008, no governo Lula, a Grécia estourou [...exemplo da crise - “marolinha” segundo Lula. Estimulou o consumo interno, reduzindo o IPI, inicialmente, para a linha branca, depois estimulando o setor automotivo].

Esse modelo de Estado Social tem umas questões interessantes. Porque vejam, imaginem vocês, o Estado Liberal é um Estado pequeno, né? É um Estado mínimo. O Estado Social, ele cresce, se agiganta mesmo, criando empresas, participando de empresas, abrindo mão de receita tributária, isso tem um custo, não tem não? Vejam só, se o Estado está criando uma empresa e competindo com o particular em uma situação até deficitária, tá perdendo dinheiro, não está não? Se está abrindo mão de receita tributária, também está perdendo dinheiro, não está? Então eu pergunto: onde fica o orçamento geral do Estado? E o dinheiro para, por exemplo, construir hospital, escola, estádio bonito para a Copa do Mundo? De onde vem esse dinheiro, se o Estado não tem mais? Está todo comprometido em outras questões? Esse modelo de Estado Social é um modelo que não se sustenta, porque ele acumula déficits em cima de déficits, e isso provoca uma crise desse modelo. E temos, por isso, desde os anos oitenta, talvez uma nova lógica inspirando a formatação desse nosso Estado na modernidade. Eu diria que isso começa mais ou menos a partir do final da Segunda Guerra Mundial, e com mais força a partir dos anos oitenta, talvez com a clareza definida do que é preciso fazer para recuperar uma agilidade perdida porque o Estado parecia um elefante, um paquiderme, e por isso mesmo não consegue se mexer. E esse novo modelo de Estado qual é, pessoal? Exato, esse é o Estado neoliberal que introduz novas pautas também para o direito e para o constitucionalismo. A gente pode perceber claramente que aqui a gente fala de reforma do Estado, isso tudo é feito através de Emendas constitucionais, a gente percebe o compromisso com a redução do tamanho do Estado, com, por exemplo, flexibilização de relações laborais, que mais? Eficiência, introdução do princípio da eficiência na Administração pública né, isso foi até Emenda 19, né? Portanto num momento bem mais antigo do que a gente está vivendo hoje. Mas vocês percebam que essa preocupação é uma preocupação típica de Estado que visa recuperar uma agilidade perdida, que busca recuperar algo que, em algum momento ele tinha ou, pelo menos, era uma situação desconfortável, e ele precisa combater. O grande desafio de um Estado como esse, pessoal, consiste fundamentalmente em garantir aquele direito lá de liberdade, típico de um Estado Liberal, ao mesmo tempo em que ele consegue garantir as conquistas do Estado Social. Essas conquistas importantes de igualdade, elas não podem ser

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esquecidas, porque elas fazem parte do patrimônio efetivamente conquistado por toda a humanidade. E liberdade e igualdade não são tao facilmente harmonizáveis, né? Daí a gente pode fazer um debate sobre isso daqui a alguns instantes. Mas eu queria, só para tentar fechar essa parte aqui, dizer pra vocês que, como consequência imediata disso, a gente percebe uma redução da dimensão empresarial do Estado. Cada vez menos o Estado tem empresas, e aí vem as privatizações, que fazem parte mesmo dessa lógica neoliberal, ou seja, o que antes era do Estado agora é a iniciativa privada, e com todos os problemas que decorrem disso daí, né? Porque, afinal de contas, não vai ser mais o Estado que vai garantir, que vai ter aquele plano de saúde legal bancado por ele para seus funcionários, agora o empresário vai fazer isso, e será que vai ser exatamente igual? E os direitos e as condições de trabalho serão as mesmas que existiam quando o Estado era o prestador do serviço? Acontece isso né? Então essas questões implicam imediatamente uma redução da dimensão empresarial e, em contrapartida, um aumento ou um fortalecimento da dimensão regulatória. E aí é onde estão as agências, né não? Porque tem agência para tudo: ANAC, ANEEL, ANS, ANVISA, enfim, basicamente o que vocês imaginarem, todos os setores tem uma agência que se ocupa, basicamente, dessas questões. Essa é a situação, pessoal. Esse é, basicamente, o cenário.

Agora eu queria tentar mostrar para vocês uma outra questão importante aqui. A gente tem como compatibilizar liberdade e igualdade? Vocês conseguem perceber pelo menos a tensao entre liberdade e igualdade? Ou não? Bem, Dworkin tem uma fórmula, né? É uma tentativa, não é o único que consegue, ou que pelo menos tenta ter uma resposta para isso. Porque esse é o nosso dilema contemporâneo, sobretudo em virtude de um certo disalento em relação às estratégias intervencionista. Mas ao mesmo tempo em que isso acontece, é preciso garantir determinados valores pelo próprio Estado. Bom, o que é que eu posso dizer para vocês? Eu posso dizer o seguinte: me parece que liberdade e igualdade convivem de forma, eu diria, problemática, já que, quanto mais liberdade, menos igualdade e vice-versa. Se eu disse: todo mundo é livre aqui para fazer o que quiser, não é? Certamente vão ter pessoas que vão, no exercício natural de suas atividades, fazer coisas que, a princípio não dá nem pra imaginar. Mas, se eu disse: “todos são iguais”, o comportamento tem que ser o mesmo, a gente padroniza, não é? E eu perguntaria para vocês então, se vocês tivessem que escolher entre um país que consagra a liberdade e um país que consagra a igualdade, qual vocês escolheriam? É melhor ser livre, ou é melhor ser igual?[...] Deixa eu dar um exemplo a vocês. Todo mundo concorda que nós vivemos em um país que privilegia a liberdade, sim ou não? Sim. Nós temos a liberdade como direito fundamental e, felizmente, desde a Constituição de 1988, que já é a terceira Constituição mais longeva da nossa História – felizmente, não é? Nós temos liberdade há tanto tempo, que talvez nós não saibamos o que seja viver sem liberdade. Isso significa, pessoal, que, por exemplo, todos vocês escolherem livremente fazer o curso de Direito, foi ou não foi? Não houve nenhuma interferência do Estado, do Poder Público. […] Ninguém foi forçado a fazer o curso de Direito, você escolhe fazer o curso que quer, não é assim? Viva a liberdade, né? Pois bem, num país que privilegia a igualdade – e aqui eu estou falando da experiência soviética – você chega na idade de se matricular em um ensino superior – todas as universidades são do Estado, vamos lembrar disso, aqui no nosso país nem todas são do Estado – aí você chega à idade de se matricular em um ensino superior e diz: quero fazer Direito. O que é que o Estado vai dizer? Vai dizer:

“Tu queres fazer o quê, rapaz?”

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“Quero fazer Direito!” “Pois você não vai fazer Direito não.” “Por que eu não vou fazer Direito?” “Porque eu sou o Estado, e estou dizendo a você que daqui a cinco anos eu não vou

precisar de gente formada em Direito não. Vou precisar de dinheiro, vou precisar de médico. Se você quiser fazer qualquer um desses dois, está valendo, mas Direito você não vai fazer não.”Isso é bom ou ruim? É ruim? É bom ser livre e escolher o que quer fazer, não é isso?

Vamos lá, vamos ao reverso da medalha. Todo mundo escolheu fazer Direito, viva a liberdade. Depois de cinco anos, e vocês estão perto de concluir esses cinco anos, nenhum de vocês tem a certeza de que terão uma colocação no mercado, é ou não é pessoal? Esse é o país da liberdade. Se quer uma colocação, corra atrás, o problema é seu. Já no país da igualdade, você não pode escolher o curso que quer fazer, mas, em compensação, você vai, depois de 5 anos, ter um emprego lá, uma colocação garantida, vai estar atuando, fazendo alguma coisa com aquela habilitação que você recebeu. E agora, o que é que é melhor? […] O que eu quero dizer para vocês é que essa atuação é difícil de ser resolvida mesmo. Porque não dá para imaginar, um país que privilegia a liberdade é um país que incentiva a produção como nenhum outro. Mas ele normalmente é ruim no que se refere à distribuição. Ele cria a exclusão, cria a pobreza, cria a marginalidade. Já um país que privilegia a igualdade, é um país que é ótimo no que se refere à distribuição, é um país que distribui como ninguém, mas ele é péssimo no que se refere ao estímulo à produção. Então talvez essa seja a grande fórmula buscada por talvez boa parte da esquerda do mundo inteiro hoje, né? Desde a queda do mundo de Berlim, afinal, como a gente pensar um Estado que combine produção e distribuição? Como fazer isso? Qual o modelo mais adequado? A gente vai discutir um monte dessas teorias aqui, a partir desse momento, dessa segunda etapa do nosso curso aqui, eu vou tentar discutir justamente isso. Mas esse é o contexto.

Para encerrar, eu queria fazer com vocês somente mais um outro, enfim, estabelecer um outro olhar sobre a distinção entre Estado Liberal e Estado Social. Talvez o argumento fique mais claro. Ou seja, vamos tentar colocar uma lupa aqui e olhar mais de perto o que aconteceu. Vamos lá. No estado liberal: propriedade privada. Existe ou não existe, pessoal? Existe, e ela é importantíssima! É um dos direitos mais importantes que foram afirmados no horizonte do Estado Liberal. Vejam lá a figura do John Locke, que inclusive tem uma contribuição importante discutindo a propriedade, a gente estudou aqui na faculdade, em Direitos Reais, né isso? Portanto, a propriedade privada é plena e absoluta. No horizonte do Estado social, existe propriedade? Ou ela desaparece? Propriedade privada, né? Ela existe ou não? Existe! Mas ela é a mesma coisa? Posso fazer o que eu quiser com a minha propriedade? É plena ela? Não é, né? A propriedade agora atende pelo nome de função social, ou seja, é como se o Estado dissesse assim: “você pode ter a propriedade que você quiser, pode conseguir pelos seus méritos, enfim, isso não é problema meu. Mas, cuidado com o que você vai fazer com essa propriedade, porque se você der a ela uma função que não seja compatível com os meus interesses, eu vou lá, tomo a sua propriedade, e vou fazer com ela o que eu bem entender. E na nossa Constituição existe uma infinidade dessas situações de desapropriação: desapropriação para fins de reforma agrária, por descumprimento do plano diretor, por plantação de psicotrópicos, está tudo lá. Portanto a gente tem agora a ideia de função social.

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Tudo isso decorre, é claro, da presença do Estado na economia, tudo isso decorre, efetivamente, dessa virada, no sentido de que o Estado, se antes ele era ausente, agora ele está presente e atento ao que está acontecendo, não é? Outra diferença importante: liberdade contratual e autonomia da vontade, que é também algo importante no Estado Liberal. Eu posso contratar quem eu quiser, com quem eu quiser, do jeito que eu quiser, claro, se o meu contratante também queira, né? Afinal de contas, um contrato, ele é um encontro de vontades, não é? E bem, em um Estado Social a autonomia da vontade desaparece ou não? Não, né? Ela permanece lá. Vejam que, se no Estado Liberal a gente tem autonomia da vontade, liberdade contratual regida pelo princípio pacta sunt servanda, no horizonte do Estado Social a autonomia da vontade não desaparece, ela permanece, da mesma forma, regida pelo pacta sunt servada, enfim, enquanto expressão da liberdade, tudo isso, está tudo lá, só que, se no Estado Liberal ela é ampla dessa forma, no Estado Social ela é reduzida, a margem de exercício dessa autonomia da vontade é estreitada, limitada ou, se preferirem, dirigida. Daí falarmos em dirigismo contratual, que é típico desse modelo de Estado Social. Ou seja, o Estado dirige a liberdade contratual, e eu não posso contratar mais com quem eu quiser, do jeito que eu quiser. Isso é evidente, por exemplo, nas relações laborais, no Direito Trabalhista, um dos princípios mais elementares do Direito do Trabalho: o dirigismo contratual, a presença permanente do Estado limitando as situações lá. Então, se aparecer alguém pra você e disser: olha eu estou precisando de um dinheiro, e eu quero trabalhar 20 horas por dia pra você, e você disser: ah, que ótimo! Eu estou disposto a trabalhar as 20 horas que você merecer pelo seu trabalho. Se houver concordância minha e da outra pessoa, ainda assim, esse contrato é um contrato irregular. Ele não tem o menor valor. Porque o Estado não permite que isso acontece.

Outro exemplo: separação de poderes de um Estado Liberal é também uma conquista importantíssima, no sentido de que, vocês bem sabe, eu vou falar no grande barão de Montesquieu, uma das grandes percepções aqui para que os direitos individuais fossem garantidos, era preciso fragmentar o poder, que era até então exercido de forma absoluta. Com essa fragmentação, os poderes são agora independentes e incomunicáveis. Portanto, o Poder Legislativo é uma coisa, o Poder Executivo é outra coisa, e o Poder Judiciário é outra coisa. Até porque, palavras do próprio Montesquieu, sempre que houver concentração do poder em mais de um pessoa, de uma mesma instância, haverá uma tendência irreprimível ao abuso. Isso é da própria natureza humana, que ele já detectava desde aquela época, não é. Bom, no horizonte do Estado Social a gente falar agora de capacidade normativa de conjuntura, ou seja, auqi a gente tem poderes que, se antes estavam afastados, se aproximam de uma forma tal que se interpenetram . O sistema agora seria, mais ou menos, como vasos comunicantes, em que os três poderes exercem as três funções do Estado, ainda que apenas um desses se especializasse em apenas uma das funções, então você teria funções típicas e atípicas, como vocês bem conhecem lá na teoria constitucional. Então a gente tem uma outra reposta para a dinâmica social.

Por fim uma outra coisa importante aqui nesse processo. Normas programáticas. Onde é que existe isso, no Estado Liberal ou no Estado Social? O Estado Liberal não precisa prometer nada, não precisa fazer nada, tudo o que ele tem que fazer é ficar quieto na dele e deixar as coisas acontecerem. A promessa de transformação, a criação de uma meta ou de um objetivo a ser perseguido pelo Estado, se parece muito mais com o modelo de Estado Social, não é,

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daquele Estado que intervém nas atividades econômicas para alcançar esses objetivos. A nossa Constituição tem, no artigo 3º, uns que são maravilhosas, não é? Objetivos da República Federativa do Brasil. Alguém lembra deles? Quais são? Construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza; reduzir as desigualdades sociais e regionais; enfim, isso são metas. Vejam que colocaram na Constituição, isso tem um significado importantíssimo. Porque não são metas de partidos políticos nem de governos. São metas de Estado. Então não importa quem está lá. Se é FHC, se é Lula, se é Dilma, ou quem quer que seja. Essas são pautas que vinculam a todo e qualquer agente público, toda e qualquer pessoa que atue em nome do Estado. A gente às vezes parece que esquece um pouco dessa questões também – isso vale pro Judiciário, isso vale pro Legislativo, e isso vale pro Executivo também, nas suas funções, nas diversas funções - e isso é típico também do Estado Social, de um Estado que quer transformar a realidade, que busca criar um outro padrão de realidade na qual ele atua.

Pois muito bem, por que que eu fiz isso agora, pessoal? Porque eu quero perguntar a vocês: mudou alguma coisa? Do Estado Liberal pro Estado Social? Mudou ou não mudou? Mudança grande ou pequena? Grande? Tá. Vamos sair da lupa agora e olhar para o todo: a gente tem aqui três momentos importantes, a gente analisou só dois. Três momentos importantes:

Momento numero 1, momento número 2 e momento número 3. Eu queria perguntar para vocês em qual ou em quais desses momentos a gente encontra uma ruptura com o passado? Vão pensando aí e me digam. […] Pessoal, o que eu quero dizer com mudança fundamental aqui pode ser respondido da seguinte forma: quem antes mandava, continua mandando? Talvez essa seja a chave para a gente responder a essa pergunta. Então, quem mandava no Estado Absoluto? O rei. O rei manda no Estado Liberal? Não. Mas aí eu não posso perguntar a vocês, não existem ainda reis e rainhas até os dias de hoje? E aí? Vejam, o que muda, pessoal, é certo, existem reis e rainhas nos dias de hoje, mas desde o advento das revoluções burguesas, desde o advento do constitucionalismo, os reis e rainhas estão debaixo do pé da burguesia, porque eles não podem mais fazer tudo o que eles querem como faziam no Estado Absoluto. Os poderes dos reis e rainhas são limitados, são estabelecidos por uma constituição. Portanto, o poder não é mais deles. Porque a constituição não é mais deles. A criação da constituição é da burguesia liberal, que construiu esse Estado com base nos seus interesses. Certo? Então aqui tem sim uma grande mudança. E nos demais? Aqui, no Estado Liberal, quem manda é a burguesia. E no Estado Social, quem é que manda? Me parece que aqui, quem manda no Estado Social, é ainda a burguesia. E aqui, no Estado Liberal. A mesma burguesia, que aqui é uma burguesia mercantil [Estado Liberal], aqui é uma burguesia industrial [Estado

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Social] e aqui é uma burguesia, sei lá, financeira, vamos chamar assim [Estado Neoliberal]. Mas é uma burguesia do mesmo jeito que era nesse Estado Liberal originário. Vocês sabem por que eu estou dizendo isso, pessoal? Eu estou dizendo isso, por algo muito simples, que eu quero deixar muito claro: falar em Estado Social, pessoal, não é a mesma coisa que falar em Estado Socialista. Neste a gente encontra uma mudança, porque não existe mais propriedade privada; não existe modo de produção, enfim, bancado por particulares; é tudo do Estado. Mas só que esse modelo não chegou muito longe. 1989 talvez tenha sido o momento crítico e decisivo para a configuração dessa leitura .[?].. Em 89 cai o muro de Berlim, desintegra-se a União Soviética, e o contraponto durante muito tempo existente a essa lógica de produção capitalista se esfumaça. Tem um japonês em Havard, o Francis Fukuyama, já ouviram falar dele? Escreveu um livro em que ele disse: “Chegamos ao fim da história. Capitalismo venceu; nada de novo vai acontecer daqui por diante.” Vê que coisa. “Não adianta pensar em nenhum modelo de desenvolvimento econômico, porque tudo vai se resumir à lógica capitalista.” Claro que ele recebeu e até hoje recebe muitas críticas, né? Mas aqui sim, a origem é a mesma. Aqui vai estabilidade produzida pelos movimentos sociais, os movimentos operários, que levaram, por um lado, a uma radicalizaçao da igualdade, despontando o Estado Socialista, e, de outro lado, a uma incorporação do discurso da igualdade pela própria lógica capitalista, que fundou o Estado Social. É como se o Estado Social fosse um Estado Liberal em busca de legitimação. [...] Talvez isso explique a dificuldade do Estado Social em se afirmar enquanto tal, porque os compromissos continuam a ser compromissos liberais, na sua essência. E eu acho interessante. O próprio governo Lula, pessoal, ninguém, no mundo, pode dizer que é um governo burguês, pelo menos quanto à origem da sua candidatura, nasceu nos movimentos sociais do Brasil, ne? No ABC, na fábrica lá, na metalurgia. Portanto a candidatura nasceu dos movimentos sociais e ganhou credibilidade, tentou três, quatro vezes, conseguiu se eleger. E uma coisa curiosíssima, se a gente comparar os investimentos, na área social do governo Lula e o investimento, isto é, o dinheiro destinado ao auxílio a bancos, este último foi pelo menos 10 vezes maior. Não é incrível isso? E isso não é porque ele queira, é porque é necessário para o sistema financeiro funcionar, se não vai estourar tudo. Então existem, pessoal, questões aqui que, ao meu ver, relativizam e muito a noção de direito, de soberania, constituição. Quem é o titular do poder constituinte, afinal de contas? “É o povo soberano..” essa conversa mole de novo. Um exercício para vocês, só para vocês pensarem sobre isso: a Emenda 45, que todo mundo deve conhecer, melhor que eu, a famosa reforma do Judiciário, de 2004, ela introduz uma série de modificações no nosso sistema jurídico, certo? Comparem a Emenda 45, só ela, com o Documento Técnico n. 319 do Banco Mundial . Já ouviram falar desse? Não? Anotem! Vale a pena, pessoal. O Documento Técnico n. 319 é o diagnóstico do Banco Mundial sobre o funcionamento do Poder Judiciário na América Latina e no Caribe. É isso. E o que ela estabelece é uma série de problemas que são, curiosamente, enfrentados ou resolvidos, inclusive no que se refere às sugestões que o documento oferece, um documento técnico e a Emenda 45 praticamente reproduz essas sugestões, e que isso é meio sugestivo, não é? E o Poder Constituinte? De onde veio isso aí? Isso veio de algum lugar. E, naturalmente, essa é uma pesquisa interessante, para vocês aí, todo mundo já terminando o curso, fica talvez para um mestrado, etc. […]

O que eu quero aqui dizer para vocês, para resumir, encerrar, é que a gente está aqui diante de um paradoxo, não é verdade.? Porque a defesa, se somente tem uma transformação no

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momento número 1, a defesa do Estado Social paradoxalmente é a defesa de uma lógica liberal burguesa, não é? E isso é terrível. E, porque que eu estou dizendo tudo isso? Porque esse modelo de racionalização, compromisso com a verdade, tecnicismo, com organização do Estado, da forma de exercício do poder, tal como havia acontecido ao longo da nossa modernidade, talvez seja um compromisso fundamental, daquele projeto iluminista do qual eu falava em aulas passadas, e que procurei já, de início associar capitalismo com protestantismo, com cientificismo. Na verdade a gente tem, de fato, desdobramentos nítidos em todo esse processo. E que vários chamam a atenção. Tudo isso é criação humana. Nada disso está na natureza. Nada disso está nas árvores, está nos frutos que a gente colhe e se alimenta. Tudo isso é criação histórica, e, portanto, situada em determinado contexto, e atende a determinados interesses. Então, falar em verdade, falar em tecnicismo pode ter também os seus comprometimentos, e era isso que eu queria passar na aula de hoje.

3. Aula 07.03.13

Uma das consequências da organização racional do poder na modernidade é a criação do estado enquanto unidade indivisível articulada entre três elementos constitutivos: um elemento humano, um elemento espacial e um elemento formal. Este modelo surge enquanto manifestação de um poder absoluto e nesse quadro não há ainda nenhum traço de uma cultura propriamente constitucional ou limitadora do exercício do poder. Esta conquista evolutiva seria devida, sobretudo, ao fortalecimento institucional da burguesia mercantil, a qual cuidou de formatar e desenhar um perfil especifico de exercício do poder. Este modelo viabilizado pelo sucesso das revoluções liberais, notadamente a revolução francesa, consagra a noção de direitos individuais, direitos estes destinados ao estabelecimento e delimitação de uma esfera privada. Trata-se aqui da afirmação de direitos tais como liberdade propriedade, privacidade, dentre outros, que em comum apresentam a característica da consagração de prestações negativas por parte do estado. O estado converte-se assim em uma estrutura de poder absenteísta, alijada das relações econômicas e sociais. Este modelo de estado acaba por acelerar o processo de industrialização e, com isso, a burguesia mercantil converte-se em burguesia industrial.

Em decorrência da industrialização da produção, sobretudo em virtude das reinvindicações operárias diante de um estado ausente, observamos uma transformação no discurso constitucional, notadamente naquilo que se refere ao papel do estado na consagração e na garantia de direitos. Temos aqui a afirmação de novos direitos, tal como acontece com o direito à saúde, à educação, ao trabalho, à previdência social, dentre outros, que em comum apresentam as características inerentes a prestações positivas. Este modelo de estado também conhecido como estado de bem estar social, "welfare state" ou, simplesmente, estado intervencionista, tem como marca fundamental a constante presença nas relações econômicas e sociais. Daí as várias estratégias intervencionistas, dentre elas as formas de intervenção no domínio econômico e as formas de intervenção sobre o domínio econômico.

As duas modalidades interventivas acabam por comprometer as contas do estado já que a intervenção demanda recursos. Ausência de disponibilidade financeira acaba por imobilizar o estado. Daí o cenário contemporâneo de readequação do estado, do direito e das

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constituições às demandas da contemporaneidade, dentre elas, a suposta exigência de agilidade e eficiência do estado ao mesmo tempo em que os compromissos sociais são mantidos e eis um novo modelo que vem sendo gerado nos nossos dias, conhecido como estado neoliberal. Dentre as consequências deste modelo, encontramos a redução da presença do estado na economia, atuando como empresário, e um fortalecimento da dimensão regulatória, provocando um reforço das estratégias de intervenção sobre o domínio econômico.

Em uma análise conclusiva, podemos perceber que o constitucionalismo e o estado de direito, na modernidade, surgem enquanto resposta a uma necessidade institucional de consagrar os interesses burgueses. As transformações experimentadas pelo estado a partir do constitucionalismo liberal representam pouco mais do que uma busca por legitimação.

4. Aula 13.03.2013

Eu queria, pessoal, hoje, tentar caracterizar com vocês as duas pautas ou padrões que aparecem com muita foça no pensamento jurídico moderno. Quando o Direito é pensado na Modernidade, para o que ele efetivamente se volta? Quais são os valores ou qual é a pauta ou agenda que o Direito tem a partir do advento da Modernidade? Então eu queria começar precisamente a partir da construção daquele Estado pós-revolucionário, portanto aquele modelo de Estado que é configurado com o liberalismo, que deixa como legado na área jurídica o Constitucionalismo, sem dúvida, mas as constituições no modelo liberal não tem a mesma importância que tem a lei, não é? A lei termina sendo, logo após a Revolução Francesa, uma das formas mais importantes da manifestação do Direito, se não a forma, por excelência do Direito. Daí a associação positivista entre três ideias que são bem diferentes: Direito, Lei e Texto. São coisas que não traduzem exatamente a mesma ideia, mas aparecem em nosso imaginário. Isso terminou sendo construído de forma muito sólida, de forma que a gente sempre pensa em lei, que a lei esgota todo potencial de manifestação do Direito; e que o Direito, por sua vez, só é Direito se tiver uma base escrita; e coisas desse gênero.

Muito bem, eu queria, então, nesse caminho, tentar caracterizar com vocês o que efetivamente acontece logo depois da Revolução Francesa. Quando teve a Revolução Francesa, quem é que estava no poder agora? A burguesia. E, evidentemente, as formas de exercício do poder são revestidas, sobretudo, de uma preocupação legislativa. Daí a importância que tem o Parlamento no horizonte de um Estado Liberal clássico, e a fonte de manifestação do Direito, por excelência, é precisamente o produto da atuação parlamentar. Por isso mesmo a lei termina sendo uma fonte importante nesse jogo.

Ok. Mas, do ponto de vista da Teoria do Direito, o que é que se desenvolve do ponto de vista de orientação metodológica para como interpretar o Direito, como aplicar o Direito. O que é que aconteceu depois da Revolução Francesa? Alguém se lembra disso?

Dentre as várias escolas jurídicas modernas, talvez essa, que eu vou agora contar, tenha sido emblemático pelo que ela representa até hoje quanto padrão analítico do papel dos Poderes na interpretação do Direito. Eu estou falando especificamente da escola da Exegese,

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portanto, fundamentalmente, a escola da exegese tem o compromisso de limitação do poder de criação de juízes e tribunais. Por que isso? É evidente. Se a burguesia se faz representar no Parlamento, e se a lei, enquanto expressão jurídica, é algo que tem importância, é claro que para quem for interpretar essa lei é preciso que exista uma contenção, uma limitação em eventuais processos criativos. E, sobretudo, o risco aqui era de que os juristas simpáticos à causa absolutista anteriormente vigente pudessem colocar em risco as conquistas da população. Por isso a escola da Exegese se preocupa, sobretudo, com a consagração de métodos que a gente bem conhece, fundados na análise literal, ou seja, na análise textual, gramatical de cada palavra que integra a lei, já que o que deve ser respeitado e observado na hora da interpretação e da aplicação do Direito é, sobretudo, a vontade do legislador, ou seja, aquilo que o legislador fixou como sendo o padrão fundamental de juridicidade. Portanto, vejam, existe uma explicação do ponto de vista do jogo de poderes que de certa forma mostra o que efetivamente se desejava com a limitação do poder judiciário e a necessidade de se manter estritamente fiel aos termos do texto.

Bom, existe aqui uma grande crença embutida nisso. A grande crença de que o Direito enquanto texto, ou seja, o Direito legislado tem resposta para tudo. Vocês bem sabem que não cabe a um juiz simplesmente dizer “não posso decidir porque não há previsão”, ou seja, se ele não consegue decidir é porque, de certa forma, ele não soube identificar no texto a resposta para um caso concreto que surge de sua apreciação, de sua análise.

Essa questão torna-se um tanto quanto problemática a partir do momento em que se desenvolve um discurso em torno de lacunas. Ou seja, talvez a plenitude pretendida pela escola da Exegese talvez seja uma ilusão, já que eventualmente podem existir situações em que o texto, o código, a lei inteira, todas as leis não tenham encontrado mesmo, não tenham previsto uma situação que é submetida à apreciação do juiz, e ele tem que decidir. Aliás, esse é um dos princípios dogmáticos elementares, como a gente bem sabe. Se a lei não existe ou enfim se não existe resposta evidente, o juiz não pode simplesmente dizer: “olhe meu filho, vá para casa, ligue para o seu deputado, mande-o legislar, quando ele tiver resolvido, você volta”. Isso não é plausível. Ou seja, o juiz, se falta texto, se falta lei, se falta norma, ele que crie, ele que viabilize a aplicação do Direito, para que ele possa exercer a jurisdição, jurisdicer, dizer o Direito, enfim, naquele caso concreto. Vejam que, do ponto de vista do ele representa, nesse quadro aqui, a gente tá dizendo aqui que é perfeitamente possível agora conceder liberdade de criação para o juiz, não é pessoal? Vejam que isso era algo que não era, de certa forma, visto com bons olhos pelos teóricos da escola da Exegese. Nesse caso, porem, nesse caso em que estivermos eventualmente diante de lacunas, cabe ao intérprete, para exercer a sua função jurisdicional, cabe então a possibilidade de proceder a uma livre investigação científica, com objetivo de colmatação de lacunas. Vejam que, de uma forma geral, todos os cânones das normas da exegese continuam ainda fortemente consagrados mesmo diante da livre investigação científica. A grande novidade aqui é, primeiro, o reconhecimento de que o texto não tem resposta para tudo, ou seja, o código não tem resposta para tudo, existem, portanto, questões, que demandam uma criação. Portanto, vejam que a gente tem aqui, de certa forma, uma atenuação da rigidez daquele compromisso textual, compromisso com o texto, com a vontade do parlamento, e, sobretudo, a possibilidade mesmo de conceder que ao intérprete que crie o Direito.

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Bom, uma terceira escola que eu quero trazer pra vocês aqui talvez radicalize esse argumento. Eu quero falar aqui da Escola do Direito Livre, que traz como grande parâmetro decisório que o intérprete não concorde com o texto, não concorde com a lei, mas com o Direito enquanto expressão de uma justiça. Em suma, se a Justiça puder ser alcançada através do texto, tá ótimo, tá tudo legal! Mas, se o referencial de Justiça a ser analisado estiver fora do texto, o texto cede, e o que importa é o referencial de Justiça que o intérprete tem para o caso concreto. Ou seja, o compromisso do intérprete não é com a lei, mas com a Justiça. Por isso que ele está livre para criar e adaptar o Direito.

Vejam que a gente tem aqui algumas coisas interessantes também que eu queria trabalhar com vocês. Primeiro, do ponto de vista da teoria das fontes do Direito a gente tem algo bem importante aqui também. Por exemplo, eu falei da Lei o tempo inteiro, mas daí eu pergunto para vocês: e o costume? O costume tem espaço nessas escolas aqui? A propósito, o costume é fonte formal ou fonte material do Direito? (...) É fonte formal! Costume é uma fonte tão formal do Direito quanto a lei. Vocês sabem qual a diferença entre o costume e a lei? Algumas diferenças, como a vigência e a eficácia, são bem evidentes, não é isso? Porque, na lei, a vigência é a priori e a eficácia é a posteriori, mas no costume essa lógica é invertida, no costume a eficácia é a priori e a vigência é a posteriori, ou seja, não há lei eficaz que não seja vigente, como não há costume vigente que não seja eficaz. Ou seja, pessoal, o costume, assim como a lei, encerra uma norma, um dever ser, porque a lei não é a norma, a lei é apenas uma fórmula textual a partir da qual a gente encontra um juízo de dever ser. Assim como acontece com qualquer pratica costumeira, a gente encontra na prática costumeira também um juízo de dever ser a partir da conjugação de dois elementos: um objetivo e um subjetivo. O elemento objetivo é a prática reiterada de atos ao longo do tempo. E o elemento subjetivo é a opinio iuris vel necessitati, aquela intuição da obrigatoriedade. Não basta que seja repetido o ato ao acaso, é preciso que haja aquele sentimento de que a conduta é devida, né? Aquele sentimento de que aquilo que é praticado é fruto de uma prática obrigatória. Mas vejam, por que eu estou dizendo tudo isso? Porque do ponto de vista da consagração da teoria das fontes do Direito, cada uma dessas escolas tem um compromisso com UMA espécie de costume. Assim, a escola da Exegese tem um compromisso com o chamado costume secundum legem, o costume segunda a lei. A Livre Investigação Científica tem um compromisso com o chamado costume praeter legem, aquele costume para suprir a lacuna da lei. E a escola do Direito Livre tem um compromisso com o costume contra legem, aquele costume contrário à lei. Vejam, portanto, que do ponto de vista da teoria das fontes, cada uma dessas escolas representa a valorização ou o compromisso com UMA fonte em detrimento das demais. Por exemplo, na Escola da Exegese, a gente encontra a lei como fonte principal, mas isso não significa que outras escolas não possam valorizar, como acontece, por exemplo, com a Escola do Direito Livre, o costume mesmo, prática costumeira mesmo, diante da própria lei, né? Certo pessoal? Está claro, não está?

Bom, uma outra análise, do ponto de vista de uma axiologia jurídica, de uma análise dos valores que cada uma insere. Um dos debates fundamentais enfrentado pelo pensamento jurídico moderno, eu diria que esse é um problema que até os dias de hoje permanece muito vivo. Vocês vão identificar muitas preocupações do ponto de vista teórico que vocês por ventura tenham, como esse debate que eu vou propor. É o debate Segurança vs Justiça. A gente está habituado a colocar esses dois valores em tensão, de forma que quanto mais

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segurança, menos justiça, e vice-versa, quanto mais justiça, menos segurança. A gente fala em segurança como previsibilidade, como controle do acaso. E justiça como a realização, enfim, do Direito, para cada caso concreto, diante de suas especificas características. Bom, eu posso dizer então que a Escola da Exegese tem compromisso com o valor da segurança, pessoal? Isso parece bem claro e evidente, ne? Parece bem claro que quando o legislador coloca como padrão fundamental de juridicidade, evitando qualquer processo de ação por parte do Judiciário, ele está preocupado em controlar, não é? E um controle, portanto, de algo que possa reverter conquistas, enfim, que estão lá configuradas. Pode-se dizer que a Escola do Direito Livre tem compromisso com a Justiça? E talvez seja importante lembrar que, do ponto de vista desse debate, dessa tensão, justamente a Escola da Livre Investigação Cientifica talvez traga um retrato do caráter tencionário mesmo desses dois valores quando postos em confronto. Porque a investigação autorizada para juízes e tribunais suprirem lacunas, vejam lá, é livre desde que orientada por padrões científicos. Ou seja, existe liberdade, mas essa liberdade não é plena. Não é plena a ponto de permitir a criação aleatória do Direito. Ela só é válida, só é legítima se existir uma informação, ou seja, um controle científico do processo decisório. Então vejam que isso é bem interessante, não é? A gente pode perceber, portanto, que o pensamento moderno, ele insiste em algumas constantes, umas formas, que, eu diria para vocês, isso permanece até hoje. Quem quer que leia, por exemplo, o Robert Alexis, na teoria da argumentação, que é uma teoria Moderna, no sentido de que tem compromisso com a razão moderna, vai encontrar a mesma dificuldade no que se refere à articulação entre segurança e justiça. O que é a teoria, por exemplo, da argumentação de Alexis se não a afirmação de que é possível aplicar o Direito de forma controlada, ou seja, mesmo quando o Direito se transveste de valores, como acontece, por exemplo, com os direitos fundamentais, não é isso? Então a teoria do Alexis é, na verdade, uma teoria que propõe oferecer um modelo de aplicação justa do Direito, e, ao mesmo tempo em que essa justiça pode ser realizada, ela pode ser controlada, portanto ela não foge ao padrão de segurança. E esse não foi um problema só de Alexis, eu falei dele porque eu sei que todo mundo aqui o conhece, mas qualquer teoria da argumentação tem, como sua base, essa preocupação.

Pois bem, pessoal, eu gostaria de fazer uma pergunta para vocês. Existem diferenças ideológicas entre essas escolas? Conseguem perceber aqui? Eu estou tentando demonstrar para vocês desde o começo que a noção de um caráter, ou de um referencial explicativo pra o Direito, por exemplo, a partir da escola da Exegese, do Direito Livre ou da Livre Investigação Científica, qualquer que seja, implica, necessariamente, em legitimar papéis e funções para as fontes do direito, para poderes do Estado, não é? Vocês conseguem perceber aqui, por exemplo, uma disputa entre poderes por trás disso aqui? Conseguem perceber, né? Na escola da Exegese, por exemplo, a gente tem aqui a clara afirmação de uma superioridade do Parlamento, do Poder Legislativo. Quando a gente vai para a Escola do Direito Livre, a gente tem aqui o protagonismo atribuído não mais ao Poder Legislativo, mas agora ao Poder Judiciário. Portanto, vejam, ideologicamente existe compromisso de cada uma dessas leituras do Direito. Mas, apesar disso, posso dizer a vocês que existe algo que está presente em todas elas, e que talvez seja a marca do pensamento moderno. Bom, conseguem visualizar isso antes de eu responder? Eu estou, desde o início, caminhando para apontar o que diferencia. Agora é importante a gente tentar ver que talvez elas não sejam tão diferentes assim, talvez existam compromissos que estejam muito próximos e que todo o esforço da teoria seja o de

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demonstrar as diferenças talvez para legitimar diferentes projetos de poder para o Direito, etc. Conseguem perceber? O que identificaria todas essas escolas a despeitos dessas diferenças todas? (...) Bom, dizendo de uma forma mais direta, pessoal, talvez seja um falso dilema, Segurança vs Justiça, para começar. E digo a vocês por que. No horizonte da Escola da Exegese a gente visualiza claramente o compromisso da Escola e do Direito com a segurança. Perfeito. A gente não teve dificuldade em enxergar isso. Mas, que tal a gente pensar que talvez em uma sociedade pós-revolucionária, homogênea como era a sociedade francesa então, falar em segurança talvez possa ser a representação maior de uma justiça possível naquele contexto, não parece? Não faz sentido isso? Ou seja, ser justo é, sobretudo, prestigiar a segurança, ou seja, prestigiar e impedir o retorno de uma estrutura absolutista. Isso é justiça.

O que eu estou querendo dizer é que segurança e justiça, no momento em que a Escola da Exegese se afirma como tal, andam de mãos dadas, não há esse divórcio, essa separação, que só começa a aparecer de forma mais clara quando essa sociedade, antes homogênea, começa a se fragmentar e a se pulverizar em interesses diversos, certo? E a escola do Direito Livre, que, aparentemente, só tem compromisso com a Justiça, talvez consagre um referencial importante de segurança, à medida que a segurança que se pode esperar é com a aplicação da Justiça no caso concreto. E ser, portanto, justo nisso, é controlar, de alguma forma, o acaso. A garantia de que a justiça possa ser realizada seria uma forma de controle do acaso. Ou seja, isso aqui talvez seja uma grande falácia, uma grande mentira criada pelo pensamento moderno. Mas isso não é só. O que eu quero dizer é que existem outros fatores que, internamente, ou seja, se você entrar nas entranhas de como o raciocínio jurídico é construído rumo á aplicação do direito, vocês vão ver que vai estar presente, tanto em uma quanto em outra, e nas que eu não coloquei aqui, como por exemplo, a jurisprudência dos conceitos, que representa outros compromissos, mas que, no fundo, são variações em torno de uma mesma preocupação. Ou seja, uma constante é essa lógica axiomático-dedutiva que é consagrada invariavelmente por essas escolas. Ou seja, aquele encadeamento de premissas, premissa maior, premissa menor, conclusão, isso está presente na Escola da Exegese, a premissa maior é a lei, a premissa menor é o fato, e a conclusão é o dever ser que se obtém a partir da conjugação dessas premissas. E isso está na Livre Investigação Científica da mesma forma e também no Direito Livre, claro que a premissa maior no Direito Livre não é a lei, mas o conceito de Justiça, o conceito transcendente de justiça que se tenha e que viabilize, em cotejo com os fatos, chegar no dever ser concreto. Ou seja, pessoal, esse apego lógico, axiomático-dedutivo diz muito do pensamento jurídico moderno. Sabe por quê? Porque, se vocês observarem, são bem diferentes do ponto de vista jurídico, do ponto de vista ideológico, do ponto de vista da afirmação de poderes, né? Mas, de alguma forma, todas elas buscam a sua legitimação através de uma estrutura racional, dedutiva, isso é típico da modernidade. E a pergunta que a gente poderia fazer é: Por que esse apego à razão se, no final das contas, essa mesma razão pode legitimar ideologicamente diferentes modelos de Direito e de Estado? Ou seja, a razão é mesmo neutra, ou será que ela cumpre um papel nesse jogo aí? O que é que vocês acham? (…) É uma forma eficiente de se eximir de responsabilidade. Segurança é importante para o Direito? Ou Justiça é mais importante? Isso não é uma resposta difícil. O que eu quero ponderar é que, quem quer que esteja preocupado com segurança, evidentemente estará preocupado com algo que tem e que pode perder. Eu quero saber: quem não tem nada, por que vai querer segurança? Quem não tem nada quer mais a loucura

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mesmo, não é isso? Então o discurso em torno de segurança, que, de certa forma, a ideia de razão consagrada pela modernidade traz, revela um compromisso muito claro com a manutenção de uma certa situação, de uma certa conquista, que eu já caracterizei para vocês no começo como uma conquista tipicamente liberal, não é, com a situação para que ela permaneça como está. Então só se preocupa com questões como controle, segurança, previsibilidade, quem tem algo a perder. Eu não sei se a gente consegue se dar conta disso. Afinal de contas, o discurso de Direito no qual a gente se envolve é um discurso tao esquizofrênico e acho, às vezes, alheio a esse debate, que às vezes a gente toma como ponto de partida essas questões que já são dadas como se já fossem oferecidas pela natureza, e não como se fosse fruto também de um processo de construção, não é? Isso tudo aqui é construído. Isso tudo aqui é, claro, consagrado como natural, como normal, mas que é fruto de uma construção, e que tem implicações, portanto, ideológicas e evoluídas. Mas se a gente for para os manuais de Direito, nada disso é problematizado. Porque o ponto de partida, o referencial inicial é algo que é posto além disso aqui, portanto isso aqui é posto para trás, não há mais o que discutir. Então é isso, vamos ver o que a gente faz com Justiça a partir desse diferencial. Vamos ver o que a gente faz com Direitos sociais a partir do que é dado de antemão, enfim, são questões importantes, não é?

Então agora vamos anotar algumas ideias no caderno:

“O pensamento jurídico moderno tem apresentado uma certa variedade de teorias destinadas a explicar o papel do Direito e do Estado diante da sociedade. A primeira escola surgida no contexto pós revolucionário tem nos parâmetros da Escola da Exegese a sua principal consagração. Para a Escola da Exegese, não cabe ao intérprete criar Direito que não esteja consagrado textualmente na legislação. Este referencial esconde a crença na plenitude da lei, significando que todas as respostas para problemas apresentados a um intérprete estão previstos pela lei.

Esta percepção começa a ser relativizada a partir da constatação de que o Direito, enquanto expressão legislada, pode apresentar lacunas. Em tal hipótese, é autorizado ao intérprete o exercício de uma livre investigação científica.

Uma terceira formulação teórica entende que o compromisso do intérprete não é exatamente com a lei, mas com a Justiça. Por isso, na Escola do Direito livre, é possível perceber um amplo poder criativo por parte do intérprete.

Apesar dos claros compromissos ideológicos, e apesar das diferenças quanto à definição do papel de cada um dos poderes do Estado, bem como das fontes consagradas por cada modelo, existe uma constante que vincula todas estas formulações a uma mesma forma de pensamento. Esta constante é dada pela presença da lógica axiomático-dedutiva em cada uma destas escolas.”

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5. Aula 14.03.2013

Bom, vamos lá, então, aproveitar esses minutos que nos restam... É, bem, na aula passada, vocês viram que eu tive a preocupação de tentar mostrar pra vocês que, de alguma forma, mesmo a teoria de uma pretensão de neutralidade cumpre uma função ideológica, cumpre um papel de certa?[...] de definição das atribuições de cada um dos poderes do estado e que isso varia em virtude das diferentes funções teóricas e apesar disso existe uma constante, algo que permanece invariavelmente que é a busca de uma blindagem ou pelo menos de uma tentativa de tentar construir defesas contra críticas a partir da noção de um referencial de racionalidade. Bom, eu queria hoje tentar mostrar pra vocês, no que se refere ao processo de colmatação de lacunas, de que forma enfim a subjetividade também aparece. Então, quais são as fórmulas que a gente normalmente que a gente utiliza para colmatar uma lacuna. Quando o juiz encontra lacuna, o que é que ele faz? Ele tem que decidir, já que ele não pode se eximir de resolver ou, de, enfim, de exercer jurisdição, mesmo que falte texto legal que oriente a sua decisão. Então, ele vai criar. Mas essa criação é orientada por determinados parâmetros. Quais são eles? O que é que um juiz, enfim, que técnicas, que formas, que modelos, que moldes, ele pode utilizar pra promover a formatação da ... pode ser a partir da ...?

[resposta] Analogia?

É, essa seria uma forma de integração, né. Mas existem outros modelos, como, por exemplo, a aplicação... Vamos lá, da analogia, da equidade, mas também da aplicação do costume e dos princípios gerais do direito. [anota no quadro: analogia, princípios gerais do direito, costume e evidentemente a equidade] Bom, a analogia é um processo objetivo de aplicação de uma norma a uma situação por ela não prevista e que tenha algum padrão objetivo pra aplicar por analogia uma norma e numa situação a outra? Bom, pelo que a gente aprende, a analogia consiste fundamentalmente na aplicação de uma norma N a uma situação Y de tal forma que essa aplicação só é possível porque a situação X prevista pela norma N é análoga a Y. Vamos tentar fazer uma decomposição. Vamos imaginar que a norma N previu expressamente a situação X e, portanto, ela é aplicável a X. Quanto a Y, não há previsão. Não há previsão de texto normativo. Muito bem. Vamos supor que a situação X é composta pelos elementos a, b, c, d, e, f. E a situação Y, é composta pelos elementos a, b, c, d, g, h. Pergunta é: Eu posso aplicar então por analogia a norma N que previu a situação X para a situação Y? Evidentemente que tem que ser diferentes, porque se X fosse igual a Y, então, a norma previu a situação. Posso ou não posso? E agora? O que vocês me dizem? A gente tem, portanto, em cada situação, seis elementos, quatro deles são elementos comuns e dois deles são elementos diferentes, que diferenciam cada uma dessas situações. Cabe a aplicação da analogia? Bem, é impossível dar essa resposta a priori porque isso vai depender de um processo de construção, ou seja, se a, b, c e d que são, portanto, elementos comuns forem os elementos essenciais, que definem tanto X quanto Y, eu posso sim aplicar a analogia. Mas se os elementos que definem X e Y forem justamente os elementos que os diferencia ... e, f, g h h ... não cabe a aplicação da analogia. O que eu quero dizer com isso é que existe um amplo espaço de construção aqui e de manifestação da subjetividade porque se eu quiser legitimar a aplicação da analogia, eu vou reforçar a importância dos elementos comuns e minimizar os elementos que diferenciam as duas situações. Por outro lado, se eu quiser rejeitar a analogia, o que eu

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vou fazer é justamente enfatizar esses dois elementozinhos aqui em cada situação e afastar ou minimizar esses elementos comuns, ou seja, a analogia não é um procedimento objetivo de aplicação de uma norma a uma situação que seja objetivamente análoga, ou seja, essa equivalência ou essa possibilidade de aplicação, ela é fruto de um processo de construção, portanto, de manifestação de uma subjetividade. Segunda situação. Os Princípios Gerais do Direito. O que são os princípios Gerais do Direito? E agora? A gente ouve falar de princípios o curso inteiro, introdução, direito constitucional, direito empresarial, etc., tudo tem princípios, mas o que é o princípio geral do direito afinal de contas? Se vocês já não cansaram de ouvir falar em princípio geral do direito. Eu pelo menos acho que princípio diz muito menos do que a gente imagina. Eles terminam sendo aquele motor pra resolver tudo: “segundo princípio tal”, inventa-se o princípio e tá tudo certo. Mas o que é um princípio geral do direito para o pensamento jurídico? Não confundam o princípio geral do direito com o princípio positivado. Essa aqui é uma leitura típica da tradição civilística, portanto, na tradição pós positivista, liga à tradição pós segunda guerra mundial, de vinculação do direito sobretudo a valores. Os princípios são expressões de valores que adquirem uma carga normativa própria. Toda uma formação alexiana, que eu já falei de Alexy ontem, mas enfim a formação alexiana coloca princípios como dados de otimização porque eles precisam ser realizados, ou seja, concretizados, já que eles são normas, são verdadeiras expressões do dever ser. Esse princípio aqui não tem essa leitura. Princípio Geral do Direito é aquele princípio que a gente encontra a partir de uma dupla operação. Primeira a partir de uma indução e, depois, a partir de uma dedução. Então, o PGD, que a gente aprende no início do nosso curso, funciona como uma estrela polar ou um norte que orienta a decisão, orienta a aplicação do direito naqueles casos em que existem as lacunas. Então, como é que eu encontro o PGD? Eu tenho uma situação X que a princípio não foi regulado ainda por nenhum texto normativo, mas eu posso identificar uma série de outras situações que tem características bem parecidas com essa e que tem uma certa identidade fática e jurídica e que a partir disso podem então inferir que estão situações são orientadas, reguladas, por um princípio geral do direito, uma norma que supostamente serve de matriz para colmatação desse tratamento jurídico [?] então eu posso a partir disso encontrar o princípio geral do direito depois disso eu volto e aplico pra essa situação concreta. Vejam que eu tenho aqui uma operação de ida, de inferência e, portanto, de indução, e, depois, eu tenho de volta, de dedução, aplicando para o caso concreto, por isso, a gente diz que o PGD, ele, na verdade, não tá escrito, não é um princípio positivado, que tem uma base textual, mas funciona como uma espécie de norte metodológico a orientar a estratégia de aplicação do direito. Esse processo de inferência, de dedução, ele é um processo objetivo também? Me parece que não. Assim como na analogia, é nítida a possibilidade aqui de interferência, ainda que exista uma tentativa de controle a partir de uma operação racional, é nítida a possibilidade aqui de criação e de uma interferência que não pode ser exatamente compartilhada de uma forma objetiva. É algo que é fruto de uma subjetividade que interpreta, que, portanto, dialoga especificamente, que pode variar de juiz pra juiz, evidentemente. Bom, e o costume, o que dizer do costume? Já conversei um pouco com vocês ontem e disse que o costume é, enfim, caracterizado como norma jurídica, mas que na prática reiterada de atos ao longo do tempo aliada a um sentimento de obrigatoriedade. Mas eu pergunto, quantas vezes é preciso na prática, seja considerado obrigatório? Quantas vezes? Duas, quatro, mil? O costume, pessoal, ele precisa ser provado. Quem quer que pretenda deduzir a sua pretensão em juízo amparado num costume, precisa provar justamente isso, que é uma prática reiterada

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de atos que não é praticada ao acaso, mas com um sentimento de obrigatoriedade. Já que em via amparada na lei, não precisa provar existência da lei. Ou seja, o costume ele torna-se válido enquanto norma a partir do momento em que ele é reconhecido pelos tribunais, ou seja, o juiz se deixa convencer de que existe ... portanto isso é uma norma ... esse processo é evidentemente um processo também que não tem nada ou quase nada de objetividade no sentido de que também é fruto de um processo de construção argumentativa. E, finalmente, a equidade, não precisa nem chamar a atenção pra isso, a equidade é um sentimento de justiça, ou seja, um sentimento de justiça, de justa medida, de ponderação, de moderação, de equiparação, que também não é lá algo objetivo. Resumindo, as formas de integração do direito, as formas de colmatação de lacunas do direito são extremamente permeáveis À subjetividade, essa a conclusão inicial. Uma segunda conclusão, a própria identificação da lacuna não é algo objetivo, uma determinada situação pode ser submetida a um juiz e ele dizer "isso daqui eu decido com base na lei tal", e a mesma situação para um outro juiz, pode este dizer, "não existe previsão legal portanto eu posso criar aqui", usando analogia, equidade, seja lá o que for. Portanto, o processo de identificação lacuna em si é permeável de subjetividade. Segundo, a escolha pelo método ou pela forma de colmatação da lacuna também é absurdamente subjetiva porque pode escolher entre a analogia, o princípio geral do direito, o costume, não existe nada que obrigue a uma utilização progressiva de uma para outra. Escolhe livremente. O próprio processo em si, a analogia, a equidade, etc., ele próprio é também permeável à subjetividade. Resumindo, apesar do esforço da teoria moderna em esconder essas brechas na subjetividade, apesar da ênfase num controle, na ênfase na objetividade, na possibilidade de universalização de um padrão decisório, resta evidente que existem amplos espaços de manifestação de uma subjetividade que no final de contas é uma preferência pessoal, consciente ou inconsciente, não interessa, mas que tem problemas no que se refere a uma universalização. Isso é uma coisa que, enfim, chama atenção para o pensamento jurídico moderno. A ausência de reflexão sobre qual é o espaço da subjetividade, qual o espaço da manifestação da pessoa enquanto ser que pensa e evidentemente enquanto ser humano estar absolutamente suscetível a interferências externas e, mais do que isso, qual é o papel político, qual o papel enfim que cumprem cada uma dessas formas de decisão dentro de uma sociedade. O que eu acho que é conveniente o juiz decidir, eximindo-se de responsabilidade. De, por exemplo, dizer: "olha, eu decido assim porque eu quero". No final das contas, é muito isso, principalmente em sede de jurisdição constitucional. Muitas vezes o que a gente percebe é uma estratégia de transferir a responsabilidade ou pra lei ou pra técnica ou pra uma instância qualquer que não é a sua própria vontade, o seu próprio querer. E, dessa forma, o pensamento jurídico moderno contribui em muito para a continuação desse mito de que um juiz, ao decidir, está fazendo ciência. É meio esquizofrênico. A gente se mata de estudar numa faculdade de direito, num centro de ciências jurídicas, pra ter uma habilitação que nos permite entender e dominar essa técnica de decisão, pra passar num concurso, e, quando passa num concurso, isso não adianta, decide-se como quer. É preciso aprender linguagem específica pra quê? Cínico.

6. Aula 27.03.2013

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Bom, se eu estou bem lembrado, eu conversei com vocês no nosso encontro sobre o pensamento jurídico moderno e o modo como esse pensamento jurídico foi construído tendo em vista de uma legitimação de qual é a postura do jurista, a postura, enfim, do legislador, [dos povos?] ... exegese, livre investigação científica, história do direito jurídico, e a gente viu que cada uma delas cumpre um papel importante no que se refere a definir padrões de ação para cada um dos poderes, enfim, legitima determinadas fontes do direito como válidas ou talvez superiores às demais como acontece por exemplo com a exegese colocar a lei acima de qualquer outra fonte do direito, mas a gente começa a perceber que o costume ganha espaço com a livre investigação científica até chegar naquele ponto culminante onde a lei já não tem importância nenhuma, o que importa efetivamente é um sentimento de justiça que pode bem viabilizar uma aplicação no direito a partir de uma, enfim, de um costume contra a lei, contra legem inclusive...

Bom, o que eu queria conversar com vocês hoje sobre uma referência importante. Por que é que a gente já sabe que, apesar dessas diferenças todas, existe uma constante, eu tentei mostrar isso pra vocês, que é a insistência numa lógica somático-dedutiva e, portanto, de certa forma, pensando no compromisso com a racionalidade, no compromisso com a razão, ou seja, qualquer modo de pensar o direito, qualquer forma de raciocínio só é válida, só tem respeito se ela for traduzida em termos racionais. E o que eu queria conversar com vocês hoje, pelo menos começar a conversar já que em uma aula só é impossível dar conta desse tema, é talvez o ponto máximo da racionalidade no direito que a gente encontra, talvez, com a formalização empreendida por Kelsen na sua Teoria Pura do Direito.

Esse é o nosso tema da aula de hoje. É tentar ver de que forma a gente pode pensar o direito também como ciência. Aliás, eu queria perguntar para vocês: Direito é ciência? Ou não? [risadas] É. É ou não é? Bom, a gente tem aqui de fato um Centro de Ciências Jurídicas, o CCJ. Formalmente, a gente tem um estabelecimento de um compromisso com a ciência. [Aluno: Que ciência é essa que com uma penada do legislador...?] Bom, mas essa é que é a questão. Será que por ciência do direito, ela confunde-se com a ideia de Direito como norma? Ou seja, a ciência do direito é a própria norma? Como é que é isso? Me parece que essa é uma discussão importante e me parece que a gente está muito mal resolvido quanto a isso também. Apesar de a gente passar cinco anos num CCJ para a gente ter uma formação pretensamente científica, no final da história, a gente tem dúvidas quanto a nossa própria condição de cientista. Isso é muito interessante, a gente não consegue diferenciar de forma muito clara o fazer do cientista com o fazer de um operador do direito.

Afinal de contas, existem, na prática, diferenças evidentes. Vamos lá, vamos pensar no cientista, qual é a imagem que a gente tem do que um cientista faz? Se a gente pensa num cientista, a gente pensa num cara de branco, vestido de jaleco num laboratório fazendo experimentos. E fazer experimentos significa, sobretudo, observar. Sobretudo olhar o que acontece diante de modificações que ele introduz no seu espaço, no seu objeto, certo? Vamos lá, se a gente pensa dessa forma, a gente pode perceber que a função do cientista é sobretudo com a descrição de fenômenos, de algo que ele pode observar de forma controlada. É o que o cientista faz.

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Na área do Direito, o que é que nós fazemos? Qual é o compromisso de alguém que tenha formação jurídica? A gente tem um compromisso de descrever o quê? Eu diria que o nosso compromisso é sobretudo com a prescrição. Ou seja, ao invés de a gente trabalhar com juízos de fato - a gente não diz as coisas como são -, a gente tem a preocupação em dizer as coisas como elas devem ser. Portanto, a gente tem uma preocupação que não é propriamente descritiva, mas prescritiva.

Vejam, pessoal, isso é tão interessante que a própria forma como nós nos olhamos, enquanto pessoas que têm formação jurídica, ela não consegue dar conta de quando estamos prescrevendo e de quando estamos descrevendo. Esse é um problema que eu percebo inclusive na pós-graduação, no mestrado e doutorado das turmas aqui. E ,com muito mais razão, na graduação, né. Por exemplo, esses trabalhos que vocês estão fazendo, que fizeram, defenderam, etc. Os trabalhos de conclusão de curso, são trabalhos científicos por quê? Qual é a nota científica deles? [Por que tem uma] pesquisa? Pesquisa no Direito é uma coisa engraçada. A gente reúne fulano disse isso, beltrano disse aquilo e eu acho isso. É assim que a gente faz pesquisa. Uma boa pesquisa tem 10 fulanos, 10 beltranos e um eu que acha alguma coisa. Mas, pessoal, os trabalhos de vocês, eu tenho quase certeza, estão preocupados em resolver uma coisa. Sempre resultam em um dever ser, em uma prescrição de alguma coisa. Como algum modelo de acesso à justiça, por exemplo. Uma nova forma de conceber uma tributação mais ágil, célere, o que for.

Pensem no tema de vocês e vocês vão ver que vão ver que deve ter coisas bem parecidas com isso. E eu, sinceramente, acho que esse tipo de trabalho que a gente faz aqui, que tem a forma, muitas vezes, de um trabalho acadêmico, de uma monografia, com todos os elementos, agradecimentos, dedicatória, etc. Ela poderia muito bem, arrancados todos esses elementos que dão a cara de uma monografia, e ser vertida, por exemplo, em um parecer, não é? Podia ser um parecer, podia ser, enfim, qualquer coisa nesse sentido. Ou seja, o que eu quero mostrar é que não é por acaso que, na nossa área do direito, a gente tem pouquíssimo incentivo à pesquisa [continuamente?]. Compare o pessoal de física e o pessoal de direito. Isso vale para todos os níveis, a nível de graduação, pós- graduação, professores inclusive, né. ... Os currículos dos professores mais tops no direito no Brasil e comparar com os professores mais tops da Física no Brasil, é piada, né.

Ou seja, a nossa área é uma área de fato bastante, é, mal resolvida, quanto a essas questões e eu vou tentar, a partir da aula de hoje, tentar mostrar pra vocês que existe uma contribuição importante, uma contribuição relevante. Ao mesmo tempo em que é importante, é absolutamente polêmica, porque isso teve um custo muito alto do ponto de vista de uma purificação de uma depuração mesmo, né, do método que se estuda o direito que é justamente com Kelsen e a sua Teoria Pura do Direito. Eu diria que Kelsen parte de uma grande ambição que é a de construir um status de ciência para o Direito. Veja, se a era moderna, se a modernidade é a era da racionalidade e é a era da cientificidade, qualquer conhecimento só é digno de respeito se ele for científico. Se ele puder ser traduzido em termos de uma ciência, certo? Eu diria que essa talvez tenha sido a maior contribuição de Kelsen, ele vai dizer: sim, a gente pode pensar o Direito de duas formas. Podemos pensar o Direito como norma, portanto, o Direito com seu compromisso com prescrição, mas podemos pensar também o Direito como ciência. Podemos pensar o Direito, também, como descrição.

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Ou seja, como instância descritiva. Essa distinção fundamental, portanto, entre ser e dever ser, entre mundo dos fatos e mundo das normas é fundamental. Eu diria que é o centro de gravidade da própria teoria pura do direito. Não é dele essa distinção, Kelsen. Isso já vem de Kant, mas ele aproveita, se apropria disso e constrói a partir disso um status de cientificidade absolutamente original para o Direito. Pra começar, no mundo do ser, a gente tem algumas preocupações que não são exatamente as mesmas preocupações que existem no mundo do dever ser. Pra começar, o mundo do ser trabalha com fatos. O mundo do dever ser trabalha com normas. O que implica numa seleção de valores, ou seja, de escolhas, né. É preciso entender que toda norma seleciona dentre várias possibilidades aquela que é mais desejável. Por isso, o dever ser estabelece qual é a conduta, qual é o valor, qual é a postura, enfim, a ser adotada.

-Professor, todo dever ser é um ser também?

-Como assim? Me explica.

-[explicação inaudível]

-O que Reale vai dizer na teoria tridimensional é que o direito é um fenômeno que, ao mesmo tempo, implica em uma apreciação de uma dimensão fática, de uma dimensão valorativa e de uma dimensão normativa. Ou seja, o Direito, portanto, ele não se exaure em uma dimensão fática, ou... Vou dar um exemplo bem simples pra você. Se a gente pensar numa sentença judicial, existe uma preocupação normativa, não existe? Por que uma sentença é sempre uma definição sobre como deve ser aplicado o Direito. Concordam ou não? Mas isso parte de uma apreciação de uma situação fática. Aliás, pra ser bem explícito no argumento, eu posso lembrar pra vocês que toda e qualquer petição tem lá: dos fatos, do direito, do pedido. Ou seja, os fatos estão lá. O problema é saber como a norma incide sobre esse fato, ou seja, como esse fato será qualificado pela norma. Então, talvez essa seja a leitura.

Mas o que eu quero mostrar é que existem duas formas pra qualquer pessoa emitir juízos. Ou a gente emite juízos de realidade, ou a gente emite juízos de fato, desculpa, juízos de valor. Então o juízo de realidade é o juízo de fato. Eu digo como as coisas são. A FDR é bonita, por exemplo. Esse é um juízo de fato. O juízo de valor envolve um dever ser. Eu diria: a FDR deve ser bonita. Esse dever ser não é "um eu acho que ela deve ser bonita". É um dever ser enquanto prescrição, ou seja, ela tem que ser, necessariamente, transformada em algo bonito, belo aos olhos de quem a admire, certo? Pra isso, se isso fosse uma norma - a FDR deve ser bonita - a gente teria que ter uma estrutura administrativa permanentemente dedicada a cuidar da beleza da FDR. Conseguem perceber essa distinção entre juízo de fato e juízo de valor?

Então, vamos lá. Se a gente percebe, então, essa distinção, a gente pode, então, dizer que o mundo do ser opera com verdade. O crivo de aferição de um juízo de fato é a verdade. Um juízo de fato será, portanto, verdadeiro ou falso. Por exemplo, a FDR é bonita. Isso é verdadeiro ou é falso. Será verdadeiro se houve ruma correspondência com isso que o enunciado descreve e a realidade. Ou falso se essa correspondência não houver. Já juízos de dever ser, juízos prescritivos, são submetidos a critérios que não são exatamente critérios de verdade. uma norma é verdadeira, pessoal? Nunca, né? Uma norma será válida ou não.

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Portanto, o critério de aferição aqui é o da validade, não da verdade. Portanto, aqui [anota no quadro] a gente trabalha com descrição e aqui a gente trabalha com prescrição.

Muito bem. O pressuposto fundamental de Kelsen, portanto, é exatamente, primeiro, essa separação entre esses dois mundos, realidades distintas: o mundo do ser e o mundo do dever ser. O mundo dos fatos e o mundo das normas. Claro que o mundo das normas, genericamente, aqui, vejam só, é o mundo da Ética, que compreende também o Direito, além da Moral, e de toda e qualquer dimensão normativa. Enfim, de dever ser, de juízo que a gente possa valorar. Tá claro até aqui?

O que Kelsen faz na sua Teoria Pura do Direito é uma purificação, pessoal, do método de estudo do Direito. Isso é importante porque a pureza qualifica, pessoal, não o Direito, mas a Teoria. Não é o Direito que é puro, mas a Teoria. Ou seja, Teoria Pura do Direito. Portanto, o que Kelsen reivindica é um método próprio e específico de investigação e do conhecimento do Direito. Atenção que isso é importante: o grande ponto e que talvez tenha gerado um grande incômodo em Kelsen, no sentido de perceber a necessidade de uma discussão mais efetiva desse método do Direito, é uma percepção de que havia um sincretismo metodológico. Tá lá no prefácio da TPD. Ou seja, o Direito, ele é conhecido, ele é estudado, um fenômeno jurídico, às vezes com método na historia, às vezes com método na política, da filosofia, mas nunca com um método próprio. E se a gente não consegue afirmar, vejam lá, um método específico que define um objeto e, portanto, criando aquela tríade fundamental do pensamento moderno: sujeito, objeto e método. Eu não tenho conhecimento científico e, se eu não tenho conhecimento científico, nosso conhecimento é um conhecimento inferior, enfim, menor aos olhos dessa lógica cientificista moderna.

O que é que ele faz? Ele procura depurar o método de estudo do Direito e criar, portanto, tirando tudo que não seja efetivamente aplicável a essa realidade jurídica. E criar, a partir disso, uma metodologia específica e que, finalmente, permite a afirmação de um status de cientificidade para o Direito. Eu vou levar algumas aulas pra chegar lá. Eu quero apenas começar a introduzir esse debate em vocês pra ver o que acontece. Seria uma espécie de ... [pressuposto, princípio?] de Kelsen, que será em duas ou três aulas, sei lá quantas a gente vai ter pra conversar sobre isso.

Pra começar, o primeiro pressuposto kelseniano é de que todo dever ser fundamenta-se em um outro dever ser. Vejam, essa distinção está presente em tudo. Na Teoria da Norma Jurídica, na Teoria do Ordenamento Jurídico, nas relações entre direito interno e direito internacional, enfim, está presente em várias e várias passagens da Teoria Pura do Direito. Mas esse pressuposto da irredutibilidade do dever ser ao ser significa que nenhum dever ser, nenhuma manifestação normativa, portanto, pode estra fundamentada em outra instância que não seja uma outra norma. Ou seja, norma fundamenta-se em norma. Nunca uma norma pode estar fundamentada em um fato. Portanto, vejam, separaram-se esses dois mundos. E a gente vai ver que esse é um problema crítico na Teoria Pura do Direito. Daqui a uns encontros a gente vai ver porque exatamente isso acontece.

É dessa ideia inicial que Kelsen constrói a imagem que talvez tenha notabilizado a sua TPD, que é a imagem de uma estrutura piramidal. Que também não é dele. A pirâmide é de Merkel e ele também se apropria para a criação da sua TPD. E se ele diz, então, que o Direito é uma

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pirâmide, ou seja, o Direito enquanto ordem jurídica, do ordenamento jurídico enquanto conjunto normativo, ele tá dizendo coisas importantes. Primeiro, está dizendo que existem diferenças qualitativas e quantitativas, vejam só, entre as diferentes espécies normativas que estão compondo o ordenamento jurídico. Pra começar, quantitativamente, a gente tem menos normas em cima e mais normas em baixo. Mas o que vai permitir, não só que uma norma seja colocada em cima ou em baixo, é a sua qualidade, ou seja, a sua dimensão qualitativa. Por que as normas que estão em cima são normas abertas, ou seja, mais porosas. Enquanto as normas que estão embaixo são as normas mais concretas. Normas aquelas que tem uma definição mais específica de uma situação concreta.

Primeira conclusão dessa estrutura piramidal é que a gente tem uma variação em qualidade e em quantidade das normas que compõem o ordenamento jurídico.

Mas, muito bem, a gente pode então, encontrar diferentes escalões normativos. Por exemplo, uma sentença é uma norma? É um dever ser? É um dever ser concreto, né? Que resulta na interpretação do Direito diante de circunstâncias fáticas. Olha o fato aí de novo aparecendo. Mas é um dever ser e, se é um dever ser e se todo dever ser fundamenta-se em outro dever ser, qual é o fundamento de uma sentença? Onde é que está o fundamento de uma sentença?

-Nas normas?

-Quais normas? Por exemplo, quando um juiz sentencia uma situação lá, que é um caso de homicídio, o que é que ele está fazendo efetivamente? O que é que ele tá aplicando? A princípio, bem especificamente, o art. 121 do CP. Matar alguém, pena de 6 a 20 anos. Inclusive, ela aparece lá, textualmente, na fundamentação da decisão. Em todas as situações que compõem o caso concreto em que está sob sua análise. Portanto a gente pode dizer que a sentença é aplicação de uma norma superior. No nosso caso, uma lei ordinária, né. O CP tem um, é um Decreto Lei formalmente, mas, enfim, ele foi recepcionado como Lei Ordinária, né. Assim como a gente poderia encontrar uma decisão fundamentada também em uma Lei Complementar. E eu diria que, de qualquer modo, Kelsen não teria grande dificuldade em, por exemplo, explicar esse fenômeno, dessa euforia principiológica, pra usar uma expressão de Humberto Ávila - aliás, um dos nomes cotados para o nosso STF. Ele diz essa euforia principiológica, reivindicando a força normativa para as regras.

Mas o que acontece efetivamente é que, se a gente pensa, a jurisprudência hoje, no Brasil, parece que adota esse pan-principiologisma, ou seja, aplica-se praticamente direto princípios constitucionais para situações concretas. Dignidade humana, princípio da igualdade, enfim, qualquer princípio que vocês imaginarem aí. Kelsen não teria nem nessa situação dificuldades, eu imagino, de explicar e fundamentar a sua visão do que é o ordenamento jurídico. Mas, em última análise, portanto, esse dever ser que fundamenta todo o ordenamento jurídico é a Constituição. Então, a sentença fundamenta-se em uma LO, que, por sua vez, fundamenta-se na CF ou [no exercício, numa regulamentação à LC]. Sempre uma norma superior. Até que a gente chega no ponto crítico da Teoria do Ordenamento Jurídico em Kelsen que é a pergunta, a resposta para a pergunta crucial: se todo o dever ser fundamenta-se em outro dever ser e, se a CF é um dever ser, onde está fundamentada a CF?

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Deixa eu fazer uma pergunta a vocês. Vamos esquecer que a gente tá conversando sobre Kelsen. E se um pequeno sobrinho de 12 anos, por exemplo, pergunta-se pra vocês, que estão se formando no curso de Direito: por que eu tenho que obedecer a Constituição? Como é que vocês iam responder? [silêncio]

-Já que tá todo mundo obedecendo... [risadas]

-Já que tá todo mundo obedecendo, eles obedecem também, né? Mas eu não acredito que um sobrinho de 12 anos ia provocar esse silêncio em vocês. É uma pergunta tão simples. Por que a gente tem que obedecer à CF.

-Por que, se não obedecer, há uma sanção.

-Tudo bem. A gente pode dizer que tem que obedecer porque tá todo mundo obedecendo e, se não obedecer, a gente vai ter problema. Mas do ponto de vista de uma crítica, de alguém que percebe: ó, essa ordem jurídica é uma ordem injusta. Por que que eu tenho que obedecer ela? Uma resposta possível e que seria plausível para a gente se organizar e compreender o funcionamento do Direito: a gente tem que obedecer a CF, primeiro porque ela é fruto de uma vontade soberana. Segundo porque existe um tal de poder constituinte que criou tudo isso aqui e esse poder é um poder que vincula e que nos obriga. Essa resposta é uma resposta plausível ou não? Vocês acham que essa não é a forma pela qual pelo menos a gente raciocina e pensa, por exemplo, em temas de legitimidade, etc. Sim ou não? Sim.

Mas Kelsen nunca poderia admitir isso. Kelsen jamais poderia dizer que a gente tem que obedecer à CF porque a CF é fruto de um poder constituinte. Por um motivo muito simples. Por que o poder constituinte, apesar de ser um poder jurígeno ?, ou seja, apesar de ser um pode capaz de gerar o Direito, de criar o Direito, ele é um poder de fato. Não é um poder de Direito. Isso significa que, se Kelsen dissesse que a gente tem que obedecer a CF porque a CF está fundada no poder constituinte, estou fundamentando uma norma, um dever ser, em um fato, em uma manifestação do mundo do ser. E, portanto, comprometendo esse pressuposto inicial de separação entre ser e dever ser. Se eu dissesse isso, eu poderia, então, perguntar: se a CF fundamenta-se em um fato por que é que a LO tem que se fundamentar em uma norma? Ela pode se fundamentar em um fato. Uma sentença também. Por que não? Ou seja, para Kelsen, isso implicaria na destruição da coerência interna da TPD. Por isso ele vai pelo caminho mais difícil e que é um dos caminhos mais criticados na sua TPD.

O que ele vai dizer? Não, a CF, assim como qualquer norma do ordenamento jurídico, fundamenta-se sim em outra norma. Só que essa norma não é uma norma posta. É uma norma pressuposta. Ou seja,é aqui que ele cria a chamada Teoria da Norma Fundamental, que é, necessariamente, uma norma pressuposta. Ela é um artifício lógico, sem o qual não dá pra pensar a coerência do ordenamento jurídico. Não dá pra pensar a coerência interna do ordenamento jurídico, enfim, do conjunto de normas que compõe esse acervo que a gente chama de Direito Positivo.

Então ele vai dizer o seguinte: a gente pode pensar a CF de duas formas. Em sentido lógico-jurídico e em sentido jurídico-positivo. CF em sentido lógico-jurídico é a CF é a norma pressuposta. E a CF em sentido jurídico-positivo é a norma posta. Tem um livro do Eros Grau

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que brinca com essa dualidade kelseniana. Direito posto ao Direito Pressuposto. É uma brincadeira no título do livro, mas é uma alusão direta a essa distinção. Por que essa norma tem que ser pressuposta? Por que não posta? Toda norma que é posta é posta por uma autoridade. E se existe uma autoridade capaz de por uma norma, de positivar uma norma, é por que essa pessoa foi investida por uma norma anterior de poder para tal. Ou seja, de autoridade. E, se existe essa outra norma, existe outra autoridade. Enfim, a gente ia subir ao infinito e nunca íamos chegar a uma solução. Kelsen vai pelo caminho mais complicado, que lhe rendeu inúmeras críticas, mas mantém a coerência interna da sua TDP.

Um outro aspecto importante. O que se refere às funções do Estado. Vocês sabem que Kelsen identifica Direito e Estado. Para Kelsen, Direito e Estado são a mesmíssima coisa, ou seja, o Estado é o seu próprio Direito repartido em esferas de competência. Então, se você quiser conhecer um Estado conheça o seu Direito. E esse é mais um aspecto diferente da teoria tradicional. Ele tem um livro, Teoria Geral do Estado e do Direito, em que esses argumentos aparecem mais intensamente do que na própria TPD. Mas ele vai dizer o seguinte: se a gente pensar na teoria clássica do Estado, quais são as funções do Estado? O que ele faz? O modelo de tripartição de poderes, ele faz o quê? Ou ele executa, ou seja, administra, ou ele legisla, ou ele julga. Isso dá origem aos três poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Kelsen vai dizer: nada disso. Só existem duas funções do Estado. Que são criação e aplicação do Direito. Só. Ou seja, ou o Estado cria Direito ou ele aplica Direito. E ele, então, com esse argumento, procura projetar essa ideia na sua visão piramidal. Ele vai dizer, olha, qualquer momento que eu tomar na pirâmide será, simultaneamente, criação e aplicação do Direito. Ou seja, se eu tomar, por exemplo, uma LO, ela é criação para todas as normas que estão abaixo dela, mas ela é também aplicação das normas superiores. Isso vale para a própria sentença que é criação, para tudo que se fundamenta em uma sentença, e também é aplicação de todas as normas que estão acima dela. Ou seja, toda norma é, simultaneamente, fundante e fundada, resultante de um processo de criação e aplicação do Direito. Salvo em dois momentos especialíssimos. Primeiro, na extremidade superior, onde a gente tem um momento de pura criação, não é aplicação de absolutamente nada. É esse momento, de encontrar a CF em sentido lógico-jurídico. É criação pura e simples. E, lá em baixo, eu diria, abaixo da própria sentença, por que a sentença é fundamento para os atos de mera execução. Aquele despacho - cumpra-se - é claro que todos os atos que apoiam-se nesse dever ser são fundados, portanto. São resultado de um processo de aplicação. Então, a gente vai ter a pura criação lá em cima e, aqui em baixo, a pura aplicação. Os chamados atos de mera execução, que não são criação de absolutamente nada. Mas, todos os outros momentos que eu trabalho na pirâmide, serão, ao mesmo tempo, criação e aplicação.

Isso é interessante por que permite, talvez, ultrapassar uma imagem, que a gente vai trabalhar com ela também na aula próxima, de que só o juiz cria o Direito. A gente, quando estuda Kelsen, lembra da história da moldura, que o ato de preencher, enfim, que a moldura é um ato de vontade, etc. E só o juiz faz isso, só ele cria o direito? Não. Se isso aqui de Kelsen é verdade, todos os atos normativos, produzidos no âmbito de um Estado, são decorrentes de um processo de criação. Esteja ele no âmbito do Poder Judiciário, do Poder Executivo ou do Poder Legislativo. Os três Poderes criam e aplicam Direito simultaneamente. Isso é importante, a gente perceber que o ato de criação do Direito não é apenas por via judicial. A gente tem os três poderes, enfim, atuando nesse sentido.

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Muito bem. O que mais eu posso dizer sobre isso aqui? Isso é uma grande teoria da validade, né. No final das contas, talvez seja essa a grande importância de discutir Kelsen nos dias de hoje. Eu tenho impressão de que Kelsen é tão criticado, tão combatido, quanto pouco lido. Muita gente fala em formalismo kelseniano, geometria [?]... Ele é mesmo. Ele é formalista mesmo. O que me parece é que falta, efetivamente, disposição de ultrapassar a TPD. Por que, se Kelsen tá morto, me parecem que esqueceram de sepultá-lo. E, se esqueceram de sepultá-lo, é preciso a gente discutir por quê? Afinal de contas, tudo que se propõe a discutir novos referencias para a teoria do Direito, partem justamente de Kelsen. Se fosse alguém insignificante, ele não ia ser sequer citado, ter sua importância cogitada.

-O senhor mencionou a Teoria Tridimensional. Ela é uma crítica a essa teoria de Kelsen.

-É. Em certo sentido, ela é uma tentativa também de demonstrar que o Direito é algo mais que a dimensão normativa, ou seja, não é apenas o dever ser que fundamenta o dever ser na sua forma. Por que isso é uma teoria formal do Direito. O que é o Direito válido pra Kelsen? É um Direito que está em conformidade com as prescrições mais superiores do ordenamento jurídico. Pra Reale, talvez a gente tenha outras preocupações pra conferir validade ao Direito seria importante a dimensão fática e a dimensão valorativa. Bom, é uma tentativa. Não sei se é uma tentativa que, no final das contas, consegue dar conta do fenômeno jurídico, mas é uma tentativa. Mais uma, existem várias outras.

A propósito, eu perguntaria a vocês, para todos que criticam Kelsen, que dizem que é um formalismo, eu pergunto a vocês: o que é uma norma válida? O que é que a vida forense, que muitos de vocês já tem, indica como sendo uma norma válida? Vocês me dizem.

-Quando o judiciário reconhece aquela norma?

-E se o juiz não reconhecer? Ela deixa de ser válida?

-Ela não deixa de ser norma, mas assim...

-Essa é uma leitura realista, né, do realismo, talvez, de Oliver Wendel Holmes, etc. Direito válido é o Direito aplicado nos tribunais.

-Não necessariamente, mas, assim, quando o senhor falou "o que seria uma norma válida?"...?

-É, o que seria uma norma válida?

-Bom, se ela for constantemente ... pelos tribunais?

-Sim, mas a norma é válida por isso?

-Não é propriamente, mas é parte do sistema ... se ela não tem aplicação?

-Aí é um problema de eficácia.

-... um juiz não considera uma norma correta.

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-Um só não, né. Tem que ser todos pra não reconhecer. Muitos juízes entendem que determinadas normas não são, enfim, aplicáveis. Mas nem por isso ela deixa de ser válida. Por que eu chamo atenção. Eu chamo atenção é que, apesar de todas as críticas, de tudo o que se diz de Kelsen, me parece que a gente trabalha muito perto desse conceito de validade ainda kelseniano. Me parece que, infelizmente, ou felizmente, não sei, a teoria jurídica não superou, não soube superar, este referencial que é uma teoria formal da validade. Aqui, pessoal, o que é um direito válido, uma norma válida pra Kelsen? É uma norma justa? Não. Não tem nenhuma preocupação com justiça aqui. O que é curioso porque Kelsen escreveu três livros sobre justiça. O que é justiça, o problema da justiça e a ilusão da justiça. Três livros grandes. Mas aqui não tem nenhuma consideração de conteúdo. Isso explica e fundamenta um direito, por exemplo, com preocupações liberais? sim. Com preocupações sociais? Sim. Explica um Direito nazista? Sim. Sem dúvida. Cabe pra toda e qualquer formulação de conteúdo jurídico. Já que o compromisso da teoria é com forma, não com conteúdo. Enfim, é um esquema. Ou uma caixa em que se coloca qualquer conteúdo, pronta pra portar qualquer conteúdo. Esse talvez seja a maior crítica a Kelsen: por ter vivido em uma época em que foi testemunha do nazismo, talvez sua contribuição, se não efetivamente no sentido de contrariar ou de demonstrar que o Direito precisa de um conteúdo, pelo menos quanto a isso, ele silenciou. Talvez seja essa uma crítica biográfica importante. Mas rigorosamente, eu não acredito que Kelsen tenha sido simpático à causa nazista. Até por que ele viveu os últimos anos de sua vida na Califórnia, fugindo do nazismo. De todo modo, são críticas que existem por aí.

Bom, só pra gente encerrar por hoje, deixa eu tentar fazer aqui com vocês uma apreciação de como Kelsen procede a esse esvaziamento do Direito. Vamos lá. Vamos pensar, por exemplo, no Direito e na Moral, que são dois sistemas normativos. Dois domínios normativos diferentes. Vou já definir pra vocês a conclusão e aí a gente vai preencher o argumento. Pra Kelsen, Direito e Moral são diferentes em virtude do modo como as estratégias ou as derivações normativas acontecem. Ou seja, na Moral, a derivação normativa é de tipo estático. No Direito, é de tipo dinâmico. Ou seja, Moral e Direito diferenciam-se em função do modo como as normas oferecem fundamentação umas às outras dentro do sistema. Ou seja, na Moral, essa forma de derivação entre as normas é de tipo estático e, no Direito, a forma de derivação é de tipo dinâmico. Eu sei que isso talvez seja um conceito um tanto quanto incompreensível, a priori, mas fiquem com a ideia que eu vou tentar mostrar pra vocês como isso acontece e depois a gente retoma o argumento.

É o seguinte. Vamos pensar em preceitos morais. Dentre eles, aquele que diz que a gente não deve mentir e aquele que diz que a gente não deve fraudar. Vamos pensar em outros preceitos morais, como, por exemplo, não ferir e também não matar. Tudo isso é exemplo dele, não tem nada meu aqui, é apenas uma descrição dos próprios exemplos trabalhados pelo Kelsen. Bom, haveria por acaso, algo em comum, entre não mentir e não fraudar que nos autorizasse a admitir a existência de uma norma superior fundamentando esses dois preceitos? Pra começar, todo mundo aqui concordar que isso aqui é preceito moral, né? Não mentir, não fraudar, não ferir, não matar, etc. Mas haveria uma norma superior, uma norma acima desses dois preceitos que pudesse nos oferecer aqui uma fundamentação pra esses dois preceitos? Sim ou não? O que é vocês encontrariam se a gente fosse procurar essa norma? No que eventualmente estaria fundamentada a norma que diz que a gente não deve mentir e, ao

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mesmo tempo, essa norma deveria fundamentar a norma que diz que a gente não deve fraudar. Encontra alguma coisa? Talvez a ideai do princípio da veracidade ou, a gente pode dizer, da boa fé. Que é algo muito caro ao Direito também, não é? Mas talvez o princípio da veracidade, da honestidade, não é. Talvez essa ideia seja exatamente do fundamento - vejam lá como a gente vai começando a construir uma estrutura piramidal - o fundamento de validade desses dois preceitos morais. Bom, assim como fizemos aqui, vamos tentar encontrar uma norma ou um preceito moral que fundamente não ferir e não matar. O que supostamente poderia inspirar esses dois preceitos e dar fundamentação a eles?

-A vida humana?

-Talvez algo mais específico, mas não tanto a ponto de confundir com esses dois preceitos que seria a ideia de que deve-se amar ao próximo. Quem ama ao próximo fere? Mata? Também não, né? OK, vamos agora encontrar a norma fundamental desse nosso sistema moral, ou seja, a gente busca agora a norma que seja o fundamento de validade, simultaneamente, do preceito de acordo com o qual a gente deve ser verdadeiro e deve também amar ao próximo. Qual seria essa norma fundamental?

-Não fazer pra outro o que você não gostaria que fizessem com você?

-O que mais?

-[pergunta inaudível] ... amar ao próximo ... Onde é que tem isso?

-Isso é um sistema moral. Não tem nada de jurídico aqui. Ainda que o Direito se aproprie de muitos desses conteúdos. Aliás, vocês sabem qual é a relação entre Direito e Moral? Tem questões que são tipicamente morais que interessam ao Direito. Mas tem questões com as quais o Direito lida que não interessam à Moral. Por exemplo, prazo pra contestação. Isso é moral ou imoral? É irrelevante. Por que o sinal é vermelho e não azul? Não tem conteúdo moral. É um mundo diferente. O mundo do Direito é um mundo diferente. Para a Moral, portanto, ela opera nessa forma que eu tô tentando caracterizar. Depois, quando eu mostrar o Direito, vai ficar claro o que eu quero fazer com vocês. A norma fundamental, pessoal, desse nosso sistema seria o princípio de que as pessoas, todos devem viver em harmonia com o universo, certo? Essa seria nossa norma fundamental de um sistema moral. Isso aqui é a representação de como funciona um sistema moral. Aqui a gente tem, assim como no Direito, diferentes escalões normativos, com diferentes graus de especificação. Lembra que eu disse a vocês que, na estrutura piramidal, a gente tem diferenças quantitativas e qualitativas? Isso permanece aqui na Moral.

Porém, existe uma diferença aqui enorme entre o Direito e a Moral. Que é o fato de todo esse conteúdo estar presente nessa norma fundamental aqui. Vamos lá, quem vive em harmonia com o universo, é verdadeiro? Ou mente? [discussão da turma: não se pode ser honesto o tempo inteiro] Mas isso não é fruto de uma forma de ver que a gente possa dizer que é propriamente harmoniosa. Quem desconfia, quem tem medo, receio da reação alheia... E aí eu tô partindo do pressuposto que todos se conduzem da mesma forma, evidentemente. Talvez seja esse seu argumento. Se todos agissem dessa forma, teríamos uma harmonia universal. Agora, viver em harmonia com o universo, implica em ser verdadeiro. Amar ao próximo, não

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mentir, não fraudar, não ferir, não matar. O que eu quero dizer é que todo esse conteúdo é subsumível na norma fundamental. Tudo o que a gente tem aqui é um processo de detalhamento, portanto, conteúdo está definido estaticamente.

Aí está a derivação normativa do tipo estático, certo?

Vamos pro Direito agora. Vou dar um exemplo pra vocês. Imaginem que depois de um longo dia de trabalho, chegando em casa às 22h, você encontra seu pequeno filho pulando em cima do sofá. Você abre a porta e diz: meu filho, o que é isso? Ele vai dizer: estou brincando! Vocês: a essa hora? Vá dormir! Ele pode, resignadamente, parar de pular no sofá e ir dormir. Mas ele pode ser dado ao gosto da argumentação e perguntar: mas, papai, tá tão bom, por quê, só um pouquinho! E só há uma forma de encerrar a discussão. Como se encerra a discussão? Quais são as várias formas? Em última análise, o argumento inapelável é o argumento da autoridade: vai dormir agora porque eu sou seu pai e estou mandando. Pode ser que o pai seja dado ao convencimento, mas, se não tiver jeito, só tem essa forma de encerrar a conversa: eu to mandando e ponto final. Pois bem. Nesse caso, a gente tem uma norma fundamenta: os filhos devem obedecer aos pais. E, lá em baixo, a gente tem o comando: os filhos devem dormir cedo. Perfeito.

Vamos imaginar uma segunda situação agora. Depois de um longo dia de trabalho, 22h, 23h da noite, você chega em casa e encontra seu pequeno filho pulando no sofá. Você pergunta: meu filho, o que é isso? Eu estou brincando, papai. E o pai diz, mas, meu filho, a essa hora? Saia daí, quem vai pular no sofá sou eu. E o pequeno filho pode, resignadamente, sair do sofá e deixar que o pai pule. Mas ele pode ser dado ao gosto da argumentação e dizer, papai, você é muito grande, vai quebrar o sofá. Só tem uma forma de encerrar a conversa, qual é? Sai daí agora por que eu sou seu pai, estou mandando e quem vai pular agora sou eu. Atenção, a norma fundamental é a mesma. Por que se o problema é obedecer aos pais o que quer que o pai diga - vá dormir; agora é minha vez ou, então, vamos pular juntos em cima da mesa de vidro - , tá valendo. A norma fundamental é a mesma. Percebam alguma coisa se perde aqui entre a norma fundamental e o comando lá em baixo. Ao contrário do que acontece aqui na Moral por que todo esse conteúdo é mantido. O que a gente tem é só um processo de detalhamento, de especificação. Isso não existe aqui. Essa é a derivação normativa de tipo dinâmico por que alguma coisa precisa acontecer aqui no meio, ou seja, há um processo de criação aqui no meio que vai fazer com que essa norma lá em baixo ganhe o seu conteúdo. Então, vocês acharam graça, mas eu posso dizer que o fato de um pai mandar um filho se jogar pela janela, por exemplo, talvez possa ser interpretado enquanto metáfora como a própria organização de um direito nazista, que não tem o menor compromisso e, até mesmo, desprezo, pela condição humana. Seria, guardadas as suas devidas proporções, uma situação como essa. Pois bem, o Direito trabalha dessa forma. Cria, portanto, uma autoridade e o conteúdo da norma, ou seja, o comando é o que menos interessa. O que interessa é a manutenção de uma estrutura de poder e de autoridade que deve ser obedecida, independentemente de ser justa, injusta, boa, ruim, etc.

Portanto, só pra retomar e a gente encerrar por hoje, o Direito, esse esvaziamento de conteúdo que Kelsen opera no Direito, é fruto de uma percepção de que a norma fundamental na moral, vejam só, que orienta-se pela derivação normativa de tipo estático, oferece uma

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dupla fundamentação. Uma fundamentação de forma, mas também de conteúdo. Já o Direito, que se orienta como mecanismo de derivação normativa de tipo dinâmico, nele, no Direito, a norma fundamental oferece única e exclusivamente a fundamentação formal. Não há fundamentação de conteúdo. Esse, portanto, é o resultado desse processo de esvaziamento do conteúdo do Direito. E essa, portanto, é um dos grandes problemas da TDP que, parece-me, ser emblemática. Afinal de contas, o que é um Direito justo? Como a gente pode construir um referencial de validade a partir de ... da ideia de justiça? Essa é uma discussão que a gente vai ter na próxima semana quando eu quero trabalhar com vocês a ideia de dimensão externa, de validade externa já que a gente trabalhou hoje com a noção de validade interna. Pra no final, encerrar com o polêmico debate sobre se o Direito é ou não é ciência e o que Kelsen tem a contribuir com isso.

7. Aula 03.04.13

Olha pessoal, eu conversei com vocês na aula passada sobre a construção do Kelsen enquanto proposta de compreensão metodológica do Direito. A gente viu que o grande esforço de Kelsen, no final das contas, é em demonstrar algo que é importante fundamental, talvez, para a compreensão do que seja até a própria perspectiva de um olhar cientifico sobre o Direito é que ele parte da distinção entre ser e dever ser. Eu diria que o tema da aula de hoje vai no sentido de tentar colocar à prova esse postulado kelseniano a partir do que ele próprio indica [critica?]. Portanto, eu não pretendo sair do pensamento kelseninano, mas seguir as orientações do próprio Kelsen e tentar ver até que ponto ele manteve esse postulado, né. E a minha opinião, pessoal, esse é um momento crítico da TPD. Eu diria que é o momento mais crítico da TPD do que, inclusive, a ultra criticada TNF. Existe uma conexão entre esses dois temas, mas, ao meu ver, essa possibilidade de comunicação que ele constrói com ser e dever pra mim é muito mais problemática.

Pra começar, Kelsen constrói uma grande teoria da validade, a gente discutiu isso na aula passada. A gente discutiu o que é uma norma válida, etc. Talvez pensar em validade no Direito seja, de alguma forma, pensar nessas relações internas, nessas relações intra ordenamento jurídico, no interior de cada ordenamento jurídico. Se se quer saber o que é uma norma válida, é uma norma que foi elaborada, enfim, produzida de acordo com as normas superiores do sistema. Até o limite máximo da norma fundamental, até a Constituição seja lá em que sentido a gente tome a Constituição. No sentido lógico jurídico, no sentido jurídico positivo, não importa, é sempre a Constituição o teto.

Mas uma questão que parece importante responder também é a questão da validade não no plano interno, mas a validade no plano externo. O que significa perguntar o seguinte, pessoal, porque uma ordem jurídica, que é encabeçada ou fundada em uma norma fundamental, porque é ela própria válida? Essa pergunta é particularmente importante quando a gente trabalha com situações de pluralismo jurídico. Já devem ter ouvido falado no tema, sobretudo nas aulas de Sociologia. Aliás, eu diria que esse é o momento em que Kelsen se aproxima, de fato, de uma abordagem tipicamente sociológica. Quando eu falo de pluralismo jurídico, pessoal, eu estou falando da pretensão de validade, de mais de uma ordem jurídica, no mesmo

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tempo e no mesmo espaço. Todos aqueles debates dos anos 90 sobre Direito Alternativo, Direito Oficial, Direito Extra Oficial, e manifestações alternativas de juridicidade, de certa forma se inspiram muito na questão de que, talvez, essa pretensão de monopólio da jurisdição estatal seja insuficiente para dar conta da complexidade contemporânea.

E Kelsen, ele próprio, já se preocupava com isso. Na prática, traduzindo para a nossa situação, vamos supor que eu tenho, então, um sistema 1, encabeçado por uma Norma Fundamental 1 e, concorrendo com ele, eu tenho o Sistema 2, encabeçado por uma Norma Fundamental 2. Exemplos clássicos disso aqui. Eu posso lembrar a vocês, sobretudo no contexto europeu, o que é que acontece com a máfia. A máfia, vocês sabem, é uma organização relativamente sofisticada. Existem estruturas bem parecidas com o que é o ordenamento jurídico estatal. Existem autoridades, existe hierarquia, escalonamento, diretrizes, normas, enfim, bem parecido com o que acontece num Estado.

Pra não ir muito longe, a gente pode ir pra América Latina. A gente pode pensar na Colômbia, nas Forças Armadas Revolucionárias de Colômbia - FARC. E, talvez, para ficar bem mais perto da nossa realidade, a gente pode pensar no crime organizado no Brasil. Ainda que, ultimamente, o Direito oficial, a orientação oficial do Direito, tenha feito algumas ofensivas em direção aos morros, sobretudo do Rio de Janeiro a ponto de, por exemplo, ser cenário da novela das 09h o Morro do Alemão. O que mostra que existe talvez uma mudança nesse quadro. Mas ainda existem espaços que são impenetráveis pelo Direito estatal e que é exatamente, talvez, a representação do que eu quero dizer. A gente tem duas ordens normativas distintas com diferentes orientações e muitas vezes conflitantes. Eu acho particularmente emblemático a gente perceber o que acontece...

Vamos lá, nas favelas do Rio de Janeiro. Lembram como aquele jornalista foi morto? Colocaram ele em pneus e incendiaram. É curioso. Isso foi o que aconteceu de fato. Mas como isso foi narrado pelos meios de comunicação? Assassinaram Tim Lopes? Foi assim? Ninguém usou a palavra julgamento, não? Lembram da história? Que Tim Lopes teria sido descoberto numa reportagem investigativa pelo chefe do tráfico e foi julgado pelos chefes do tráfico e foi condenado à morte daquela forma. Eu acho curioso. Exatamente, esse era o ponto que eu queria discutir. Por que aquilo é um julgamento? E, bom, do ponto de vista do que seria um julgamento tradicionalmente reconhecido pelo Direito oficial aquilo, certamente, não foi um julgamento. Mas aquilo foi noticiado e foi mesmo válida como julgamento à luz do próprio Direito extra estatal, um Direito que configura ordem jurídica paralela.

Nesse contexto, uma pergunta importante a gente precisa fazer: qual é a ordem jurídica que deve ser considerada como válida? A ordem jurídica estatal ou a extra estatal? A ordem jurídica do estado italiano ou a da máfia? Ou a ordem jurídica colombiana ou a das FARC? Ou a ordem jurídica do estado brasileiro ou a do crime organizado, enfim, do que acontece em uma realidade afastada desse referencial? Qual é a ordem jurídica, afinal de contas, válida? Me digam vocês e por quê?

-Aquela que tem mais força para se impor sobre a outra?

Esse argumento talvez indique o caminho percorrido por Kelsen. Porque, no final das contas, veja que a TPD é uma teoria formal. Não há qualquer referência a conteúdo. Então não eu

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posso dizer que a ordem jurídica ser considerada como válida é aquela ordem jurídica estatal, por que ela é melhor, mais justa. Aliás, esse critério de melhor ou pior, justa ou injusta envolve um juízo de valor que, vocês sabem, Kelsen não se preocupa com isso. Não posso dizer que a ordem jurídica é a estatal porque é a mais justa. Então esse é um caminho que não dá pra gente encontrar na TPD e isso é profundamente angustiante. Por que isso nos coloca num relativismo absoluto. Ou seja, se eu perguntar, fizer uma enquete no nosso meio: qual é o Direito melhor? Qual o que a gente deve obedecer? O da favela ou o do Estado, o do asfalto? Provavelmente, qual seria a resposta? Quem duvida que a resposta tenderia a consagrar as manifestações de jurisdicidade do asfalto? Mas, se eu fizer essa mesma pergunta na Rocinha, no Alemão, etc. O referencial de quem é amigo de quem é inimigo é outro. Certamente, a lógica da forma como se organiza a sociedade nesses espaços indicaria que talvez o Direito mais justo, o mais desejado e o Direito a ser obedecido e, por isso mesmo, um Direito válido, ... [interrupção de Ricarda] Certamente, eu dizia que, certamente, se a gente fizer essa pergunta na favela, a resposta seria outra porque o referencial de justiça, de poder, de força e de autoridade é muito diferente na favela e no asfalto. Por exemplo, vocês acham que um menino que mora no Alemão, na Rocinha, etc., vocês acham que ele almeja fazer um curso de Direito? "Eu quero ser Juiz Federal!". Vocês acham plausível isso? Pode acontecer, mas eu acho pouco provável. Esse talvez seja um desejo nosso, né. Do nosso meio porque todo mundo aqui quer ser Juiz Federal, Procurador da República e ganhar seus 20, 30 mil real e paz. Além de ser referencial de inteligência, de brilho jurídico, eternamente pra sociedade brasileira. Eles querem ser, esses jovens, eles querem ser é chefes do tráfico. Por uma razão muito simples, o referencial de poder, de autoridade que eles têm, é do chefe do tráfico, do dono do morro que diz quem sobe, quem desce, a hora do recolhimento, é aquele que tem acesso às melhores roupas e bens diversos, sapatos, carros, etc. É aquele que tem as meninas mais bonitas do pedaço, enfim, ele é aquele, sempre aquele cara que - tem até um complexo de gênero interessante aí, né, porque normalmente o chefe é O chefe e nunca A chefa. tem até nessa novela agora uma traficante de pessoas que é A chefa -, mas, enfim, o que acontece no final das contas, é que são referenciais diferentes.

E, para Kelsen é impossível, de fato, dizer que uma ordem jurídica tem que ser observada em detrimento da outra porque ela é melhor, mais justa, enfim. Não há critério material. A solução que Kelsen dá é simples. Ele vai dizer: a ordem jurídica válida ou a ordem jurídica a ser obedecida é aquela ordem jurídica capaz de se apresentar como ordem jurídica globalmente eficaz. Você sabe o que Kelsen tá dizendo com isso? Vou dizer de novo. A ordem jurídica a ser obedecido, portanto, a ordem jurídica válida, é aquela ordem jurídica capaz de se apresentar como ordem jurídica globalmente eficaz. Sabem o que é isso? Kelsen está dizendo que a validade, vejam só, portanto, uma dimensão tipicamente normativa do dever ser, a validade depende da eficácia global da ordem jurídica. Ou seja, a eficácia não é uma manifestação normativa. Toda norma tem pretensão de eficácia, mas nem toda norma é eficaz. Ou seja, a eficácia é uma manifestação do mundo do ser. Vejam que aqui, Kelsen está construindo pontes entre ser e dever ser. Ele está dizendo, se ele separou no início, o mundo do dever ser do mundo dos fatos e, de forma praticamente obcecada, manteve essa coerência, ele faz desse ponto uma importante concessão sociológica. Reconhecendo que a validade depende sim da eficácia.

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Agora, prestem atenção. Quando ele está praticamente jogando fora a sua TPD, a coerência, ele recupera. Por que quando ele diz que a validade depende da eficácia ele tá dizendo que a validade de uma norma depende da eficácia global do ordenamento jurídico a qual ela pertence. Não da eficácia pontual da norma. Explico melhor. É como se cada norma tivesse como imagem refletida em um espelho a totalidade do ordenamento jurídica. Como se ela olhasse pro espelho e visse a ordem jurídica a qual ela pertence. Então, ela pode ser ineficaz, mas se a ordem jurídica a qual ela pertence é globalmente eficaz, então, ela é válida. Perceberam como Kelsen fez? Ele não subordina a validade à eficácia. Pelo contrário, ele subordina a eficácia à validade. Então, quando a gente pensa que ele vai jogar fora toda a sua coerência, ele recupera e traz de volta a força novamente, certo?

Então, vejam, pra encerrar esse argumento, eu poderia dizer a vocês, então, pessoal, que isso é muito forte. Quando a gente pensa em ordem jurídica globalmente eficaz, a gente pode encontrar alguns indicativos disso também em algumas passagens da TPD. Exemplo, quando o juiz decide que uma pessoa praticou homicídio, ele tá aplicando que norma? É o tal art. 121, CP. O juiz quando decide, portanto, está aplicando art. 121, CP? Ninguém duvida disso, ne? Mas, vejam, quando a gente pensa em ordem jurídica globalmente eficaz, o que a gente tá pensando aqui é que, em todo e qualquer momento em que o Estado fala, seja através da legislação, seja através da jurisdição, seja através da Administração. Lembram daquilo que eu falei da aplicação e criação do Direito na aula passada? que tudo representa criação e aplicação do Direito? Bom, sempre que o Estado fala nesses momentos, portanto, administrando, legislando ou julgando, ele está afirmando a força global da ordem jurídica a qual esse agente pertence. Ou seja, o juiz quando decide num caso de homicídio, ele não está aplicando apenas o CP. Ele está aplicando um conjunto imenso de normas, dentre elas, as normas procedimentais, as normas de processo penal, que definem o caminho até chegar aquele momento; está reafirmando sua autoridade como juiz, ou seja, reafirmando aquelas normas referentes ao concurso ao qual ele se submeteu e foi aprovado, desde o edital até todo esse procedimento; está reafirmando a divisão de competências, enfim, ele reafirma, a cada instante, globalmente, toda a ordem jurídica.

- Professor, não é meio perigoso esse entendimento kelseniano? Porque, no caso da favela, o ordenamento eficaz globalmente é o extra estatal e o estatal seria do...

-Não necessariamente. Existe uma zona, um momento de disputa aí. Existe uma disputa, uma tensão. O que é que eu quero dizer com isso. Quando você diz que é perigoso, eu entendo. Eu acho que entendo. Você diz, bom... A gente pode tá dizendo que a ordem jurídica eficaz pode ser a da favela.

-E ordenamento estatal não seria válido naquele território.

-Kelsen considera sim. Ele considera exatamente isso que você tá dizendo. Pra ele não interessa se é perigoso, ou se não é perigoso, ou se é justo, injusto, não interessa. Ou seja, para Kelsen, se todos os chefes do tráfico resolverem mobilizar a população mais próxima a descer o morro e tomar conta do poder, tá valendo. Se não houver resistência, veja que muda completamente a orientação do Direito dominante. Se não houver resistência, qual é a ordem jurídica agora que se impõe com mais força, como globalmente eficaz?

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-É o caso da guerra civil? Em que o povo mudaria o governo?

-Exatamente. A noção de quem é amigo e de quem não é muda. A noção de quem é criminoso e de quem não é, muda completamente. Eu não sei que tipo de acordo seriam necessários para que isso fosse viabilizado. Mas é isso mesmo que Kelsen tá dizendo.

-Mas, então, e no caso de Kelsen considerar que, naquele território o ordenamento globalmente eficaz seria o extra estatal, o chefe lá poderia dizer: nesse território aqui, o meu ordenamento é válido, eu não posso ser punido por uma coisa que fiz nesse território [...]

-Deixa eu dizer uma coisa pra vocês. Primeiramente, em política, não há espaço vazio. Ou seja, é tudo uma questão de ocupar. O que eu quero dizer é que essas manifestações diferentes das manifestações estatais só existem diante da ausência do Estado. No momento em que o Estado se faz presente, pode haver mais ou menos dificuldade de se impor, eu não sei, afinal de contas, nesse jogo como é que isso aconteceria. Mas, no momento em que há resistência, no momento em que essa resistência se intensifica, nós não podemos dizer que há, ainda, uma ordem jurídica definida como globalmente eficaz. Existe um espaço sobre disputa jurisdicional. É a melhor definição.

Isso vale para o Direito Internacional. Por exemplo, por que é que a França não desapareceu como Estado durante a II Guerra Mundial. A França não foi invadida por Hitler? Houve ou não resistência. Houve. A França não desapareceu porque houve resistência. Houve, enfim, um enfrentamento do invasor. É verdade, de fora, o General de Gaulle comandou a resistência de fora do país. Mas a ordem jurídica nazista não conseguiu se impor como globalmente eficaz naquele momento. A mesma coisa aconteceu na Guerra do Golfo nos anos 90. Sadam Hussein já era presidente do Iraque e resolveu que ia ter uma passagem para o mar para escoar a sua produção de petróleo e resolveu invadir o Kuwait. Houve reação comandada pela ONU naquele momento, tudo nos procedimentos multilaterais do Direito Internacional. Mas, naquele momento, a ordem jurídica emergente, enfim, a do Iraque, não conseguiu subjugar a jurisdição do Kuwait.

Vejam pessoal, eu tô falando aqui de uma coisa muito importante do ponto de vista da Teoria Constitucional, que é a Teoria da Revolução. Isso é uma revolução, uma mudança efetiva de orientação a partir de uma manifestação ou de uma, enfim, de uma manifestação de força. Aliás, eu indicaria pra vocês a leitura de um livro, na verdade, um artigo, que foi publicado nos anos 80 na revista de ... legislativa [?]. A velha e conceituada revista da federal. O artigo é de autoria de um autor pernambucano, bastante conhecido, antigo catedrático, Lourival Vilanova. O título do trabalho é assim "Teoria da Revolução: anotações à margem de Kelsen". E essa é a discussão.

Bom, pra encerrar, então, eu queria só, talvez, retomar a questão do Direito como ciência que foi bem polêmica também. E deixar vocês talvez com mais ideias pra pensar do que propriamente pra concluir alguma coisa. Seria uma tentativa de fazer uma conclusão de tudo isso aqui e tentar mostra pra vocês que, de acordo com esse pensamento que Kelsen traz da TPD, a gente tem algumas referências importantes pra pensar o Direito como Ciência. Isso tem um custo muito alto no sentido de que à ciência cabe única e exclusivamente descrever o seu objeto. Não é compromisso, portanto, de um cientista, diria Kelsen, prescrever absolutamente

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nada. Ou seja, o cientista, por descrever fatos, ele está operando no mundo do ser. Qualquer cientista está a descrever fenômenos. Nada mais que isso. Nós juristas temos dificuldades com isso porque nós estamos vivendo num mundo de prescrições, num mundo de dever ser. Mas eu posso dizer pra vocês que esse é um exercício.

Por exemplo, se vocês pensarem em um rato de laboratório. Por que o rato está num laboratório e o que é que o cientista faz com ele? Ele tá lá e está observando o comportamento do ratinho, não é? Ele observa o comportamento do ratinho a partir das diferentes substâncias que ele injeta no animal. Ele pega uma substância que tem tais propriedades, injetou e o rato teve tal e tal reação. E ele narra tudo isso e publica essa narração. Tá aí já uma publicação importante para, enfim, os índices da CAPES. E ele sai percorrendo todas as substâncias, vermelha, azul, amarela, etc. Com, enfim, diferentes propriedades e, cada uma delas, o resultado é uma publicação e um novo índice lá pra CAPES.

A gente não trabalha muito assim. Pra gente produzir um artigo na área jurídica é complicado. Exige, às vezes, um esforço de criação, inovação. Exatamente por isso porque a gente tem uma leitura muito ambiciosa do que é fazer ciência. Ciência é uma coisa muito simples. Imagine que um cientista tenha a seguinte hipótese: eu vou administrar a substância preta e o rato deve morrer. Isso é uma hipótese, não é? Depois de experimentar inúmeras substâncias, eu posso pegar uma e fazer com que ele morra, é ou não é? Mas, no final das contas, ele pode não morrer. E se ele não morrer? A minha hipótese não foi confirmada, mas o fato de ele não ter morrido não significa que o meu trabalho descrição não tem importância ou não tem relevância. EU vou exatamente narrar: eu esperava que ele morresse por isso e por isso, mas não aconteceu. Pois bem, o que a gente faz em Direito é matar o rato a pauladas. Quando a gente diz assim: o rato deve morrer. A gente administra a substância preta. O ratinho fica elétrico, mas não morreu. Pego um pedaço de pau e mato ele, pronto, ele morreu. Porque a gente trabalha num plano do dever ser, quando confunde ciência com... Acho que já contei essa história pra vocês, inclusive.

Mas é fundamental perceber que, do ponto de vista da TPD, são diferentes níveis de linguagem. A ciência só existe se ela puder ser construída a partir de um referencial descritivo. O problema da operação do Direito é um problema de prescrição, a linguagem das fontes. É a linguagem, enfim, do juiz, do promotor, do advogado, etc. Para o cientista, [...] tão somente descrever fenômenos. E esse é um exercício difícil pra quem é educado a pensar prescritivamente. Eu reconheço. Não é um problema nosso, da nossa instituição, mas é um problema da nossa cultura jurídica. Bom, eu acho que posso colocar um ponto final da disciplina.

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