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Resgatando a cidadania Ser negro no Brasil não é exatamente um sinônimo de existência fácil. Ser negro e quilombola costuma deixar as coisas um tanto piores. Na maioria isolada em comunidades rurais do interior, essa população está virtualmente invisível aos olhos dos governos. Não tem acesso à àgua, à educação, à saúde, à comida ou, muitas vezes, nem ao reconhecimento de sua existência oficial através de uma certidão de nascimento. Sendo assim, é pouco surpreendente que quilombolas não pudessem se aposentar enquanto trabalhadores rurais, ou receber os auxílios ma- ternidade e doença, como é direito de todos os agricultores familiares não- quilombolas. Surpresa mesmo foi que essa distorção pudesse ser resolvida rapidamente - bastou, para começar, que o poder público deixasse cair a venda dos olhos. Ouvir os quilombolas do Serrote do Gado Bravo, ir até lá, aprender seus nomes e constatar seus problemas in loco, como fez o promotor de São Bento do Una, Antônio Fernandes, foi o que desencadeou uma mobiliza- ção institucional por parte do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) e do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) que acabou por corrigir o problema, em nível nacional e em um intervalo de apenas sete meses e meio (veja matéria nas páginas 4 e 5 e entrevista com o promotor na pági- na 6). Dentre as lições que ficam: nenhum ofício substitui uma conversa sincera com o cidadão, nenhum trabalho isolado rende tanto quanto uma parceria comprometida. Experiência em São Bento do Una mostra que resolução de problema começa em dar ouvidos a quem sofre com ele IDENTIFICAÇÃO, RECONHECIMENTO E TITULAÇÃO DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS O conceito de cidadania no Brasil vem sendo ampliado a partir da Constituição de 1988, o que tem possibilitado a aquisição de novos direitos para determinados grupos soci- ais e a criação de mecanismos que visam ao enfrentamento da discriminação e da exclusão social. Nesse contexto, os diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, tais como as comunidades remanes- centes de quilombos e os grupos indígenas, passaram a ser reconhecidos pelo Estado como grupos populacionais dota- dos de características específicas a serem protegidos, estabe- lecendo os artigos 215 e 216 da Carta Magna que o poder público deve implementar ações que assegurem a efetivação desses direitos. Embora no imaginário popular a expressão "quilombola" se confunda com "negro fugido" e em que pese ser ver- dadeiro que essas comunidades têm sempre origem em algu- ma relação escravista, sabe-se hoje que nem todas se inicia- ram da mesma forma em relação à ocupação da terra. Com efeito, se na sua imensa maioria são remanescentes de quilombos da época da escravidão, outras se formaram a partir da ocupação de terras doadas por antigos donos de escravos libertos, ou mediante a ocupação de terras do Estado, ou de fazendas abandonadas, após a libertação, como forma de sobrevivência. O fato de essas comunidades se encontrarem (com raras exceções), em locais distantes dos centros mais desenvolvi- dos e até mesmo das sedes das comarcas no interior mais dis- tante, torna ainda mais difícil o acesso às políticas públicas básicas, tais como o acesso à saúde, à educação, à comuni- cação, entre outras. O artigo 68, da ADCT, assegura às comunidades quilom- bolas o direito à propriedade das terras que ocupam, estabe- lecendo que é "dever do Estado emitir-lhes os títulos respec- tivos". Na prática, todavia, tem sido tormentosa a luta dessas populações por identificação e reconhecimento. Após rei- teradas reivindicações do movimento negro, em face das infindáveis exigências que paralisavam os processos de iden- tificação, foi editado o Decreto n. 4.887 de 20 de novem- bro de 2003, regulamentando o procedimento para identi- ficação, reconhecimento, delimitação e titulação das terras dessas comunidades, adequando-o ao que preceitua a Convenção 169 da Organização Internacional doTrabalho. De acordo com essa Convenção, ratificada pelo Congresso Nacional em 2002, o critério fundamental para o reconheci- mento é a autodefinição dessas comunidades, ou seja, a consciência da identidade quilombola, com presunção de ancestralidade negra, tradições sócio-culturais específicas e a propriedade coletiva da terra. Cabe ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, através do INCRA (Instrução Normativa n. 16 de 24 de março de 2004), a apreciação do processo de identificação, delimi- tação, demarcação e titulação dessas terras e à Fundação Cultural Palmares a responsabilidade de emitir o certificado reconhecendo a autodefinição, após todas varias fases do processo. Todavia, o Jornal Folha de São Paulo de 17 de dezembro último, noticiou que essas regras estão sendo alteradas através de nova Instrução Normativa proposta pela Advocacia Geral da União para atender interesses da ban- cada ruralista, revogando a Instrução do INCRA acima referida e criando mais obstáculos no processo de reconhe- cimento, a pretexto de diminuir contestações judiciais no momento da titulação, o que é um evidente engodo, além de configurar grave retrocesso nas políticas de reconheci- mento da propriedade coletiva da terra enquanto condição de sobrevivência digna dessas comunidades. A tramitação desses processos tem sido marcada por uma enorme e desigual resistência por parte das classes domi- nantes que sempre se beneficiaram dessa situação, as quais, muitas vezes, tem contado, infelizmente, com o apoio das próprias instituições governamentais na forma de interpre- tar a lei, impregnadas de racismo institucional. Conhecer um pouco mais da realidade dessas comu- nidades é essencial para que se possa desenvolver e exercitar o espírito crítico, institucional e sistematicamente, diante da legislação posta na ordem jurídica, e em face das desigualdades construídas ao longo desses cinco séculos de história. *Procuradora de Justiça e coordenadora do GT Racismo Maria Bernadete Martins de Azevedo* 8 - GT RACISMO - NÚMERO 10 - DEZEMBRO 2007

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Resgatandoa cidadania

Ser negro no Brasil não é exatamente um sinônimo de existência fácil.Ser negro e quilombola costuma deixar as coisas um tanto piores. Namaioria isolada em comunidades rurais do interior, essa população estávirtualmente invisível aos olhos dos governos. Não tem acesso à àgua, àeducação, à saúde, à comida ou, muitas vezes, nem ao reconhecimento desua existência oficial através de uma certidão de nascimento.

Sendo assim, é pouco surpreendente que quilombolas não pudessem seaposentar enquanto trabalhadores rurais, ou receber os auxílios ma-ternidade e doença, como é direito de todos os agricultores familiares não-quilombolas. Surpresa mesmo foi que essa distorção pudesse ser resolvidarapidamente - bastou, para começar, que o poder público deixasse cair avenda dos olhos.

Ouvir os quilombolas do Serrote do Gado Bravo, ir até lá, aprender seusnomes e constatar seus problemas in loco, como fez o promotor de SãoBento do Una, Antônio Fernandes, foi o que desencadeou uma mobiliza-ção institucional por parte do Ministério Público de Pernambuco (MPPE)e do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) que acabou por corrigiro problema, em nível nacional e em um intervalo de apenas sete meses emeio (veja matéria nas páginas 4 e 5 e entrevista com o promotor na pági-na 6). Dentre as lições que ficam: nenhum ofício substitui uma conversasincera com o cidadão, nenhum trabalho isolado rende tanto quanto umaparceria comprometida.

Experiência emSão Bento doUna mostraque resoluçãode problemacomeça em darouvidos a quemsofre com ele

IDENTIFICAÇÃO, RECONHECIMENTO E

TITULAÇÃO DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS

O conceito de cidadania no Brasil vem sendo ampliado apartir da Constituição de 1988, o que tem possibilitado aaquisição de novos direitos para determinados grupos soci-ais e a criação de mecanismos que visam ao enfrentamentoda discriminação e da exclusão social.

Nesse contexto, os diferentes grupos formadores dasociedade brasileira, tais como as comunidades remanes-centes de quilombos e os grupos indígenas, passaram a serreconhecidos pelo Estado como grupos populacionais dota-dos de características específicas a serem protegidos, estabe-lecendo os artigos 215 e 216 da Carta Magna que o poderpúblico deve implementar ações que assegurem a efetivaçãodesses direitos.

Embora no imaginário popular a expressão "quilombola"se confunda com "negro fugido" e em que pese ser ver-dadeiro que essas comunidades têm sempre origem em algu-ma relação escravista, sabe-se hoje que nem todas se inicia-ram da mesma forma em relação à ocupação da terra. Comefeito, se na sua imensa maioria são remanescentes dequilombos da época da escravidão, outras se formaram apartir da ocupação de terras doadas por antigos donos deescravos libertos, ou mediante a ocupação de terras doEstado, ou de fazendas abandonadas, após a libertação,como forma de sobrevivência.

O fato de essas comunidades se encontrarem (com rarasexceções), em locais distantes dos centros mais desenvolvi-dos e até mesmo das sedes das comarcas no interior mais dis-tante, torna ainda mais difícil o acesso às políticas públicasbásicas, tais como o acesso à saúde, à educação, à comuni-cação, entre outras.

O artigo 68, da ADCT, assegura às comunidades quilom-bolas o direito à propriedade das terras que ocupam, estabe-lecendo que é "dever do Estado emitir-lhes os títulos respec-tivos". Na prática, todavia, tem sido tormentosa a luta dessaspopulações por identificação e reconhecimento. Após rei-teradas reivindicações do movimento negro, em face dasinfindáveis exigências que paralisavam os processos de iden-tificação, foi editado o Decreto n. 4.887 de 20 de novem-bro de 2003, regulamentando o procedimento para identi-ficação, reconhecimento, delimitação e titulação das terras

dessas comunidades, adequando-o ao que preceitua aConvenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.De acordo com essa Convenção, ratificada pelo Congresso

Nacional em 2002, o critério fundamental para o reconheci-mento é a autodefinição dessas comunidades, ou seja, aconsciência da identidade quilombola, com presunção deancestralidade negra, tradições sócio-culturais específicas ea propriedade coletiva da terra.

Cabe ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, atravésdo INCRA (Instrução Normativa n. 16 de 24 de março de2004), a apreciação do processo de identificação, delimi-tação, demarcação e titulação dessas terras e à FundaçãoCultural Palmares a responsabilidade de emitir o certificadoreconhecendo a autodefinição, após todas varias fases doprocesso.

Todavia, o Jornal Folha de São Paulo de 17 de dezembroúltimo, noticiou que essas regras estão sendo alteradasatravés de nova Instrução Normativa proposta pelaAdvocacia Geral da União para atender interesses da ban-cada ruralista, revogando a Instrução do INCRA acimareferida e criando mais obstáculos no processo de reconhe-cimento, a pretexto de diminuir contestações judiciais nomomento da titulação, o que é um evidente engodo, alémde configurar grave retrocesso nas políticas de reconheci-mento da propriedade coletiva da terra enquanto condiçãode sobrevivência digna dessas comunidades.

A tramitação desses processos tem sido marcada por umaenorme e desigual resistência por parte das classes domi-nantes que sempre se beneficiaram dessa situação, as quais,muitas vezes, tem contado, infelizmente, com o apoio daspróprias instituições governamentais na forma de interpre-tar a lei, impregnadas de racismo institucional.

Conhecer um pouco mais da realidade dessas comu-nidades é essencial para que se possa desenvolver e exercitaro espírito crítico, institucional e sistematicamente, dianteda legislação posta na ordem jurídica, e em face dasdesigualdades construídas ao longo desses cinco séculos dehistória.

*Procuradora de Justiça e coordenadora do GT Racismo

Maria Bernadete Martins de Azevedo*

8 - GT RACISMO - NÚMERO 10 - DEZEMBRO 2007

MOÇAMBIQUEA possibilidade de realizaracordos de cooperaçãotécnica com o MinistérioPúblico de Pernambucotrouxe novamente aoRecife uma comissão demagistrados de Moçam-bique. Os representantesdo Centro de FormaçãoJurídica e Judiciária da-quele país vieram no iní-cio de novembro e foramrecebidos pelo Procura-dor-Geral de Justiça, Paulo Varejão, peladiretora da Escola Superior do MinistérioPúblico, procuradora Maria HelenaNunes Lyra, pela coordenadora do GTRacismo, Maria Bernadete Martins deAzevedo, e pelo promotor de Defesa daMulher, João Maria Rodrigues.

AUTONOMIA ESCOLARReunidos em um evento em Salvador,Bahia, professores de escolas particularesde todo o País deram seu apoio à implan-tação da Lei 10.639/03. A questão foi le-

vantada pela coordenadora do GTRacismo, Maria Bernadete Martins deAzevedo, durante a programação do semi-nário Sociedade e Diversidade: Reparando aEducação, promovido pelo movimentonegro e pela Confederação Nacional dosTrabalhadores em Estabelecimentos deEnsino (Contee). A procuradora falousobre o limite da autonomia das escolas eressaltou que a educação - mesmo nosestabelecimentos particulares - é uma con-cessão do poder público. "A Lei 10.639deve ser aplicada tanto no ensino público

quanto no particular, já que é uma lei paratoda a sociedade, e não apenas para a po-pulação negra", afirmou.

SÃO BENTO DO UNAO Ministério Público de Pernambuco e omunicípio de São Bento do Una fir-maram acordo para adotar a Lei10.639/03 nas escolas municipais, viabi-lizando a inclusão da história e culturaafricana e afro-brasileira nos currículosescolares, de forma a combater a discri-minação racial através da educação. Otermo de ajustamento de conduta foi assi-nado no dia 15 de novembro pelo pro-motor Antônio Fernandes Oliveira MatosJúnior com a Prefeitura e a SecretariaMunicipal de Educação. O conteúdo pro-gramático das escolas será adequado jápara o ano letivo de 2008, incluindo oestudo da história da África e dosafricanos, a luta dos negros no Brasil, acultura negra brasileira e o negro na for-mação da sociedade nacional para, dessaforma, resgatar a contribuição do povonegro nas áreas social, econômica e políti-ca da história do Brasil.

2 - GT RACISMO - NÚMERO 10 - DEZEMBRO 2007 GT RACISMO - NÚMERO 10 - DEZEMBRO 2007 - 7

LAGOA DOS GATOS PESQUISA EXPEDIENTE

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MPEM AÇÃONessa coluna, o GT Racismo reserva espaço para publicação denotícias das atividades dos promotores e procuradores de Justiçano combate ao racismo. Envie seu material e participe dasdiscussões sobre discriminação e promoção da igualdade racial.

ESTADO NORMATIZA LEI 10.639/03Pernambuco já tem uma instrução normativa

para guiar a implantação da Lei 10.639/03 noEstado. Publicado no Diário Oficial pelaSecretaria Estadual de Educação no DiaNacional da Consciência Negra, 20 de novem-bro, o texto é uma etapa burocrática necessáriapara que a rede de ensino pernambucana - públi-ca e particular - passe, em um futuro próximo, aincluir entre suas práticas pedagógicas a edu-cação das relações étnico-raciais e, em seus cur-rículos, o ensino da história e cultura africana eafro-brasileira. Trata-se de medida primordialpara a redução das desigualdades raciais e doracismo no País, uma vez que aborda o problemaainda na formação de crianças e adolescentes. Apublicação do texto vem logo em seguida à cria-ção do Comitê Estadual de Promoção da Igualdade Étnico-Raciale do Fórum Estadual de Educação e Diversidade Étnico-Racial(foto), implantados este ano com o objetivo primeiro de fazercumprir a Lei 10.639/03 em Pernambuco.

A instrução normativa determina, por exemplo, que os conteú-dos relativos a história e cultura africana e afro-brasileira devemestar presentes em todas as disciplinas, mas em especial nas deeducação artística, literatura e história. Segundo o próprio texto,o objetivo cotidiano do corpo escolar deve ser “proporcionar aprofessores e estudantes condições para pensarem, decidirem eagirem, assumindo responsabilidades por relações étnico-raciaisque valorizem e respeitem as diferenças”.

O texto pode ser consultado na íntegra através do site do GTRacismo, no endereço www.mp.pe.gov.br/index.pl/gt.

>>> A Prefeitura de Gameleira também se comprometeucom o MPPE a implantar, já para o ano letivo de 2008, a Leifederal 10.639/03. Com isso, os cerca de 5 mil estudantes darede municipal de ensino vão passar a aprender questõesrelacionadas à participação dos negros na formação dasociedade nacional de forma integrada a outras disciplinas,como literatura e educação artística. Termo de ajustamentode conduta nesse sentido foi assinado pelo prefeito JoséSeverino Ramos de Souza junto ao promotor de JustiçaAllison de Jesus Cavalcanti de Carvalho. Ficou acertado que o

município tem até o dia 1º de fevereiro para adotar todas asmedidas necessárias à implantação da Lei 10.639/03, incluin-do a capacitação dos professores para a utilização do novoconteúdo programático. Semestralmente, o município teráque enviar ao MPPE um relatório sobre este conteúdo esobre a capacitação do corpo docente. "Para que possamoscombater a discriminação racial dentro do município, énecessário que a população aprenda sobre sua própriahistória. Conhecimento é a melhor arma contra o precon-ceito", afirmou o promotor.

GT RACISMO - MPPE

Paulo Varejão - Procurador-Geral de Justiça

Maria Bernadete Martins Azevedo (coordenadora), GilsonRoberto de Melo Barbosa (sub-coordenador), Judith PinheiroSilveira Borba, Roberto Brayner Sampaio, Maria Ivana BotelhoVieira da Silva, Helena Capela Gomes Carneiro Lima, TacianaAlves de Paula Rocha Almeida, Maria Betânia Silva e Janeide deOliveira Lima.

www.mp.pe.gov.br � [email protected] � (81)3419.7000Edf. Promotor de Justiça Roberto LyraRua do Imperador, 473, Stº Antônio Recife-PE

Projeto gráfico: Ricardo MeloJornalista responsável: Renata BeltrãoIlustrações: Leonardo Martins

>>> A bibliotecária do Ministério Público de Pernambuco(MPPE), Aparecida Morais, está lançando o livroQuilombolas: subsídios para uma pesquisa, do qual é co-autora. O trabalho é resultado de uma pesquisa minuciosasobre todo o material a respeito dos quilombolas à dis-posição dos pesquisadores na Biblioteca Pública Estadual, etem o objetivo de servir como um guia de referências biblio-gráficas. Aparecida trabalhou durante um ano em parceriacom a outra co-autora, Moema Pelinca, até conseguir reunircerca de 300 citações sobre quilombolas, incluindo tambémperiódicos, imagens e obras raras.

Delegação de país africano visitou Escola Superior doMPPEGoverno anunciou instrução normativa na abertura do Fórum da Diversidade

A implantação da Lei 10.639/03 está incluída entre as ações doPacto pela Vida, o megaprograma do Governo estadual que temo objetivo de combater a violência em Pernambuco. Por isso, de-verá ser uma das prioridades para a Secretaria de Educação em2008. Assim garantiu o gerente de Políticas de Educação emDireitos Humanos, Diversidade e Cidadania do Estado, GilsonMarinho. Segundo ele, sua gerência terá R$ 2 milhões pra gastarem 2008 em três ações, incluindo a implantação da Lei. Entre osinvestimentos, estão previstas despesas com a construção das dire-trizes dos novos currículos escolares, além da formação e capaci-tação de professores.

SECRETARIA PREVÊ VERBAS

GT RACISMO - NÚMERO 10 - DEZEMBRO 2007 - 54 - GT RACISMO - NÚMERO 10 - DEZEMBRO 2007

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Resgatando a cidadania

Marcela tem apenas dois meses de vida. É uma das maisnovas integrantes da comunidade quilombola Serrote doGado Bravo, em São Bento do Una. Ela não sabe e nementenderá durante muitos anos, mas foi enquanto aindaestava na barriga da mãe que sua comunidade foi alvo deum feito inédito e que irá beneficiar, de agora por diante,milhares de quilombolas como ela, em todo o País. A mãede Marcela, Josefa Cristina de Lima Rodrigues, foi uma dasprimeiras quilombolas do Brasil a receber auxílio-mater-nidade do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).Uma possibilidade que era inacessível quando sua caçula foigerada, mas que agora é um direito indiscutível da comu-nidade - assim como a aposentadoria e outros benefíciosprevidenciários.

A falta de acesso a estes recursos era um problema grave

e invisível aos olhos do poder público até a intervenção doMinistério Público de Pernambuco (MPPE). Em abril desteano, a Promotoria local organizou um mutirão para levarserviços gratuitos e emissão de documentos à comunidade.Com o objetivo de fomentar a cidadania entre quem atéentão tinha pouca ou nenhuma, uma das etapas do traba-lho era dar voz aos quilombolas e ouvir deles próprios,durante uma audiência pública, o que consideravam ser osseus maiores problemas. Foi quando a dificuldade em con-seguir aposentadoria e demais benefícios sociais veio à tona.

Os quilombolas do Serrote são, em sua maioria, traba-lhadores rurais de subsistência. Mas como não podem com-provar a posse da terra - o direito à propriedade ainda nãofoi efetivado em nenhuma comunidade de Pernambuco,embora a Constituição assim o garanta -, não tinham aces-

so aos benefícios do INSS, que exige este documento detodos os agricultores. Depois da audiência, o Promotor deSão Bento do Una, Antônio Fernandes, e o coordenador doCentro de Apoio Operacional às Promotorias de Cidadania,Marco Aurélio Farias, entraram em contato com o Institutoe começaram a articular uma solução junto ao órgão.

As gerências regionais do INSS em Pernambuco mos-traram-se sensíveis à questão e formalizaram uma consultaoficial à sede do órgão no Distrito Federal. Brasília analisoua questão e decidiu que um documento da FundaçãoCultural Palmares atestando o auto-reconhecimento dacomunidade enquanto remanescente de quilombo passariaa ser aceito em lugar da escritura da terra. A resposta foirápida e em dezembro os primeiros benefícios foram libe-rados.

Entre tomar conhecimento do problema e resolvê-lo efe-tivamente foram apenas sete meses e meio. Marcela, que foiconcebida quando a questão sequer tinha chegado ao co-nhecimento do poder público, completou seus dois mesesde vida numa família que já pôde contar com o auxíliomaternidade conquistado por sua mãe. Foram R$ 1.520,00- ou quatro salários mínimos - correspondentes ao tempoem que a agricultora deixará de trabalhar apenas para ama-mentar a filha - a 14ª criança do casal. Mais do que isso, odinheiro injetou nova esperança no clã. Jessé João doAmaral, pai da família, investiu o benefício em dois bezer-ros e na construção de um curral. Espera poder engordar osanimais e revendê-los no futuro por um preço maior, dan-do início, assim, a um pequeno negócio de pecuária. Atéentão, Jessé dependia exclusivamente da oferta de trabalho

em outros roçados. Ele ganhava R$ 12 por dia de serviço,que aparecia uma ou duas vezes por semana, muitas vezesnenhuma.

Assim como a família de Marcela, outras 11 do quilom-bola Serrote do Gado Bravo já receberam auxílio materni-dade. Mais sete aguardam entrevista com técnicos do INSSpara concluir o processo de solicitação e três, cujos benefí-cios foram negados por falha na documentação apresenta-da, contam com o apoio da Promotoria para pedir recon-sideração. Dois quilombolas também aguardam apenas aconclusão de seus processos para receber aposentadoria.

Assim como em São Bento do Una, quilombolas de ou-tras regiões já podem requerer os benefícios previdenciáriosa que todo brasileiro tem direito. Basta, como lá, quepassem a ser enxergados como cidadãos.

Fotos: Renata Beltrão

Marcela e suamãe estão entre

as primeirasquilombolas doPaís a receberbenefício do

INSS

Renata Beltrão

DICAS DE LEITURA CONSCIÊNCIA NEGRA

GT RACISMO - NÚMERO 10 - DEZEMBRO 2007 - 36 - GT RACISMO - NÚMERO 10 - DEZEMBRO 2007

ENTREVISTA RACISMO INSTITUCIONAL É TEMA DE CAMPANHA

O Ministério Público de Pernambuco(MPPE) passa a contar com sua primeiracampanha de combate ao racismo institu-cional. Lançada durante as comemoraçõespelo Dia Nacional da Consciência Negra, ainiciativa do GT Racismo tem o objetivode divulgar a existência do problema – quefaz com que pessoas de grupos raciais dis-criminados tenham dificuldade no acessoaos serviços públicos ou particulares – co-mo primeiro passo na missão de dirimi-lo.

A campanha foi elaborada pelaAssessoria Ministerial de Comunicação doMPPE e é composta por banners, cartazes,panfletos, bottons e adesivos, que estãosendo distribuídos entre promotores eprocuradores de Justiça, além de entidadesligadas à defesa dos direitos da populaçãoafro-descendente e demais instituições eórgãos públicos. As peças são ilustradascom a fotografia do servidor da institu-ição, Almiro Félix da Cruz.

Além de divulgar a definição do que éracismo institucional, o panfleto da cam-panha traz ainda exemplos práticos doproblema. Dentre eles, o dado do Pro-grama Nacional para o Desenvolvimento(PNUD) que aponta uma taxa de morta-

lidade infantil 70% maior entre criançasnegras.

A iniciativa do GT Racismo recebeu oapoio integral do Procurador-Geral deJustiça, Paulo Varejão, que tem divulgadoa campanha nos eventos dos quais parti-cipa, destacando-a inclusive durante seudiscurso de abertura da Semana Nacionaldo Ministério Público, no dia 10 dedezembro.

O promotorde São Bentodo Una deuinício a umtrabalho peloresgate da ci-dadania dacomunidadequilombolaSerrote do

Gado Bravo que resultou na concessãode benefícios da previdência aos quaisnunca tiveram acesso. A medida adota-da pelo INSS vale para todo o País(saiba mais nas páginas 4 e 5).

O que o Ministério Público pode apren-der com o trabalho desenvolvido noSerrote do Gado Bravo?Aprendemos que não se consegue traba-lhar sozinho. Como nesse caso, foinecessário o apoio de várias instituições,como o poder público municipal, sindi-

catos, associações. Além disso, se o pro-motor fica no gabinete, não apreende dasociedade o que ela precisa, quais os seusproblemas. Se não tivéssemos ido ouvir acomunidade durante a Ação Cidadã[projeto que leva mutirão de cidadania àspopulações carentes do município],sequer estaríamos sabendo da demandacom relação aos benefícios previden-ciários.

Como essa experiência pode contribuirpara o combate ao racismo na cidade?A obtenção dos direitos previdenciáriospela comunidade pode acabar tendo essarepercussão. Os quilombolas, assim comoos indígenas, vivem numa situação difícil,à margem da sociedade. Mas elesmostraram que, se tiverem a oportu-nidade de produzir, eles o farão [partedos beneficiados está investindo o di-nheiro recebido em pecuária de sub-sistência]. Então, o impacto do racismo

pode começar a diminuir. Mas para com-bater mesmo o racismo, é preciso um tra-balho maciço em educação, na divulga-ção da cultura negra, para mostrar queeles também fazem parte da sociedade.

Com relação a isso, a prefeitura de SãoBento do Una assinou acordo paraimplantar a Lei 10.639/03 já em 2008.Quais as expectativas?A Promotoria de Justiça está se impondoesse projeto: acompanhar, em 2008, aimplantação da Lei pelo Município. Damesma forma que hoje já visitamos asescolas para verificar o funcionamento doVoltei [programa de erradicação daevasão escolar], vamos também fiscalizara adoção da Lei 10.639. A prefeitura jáiniciou a sensibilização dos professores, jáapresentou a nova proposta pedagógica àSecretaria de Educação e tem um projetode capacitação continuada para o próxi-mo ano.

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ANTÔNIO FERNANDES

>>>A necessidade demudanças no progra-ma político-pedagógico das escolas deforma a promover uma real democraciaracial em sala de aula foi o tema abordadodurante o evento do GT Racismo em co-memoração ao Dia Nacional da ConsciênciaNegra. A assessora técnica da Secretaria deEducação Continuada do Ministério daEducação (Secad), Maria Auxiliadora Lopes,convidada especial do evento, ressaltou aimportância da implantação da Lei 10.639/03, que instituiu a

inclusão dahistória e cultura africana e afro-brasileira nos currículos escolares a partir dedados atuais sobre a desigualdade étnica noPaís. Hoje, 80% dos 14 milhões de analfa-betos brasileiros são negros, por exemplo.“O próprio ambiente hostil acaba expulsadoa criança negra da escola, enquanto que abranca temdificuldades em lidar com o cole-ga negro e isso evolui para racismo nofuturo”, exemplificou. A abertura do evento

foi feita pelo Afoxé Oyá Alaxé, de Dois Unidos (foto).

No meio da discussão sobrea implantação da Lei 10.639e seu impacto no sistemanacional de ensino, osautores trazem um livro quetem como objetivo desfazermitos e fantasias a respeitodo continente africano. Paraisso, usam a informaçãocomo arma. A obra é umaintrodução à geografia,história, cultura e atuali-dades da África.

MEMÓRIA D’ÁFRICACarlos Serrano eMaurício WaldmannEditora Cortez - R$ 39,00

O livro traz uma série deartigos de autoresestrangeiros que exploramessa relativamente recentelinha de estudos sobre aquestão racial. Ao invés departir da negritude, abor-dam de forma crítica abranquidade - o que é serbranco no jogo de forças dacontemporaneidade e o queisso significa numa escalahistórica.

BRANQUIDADEVron Ware (org.)Garamond UniversitáriaR$ 37,80

TVU APÓIAINICIATIVA

Panfleto traz exemplos do problema

A campanha de combate ao racismo insti-tucional tem a colaboração indispensávelda TV Universitária. Através do seu diretorde Programação, Luiz Lourenço, a emisso-ra estabeleceu uma parceria com oMinistério Público de Pernambuco paraproduzir um comercial de TV com amesma identidade visual das peças impres-sas da campanha.O spot está sendo veiculado diariamente

no canal 11, levando ao ar para toda aRegião Metropolitana do Recife e parte daZona da Mata a definição do que é racismoinstitucional, bem como telefone eendereço de contato com o GT Racismo.O áudio do comercial também está sendoveiculado diariamente pelas rádiosUniversitária, Jovem CAP e Jornal.

Em comemoração à semana da Cons-ciência Negra, o programa Nosso Jornal daTVU produziu, ainda, uma série dereportagens e entrevistas de estúdio sobre otema.